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1 CASAS DE FARINHA: SABERES E FAZERES ABREU, Jane Glebia de [email protected] Orientadora: Suely Quinzany Resumo: A mandiocultura no Estado do Pará destaca-se como importante prática agrícola de subsistência. Contribui fortemente para a segurança alimentar e nutricional das famílias de menor poder aquisitivo e residentes em zonas rurais. Essas famílias têm na raiz da mandioca a principal fonte de sustento, além da geração de renda e empregos, que garantem acesso a outras necessidades básicas através da comercialização do principal subproduto, a farinha d’água, que é comercializada em Municípios e cidades adjascentes. Diante do exposto o estudo tem por objetivo pesquisar sobre os saberes e fazeres ancestrais do preparo da farinha d’água, identificar os métodos artesanais de produção, os utensílios rudimentares utilizados nos processos e os determinantes que têm levado as famílias farinheiras a menosprezarem a prática de cultivo da mandioca para preparo artesanal da farinha.Trata-se de um estudo de caráter observacional e descritivo onde foram realizadas visitas in loco em casas de farinha da Comunidade ribeirinha de Mangabeira, Município de Mocajuba-PA. Palavras-chave: Mandioca, Casas de Farinhas, Manihot-esculenta, Farinha d’água, Pará, tradição Abstract: Mandiocultura in the state of Pará stands out as an important livelihood agricultural practice. It contributes strongly to the food and nutritional security of families of lower purchasing power and residents in rural areas. These families have at the root of cassava the main source of calories, besides the generation of income and jobs, which guarantee access to other basic necessities through the marketing of the main by-product, the water flour, which is marketed in municipalities and Adjascentes cities. In view of the above the study aims to research on the use of cassava in the preparation of the flour of water, to identify the artisan methods of production, the rudimentary utensils used in the processes, the importance socieconômica for the families Farinheiras and The determinants that have led the Farinheiros to Bandonarem or despise the know-how and make ancestors on the artisan technique of preparing the manioc flour. It is a study of observational and descriptive character where visits were carried out in the flour houses of the riverside community of Mad, municipality of Mocajuba-PA, in the following dates: April 2016 and July 2017, March 2018. Keywords: Cassava, flour houses, Manihot-esculenta, water flour, Pará. 1. Introdução A mandioca (Manihot esculenta Crantz) é uma das culturas alimentares mais difundidas no Brasil, sendo cultivada em todas as regiões do país e consolidando-se como alimento

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CASAS DE FARINHA: SABERES E FAZERES

ABREU, Jane Glebia de

[email protected]

Orientadora: Suely Quinzany

Resumo: A mandiocultura no Estado do Pará destaca-se como importante prática agrícola de subsistência. Contribui fortemente para a segurança alimentar e nutricional das famílias de menor poder aquisitivo e residentes em zonas rurais. Essas famílias têm na raiz da mandioca a principal fonte de sustento, além da geração de renda e empregos, que garantem acesso a outras necessidades básicas através da comercialização do principal subproduto, a farinha d’água, que é comercializada em Municípios e cidades adjascentes. Diante do exposto o estudo tem por objetivo pesquisar sobre os saberes e fazeres ancestrais do preparo da farinha d’água, identificar os métodos artesanais de produção, os utensílios rudimentares utilizados nos processos e os determinantes que têm levado as famílias farinheiras a menosprezarem a prática de cultivo da mandioca para preparo artesanal da farinha.Trata-se de um estudo de caráter observacional e descritivo onde foram realizadas visitas in loco em casas de farinha da Comunidade ribeirinha de Mangabeira, Município de Mocajuba-PA.

Palavras-chave: Mandioca, Casas de Farinhas, Manihot-esculenta, Farinha d’água, Pará, tradição

Abstract: Mandiocultura in the state of Pará stands out as an important livelihood

agricultural practice. It contributes strongly to the food and nutritional security of families

of lower purchasing power and residents in rural areas. These families have at the root of

cassava the main source of calories, besides the generation of income and jobs, which

guarantee access to other basic necessities through the marketing of the main by-product,

the water flour, which is marketed in municipalities and Adjascentes cities. In view of the

above the study aims to research on the use of cassava in the preparation of the flour of

water, to identify the artisan methods of production, the rudimentary utensils used in the

processes, the importance socieconômica for the families Farinheiras and The

determinants that have led the Farinheiros to Bandonarem or despise the know-how and

make ancestors on the artisan technique of preparing the manioc flour. It is a study of

observational and descriptive character where visits were carried out in the flour houses

of the riverside community of Mad, municipality of Mocajuba-PA, in the following dates:

April 2016 and July 2017, March 2018.

Keywords: Cassava, flour houses, Manihot-esculenta, water flour, Pará.

1. Introdução

A mandioca (Manihot esculenta Crantz) é uma das culturas alimentares mais difundidas no Brasil, sendo cultivada em todas as regiões do país e consolidando-se como alimento

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histórico da alimentação brasileira desde o início da colonização (VILHALVA, 2011). A importância econômica da cultura da mandioca deriva do interesse comercial em suas raízes ricas em amido, utilizadas na alimentação humana e animal, de seu uso na fabricação de produtos alimentícios (féculas e farinhas de vários tipos) e de outros segmentos industriais (têxtil, mineração, químico entre outros). Além de servir de matéria prima para inúmeros produtos, contribui para geração de emprego e de renda. Devido ao seu alto valor energético, desempenha relevante papel na Segurança Alimentar e Nutricional (SAN), especialmente entre classes sociais mais populares, pois muitas famílias brasileiras ainda hoje têm a mandiocultura como base de subsistência. Estima-se que no Brasil aproximadamente 83% das raízes de mandioca são direcionadas à produção de farinha e de fécula. Preparada de diferentes formas, a farinha, seu principal subproduto, é usada em grande escala por todos os extratos da população Norte e Nordeste do Brasil e em menor proporção nas demais regiões brasileiras. Presente tanto nos pratos cotidianos quanto em outros mais elaborados, ocupa lugar de destaque no sistema culinário regional e nacional desempenhando em algumas regiões do país marcante papel na construção de identidades culturais. Adotar este tubérculo como um dos principais ingredientes que compoem a dieta do brasileiro vem de antigas tradições alimentares de habitantes que viviam em terras brasileiras muito antes da chegada dos portugueses, os índigenas. Foram eles, os responsáveis pela domesticação, formas de cultivo e produção dos primeiros subprodutos feitos a partir da mandioca (AZEVEDO et al; 2012).

Segundo Cascudo (2011) a mandioca estava presente na alimentação dos índios e também dos recém-chegados colonizadores, fazendo as vezes do pão branco, que era substituído por esse tubérculo de grande relevancia para a história da alimentação no Brasil.Portanto, é notório saber que quando os portugueses chegaram em terras brasilienses já encontraram os povos americanos consumindo a mandioca e inevitavelmente confundiram com o inhame, uma raiz já conhecida no continente europeu. O seu principal subproduto, a farinha, acompanhava quase tudo que era comível aquela época, desde proteínas de origem animal como peixes, carnes de caça até frutas, o açaí, afirma o mesmo autor.

É interessante ressaltar a relação do cultivo da mandioca com a História da Alimentação no Brasil. Os bandeirantes utilizavam a mandiocultura como forma de demarcação de território que auxiliáva-os em suas expedições de desbravamento do interior brasileiro. “A expedição deixava um grupo, alguns brancos e uma patrulha indígena, plantando mandioca, fazendo farinha, levando-a aos companheiros que se adiantavam sertão adentro. Esses locais, de produção acidental, mas deliberada, foram sendo” coordenadas geográficas mais conhecidas no emaranhado dos caminhos exploradores.” (CASCUDO,1988).Portanto, nas Entradas e Bandeiras rumo à conquista do sertão Brasileiro, lá estava a mandioca, que juntamente com a carne de boi viabilizou a dieta dos exploradores com a energetica e proteica dupla “carne seca e farinha”, tanto que ficou conhecida como “farinha de guerra”.Na colonização do país era alimento primordial utilizado nas grandes navegações, as caravelas,, que tinham na farinha de mandioaca a principal fonte alimentar (DENARDIN, 2015). Sua importância também é referida pela frequência com que é descrita por cronistas, viajantes e missionários a partir do século XVI em diante. Gabriel Soares de Souza, Manuel da Nóbrega, José de Anchieta, Hans Saden, Jean de Lerry, Debret, Rugendas, entre outros, fizeram menções frequentes da raiz da mandioca com em seus escritos e em suas produções imagéticas.

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Debret e Rugendas além de mencionarem a mandioca com frequência em seus textos representam-na também em suas gravuras. Um dos desenhos de Rugendas é a reprodução do trabalho escravo dentro de uma casa de farinha. Referindo-se a uma das várias espécies da mandioca, o aipim, Gabriel Soares de Souza, em Tratado Descritivo do Brasil (1587), diz que:

“Dá na nossa terra outra casta de mandioca, que o gentio chama aipins, cujas

raízes são da feição da mesma mandioca, e para se recolherem estas raízes as

conhecem os índios pela cor dos ramos, no que atinam poucos portugueses. E

estas raízes dos aipins são alvíssimas; [...] Destes aipins se aproveitam nas

povoações novas, porque como são de cinco meses, se começam a comer

assadas, e como passam de seis meses fazem-se duros, e não se assam bem, mas

servem então para beijus e para farinha fresca, que é mais doce que a da

mandioca, as quais raízes duram pouco debaixo da terra, e como passam de oito

meses, apodrecem muito. Os índios se valem dos aipins para nas suas festas

fazerem deles cozidos seus vinhos, para o que os plantam mais que para os

comerem assados, como fazem os portugueses”. (CASCUDO, 1988).

Acrescenta ainda que “desta farinha de guerra usam os portugueses que não têm roça, e os que estão fora d’elas na cidade com que sustentam seus criados e escravos, e nos engenhos se provêm d’ela para sustentarem a gente em tempo de necessidade” (CASCUDO, 1988).

De acordo a Organização para a Agricultura e Alimentos (FAO), na sigla em inglês, das Nações Unidas, a produtividade anual dessa cultura caiu gradualmente na América do Sul entre os anos de 60 e 90, mas cresceu entre os anos de 70 e 90 na Nigéria, hoje o principal produtor da África e do mundo. O Brasil contribui com uma produtividade anual de aproximadamente 10,4%, com destaque para a região Nordeste . A maior parte da produção da raíz é direcionada para a manufatura de farinha. Sua produção ocorre de forma artesanal no Norte e Nordeste do Brasil em pequenas propriedades denominadas casas de farinha (SANTANA et al; 2017).

A mandiocultura no Estado do Pará destaca-se como importante prática agrícola de subsistência, contribuindo fortemente para a segurança alimentar e nutricional das famílias de menor poder aquisitivo e residentes em zonas rurais, que têm na raiz a principal fonte de carboidrato, além, da geração de renda e empregos, que garantem acesso a outras necessidades básicas através da comercialização da farinha de mandioca em municípios e cidades adjascentes. O consumo per capita de farinha de mandioca na região metropolitana de Belém é de 34 kg, sendo o mais alto do Brasil e 2,35 vezes maior que o consumo da região metropolitana de Salvador, que é o segundo maior consumidor deste produto no país (CHISTÉ et al; 2007).

De acordo com o Censo Agropecuário de 2006,o Estado do Pará conta com 67.456 estabelecimentos agropecuários que produzem mandioca e vem se destacando no cenário Brasileiro como importante produtor de mandioca no Brasil(IBGE, 2013), com uma área cultivada de 298.190 hectares e produção de 4.681,102 toneladas da raíz em 2013 (DENARDIN, 2015).

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No âmbito da nutrição o tubérculo é riquíssimo em nutrientes e tão importante para a história da alimentação do Brasil, pois é extremamente versátil, dando origem a uma gama enorme de subprodutos, dentre eles, a farinha, nosso objeto de estudo (SILVA; 2008).

Diante do exposto, o trabalho tem por objetivo estudar as Casas de Farinha da Comunidade de Mangabeira, Município de Mocajuba, Estado do Pará. Trata-se de um estudo de caráter observacional e descritivo, onde foram realizadas visitas in loco nas seguintes datas: Abril de 2016 e Julho de 2017, Março de 2018, com objetivo de entender a atulização da mandioca no preparo da farinha d’água, as técnicas de preparo, além de identificar os métodos artesanais de produção, os utensílios rudimentares utilizados nos processos e a atual importância socieconômica para as famílias farinheiras da Comunidade. Durante a visita às 17 Casas de farinha, os farinheiros responderam perguntas previamente definidas e também foram coletados materiais fotográficos que justifiquem os achados. Os responsávaies pela manufatura da mandioca, os farinheiros, apresentaram os processos rudimentares de preparo da farinha d’água, as dificuldades para a produção artesanal e os fatores determinantes para a descontinuidade dos ricos saberes e fazeres de gerações, que até os anos 90 tinham a farinha d’água como forma de comércio para obtenção de renda familiar. Também é preciso entender a origem do objeto em questão e fazer e a relação com a História da Alimentação no Brasil.

2. A mandioca: origem, cultivo, história

Em seu livro sobre a História da Alimentação no Brasil, Cascudo, 2011 copilando relatos de crônistas do século XVI refere que a mandioca “era alimento regular, obrigatório, indispensável aos nativos e europeus recém-vindos. Pão da terra em sua legitimidade funcional. Saboroso, fácil digestão, substancial”.

A mandioca (Manihot Esculenta Crantz) é uma das 98 espécies existentes da família das Euphorbiaceae, de origem sul-americana e descata-se como importante alimento da cultura alimentar brasileira (CREPALDI,1992). De Norte a Sul do Brasil recebe distintos nomes como: mandioca-brava - a que contém o venenoso ácido cianídrico - aipim, castelinha, macaxeira, mandioca-doce, mandioca-mansa, maniva, maniveira, pão-de-pobre, e variedades como aiapuã e caiabana, ou nomes que designam apenas a raiz, como caarina. As variações não se restringem apenas a quantidade de ácido cianídrico. Variam também as cores de partes das folhas, caules e raiz, bem como sua forma (UDA et al; 2017).

Seu cultivo é difundido em todas as regiões do país. Um tubérculo de relevante valor nutricional, rico em fibras, carboidratos e ainda traz em sua composição minerais como potássio, cálcio, fósforo, sódio e ferro, que são nutrientes importantes para o adequado funcionamento do organismo humano. Seu consumo é registrado mundialmente, principalmente em países em desenvolvimento (SANTANA et al; 2017).

Segundo a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), a raiz da Manihot esculenta Crantz e seus subprodutos são consumidos por mais de 800 milhões de pessoas no mundo. Em algumas regiões, como no Nordeste brasileiro, em Gana e na Nigéria (na África) e em algumas ilhas da Indonésia (na Ásia), mais de 70% das calorias consumidas diariamente pela população vêm da mandioca, uma raiz com alto valor energético (cada 100 gramas possui 150 calorias). Suas folhas contêm um teor altíssimo de proteínas, minerais e vitaminas essenciais ao corpo humano e por isso também são

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consumidas por diversos fins. Na África, por exemplo, as folhas de mandioca representam uma parte significativa da dieta alimentar da população, por combater a desnutrição, pois as folhas são ricas em ferro. No Norte e Nordeste do Brasil essa mesma folha é ingrediente indispensável para o preparo de um tradicional prato típico da culinária, a maniçoba.

Apesar de ser endêmica do América do Sul, o maior produtor de mandioca na atualidade é no continente africano, seguido da Ásia. Isto se dá devido a diversos motivos, como fortes variações periódicas na produção, que prejudicam a competitividade nacional e internacional, reflexo de um grande plantio na época de alta dos preços e drástica queda quando o valor de mercado diminui. No Brasil, o maior volume de produção da mandioca está na região nordeste do país. As regiões sul e sudeste apresentam produtividade bastante significativa também, com volume maior que alguns países da Ásia (VILPOUX; 2008).

Desde muito tempo, está no imaginário do brasileiro, principalmente daqueles que vivem nas regiões norte e nordeste do país, mitos que tentam contar a origem da mandioca. Dentre várias outras versões, podemos destacar a história de Maní, a índia que deu origem a esta lenda. A história conta que a filha de um cacique indígena engravidou sem copular com nenhum homem, dando origem a uma criança de pele branca e cabelos negros, cuja qual lhe foi dado o nome de Maní. Morta sem motivos específicos após um ano de seu nascimento, sobre seu leito na terra nasce uma planta que mostra suas raízes envolvidas o corpo da falecida garota, as mandiocas. Mandioca, de Mani-oca, a casa de Maní (CASCUDO, 2011).

3. Farinhas do Brasil

O termo farinha foi atribuído no século XVI pelos primeiros exploradores europeus a um produto encontrado no litoral brasileiro entre os índios Tupinambás (VELTHEM; KATZ 2012).

A farinha de mandioca desempenha relevante papel na alimentação do brasileiro, sendo considerado o principal produto obtido da raiz da mandioca. É produzida artesanalmente em casas de farinha e são comercializadas em feiras livres, mercados públicos e supermercados. Em estudo de Santana, 2017 com relação a prática de aquisição e consumo dos entrevistados 68,2% afirmaram consumir farinha diariamente, 22,7% consumiam entre 2 e 3 vezes na semana e apenas 9,1% disseram consumir raramente,enfatizando o elevado consumo deste produto na capital baiana, condizente com o padrão de consumo presente nas regiões Norte e Nordeste do Brasil (SOUZA et al., 2013).

Segundo Pereira, (1974), as raízes da mandioca são usadas para o preparo de quatro tipos de farinha. A farinha d’água, a farinha seca, a carimã, muito fina e a farinha de tapioca.

Ao longo do período colonial, outras denominações da farinha eram comuns como:

Farinha de barco: assim chamada, porque chegava por mar e era depreciada no mercado porque ficava com cheiro da maresia;

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Farinha de Foguete: a que era exposta à venda em situações de calamidade pública e cuja chegada era anunciada por um foguete;

Farinha de Guerra: considerada de má qualidade, era servida no rancho dos quartéis e reservada às tropas em mobilização;

Farinha de Pau: denominação dada pelos portugueses por analogia com a raiz da mandioca(PINTO, 2002).

A farinha torrada apresenta três diferentes tipos de preparo e consequentemente subprodutos, sendo, a farinha d’água (fermentada), farinha seca (ralada) e farinha mista. Esta última é o resultado da mistura das duas primeiras, ou seja, da massa ralada com a fermentada. A referência do termo farinha foi atribuído a um produto encontrado no litoral brasileiro entre os índios Tupinamás, no século XVI (VELTHEM; KATZ 2012).

Os diferentes tipos de farinhas são produzidos em pequenos estabelecimentos familiares denominandos de casas de farinha, equipadas com diversos artefatos, em sua maioria rudimentares, e que são utilizados para os procedimentos de preparo artesanal da farinha de mandioca. As características das casas de farinha são similares às moradias tradicionais da Amazônia: construção em madeira, chão de barro (em alguns casos em alvenaria), cobertura de palha (obtida de palmeiras da região), ausência de água canalizada e ausência de local apropriado para destinação de resíduos. Mas, a fábrica e tudo o que há nela, os meios de produção é de propriedade da família camponesa (OLIVEIRA, 2007, p.41). Dos diferentes tipos de farinha produzidos no Brasil, resultam preparações distintas, métodos rudimentares e industriais e a utilização de raízes de mandioca diversas. Tecnicamente a farinha é uma mistura de grânulos formados pela aglutinação de partículas da massa de mandioca fermentada, seca ou mista. (PINTO, 2010).

As farinhas produzidas no Nordeste do Brasil, em especial no estado da Bahia, são secas, finas e brancas e a aparência muito se assemelha a farinha de trigo. As mesmas características organolépticas são encontradas nas farinhas do Vale do rio Juruá, no estado do Acre, região que tem a mandioca como principal produto agrícola (VELTHEM; KATZ 2012).

Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2010, os Municípios do Vale do rio Juruá (Cruzeiro do Sul, Mâncio Lima, Marechal Thaumaturgo, Porto Walter e Rodrigues Alves) foram responsáveis pela produção de 307.202 toneladas deste tubérculo. A farinha pura, misturada com coco, e também o amido da mandioca, a tapioca, são produtos de grande importância alimentar para a população dos Municípios de Marechal Thaumaturgo e Cruzeiro do Sul. Esses pequenos agricultores dividem a produção para consumo familiar e comercialização no mercado regional, principalmente na cidade de Cruzeiro do Sul. Foi nesta cidade, que o principal subproduto da mandioca ficou conhecido como farinha de pedra, justamente porque era exposta em lajeiros de pedras (VELTHEM; KATZ 2012).

De qualidade consolidada no mercado da Amazônia essa farinha tem nos estados do Amazonas, Rondônia, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul seus principais compradores e dessa forma tem distribuição garantida para todas as cidades (VELTHEM; KATZ 2012).

Em 2004, a farinha de Cruzeiro do Sul chegou a outros estados através da rede de hipermercados Pão de Açúcar, dentro de um programa intitulado como Caras do Brasil,

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que tem por objetivo comercializar produtos de comunidades agrárias e extrativistas (CRESCEU et al.,2004).

No Mercado Municipal do Ver-o-Peso, em Belém os consumidores podem escolher entre farinha fina ou grossa, branca e amarela, comum ou com coco, além da farinha de tapioca e fécula. Já as produzidas na região da Amazônia apresentam coloração diferenciada em tons de amarelada, branca ou amarronzada e a granulometria geralmente á maior. Outro fator de grande relevância é o tipo de mandioca usada para o preparo das farinhas, geralmente a brava, fermentada na água por vários dias (mandioca puba) que passa pela mistura com a mandioca seca, que é apenas ralada ((VELTHEM; KATZ 2012).

Em Bragança, Município localizado na região nordeste do Pará, a 210 quilômetros de Belém, capital do Estado,cerca de 9 mil produtores locais são reponsáveis, em média por, 800 a 850 toneladas de farinha dágua considerada a melhor do Norte do Brasil, sendo assim reconhecida e utilizada por renomados Chefs de cozinha em seus restaurantes, como Helena Rizzo, do Mani, Tête à Tête de Gabriel Matteuzzi e Guilherme Vinha, Paulo Yoller, do Maets, e Teresa Corção, chef d’O Navegador, no Rio de Janeiro(SLOW FOOD, Arca do Gosto, 2017).

Há um método específico para o preparo da farinha de Bragança. O primeiro passo é deixar a mandioca de molho durante 4 a 5 dias. No último dia a mandioca é retirada da água, descascada e, após isso, colocada de molho por mais 24 horas em água limpa (SLOW FOOD, Arca do Gosto, 2017).

Após essas 24 horas, a mandioca é retirada da água e triturada, para então ser colocada no tipiti (um utensílio indígena feito de palha, que funciona como uma prensa) e ajuda a extrair o líquido da mandioca. O resultado é uma massa seca, que posteriormente é coada e levada ao forno já aquecido para a última etapa desse processo rudimentar que é a torrefação (SLOW FOOD, Arca do Gosto, 2017).

A tradicional farinha de Bragança, como é conhecida, é produzida artesanalmente por pequenos produtores da agricultura familiar, e leva o nome do município de Bragança (Pará). A farinha vem embalada em um paneiro, cesta feita com folhas de guarimã (também chamada arumã), que é uma planta herbácea da família das Marantáceas, típica da região. Confeccionada com técnica indígena repassada de geração em geração, esta tecnologia ancestral vem sendo substituída há vinte anos por embalagens de plástico que desconsideram o caráter tradicional e sustentável do produto, que mantém através das fibras naturais e recicláveis a farinha intacta e perfeita para consumo pelo período de um ano.Essa embalagem natural gera valor agregado ao produto não apenas por torná-lo mais durável e sustentável, mas por ser um objeto decorativo, belo e de fácil comercialização, além de denotar o valor cultural a ser considerado no produto(SLOW FOOD, Arca do Gosto, 2017).

A farinha de Bragança também é um complemento para a alimentação, sendo consumida diariamente pelo povo paraense. Bragança é conhecida por produzir uma das melhores farinhas do estado do Pará. A cidade de Bragança produz entre 800 a 850 toneladas por mês de farinha de mandioca, e possui cerca de 9 mil produtores locais. Desta produção, destacam-se 30 produtores em média que comercializam a farinha empaneirada. (SLOW FOOD, Arca do Gosto, 2017).

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A farinha de Bragança é consumida em especial no estado do Pará, região amazônica, em todas as refeições: com frutas ou café, no café da manhã, com peixes no almoço e jantar. Também é apreciada com os tradicionais tacacá e o famoso açaí do Pará, reconhecido como o melhor açaí da Amazônia. (SLOW FOOD, Arca do Gosto, 2017).

É produzida principalmente por produtores familiares das áreas dos campos, abrangendo a zona rural do município de Bragança, a região mais conhecida. Também é produzida nos municípios de Augusto Correa, Tracuatua e Capanema. A técnica ancestral de se empaneirar a farinha foi difundida por Seu Bené e Dona Maria, de Bragança, em 21 comunidades no entorno do município.

Em 2018, um grupo de trabalho, envolvendo podutores locais, as prefeituras dos cinco municípios da região de Bragança e instuições de fomento entraram com o pedido de Indicação de Procedência(IP), um atestado de garantia de origem do produto, protegendo consumidores e agricultores de fraudes (SLOW FOOD, Arca do Gosto, 2017).

Na comunidade ribeirinha de Mangabeira-PA a produtividade adivinda da raiz da manihot

esculenta é quase que exclusivamente para a produção de um tipo de farinha, a d’água, que é preparada da mistura de massa fermentada e não fermentada (PENICHE, 2014).

4. Etapas do preparo da farinha d’água

A colheita das raízes ocorre alguns meses ou um ano após a plantação, esse tempo vai depender da variedade que foi plantada. Depois da colheita, os tubérculos são ensacados e colocados em igarapés e/ou tanques de água, onde permanecem por um prazo de 24 a 36 horas, começando o processo de fermentação. Paralelamente a essa etapa outra porção de mandioca é colhida, lavada e descascada, processo esse geralmente realizado por mulheres e com a ajuda das crianças, que sentadas no chão, com o auxílio de facas afiadas ou raspador retiram a película marrom da mandioca (AZEVEDO, 2012).

Depois de limpas e descascadas, as raízes são colocadas no ralador, atividade, de modo geral, realizada pelas mulheres, cabendo aos homens proceder ao trabalho de ralação. A massa ralada vai caindo diretamente sobre o “cocho” de madeira, colocado embaixo do ralador (VELTHEM; KATZ 2012).

Na sequencia, a massa é prensada no tipiti, uma espécie de cesto com trançado duplo em formato cilíndrico, confeccionado com fibras de jacitara ou tauquara, utilizado para o escoamento do líquido venenoso da mandioca, o ácido cianídrico. Esse líquido resultante da prensagem chama-se manipuera. É altamente tóxico e será cozido para a volatilização do veneno (VELTHEM; KATZ 2012).

A mandioca que ficou de molho no igarapé é descascada, amassada e posteriormente prensada também no tipiti. Agora, as duas massas já secas são misturadas em uma proporção de três partes de fermentada para uma parte de in natura. O trabalho prossegue com o peneiramento. Quando retiradas das prensas, por terem sido submetidas a fortíssima compressão, as massas estão muito compactadas com necessidade de serem esfareladas e, em seguida, peneiradas (VELTHEM; KATZ 2012).

O peneiramento retém os fragmentos mais grosseiros da massa, chamados crueira, permitindo a obtenção de uma farinha mais uniforme. A última etapa consiste na torração,

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realizada em fornos com chapa de ferro, usando lenha como combustível. As massas peneiradas são então colocadas no forno para eliminarem o alto teor de umidade que ainda permanece na farinha crua. O forneiro, ou farinheiro, com o auxílio de um rodo de madeira, vai mexendo a massa até a secagem final. O processo de torração define a qualidade e o sabor da farinha que, de acordo com os hábitos de cada região, pode ser mais fina ou mais grossa, mais ou menos seca, com mais ou com menos amido. A gradação desses tipos depende da habilidade do farinheiro no controle do tempo de torração e da temperatura do forno (CARDOSO, 2001).

Embora a cultivo da mandioca e a produção da farinha ocorra de forma perene em Mangabeira, o preparo da farinha não acontece diariamente, visto que o trabalho na mandiocultura depende de etapas e planejamento para melhor produtividade (AZEVEDO, 2012).

O dia da farinhada em Mangabeira é definido pelo produtor que apesar das famílias produzirem em unidades próprias, existe uma organização que estabelece um modelo social, em que algumas casas de farinha são utilizadas de forma comunitária, duas a três famílias com rotatividade programada, tais achados também foram identifiados por Peniche, 2014, em pesquisa sobre o processo de trabalho na produção de farinha de mandioca no Município de Rio Branco- AC.

5. Os utensílios

Segundo Fraife Filho (2018) é nas casas de farinha onde a produção é feita de modo artesanal, com mão de obra familiar ou participação de membros da comunidade que se encontram os utensílios rudimentares utilizados na produção da farinha d’água. Esses artefatos são produzidos artesanalmente pelos próprios farinheiros, sendo indispensáveis para o êxito de todas as etapas no exaustivo dia da farinhada. A habilidade na elaboração e confecção desses utensílios são saberes e fazeres que foram adquiridos com os antepassados e que a comunidade busca perpetuar esses ricos conhecimentos. Os equipamentos mais comumente encontados nas casas de farinha são:

Caititu: instrumento provido de um rebolo, ou cilindro com pequenas serrilhas, utilizado na ralagem da mandioca.

Cocho: pedaço de madeira escavada e lisa, com formato de calha, utilizada para colocar as raízes descascadas, esmagar a massa antes de passá-la à prensa, depositar a massa ralada e, depois, a farinha torrada.

Tipiti: Tipo de prensa feita com fibras de jacitara, ou taquara, é um cesto com transado duplo, de forma cilíndrica, utilizado para o escoamento do líquido venenoso da mandioca. É utilizado por meio de alavancas que o expandem, pressionando a mandioca e liberando o suco. Embora seu tamanho varie bastante, as mais comuns têm um metro de comprimento e, ao serem distendidas, alcançam quase o dobro do comprimento normal. Muito usado na região amazônica, sua representação nas pinturas rupestres encontradas em Minas, atestam seu uso pelas antigas populações indígenas nessa região.

Prensas de Madeira: além do tipiti, existem outros tipos de prensas tais como: prensa de alavanca, prensa de parafuso e prensa mista. As prensas manuais de parafuso são as mais utilizadas nas casas de farinha mineiras.

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Tacho de torração: espécie de bacia ou alguidar grande, de formato circular, colocada no forno para a torração da farinha. Esses tachos podem ser confeccionadas em cobre, ferro ou barro.

Outros utensílios também usados como, cestos chamados paneiros, para depositar a mandioca ralada; peneiras; caçuás, utensílio usado para transportar as raízes da mandioca até à casa de farinha; cambito ou cangalha, armação de madeira destinada ao suporte dos caçuás no transporte da carga em lombo de animal; facas para raspar as raízes da mandioca e vassouras para varrer a casa de farinha (SOUZA et al; 2000).

6. Subprodutos da mandioca

A mandioca é um alimento extramente versátil, que pode ser consumida por si só, ou servir como base para outras preprarações e subprodutos:

Tucupi: O tucupi é um líquido obtido da mandioca através da extração a partir do tipiti.¹Este sumo, é depois de extraído é fervido por algumas horas para que seja eliminado todo ácido prússico, que é altamente tóxico e nocivo à saúde, e então pode ser utilizado em sua forma natural ou em diferentes níveis de redução, resultando nos tucupis negro e preto, respectivamente (CASCUDO, 2011).

A farinha d’água: Em uma caracterização genérica, a farinha d’água é uma farinha obtida através de uma massa prensada de mandioca fermentada por quatro dias em água, junto de uma outra, ralada ainda in natura, que depois são secas em fornos de alumínio ou cobre e peneiradas. Sua coloração varia de acordo com a qualidade da mandioca utilizada (CASCUDO,2011).

Beiju: O beiju é um biscoito feito a partir da massa da mandioca seca. É consumido geralmente no café da manhã ou na merenda do nortista e do nordestino. De tamanho valor nutricional, fazia vezes de bolo e pão. Desta mesma mandioca, fazem outra maneira de mantimentos que se chamam beijus, os quais são de feição de obreiras, mas mais grossos e alvos, e alguns deles estendidos da feição de filhós. Destes usam muito os moradores da terra, principalmente os da Bahia de Todos os Santos, porque são mais saborosos e de melhor digestão que a farinha (CASCUDO,2011).

Carimã ou Puba: Massa obtida através da prensagem da mandioca, que é colocada de molho em água, com casca durante quatro a cinco dias. Estando mole, a casca se desprende e esta massa é então colocada dentro de um tipo de saco, que é pendurado e fica escorrendo durante dois dias. Essa massa fermentada é utilizada no preparo de bolos, mingaus e bolinhos. (CASCUDO,1988).

Farinha de tapioca: Obtido da fécula (goma) da mandioca, possiu característica granular, coloração branca e textura crocante. A farinha de tapioca, assim como a farinha d’água é preparada artesanalmente. A primeira etapa do preparo consiste na modelagem dos granulos, tarefa realizada por um utensílio rústico denominado pelos farinheiros de encaroçador – artefato esse constituído de um pano de tecido esticado sobre uma armação de madeira, onde através de movimentos contínuos e circulares com a mão, a tapioca peneirada (polvilho), vai se aglutinando e formando pequenos granulos esféricos, conhecidos na região como caroço. Após o processamento, ocorre o escaldamento, realizado no mesmo tacho de torrefação da farinha d’água. E para finalizar essa técnica

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ancestral de preparo desse subproduto da mandioca, chega a tão aguardada hora, o espocamento, assim chamado pelos agricultores, onde os granulos começam a estourar, semelhantemente com técnica de preparo da pipoca de milho(CARDOSO, 2001).Portanto, a farinha de tapioca tem seu consumo enraizado no hábito alimentar da população, sendo indispensável acompanhamento para o tradicional açaí, café e na culinária serve de ingrediente principal para o preparo de sorvete e pudim (DENARDIN, 2015).

7. Casas de farinha de Mangabeira

A comunidade ribeirinha de Mangabeira pertencente ao Município de Mocajuba no Estado do Pará fica localizada a 242 kilômetros de Belém, capital do Estado, no Norte do Brasil (Figura 1). O pequeno vilarejo surgiu nos anos de 1960 através de um grupo de pessoas que recebiam o nome de IRMAN DADE. Os lideres desse grupo, Milton Pinto, Raimundo Gonçalves, Horlando Pantoja, Atair Nunes e Moiséis Hendelaque junto com seus familiares se reuniam para organizar festas de cunho religioso em homenagem à santos católicos.

Figura 1: Comunidade Ribeirinha de Mangabeira-PA

Fonte: Acervo dos autores

Em 26 de Maio de 1969 o vilarejo foi oficializado como Comunidade Cristã de Santa Maria de Mangabeira. Atualmente sua população total é composta de 597 habitantes, com 137 famílias. As principais atividades econômicas são: agricultura, pesca e o extrativismo vegetal.

Até meados dos anos 80 e 90 a agricultura familiar era a base de subsistência da maioria das famílias. Tinham no cultivo da mandioca e na prática de produção da farinha a atividade econômica que supria todas as necessidades da família, desde as mais básicas, como vestimentas, medicamentos, educação e principalmente alimentação, pois essa artesanal farinha era componente indispensável da composição alimentar dos ribeirinhos, conta seu Zenóbio, morador mais antigo da Comunidade de Santa Maria Mangabeira.

Na comunidade ribeirinha de Mangabeira-PA a produtividade adivinda da raiz da manihot

esculenta é quase que exclusivamente para a produção de um tipo de farinha denominada de farinha d’água, que é preparada da mistura de massa ralada in natura e de massa fermentada.

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Atualmente a comunidade têm 17 Casas de Farinha, Figura 2. A maioria são utilizadas para produção de farinha d’água apenas para o consumo da família, podendo eventualmente ser comercializada uma pequena parte, mais nada expressivo que possa ser caracterizada como uma produção para geração de renda.

Figura 2: Casa de farinha da D. Joana Laura - Mangabeira-PA

Foto: Acervo dos autores

As etapas para a produção da farinha são inúmeras e sempre contam com a participação de mulheres, homens e crianças, onde cada um tem a sua função definida no processo produtivo. Nas casas de farinha visitadas não foi identificado trabalho infantil, somente crianças integrantes das famílias, que por cultura estabelicida participam das tarefas “do dia da farinhada”.

O dia de fazer farinha não é aleatória, requer um planejamento e programação. As casas de farinha são compartilhadas entre os membros da familia, aparentados e conhecidos, visto, que na Comunidade todos se conhecem e possuem algum grau de parentesco ou afinidades. Então, a medida que a família percebe a necessidade de produzir a farinha de mesa, ocorre o planejamento. Inicialmente sacos de mandioca são deixados de molho em igarapés,tanques ou no próprio rio Tocantins, pois Mangabeira é um vilarejo ribeirinho.

Depois de 36 a 48 horas em que a mandioca foi deixada de molho chega o grande e cansativo dia da farinhada. Os membros da família acordam bem cedo, isso por volta das 5 ou 6h. Primeiramente é necessário ir ao roçado buscar algumas raízes para proceder com o descascamento e ralamento do tubérculo que posteriormente será misturado a mandioca fermentada.

Outra parte da família tem a tarefa de descascar a mandioca que ficou de molho dias atrás Essa raíz é macerada, retirado o talo e acrescida da massa não fermentada. Geralmente essa mistura é na proporção de 70%de massa fermentada e 30% de massa in natura.. Após a mistura, o utensilio de palha de jacitara, o tipiti, recebe a mistura das massas cru e fermentada. Esse utensílio funciona com um sistema de compressão que objetiva retirar o máximo de água intriseca do produto. Essa etapa geralmente demora em torno de 30 minutos. O próximo passo é peneirar a massa, agora seca. E a etapa final é a torrefação onde a massa peneirada é então colocada no forno para eliminar o alto teor de umidade contido. O forneiro ou farinheiro, com o auxílio de um rodo de madeira, vai mexendo a

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massa até a secagem final. O processo de torração define a qualidade e o sabor da farinha que, de acordo com os hábitos de cada região, pode ser mais fina ou mais grossa, mais ou menos seca, com mais ou com menos amido. A gradação desses tipos depende da habilidade do farinheiro no controle do tempo de torração e da temperatura do forno (FRAIFE, 2018).

Os farinheiros de Mangabeira também referem a produção exporádica de farinha de tapioca e beijú de mandioca, uma espécie de biscoito preparado com massa de mandioca e castanha do Pará ralada. Essa iguaria é assada na folha de bananeira e posteirimente ensacada e consumido no café da manhã. Figura 3.

Figura 3: Café da manhã dos Mangabeirenses

Foto: Acervo dos autores

8. Farinha d’água de Mangabeira e determinantes para a descontinudade da prática

A produção da farinha d’água na comunidade de Mangabeira-PA ocorre em um espaço especifico denominando de Casa de Farinha, geralmente localizada nos fundos ou na lateral da casa principal. Alguns farinheiros, como Dona Jona Laura, refere que a casa de farinha é compartilhada por famílias de agricultores, em sua maioria aparentados.

Os dados foram coletados nos dias 10 a 15 de julho de 2016, 15 a 20 de abril de 2017 e 23 a 28 de março de 2018 em visitas in loco e conversas com moradores da comunidade.

Um levantamento prévio sobre as Casas de farinha da Comunidade foi realizado pelo morador Rominson Rodrigues Amaral. Os farinheiros reponderam perguntas previamente definidas.

O tipo de farinha produzida pelos 14 agricultores de Mangabeira é a do tipo mista, (Figura 3), que consiste em misturar a massa fermentada (mandioca puba) com a seca (mandioca ralada). Os processos de produção da farinha envolvem: Colher o tubérculo no roçado, que geralmente fica nos fundos do terreno da casa principal, ensacar, deixar de molho em tanques ou em igarapés por 3 a 5 dias. Passado esse período chega o dia da farinhada. Logo

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pela manhã, às 06h o farinheiro vai até o roçado para colher raízes de mandioca, transporta em paneiros até a casa de farinha, lavá-los, ralá-los, espreme a massa resultante da prensa e procede com a mistura de 70% da mandioca fermentada que já deve ter sido descascada, amassada e passada no tipiti e 30% de massa seca, relata Noemia Conceição Oliveira, proprietária de uma casa de farinha a 3 anos.

Figura 3. Farinha d’água de Mangabeira- PA

Fonte: Acervo dos autores

Os pequenos agricultores da comunidade relatam que trabalham com 2 roçados, aos quais definem como roça nova e roça velha. O roçado precisa de 10 a 12 meses para que as raízes estejam em seu estágio final de maturação, possibilitando assim maior rendimento na produção da farinha.

Os agricultores entrevistados relatam que produzem a farinha d’água apenas para o consumo familiar, eventualmente quando algum morador da comunidade precisa realiza-se a venda no valor de R$ 5,00 o frasco, medida equivalente a 1,2 kg. Mas essa prática é esporádica, pois a maioria dos ribeirinhos tem seu roçado e, portanto produzem sua própria farinha de mesa. Além disso, outros fatores determinantes levam a desvalorização da pratica de produção de farinha com fim comercial.

Segundo Dinivaldo (proprietário de uma casa de farinha a 5 anos) atualmente sua família não precisa mais produzir farinha para a comercialização, visto que ele tem 5 filhos, sendo um com necessidades especiais e com isso recebe benefícios do governo, como bolsa família e aposentadoria por incapacidade/invalidez. O mesmo discurso é relatado por outros pequenos agricultores.

“Com esse dinheiro não precisamos mais fazer farinha, conseguimos viver com o que o governo nos dá (MRCP, proprietária de Casa de Farinha desde 1998)”.

A média salarial dos farinheiros de Mangabeira é de um salário mínimo por mês (R$ 937,00). Todos referem que recebem do governo federal benefícios como bolsa família, seguro defeso e aposentadorias por tempo de trabalho ou/e invalidez, e que esses recursos são suficientes para a sobrevivência da família, desobrigando-os a prática agrícola da mandiocultura com foco no preparo artesanal como era prática em meados dos anos 80 e 90, lembra Maria do Porto Carvalho, proprietária a 8 anos de uma casa de farinha.

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Minha família sempre trabalhou com farinha, tudo que precisava, nós tirava da roça, tudo mesmo, era pra comer, pra comprar uma roupa, pra comprar um remédio, pagar o armazem, doque comprava no mês e pra tudo era a farinha. Mas graças à Deus, hoje não precisamos mais, recebo o bolsa família das crianças e também o seguro desfeso, então, só faço farinha pra comer (Maria do Porto Carvalho).

Seguro Defeso, também conhecido como seguro desemprego do pescador artesanal e profissional é uma política estratégica do governo federal institucionalizada desde 2003 (Lei 10.779, 25 de novembro de 2003), que protege as espécies e garante renda aos pescadores. Todo pescador profissional que exerce suas atividades de forma individual ou em regime de economia familiar fica impedido de pescar durante a reprodução das espécies. Nesse período, em que o tempo de proibição é definido por lei, os pescadores profissionais recebem o seguro mensalmente, na quantia de um salário mínimo (MOREIRA, 2010).

Outro fator que nos últimos anos tem desmotivado a continuidade dessa agricultura familiar, são as pragas que segundo Farife filho, 2018, as mais comuns são: mandarovás, ácaros, percevejo de renda, mosca branca, mosca do broto, broca do caule, cupins e formigas que acometem as manivas com doenças como:podridão de raiz, bacteriose, superbrotamento, viroses.Todos os 14 pequenos agricultores entrevistados, relataram que no ínicio do ano de 2018 as roças foram atacadas por gafanhotos, que comeram todas as folhas das manivas. Segundo Flávio Paulo Carvalho Moraes, agricultor desde sempre, hoje com 59 anos, quando os roçados são atacados por insetos, as raízes ficam impróprias para o preparo da farinha, comprometando as características organolépticas do produto, como crocância, acidez e coloração. Essa situação tem comprometido até o preparo da farinha para consumo familiar.

Os mangabeirenses consomem em média 300 gramas de farinha/dia. O cardápio do nortista geralmente é composto de uma proteína, peixe, carne suína, bovina ou de caça, maricos e indispensavelmente a farinha d’água.

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Figura 4: Cardápio dos Mangabeirenses

Fonte: Acervo dos autores

Diante da situação de adversidade da natureza em decorrência da destruição das roças por gafanhotos, os ribeirinhos se vem obrigados a comprometer ainda mais o orçamento familiar e comprar farinha no Município de Mocajuba, a cidade, como refere o farinheiro e morador mais antigo da Comunidade, seu Zenóbio.

Das 17 casas de farinha existentes na comunidade foram visitadas 14, pois 3 farinheiros não estavam em suas residências/propriedades para participar da pesquisa e responder o questionário.

9. Conclusão

O Estado do Pará lidera a produção agrícola da raiz de mandioca, com participação de 22,05, seguido pelo Paraná com 18,21%, a Bahia com 8,72%, o Maranhão com 6,24% e o Rio Grande do Sul com 5,49%, sendo a cultura de maior importância econômica, social e cultural. Para cada três hectares cultivados é necessário a mão de obra anual de pelo menos duas pessoas, gerando uma estimativa de 200 mil empregos diretos no meio rural do Estado Paraense. Praticamente toda a produção dessas raízes é direcionada para o consumo na forma tradicional de farinha de mesa, denotando a relevante importância na composição do cardápio alimentar da população. É evidente a necessidade de políticas públicas que visem dar suporte agrícola permanente aos pequenos agricultores dessa comunidade e que possam minimizar ou erradicar esses fenômenos adversos da natureza que comprometem a permanência da prática artesanal de preparo da farinha d’água na pequena Comunidade de Mangabeira.

Também é preciso focar em estratégias governamentais que tenham por objetivo não apenas a resolução de problemas emergenciais, mas que possam garantir os direitos de cidadania previstos em Lei 11.346, de 15 de Setembro de 2006, Capítulo I. Art. 3°. A Segurança Alimentar e Nutricional (SAN), consite na realização do direiro de todos ao

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acesso regular e permanente a alimentos de qualidade e quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras de saúde que respeitem a diversidade cultural e que sejam ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis. Não basta apenas disttribuir renda é primordial garantir educação de qualidade e condições para que a família dos farinheiros possam compreender a dimensão da importância que exercem na cadeia alimentar produtiva. Também são necessárias ações governamentais e não governamentais para estimular e valorizar os saberes e fazeres culturais sobre as técnicas de preparo de farinha d’água, viabilizando condições para que esses agricultores regionais exerçam suas profissões com dignidade e com a mínima condição de equidade, perpetuando dessa forma os conhecimentos ancestrais herdados dos nativos, os indíegenas.

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