13
q 5 ABRIL/2014 ISSN 2237-9576

ABRIL/2014 ISSN 2237-9576 · curso, e codirigiu os curtas O jardim das veredas que se bifurcam e Snuff. marcelO eSteVeS | Roteirista e professor de rotei-ro. Trabalha como supervisor

  • Upload
    lykhanh

  • View
    217

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: ABRIL/2014 ISSN 2237-9576 · curso, e codirigiu os curtas O jardim das veredas que se bifurcam e Snuff. marcelO eSteVeS | Roteirista e professor de rotei-ro. Trabalha como supervisor

q5 a b r i l / 2 0 1 4 I S S N 2 2 3 7 - 9 5 7 6

Page 2: ABRIL/2014 ISSN 2237-9576 · curso, e codirigiu os curtas O jardim das veredas que se bifurcam e Snuff. marcelO eSteVeS | Roteirista e professor de rotei-ro. Trabalha como supervisor

Na entrevista desta quinta edição da Lado C, Marcello

Maia, um dos raros produtores do cinema brasileiro que ainda pensa numa cinematografia

além do mercado, já dá o tom do conteúdo: “Nunca tivemos tantos recursos para produzir e tão pouco espaço

— vontade, caminho, forma, possibilidade — para exibir.”A história do cinema brasileiro sempre foi marcada pela disputa de

espaço nas salas de exibição com as distribuidoras norte-americanas, e inclua-se aí o conteúdo das tevês, principalmente as abertas. O que ve-mos agora, quando o Estado recomeça a criar e ampliar mecanismos de incentivo à produção, é a repetição da história. Produzimos, porém não há como mostrarmos.

A edição traz ainda, além de outras reflexões, críticas e análises im-portantes, o texto de André Dib sobre a crescente produção do cinema pernambucano, o artigo de Orlando Senna sobre o audiovisual na inter-net, o depoimento de Marcelo Esteves sobre os problemas do roteirista no Brasil e a reflexão sobre os conceitos da difusão do audiovisual, de Fausto Correa Jr.

Para ilustrar este número, convidamos a animadora e desenhista Yannet Briggiler. O desenho da quarta capa é do pintor

lageano Clênio de Souza (1958-2006), feito a partir da leitura do roteiro ainda inédito Fratelli Broca-

to, escrito por Fábio Brüggemann e Maria Emília de Azevedo. Boa leitura e

até a próxima.

OrlandO Senna

E stou vivendo uma experiência especial-mente estimulante: assessorando a ci-neasta Alice de Andrade na criação do

webdoc 80 Destinos, história não linear e inte-rativa de 40 casais cubanos filmados 20 anos atrás, quando começavam suas vidas a dois. A intenção de Alice é estimular essas pessoas, seus filhos, parentes, amigos a participarem na cons-trução de um relato fragmentado, múltiplo, com distintos pontos de vista, sobre o que aconteceu e está acontecendo com aqueles jovens amantes. Um relato coletivo e colaborativo que admite a participação de pessoas não relacionadas com os personagens, de qualquer pessoa que queira par-ticipar, opinar. Experiência estimulante porque expõe um velho contador de histórias como eu, que estudou screenwriting e técnicas de roteiro na senda aberta por Aristóteles, ao universo des-regrado do ciberespaço.

O webdoc, que só pode ser realizado na in-ternet, é um sistema modular que vai se forman-do a partir de uma Interface Inicial que determi-na o tema (no caso de 80 Destinos, o material gravado por Alice há duas décadas), à qual se vão agregando informações, sugestões, opiniões, concordâncias, discordâncias etc. Uma operação que pode ser restrita a um grupo de pessoas ou aberta na infinitude da internet. Que pode conter apenas fotos e narração off (como a maioria que encontramos hoje na web) ou uma gama de infor-mações expressada em vídeos, animação, textos, músicas e pequenos games ou demos jogáveis. Enfim, um documentário expandido, como se mil câmeras, mil visões personalizadas e diferen-ciadas focassem o mesmo objeto.

A interação plena é a grande meta das novas tecnologias da comunicação, sua Pedra Filoso-fal. O marco inicial da era da comunicação, no sentido prático, foram os jogos eletrônicos. A pri-meira manifestação de um cinema interativo foi o Tennis for Two, simulação de jogo de tênis para computadores, criado em 1958 nos EUA. Era só um ponto branco cruzando a tela de um lado para o outro, controlado através de joysticks primiti-vos. Hoje temos o sensor Kinect, que dispensa aparelhos, é comandado pelos movimentos do corpo do jogador, e está em desenvolvimento o controle mental (sensores leem os impulsos do cérebro e os transmitem ao computador).

À medida em que os games avançavam tec-nologicamente, também avançou a crítica sobre a “desumanização” dos jogos, que a virtuali-dade é um fator excludente da sociabilidade, é cada um por si, cada pessoa é uma ilha em um arquipélago de egos. Pois, o acontecimento ci-bernético mais importante neste momento são as experiências voltadas para a integração da virtualidade com o real, como a Realidade Al-ternativa (Alternate Reality Games), que permite a coexistência de “universos paralelos” com a vida de verdade, como acontece com a comple-mentaridade da vida material e do imaginário. Também a mencionar os Pervasive Games, nos

quais o jogador está envolvido durante o tempo todo, onde estiver, em um jogo específico que te-nha a ver com suas atividades. A menção a esse progresso na conexão inteligência natural/inte-ligência artificial, ou emoção/bytes, nos remete tanto à interatividade “realista” do webdoc como à possibilidade da imersão absoluta e sensorial da Realidade Virtual, ainda em estágio primário com suas luvas e capacetes digitais.

E também remete ao entendimento dos sig-nificados e significantes da interação homem/máquina e suas consequências no comportamen-to humano, na relação do ser humano com o real e o simulacro, com a verdade e a mentira, com si mesmo e com os outros, com o amor, na nossa relação com a vida e a morte, unidade binária da filosofia. A tecnologia está causando impactos de grande profundidade na ciência, educação, economia, em um ritmo alucinante para os parâ-metros de velocidade da História e o pensamento crítico é sempre mais lento do que a evolução do seu objeto de estudo. Mas tratando-se do aspecto comunicacional dessa revolução, a sua interface mais importante, devido à penetração psicológi-ca de suas linguagens e ao fato de estar na base dos outros avanços, tivemos a sorte de contar com Marshall McLuhan, um filósofo-profeta. Nos anos 1960, ele projetou cenários futuros da

Revolução na comunicação, título de um de seus livros. Outros títulos seus explicitam a perspicá-cia de sua análise: O meio é a mensagem, Guerra e paz na Aldeia Global. “Quanto mais sabem a seu respeito, menos você existe”, disse.

Meio século depois, uma nova qualidade de entendimento se faz necessária diante dos rumos que as tecnologias estão tomando. O canadense Derrick de Kerckhove está desenvolvendo ideias contaminantes, como a Psicotecnologia (“cada vez que muda o suporte para a linguagem, muda a sensibilidade do usuário e da cultura”). Ele afir-ma que a predominância do hemisfério esquerdo do cérebro sobre a atuação humana, que resultou no processamento autônomo da informação por cada um de nós, sofreu um abalo terminal com a eclosão das mídias eletrônicas: “Sua personali-dade digital é cada vez menos uma propriedade sua e mais uma propriedade do conjunto”. Es-sas reflexões estão inspirando a Tecnofilosofia. Também a mencionar novos conceitos analíti-cos como a Narratologia (potencial expressivo da interatividade) e Ludologia (potencial lúdico e simbólico da interatividade), que se propõem como disciplinas universitárias, como ferramen-tas indispensáveis para que os estudantes de comunicação se situem adequadamente em seu (nosso) tempo.

03

Opin

iãO

02

edit

oria

l

é uma publicaçãO da cinemateca catarinenSe — abd/Sc e FundO municipal de cinema de FlOrianópOliS (Funcine)

carol marins Presidentetatiana lee Diretora FinanceiraGizely cesconetto Diretora AdministrativaGabi bresola Diretora de Comunicação e Difusão

[email protected] www.cinematecacatarinense.org

Conselho (gestão 2013-2015) carolina da Silva Gesser Presidenteulisses S. tiago da Silva Souza Vice-PresidenteKaru torres dos prazeres Secretária

[email protected]://www.pmf.sc.gov.br/entidades/funcine/

Fábio brüggemann Edição ayrton cruz Planejamento gráficobarbara pettres RevisãoFlávia person e natália poli CoordenaçãoGráfica natal Impressão2.000 exemplares Tiragem

cinemateca catarinenseTravessa Ratclif, 56Centro – Florianópolis/SC Telefone: (48) 3224-7239 Funcine (Fundo municipal de cinema)Avenida Mauro Ramos, Centro Executivo Mauro Ramos, 224, 5o andar, Centro – Florianópolis/SCCEP: 88020-300 – Telefone: (48) 3224-6591

carol marins

Fábio brüggemann

Flávia person

natália poli

char

ge

chicO caprariO

alexandre Siqueira | Artista plástico e realizador de filmes de animação. Formou-se na escola La Poudrière, na França, onde realizou o curta Voyage au Champ de Tournesols, selecionado em vários festivais.

ally cOllaçO | Mestre em Educação e bacharel em Cinema UFSC, professora de Cinema na Escola da Ilha. Blogueira, viciada em cinema, viagens, fotografia e re-des sociais. Interessada nas relações possíveis entre cinema e educação.

andré dib | Jornalista, pesquisador e crítico de cine-ma. Membro da Associação Brasileira dos Críticos de Cinema (Abraccine), da qual integra a diretoria.

bianca Scliar | Artista plástica e livre acadêmica em arte e filosofia do movimento. Afiliada ao SenseLab desde 2009.

celSO Sabadin | Jornalista, crítico e professor de ci-nema, e acaba de roteirizar e dirigir seu primeiro longa--metragem, Mazzaropi.

chicO caprariO | Diretor, ator, roteirista e chargista da Lado C nas horas vagas.

erin manninG | Artista e professora titular de arte relacional, filosofia e cinema na Concordia University. Fundadora do SenseLab.

FauStO d. cOrrea Jr. | Doutor em História da Cultu-ra pela Universidade Estadual Paulista (Unesp-Campus de Assis). É autor do livro A Cinemateca Brasileira: das luzes aos anos de chumbo, Editora Unesp (SP, 2010).

Felipe Vernizzi | Cineasta e fotógrafo. Diretor dos filmes Noturna, Ensaio de um Sonho, Linha do Mar e Noite Clara.

GuStaVO SalValáGGiO | Cursa cinema na UFSC. Escreve ocasionalmente para a Punctum, revista do curso, e codirigiu os curtas O jardim das veredas que se bifurcam e Snuff.

marcelO eSteVeS | Roteirista e professor de rotei-ro. Trabalha como supervisor de ensino dos cursos regulares da Escola de Cinema Darcy Ribeiro, no Rio de Janeiro.

OrlandO Senna | Escritor, roteirista, diretor e pro-dutor de cinema. Foi secretário do Audiovisual do Mi-nistério da Cultura, entre 2003 e 2007 e diretor-geral da TV Brasil.

paulO alexandre d´alVa baptiSta | Licenciado em artes plásticas, participou, em 1996, como ani-mador e co-realizador na série Alfredo. Participou em vários curtas-metragens de animação. Em 1997, rea-lizou seu primeiro curta-metragem, intitulada A noite cheirava mal.

yannet briGGiler | Graduada em comunicação vi-sual na Universidad Nacional del Litoral na Argentina. É diretora de curtas-metragens de animação, editora e ilustradora. Faz parte da Associação Cultural O Mago Realizações e é uma das coordenadoras da Mostra Latino-Americana de Animação A Caverna.

cola

bora

dore

s

O ladO da capaA ilustração da capa é do artista Susano Correia, estudante do curso de Artes Visuais da UDESC. Para conhecer outros trabalhos do Susano, acesse www.notasvisuais.com

Cons

elho

edi

toria

l

Real

izaç

ão

Apoio

Patr

ocín

io

Diretoria (gestão 2013-2015)a b r i l / 2 0 1 4q5

A espiral de McLuhan

iSSn 2237-9576

Marshall McLuhan

(1911-1980)

FOTO

DIV

ULGA

çãO

Page 3: ABRIL/2014 ISSN 2237-9576 · curso, e codirigiu os curtas O jardim das veredas que se bifurcam e Snuff. marcelO eSteVeS | Roteirista e professor de rotei-ro. Trabalha como supervisor

04

entr

evis

ta

entr

evis

ta

Marcello Maia, a produção sob outro olhar

“Política de qualidade para o setor é que a contempla com

continuidade, regras claras e de conhecimento geral, todos os formatos,

gêneros e estilos de filmes e produções e apoia, também

de forma permanente, sua chegada às diferentes

telas e mídias, além da circulação com amplo acesso da população.”

LADO C | Como é ser produtor de cinema independente no Brasil? O que mudou nos últimos vinte anos?Marcello Ludwig Maia | Em qualquer área da produção cultural, quando não se está se-guindo a correnteza do chamado mercado tudo é muito mais complicado, e é preciso um exercício diário de paciência e perseverança. No cinema, até pelo volume de custos envol-vidos, mesmo para projetos pequenos, esta dificuldade se multiplica e exige uma busca permanente tanto por sobrevivência — minha produtora, a República Pureza Filmes, tem 18 anos de estrada quase por milagre —, quanto por roteiros, filmes e ideias que deem sentido a esta jornada à margem. É o que tenho tentado fazer. Em 1993, estávamos todos envolvidos no processo chamado de Retomada do Cinema Brasileiro, pós-encerramento da Embrafilme e de todos os mecanismos de regulação do setor, buscando uma forma de voltar a fazer filmes, o que se deu a princípio a partir da Lei do Audio-visual. Vieram os editais, a Riofilme — onde trabalhei nessa época — também teve um pa-pel relevante coproduzindo e distribuindo os primeiros filmes desta fase, e os caminhos que nos levaram à Ancine e ao Fundo Setorial do Audiovisual, como conhecemos hoje. Mudou muito. Nunca tivemos tantos recursos para produzir e tão pouco espaço — vontade, cami-nho, forma, possibilidade — para exibir.

LADO C | O que você entende como uma boa política pública para o setor? Como você vê a atuação da Ancine em relação à produção independente?Marcello | Política de qualidade para o setor é que a contempla com continuidade, regras claras e de conhecimento geral, todos os for-matos, gêneros e estilos de filmes e produções e apoia, também de forma permanente, sua chegada às diferentes telas e mídias, além da circulação com amplo acesso da população. Estamos muito, muito longe disso. A Anci-ne classifica as produtoras pelo currículo de filmes feitos através da pontuação, que abre acesso a um volume maior ou menor de re-cursos que cada uma pode colocar para capta-ção. Não há um tratamento diferenciado além desse. A burocracia excessiva e a lentidão dos processos atingem a todos por igual. Mas não na consequência, claro. Pois ou muito bem esta burocracia é revista urgentemente ou só restarão as grandes produtoras que atuam prio-ritariamente em publicidade e televisão e têm fluxo de caixa para suportar meses e até um ano (como já aconteceu conosco) para liberar recursos contratados para projetos.

LADO C | Quais as diferenças entre produzir um filme “não comercial” como A Erva do Rato, de Júlio Bressane e um filme com apelo comercial como Faroeste Caboclo, e que tem a Globo Filmes como coprodutora? Marcello | No que existe de mais importante, que é fazer o que se acredita até o corte final. Não muda nada estar num baixo orçamento ou numa produção maior e com mais visibi-lidade, pelo menos foi esta minha experiência nos filmes citados. Tanto num quanto noutro, fizemos sempre o que pensamos ser o melhor. Do ponto de vista da pressão, dos parceiros e recursos envolvidos, e da expectativa em rela-ção aos resultados, naturalmente, há diferenças imensas e muito mais gente a quem dar expli-cações.

LADO C | Além das diferenças, existe con-flito?Marcello | Não é exatamente um conflito, mas filmes e propostas muito distintas e isso é as-sim no mundo todo. E costuma ser muito posi-tivo para uma cinematografia ter vários gêne-ros e formatos contemplados na lista de filmes produzidos todos os anos. É positivo até para formação de público, diversidade de temas e narrativas etc. Nosso problema é de outra natu-reza: o filme-entretenimento como está coloca-do em nosso país vem seguindo um parâmetro de televisão comercial que contribui nada ou muito pouco para a ampliação de público para o cinema brasileiro, para visões distintas do país, para a construção de uma pluralidade de possibilidades. E com um agravante. Na me-dida em que estes filmes seguem um mesmo padrão e gênero, com resultados financeiros extremamente atraentes para produtores, dis-tribuidores e exibidores — todos impulsiona-dos por recursos públicos — quase não há es-paço para mais nada e ninguém, e menos ainda para exibir os filmes que fogem deste padrão em salas de cinema. Os exemplos estão por toda parte na lista de filmes bons, prontos, sem distribuidor, sala e público. Apesar do volume de recursos disponíveis, não me lembro de um momento tão desafiador e difícil quanto este.

LADO C | O que você pensa da abertura de mercado nos canais de TV? O quanto isto in-fluencia o cinema brasileiro?Marcello | Abertura mais ou menos. Há uma demanda muito maior em função da nova lei e isso é muito positivo. Mas a estrutura de poder, a relação entre as emissoras a cabo de maior estrutura e as produtoras é exatamente a mesma. E não é necessário dizer o que isso significa para os independentes. De qualquer forma, vale ressaltar o aumento considerável de possibilidades de trabalho para técnicos e profissionais do setor, o que tem, claro, reper-cussões importantes no mercado de trabalho para o audiovisual como um todo, até na for-mação e aperfeiçoamento destes técnicos. Em pouco tempo, acredito, esta abertura — de es-paço e possibilidades — será para valer quan-do mudarmos este modelo de relação exibição--produção, especialmente a partir da internet.

05

Marcello Ludwig Maia é produtor da República Pureza Filmes, que já produziu curtas e lon-gas, tanto documentário quanto ficção. Ele é um dos poucos produtores que faz a crítica ne-

cessária à forma como o mercado se sobrepõe aos filmes de arte. Apesar da dura lei mercadológica, na qual entreter é mais impor-tante que fazer pensar, Marcello continua a produzir filmes de di-retores/criadores cuja linguagem não é tão popular, como Amarelo Manga, de Claudio Assis, o documentário Moacir Arte Bruta, de Walter Carvalho e o essencial A Erva do Rato, de Julio Bressane. Por outro lado, associou-se a um projeto mais comercial, Faroeste Caboclo, de René Sampaio. Recentemente, lançou Educação Sen-timental, último filme de Julio Bressane, já exibido fora do país, mas que ainda não estreou no Brasil. Marcello conversou com os editores da Lado C sobre os dilemas e alegrias da produção cine-matográfica atual.

FOTOS DIVULGAçãO

A Erva do Rato

Faroeste Caboclo

Page 4: ABRIL/2014 ISSN 2237-9576 · curso, e codirigiu os curtas O jardim das veredas que se bifurcam e Snuff. marcelO eSteVeS | Roteirista e professor de rotei-ro. Trabalha como supervisor

0706

entr

evis

ta

entr

evis

ta

LADO C | Júlio Bressane é um dos nomes mais importantes da cinematografia brasilei-ra e é reconhecido no mundo inteiro. Possi-velmente, seus filmes são mais vistos fora do Brasil do que aqui. Como produtor dele, po-des responder a que se deve isso? Marcello | Temos muito mais público, espaço e respeito fora do país do que aqui. E a expli-cação é simples: na Europa, principalmente, a televisão é infinitamente mais plural, a circula-ção de filmes e cinematografias idem, e assim o olhar não cai naquela preguiça assustadora dos formatos de narrativa a que somos subme-tidos em quase todas as telas. O público espec-tador, parte significativa dele, gosta do que não conhece, do desconforto, do incômodo e de ser desafiado em filmes diferentes. Já fomos assim aqui também, mas não somos mais.

LADO C | Como recebe as pressões e exi-gências feitas por investidores e parceiros na produção dos filmes comerciais? Elas são acatadas?Marcello | As pressões maiores são por pra-zo e elenco. E é totalmente possível lidar com elas com bom senso e de forma razoável. Não há aqui, ao contrário do que acontece no cine-ma americano, o grande investidor privado, o grande estúdio, que manda e desmanda. O que há é o distribuidor — que opina no roteiro e elenco — e os canais de TV que passaram a participar do processo de parte dos filmes.

LADO C | E você, um produtor que também é roteirista e diretor, chega a interferir nos roteiros, na criação do diretor dos filmes que produz? Como se dá essa interferência?Marcello | Não é uma interferência, mas uma participação ativa. No roteiro, na construção da narrativa, na formação da equipe, na esco-lha do elenco, no desenho e nas estratégias de produção. É o trabalho do produtor que quan-do bem feito só tem a somar e jamais invade o espaço do diretor.

LADO C | Quando olhamos a programação de cinema nos jornais, das salas dos “centros de compras” (porque aqui em Florianópolis não existe mais cinema de rua), percebemos que todas elas exibem os mesmos filmes, ge-ralmente produções norte-americanas. O que o poder público poderia fazer, ou o que os produtores poderiam propor para que o ci-nema brasileiro (e de outras nações às quais dificilmente temos acesso às suas cinemato-grafias) tenha mais espaço nas salas de cine-ma brasileiras? Marcello | Vale ressaltar que em maiores ou menores proporções é assim no mundo intei-ro pela força, poder, marketing e recursos do cinema americano. A saída são mais salas de cinema, cineclubes, políticas públicas que des-vinculem a exibição e circulação de filmes do retorno financeiro, circuitos universitários e salas em escolas, Vale Cultura que possa va-ler como meia entrada apenas para filmes bra-sileiros, e muita, muita vontade política para romper este círculo exclusivamente financeiro, comercial e que não interessa a nós brasileiros em nada.

LADO C | Você comentou certa vez que houve algum momento na história onde os produto-res apresentavam seus filmes para seus pares avaliarem, e hoje quem diz se seu filme deve ou não receber recursos é o banqueiro. É isto mesmo? Se for, como poderíamos resolver esta discrepância?Marcello | Não disse isso exatamente. Comen-tei que uma diferença enorme entre a atuação da Embrafilme e os primeiros anos da chama-da “Retomada do Cinema Brasileiro” era essa, pois a partir da Lei do Audiovisual, especial-mente no princípio, os diretores de marketing das empresas passaram a decidir em que filmes aportar recursos baseados em seus próprios in-teresses, mesmo utilizando recursos públicos através de renúncia fiscal. Agora, a iniciativa privada responde por uma parcela pequena nos orçamentos e muito mais com os Funcines participando da comercialização de filmes de potencial sucesso (ou seja, na exibição, muito menos arriscada, e não na produção) do que via aporte direto.

“O público espectador, parte significativa dele, gosta do que não conhece, do desconforto, do incômodo e de ser desafiado em filmes diferentes. Já fomos assim aqui também, mas não somos mais.”

LADO C | Você frequenta cineclubes no Rio? O que pensa sobre o cineclubismo? Como você vê o fortalecimento do movimento cine-clubista?Marcello | Vou muito menos a cineclubes do que gostaria, mas sigo apoiando todos que pos-so, pois a volta ou o fortalecimento do movi-mento cineclubista é uma esperança imensa de que podemos seguir formando público, discu-tindo cinema, estética, narrativa...

LADO C | Como a República Pureza trabalha a distribuição dos filmes que assina?Marcello | A partir deste ano, montamos nossa própria distribuidora — exclusiva para filmes independentes, de autor e documentários. E, claro, já estamos distribuindo filmes de outras produtoras.

LADO C | E coproduções, acredita que sejam uma fonte de recusros? Conte-nos o caso de Um Passaporte Húngaro.Marcello | As coproduções, especialmente internacionais, são fundamentais não só para viabilizar os filmes, mas também, e princi-palmente, para apoiar a exibição e circulação em diferentes países e mídias. Foi assim com o documentário Um Passaporte Húngaro, em que o canal de TV francês Arte entrou primei-ro, e nós, a partir do convite da diretora Sandra Kogut, passamos a fazer parte para produzir a filmagem no Brasil e levantar recursos para lançar em salas de cinema em cópias 35mm (essencial na época para exibição em cinema).

LADO C | Você assiste muitos filmes? Que filmes tem assistido? Quem são suas influên-cias, diretores ou produtores preferidos?Marcello | Vejo no mínimo cinco filmes por semana, é meu ofício, o que escolhi fazer na vida. Assisto tudo o que posso, do cinema americano ao iraniano, e tenho dezenas de in-fluências que não caberiam nesta página. Por ter trazido para compor a trilha original de um filme que produzi, A História da Eternidade, de Camilo Cavalcante, em finalização agora, o maestro Zbigniew Preisner — parceiro de Krzysztof Kieślowski no Decálogo Não Ama-rás, Não Matarás..., e na Trilogia das Cores, A Liberdade é Azul etc. Cito o mestre polonês como uma grande, imensa influência e referên-cia de cinema.

LADO C | Como entrou no universo do cine-ma? E como foi que acabou desenvolvendo diversas atividades como diretor, roteirista, diretor de produção e produtor executivo? Foi por necessidade de realização? Marcello | Comecei como fotógrafo de still no final dos anos 80 e tive o privilégio de en-trar de cabeça no curta-metragem, formato que permitia — e permite — assumir funções diferentes e aprender em cada uma delas. Depois a carreira foi levando por caminhos diferentes e não tenho dúvida nenhuma em afirmar que o profissional que eu sou devo à oportunidade mágica de ter atuado profissio-nalmente em todas as etapas de realização de um filme, do roteiro à distribuição. Por ne-cessidade — os independentes têm este perfil — e sorte.

LADO C | Como geralmente chegam os con-vites para produzir os filmes? Marcello | São diferentes maneiras. Há os projetos que busco, a partir de histórias que quero filmar; e há os convites que chegam geralmente através de diretores identifica-dos com o perfil de filmes que fazemos e gostamos.

Capa do filme Febre do Rato, em que assinou a produção excecutiva

“As coproduções, especialmente

internacionais, são fundamentais não só para

viabilizar os filmes, mas também, e principalmente,

para apoiar a exibição e circulação em diferentes

países e mídias.”

Page 5: ABRIL/2014 ISSN 2237-9576 · curso, e codirigiu os curtas O jardim das veredas que se bifurcam e Snuff. marcelO eSteVeS | Roteirista e professor de rotei-ro. Trabalha como supervisor

0908

Por sua vez, os modelos adotados pelos mecanismos de financiamento e incentivo à produção audiovisual estimularam também a demanda por roteiristas. Em tese, qualquer produção que queira se candidatar a um edital deve apresentar, de pronto, um argumento ou roteiro dramático, o que coloca o profissional do roteiro como um dos primeiros do setor a ser convocado ao trabalho, muito meses — quiçá anos — antes de a produção ser iniciada.

Estes dois aspectos, o do ensino e o dos modelos de fomento, precisam ser considera-dos para que se possa começar a entender a atual crise que se estabeleceu no setor da cria-ção audiovisual.

No que diz respeito à formação, se por um lado surgiu a conscientização sobre a impor-tância dos estudos de roteiro, por outro, grande parte dos programas e projetos pedagógicos concentrou-se em difundir um único modelo de narrativa, amplamente utilizado pelo cine-ma comercial, em detrimento do investimento no ensino de dramaturgia de forma mais am-pla e renovadora. Inúmeros cursos, oficinas e workshops de roteiro, cuja função é ensinar “truques e técnicas”, se multiplicam pelas principais cidades do país, mas poucos fazem avançar o pensamento para além das fórmu-las prontas de fácil compreensão por parte de aspirantes sequiosos por “dominar” — prefe-rencialmente o mais rápido possível, como se possível fosse — todos os “mistérios” da es-crita de roteiro.

Mesmos nos cursos de graduação em cine-ma o cenário não parece ser diferente. A car-ga horária destinada ao ensino de roteiro nos cursos acadêmicos é sempre insuficiente, e os programas ainda são pensados sob a forma de disciplinas com conteúdos estanques. O ensi-no da técnica se sobrepõe à reflexão dramática, em programas de disciplina que quase sempre privilegiam o modelo narrativo clássico. Os professores, selecionados por suas titulações acadêmicas, muitas vezes possuem pouca ou nenhuma familiaridade com o trabalho do ro-teirista no mundo profissional.

Na outra ponta desse processo, o mercado audiovisual, que deveria absorver os recém--formados roteiristas, solidificou um esque-ma de produção que nem de longe estimula a profissionalização. Muito pelo contrário. Na maior parte das vezes, o roteirista é “convi-dado” a se juntar a um projeto de realização de filme, por sua conta e risco, na esperança de que, uma vez aprovado tal projeto, seu tra-balho como roteirista seja remunerado. Sem eufemismos: na maior parte das vezes, espera--se que o roteirista trabalhe de graça. E porque precisa converter trabalho em rendimento, é comum dedicar-se a inúmeros projetos de uma só vez, diminuindo assim sensivelmente a qua-lidade do tempo investido em cada trabalho.

Negó

cios

de

ciNe

ma

Negó

cios

de

ciNe

ma

Fim de casomarcelO eSteVeS

P or volta dos anos 80, a cada lançamento de um novo filme brasileiro nos acostu-mávamos a ouvir que a culpa pela falta

de qualidade do cinema nacional era do rotei-ro. Simples assim. Evitava-se uma análise mais complexa apontando um culpado sem rosto e com pouco prestígio até então. No silêncio — e quem sabe na culpa — que se constituiu da parte dos “acusados”, julgados à revelia e sem espaço para defesa, construiu-se uma verdade absoluta: “o que faltava nos filmes brasileiros era mesmo roteiro”.

A acusação antipática e simplista começou a perder força quando da retomada do cinema nacional, no início da década de 90. A eficiên-cia de certas produções, sobretudo das que se utilizavam de uma estrutura narrativa facil-mente identificada pelas massas como o “bom cinema”, resgatou a figura do roteirista, tiran-do da berlinda este personagem já reconhecido como de máxima importância no sistema de produção audiovisual de outros países.

A partir desse momento, a culpa pela baixa qualidade de certos filmes nacionais — por-que sempre há que haver culpados — passou a recair sobre os ombros do “som do cinema brasileiro”, e o enamoramento entre roteiristas, público e setor de produção engrenou de uma forma que parecia definitiva. Grandes nomes como Jorge Furtado, Marçal Aquino, Marcos Bernstein, José Roberto Torero, entre outros, tornaram-se referência para aspirantes ao sele-to mundo dos roteiristas bem-sucedidos.

Durante este período de enamoramento muitos avanços se sucederam. A começar pelo crescente interesse por formação, numa de-monstração clara de que roteiristas e aspiran-tes a roteiristas existiam e estavam dispostos a estudar para ocupar o espaço que subitamente se expandia diante deles no setor de criação e produção audiovisual. O aumento da deman-da alavancou a oferta de cursos de rotei-ro, de diferentes níveis e formatos, desde cursos livres e oficinas disseminadoras do paradigma sydfieldiano, à criação, por exem-plo, no ano de 2005, de um curso de graduação em Cinema com habilitação em Teoria, Críti-ca e Roteirização, na Universidade Federal de Santa Catarina.

ILUS

TRAç

õES

yANN

ET B

RIGG

ILER

O recente aumento na produção audiovi-sual de conteúdos para televisão, gerando o consequente aumento na procura por mão de obra especializada, expôs de forma definitiva essa fratura. Com o advento da Lei 12.485, de setembro de 2011, que determina a maior presença de conteúdo audiovisual nacional na TV por assinatura, o mercado audiovisual se pôs em convulsão. O frenesi em torno da pro-dução de ficção seriada, causado pelo avanço bem-sucedido do formato em países como os Estados Unidos, gerou o desejo premente de produzir correlatos nacionais.

Mais uma vez, foram os roteiristas os pri-meiros a serem convocados (quase sempre nas condições precárias de trabalho expos-tas anteriormente). E uma rápida análise das primeiras levas de produtos de ficção seriada veiculados nos canais por assinatura tornou evidente o problema: a qualidade dos produ-tos gerados por essa demanda frenética deixa muito a desejar.

Mais uma vez, fez-se necessário encontrar culpados, e os roteiristas, que desde a retoma-da vinham conquistando espaço e prestígio, viram-se novamente apontados. Pôs-se em xe-que a criatividade e a capacidade desses pro-fissionais, sobretudo em relação à produção de ficção seriada. Das mídias às mesas de bares, a acusação é unânime: não há bons roteiristas no mercado. Ou, de forma ainda mais categórica: há uma crise de criatividade no setor audiovi-sual brasileiro.

Não creio nem em uma coisa, nem em outra. Certamente, é necessário melhorar a formação dos roteiristas, revisando os progra-mas de ensino, mas sobretudo compreenden-do que a formação se dá de forma muito mais ampla, multidisciplinar, para além dos conte-údos que qualquer curso ou programa possa tentar organizar.

Antes de abrirmos nossos salões e auditó-rios para que os papas do roteiro norte-ame-ricano venham, a peso de ouro, nos ensinar como fazer, como pensar, como escrever ro-teiros, é urgente que se entenda que a configu-ração do atual mercado de criação audiovisual exige novas e inúmeras habilidades de todos os profissionais do setor. Precisamos tanto de ro-teiristas que entendam dos processos e meios de produção, quanto de produtores e diretores que entendam minimamente de dramaturgia. Se se trata de apontar culpados eles são muitos, e os roteiristas não devem assumir sozinhos o ônus da culpa pela baixa qualidade do produto.

É necessário também que o mercado en-tenda, de uma vez por todas, que a palavra “profissional” opõe-se a “amador”. Entende--se por roteirista profissional aquele que ganha para exercer uma profissão, e não um diletante que trabalha no risco e no amor à aventura. Porque se há anos não se consegue compre-ender este detalhe simples, vale o desenho: é preciso remunerar os roteiristas “para tra-balhar” e não “por terem trabalhado”. Isso fará toda a diferença no produto final, além de contribuir imensamente para a profis-sionalização da atividade.

Como se percebe, este é apenas o início de uma DR longa e complexa que precisa ser verticalizada para além das repetições robóti-cas das muitas bobagens que se têm falado e publicado a respeito.

Page 6: ABRIL/2014 ISSN 2237-9576 · curso, e codirigiu os curtas O jardim das veredas que se bifurcam e Snuff. marcelO eSteVeS | Roteirista e professor de rotei-ro. Trabalha como supervisor

1110

RESE

NHA

RESE

NHA

O mal-estar da dissimulaçãoFauStO d. cOrrea Jr.

E m nossa sociedade da informação, so-mos pródigos no que poderíamos cha-mar de confusões semânticas. O “qui-

proquó-base” pode ser seguramente apontado como aquele que confunde “informação” com “conhecimento”. Pois, informação não é co-nhecimento, ao contrário do que se pode pen-sar. Informação, como a própria palavra nos indica (in-forma), é algo dado e formatado dentro de uma forma; de uma fôrma se qui-sermos. Conhecimento, ao contrário, é algo do qual participamos do processo, da criação; é algo que ajudamos efetivamente a construir, que experimentamos de modo mais prolonga-do, sistemático, visceral. Nossa sujeição ao mundo da tecnologia fez-nos acreditar que um cumpre a função do outro, e na sociedade da informação minha in-for-mação (isto é, minha ação de in-formar) não pode ser pior que a sua, não pode estar menos in-formada que a sua. Eu não posso estar menos in-formado que ninguém! Muitas vezes formatados tal como salsichas acredi-tamos ser livres. Mas, o que seria mesmo a liberdade para além da liberdade de mercado? Para além de formas e formatos pré-estabe-lecidos?

Em se tratando de cinematecas/museus de cinema e cineclubes tal quiproquó-base se traduz no mal-entendido entre “difusão” e “acesso”. Do mesmo modo que informação não é conhecimento, acesso não é difusão, e sim apenas o primeiro passo para tanto. Con-tudo, acesso é a palavra de ordem no mun-do das cinematecas, e mesmo de cineclubes desde, digamos, a queda do muro de Berlim! Brincadeiras à parte (que como se sabe sem-pre têm um fundo de verdade), a eclosão do mal-estar é mais antiga. Ela se encontra no fi-nal dos anos 50, quando a Federação Interna-cional de Arquivos de Filmes (Fiaf — criada em 1938) decide, diante de dificuldades polí-ticas e financeiras graves, que a prioridade de ação das cinematecas deveria ser concentrada no campo da preservação dos filmes, relegan-do oficialmente no âmbito da federação a di-fusão para um segundo plano.

Trata-se de um discurso bastante curioso e ambíguo. Afinal, se não preservarmos nada, o que poderia ser difundido? Invertendo a questão, podemos perguntar: se as cinemate-cas não seriam as difusoras privilegiadas do material por elas mesmas preservado, quem o faria então? O “ovo de Colombo” se resolve quando percebemos que o que define a ques-tão toda é o posicionamento político diante

do que será preservado e/ou difundido (seja a difusão feita por quem for).

A definição de tal política começa pela base do trabalho das cinematecas: o contrato de depósito estabelecido entre as instituições e os detentores legais dos materiais deposita-dos. Tudo depende, portanto, do tipo de rela-cionamento estabelecido pelas instituições e os detentores do que poderá e do que não se poderá fazer com os filmes e outros materiais depositados nos arquivos; do que será auto-rizado e do que não será. Portanto, refletir e participar da formulação das leis que regulam a produção cinematográfica (e audiovisual em geral) é tarefa também das cinematecas, na

medida em que seus respectivos materiais de guarda (os filmes) são hoje produzidos com base nessas mesmas leis.

Por esta senda, a difusão pode (e mesmo deve) ser entendida como uma espécie de ale-goria do que a instituição que difunde entende por cinema, e por consequência direta do que a instituição entende por sociedade. A difusão é, portanto, em sua essência, a expressão do posicionamento político de uma instituição desse tipo diante da sociedade. Do tipo de so-ciedade almejada virá um modo de produção cinematográfico mais adequado ao projeto de difusão pensado para intervir nesse ciclo.

Não basta, portanto, contentar-se em polemizar sobre a história

Assim sendo, uma instituição desse tipo não pode em hipótese nenhuma terceirizar tal tarefa, mas infelizmente esse tipo de en-tendimento se tornou recorrente no universo das cinematecas e museus de cinema, como consequência básica do mal-entendido entre acesso e difusão. Em poucas palavras, a cri-se da Federação Internacional de Arquivos de Filmes, que deu o impulso inicial para tal equívoco, tinha como pano de fundo a seguinte questão: não se tratava de saber se as cinematecas teriam ou não dinheiro para preservar e difundir ao mesmo tempo, mas de saber quem financiaria tais atividades, no-tadamente, para o que nos interessa aqui, a difusão (e consequentemente teria a primazia sobre o discurso hegemônico acerca do pa-trimônio cinematográfico, ou simplesmente sobre uma nova/velha mercadoria). Se tal argumentação pode parecer demasiadamente esquemática, lembremos que a supracitada crise da Fiaf é o início da consolidação do “mercado do patrimônio cinematográfico”, e que a conquista pela hegemonia do discurso sobre tal patrimônio se processa por meio de uma rede complexa que envolve os detento-

pregressa do cinema. Intervir diretamente ou não no debate da produção contemporânea e, por consequência, na história e na histo-riografia do cinema, eis a questão. A ausên-cia de clareza em tal posicionamento indica grosso modo duas possibilidades de análise de conjuntura. A primeira, que a instituição está à mercê, sendo refém absolutamente pas-siva das correntes hegemônicas que movem a sociedade, e particularmente os setores nos quais ela está mais envolvida. A segunda, que ela está de pleno ou parcial acordo com tais ditames. Neste último caso, até que ponto?

Por esse modo de ver o problema, é a di-fusão que define a política de uma instituição deste tipo, isto é, de uma cinemateca (ou um museu de cinema). Difusão não é acesso. Di-fusão é o posicionamento político a respeito do que se permitirá o acesso, e o modo como tal posicionamento aparecerá aos olhos da so-ciedade, seja em mostras, festivais, palestras, cursos, publicações, exposições, projetos, ar-gumentos, debates, em suma, no que quer que seja. Difusão é a formulação (e a defesa se for o caso) de um discurso acerca do que será difundido, espalhado, propagado, divulgado.

res dos direitos legais de tal patrimônio e os financiadores dos projetos de restauro e difu-são dos materiais.

É preciso remarcar, contudo, que se para difundir é preciso preservar, é na segunda eta-pa desse processo que se consolidam as pos-sibilidades e usos do poderoso capital sim-bólico imanente à memória imagética (que revela longas sendas e veredas do imaginário social). Em outras palavras: é na difusão que a preservação se realiza; que ela se percebe a si mesma. O capitalismo não podia ficar fora dessa. Afinal, cinema é arte e indústria simul-taneamente (notadamente a segunda). Criou--se assim um “mercado de direitos legais do patrimônio cinematográfico” que multiplica os cruzamentos de interesses dos detentores aos dos financiadores de projetos (em nossos dias ainda bastante ligados à lógica corpo-rativa das leis de incentivo inspiradas pelo neoliberalismo). A intervenção pública direta existe, mas é ainda pequena comparada à ló-gica que rege o mercado das artes em geral.

O fundamental nesse debate é que a inser-ção do tema nesta lógica hegemonicamente de mercado dificulta a realização (até mesmo no sentido da percepção) da missão última de um museu de cinema ou de uma cinema-teca, e que está diretamente relacionada com o campo da educação. Forçando um pouco a nota, mas nem tanto, podemos dizer em alto e bom som que o conceito de cinemateca pertence, sobretudo, ao universo da Filosofia e ao da Pedagogia, ou melhor, ao campo da educação. Isto é, às reflexões sobre os rumos

da sociedade por meio do cinema, e às prá-ticas de intervenção neste meio.

O que vale para a Cinemateca Brasi-leira, ou para qualquer outra cinemateca do mundo, vale também para o contexto catarinense. A tarefa do Museu da Ima-

gem e do Som de Santa Catarina (MIS-SC) neste caso é relativa-

mente simples. A primeira delas é assumir a progra-mação de cinema do Cen-tro Integrado de Cultura

da capital (CIC-FCC). O segundo passo é montar um programa de difusão que equi-libre a história do cinema em geral, com certo destaque para a história do cinema brasileiro (e catarinense), promovendo cursos, seminários, exposições complementares e publicações que tenham por objetivo não apenas debater a história do ci-nema, mas também os rumos da atual produção cinematográfica em geral, particularmente a bra-

sileira e a catarinense. A ideia aqui não é necessariamen-te enfocar apenas o que de melhor se estiver produzin-do, mas sim tudo o que for

significativo para compreen-dermos e eventualmente tentarmos

mudar os rumos de nosso cinema, de nossa sociedade, de nossas próprias vidas.

ILUSTRAçãO yANNET BRIGGILER

Page 7: ABRIL/2014 ISSN 2237-9576 · curso, e codirigiu os curtas O jardim das veredas que se bifurcam e Snuff. marcelO eSteVeS | Roteirista e professor de rotei-ro. Trabalha como supervisor

1312

expo

siçã

o

expo

siçã

o

“O s temas que abordo nos meus curtas nem sempre são pessoais. No entanto, tenho como desafio passar fortes emoções ao público. O Grande Semente partiu de um conceito visual e só mais tarde escrevi o roteiro. No que respeita ao grafismo dos

meus trabalhos, tenho a tendência de mudar muito de filme para filme, e isso acaba sendo uma grande vantagem, pois o espectador tem sempre uma surpresa.”

FOTO

S DI

VULG

AçãO

Grande SementeImagem inédita do novo filme de Alexandre Siqueira

Page 8: ABRIL/2014 ISSN 2237-9576 · curso, e codirigiu os curtas O jardim das veredas que se bifurcam e Snuff. marcelO eSteVeS | Roteirista e professor de rotei-ro. Trabalha como supervisor

GuStaVO SalValáGGiO

Porky in Wackyland é moderno desde an-tes de acabarem seus créditos iniciais: um personagem salta à tela, uma figura

vendedora de jornais, esses que bradavam as manchetes às ruas informando que o prota-gonista, Porky Pig, ou Gaguinho, iria viajar à África em busca do “raro e acreditado extinto” Dodô; já se depreendem daí dois traços patentes em relação à modernidade. Gaguinho irá, não por acaso, de avião, que dominava a imagina-ção pública da época com os feitos de Charles Lindbergh, Amelia Earhart e Howard Hughes, o símbolo da rapidez da vida moderna e do domínio da técnica sobre a vida; a técnica que leva à conquista (Gaguinho sai da Califórnia em direção à “darkest Africa”; onde fica “?”), em-bora o curta sabote até o quanto pode o domínio da técnica, começando no avião que murcha. A outra preocupação imediata é a captura, remo-ver algo de seu ambiente natural para mantê-lo numa coleção, seja um museu ou um zoológico: o capturado em sua prisão adorna o ambiente como um troféu.

Tendo isso em mente, o curta prossegue a demolir conceitos iluministas e burgueses ba-seados na razão, de maneira não diferente dos surrealistas. Ir à “?”, dentro da “darkest Africa” funciona como abandonar hábitos civilizados, o superego, e ir de encontro, como também ao en-contro, de instintos básicos, o id, se assim qui-sermos ver. Não creio essa explicação ser satis-fatória, parece-me que em vai à “?” desce mais fundo dentro do subconsciente, que não segue lei alguma. Torna-se necessário descer, ou ain-da, ascender à loucura, se desejarmos ver com novos olhos. Nesse sentido, o curta é surpreen-dentemente moderno, quando antecipa elemen-tos do neorrealismo: Gaguinho viaja ao exterior

e muda, ou é modificado ou alterado pelo que vê; a ação que dominava o cinema, a imagem--movimento, conforme Deleuze, começa aqui, de maneira embrionária, a ceder espaço a blo-cos de tempo, blocos de experiência sensório--visual, em lugar da sensório-motora. Rossellini viria a depurar ainda mais esse novo cinema, mas nada leva a crer que ele não tenha visto esse curta em 1938. Quando Gaguinho viaja, transporta seu corpo para fora de onde lhe é na-tural, Califórnia; ele é tão estranho a Wackyland quanto nós. Existe uma barreira bem definida entre a naturalidade com a qual os habitantes da Wackyland se movimentam e agem dentro de seu espaço, uma naturalidade quase Disney de seus corpos, e o que Gaguinho vê, quando ele se torna expectador de sua própria história. Com-pare-se o curta com The Wild Hare, que marcou a primeira aparição de Bugs Bunny, Pernalonga, onde as gags infligidas aos personagens fazem a conexão entre os blocos de duração do cur-ta (para provar que “é” um coelho, Pernalon-ga atua como um coelho dentro do código de imagens do caçador Ortelino), quando que em Porky in Wackyland essas ligações são fracas, por vezes inexistentes, como depois viria e ser no neorrealismo. Uma gag pode voltar a aconte-cer, com seu desfecho alterado, após um plano--sequência do que Gaguinho vê em Wackyland. Por vezes, seu olhar se confundirá com o nosso, somos ambos estrangeiros nessa mesma terra.

Fora do óbvio de comparar Porky in Wa-ckyland com a obra surrealista, principalmen-te a de Salvador Dalí (os espaços desérticos e horizontais, que se pronunciam ao infinito, o contraste que nasce com as formas alongadas verticais desse deserto, as criaturas bizarras que povoam esse espaço), o curta vem como que de uma tradição bastante pessoal de artistas icono-clastas. Seu diretor, Bob Clampett, foi o mais

individualista dentre os grandes diretores da Warner. Dentro de narrativa e animação, Clam-pett deu prosseguimento a um movimento todo contrário a Disney, iniciado por Tex Avery. Foi Avery quem trouxe o conto de fadas, Chapeu-zinho Vermelho, por exemplo, ao século XX, tornando os personagens adultos, e trazendo para o primeiro plano a sexualidade e as neu-roses da história. Mas Avery era relativamente conservador quanto à animação, comparado a Clampett. O grande herdeiro da tradição inicia-da por Avery foi Chuck Jones; Clampett era ou-tra coisa, completamente diferente. Analisando somente sua obra em preto e branco, percebe-se que o espírito que havia em O Sonho da razão produz monstros continuou o seu caminho até o lugar mais insólito aonde poderia ter chegado, ao da animação de grande estúdio. O que foi vis-to por Gaguinho em Wackyland não é diferente daquilo que se vê em Bosch, o rosto distorci-do ao irreconhecível, o amontoado de criaturas cuja forma e sentido nos escapa. Mas a visão de Clampett é aquela do grande cinema americano, desimpedida e livre de afetações. Nesse sentido, ele lembra um pouco Hemingway, embora, em todo o resto, em toda sua intensidade, se asse-melhe mais a William Faulkner: usar de mo-dos europeus, seja o fluxo de consciência, seja o amontoamento de corpos em El Greco, com uma visão descaradamente americana.

14

C DE

CRÍ

TICA

ARQU

IVO

C

Porky in Wackyland (1938)

Clube de Compras Dallas

15

FOTO DIVULGAçãO

celSO Sabadin

Nos primeiros minutos de O Lobo de Wall Street, de Martin Scorcese, uma sequência que já pode ser conside-

rada antológica mostra Matthew McConau-ghey ensinando os meandros e as loucuras (que não são poucas) do mercado de ações para um então novato vivido por Leonardo DiCaprio. Apesar deste início bombástico, McConaughey não retornará mais ao filme, e deixará saudades desta sua breve aparição pelo restante da — longa — história que será carregada por DiCaprio.

Não faz mal: McConaughey tem um papel de protagonista só pra ele no ótimo Clube de Compras Dallas, do diretor canadense Jean--Marc Vallée, o mesmo do sensível C.R.A.Z.Y. E que papel! McConaughey interpreta aqui a história real de Ron Woodroof, um simples e simplório eletricista de Dallas, machista, pre-conceituoso, racista, rude e mulherengo. Ou seja, o próprio retrato de boa parte dos EUA, principalmente do sul e do meio-oeste. O mun-do tosco de Ron, que já não é lá grande coisa, desaba quando ele fica sabendo que tem ape-nas um mês de vida. E “pior”: está com Aids, o que lhe leva a sofrer todo o tipo de preconceito precisamente daqueles que, antes, eram os seus grandes amigos.

Assim como O Lobo de Wall Street, Clube de Compras Dallas também está longe de ser uma mera cinebiografia. O roteiro (assinado por Craig Borten e Melisa Wallack, pratica-mente estreantes) utiliza — e bem — a histó-ria de Woodroof para fazer graves denúncias contra esquemas de corrupção movidos pela megapoderosa indústria farmacêutica norte--americana. O filme sustenta a tese de que fatores meramente comerciais atrasaram de maneira fatal o desenvolvimento de remédios contra a Aids, impondo o ineficaz AZT e des-qualificando pesquisas vitoriosas realizadas em outros países. Na contramão da lei, o pâ-nico do protagonista é a mola propulsora para que ele desafie a corrupção e busque suas pró-prias soluções, por mais heterodoxas que elas possam parecer.

Assistindo Clube de Compras Dallas, me lembrei muito de E a Vida Continua, um filme-denúncia produzido em 1993 (ou seja, com muito mais proximidade temporal com o surgimento da Aids) que mostrava como a doença poderia ter eclodido em menores proporções caso os bancos de sangue norte--americanos não fossem tão corruptos e in-consequentes. O paralelo é inevitável. E a Vida Continua foi feito para a televisão, mas sua repercussão, na época, foi tamanha que ele acabou sendo exibido em cinemas de vá-rios países, inclusive no Brasil.

No detalhe, Bob Clampett em pleno trabalho na Warner

Bros, em 1968

Já em Clube de Compras Dallas, a dra-maturgia é mais forte e madura. A direção prioriza um certo intimismo documental, com câmera na mão e enquadramentos em close que conseguem criar um eficaz clima de proximidade e empatia com o pú-blico. Mas o que chama mesmo a atenção é a sólida construção e a credibilidade dos per-sonagens, além, é claro, da brilhante atuação de McCo-naughey. Quando este artigo for publicado, pro-vavelmente os resultados do Oscar já terão sido divulgados. Não é importante

saber se McConaughey ganhou ou não, mes-mo porque esta premiação é muito mais dire-cionada a fãs de marketing que fãs de cinema, mas sem dúvida é um das performances mais marcantes dos últimos anos, e contribui forte-mente para a credibilidade do filme.

Clube de Compras Dallas também é bri-lhante em sua trilha sonora, que pontua

várias de suas sequências prin-cipais com marcantes sucessos da época, transportando o pú-

blico para o momento do desen-volvimento da ação, (re)acedendo

lembranças e fazendo cumprir uma das várias funções do cinema: a de ser

uma inquieta e questionadora máquina do tempo.

Matthew McConaughey, em Clube de Compras Dallas

FOTO

S DI

VULG

AçãO

Page 9: ABRIL/2014 ISSN 2237-9576 · curso, e codirigiu os curtas O jardim das veredas que se bifurcam e Snuff. marcelO eSteVeS | Roteirista e professor de rotei-ro. Trabalha como supervisor

1716

esté

tica

e p

olít

ica

esté

tica

e p

olít

ica Da pedra à carne, da noite ao dia, da apari-

ção à desaparição surge finalmente a primeira criatura viva: um corpo de pedra de um lança-dor de disco que começa a se mover. Assisti-mos à magnífica transformação da incipiência ao deslocamento. O corpo foi criado e já é em si mais do que apenas um. Em Olympia, o pro-tagonista não é o corpo como tal, mas a quali-dade que o permite vir à vida em relação a um ambiente sempre emergente.

Pense sobre o lançador de disco: lentamente a câmera circula e o movimento do corpo ganha forma em espiral. O corpo ainda não está se mo-vendo, mas a terra se mexe. Tão logo a espiral se abre, o corpo começa a se agitar, e sua “pré--aceleração” arrebenta a carne da pedra. O corpo se move apenas quando toda a imagem está em movimento: o que experienciamos é “puro mo-vimento”. José Gil o chama de movimento total; um movimento que qualitativamente altera a ca-pacidade transformativa do próprio corpo, que não se encerra na forma pressuposta no que enten-díamos até então como os limites daquele corpo.

Riefenstahl torna aparente, a partir de se-quências de movimentos, a noção do quanto o movimento é infinitamente maior do que o deslocamento que o compõe. Sugere assim que o corpo não é um ente formal que realiza um percurso, mas que ele emerge na incipiência do “movimento em movimento”.

Temos contato nesta primeira sequência do filme com uma experiência de corpo, e não com uma “forma” corporal. O corpo, para Rie-fenstahl, é aquilo que aparece entre a imagem e o movimento.

Na sequência seguinte vê-se a ondulação da grama e o braço numa dança transcendental entre a imaterialidade aparente e o corpo que reconheço como a formalização cinemática do transcendentalismo material. O corpo não toma forma, permanecendo transcendental em sua imanência. O que dança não é o corpo, mas o intervalo entre encontros com a grama. Este intervalo chamarei de biograma, e é o que dá forma ao trabalho de Riefenstahl.

Olympia jamais apresenta um corpo estável, mas estabelece um corpo que provoca relações entre amarrações de aparição e desaparição, formadas pela intensidade das imagens, em sua capacidade de dar forma ao movimento de trans-formação. Vê-se o corpo invariavelmente em uma materialidade esplêndida, mas mantido na iminência do desaparecimento. Esse corpo-em--formação é tão vivo como a luz que dança ao redor dos braços retratados por Riefenstahl sobre a grama e tão virtual quanto o movimento fluido da pedra, incorporando uma estética terrivelmen-te fascista, mas inventiva do ponto de vista da biopolítica. O fascismo não é um ready-made, e nem se localiza em um corpo que tem forma preestabelecida. Em Olympia, encontramos um fascismo muito mais evasivo: o fascismo do en-tremeio, onde a biopolítica suscita biogramas.

No caso de Riefenstahl, argumento que o biograma aparece na técnica de recombinação significativa do corpo que não cessa na forma. O biograma é a conjugação de ritmos de apa-rição e desaparição, da velocidade à lentidão, expressado nas dinâmicas de movimento. Nos biogramas, experienciamos a esfoliação ao in-

vés da bola, o voo ao invés do dardo, emaranha-dos e não membros. Sentimos a qualidade da elasticidade anteceder o contorno. No exemplo da sequência do dardo, na repetição do ato de atirar, “o atiramento” torna-se o corpo: o movi-mento declama-se substantivo na ação.

tranScendentaliSmO FíSicO

Os ecos do futurismo povoam o início do cinema e também o trabalho de Riefenstahl. Ambos, Boccioni (fundador e signatário do Ma-nifesto Futurista) e Riefenstahl, exploram como a integridade de um movimento (sua indivisibi-lidade) desafia a ideia de um espaço preexisten-te. Este é um problema bergsoniano: como pen-sar o espaço como algo que não é preexistente sem espacializar o vazio potencial da passagem do tempo? Para Bergson, o problema é que, se o espaço preexiste ao movimento — ou seja, se o espaço é um contêiner para o movimento — então o movimento deve poder ser percebido como algo que inicia e cessa por completo.

Para Bergson, o movimento diferencia--se do espaço ocupado. O espaço percorrido é divisível, enquanto o movimento é sempre indivisível. Nem Bergson nem Boccioni extra-polariam suas teses sobre movimento na cine-mática, mas aparentemente Riefenstahl toma o desafio para si, criando um vocabulário de du-rações de movimento. O filme de Riefenstahl deixa claro que o movimento cinemático não opera apenas entre o corte e o enquadramento, mas faz-se sentir a partir de suas sequências.

Tal como na afirmação de Boccioni, de que “nossos corpos penetram os sofás onde senta-mos, e o sofá penetra nossos corpos”, Riefens-tahl insiste em pensar a imagem de modo rela-cional. Institui um artifício estilístico na recusa em considerar o movimento a partir de uma imagem preexistente.

Para Boccioni, há uma conexão implícita entre ritmo e força. As linhas de força são o que trazem vida à materialidade. Em Riefens-tahl, elas se movem intensamente, dobrando--se em topologias e transformações através de cada sequência, expressando as potencialida-des de movimento da matéria. A matéria torna--se força antes de tomar forma.

Da biopolítica ao biograma — ou como Leni Riefenstahl move-se através do fascismo

erin manninG*

Olympia parte 1, o Festival do Povo (Riefenstahl, 1938) inicia com os cré-ditos cravados em pedra. Enquanto as

letras abrem caminho para a primeira imagem, o congelamento ganha vida. Corpos em pedra tornam-se corpos em movimento, emergindo em uma lenta dança enquanto a câmera circu-la as ruínas do sítio olímpico arcaico. A dança lenta da câmera é acompanhada pela sensação da pedra ganhando vida.

Percebemos um movimento duplo: a músi-ca prepara a atmosfera que transforma as ruí-nas em formas mutantes, dando caminho a um céu temperamental.

O céu é protagonista: acorda lentamente, o sol lânguido atravessa a opacidade da ima-gem. Simultaneamente com a sua transforma-ção gradual da alvorada ao dia, a câmera se move criando uma sensação de metamorfose. Quando finalmente alcançamos a estrutura do Parthenon, um sentimento de transformação prolongada cravou-se pelas permutações da paisagem. Fomos guiados pela estranha passa-gem da transfiguração. Na abertura de Olympia, Riefenstahl não mostra apenas um campo em ruínas. Ela o leva à vida.

A câmera, desde a primeira sequência, quando atravessa a pedra, se apresenta de for-ma dinâmica. Isso é um artifício reminescente do Triunfo da Vontade (1935), onde Riefenstahl filma a aproximação de Hitler, Himmler e Hess.

Enquanto assistimos as três figuras moverem--se até nós, uma pan é iniciada atrás de grandes colunas, que repetidamente bloqueiam a visão do espectador. O paradoxo desta técnica é que a obstrução momentânea e repetida da presen-ça física tem o efeito curioso de intensificar o evento de sua chegada. Sentimos uma força vir-tual de sua importância a partir de quando seus corpos “de fato” somem. Na aproximação da câmera do Parthenon, vemos o mesmo efeito.

Sentimos que o Parthenon nos ganha antes mesmo de vê-lo. O que vemos está saturado pelas sensações do que não podemos ver: a imagem reajusta-se pela intensidade do movi-mento da câmera. Há então a aparição áurea e impositiva da lembrança de uma era perdida: uma longa sequência do Parthenon completa-mente centralizado. O jogo se estabelece aqui entre a fluidez e a materialidade. A materiali-dade se apresenta pela densidade das ruínas, a fluidez, na graciosidade que toma forma na passagem intensa da aparição à desaparição.

Então uma face, feita de pedra, entretanto, quase viva, uma escultura quasi-carne ganha a cena. O objeto é tomado em dissolução enquan-to a música se dissipa. Trompetes soam e uma outra face entra em quadro, em um close-up so-bre um fundo escuro, capturado entre o dia e a noite. Vinda de baixo, a próxima figura em pe-dra reaparece, movendo-se ainda, tomando for-ma a partir da desaparição da face anterior. Um movimento imanente transluz na opacidade da superfície da pedra: uma transcendência física.

FOTO

S DI

VULG

AçãO

A cidade se levanta (1910), obra de Umberto Boccioni (1882-1916)

Cenas de Olympia parte

1, o Festival do Povo

(Riefenstahl, 1938)

O filme de Riefenstahl, tal qual em Boc-cioni, reafirma a definição de formas pelo mo-vimento e privilegia a expressividade em de-trimento de um conteúdo. O estabelecimento de uma forma dinâmica sugere que Riefenstahl compõe com o fascismo, mas não atua no esta-belecimento de um corpo fascista (disciplina-do). O que compõe é a expressão de um corpo em transformação simbiótica, associado ao fascismo, mas que excede sua disciplinarieda-de. Inicia com o belo, jovem, forte, mas não se ocupa com um corpo específico, particular.

É importante questionarmos como o traba-lho de Riefenstahl toma forma hoje, como sua reiteração após mais de meio século é sustenta-da e como ele define e se encontra com outras formas com as quais continua a ressoar. As ima-gens de Riefenstahl jamais serão desconectadas do fascismo. Entretanto, podemos associar a força da corporealidade que propõe a partir da transcendência que seu trabalho prevê.

Riefenstahl está certa ao afirmar que não encena encontros políticos em sua obra. Sua política não é preestabelecida. É uma política de afetos. A partir de seus biogramas mutan-tes abre-se para afetos que ressoam através de corpos. Essa política, característica do fascis-mo, encontra na indefinição das formas a sua mais poderosa capacidade de mobilização, muito além daquilo que Hitler chamou de “es-tética fascista”.

Diferentemente desta, a “estética-afetiva” de Riefenstahl não se ocupa consigo própria, nem em disciplinar um corpo esquivo. Ela cria em afetos um movimento incipiente. A política do afeto não é uma política moral. Uma ên-fase no movimento não promete uma política emancipatória. É mais perigosa, posto que su-gere uma recomposição que define o que pode fazer o corpo, deixando para trás o sujeito rela-cional moderno kantiano.

Ao produzir sequências de biogramas, que operam contra tendências singulares, povoando a tela com movimentos que não se individuali-zam, a cineasta chama para recomposições qua-litativas de gestos, possibilita a preparação de desejos expressados imaterialmente.

*traduzido por bianca Scliar

“O gesto que seria reproduzido na tela não deve mais ser um momento fixo no dinamismo universal. Deve simplesmente ser a própria sensação da dinâmica em si.”

Umberto Boccioni, em Pintura futurista: um manifesto técnico, 1910.

Page 10: ABRIL/2014 ISSN 2237-9576 · curso, e codirigiu os curtas O jardim das veredas que se bifurcam e Snuff. marcelO eSteVeS | Roteirista e professor de rotei-ro. Trabalha como supervisor

1918

Cine

ma

Bras

ilei

ro

Cine

ma

Bras

ilei

ro

andré dib

N os últimos anos, Pernambuco vem se afirmando como um dos mais interes-santes núcleos de produção de filmes

do país. Como jornalista, tive o privilégio de testemunhar o ressurgimento de uma tradição que muito tem contribuído para a renovação e expansão da cinematografia nacional. Aqui vai um pouco dessa história.

Corria o ano de 1997 quando eu, um dos poucos representantes da insólita corrente mi-gratória que liga o norte do Paraná ao litoral de Pernambuco, descobri no Recife uma vocação para o cinema que me conectou irremediavel-mente a este lugar. O processo começou com uma sessão de curtas locais: Cachaça, de Ade-lina Pontual, Maracatu Maracatus, de Marce-lo Gomes, Recife de dentro pra fora, de Kátia Mesel, Clandestina Felicidade, de Beto Nor-mal e Marcelo Gomes e Simião Martiniano, de Clara Angélica.

Meses depois, no extinto Cine Veneza, as-sisti a Baile Perfumado, produzido em plena embriaguez do ideário “manguebeat” — tan-to que a trilha sonora foi mais popular do que o filme, nunca lançado em home video. Hoje vivemos uma inversão hierárquica, em que o cinema passou de coadjuvante para ponta-de--lança da cultura pernambucana.

Acostumado a títulos europeus, norte--americanos e alguns brasileiros restritos ao eixo Rio-São Paulo, o contato com os filmes pernambucanos me remeteu a algo inédito. Pela primeira vez vi na tela do cinema histó-rias, pessoas e a paisagem da cidade em que vivo. Ainda mais estimulante é perceber que o cinema não está nos filmes, mas nos próprios olhos, pensamentos e atitudes.

Cinema em Pernambuco — um panorama

FOTOS DIVULGAçãO

Cachaça, de Adelina Pontual

Tatuagem, de Hilton Lacerda

Baile Perfumado, de Lírio Ferreira e Paulo Caldas

Clandestina Felicidade, de Beto Normal e

Marcelo Gomes

Dirigido por Lírio Ferreira e Paulo Cal-das, Baile Perfumado quebrou um jejum de 20 anos na produção de longas-metragens em Per-nambuco. Antes dele, o último foi a comédia O Palavrão, de Cleto Mergulhão, lançado em 1978. Este é um importante dado extrafilme, já que desde 2011 o estado mantém a média de 20 longas/ano, entre ficção e documentários, considerando as fases de desenvolvimento, produção ou lançamento.

É sem dúvida um panorama excepcional, que remonta a uma série de acontecimentos que no começo do século 20 deram início à atividade cinematográfica no estado. Nos anos 1910 chegava ao Recife o italiano Ugo Falangola, que trouxe consigo uma câmera da Inglaterra e ao lado do conterrâneo J. Cambie-re fundou a primeira produtora do estado: a Pernambuco-film. Eles faziam o chamado ci-nema de “cavação” ou naturalista, em que fil-mes eram rodados por encomenda de políticos e coronéis, como o então governador Sérgio Loreto. A construção dos armazéns, as novas linhas do bonde e o movimento portuário fo-ram temas recorrentes.

Com a criação da Aurora-Film, teve início uma série de produções ficcionais que mais tarde ficaria conhecida como Ciclo do Recife, que entre 1923 e 1930 gerou quase 50 filmes, realizados por 12 produtoras, entre eles alguns sucessos de bilheteria em cinemas comerciais do sudeste. Tematicamente, o Ciclo do Recife continuou a mostrar a capital pernambucana como moderna e desenvolvida, uma cidade co-nectada às atualidades europeias.

O livro Utopia Provinciana (Editora UFPE), do professor e pesquisador Paulo Cunha, traz um belo estudo sobre a estética desse período. Mesmo com a cidade em cri-

se, pois há muito tinha deixado de ser a capital econômica do país, o discurso cosmopolita foi estrategicamente mantido. Sintomático que o cinema, principal mídia da época, tenha banido imagens do Recife rural, canavieiro, símbolo de uma cultura em decadência.

Curioso que um século depois ocorra o contrário: a prosperidade econômica de Pernambuco permite ao estado investir em um cinema político, sem compromisso ide-ológico, capaz de observar de forma crítica o perpetuamento dos rituais coronelistas de violência e submissão social, visíveis tanto nos costumes quanto no desordenamento urbano, como nos mostra O Som ao Redor, de Kleber Mendonça Filho; Doméstica, de Gabriel Mascaro e, mais recentemente, Ta-tuagem, de Hilton Lacerda.

Outra forte característica pernambucana se faz presente desde o seu início: a veia autoral. Ela pode ser observada com mais evidência a partir da geração do cinema Super 8, que, munida de facilidades técnicas e do inspira-dor movimento cultural dos anos 1970, atin-giu uma liberdade criativa inédita até então. E mais fortemente no atual cenário, com a as-censão da tecnologia digital e multiplicação de novas iniciativas de formação e fomento.

Com o recente investimento do poder pú-blico no fomento e na formação, pode-se es-perar bons frutos. Se num momento anterior a urgência criativa superava parcas condições, hoje há equipamentos, editais exclusivos para o cinema e cursos técnicos e de nível superior (entre eles, uma graduação na Universidade Federal de Pernambuco). Alimentados por re-cursos anuais de R$ 11,5 milhões, eventos de exibição, formação e reflexão se multiplicam. Neste momento, a luta é transformar o edital

em lei, processo no qual o governador do esta-do está envolvido pessoalmente.

Também falta a Pernambuco um projeto de preservação e memória, não somente para celu-loides antigos como para filmes em suporte mag-nético e digital. Na esfera estadual e municipal, a situação é de abandono. Há quase uma década o Museu da Imagem e do Som está à espera de uma sede apropriada. A Filmoteca Alberto Ca-valcanti, que foi inaugurada nos anos 1970 pelo próprio Cavalcanti, que veio de Paris para o Re-cife, sobreviveu apenas a uma gestão municipal.

Vinculada ao Ministério da Educação, a Fundação Joaquim Nabuco tem apresentado um trabalho bem mais consistente. Além do acervo disponível para consulta pública, atra-vés dela títulos importantes do Ciclo do Recife foram restaurados, via Cinemateca Brasileira. A parceria deve render a primeira cinemateca sediada no estado, sob os cuidados de Fernan-da Coelho (Cinemateca Brasileira), Kleber Mendonça Filho (Cinema da Fundação) e Sil-vana Meirelles (diretora de Cultura da Fundaj). O projeto deve ser inaugurado em 2014, garan-tindo ao cinema um futuro mais íntegro.

Page 11: ABRIL/2014 ISSN 2237-9576 · curso, e codirigiu os curtas O jardim das veredas que se bifurcam e Snuff. marcelO eSteVeS | Roteirista e professor de rotei-ro. Trabalha como supervisor

Na prática como tudo isso funciona? Vou dar um exemplo “bem-sucedido” deste ano. Apresentei aos alunos do 8.o e 9.o anos o ci-neasta Georges Méliès, pai das “trucagens” e pioneiro em filmes com histórias. Exibi o filme A invenção de Hugo Cabret, de Mar-tin Scorsese (2012), inspirado no livro com mesmo título, de Brian Selznick, que mescla a história fictícia do menino Hugo, um ór-fão com o propósito de desvendar o mistério de um autômato, com traços da história de Méliès, personagem que cruza o caminho de Hugo. Duas tramas, múltiplos gêneros cine-matográficos, narrativa clássica e jornada do herói “completa”, com tomadas riquíssimas mostrando os bastidores das trucagens de Méliès. Tudo isso combinado aos filmes de curta duração Viagem à lua (1902) e As car-tas vivas (1905). Assim, depois de assistirem e conhecerem o trabalho do cineasta, eles tinham o desafio de criar, em 60 segundos, uma história ou ação curta, com uso de tru-cagens, sem som direto e sem cor, com a câ-mera parada, tal e qual os filmes de Méliès. O nome deste desafio é “Minuto Méliès”, inspirado no “Minuto Lumière”, de Alain Bergala, em seu livro A hipótese cinema, obrigatório para quem estuda ou se interessa por cinema e educação.

Que aprendizado eles puderam (ou pode-riam) tirar do “Minuto Méliès”?! Vários! Que as tomadas que não funcionavam deveriam ser refeitas (Ah! De novo profe!? — Sim! Imagi-na então um filme de 2 horas!); que os filmes atuais não usam mais a câmera parada e são de longa duração (viva o close-up!); que tirar a cor e o som direto pode ser resolvido no equi-pamento ou na edição (viva o Movie Maker ou editor do Youtube); que eles não precisam manjar de After Affects (ou coisa do tipo) para fazer truques simples de filmagem; que eles podem usar um celular ou câmera fotográfica (que filma) para fazer filmes com “alguma qua-lidade”; que o cinema tem uma história e um começo; que existiu um cara chamado Geor-ges Méliès e que existem outros como ele que fizeram grandes contribuições ao cinema; que eles podem transgredir todas estas regras como e quando quiserem; que existem outras expe-riências com cinema, além daquelas de longa duração que eles veem nas salas de cinema dos shoppings; etc, etc e tal. Posso garantir que todos assimilaram isso?! Não. Posso garantir que alguém assimilou tudo isso? Também não. Mas eu sei que plantei uma “sementinha de co-nhecimento” e se ela germinar, meu trabalho terá valido a pena.

Essa foi uma “simples” experiência, entre tantas outras boas e ruins que já tive, que me ensinou ainda mais sobre cinema. Começo a ver os alunos como uma extensão da minha criati-vidade, já que ofereço as mesmas ferramentas que já tenho, e eles são capazes de criar, com tão pouco, histórias e cenas que nunca imaginei fazer. Um ensinar que me ensina toda vez que piso dentro de uma sala de aula e decido levar minha paixão pelo cinema, tentando contagiá--los também! Se consigo? Ainda não sei. Mas quem disse que isso importa? Tentar já me pare-ce suficiente! Bora?!

2120

RELA

TO

RELA

TO

Cinema e Educação: um ensinar que (me) ensina!

ally cOllaçO

E m 2008, quando eu estava na meta-de do curso de cinema, surgiu-me a oportunidade de dar aulas para alunos

de Ensino Fundamental e Médio numa escola privada (estou lá até hoje!). Alunos entre 12 e 16 anos. Eu nunca tinha dado aula e comecei a pensar o que poderia ensinar sobre cinema. Listei as etapas básicas de realização de um audiovisual: ideia, roteiro, storyboard, produ-ção, filmagem e edição. Pronto! Meu primei-ro esquema de aulas estava esboçado, mas eu nem imaginava que não era tão simples assim.

Trabalhar com adolescentes foi desafiador. O que antes era apenas um monte de informa-ção e conteúdo depositado na minha “caixinha de conhecimento” sobre cinema, tornou-se aprendizado. Ter que ensinar sobre compo-sição de planos para os alunos, por exemplo, fez-me compreender melhor a linguagem ci-nematográfica. Passei a perceber com maior sensibilidade os usos dos enquadramentos nos filmes, ora narrativos, ora descritivos ou sub-jetivos. Desafiar os alunos a compor pequenas ações em planos desafiou-me a ver o cinema de outra maneira. Um “ensinar que me ensina”! Afinal, eu precisava aprender a ensinar algo sobre cinema em aulas de 50 minutos sema-nais, divididas em bimestres, com a exigência de avaliar os alunos com notas ao final, como qualquer escola de ensino tradicional solicita. Desafiador, não?! E mais! Com adolescentes inquietos, (imaturos muitas vezes), que em vá-rios momentos não queriam estar ali aprenden-do. (E eu não entendia o porquê!) Nem todo

além de produzir um novo cinema, produziram também um novo espectador”. É possível ex-perimentar o cinema numa sala escura, acom-panhado de uma multidão, ou assistir sozinho na televisão da sala de casa, ou com o celular, dentro de um ônibus lotado, e ainda no compu-tador, laptop ou no tablet.

Xavier diz que não há limites para refle-xão diante de um cinema de arte/autor ou de indústria ou de qualquer tipo, pois esta refle-xão dependerá sempre da experiência sensível do espectador, mesmo em filmes que seguem padrões mercadológicos. O autor diz que um filme americanizado, por exemplo, pode não permitir sozinho esta abertura e ampliação do olhar, mas, com a devida mediação, e desta-cados os pontos importantes para discussão, problematizando-os, seria possível fazer um trabalho pedagógico com qualquer tipo de fil-me. Ponto para a professora, que poderá ser uma guia para este “olhar sensível”! E como estamos carentes de sensibilidade, não?!

Ensinar sobre cinema é formar um novo público com um novo olhar. Afinal, segundo Freinet, é na criança que reside a esperança de mudança, pois quando o indivíduo adulto se habitua ao “rebanho” (massa), dobrado pela obediência e domesticado pela sociedade, é mais difícil (se possível) agir. Bruner diz que o objetivo das escolas é sempre contraditório, já que, em parte, “[...] deveria ser simplesmente reproduzir a cultura”, incutindo nos alunos os

valores, normas, padrões e comportamentos da sociedade em que vivem, mas, por outro lado — continua o autor —, a escola também deveria ter a preocupação de “[...] preparar os alunos para lidarem com o mundo em mutação no qual estarão vivendo”, pois “[...] a cultura molda a mente” e é ela que “[...] nos dá um conjunto de ferramentas com as quais constru-ímos não apenas nossos mundos, mas nossas próprias concepções de nós mesmos e de nos-sas capacidades”.

Mudar o mundo, através do “ensinar ci-nema”? Talvez. Mas já seria um bom começo, não?! Jerome Bruner diz que nossas experiên-cias são estruturadas em formato de histórias, e que é de extrema importância desenvolver uma sensibilidade narrativa, ou teremos problemas em identificar nossa personalidade e nosso lu-gar no mundo. Se considerarmos o cinema uma forma de narrativa visual, possibilitar que os alunos desenvolvam esta habilidade narrativa, de contar suas próprias histórias, seja em texto ou em vídeo, faz parte de sua formação, pois é também possibilitar que encontrem seu lugar no mundo, através da sua construção de identidade.

Assim, se “a arte sempre foi produzida com os meios de seu tempo” (Machado), e sendo o cinema uma das formas de manifestação da arte, a presença do “aprender a se expressar através do cinema” na vida das novas gerações torna--se essencial. E se essencial, encontrar maneiras e possibilidades de trabalho com ele tornam-se fundamentais também, não?!

mundo gosta de estar na escola, sabe?! Era pre-ciso contagiá-los! Fazê-los se apaixonar pelo cinema! Seria possível?!

Todo ano, com cada turma, de cada faixa etária, e com um novo aluno interessado ou de-sinteressado, experimentei maneiras diferentes de passar meu conhecimento sobre cinema. Desde desafiá-los a transformar suas ideias em roteiros, roteiros em composição de planos, fotografados ou desenhados em storyboards, com suas respectivas cenas gravadas, até a edição de todo esse material, seja com uma pequena história, um tema para documentário, seja um videoclipe ou comercial de televisão. Ou ainda, animando em stop motion, desenho animado e experimentando as trucagens sim-ples que Georges Méliès nos ensinou em seus filmes. Sim! O primeiro cinema (ou cinema clássico) foi fundamental como ponto de parti-da para compreender o cinema quando surgiu e o que ele se tornou hoje.

Assim, durante todo esse processo de ex-perimentar, tentar, acertar e errar, encontrei al-gumas possibilidades de trabalho, mas também muitas inquietações. Como avaliar o processo criativo? Como saber se eles estavam realmen-te aprendendo? Como ensinar cinema? Como deixá-los interessados nas aulas? Como lidar com a imaturidade e indisciplina? Estas foram algumas das minhas inquietações que permane-ceram durante o Mestrado em Educação e que procurei “aquietar” com a descoberta do cam-po da mídia-educação, que defende o preparo

das novas gerações diante das novas mídias e dos novos processos de formação através do “ensinar a fazer”, além de estimular os alunos a pensar sobre esse fazer. Uma formação crítica e reflexiva diante das mídias, entre elas o cinema, um meio de convergência de múltiplas mídias e múltiplas linguagens, como o texto, música, expressão corporal, fotografia, imagem em mo-vimento, construção de cenários e composição de figurinos, e que hoje pode ser realizado por uma câmera de celular, por exemplo (um smart-phone de preferência!). A mídia-educação se mostra de extrema importância, pois “[...] busca encorajar a participação crítica dos jovens en-quanto produtores culturais por direito próprio” (Buckingham).

Xavier diz que “[...] o cinema que educa” é o cinema que faz pensar. Não só o cinema, mas as mais variadas experiências e questões que coloca em foco”. Ou seja, se quisermos formar um público de cinema mais sensível, crítico e reflexivo, “ensinar a fazer” pode ser um caminho possível. Educar para preparar o público. Educar o público para desaprender e reaprender a ver o cinema de uma outra ma-neira, como eu aprendi sendo professora. Per-cebi então que dar aulas sobre cinema não era somente ensinar a fazer filmes, mas também fazê-los pensar sobre o cinema, pensar sobre o que produzem e sobre o que consomem no universo amplo do audiovisual. Stam afirma que “[...] as novas tecnologias audiovisuais,

ILUSTRAçãO yANNET BRIGGILER

Page 12: ABRIL/2014 ISSN 2237-9576 · curso, e codirigiu os curtas O jardim das veredas que se bifurcam e Snuff. marcelO eSteVeS | Roteirista e professor de rotei-ro. Trabalha como supervisor

CarrotropeAÇÃO: Um disco surge no ecrã com a palavra carrossel, as últimas 4 letras são apa-gadas, ao fazer girar o brinquedo óptico (thaumatrope) as palavras se completam e formam o título deste filme, “CARROTROPE”.

CENA 1: ESPAÇO INDEFINIDOAÇÃO: A imagem se afasta ligeiramente do thaumatrope. Veem-se agora duas mãos se-gurando os fios do objeto, que continua a girar.

AÇÃO: O homem de idade levanta-se da sua cama, guarda o thaumatrope no bolso e avança em passo ligeiro, meio a coxear… Encosta-se à parede e bebe um trago de uma garrafa de vinho…

AÇÃO: A câmara acompanha e o segue até a casa de banho... Num ambiente de es-curidão, o homem olha fixamente o espec-tador, e de repente debruça-se sobre a sanita… Som: vômito seguido do puxar do autoclismo.

CENA 2: INTERIOR DA CASA DO PERSONAGEMAÇÃO: No meio das trevas, o reflexo de uma imagem vista no ecrã, um porquinho em se-quência. (Referência óptica das imagens animadas de Muybridge). Música.

AÇÃO: Acende-se a luz de um candeeiro ve-lho suspenso pelo teto, com um fio a fazer de interruptor. (Fotos de antigas estre-las do cinema, de Muybridge, Méliès, Edi-son, pequenos brinquedos ópticos, zootro-pe, relógios, pôsteres de filmes etc., tudo muito poeirento…)

AÇÃO: E ao lado dele, também velhote, olhando uma tesoura, uma bobina e a garra-fa, está um porco, que com o olhar incita o velho a tomar alguma decisão. (A lâmpada começa a falhar).

AÇÃO: Está escuro, porque imediatamente a lâmpada se funde de novo, o homem de tesoura na mão dirige-se para um proje-tor de 16mm com uma bobina. Som: música de embalar, de piano, ao estilo Cinema Mudo.

CENA 3: INTERIOR, ESPAÇO INDEFINIDOAÇÃO: Num flash, uma tesoura corta um peda-ço de celuloide. A luz se acende, um bebê é colocado num berço com um porquinho de pelúcia. Som: choro de recém-nascido.

AÇÃO: O bebê tenta falar, mas o filme é mudo e preto e branco. Move-se de forma acelerada. Alguém, de quem só se vê os braços, maquia-lhe no rosto a “Máscara” de Charlot. (Intertítulo AHHHHHHHHHH!!). Som: ruídos de rádio, estática, primeiras tentativas sonoras.

AÇÃO: A maquiagem desaparece e finalmente sai uma voz, é de adulto, grossa (a dizer uma tirada clássica de um filme antigo). Qualquer coisa descontextualizada da ima-gem ou mesmo esta afirmação: In 1903, Louis Lumière said: “The cinema is an invention without a future…”

AÇÃO: A imagem congela numa foto, que apa-rece nas mãos do velho, que lhe sopra o pó e a coloca numa parede, juntamente com outras tantas fotos de memórias…

CENA 4: INTERIOR DA CASA DO PERSONAGEM (de novo cor).AÇÃO: Um rugido terrível vem do exterior, tudo estremece e uma imagem abana na pa-rede. É uma fotografia de um pássaro em voo, que libertando-se da moldura voa da foto e o ambiente muda para o exterior. (A moldura cai).

CENA 5: EXTERIOR — CAMPO (de novo preto e branco)AÇÃO: Aparece um miúdo sorridente a cor-rer, com um porco e com uma espingarda, e aponta para o pássaro. Visão da primeira pessoa. O rapaz dispara a espingarda. (Uma CameraGun, e dispara 12 fotos do pássaro ou dispara para as 12 imagens da fita com o pássaro).

AÇÃO: O rapaz e o porco observam o resto do voo do pássaro que quase no fim da tela é atingido, acabando por cair às mãos de uma rapariga ruiva muito bela. O rapaz cora e toda a imagem fica colorida. (A cor se espalha como numa aquarela).

CENA 6: PLANO MÉDIO — INTERIOR DA CASA DO PERSONAGEMAÇÃO: A imagem congela de novo, vê-se as mãos do velho com a imagem na mão.

AÇÃO: Passa a mão para limpar a foto, a imagem se transforma e vê-se um casal, no dia do casamento dos dois. (Esta imagem deve ser uma adaptação do cartaz de E o Vento Levou ou de Casablanca).

CENA 7: PLANO GERALAÇÃO: No momento em que estão prestes a se beijar o vilão passa montado num cavalo e rouba o colar de pérolas das mãos do noi-vo. Sai a cavalgar.

AÇÃO: O noivo agarra o padre e sai ca-valgando em cima dele, em perseguição ao bandido e à noiva depois de gritar.

AÇÃO: Cena de perseguição. O chão é uma tira de celuloide, todo o ambiente são elementos cinematográficos. As casas são nitidamente cenários, veem-se projetores por todo lado.

AÇÃO: O cavalo do vilão é o de Muybridge, por isso não consegue avançar mais do que 24 frames e é facilmente apanhado pelo “herói”. Inicia-se um ambiente de duelo. Mudanças típicas de plano, olhares, am-biente tenso…

CENA 8: PLANO GERALAÇÃO: O duelo chega ao clímax. Herói e vilão armados com duas câmaras de filmar. (Uma de 8 mm outra de 16mm).

AÇÃO: Do céu cai uma câmera 35 mm enorme que atinge o vilão. O noivo recupera o co-lar, que coloca no pescoço da noiva…

AÇÃO: Beijam-se. A imagem congela e passa para um pôster na parede do velho. O porco está já maior e continua a comer.

AÇÃO: De uma prateleira cai uma caixa com objetos. O porco a cheira e come o colar que de lá sai. Cresce sutilmente um pouco mais. Vai comer outro objeto caído no chão, mas o velho o recolhe a tempo… é um Oscar.

CENA 9: PLANO MÉDIOAÇÃO: O velho segura o Oscar e a imagem se transporta para uma festa de entrega de prêmios. O velho, agora um homem dos seus 50 anos e a esposa, com o colar de pérolas ao pescoço.

AÇÃO: No público as pessoas são carac-terizadas como animais, conforme a per-sonalidade, mas poucos têm ar amistoso. Ganância, sorrisos enormes e deformados. Abutres, porcos, galinhas, tubarões, ra-tos fotógrafos que “flasham” incessante-mente.

AÇÃO: O velho em palco a receber o prêmio, enquanto uns sorriem, outros colocam más-caras de sorrisos, de ar sinistro, sorri-sos enormes amarelos ou muito brilhantes.

AÇÃO: O homem é marionetado para todo lado, num cenário típico de fantoches. Um porco em forma de Joker, com uma boca enorme, sorri e maquia o homem em forma de Marilyn Monroe, colocando-lhe uma peruca, quando acaba a “festa” (toda esta sequên-cia). O que sobra é apenas o Oscar, de-baixo de um spotlight, que um porco enorme quase come antes do homem lhe tirar, já de dentro da goela.

CENA 10: PLANO MÉDIO — INTERIOR DA CASA DO PERSONAGEM — EXTERIOR — CENA DE PER-SEGUIÇÃOAÇÃO: Ao olhar para o lado vê o porco, enorme, vestido de empresário com charu-to, segurando os fios. Sorrindo com sarcas-mo, inicia-se uma pequena luta pelo Oscar.

AÇÃO: Assim liberta-se com a tesoura com que corta os cordões de marionete e sai a fugir.

AÇÃO: O velho corre com o porco no seu en-calço. O porco apenas estica as patas para alcançar o velho, que, embora exausto, nun-ca desiste de correr. Finalmente levanta a pata, agarra o homem e o engole. FADE OUT

CENA 11: PLANO MÉDIO — INTERIOR DA CASA DO PERSONAGEMAÇÃO: O porco está numa sala de cinema com óculos 3D e o velho ao lado, morto, com a boca escancarada cheia de pipocas e também com óculos 3D. O filme que estavam assis-tindo na tela são umas últimas imagens da sequência anterior.

AÇÃO: O porco displicentemente come uma a uma as pérolas e vai colocando algumas pipocas na boca do velho, em cima da pilha que já lá está.

AÇÃO: A cabeça do porco se abre com um zíper e lá dentro está o próprio velho. Tira a cabeça e mantém o corpo vestido. E a coloca em cima da cabeça do velho morto.

AÇÃO: Pega a taça do velho e come pipocas, no ecrã de cinema se vê o porquinho do início, e a frase de Lumière... a cena se repete até o típico fim de fita do cinema de celuloide... que é cortada. In 1903, Louis Lumière Said: “The cinema is an invention without a future…”.

AÇÃO: O thaumatrope dará o genérico final. Versão 05.09.2011

Trecho do roteiro Carrotrope, de Paulo d’Alva

2322

ENSA

IO

rote

iro

Felipe Vernizzi

O personagem acorda em uma sala de cinema. Algumas poucas pessoas es-tão sentadas à sua volta assistindo o

filme. Ainda sonolento ele olha para trás onde está o projetor. O filme projetado mostra um homem que parece viver dentro de algumas nuvens ou debaixo de um lençol. O persona-gem levanta-se e vai até o fundo na cabine de projeção. Abre a porta e vê uma mulher dormindo no chão. Alguns cabos ligam a sua cabeça ao projetor. O personagem aproxima--se dela e segura sua mão. O filme projetado é bruscamente interrompido.

Essa é a última sequência do filme Pálpe-bras, de Baltazar Luís. Lembro que após assis-tir o filme, passei horas confuso, perambulan-do pelas ruas, como se tivesse despertado de um longo sono. Na mesma noite, sonhei com ele, e, tempos depois, tive um outro sonho.

Realizado em 1974, Pálpebras conta a história de um personagem preso a um ciclo inexplicável: a cada piscar de olhos sua vida recomeça em outro lugar. O personagem, sem nome, passa a buscar uma conexão entre to-dos os seus recomeços na tentativa de inter-romper esse ciclo, porém nada fica resolvido. A sensação mais estranha no filme de Balta-zar é o fato dos atores parecerem hipnotiza-dos ou em estado de sonambulismo: olhares perdidos, movimentações lentas de gestual, e falas quase que sussurradas. Tudo isso ficou ressoando dentro de mim e levou-me a ter os sonhos que vou contar.

O onirismo selvagem de Baltazar Luís

No primeiro eu estou em um set de filma-gem, segurando um roteiro sem saber bem o que fazer, quando alguém se aproxima e per-gunta se eu já estou preparado. Vou até um canto, entre as tapadeiras do estúdio, e leio um trecho do roteiro em que diz que eu deve-ria flutuar na cena. Percebo que sou o ator do filme Pálpebras e havia perdido as anotações que fiz para realizar a tal flutuação. “Malditas atualizações de roteiros”, pensei. Era um tru-que de concentração, mas eu não conseguia lembrar. Rapidamente o set foi arrumado e me chamaram para a frente da câmera. “Qual seria o truque? A posição da câmera em re-lação a um movimento vertical? Se estivesse sonhando, flutuaria com facilidade e sairia desse apuro.” Então, escutei por detrás da câ-mera alguém gritar: “Ação!” Toda a equipe voltou-se para mim com atenção. Flutuar me parecia impossível, mas estranhamente me ocorreu que eu pudesse com a imaginação mover tudo aquilo que estava atrás de mim e assim parecer estar solto no ar. Não lembro de mais nada depois desse raciocínio absurdo.

Meu segundo sonho aconteceu faz pou-co tempo, eu estava na antiga videolocadora Raro Efeito, procurando um filme de Alan Resnais, quando percebi que uma das estan-tes estava fora do lugar. Ao empurrá-la, en-contrei uma passagem secreta que me levou a uma sala escura. Nela há algumas poucas cadeiras, e na parede ao fundo começa a ser projetado o filme Pálpebras. Sento em uma das cadeiras e mesmo reconhecendo o filme é como se o estivesse assistindo pela primeira vez. Sinto minha pele mais quente nesse mo-mento. Durante a cena da flutuação, noto que o que se move de fato é o fundo e não o perso-nagem, como no meu sonho anterior. Isso me deixa confuso, pensando num sonho que tive sobre um filme que não lembro muito bem. Nesse momento senta-se um senhor ao meu lado e fala baixo como se estivesse sozinho: “Dediquei toda minha concentração ao cine-ma, sua linguagem, suas possibilidades. Uma

constante busca dentro e fora de mim.” O se-nhor ao meu lado tratava-se de Baltazar Luís. “Ver através das coisas. Precisamos repensar o mundo antes de pensar o cinema. Cada ges-to e respiração.” Apesar da penumbra, o seu rosto me parecia muito familiar. “Cavar e ca-var. Pensei num cinema em que os atores se movessem como as folhas se movem nos dias de vento ou que devaneassem como fazem os besouros quando estão nos galhos das árvo-res ou que tocassem os outros atores como faz a brisa nas tardes próximas ao mar ou que olhassem para as coisas com o carinho da luz quando surge pela manhã.” Em seguida, Bal-tazar parece lembrar-se de algo. “Onirismo selvagem, um filme precisa de lábios para ser beijado, precisa de mãos para ser levado aos lugares que amamos. Penso num movimen-to incrivelmente lento capaz de enfeitiçar os espectadores e trazê-los para dentro da tela.” Silencia e olha para mim. “Necessito iniciar os trabalhos para meu próximo filme”. Em seguida, levanta-se e rapidamente some na escuridão. Acordo sobre meu braço direito, o que acaba dificultando anotar as falas de Bal-tazar. “Desperta, antes que eu esqueça”, digo para minha mão.

Pálpebras é um filme para ser assistido com todo o corpo. Lembrar-se dele é como se lembrar da infância e não saber aquilo que é memória e aquilo que é imaginação. Seu uni-verso é o da possibilidade. Baltazar se diz um homem a serviço da busca, e ao criar Pálpe-bras repensou o silêncio, aquele breve silên-cio após o abrir de olhos.

ILUSTRAçãO yANNET BRIGGILER

FOTOS DIVULGAçãO

Page 13: ABRIL/2014 ISSN 2237-9576 · curso, e codirigiu os curtas O jardim das veredas que se bifurcam e Snuff. marcelO eSteVeS | Roteirista e professor de rotei-ro. Trabalha como supervisor

cade

rno

de p

rodu

ção

24 deSenhO de clêniO de SOuSa