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10/8/2008 13SALVADOR DOMINGO12 SALVADOR DOMINGO 1 0 / 8 / 20 0 8
ABRE ASPAS JOÃO MIGUEL AT O R
«A arte temurgência»Texto TATIANA MENDONÇA [email protected] REJANE CARNEIRO [email protected]
Depois da pergunta, João Miguel, 38, vai como uma pipa, brin-
cando de reticências com o vento, entre construções e descons-
truções. Não dá para saber onde ele vai parar, mas esteja certo
de que é um lugar interessante. O ator ainda fala com uma ma-
lemolência muito baiana, que os seis anos em São Paulo não
conseguiram roubar, e tem o vício de terminar as frases pedindo
a aprovação do interlocutor. Né? Ele tem no currículo filmes co-
mo Estômago (2008), O Céu de Suely (2006), Cidade Baixa
(2005) e Cinema, Aspirinas e Urubus (2005), com o qual ganhou
11 prêmios. Na televisão, já participou das séries Antônia, A
Grande Família e Te Quiero, America , quadro do Fantástico. En-
carnou no teatro o Bispo do Rosário, que ainda não o largou por
completo. João quer remontar a peça no ano que vem. Enquan-
to isso, segue seu caminho de “buscador”, como se define.
João, estava pesquisando os filmes que você vai fazer por agora:
Bonitinha, mas Ordinária, A Hora e a Vez de Augusto Matraga,
Quincas Berro D´água e Se Nada Mais Der Certo. Você não está
trabalhando demais?
Não, não é trabalhando demais, é sobrevivência (Risos).
Bonitinha, mas ordináriaeu já filmei; deve estrear em 2009.
A hora e a Vez, filmo no ano que vem. As filmagens de Quin-
cas vão ser no final deste ano e Se Nada mais der certo tam-
bém já filmei, deve ir para algum festival ainda este ano.
Recebi outras propostas de longas, mas não tem nada de-
finido. Terminei de gravar agora Ó Paí ó, que deve ir ao ar
em setembro, na Globo. E queria muito remontar o Bispo.
Você foi convidado pelo diretor Fábio Barreto para interpretar
Lula no cinema. Vai aceitar?
Houve o convite, mas infelizmente não vou poder fazer. Te-
nho uma tendência de mergulhar muito nas coisas, e o pro-
jeto que tenho para o ano que vem é o Matraga. Talvez seja
o personagem mais desafiante que já fiz. É inspirado num
conto fabuloso do Guimarães Rosa, é muito universal. Te-
nho me preocupado com essa catalogação de fazer nordes-
tino e tal, mas por outro lado percebo que o sertanejo, que-
rendo ou não, representa o País na sua profundidade, me
faz entrar em contato com os corações que o País tem. É
óbvio que não quero ficar nisso, acho que tenho uma hu-
manidade que é muito urbana também e tenho vontade de
falar do meu tempo. Mas fiz esses personagens acreditando
que as contradições e as histórias que eu contei têm a ver
com o nosso tempo.
10/8/2008 13SALVADOR DOMINGO12 SALVADOR DOMINGO 1 0 / 8 / 20 0 8
ABRE ASPAS JOÃO MIGUEL AT O R
«A arte temurgência»Texto TATIANA MENDONÇA [email protected] REJANE CARNEIRO [email protected]
Depois da pergunta, João Miguel, 38, vai como uma pipa, brin-
cando de reticências com o vento, entre construções e descons-
truções. Não dá para saber onde ele vai parar, mas esteja certo
de que é um lugar interessante. O ator ainda fala com uma ma-
lemolência muito baiana, que os seis anos em São Paulo não
conseguiram roubar, e tem o vício de terminar as frases pedindo
a aprovação do interlocutor. Né? Ele tem no currículo filmes co-
mo Estômago (2008), O Céu de Suely (2006), Cidade Baixa
(2005) e Cinema, Aspirinas e Urubus (2005), com o qual ganhou
11 prêmios. Na televisão, já participou das séries Antônia, A
Grande Família e Te Quiero, America , quadro do Fantástico. En-
carnou no teatro o Bispo do Rosário, que ainda não o largou por
completo. João quer remontar a peça no ano que vem. Enquan-
to isso, segue seu caminho de “buscador”, como se define.
João, estava pesquisando os filmes que você vai fazer por agora:
Bonitinha, mas Ordinária, A Hora e a Vez de Augusto Matraga,
Quincas Berro D´água e Se Nada Mais Der Certo. Você não está
trabalhando demais?
Não, não é trabalhando demais, é sobrevivência (Risos).
Bonitinha, mas ordináriaeu já filmei; deve estrear em 2009.
A hora e a Vez, filmo no ano que vem. As filmagens de Quin-
cas vão ser no final deste ano e Se Nada mais der certo tam-
bém já filmei, deve ir para algum festival ainda este ano.
Recebi outras propostas de longas, mas não tem nada de-
finido. Terminei de gravar agora Ó Paí ó, que deve ir ao ar
em setembro, na Globo. E queria muito remontar o Bispo.
Você foi convidado pelo diretor Fábio Barreto para interpretar
Lula no cinema. Vai aceitar?
Houve o convite, mas infelizmente não vou poder fazer. Te-
nho uma tendência de mergulhar muito nas coisas, e o pro-
jeto que tenho para o ano que vem é o Matraga. Talvez seja
o personagem mais desafiante que já fiz. É inspirado num
conto fabuloso do Guimarães Rosa, é muito universal. Te-
nho me preocupado com essa catalogação de fazer nordes-
tino e tal, mas por outro lado percebo que o sertanejo, que-
rendo ou não, representa o País na sua profundidade, me
faz entrar em contato com os corações que o País tem. É
óbvio que não quero ficar nisso, acho que tenho uma hu-
manidade que é muito urbana também e tenho vontade de
falar do meu tempo. Mas fiz esses personagens acreditando
que as contradições e as histórias que eu contei têm a ver
com o nosso tempo.
10/8/2008 15SALVADOR DOMINGO14 SALVADOR DOMINGO 1 0 / 8 / 20 0 8
A gente falava de Lula, e o seu pai é Do-
mingos Leonelli, secretário estadual de
Turismo. Política é um assunto que lhe in-
teressa?
Não, não é um assunto que me in-
teressa, mas também... Como é que
eu digo isso? Não me interessa a po-
lítica partidária por uma questão da
situação do País mesmo, mas me in-
teressam os aspectos políticos do
mundo. Me sinto um cidadão políti-
co como artista.
Você acha que um artista pode, ou deve
opinar sobre tudo?
A gente tem o direito de participar.
Da maneira como o Lázaro (Ramos),
por exemplo, escreveu sobre a vio-
lência. Um artista que vai ao seu
bairro e percebe que há um toque de
recolher pode questionar, porque
talvez a voz dele tenha espaço que
um cidadão “normal” não teria.
Voltando a falar de cinema, você já pas-
sou da fase de fazer testes?
Não sou muito bom de teste. Graças
a Deus agora tenho recebido mais
convites diretos. Em Cinema, Aspiri-
nas e Urubus fiz um teste com 300
pessoas. Foi tão ruim que cheguei
para o Marcelo (Gomes, diretor) e
falei: "Não se preocupe, a gente vai
continuar bróder, adorei o roteiro,
está tudo certo" (Risos). Tenho o
maior orgulho desse filme. Para
mim foi importante essa passagem
do Bispo para o Aspirinas. Estava fa-
zendo o espetáculo há quatro anos e
meio, era uma coisa extremamente
autoral... E estava fazendo de mui-
tos jeitos. Fiz uma performance na
jaula do leão aqui no Jardim Zooló-
gico, para quinhentas pessoas. O
leão estava preso numa jaula me-
nor. Teve uma hora que ele urrou e aí
um menino pegou no pai e falou:
"Meu pai, ele engoliu o leão"! É isso
que me interessa, criar essa eletrici-
dade com o espectador. É bacana vo-
cê se desconstruir, se colocar num
espaço surpresa. O fato de eu ter si-
do palhaço por muito tempo está
sempre presente no meu trabalho.
Como foi isso de você ser palhaço?
Morava no Rio de Janeiro e aí o Luiz
(Carlos Vasconcellos) foi dar uma
oficina no grupo de teatro onde eu
estava. Voltando à sua pergunta, o
palhaço, por exemplo, é um ser po-
lítico. Ali ele pode dizer o que geral-
mente não diz num estado civil. A
gente se apresentava em praças, fei-
ras, favelas. E também em salas fe-
chadas, como exercício de criação,
que é a base do trabalho do ator. Vo-
cê tem que ter um espaço técnico e
depois abandonar a técnica no exer-
cício, no jogo.
Então você está com saudade do teatro.
Ave Maria! Mas não que isso não
exista no cinema. Acho que descobri
uma outra coisa que é a possibilida-
de de botar essa atitude interior, tan-
to do palhaço quanto de aspectos de
construção do personagem, no cine-
ma. O cinema vai direto na alma. É
quase um não-fazer. É interessante
às vezes suspeitar que uma câmera
está lendo seu pensamento! (Risos)
Dá uma certa agonia, mas é interes-
sante. A câmera pega tudo, é um
exercício de abismo. Me lembro des-
sa sensação quando fiz o Aspirinas,
que foi o primeiro filme que prota-
gonizei.
Você teve medo, ficou ansioso?
Não, mas essa coisa abismal, de ficar
24 horas com o personagem, prati-
camente... Me lembro que, quando
acabou, falei: "Rapaz, isso não dá
pra mim não, o juízo não fica bom"
(Risos). Mas, por outro lado, é um
vício maravilhoso. O cinema é um
exercício dos pequenos coletivos. É
um monte de gente trabalhando, e
aquilo pode ser um horror ou pode
ser uma maravilha. Acredito no cine-
ma brasileiro que tem isso como ba-
se, não é uma coisa que vem de fora,
sabe. A gente nunca vai ser ameri-
cano mesmo e nem precisa ser. A
gente tem que ter a coragem de se
ver, o que não é fácil. É a partir do
regional – que pode ser São Paulo,
ou Salvador hoje, urbana, não im-
porta – que a coisa pode ecoar e isso
ser universal. Quando aciono uma
espécie de memória celular, física, é
que estou em contato com a minha
existência e com as coisas que vejo.
O Bispo e o cinema têm me mostra-
do que é importante a gente se des-
locar. Aquilo que o Chico Science fa-
lava: "Um passo à frente e você já
não está mais no mesmo lugar". É
um não ficar no meu umbigo e nem
por isso deixar de estar em mim. Es-
tou mais em mim ainda.
Você costuma receber excelentes críticas
pelo seu trabalho. Isso o seduz ou você
não costuma levar muito em conta?
É uma mistura... Quando fiz o Aspi-
rinas tinha 34, 35 anos, e lido com
esse ofício desde os nove. Natural-
mente, não me seduzo tanto. Se eu
tivesse 19, 20 anos, talvez fosse ou-
tra coisa. Mas é muito bacana esse
reconhecimento da crítica que vem
do trabalho. Vejo a arte como um es-
paço da sobrevivência física, men-
tal, como um espaço para exercitar
minha lucidez. Não acredito, para
minha trajetória, nesse exercício da
celebridade. Quero criar persona-
gens que possam me provocar e
criar questões na sociedade. Isso
«Não me interessa a políticapartidária, mas os aspectospolíticos do mundo»
Na peça Bispo, O Senhor do Labirinto ( 20 0 1 )
REJANE CARNEIRO | AG. A TARDE | 3.3.2001
Cinema, Aspirinas e Urubus (2005), ao lado de Peter Ketnath Em Estômago (2008), entre Alexandre Sil e Babu Santana Na Globo, em Te Quiero América (2007), com Denise Fraga
FOTOS DIVULGAÇÃO
10/8/2008 15SALVADOR DOMINGO14 SALVADOR DOMINGO 1 0 / 8 / 20 0 8
A gente falava de Lula, e o seu pai é Do-
mingos Leonelli, secretário estadual de
Turismo. Política é um assunto que lhe in-
teressa?
Não, não é um assunto que me in-
teressa, mas também... Como é que
eu digo isso? Não me interessa a po-
lítica partidária por uma questão da
situação do País mesmo, mas me in-
teressam os aspectos políticos do
mundo. Me sinto um cidadão políti-
co como artista.
Você acha que um artista pode, ou deve
opinar sobre tudo?
A gente tem o direito de participar.
Da maneira como o Lázaro (Ramos),
por exemplo, escreveu sobre a vio-
lência. Um artista que vai ao seu
bairro e percebe que há um toque de
recolher pode questionar, porque
talvez a voz dele tenha espaço que
um cidadão “normal” não teria.
Voltando a falar de cinema, você já pas-
sou da fase de fazer testes?
Não sou muito bom de teste. Graças
a Deus agora tenho recebido mais
convites diretos. Em Cinema, Aspiri-
nas e Urubus fiz um teste com 300
pessoas. Foi tão ruim que cheguei
para o Marcelo (Gomes, diretor) e
falei: "Não se preocupe, a gente vai
continuar bróder, adorei o roteiro,
está tudo certo" (Risos). Tenho o
maior orgulho desse filme. Para
mim foi importante essa passagem
do Bispo para o Aspirinas. Estava fa-
zendo o espetáculo há quatro anos e
meio, era uma coisa extremamente
autoral... E estava fazendo de mui-
tos jeitos. Fiz uma performance na
jaula do leão aqui no Jardim Zooló-
gico, para quinhentas pessoas. O
leão estava preso numa jaula me-
nor. Teve uma hora que ele urrou e aí
um menino pegou no pai e falou:
"Meu pai, ele engoliu o leão"! É isso
que me interessa, criar essa eletrici-
dade com o espectador. É bacana vo-
cê se desconstruir, se colocar num
espaço surpresa. O fato de eu ter si-
do palhaço por muito tempo está
sempre presente no meu trabalho.
Como foi isso de você ser palhaço?
Morava no Rio de Janeiro e aí o Luiz
(Carlos Vasconcellos) foi dar uma
oficina no grupo de teatro onde eu
estava. Voltando à sua pergunta, o
palhaço, por exemplo, é um ser po-
lítico. Ali ele pode dizer o que geral-
mente não diz num estado civil. A
gente se apresentava em praças, fei-
ras, favelas. E também em salas fe-
chadas, como exercício de criação,
que é a base do trabalho do ator. Vo-
cê tem que ter um espaço técnico e
depois abandonar a técnica no exer-
cício, no jogo.
Então você está com saudade do teatro.
Ave Maria! Mas não que isso não
exista no cinema. Acho que descobri
uma outra coisa que é a possibilida-
de de botar essa atitude interior, tan-
to do palhaço quanto de aspectos de
construção do personagem, no cine-
ma. O cinema vai direto na alma. É
quase um não-fazer. É interessante
às vezes suspeitar que uma câmera
está lendo seu pensamento! (Risos)
Dá uma certa agonia, mas é interes-
sante. A câmera pega tudo, é um
exercício de abismo. Me lembro des-
sa sensação quando fiz o Aspirinas,
que foi o primeiro filme que prota-
gonizei.
Você teve medo, ficou ansioso?
Não, mas essa coisa abismal, de ficar
24 horas com o personagem, prati-
camente... Me lembro que, quando
acabou, falei: "Rapaz, isso não dá
pra mim não, o juízo não fica bom"
(Risos). Mas, por outro lado, é um
vício maravilhoso. O cinema é um
exercício dos pequenos coletivos. É
um monte de gente trabalhando, e
aquilo pode ser um horror ou pode
ser uma maravilha. Acredito no cine-
ma brasileiro que tem isso como ba-
se, não é uma coisa que vem de fora,
sabe. A gente nunca vai ser ameri-
cano mesmo e nem precisa ser. A
gente tem que ter a coragem de se
ver, o que não é fácil. É a partir do
regional – que pode ser São Paulo,
ou Salvador hoje, urbana, não im-
porta – que a coisa pode ecoar e isso
ser universal. Quando aciono uma
espécie de memória celular, física, é
que estou em contato com a minha
existência e com as coisas que vejo.
O Bispo e o cinema têm me mostra-
do que é importante a gente se des-
locar. Aquilo que o Chico Science fa-
lava: "Um passo à frente e você já
não está mais no mesmo lugar". É
um não ficar no meu umbigo e nem
por isso deixar de estar em mim. Es-
tou mais em mim ainda.
Você costuma receber excelentes críticas
pelo seu trabalho. Isso o seduz ou você
não costuma levar muito em conta?
É uma mistura... Quando fiz o Aspi-
rinas tinha 34, 35 anos, e lido com
esse ofício desde os nove. Natural-
mente, não me seduzo tanto. Se eu
tivesse 19, 20 anos, talvez fosse ou-
tra coisa. Mas é muito bacana esse
reconhecimento da crítica que vem
do trabalho. Vejo a arte como um es-
paço da sobrevivência física, men-
tal, como um espaço para exercitar
minha lucidez. Não acredito, para
minha trajetória, nesse exercício da
celebridade. Quero criar persona-
gens que possam me provocar e
criar questões na sociedade. Isso
«Não me interessa a políticapartidária, mas os aspectospolíticos do mundo»
Na peça Bispo, O Senhor do Labirinto ( 20 0 1 )
REJANE CARNEIRO | AG. A TARDE | 3.3.2001
Cinema, Aspirinas e Urubus (2005), ao lado de Peter Ketnath Em Estômago (2008), entre Alexandre Sil e Babu Santana Na Globo, em Te Quiero América (2007), com Denise Fraga
FOTOS DIVULGAÇÃO
10/8/2008 17SALVADOR DOMINGO16 SALVADOR DOMINGO 1 0 / 8 / 20 0 8
não quer dizer que você não dialo-
gue com o mercado. É inevitável.
Mas esse “Deus Mercadus”, que pa-
rece que faz uma sombra em torno
do que é você... Quero sempre estar
me perguntando, não quero estar
me respondendo. Mas responden-
do à sua pergunta sobre a crítica, é
maravilhoso quando é uma avalia-
ção consistente, independentemen-
te de se falar bem ou mal do seu tra-
balho. Acredito que tenho um perfil
que não é tão fácil de ser digerido,
porque não trabalho em uma mídia
grande. Dialogo com a televisão,
mas não assinei nenhum contrato.
Acredito na possibilidade de o cine-
ma virar uma indústria. E me sinto
privilegiado de viver de cinema nes-
te País. O legal é que, com isso, a pró-
pria televisão está se revisitando.
Tem o Sérgio (Machado) que foi fa-
zer HBO... Fiz até uma participação
pequena na série, mas foi uma cena
maravilhosa. Ó, parece que estou
me gabando, nem sou disso. A cena
é que ficou maravilhosa.
Você é muito crítico?
Sou, supercrítico.
Mas agüenta se ver na tela ou não?
Depende. Quando você acredita
mais no filme, é mais fácil porque vo-
cê está vendo como um todo e pode
até se anular. Mas quando não acre-
dito tanto, fico saltando as cenas.
"Rapaz, o que você fez...".
Isso tem acontecido menos, imagino.
É, mas meu estado crítico é constan-
te. Na hora de fazer, não, na hora de
fazer eu me jogo. Defendo meu per-
sonagem, me apaixono por ele.
Você quer se meter mais em cinema?
Quero. Interessam-me os aspectos
por trás da cena. Mas atuar é meu
ganha-pão, é minha possibilidade
de não ter enlouquecido, é quase es-
piritual, mas é muito concreto, qua-
se como o candomblé... Estou com
uma idéia de roteiro e vou dirigir
agora este ano um programa cha-
mado Retratos Brasileiros, no Canal
Brasil, sobre o José Dummont, que é
um artista que eu amo. Ele abriu ca-
minho para essa maneira mais au-
toral de atuar. O Zé está entre os ato-
res que eu mais admiro: Chaplin,
Mastroianni, Marlon Brando...
Qual personagem você sonha em fazer
no cinema?
Adoraria fazer o Bispo. Infelizmente
teria que me dirigir ou então trans-
cender essa catalogação. Sou bran-
co, ele era preto. Mas como o pró-
prio Bispo falava: “Às vezes quando
eu deixo de trabalhar, eu sou trans-
parente. Mas normalmente eu sou
cheio de cores”. O Bispo deu um nó
na psiquiatria, na arte. Saiu do cida-
dão catalogado como esquizofrêni-
co e virou o cidadão catalogado co-
mo um grande artista. Ele falava:
"Tão dizendo que isso que eu faço é
arte. Quem fala não sabe de nada.
Isso é minha salvação na terra, tá
mais do que visto". Quando entro
em contato com esse tipo de urgên-
cia, quero entrar em contato com o
que é urgente pra mim. A arte tem
urgência. Não sei o que vai vir de-
pois, sei que, enquanto estou vivo,
tudo isso daqui é muito palpável.
Como você começou a fazer teatro?
Tinha nove anos, morava no prédio
da Nilda Spencer. Um amigo de mi-
nha mãe me chamou para fazer uma
peça e depois um amigo da Nilda,
Nonato Freire, me chamou para
apresentar um programa de televi-
são chamado Bombom Show. Fui
entrevistar o Glauber (Rocha) e fa-
lei: “Vou te perguntar uma pergun-
ta” e ele: "E eu vou te responder uma
r e s p os t a " .
E quando decidiu que ia ser ator?
Tinha uns 17 anos e fui ser office boy
de uma agência de publicidade. Vi
que poderia me tornar um publici-
tário, ganhar muito dinheiro, fiquei
apavorado (Risos). Como o teatro já
fazia parte da minha vida, pensei:
"Se eu não fizer isso agora, vou estar
com 40 anos e vou largar tudo para
ser ator". Fui para o Rio com essa de-
cisão. O ator é um buscador. A gente
busca um conhecimento que não é
só intelectual; é intuitivo, ances-
tral... Mas que resulta em ação. Ou
age ou não age, ou funciona ou não
funciona. O que é bacana porque a
vida é assim. Atuar é como fazer se-
xo. Você não pensa; você faz. E aí po-
de ser bom ou ruim. Às vezes as coi-
sas não viram exatamente o que a
gente queria. Por exemplo, o Ó Paí
ó, esses personagens que os meni-
nos do Bando de Teatro Olodum
construíram com tanta proprieda-
de, vão agora para o grande públi-
co. É óbvio que tem um monte de
gente purista, mas isso está por fo-
ra. E tem coerência o fato de o Lázaro
(Ramos) puxar o Bando. É legal pra
caramba, porque não é dentro do
que seria perfeito, é dentro do que
seria possível.
Você mora em São Paulo. Esse caminho
de deixar Salvador ainda é inevitável?
É engraçado, me sinto bem em São
Paulo porque sou mais um... E São
Paulo é uma cidade de teatro, tem
um público que comparece para ver
as peças. Amo Salvador, mas não
me vejo mais morando aqui. O mer-
cado é difícil apesar de a gente ter
grandes atores. O ator baiano tem
uma coisa muito particular que é re-
flexo da cidade, do jogo de cintura
que ela exige. Você tem que atuar
em Salvador, ou ela te engole.
Você quer fazer novela?
(Pausa) Não é uma coisa que eu te-
nha paixão. Reconheço que a tele-
visão é um espaço importante do
popular, que dá visibilidade ao tra-
balho do ator. Mas até agora me ve-
jo fazendo cinema e teatro.
Tem o medo de virar celebridade...
(Espreguiça-se, rindo) Adoro andar
na rua, pegar metrô... As pessoas fa-
lam comigo, mas é de uma maneira
muito singela, é diferente de outros
amigos, que parecem pop star. É ba-
cana quando uma pessoa acompa-
nha o seu trabalho, e ele não está lá
de graça, todos os dias. Nego diz:
"Pô, quando vejo seu nome, vou ‘te’
assistir". Isso é um prêmio. «
«Atuar é como fazersexo. Você nãopensa, você faz.E aí pode ser bomou ruim»
10/8/2008 17SALVADOR DOMINGO16 SALVADOR DOMINGO 1 0 / 8 / 20 0 8
não quer dizer que você não dialo-
gue com o mercado. É inevitável.
Mas esse “Deus Mercadus”, que pa-
rece que faz uma sombra em torno
do que é você... Quero sempre estar
me perguntando, não quero estar
me respondendo. Mas responden-
do à sua pergunta sobre a crítica, é
maravilhoso quando é uma avalia-
ção consistente, independentemen-
te de se falar bem ou mal do seu tra-
balho. Acredito que tenho um perfil
que não é tão fácil de ser digerido,
porque não trabalho em uma mídia
grande. Dialogo com a televisão,
mas não assinei nenhum contrato.
Acredito na possibilidade de o cine-
ma virar uma indústria. E me sinto
privilegiado de viver de cinema nes-
te País. O legal é que, com isso, a pró-
pria televisão está se revisitando.
Tem o Sérgio (Machado) que foi fa-
zer HBO... Fiz até uma participação
pequena na série, mas foi uma cena
maravilhosa. Ó, parece que estou
me gabando, nem sou disso. A cena
é que ficou maravilhosa.
Você é muito crítico?
Sou, supercrítico.
Mas agüenta se ver na tela ou não?
Depende. Quando você acredita
mais no filme, é mais fácil porque vo-
cê está vendo como um todo e pode
até se anular. Mas quando não acre-
dito tanto, fico saltando as cenas.
"Rapaz, o que você fez...".
Isso tem acontecido menos, imagino.
É, mas meu estado crítico é constan-
te. Na hora de fazer, não, na hora de
fazer eu me jogo. Defendo meu per-
sonagem, me apaixono por ele.
Você quer se meter mais em cinema?
Quero. Interessam-me os aspectos
por trás da cena. Mas atuar é meu
ganha-pão, é minha possibilidade
de não ter enlouquecido, é quase es-
piritual, mas é muito concreto, qua-
se como o candomblé... Estou com
uma idéia de roteiro e vou dirigir
agora este ano um programa cha-
mado Retratos Brasileiros, no Canal
Brasil, sobre o José Dummont, que é
um artista que eu amo. Ele abriu ca-
minho para essa maneira mais au-
toral de atuar. O Zé está entre os ato-
res que eu mais admiro: Chaplin,
Mastroianni, Marlon Brando...
Qual personagem você sonha em fazer
no cinema?
Adoraria fazer o Bispo. Infelizmente
teria que me dirigir ou então trans-
cender essa catalogação. Sou bran-
co, ele era preto. Mas como o pró-
prio Bispo falava: “Às vezes quando
eu deixo de trabalhar, eu sou trans-
parente. Mas normalmente eu sou
cheio de cores”. O Bispo deu um nó
na psiquiatria, na arte. Saiu do cida-
dão catalogado como esquizofrêni-
co e virou o cidadão catalogado co-
mo um grande artista. Ele falava:
"Tão dizendo que isso que eu faço é
arte. Quem fala não sabe de nada.
Isso é minha salvação na terra, tá
mais do que visto". Quando entro
em contato com esse tipo de urgên-
cia, quero entrar em contato com o
que é urgente pra mim. A arte tem
urgência. Não sei o que vai vir de-
pois, sei que, enquanto estou vivo,
tudo isso daqui é muito palpável.
Como você começou a fazer teatro?
Tinha nove anos, morava no prédio
da Nilda Spencer. Um amigo de mi-
nha mãe me chamou para fazer uma
peça e depois um amigo da Nilda,
Nonato Freire, me chamou para
apresentar um programa de televi-
são chamado Bombom Show. Fui
entrevistar o Glauber (Rocha) e fa-
lei: “Vou te perguntar uma pergun-
ta” e ele: "E eu vou te responder uma
r e s p os t a " .
E quando decidiu que ia ser ator?
Tinha uns 17 anos e fui ser office boy
de uma agência de publicidade. Vi
que poderia me tornar um publici-
tário, ganhar muito dinheiro, fiquei
apavorado (Risos). Como o teatro já
fazia parte da minha vida, pensei:
"Se eu não fizer isso agora, vou estar
com 40 anos e vou largar tudo para
ser ator". Fui para o Rio com essa de-
cisão. O ator é um buscador. A gente
busca um conhecimento que não é
só intelectual; é intuitivo, ances-
tral... Mas que resulta em ação. Ou
age ou não age, ou funciona ou não
funciona. O que é bacana porque a
vida é assim. Atuar é como fazer se-
xo. Você não pensa; você faz. E aí po-
de ser bom ou ruim. Às vezes as coi-
sas não viram exatamente o que a
gente queria. Por exemplo, o Ó Paí
ó, esses personagens que os meni-
nos do Bando de Teatro Olodum
construíram com tanta proprieda-
de, vão agora para o grande públi-
co. É óbvio que tem um monte de
gente purista, mas isso está por fo-
ra. E tem coerência o fato de o Lázaro
(Ramos) puxar o Bando. É legal pra
caramba, porque não é dentro do
que seria perfeito, é dentro do que
seria possível.
Você mora em São Paulo. Esse caminho
de deixar Salvador ainda é inevitável?
É engraçado, me sinto bem em São
Paulo porque sou mais um... E São
Paulo é uma cidade de teatro, tem
um público que comparece para ver
as peças. Amo Salvador, mas não
me vejo mais morando aqui. O mer-
cado é difícil apesar de a gente ter
grandes atores. O ator baiano tem
uma coisa muito particular que é re-
flexo da cidade, do jogo de cintura
que ela exige. Você tem que atuar
em Salvador, ou ela te engole.
Você quer fazer novela?
(Pausa) Não é uma coisa que eu te-
nha paixão. Reconheço que a tele-
visão é um espaço importante do
popular, que dá visibilidade ao tra-
balho do ator. Mas até agora me ve-
jo fazendo cinema e teatro.
Tem o medo de virar celebridade...
(Espreguiça-se, rindo) Adoro andar
na rua, pegar metrô... As pessoas fa-
lam comigo, mas é de uma maneira
muito singela, é diferente de outros
amigos, que parecem pop star. É ba-
cana quando uma pessoa acompa-
nha o seu trabalho, e ele não está lá
de graça, todos os dias. Nego diz:
"Pô, quando vejo seu nome, vou ‘te’
assistir". Isso é um prêmio. «
«Atuar é como fazersexo. Você nãopensa, você faz.E aí pode ser bomou ruim»