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HELDER GONÇALVES LIMA ACHEGAS A UMA TEORIA GERAL DO FATO JURÍDICO COOPERATIVO: FUNDAMENTOS PARA A DELIMITAÇÃO DO PARADIGMA JURÍDICO RELATIVO AO TRATAMENTO CONSTITUCIONAL TRIBUTÁRIO DAS COOPERATIVAS MESTRADO EM DIREITO PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO SÃO PAULO – 2006

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HELDER GONÇALVES LIMA

ACHEGAS A UMA TEORIA GERAL DO FATO JURÍDICO

COOPERATIVO: FUNDAMENTOS PARA A DELIMITAÇÃO DO

PARADIGMA JURÍDICO RELATIVO AO TRATAMENTO

CONSTITUCIONAL TRIBUTÁRIO DAS COOPERATIVAS

MESTRADO EM DIREITO

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

SÃO PAULO – 2006

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HELDER GONÇALVES LIMA

ACHEGAS A UMA TEORIA GERAL DO FATO JURÍDICO

COOPERATIVO: FUNDAMENTOS PARA A DELIMITAÇÃO DO

PARADIGMA JURÍDICO RELATIVO AO TRATAMENTO

CONSTITUCIONAL TRIBUTÁRIO DAS COOPERATIVAS

Dissertação apresentada à Banca

Examinadora da Pontifícia Universidade

Católica de São Paulo, como exigência parcial

para a obtenção do título de MESTRE em

Direito do Estado (subárea: Direito

Tributário), sob a orientação do Professor

Doutor Roque Antonio Carrazza.

SÃO PAULO

2006

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BANCA EXAMINADORA

_____________________________________

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Para ser grande, sê inteiro: nada

Teu exagera ou exclui.

Sê todo em cada coisa. Põe quanto és

No mínimo que fazes.

Assim em cada lago a lua toda

Brilha, porque alta vive.

Fernando Pessoa

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Agradecimentos

Há muito o que agradecer e são em número maior ainda os merecedores de

meus agradecimentos. Ainda lembro do misto de euforia e medo que tomou de assalto meu

espírito quando, finalmente, soube que havia conseguido entrar – após longo e dificílimo

processo de seleção – no Mestrado em Direito Tributário da PUC de São Paulo. Pouco

depois, em pleno carnaval(!), aportava nesta cidade – em tudo e por tudo diferente de

minha quente Maceió. São mesmo inúmeros os responsáveis por esta jornada.

Nesse árduo e gratificante caminho (só os que o fizeram entenderão), o tempo

passou, ora arrastado, ora apressado demais. Os obstáculos assumiram matizes tão variados

como jamais os imaginamos. Nunca os superaríamos sozinhos. O maior deles, só me

arrisquei a transpor porque, junto a mim, também o fez minha família: a distância – e a

saudade (absurda) que teima em vir com ela. Impossível não agradecer, primeiro, a Deus; e

a meus pais, o Sr. Olavo e a Dra. Eva (painho e mainha), e a meus irmãos, Elka e Érico,

não por isso, mas por tudo – o passado e o porvir. Sou grato à minha Keyla, por cuidar de

mim, e por exercitar tão prazerosamente o dom de me fazer feliz.

O fato é que, longe de casa, senti-me quase maternalmente acolhido pela voz

doce da Professora Beth (Carrazza) – que talvez nem saiba o quanto me ajudou.

Com o Professor Roque (Carrazza) aprendi mais do que sobre o direito.

Aprendi sobre humildade e generosidade. Isso é que é verdadeira orientação! Sinto falta de

ouvi-lo contar suas histórias.

Agradeço, em especial, ao Professor Renato (Becho), a quem sempre chamarei

assim e, por nenhum dia a menos, de meu amigo. Decerto, ninguém fora tão aperreado por

mim ao longo desses anos como ele. Sempre ali. Confiança e incentivo do começo ao fim.

Tive a honra de conviver com grandes pessoas, que também eram professores.

O Professor Celso (Campilongo), que uma vez ensinou que o importante é termos vocação

para a vida acadêmica – que está para muito além das universidades. O Professor Paulo (de

Barros) e sua elegância científica. Tive lições de amizade com os amigos que deixei em

Maceió (“os cara”) e com aqueles que fiz em São Paulo (na PUC e na “Pensão da D.

Teresa”). Rendo meus agradecimentos e admiração, sobretudo, aos fantásticos professores-

assistentes do (meu) mestrado: Thaís, Julcira (Tributário I), Tácio (Lógica), Guilherme

(TGD), Eurico e Robson (Tributário III). Estendo-os aos solícitos funcionários da PUC.

Obrigado Mestres Gabriel Ivo e Marcos Mello (UFAL). Devo-lhes muitíssimo!

Agradeço, aliviado e feliz, enfim, ao CNPq, pela abençoada bolsa de estudos.

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RESUMO

A análise empreendida neste trabalho enfoca o fato jurídico cooperativo.

Investiga-se o conjunto de normas jurídicas, constitucionais e infraconstitucionais,

relacionadas com a matéria tributária cooperativa. Parte-se de premissas eleitas nas sendas

da Filosofia e da Teoria Geral do Direito para a construção e desenvolvimento de um

paradigma jurídico cooperativo, de modo a delimitar o campo das normas válidas regentes

da matéria cooperativa no ordenamento jurídico brasileiro. Constatação das mais

importantes feitas aqui diz respeito à existência de princípios constitucionais

especificamente cooperativos. O papel dos princípios jurídicos cooperativos foi destacado,

assim como seu papel na construção e aplicação das demais normas jurídicas.

Demonstrou-se que as normas e princípios jurídicos cooperativos,

constitucionais ou não, delineiam um arquétipo jurídico singular para as sociedades

cooperativas, diferençando-as claramente das demais espécies de sociedades, máxime as de

caráter mercantil. De fato, o móvel das cooperativas é um desígnio que vai para além do

aspecto econômico, sendo socioeconômico.

Foi visto que é possível erigir o conceito de cooperativas a partir da

Constituição e, também, que em razão de suas características únicas, as cooperativas

exercem um agir específico, o que denominamos por atuação cooperativa. Entendemos que

as cooperativas, do ponto de vista de sua compostura jurídica, não se descaracterizam em

sua atuação empresarial múltipla. Isto porque não se despem de suas características

singulares, nem agem à margem dos princípios jurídicos que as regem.

Sob o aspecto da definição de “ato cooperativo”, ficou evidenciada a

deficiência desta ambígua expressão (largamente utilizada pela doutrina nacional e

estrangeira), partindo-se para a construção de uma Teoria do Fato Jurídico Cooperativo,

com a definição de categorias como: ato jurídico cooperativo e negócio jurídico

cooperativo.

O trabalho logrou, ademais, emprestar uma nova interpretação – com base nos

pressupostos declinados – a letra do art. 146, III, c, da Constituição. E, por fim, não nos

furtando ao caráter pragmático que informou toda a produção científica deste trabalho, fez-

se análise crítica da realidade enfrentada pelas cooperativas no Superior Tribunal de

Justiça.

Palavras-chave: fato jurídico; negócio cooperativo; princípios

constitucionais; paradigma jurídico; tratamento constitucional tributário; cooperativas.

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ABSTRACT

The analysis undertaken in this essay focuses on cooperative legal fact. The

set of constitutional and infraconstitutional rules of court related to

cooperative tax matter are investigated. Starting off from premises elected

on the footpaths of Philosophy and General Theory of Law for the

construction of a cooperative legal paradigm, so as to delimit the range of valid current

rules of court of the cooperative matter in brazilian legal order. Verification of the most

important ones done here refers to the existence of specifically cooperative constitutional

principles. The role of cooperative constitutional principles was stressed so as their role in

the aplication of the other law´s rules.

It was shown that the cooperative rules and principles of law, constitutional or

not, delineates a unique archetype of court for cooperative partnerships, clearly

differentiating them from other kinds of partnerships, mostly of mercantile nature. In fact,

the cooperative cause is a plan which goes beyond economic aspect, being therefore

socioeconomic.

It was seen that it is possible to erect a concept of cooperations from the

constitution and, also, that as a consequence of their unique characteristics, cooperations

practice a specific acting, which we name cooperative act. We understand that the

cooperations, in the point of view of their legal composure, do not lose their characteristics

in their multiple enterprising act. This is so because they do not lose their unique

characteristics, or act on the edge of the principles of court which rules them.

Under he aspect of the definition of “cooperative act”, the deficiency of this

ambiguous expression (widely used by the national and foreign doctrine) was proven,

starting off to the construction of a Theory of the Cooperative Legal Fact, with the

definition of categories such as: cooperative legal act and cooperative business.

The essay has reached, besides this, to lend a new interpretation (based on

declined presumptions) to the letter of the article 146, III, c, of the Constitution. And, last

but not least, not stealing from us the pragmatic character which has informed all the

scientific production of this essay, a critical analysis of the reality faced by the

cooperations in the Superior Court of Law.

Key-words: legal fact; cooperative business, constitutional principles; legal

paradigm; tax constitutional treatment; cooperations.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO................................................................................................................. 12

CAPÍTULO I

A SUPERAÇÃO DO PARADIGMA EPISTEMOLÓGICO DA FILOSOFIA DA

CONSCIÊNCIA PELA FILOSOFIA DA LINGUAGEM: DOGMÁTICA JURÍDICA

MODERNA E INTERPRETAÇÃO DO DIREITO............................................................ 17

1.1 – Dogmática Jurídica e Modernidade: fundamentos do direito dogmático

moderno............................................................................................................................... 17

1.1.1 – A Modernização do Direito Dogmático........................................................... 19

1.1.2 – Contornos do Moderno Direito Dogmático..................................................... 20

1.2 – O Paradigma Epistemológico da Modernidade: o racionalismo científico e os limites

interpretativos que defluem daí........................................................................................... 23

1.3 – Superação da Dicotomia Sujeito-Objeto e a Filosofia Hermenêutica........................ 25

1.4 – O Giro Lingüístico e o Abandono das Essências na

Filosofia................................... 27

1.5 – O Giro Lingüístico da Filosofia e a Interpretação do Direito ou de como o Direito é

Construído pela Interpretação............................................................................................. 32

1.6 – Do Texto à Norma...................................................................................................... 33

1.7 – A Interpretação dos Textos Legais e a Busca pela Essência da Norma Jurídica pelo

Imaginário dos Juristas na Dogmática Contemporânea: uma crítica

necessária............................................................................................................................. 38

1.8 – Breve Noção acerca da Distinção entre Direito Positivo e Ciência do Direito.......... 43

CAPÍTULO II

APONTAMENTOS ACERCA DE UMA TEORIA SOBRE O PAPEL DOS PRINCÍPIOS

NA EVOLUÇÃO DA CONSTITUIÇÃO E DO DIREITO................................................ 46

2.1 – A Supremacia da Constituição................................................................................... 46

2.1.1 – Relação entre Constituição e Realidade Social................................................ 46

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2.1.2 – Supremacia Constitucional e suas Conseqüências Intra-sistêmicas................

47

2.2 – Os Princípios Jurídicos Constitucionais..................................................................... 51

2.2.1 – A Norma Jurídica Principiológica.................................................................... 51

2.2.2 – Definição Semântica de Princípio Jurídico e Questões Afins.......................... 54

2.2.2.1 – Conceito de Princípio............................................................................ 54

2.2.2.2 – Hierarquia, Função e Peso Axiológico Contingente............................. 57

2.2.3 – Princípios Constitucionais como Diretrizes do Sistema.................................. 61

2.2.4 – Os Princípios Constitucionais, a Interpretação e a Aplicação do Direito: síntese

de uma relação..................................................................................................................... 62

2.3 – Da Dúplice Função dos Princípios Constitucionais no Processo de Evolução da

Constituição e do Direito: fundamento e limite.................................................................. 65

2.3.1 – Interpretação Evolutiva no Contexto do Texto Normativo.............................. 65

2.3.2 – Limite da Evolução ou de como os Princípios Jurídicos Limitam

(relativamente) a Interpretação do Direito.......................................................................... 68

CAPÍTULO III

FUNDAMENTOS TEÓRICOS DO ARQUÉTIPO JURÍDICO DAS COOPERATIVAS: A

COMPLEXIDADE DO REFERENCIAL COOPERATIVO NA CONSTITUIÇÃO E NA

LEI....................................................................................................................................... 72

3.1 – Prolegômenos............................................................................................................. 72

3.2 – Analítica do Disciplinamento Constitucional e Infraconstitucional da Matéria........ 73

3.2.1 – Contexto Normativo......................................................................................... 73

3.2.2 – Cooperativas na Constituição Federal.............................................................. 74

3.2.3 – Cooperativas e o Código Civil......................................................................... 79

3.3 – Sobre o Conceito de Cooperativa............................................................................... 83

3.3.1 – A Título de Premissa........................................................................................ 83

3.3.2 – A Cooperação em Cooperativa........................................................................ 84

3.3.3 – Traços de um Conceito.................................................................................... 87

3.3.4 – Conceito de Cooperativa na Doutrina e na Lei................................................ 89

3.3.5 – Nosso Conceito de Cooperativa ou de como se Constrói tal Conceito Através

de uma Hermenêutica Orientada para a Constituição......................................................... 93

3.3.5.1 – A Cooperativa como Chave de Abóbada do Cooperativismo............... 95

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3.4 – Sobre as Características das Cooperativas: cotejo do código civil com a lei das

cooperativas......................................................................................................................... 97

3.5 – Dupla Qualidade: o sócio/tomador de serviços da cooperativa............................... 103

3.6 – As Sobras na Atividade Cooperativa e a Inexistência do Lucro.............................. 106

3.6.1 – Sobras e a Variabilidade (possível) de seu Conteúdo Semântico.................. 110

3.6.2 – Disciplinamento Legal das Sobras e do Prejuízo........................................... 111

3.6.2.1 – Analítica Crítica do art. 1.094, VII, do Código Civil.......................... 112

3.7 – Princípios Jurídicos Gerais do Cooperativismo....................................................... 118

3.7.1 – Princípios Gerais da Democracia e da Solidariedade Cooperativa................ 119

3.7.1.1 – Princípio da Democracia Cooperativa................................................. 119

3.7.1.2 – Princípio da Solidariedade Cooperativa e Alguns de seus

Desdobramentos................................................................................................................ 122

3.7.2 – Princípio das Portas Abertas.......................................................................... 125

3.8 – Os Princípios Cooperativos para a ACI................................................................... 128

CAPÍTULO IV

TEORIA GERAL DO FATO JURÍDICO COOPERATIVO........................................... 132

4.1 – Introdução................................................................................................................. 132

4.2 – Apontamentos sobre o Conceito de Ato Cooperativo.............................................. 133

4.2.1 – O Falso Problema do Conceito Legal de Ato Cooperativo: crítica à definição

legal e a sua anuência (acrítica) por parte da doutrina e dos tribunais.............................. 134

4.2.2 – Ato Cooperativo: questão terminológica....................................................... 139

4.3 – O Fato Jurídico Cooperativo na Doutrina: da necessidade de uma crítica da razão

ingênua na definição de “ato cooperativo”....................................................................... 142

4.4 – O Fato Jurídico Cooperativo e o Agir Cooperativo: atuação em cooperativa e atuação

da cooperativa................................................................................................................... 149

4.4.1 – O Ato Jurídico Cooperativo........................................................................... 152

4.4.2 – O Negócio Jurídico Cooperativo.................................................................... 155

4.4.2.1 – A Atuação Cooperativa no Mercado ou de Como a Cooperativa não é

uma Terceira Coisa entre o Associado e o Mercado......................................................... 155

4.4.2.2 – A Atuação em Cooperativa no Mercado para a Realização do Negócio

Jurídico Cooperativo......................................................................................................... 159

4.5 – Ainda o Fato Jurídico Cooperativo.......................................................................... 167

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4.6 – Negócios com Não-associados................................................................................. 169

4.7 – A Atuação da Cooperativa....................................................................................... 173

4.7.1 – Negócios Empresariais................................................................................... 175

4.7.2 – Negócios Complementares............................................................................ 176

CAPÍTULO V

EXEGESE DO “ADEQUADO TRATAMENTO TRIBUTÁRIO AO ATO COOPERATIVO”

OU SOBRE O TRATAMENTO TRIBUTÁRIO CONSTITUCIONAL DA ATUAÇÃO

COOPERATIVA............................................................................................................... 178

5.1 – Primeira Aproximação ............................................................................................ 178

5.2 – Paradigma Jurídico-interpretativo Constitucional.................................................... 182

5.2.1 – A Norma Jurídica Principiológica Prescritiva de Incentivo e Estímulo ao

Cooperativismo................................................................................................................. 185

5.2.2 – Princípio Constitucional da Solidariedade: o ponto de intersecção com o

cooperativismo.................................................................................................................. 187

5.3 – Ainda o Paradigma Jurídico-interpretativo.............................................................. 190

5.4 – O Microcosmo Cooperativo e sua Autopoiese......................................................... 192

5.5 – O “Adequado Tratamento Tributário ao Ato Cooperativo”: a doutrina.................. 194

5.6 – A Crise de Paradigmas de Dupla Face do Modelo Teórico Cooperativo................ 200

5.7 – Nossa Posição........................................................................................................... 202

5.7.1 – Nova Aproximação........................................................................................ 202

5.7.2 – O Tratamento Constitucional Tributário da Atuação Cooperativa................ 204

5.8 – Os Tribunais e a Alopoiese Cooperativa.................................................................. 209

CONCLUSÕES............................................................................................................... 218

BIBLIOGRAFIA............................................................................................................. 231

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INTRODUÇÃO

Neste trabalho nos propomos a construir uma Teoria Geral do Fato Jurídico

Cooperativo, abandonando a ambígua expressão “ato cooperativo”, em favor de novas

categorias jurídicas como: ato jurídico cooperativo e negócio jurídico cooperativo. No

curso desse desiderato apresentamos os fundamentos de um paradigma jurídico

cooperativo fundamentalmente alicerçado na Constituição, de modo a demonstrar que é

possível, inclusive, construir um conceito de cooperativa a partir de normas e

princípios constitucionais cooperativos. Por força da injunção desse amplo espectro

normativo, erigido ao patamar de paradigma (jurídico e interpretativo), chegamos à

conclusão de que o “adequado tratamento tributário ao ato cooperativo” se traduz,

antes e acima de tudo, no reconhecimento de que a Constituição já prescreve as linhas

mestras do que denominamos por tratamento constitucional tributário da atuação

cooperativa.

O interesse científico pelo tema das cooperativas já nos animava o espírito

desde que cursávamos a Faculdade de Direito da Universidade Federal de Alagoas

(UFAL), onde tivemos a oportunidade de desenvolver uma monografia (inédita) de

conclusão de curso acerca do ato cooperativo e sua tributação. Já ali dávamos conta,

v.g., da insubsistência jurídica de se relegar ao negócio feito com o mercado uma

posição menor e marginal dentro do (didaticamente considerado) sistema cooperativo.

Noção esta que é madurecida aqui (capítulo IV).

O fato é que o cooperativismo brasileiro e, sobretudo sua tributação,

perfazem inesgotável complexidade, fruto de seu intrincado e peculiar arquétipo

jurídico, e, também, da insuspeita fluidez semântica assumida por suas categorias

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jurídicas no curso incessante da atuação concreta de cada uma das diferentes espécies

de cooperativas. É essencial eleger a Constituição como ponto de partida cognoscitivo

– pois há normas e princípios jurídicos cooperativos constitucionais que precisam ser

reconhecidos. Feito isto, ter-se-á dado o primeiro passo no sentido das infinitas

possibilidades do tema. A tarefa não é fácil. Mas ela nunca é. E ao invés de arrefecer

nossos ânimos, tal perspectiva só nos anima ainda mais a enfrentá-la.

Pois bem. Na edificação de uma Teoria Geral do Fato Jurídico

Cooperativo, que culminou na verificação do tratamento tributário constitucionalmente

prescrito às cooperativas no seu agir próprio, diversas etapas foram realizadas. Assim é

que esta dissertação se encontra sistematicamente dividida em cinco capítulos.

No primeiro capítulo, lançamos olhar crítico sobre a dogmática jurídica

contemporânea e suas bases filosóficas, para demonstrar a obsolescência de seus

pressupostos e como, de há muito, o paradigma epistemológico da filosofia da

consciência – que (ainda) a sustenta – foi superado pela filosofia da linguagem.

Investigamos, assim, o papel que a interpretação exerce no direito e como a insistência

pela busca de essências, inclusive no direito cooperativo, tem obliterado seu progresso.

Assumindo a premissa de que a linguagem é condição de possibilidade para o ser-no-

mundo, apontamos a distinção havida entre o texto e a norma jurídica – que é

construída pelo intérprete –, e as conseqüências que estas posturas cognoscitiva e

filosófica trazem para a interpretação do direito.

No segundo capítulo, dedicamo-nos ao estudo dos princípios

constitucionais. Analisando questões como sua função e o aspecto contingente de sua

criação pelo intérprete, adentramos a intimidade da dinâmica jurídica constitucional

para lograr surpreender o papel decisivo exercido pelos princípios constitucionais na

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interpretação, aplicação e evolução do direito. A influência dessas constatações se fará

sentir ao longo de todo este labor cognoscitivo, no qual se procura imprimir uma

interpretação evolutiva no trato (constitucional) do cooperativismo.

O terceiro capítulo se presta a gizar um arquétipo jurídico, constitucional e

infraconstitucional, que sirva de paradigma para a construção e aplicação das

categorias cooperativas. O próprio conceito de cooperativa, como demonstramos, pode

ser construído a partir da Constituição, e se nos afigura como a viga fundamental do

sistema cooperativo. Também são minudentemente analisados os traços jurídicos

fundamentais das cooperativas (como a solidariedade e seu objetivo socioeconômico),

os princípios jurídicos cooperativos e os principais desdobramentos que defluem daí. A

distinção havida entre este singular modelo societário e os demais é sublinhada.

No quarto capítulo pelejamos propriamente com a construção de algo como

uma Teoria do Fato Jurídico Cooperativo, com estribo nos referenciais teóricos

manejados até este ponto. De pronto, denunciamos o falso problema do conceito de ato

cooperativo posto no art. 79 da Lei n° 5.764/71, para, logo em seguida, apontar as

vicissitudes da expressão “ato cooperativo”, propondo sua superação. Ademais,

analisando a atuação cooperativa, demo-nos conta de que a mesma pode ser de duas

espécies: atuação em cooperativa e atuação da cooperativa. Da primeira exsurge o fato

jurídico cooperativo, que pode ser ato jurídico cooperativo ou negócio jurídico

cooperativo. Neste último temos a relação com o mercado, dentro de certas condições.

No quinto e derradeiro capítulo, tratamos da exegese possível da expressão

“adequado tratamento tributário ao ato cooperativo praticado pelas sociedades

cooperativas”, esculpida na dicção do art. 146, III, c, da Constituição. Para tanto,

alçamos ao paradigma jurídico que informa o arquétipo cooperativo dois princípios

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constitucionais, sendo um especificamente cooperativo e um outro que serve de ponto

de intersecção por excelência entre o cooperativismo e a Constituição. Tudo isso nos

serviu para a constatação de que a Magna Carta já prescreve como deve ser o

tratamento constitucional da atuação cooperativa (e não só do fato jurídico

cooperativo). Vimos, por fim, que, por desconsiderar esta circunstância, assim como o

amplo paradigma jurídico constitucional e infraconstitucional cooperativo, os tribunais

(e também parte da doutrina) têm priorizado um enfoque descontextualizado e,

portanto, em dissonância, especialmente, com as normas e princípios constitucionais

cooperativos.

Sublinhe-se que, apesar de sua atualidade, e da polêmica que seu debate

suscita, pouco se tem avançado no estudo da tributação da (complexa) atuação

cooperativa no país, mercê da rarefeita produção científica realizada sobre o tema – que

se desenvolve muito aquém das exigências e do crescimento do modelo societário

cooperativista na economia (do Brasil e do mundo).

Algumas premissas básicas pontuam cada linha do labor cognoscitivo

desenvolvido aqui: primeiro, o caráter crítico do trabalho científico, seja em relação à

ciência produzida pela dogmática no Brasil (ou fora dele), seja na análise do próprio

direito positivo (como intérpretes críticos). Afinal, cremos que fazer ciência é, antes de

tudo, fazer crítica (e autocrítica). É lembrar que não existem verdades – nem mesmo as

nossas.

Assim, não há verdades neste trabalho, mas possibilidades interpretativas

cientificamente elaboradas. E, como todas as construções humanas, as nossas estão

suscetíveis ao erro – este elemento que também é necessário ao progresso da ciência.

Melhor errar, pensamos, que comodamente repetir o que já foi dito, ou nos esconder

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atrás de tautologias e “verdades” superficiais. Só não há equívoco ali onde se faz sentir

a anestesia do que SOUTO MAIOR BORGES chamou de “imobilismo intelectual”1.

Por fim, calha frisar que não esgotamos nesta singela dissertação o tema

cooperativo. Nunca o almejamos. Tentamos, apenas, lançar um olhar crítico sobre esta

temática – especialmente, procuramos assumir um ponto de vista a partir da

Constituição –, o mais possível em consonância com os postulados assumidos da

Teoria Geral do Direito e da Filosofia do Direito. Talvez, ao menos nas premissas

eleitas e categorias manejadas, vá algo de novo. Certo é que não pretendemos

solucionar definitivamente os problemas enfrentados. Mas, tão-só, oferecer novas

variáveis para a análise da problemática cooperativista, promovendo o bailar de idéias

que anima e, primordialmente, engrandece a ciência.

Ditas estas palavras introdutórias, resta-nos convidar o leitor para a leitura.

Vamos ao texto!

1 Ciência Feliz, op. cit., p. 21.

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CAPÍTULO I

A SUPERAÇÃO DO PARADIGMA EPISTEMOLÓGICO DA

FILOSOFIA DA CONSCIÊNCIA PELA FILOSOFIA DA

LINGUAGEM: DOGMÁTICA JURÍDICA MODERNA E

INTERPRETAÇÃO DO DIREITO

1.1 - Dogmática Jurídica e Modernidade: fundamentos do direito dogmático

moderno

O conceito de modernidade é de difícil conformação, mercê de poder ser

encarado sob os mais diversos prismas. Assim, impõe-se a necessidade de

promovermos um corte epistemológico para circunscrever o conceito de modernidade

em sua particular relação com o direito.

Fixada essa premissa, temos que a sociedade moderna se caracteriza por

um grau de complexidade tamanho que as diversas ordens normativas componentes do

tecido social podem ser suficientemente diferençadas. O direito, então, alcança alto

nível de complexidade e organização como ordem normativa voltada para a conduta

humana. Nesses termos, quanto maiores forem os seus graus de complexidade e

organização, mais moderna será a sociedade2.

2 JOÃO MAURÍCIO ADEODATO, Ética e Retórica: para uma teoria da dogmática jurídica, p. 205 ss.

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Dessa forma, o direito se distingue de outras ordens normativas (como a

religião ou a moral) com as quais era confundido. Nas sociedades primitivas um ato era

considerado ao mesmo tempo um crime, um pecado e uma imoralidade.

A superação das posturas jusnaturalistas (aí incluídas as verdades

absolutas/universais) proporciona os meios para uma positivação (dogmatização) do

direito, que atinge seu ápice com o advento do Estado de Direito3. As idéias que

subjazem ao movimento pela positivação/codificação podem ser resumidas assim:

necessidade de pôr ordem ao caos do direito primitivo e dotar o Estado de um

instrumento eficaz para interferir na ordem social4.

Eis que a legislação aparece como contranota ao direito casuístico e

individualista, com suas normas gerais postas pelo poder soberano da sociedade.

Ademais, esta só poderia ser modificada através do desenvolvimento das leis que a

regem. E estas leis deveriam ser postas racionalmente pelo poder soberano,

legislativamente. O direito, assim, representa um modelo que se quer a sociedade

assuma.

Vejamos os desdobramentos dessa modernização e suas conseqüências

sobre o modo como o direito é visto.

3 Já nos idos dos séculos XVI a XVIII, o direito se torna cada vez mais direito escrito, o que resulta numa mudança na forma como o direito era concebido e conhecido. Ainda aqui estava presente a tensão entre normas escritas e costumes como fontes do direito. Com o advento do Estado Moderno (a partir do Estado Absolutista) há a concentração do poder de legislar nas mãos do Estado e a lei escrita assume papel privilegiado, abrindo as portas para uma acepção de direito como norma posta. Só há se falar em direito dogmático, nos termos deste trabalho, quando se verifica a completa diferenciação entre o direito (esfera jurídica) e as demais esferas de normatividade social. TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JR., Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação, p. 72 ss. 4 Cf. NORBERTO BOBBIO, O Positivismo Jurídico: lições de filosofia do direito, p. 119 ss.

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1.1.1 - A Modernização do Direito Dogmático

Sobreleva-se a inferência de que alguns fatores assumem invulgar

relevância para que uma sociedade moderna possa, de fato, modernizar seu direito: o

primeiro deles é a pretensão do Estado de deter o monopólio da produção das normas

jurídicas. Essa é a grande novidade do positivismo e o grande diferencial do Estado

Moderno.

Todavia, esse monopólio não significa que só o Estado produz normas, mas

que só é direito (norma jurídica) aquilo por ele produzido ou o que admite seja

produzido5. Direito positivo, pois, é direito posto por ato de vontade soberana,

legislativamente.

A segunda característica é a posição destacada das fontes estatais de

produção do direito6 em detrimento das chamadas fontes espontâneas e extra-estatais

do direito, como, v.g., o costume.

A última, de fundamental importância, é a emancipação da ordem jurídica

em relação às demais ordens normativas sociais7, com estribo na noção de auto-

referência do sistema jurídico.

Como dito, em sociedades primitivas o direito se encontrava em íntima

relação com outros subsistemas sociais, e não se sabia onde o mesmo começava e

5 Nesse sentido: JOÃO MAURÍCIO ADEODATO, op. cit., p. 207; NORBERTO BOBBIO, para quem o monopólio da jurisdição foi a razão para o dogma da completude do sistema jurídico, pois “admitir que o ordenamento jurídico estatal não era completo significava introduzir um Direito concorrente, quebrar o monopólio da produção jurídica estatal. E é por isso que o a afirmação do dogma da completude caminha no mesmo passo que a monopolização do Direito por parte do Estado”. E pontifica: “a miragem da codificação é a completude: uma regra para cada caso”. In Teoria do Ordenamento Jurídico, p. 120 e 121. 6 Idem, ibidem, p.208. 7 Idem, ibidem, p. 209.

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terminavam a moral, a religião ou mesmo a economia. Havia uma indistinção entre o

jurídico e o não-jurídico. Por isso, decisões judiciais podiam ser concebidas com base

no que se achava justo ou moralmente correto, à margem do que a lei prescrevia.

1.1.2 – Contornos do Moderno Direito Dogmático

A evolução do modelo dogmático do direito caminhou no sentido de se lhe

emprestar autonomia, de modo que o sistema jurídico não sofresse a ingerência dos

demais subsistemas sociais. Autonomia, nesse passo, é entendida como auto-referência

do sistema jurídico – que pode ser traduzida em independência funcional em relação a

outros sistemas no contexto social em que inserido.

A auto-referência (autopoiesis, na perspectiva de NIKLAS LUHMANN8)

significa que os critérios que definem o código jurídico (lícito e ilícito) não são

determinados ou recebem a influência direta de fatores externos (outros modos de

organização social), em relação aos quais são independentes. Somente com base em

seus próprios elementos internos, ou seja, nas normas jurídicas, define-se o que é

juridicamente relevante.

Assim, conclui-se com MARCELO NEVES9 que “a positivação do Direito

na sociedade moderna implica o controle do código-diferença ‘lícito/ilícito’

exclusivamente pelo sistema jurídico, que adquire dessa maneira seu fechamento

8 O conceito de auto-referência, ou autopoiese, é um dos pilares fundamentais da Teoria dos Sistemas de LUHMANN. Para mais sobre essa interessante teoria aplicada ao direito, sugerimos, sem embargo de outros autores e obras, os escritos: Law as a Social System (Das Recht der Gesellschaft) e Sociologia do Direito I e II (Rechtssoziologie), do próprio LUHMANN. Também a obra monográfica de GUNTHER TEUBENER – um de seus mais importantes estudiosos –, O Direito como Sistema Autopoiético. No Brasil, as obras de CELSO FERNANDES CAMPILONGO e MARCELO NEVES, adeptos desse modelo teórico. 9 A Constitucionalização Simbólica, p. 119 e 120.

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operativo” (grifo no original). Ainda que em constante interação com os demais

subsistemas sociais (abertura)10. Destarte, o sistema jurídico até assimila fatores

externos (abertura cognitiva), mas de acordo com seus próprios critérios e sem

interferência direta desses fatores11.

Dentro da teoria (jurídica) de HANS KELSEN12, a auto-referência também

representa um conceito-chave. Porém, guarda algumas distinções em relação à teoria

(sociológica) de LUHMANN.

Auto-referência na teoria kelseniana se traduz na circunstância de que toda

norma jurídica é produzida e toma fundamento numa outra norma jurídica que lhe é

superior, e esta tem sua validade determinada por uma outra que em relação à mesma é

superior, e assim por diante. Até chegar à norma fundamental (grundnorm). Esta, o

pressuposto lógico-epistemológico que propicia o fechamento do sistema. A norma

(superior) que regula a produção de uma outra (inferior) é aplicada nesse processo.

Aplicação do direito, pois, é produção do direito para KELSEN13.

Nesse contexto, o direito dogmático moderno se funda em duas

características basilares (sem embargo de outras), quais sejam: a inegabilidade dos

pontos de partida14 e a obrigatoriedade de decidir15.

10 JOÃO MAURÍCIO ADEODATO, op. cit., p. 209. 11 MARCELO NEVES, op. cit., p. 120 e ss. 12 Acerca da auto-referência ou autofundamento do direito positivo na teoria kelseniana, que se traduz na sua própria regulação quanto a sua produção e aplicação, ver: Teoria Pura do Direito, p. 80; 257; 260 e ss. Ver também: LOURIVAL VILANOVA, Teoria da Norma Fundamental. In Escritos Jurídicos e Filosóficos, p. 312 e ss. 13 Teoria... op. cit., et passim, com atenção especial pra os capítulos V e VIII. 14 Cf. TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JR., Função Social da Dogmática Jurídica, p. 93 ss, e JOÃO MAURÍCIO ADEODATO, op. cit., p. 215. 15 Sublinha CELSO FERNANDES CAMPILONGO que é esta proibição do “non liquet”, derivada da noção de unidade do ordenamento jurídico – tão cara para a dogmática –, que confere fechamento operativo ao sistema do direito – com base no referencial teórico da teoria dos sistemas de Luhmann. Política, Sistema Jurídico e Decisão Judicial, p. 80 e 81.

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De acordo com a primeira característica, um argumento só será considerado

aceitável na medida em que se fundamente numa norma jurídica posta no sistema. Esta

(a norma jurídica) é o dogma.

A segunda característica fundamental é a proibição do non liquet, ou por

outros torneios, a obrigatoriedade de decidir. Em sendo assim, o Estado assume na

modernidade o mister inarredável de decidir todos os litígios submetidos à sua

apreciação, mercê de deter o duplo monopólio: jurisdição e violência. O juiz, então,

deve decidir, com base nos textos legais, todos os casos que chegam às suas mãos.

Eis que se nos apresenta a norma jurídica como instrumento legitimador da

decisão judicial, pois mesmo que o móvel da decisão não seja exclusivamente a norma

jurídica, ainda assim ela terá de ser assumida como fonte da decisão. A dita “realidade

jurídica” é o que conta. O fato é o que a norma diz dele.

Com efeito, os fatos não são dados puros da realidade, pelo que não se

confundem com os eventos16. Fatos são eventos com revestimento lingüístico e, assim,

constituídos em realidade (social, jurídica etc.). Um fato jurídico para a dogmática,

portanto, é o que a norma define como tal – muito embora o tema não seja tratado em

termos de análise do discurso.

16 Para aprofundar a distinção entre fato (enunciado protocolar denotativo) e evento (ocorrência sem revestimento em linguagem, que se perde no tempo/espaço), ver: TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JR., Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação, p. 251 ss.; e PAULO DE BARROS CARVALHO, Direito Tributário: fundamentos jurídicos da incidência, p. 85 ss.

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1.2 – O Paradigma Epistemológico da Modernidade: o racionalismo científico e os

limites interpretativos que defluem daí

Desde os idos da filosofia pré-socrática busca-se o sentido, ou o

significado, das coisas “em si”. A procura pela essência. Diversos foram os meios

utilizados para se atingir tal desiderato e várias foram as fontes filosóficas onde se

abeberaram os pensadores envolvidos nessa empresa ao longo do tempo17.

Com o advento do movimento filosófico conhecido como neopositivismo

lógico18, assume-se a noção de que algo só existe se pode ser empiricamente

verificável. Então, é construída uma racionalidade estrita, que identifica conhecimento

científico com demonstração matemática. Os modelos científicos que não se fundam

em comprovações empíricas são desprezados. Pretendia-se, pois, uma epistemologia

baseada em evidências demonstráveis, o que propiciaria um saber científico claro,

objetivo e rigoroso. É também a separação entre o sujeito e o objeto que proporcionará,

através do método, uma aproximação rigorosa o bastante para construir um saber

científico.

A busca pela verdade científica, nesse contexto, aparece como

característica do pensamento racional moderno. Com isso, objetivava-se romper com o

paradigma metafísico que jungia a ciência até então, com a noção de essências

universais. Porém, ainda segundo DARDO SCAVINO19, o pensamento científico

17 Cf. MARCOS VINÍCIO CHEIN FERES e MARCO ANTÔNIO SOUSA ALVES. Racionalidade ou razoabilidade? Uma questão posta para a dogmática, in Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, n. 39, p. 288. 18 Ver: LUIZ ALBERTO WARAT, O Direito e sua Linguagem, p. 37 ss. 19 Filosofia Actual: pensar sin certezas, p. 21 e ss.

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continuava a remontar à filosofia da consciência de KANT e DESCARTES,

prosseguindo com a tradição metafísica e das essências universais.

Obtempere-se, demais disso, que o racionalismo moderno trouxe à sirga

diversas conseqüências para o modelo jurídico, dentre as quais podemos citar a

identificação do raciocínio jurídico com a lógica formal, máxime quanto ao conhecido

silogismo judicial. Este modelo de interpretação jurídica era representado pela chamada

Escola da Exegese, doutrina vigorante no início do século XIX20. Funcionava assim:

atribuía-se à norma geral a posição de premissa maior e ao caso concreto o status de

premissa menor, enquanto a sentença judicial seria a conclusão necessária do

silogismo21.

Tal modelo de aplicação do direito implica o pressuposto de se tomar o

direito como um sistema completo, coerente e livre de lacunas ou contradições, bem

aos moldes do modelo dogmático-positivista.

Demais disso, emprestava-se aos intérpretes do direito, principalmente aos

juízes, a função de meros aplicadores mecânicos da lei. Caberia aos mesmos, tão-

somente, identificar o suporte fático abstrato da norma aplicável ao caso concreto

(suporte fático concreto22) e extrair daí a única interpretação possível. A interpretação

correta.

Nesses moldes racionalistas, limitava-se sobremodo a função do intérprete.

Esta ficava circunscrita à aplicação objetiva do direito, sem que para tanto

concorressem seus valores ou a possibilidade de novas interpretações, visto que havia,

20 Cf. NORBERTO BOBBIO, O Positivismo... op. cit., p. 34. 21 Ver: CHAIM PERELMAN, Lógica Jurídica, p. 2 e ss. 22 Para aprofundar o conceito de suporte fático, ver: FRANCISCO CAVALCANTI PONTES DE MIRANDA, Tratado de Direito Privado - Tomo I, p. 12 e ss. Ver também MARCOS BERNARDES DE MELLO, Teoria do Fato Jurídico - plano da existência, p. 39 ss e 89 ss.

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apenas, uma única e correta possibilidade interpretativa que lhe cabia aplicar.

Confirmava-se, assim, a isenção do sujeito ante o objeto – que já estaria posto no

mundo independentemente de qualquer circunstância –, nos termos do racionalismo

moderno.

1.3 - Superação da Dicotomia Sujeito-Objeto e a Filosofia Hermenêutica

A filosofia da consciência, como visto, partia do pressuposto de que o

sujeito se punha à frente do objeto para observá-lo, de modo que a linguagem seria

apenas uma terceira coisa entre o sujeito e esse objeto. Com a noção de que a

linguagem não é mero instrumento de aproximação do sujeito em relação ao objeto,

mas que o próprio estar-no-mundo depende da linguagem – que assim passa a ser

condição de possibilidade –, ocorre uma relativização do conhecimento.

O sujeito não está mais frente ao mundo, mas inserido nele, confundindo-se

com ele. As relações, então, se põem em termos de sujeito-sujeito, e não mais sujeito-

objeto. Essa nova concepção epistemológica rompe com a noção de que a linguagem

tão-só intermedeia a relação sujeito-objeto, como mero instrumento, que é uma

concepção metafísico-essencialista-ontológica do mundo. A linguagem passa a

constituir a própria realidade. Ficam para trás os dualismos metafísicos da tradição

grega como, v.g., aparência-realidade23.

Desde KANT se observa o rompimento com a acepção de sujeito

desvinculado do objeto, quando este apresenta o conhecimento limitado pelo próprio

23 Cf. LENIO STRECK, Hermenêutica Jurídica e(m) Crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito, p. 153 e ss.

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aparato cognoscitivo subjetivo24. As formas a priori da sensibilidade (tempo e espaço)

impedem o sujeito de apreender o mundo tal como ele é, fazendo do conhecimento algo

relativo ao sujeito.

Nesse contexto temos que a filosofia toma o conhecimento como algo

relativo ao sujeito cognoscente; insere, assim, o sujeito no mundo e toma-se o mundo

como criação do sujeito, em uma evidente oposição à objetividade. HUMBERTO

MATURANA25 salienta que para KANT havia um sujeito universal, não um sujeito

considerado como um ser único, inserido em um contexto social, psicológico ou até

mesmo biológico.

O paradigma epistemológico da filosofia hermenêutica, por seu turno,

insere o sujeito no mundo de forma que não só o sujeito constrói o mundo, mas, diante

da sua inserção no mundo, passa a ser moldado por este – na noção de ser-no-mundo

exposta por MARTIN HEIDEGGER26.

A noção heideggeriana de ser-no-mundo apresenta o sujeito – moldado

pelas circunstâncias do mundo em que inserido – condicionado ao conhecimento do

mundo pela linguagem. Esta – a linguagem – é o meio de acesso ao mundo, é condição

de possibilidade.

HANS-GEORG GADAMER27 – em seu projeto hermenêutico que

compartilha matrizes com HEIDEGGER – vai dizer ainda que, inserido que está na

linguagem (objeto cultural), num mundo lingüístico, o sujeito traz consigo sua história

e seus pré-conceitos. Assim é que a compreensão tem necessariamente um caráter

24 Cf. JOÃO MAURÍCIO ADEODATO, Filosofia do Direito: uma crítica à verdade na ética e na ciência, p. 30 e ss. 25 Ontologia da Realidade, p. 120 e ss. 26 Ser e Tempo - parte I, p. 89 ss. 27 Verdade e Método – Vol. I, p. 335 e ss.

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histórico. O ser somente se desvela na história apreendida pela linguagem. Isto porque

o sujeito está sempre forjado pela sua história, tendo já e sempre uma compreensão

prévia sobre o mundo. O acontecer do ser-no-mundo é o acontecer na história. Assim é

que a história é condição prévia do ser-no-mundo e a pré-compreensão é legada ao

homem pela tradição28. Ao homem, enfim, não é dado (no sentido de que não é

possível) livrar-se, objetivamente, de sua pré-compreensão.

Diante desse quadro exsurge a importância da linguagem para a

comunicação e para a compreensão/constituição do mundo e do papel do homem nesse

mundo em que inserido – e que o forja. O conhecimento, então, é relativizado e a

linguagem assumirá papel proeminente no processo cognoscente, com conseqüências

insuspeitas, até então, na maneira de conceber o mundo. Este movimento filosófico

ficou conhecido por giro lingüístico da filosofia29.

1.4 – O Giro Lingüístico e o Abandono das Essências na Filosofia

A filosofia do século XX, a partir do giro lingüístico30, transforma-se – na

expressão de KARL-OTTO APEL31. É por isso que MANFREDO OLIVEIRA32 vai

dizer, com APEL, que:

28 A tradição, entendida como objeto da pré-compreensão, que vem através da linguagem, é ponto fulcral da hermenêutica gadameriana. Ver seu Verdade e Método... op. cit., et passim. 29 Para mais sobre este importante movimento filosófico, seus precursores e protagonistas, ver: KARL-OTTO APEL, Transformação da Filosofia I – filosofia analítica, semiótica, hermenêutica, p. 10 e ss.; LENIO STRECK, op. cit., p. 186 e ss.; DARDO SCAVINO, Filosofia Actual... op. cit., p. 21 e ss.; MANFREDO ARAÚJO DE OLIVEIRA, Reviravolta Lingüístico-pragmática na Filosofia Contemporânea, et passim e RICHARD RORTY (ele próprio um dos expoentes da linha pragmática da filosofia da linguagem), in Esperanza o Conocimiento?, p. 43 e ss. 30 A expressão foi cunhada originalmente por RORTY (“linguistic turn”). HABERMAS utiliza a expressão “guinada lingüística”. “Reviravolta lingüística” é expressão de MANFREDO OLIVEIRA, enquanto LENIO STRECK prefere “viragem lingüística”. No fim das contas, todos se referem ao mesmo movimento filosófico e nós utilizaremos uma expressão ou outra, sem cair na armadilha de criar uma própria.

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(...) a Filosofia Primeira não é mais a pesquisa a respeito da natureza ou das essências das coisas ou dos entes (ontologia), nem tampouco a reflexão sobre as representações ou conceitos da consciência ou da razão (teoria do conhecimento), mas reflexão sobre a significação ou o sentido das expressões lingüísticas (análise da linguagem).

Ainda com HEIDEGGER, temos que a superação da metafísica, da busca

pelas essências, possibilita a visão da linguagem como abertura para o mundo,

constituindo nosso modo de ser-no-mundo, nossa condição de possibilidade para a

compreensão, que é totalidade. Essa compreensão faz o homem. Estamos, já, pois,

desde sempre, inseridos na linguagem. Não há compreensão sem linguagem, pois “o

compreender vem a ser algo que se pode explicar pela linguagem”33.

Não há se falar em ser fora da linguagem. A linguagem se apresenta como

condição-de-possibilidade para o ser-no-mundo (que é compreensão), donde se conclui

que não há mundo fora da linguagem. Neste sentido o raciocínio de LENIO

STRECK34:

A linguagem sempre nos precede; ela nos é anterior. Estamos sempre e desde sempre, nela. A centralidade da linguagem, é dizer, sua importância de ser condição de possibilidade, reside justamente no fato de que o mundo somente será mundo, como mundo, se o nomearmos, é dizer, se lhe dermos sentido como mundo. Não há mundo em si. O mundo e as coisas somente serão (mundo e coisas) se forem interpretados (como tais).

Com efeito, já não mais se crê seja travada uma relação entre palavras

(signos) e o objeto representado, mas entre significações. Sim, a linguagem já não se

projeta sobre um objeto que é no mundo, mas acerca de uma outra linguagem sobre o

31 Op. cit., p. 26 e ss. 32 Op. cit., p. 13. 33 LENIO STRECK, op. cit., p. 191. 34 Idem, op. cit., p. 193 e 194.

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mundo (interpretação), que é um ponto de vista sobre o mesmo. É nesse sentido que

DARDO SCAVINO35 assevera:

(...) nunca conocemos la cosa tal cual es fuera de los discursos que hablan acerca de ella y, de alguna manera la crean o la construyen. Siempre conocemos, según el lema nietzscheano, una interpretación o una versión de los hechos, y nuestra versión resulta a su vez una versión de esa versión.

Com efeito, a virada da filosofia para a linguagem muda os rumos do

conhecimento e também da ciência, que passam a ser pensados e trabalhados dentro de

um novo prisma. Para além disso, temos que essa virada não significou a abertura de

um novo campo de realidade a ser explorado pela filosofia, mas uma mudança da

maneira como a filosofia era vista e na forma de seu procedimento36.

Vemos que num primeiro momento apenas se deslocou da razão e da

consciência a referência de mundo, que passou para a linguagem, onde a ontologia do

real era substituída (por representações lingüísticas do real). A superação do

essencialismo ainda não era completa.

Os neopositivistas lógicos do Círculo de Viena (baseados, em bom termo,

nas teorias lógico-lingüísticas do primeiro WITTGENSTEIN – do Tractatus Logico-

philosophicus) pregavam que a linguagem ordinária era cheia de imprecisões e

ambigüidades, de maneira que somente uma linguagem precisa (num modelo lógico

único) – tendente à univocidade – seria instrumento hábil de conhecimento/descrição

do mundo37. Numa frase: só há ciência ali onde houver linguagem rigorosa. Ganha

prestígio a semiótica38.

35 Filosofia Actual... op. cit., p. 38 e 39. 36 Cf. MANFREDO OLIVEIRA, op. cit., p. 12. 37 Na obra Tractatus Logico-philosophicus WITTGENSTEIN elabora a teoria pictórica do significado, na qual a linguagem deve respeitar um modelo acabado para deter sentido. Nesse modelo a fórmula lógica da proposição deve corresponder à estrutura ontológica da realidade. O sentido (significação) é fixo, rígido, unívoco. Os termos proposicionais não só correspondem, como substituem os objetos na linguagem. Cf.

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A linguagem seria o único meio apto para a representação do real. E o

conhecimento do real se fazia por meio da ciência, cujo paradigma era o rigor

discursivo. Destarte, somente seria alçado a dignidade de enunciado aquilo que fosse

empiricamente verificável. Assim, reduziu-se a filosofia à epistemologia, e esta, à

semiótica39.

Porém, o movimento filosófico denominado por giro lingüístico não se

resume a essa concepção instrumentalista-designativa-objetivista da linguagem, no

dizer de STRECK40, observada – em parte – no primeiro WITTGENSTEIN.

Em momento ulterior, avulta-se a distância em relação à filosofia da

consciência e, finalmente, rompe-se com a tradição essencialista por inteiro, para dizer

que não há mundo em si, exterior à linguagem. Tudo é na linguagem, que deixa de ser

meio de comunicação do conhecimento para se tornar condição de possibilidade.

Reconhece-se, por fim, que o ideal de perfeição lingüística é um mito e,

então, rejeita-se o fetiche do ângulo lógico-sintático41 (e, ainda que menos, o

semântico) da linguagem para voltar as atenções, também, para o ângulo pragmático. A

NOEL STRUCHINER, Direito e Linguagem – uma análise da textura aberta da linguagem e sua aplicação ao direito, p. 24 e ss. 38 Semiótica é a teoria geral dos signos – basicamente. Estuda-se o signo em suas três dimensões: sintática (relação dos signos entre si); semântica (relação do signo com o objeto que ele representa) e pragmática (relação dos signos com os usuários). Cf. PAULO DE BARROS CARVALHO, O Neopositivismo Lógico e o Círculo de Viena, in Apostila de Filosofia I – Lógica Jurídica do Curso de Mestrado em Direito da PUC/SP, p.6. Divergimos do autor somente no que diz respeito à definição do plano semântico, porquanto entendemos que falar sobre uma relação entre o signo e o objeto importa em consideração do objeto em si, que seria exterior ao discurso, portanto. A relação, parece-nos, dá-se entre significações/sentidos. O signo só pode ser entendido assim porque há correlação entre expressão e significação. Para estudo profundo sobre semiótica, consultar: UMBERTO ECO, Tratado Geral de Semiótica, et passim. 39 LUIS ALBERTO WARAT, O Direito e... op. cit., p. 37. 40 Op. cit., p. 160. 41 A proposição sintaticamente perfeita para representar o mundo se punha, notadamente, em termos de precisão lógica. Sobre isso, e para além disso, concordamos com LOURIVAL VILANOVA quando este afirma a insuficiência do ângulo lógico-formal para dar conta da experiência jurídica. In As Estruturas Lógicas e o Sistema do Direito Positivo, p. 182.

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linguagem, então, não mais realiza uma representação substitutiva do real, mas,

efetivamente, constitui-o, além de deter outras funções no contexto comunicacional.

A inferência de que a linguagem tem sempre uma carga de

imprecisão/indeterminação é finalmente aceita. O foco agora são os usos da linguagem

nas situações concretas realizadas por seus usuários. O que está em voga é o contexto

socioprático em que se opera a comunicação42, ou seja, sua faceta pragmática. Um dos

expoentes dessa nova crítica é, de novo, WITTGENSTEIN, agora o segundo, da obra

“Investigações Filosóficas”.

Na obra do segundo WITTGENSTEIN surge o relevante conceito de jogos

de linguagem. Aqui, a comunicação se dá em função dos diferentes modos de uso e

sistemas de regras43 a que estão submetidos todos os que partilham uma linguagem,

enfim, um jogo44. E o correto (ou errado) emprego da linguagem, dentro do jogo, passa

a ser aquele entendido assim pela comunidade lingüística que a emprega45. É dizer:

quem define os empregos da linguagem é a própria comunidade lingüística em que

aquela é utilizada – uma vez postas as regras do jogo.

TÁREK MOYSÉS MOUSSALLEM46 ajuda a entender o conceito de jogo

com o seguinte exemplo:

Um juiz, ao se relacionar com sua família, habita uma linguagem (linguagem ordinária). O mesmo juiz, ao atuar em determinado processo judicial, habita uma

42 Cf. LENIO STRECK, op. cit., p.161. 43 Como observa ROBERT ALEXY, o conceito de jogos de linguagem remete ao conceito de regras. Mas isso não quer dizer que esteja tudo determinado, regrado. In Teoria da Argumentação Jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da justificação jurídica, p. 73 e ss. 44 Essa perspectiva lingüística afasta a idéia, ainda vigorante em alguns meios, de que é possível resolver o problema da significação das palavras tão-somente com a análise dos aspectos sintático e semântico. Tal questão deve ser resolvida levando-se em conta o contexto social e prático em que inserida. Numa expressão: a pragmática lingüística. 45 É o que se infere do ponto 241: “’Assim você está dizendo, portanto, que a concordância entre os homens decide o que é certo e o que é errado?’ – Certo e errado é o que os homens dizem; e se os homens estão concordes na linguagem.isto não é uma concordância de opiniões, mas da forma de vida” (grifos no original). LUDWIG WITTGENSTEIN, Investigações Filosóficas, p. 123. 46 Fontes do Direito Tributário, p.31.

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segunda linguagem (linguagem técnica). Ao lecionar Direito em uma Faculdade, habita uma terceira linguagem (linguagem científica), em tudo e por tudo diferente das duas primeiras.

Eis, por fim, que a linguagem já não é mais uma terceira coisa que se

interpõe entre o sujeito e o objeto. Não há acesso ao mundo mesmo (em si), mas há

algo tomado (interpretado) como mundo – não pelo sujeito individualizado, mas por

uma comunidade interativa de sujeitos. E a porta de acesso é a linguagem, que é

condição de possibilidade.

1.5 – O Giro Lingüístico da Filosofia e a Interpretação do Direito ou de como o

Direito é Construído pela Interpretação

Vimos que com a virada lingüística da filosofia já não cabe falar na

existência de essências, da coisa em si, como algo exterior ao discurso – como se

pregava na filosofia da consciência. As coisas o são porque interpretadas assim dentro

de um contexto histórico e socioprático.

O próprio direito (entendido aqui como conjunto de normas jurídicas

integrantes de um determinado ordenamento jurídico) não ficou alheio a essa mudança

de paradigma. Da mesma forma como a filosofia partiu de uma busca pelas essências

até chegar ao ponto em que hoje se encontra, também o direito experimentou as mais

diferentes abordagens.

Com efeito, o paradigma filosófico importa numa forma de abordar o

mundo, e o direito como objeto cultural – porquanto construído pelo homem para a

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realização de valores socialmente relevantes – componente deste mundo, recebe os

influxos destas abordagens.

Assim é que a dogmática jurídica se viu às voltas com uma busca pelas

essências do direito, no caso, pela essência da norma jurídica. O objeto de desejo da

dogmática era a norma em si, que estaria contida no texto legal e deveria ser libertada

pelo intérprete para, finalmente, ver exsurgir – descortinada – a verdadeira, a única

interpretação possível.

Para nós, esta forma de interpretar o direito não se sustenta, pelos

fundamentos expostos até aqui. A interpretação se nos apresenta como ato de criação.

A interpretação do direito é, pois, interpretação criativa47. Toda interpretação produz

um sentido, pelo que se conclui que o intérprete cria/constrói a norma jurídica e,

portanto, o direito – sempre dentro de um contexto histórico e de acordo com as regras

(do jogo) da comunidade lingüística em que atua.

1.6 – Do Texto à Norma

Todo texto há de ser interpretado, segundo o seu contexto amplo, pelo ser

cognoscente que sobre aquele se debruça. Interpretando um texto é que se lhe serão

atribuídos sentidos, pelo intérprete, e por mais ninguém. Eis o pensamento de

UMBERTO ECO48:

Poder-se-ia dizer que um texto, depois de separado de seu autor (assim como da intenção do autor) e das circunstâncias concretas de sua criação (e,

47 A expressão deve ser vista como redundante, e aqui é usada somente como recurso retórico para emprestar ênfase ao caráter criativo de toda interpretação. 48 Interpretação e Superinterpretação, p. 48.

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consequentemente, de seu referente intencionado), flutua (por assim dizer) no vácuo de um leque potencialmente infinito de interpretações possíveis.

Nesse diapasão, devem ser rejeitadas as tentativas de se descobrir o sentido

da norma, que estaria coberto. O ato de interpretação é ato de atribuição de sentido, não

de descoberta. Não há essências, nem verdades. A partir dos textos legais (enunciados

prescritivos, suportes físicos de significação) o intérprete atribui sentidos, significações

(proposições). Enfim, o processo hermenêutico/interpretativo tem caráter

construtivo/constitutivo, e não meramente reprodutivo. A conseqüência é que não há

uma única interpretação possível, ou correta.

A distinção entre texto e significação, ou a noção de que a interpretação

aponta diferentes sentidos possíveis, não é novidade. Tal constatação já fora

empreendida, de há muito, pelo próprio KELSEN49, que não confundia o texto legal

com suas significações porque constatara que as palavras não são unívocas. E esta

inferência é pedra angular de sua teoria, servindo de espeque para conceitos caros a sua

doutrina, como moldura, dinâmica normativa e auto-reprodução/aplicação do direito.

Retomemos o fio do raciocínio para afirmar que o intérprete do direito

constrói a norma jurídica e, em última análise, o próprio direito, quando se toma este

como o conjunto de normas jurídicas num ordenamento historicamente dado. Nesses

termos, a norma jurídica é o conjunto logicamente concatenado de significações

normativas construídas a partir dos textos legais. Portanto, norma jurídica não se

confunde com os enunciados textuais que lhe servem de mero suporte físico. De um

49 De fato, KELSEN procura romper com o racionalismo e os dogmas do positivismo (como: completude do sistema, legislador racional, a possibilidade de uma única solução correta etc.), pois defende, dentre outras coisas, que cada nova decisão cria direito novo, i.é, põe uma nova norma no sistema jurídico, que é, assim, mutável e dinâmico. A própria noção de moldura, em que estariam à disposição do aplicador as interpretações possíveis, dentre as quais (mas não necessariamente) uma deveria ser escolhida, deixa clara a posição do pensador de Viena. In Teoria Pura do Direito, et passim, com destaque para p. 98 ss; 217 ss; 264 ss e 387 ss.

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lado, temos o plano da expressão (suporte físico) e do outro, o plano do conteúdo

(significação).

O percurso gerativo de sentido, como bem sintetizado na lição de PAULO

DE BARROS CARVALHO50, percorre três estágios: (S1) o sistema da literalidade

textual, suporte físico empiricamente objetivado das significações, ponto de partida da

interpretação jurídica; (S2) o conjunto dos conteúdos de significação dos enunciados

prescritivos e, por fim, (S3) o conjunto logicamente articulado das significações

normativas, na forma de juízo implicacional.

Enunciado prescritivo, portanto, não é norma jurídica. Por outros torneios:

texto legal (suporte físico objetivado) não se confunde com a significação/proposição

construída a partir deste suporte físico – pelo intérprete, num processo complexo de

construção de significações individualizadas a partir de enunciados objetivados e, ato

contínuo, articulação lógica de tais significações.

Assim é que podemos construir uma norma (N) com base em vários

enunciados prescritivos (E), ou ainda, várias normas com base num enunciado só.

Recobrindo tal assertiva com o verniz da formalização lógica teríamos:

E’ + E” + En... N

Ou:

E’ N’; N”; Nn...

Para construirmos uma norma, v.g., de tributação das cooperativas,

recorremos a variados enunciados constantes da Constituição Federal, da legislação

infraconstitucional e, mais especificamente, da Lei n° 5.764/71 (Lei das Cooperativas).

50 Direito Tributário – fundamentos jurídicos da incidência, p. 59 e ss.

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Da mesma sorte, de um mesmo enunciado podemos extrair mais de uma norma

jurídica, mesmo uma norma-regra e uma norma-princípio.

O fato é que o legislador jamais usa, na práxis legislativa, a fórmula

implicacional completa de uma norma jurídica no enunciado textual que serve de base

para a sua criação. O desenho da norma jurídica, como juízo implicacional, é

construído pelo intérprete com base nos enunciados, emprestando-se-lhe tal

forma/fórmula.

Isso se faz notar com mais clareza ainda por quem considera que a sanção

compõe a estrutura da norma jurídica completa. A prescrição da sanção aparece, mais

das vezes, disposta num outro enunciado, seja parágrafo, inciso, alínea ou até outro

artigo do texto normativo. Ou até em outro texto.

De cada um dos enunciados, em verdade, conseguimos construir

fragmentos de significação normativa para a construção, final, da norma jurídica. É que

no processo gerativo de sentido as diversas significações dos enunciados mais variados

serão articuladas logicamente com outras para compor a norma jurídica em sua

completude estrutural.

Com efeito, deve ser superada a noção, ainda difundida na dogmática

moderna, de que à disposição textual corresponde a norma jurídica; pois “che si tratta

di una credenza fallace. Tra disposizioni e norme, corrispondenza biunivoca non si

dà”51.

Obtempere-se, por oportuno, que todo corpo de linguagem (enunciado)

comporta variadas significações, pois que a palavra não é unívoca, mas sempre

51 RICCARDO GUASTINI, Dalle Fonti alle Norme, p. 23.

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plurívoca, como nos lembra LENIO STRECK52. Complementaríamos o raciocínio para

dizer que as palavras, quase todas, são ainda vagas ou ambíguas53.

Exemplo disso é a expressão “adequado tratamento tributário ao ato

cooperativo”, disposta no art. 146, III, c, da Constituição. Cabe um sem-número de

sentidos no termo “adequado” e as interpretações daquele enunciado não são

convergentes (vide tópico 5.5). Isto posto, faz-se flagrante a importância da função do

intérprete e, para além disso, o avultamento dos desafios inerentes ao trabalho

hermenêutico.

Inobstante a problemática inerente ao fenômeno lingüístico, a

hipercomplexidade da sociedade moderna, por si só, impossibilita um engessamento do

sentido dos textos legais. O direito é mutável. Mesmo que haja homogeneidade

sintática e estabilidade dos enunciados positivos do direito, ainda assim se fará

invencível a heterogeneidade semântica e pragmática relativa aos mesmos.

A realidade, em toda a sua integridade constitutiva, é infinita e

inapreensível54. Dizer que o direito é mutável é dizer que o direito evolui no sentido de

querer alcançar a realidade e as expectativas normativas advindas daí. A interpretação

criativa (não reprodutiva) possibilita essa evolução do direito e representa mesmo a

condição de possibilidade do direito.

De bom alvitre salientar que, uma vez posta a distinção entre o suporte

textual objetivado e a norma jurídica construída pela interpretação, e asseverado que

52 Hermenêutica..., op. cit., p. 92. 53 Vaguidade é a qualidade da palavra que denota um campo de objetos não claramente definido. Ambígua é a palavra que pode ser usada em mais de um sentido, é dizer, é possível usá-la em relação a uma referência com diferente intensão (com s mesmo, não ç) ou conotação. 54 O universo social é uma multiplicidade contínua, heterogênea – mas em inter-relação, cf. LOURIVAL VILANOVA, Causalidade e Relação no Direito, p. 40.

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não há uma interpretação correta ou única, reclama elucidação a posição do intérprete

nesse contexto.

O intérprete – mercê de condicionamentos de ordem histórica, pragmática e

mesmo ideológica – é sempre parcial em sua interpretação.

É sempre nesse contexto amplo que o ser cognoscente analisará as

interpretações possíveis (tecendo espécie de moldura) e escolherá a que mais lhe

aprouver. Isto posto, exsurge clarividente o mito, v.g., do juiz imparcial – que jamais o

será.

À evidencia, a interpretação não pode ser neutra e objetiva, como alguns

acreditam ou pretendem fazer crer, mas fatalmente condicionada pelo contexto do texto

e daquele (histórico) em que se encontra mergulhado quem o interpreta.

1.7 – A Interpretação dos Textos Legais e a Busca pela Essência da Norma

Jurídica pelo Imaginário dos Juristas na Dogmática Contemporânea: uma crítica

necessária

Na filosofia, como visto, houve uma superação do paradigma

epistemológico da filosofia da consciência pela filosofia da linguagem. O direito

também experimenta tal mudança de enfoque nos mais diversos países. Contudo, no

Brasil, vivemos uma crise de paradigmas, conquanto boa parte de nossos juristas ainda

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se encontra presa a vetustos grilhões metafísicos em sua eterna e inglória busca pela

essência da norma jurídica, ou da única e correta interpretação do direito55.

Com efeito, a dogmática contemporânea, a exemplo do que ocorria ainda

no início do século XIX com a escola da exegese, continua à procura da única ou

correta interpretação do direito quando se depara com um caso/conflito concreto que

requeira solução. A crença de que a norma encerraria um sentido em si mesma pronto

para ser descoberto continua povoando o imaginário dos aplicadores do direito,

contribuindo para fomentar o senso comum teórico dos juristas56.

Os juristas se lançam na procura do sentido da norma em si cada vez que

empreendem a interpretação do texto legal. Interpretação esta que, nesse contexto,

afigura-se-nos como um procedimento de descoberta de sentido. Com isso queremos

dizer que o objetivo do jurista aqui é descortinar o sentido que a norma já contém, ou

seja, o fim pretendido é o de descobrir o significado do texto, como se tal sentido

estivesse escondido sob o véu das letras, envolucrado, por assim dizer – mas sempre

ali.

A letra legal conteria, segundo essa linha de pensamento, uma essência – a

norma jurídica. É como se o aplicador assumisse, por assim dizer, uma função de

contra-regras (como nos palcos), cabendo-lhe, apenas, puxar a cortina na hora certa,

trazendo à luz a verdadeira (e tímida) protagonista do espetáculo do direito: a norma

jurídica – desde sempre nas coxias.

55 Ateste-se que LENIO STRECK faz interessante relato sobre a não-recepção do giro lingüístico no Brasil, dando conta da crise hermenêutica havida em nossa doutrina e, também, nos tribunais – como não poderia ser diferente, in Hermenêutica... op. cit., et passim. 56 “De uma maneira geral, a expressão ‘senso comum teórico dos juristas’ designa as condições implícitas de produção, circulação e consumo de verdades nas diferentes práticas de enunciação e escritura do Direito. Trata-se de um neologismo proposto para que se possa contar com um conceito operacional que sirva para mencionar a dimensão ideológica das verdades jurídicas”, cf. LUIS ALBERTO WARAT, in Introdução Geral ao Direito – I: interpretação da lei. Temas para uma reformulação, p. 13 e ss.

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A busca pelos conteúdos intrínsecos do direito ainda gerou ramificações

outras. Com efeito, por muito tempo se difundiram as teorias objetivistas e subjetivistas

– e a polêmica havida entre elas –, de um lado se cogitando da vontade do legislador

(voluntas legislatoris) e, do outro, da vontade da lei (voluntas legis). E isto perdura até

os dias de hoje.

No primeiro caso citado, o que se propunha era (é) que o verdadeiro

sentido de um texto legal seria, tão-só, aquele que lhe quis imprimir o legislador. No

segundo caso, desvincula-se o sentido da lei da intenção do legislador, atribuindo-se-

lhe um sentido próprio que seria, pois, inerente à mesma, ou ao seu intuito. Seriam

esses os objetos da interpretação. Interessante notar que o ponto em comum nestas

teorias da norma em si, provinda da vontade da lei e do legislador, é que em ambas a

interpretação cumprirá sempre um papel revelador da verdade. Aqui, de fato, não há

(mais) uma norma, mas a norma jurídica.

Apesar de essas teorias (metafísicas) parecerem ultrapassadas, o fato é que

ainda hoje no Brasil a dogmática jurídica se presta à busca pela interpretação correta,

pelo verdadeiro sentido contido na lei57, pela norma em si, enfim, pela interpretação

última, já que a única (possível). Isso em todos os ramos do direito, inclusive no direito

cooperativo, onde se faz sentir com mais agudeza quando o assunto é o “conceito de

ato cooperativo” (conforme se verá, especialmente, no tópico 4.3 deste trabalho).

57 A título meramente exemplificativo de aplicações das teorias essencialistas na dogmática jurídica brasileira podemos citar: PAULO NADER, Introdução ao Estudo do Direito, p. 305 e ss; MARIA HELENA DINIZ, Compêndio de Introdução à Ciência do Direito, p. 384 e ss; e PAULO DOURADO DE GUSMÃO, Introdução ao Estudo do Direito, p. 250 e ss. Há três observações que merecem ser aqui postadas: em primeiro lugar, dizer que respeitamos a opinião destes e de outros autores que comunguem desse ideário, pois a crítica aqui vai como discordância, nunca como desmerecimento. Depois, cumpre observar que são inúmeros os exemplos na doutrina brasileira, pontuando todos os ramos do direito, nos mais variados graus de especialização dos trabalhos científicos, em maior ou menor proporção. E, por último, dizer que propositadamente citamos manuais de direito como exemplo, pois é lá onde, mais pujantemente, proliferam essas teorias. É desde muito cedo, portanto, que se constrói o senso comum teórico dos juristas.

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Sobreleva, destarte, a necessidade de afirmarmos que não nos parece

coerente admitir que o mero texto legal, inscrito num papel, ou coisa que o valha, possa

deter uma intenção ou vontade oculta, seja qual for a sua origem. Trata-se de se discutir

sobre uma essência mesmo, encapsulada no texto, pronta para ser descoberta,

porquanto já estaria contida ali. Tal entendimento implica, ainda, a premissa de que

haveria uma interpretação correta, ideal, mas só uma, intentada pelo legislador/lei ou já

contida no texto legal. Isto é metafísica, transcendentalismo mesmo, que não nos

convence como ciência.

Parece-nos, ademais, que seria altamente prejudicial ao direito deixar nas

mãos do legislador a determinação da correta interpretação a ser emprestada aos textos

legais, sobremodo da Constituição, que deveria, fosse assim, vir anotada e comentada

pelo poder constituinte e, portanto, restaria despiciendo falar em interpretação. Estaria

em voga o reinado do juiz boca da lei.

Para além disso a alusão a uma dita vontade da lei ou do legislador estaria

mais para uma armadilha retórica inibitória da atividade interpretativa, conquanto

lançaria o intérprete à caça dessa vontade do legislador ou da lei – ou da norma em si –,

seja lá o que isso for, de maneira que ele (intérprete) estaria adstrito a buscar a

interpretação que coincidisse com aquela vontade (da lei ou do legislador), ou com a

essência da norma. Logo, tão mais distante fosse sua interpretação destes parâmetros e

tão menos correta ou ideal seria sua interpretação – quando não imprestável –, mercê

da invencível dificuldade de se precisar quais seriam, enfim, essa vontade oculta e essa

essência intangível.

Uma outra dificuldade que avulta no contexto de uma busca pela essência

da norma jurídica está em se precisar quem seria o (oráculo) responsável por proclamar

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uma tal verdadeira essência. Sim, porque não faltariam versões da verdade, como é

próprio do humano.

Essa teoria, pois, consubstancia-se num expediente limitador e mesmo

diretivo da interpretação, e em última análise, do próprio intérprete – o que não se

admite. O direito não precisa de mistificações. Que dirá a ciência, sobretudo a sua. O

que informa a interpretação, do ponto de vista de quem interpreta, é o contexto

histórico e de uso discursivo em que este atua. No que diz mais de perto com o direito,

os (outros) condicionantes da interpretação são, principalmente, os princípios

constitucionais. E os limites são dados pelo sistema, conforme seu contexto normativo,

tal qual veremos mais amiúde logo adiante, no capítulo II.

Acreditamos, malgrado encontrem solo fértil na nossa doutrina opiniões

em contrário, que a atividade interpretativa é criativa/constitutiva da norma jurídica,

porquanto cuida de atribuir, mediante a análise sistemática dos textos prescritivos do

direito positivo, significações aos mesmos. É dizer: a norma jurídica é o resultado da

interpretação sistemática dos enunciados prescritivos do direito positivo, o que equivale

a dizer que a norma é construída pelo intérprete.

Atente-se para a expressão análise sistemática, pois com isto queremos

lançar luzes sobre a circunstância de que esta atividade interpretativa não se nos afigura

exeqüível se órfã do contexto normativo-sistemático, sobretudo dos magnos princípios

constitucionais que informam a ordem jurídica – verdadeiros vetores interpretativos.

Como não poderia deixar de ser, essa sistematicidade, para fins

interpretativos, estende-se ao domínio específico do direito sobre o qual se debruça o

intérprete. Assim, ao cuidar do tema da tributação das cooperativas, além dos

pressupostos apontados, importa anotar que devem ser levados igualmente em conta os

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princípios e normas outras (infraconstitucionais) que cumprem por conformar (junto às

previsões constitucionais) o direito cooperativo (só didática e metodologicamente

delimitado).

1.8 – Breve Noção acerca da Distinção entre Direito Positivo e Ciência do Direito

Nesse último ponto do capítulo pretendemos, tão-somente, firmar a

diferença que há de estar fixada em todo objeto do labor cognoscente: aquela entre o

objeto e a ciência que dele se ocupa. Estamos falando, em nosso caso, do direito

positivo e da ciência do direito. Mas não em vão. O fato é que, surpreendentemente, a

dogmática contemporânea, por vezes, ainda se enrosca numa confusão entre ambos os

planos.

Pois bem. Não queremos aqui cansar o leitor repisando as premissas postas

neste trabalho cognoscitivo, e que já ficaram expostas ao longo do mesmo, como: os

planos componentes do triângulo semiótico (planos sintático, semântico e pragmático);

a função criadora da interpretação; a condição de corpo de linguagem do dado jurídico;

a distinção entre enunciado (conjunto de signos dotados de significação mínima, ou

seja, a oração com sentido) e significação (noção, idéia, conceito que criamos quando

nos pomos a interpretar o signo), que se põe em termos de proposição (conteúdo de

significação do enunciado), entre outras tantas já referidas.

Vale a ressalva de que, com a eleição dessas premissas, não pretendemos

reduzir o direito à linguagem. Não é isso. Como bem afirma TÉRCIO SAMPAIO

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FERRAZ JUNIOR58, “a diferença está em que não pretendemos estudar a linguagem

do direito ou da sua manifestação normativa, mas investigar o próprio direito,

enquanto necessita, para sua existência, da linguagem” (grifo no original).

A ciência do direito e o direito positivo. Eis dois corpos de linguagem que

não se confundem. Direito positivo é o plexo de normas jurídicas relativas a um

ordenamento jurídico posto. A ciência do direito é a linguagem que tomará o direito

positivo como objeto, para descrevê-lo.

Depreende-se, nessa esteira, a maiúscula distinção entre aqueles dois

institutos, a saber: o direito positivo é um corpo de linguagem prescritiva (em sua

função), vez que prescreve condutas no sentido de regrar o comportamento humano

intersubjetivo. Já a ciência do direito utiliza-se da linguagem na sua função descritiva.

A ciência do direito, decerto, tem caráter fundamentalmente descritivo.

Afigura-se-nos como uma metalinguagem descritiva de normas jurídicas – seu objeto.

Destarte, seu mister é investigar e tecer a descrição científica do que é encontrado no

âmbito do direito, dispondo sobre conceitos, definições, classificações e toda sorte de

tarefas descritivas, sem embargo de suas implicações no âmbito pragmático.

Já o direito positivo, por seu turno, consiste num sistema de proposições de

índole prescritiva, “ou seja, da linguagem cuja finalidade é ‘alterar a circunstância”59,

as quais se inter-relacionam de maneira a disciplinar as condutas humanas. A norma

jurídica, pois, prescreve como deve-ser o comportamento nas relações intersubjetivas.

Já aqui dispomos acerca de funções da linguagem: função descritiva para a ciência do

direito e função prescritiva para o direito positivo.

58 Teoria da Norma Jurídica, p. 7. 59 LOURIVAL VILANOVA, As Estruturas Lógicas... op. cit., p. 40.

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Neste esteio, calha apontar a distinção entre o objeto e sua descrição, visto

que ambos se consubstanciam em expressões lingüísticas, sendo lícito averbar que

estamos em face de dois níveis distintos de linguagem. Ensina RICARDO

GUIBOURG60 que “cuando una investigación se realiza acerca de um lenguaje,

llamamos a éste lenguaje objeto de la investigación, y el lenguaje en el cual los

resultados de la investigación se formulan se llama metalenguaje”. Aqui se trata de

níveis de linguagem, portanto.

O direito positivo é o objeto cognoscitivo sobre o qual se debruça a ciência

do direito, descrevendo-o, logo, consiste aquele numa linguagem-objeto. A ciência do

direito, por sua vez, apresenta-se como uma linguagem de sobrenível, uma

metalinguagem, visto que se põe a descrever um outro corpo de linguagem (o direito

positivo).

Por fim, no âmbito lógico essa distinção também se faz sentir, encarecendo

o raciocínio, na medida em que a linguagem descritiva da ciência do direito é regida,

primordialmente, pela batuta da lógica apofântica ou alética, enquanto que o direito

positivo, com sua linguagem prescritiva de condutas, obedece aos ditames da lógica

deôntica61.

60 Introduccion al Conocimiento Cientifico, p. 26. 61 Cf. LOURIVAL VILANOVA, ibidem, p. 39 ss.

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CAPÍTULO II

APONTAMENTOS ACERCA DE UMA TEORIA SOBRE O PAPEL

DOS PRINCÍPIOS NA EVOLUÇÃO DA CONSTITUIÇÃO E DO

DIREITO

2.1 – A Supremacia da Constituição

2.1.1 – Relação entre Constituição e Realidade Social

De pronto, calha tecermos a ressalva de que não pretendemos fazer aqui

estudo profundo da teoria dos princípios jurídicos ou constitucionais, mas apenas gizar

alguns traços básicos do sistema constitucional vigorante no Brasil e seus princípios, a

fim de delimitar sua função no papel do intérprete do direito e, portanto, na construção

das normas jurídicas.

Cada ordem política de um Estado encerra um plexo de normas das mais

diversas ordens, conquanto tratam de distintas matérias nos variados graus de

hierarquia havidos no sistema. Pois bem, dentro daquele arcabouço normativo que se

delineia desde as normas gerais e abstratas até as normas individuais e concretas, no

percurso da dinâmica da positivação do direito, há normas especiais que servem de

matriz para toda a produção normativa e, portanto, do próprio direito. São as normas

ditas constitucionais.

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Numa Constituição se encontram positivados os valores mais caros a uma

sociedade historicamente dada. É possível afirmar que se trata do documento

caracterizador de um Estado e de um povo. A Constituição, destarte, afigura-se-nos

como o ponto de intersecção elementar entre os valores máximos de uma sociedade e o

poder do Estado que define juridicamente os rumos daquela.

Outrossim, a dialética havida entre a realidade social e a Constituição

impõe a esta a necessidade de acompanhar a evolução daquela. Esse dado relacional é

inexorável. Daí porque KONRAD HESSE62 aduz que “o significado da ordenação

jurídica na realidade e em face dela somente pode ser apreciado se ambas –

ordenação e realidade – forem consideradas em sua relação, em seu inseparável

contexto, e no seu relacionamento recíproco”.

Com isto, por ora, queremos apenas firmar a ilação de que, para entender o

significado da Constituição e suas implicações, é preciso ter em mente sua relação com

o dado social no qual inserida. É esta relação, como veremos, que exigirá que a

Constituição evolua – junto à sociedade.

2.1.2 – Supremacia Constitucional e suas Conseqüências Intra-sistêmicas

Antes de mais nada, cabe perquirir sobre o que é a Constituição. Eis o

magistério de GERALDO ATALIBA63:

Ao conjunto de normas constitucionais de cada país se designa Constituição. Ensina a ciência do direito que as constituições nacionais formam sistemas, ou seja, conjunto ordenado e sistemático de normas, construído ao redor de

62 A Força Normativa da Constituição, p. 13. 63 Sistema Constitucional Tributário Brasileiro, p. 3.

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princípios coerentes e harmônicos, em função de objetivos socialmente consagrados. (grifos do autor)

Em sua condição de conjunto de normas posto na cúspide da pirâmide

normativa em que se traduz figurativamente um ordenamento jurídico, a Constituição64

assume o papel de emprestar coerência e harmonia ao sistema. No sistema jurídico,

tudo vai ao encontro e tudo se encontra na Constituição65.

As normas que a compõem fundamentam e emprestam validade jurídica

para todo o ordenamento positivo e, além disso, informam a atividade que se exerce

desde o legislador até o realizador do momento de máxima positividade jurídica: a

produção da norma individual e concreta. Elucide-se que tomamos validade66 como

relação de pertinência da norma com o sistema.

Assim é que, no edifício do direito positivo, é a Constituição que se nos

apresenta como seu alicerce, paradigma de validade de todo o plexo de normas

presentes num ordenamento dado historicamente. É ela (Constituição) que traça os

64 Sempre que nos utilizarmos do termo Constituição, estaremos significando o conjunto de normas jurídicas construídas a partir do texto constitucional, não meramente a este ultimo (texto). 65 Considerando-se um sistema jurídico constitucional ideal, por assim dizer, do ponto de vista científico. No plano social concreto também deveria ser assim, mas a realidade das práticas jurídicas em nosso país teimam em nos convencer do contrário. A frase como cunhada, presta-se (como recurso retórico) a enfatizar o caráter fundamental da Constituição e a necessidade de adequar completamente toda a produção jurídica a ela. 66 A idéia de validade como relação de pertinência sistêmica remonta à teoria kelseniana. Porém, isto não quer dizer que esteja empregada neste texto no mesmo sentido que a emprega o autor austríaco. Até porque, de fato, fazemo-lo severa crítica precisamente no que concerne às condições de validade da norma. Para KELSEN, validade diz de perto com a auto-referência do direito. Com isso, pretende deixar claro que o direito se auto-regula independentemente do mundo do ser, pois só norma disciplina outra norma do sistema jurídico. Reconhece, enfim, que a eficácia (plano do ser) não se confunde com validade (plano do dever-ser), intentando, assim, apontar o fechamento do sistema. Todavia, é curioso observar em sua teoria a afirmação de que o fundamento de validade primeiro das normas, e mesmo da ordem jurídica, é a norma fundamental, mas que é a eficácia social, duma e de outra (norma e ordem jurídica), a condição de validade de ambas. Com efeito, segundo a teoria kelseniana, sem uma eficácia (social) mínima a norma se torna, por isso, inválida (Teoria Pura... op. cit., p. 235 e ss.). Ora, tal assertiva implica a negação da premissa de que uma norma só toma validade em uma outra superior. Em verdade, não sendo “a falta de eficácia mínima” o antecedente de uma norma superior, a invalidade em casos assim se deverá exclusivamente a uma causa do mundo do ser, malgrado seja a invalidação de uma norma um “efeito jurídico”. Isto é o mesmo que afirmar, enfim, que o ser define/determina o dever-ser. É dizer: o apofântico define o deôntico. Onde está a auto-regulação do direito aí?!?

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contornos definidores do próprio Estado, segundo opinião de JOSÉ AFONSO DA

SILVA67:

Significa que a Constituição se coloca no vértice do sistema jurídico do país, a que confere validade, e que todos os poderes estatais são legítimos na medida em que ela os reconheça e na proporção por ela distribuídos. É, enfim, a lei suprema do Estado, pois é nela que se encontram a própria estruturação deste e a organização de seus órgãos; é nela que se acham as normas fundamentais de Estado, e só nisso se notará sua superioridade em relação às demais normas jurídicas. (grifos no original)

Em razão desta posição de supremacia68 em relação às demais normas do

sistema, empresta-se à Constituição a condição de norma ápice, pairando sobranceira

no ponto mais elevado do conjunto de normas que compõem a pirâmide do

ordenamento jurídico. Nessa sua condição de arquétipo normativo de maior valia,

confere validade às demais normas na medida em que estas se coadunam aos seus

mandamentos.

Isto importa dizer que as normas em dissonância com os mandamentos

jurídicos emanados da Constituição não estão em condições de subsistir validamente

dentro do sistema, isto é, as normas em desalinho com a Lei Maior são

inconstitucionais, portanto, inválidas.

A própria interpretação jurídica (de matriz constitucional) se assenta nesse

pressuposto. É dizer: a Constituição deve ser sempre tomada como ponto de partida no

processo de interpretação dos textos legais/normativos para a criação de normas

jurídicas.

67 Curso de Direito Constitucional Positivo. p. 47. 68 Segundo LUÍS ROBERTO BARROSO, só há se falar em supremacia quando se está frente a uma Constituição rígida, traduzida na necessidade de processo especial e complexo para a sua reforma, diferente do que se dá com as normas infraconstitucionais. Interpretação e Aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora, p. 158 ss.

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Pretendemos expor com isso que não só a criação das normas inferiores

(infraconstitucionais) deve ser realizada com base na premissa constitucional, mas,

também, a própria interpretação criativa das normas constitucionais. Sim, porque na

interpretação de um dado enunciado vazado em letra constitucional, do que decorrerá

uma norma jurídica constitucional, haverá de ser levada em conta toda a Carta Máxima,

em sua integridade constitutiva e unidade.

Daí a exigência de se partir da inafastável pressuposição de que a

Constituição é o fundamento último de validade das demais normas jurídicas, e que em

decorrência disso se encontra em indiscutível posição de supremacia e superioridade

hierárquica dentro do sistema de direito positivo69. É dessa sua imarcescível posição no

cume do arcabouço jurídico-normativo que rebenta, como corolário lógico, o primado

da supremacia da Constituição.

A supremacia constitucional se irradia para além do produto legislativo a

fim de, assim, lograr alcançar todo o direito. Por outros torneios: a Constituição deve

ser observada e levada a efeito tanto no momento da instituição legislativa dos textos

legais, quanto na interpretação da norma jurídica (constitucional e infraconstitucional)

e de sua efetiva aplicação aos casos concretos. Em suma: a supremacia constitucional

se opera sobre o Direito.

Posta esta premissa, calha concentrar esforços na análise dos magnos

princípios constitucionais e seu papel no ordenamento jurídico.

69 Bem nos lembra PAULO DE BARROS CARVALHO de que “a subordinação hierárquica, no Direito, é uma construção do sistema positivo, nunca uma necessidade reclamada pela ontologia objetal”. In Curso de Direito Tributário, p. 151.

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2.2 – Os Princípios Jurídicos Constitucionais

Já falamos ligeiramente em linhas passadas sobre os princípios havidos no

plano constitucional, sublinhando sua relação com a interpretação do direito. Com

efeito, falar em interpretação do direito e em Constituição, ao que nos parece, importa

em necessariamente falar sobre os princípios jurídicos (constitucionais e

infraconstitucionais também). Esta importante espécie de norma jurídica exerce, de

fato, papel de invulgar relevo no contexto de um ordenamento jurídico e são vários os

desdobramentos do tema70.

Os princípios jurídicos, notadamente aqueles hauridos no patamar

constitucional, serão o ponto de partida e de chegada da atividade interpretativa. Ponto

de partida na medida em que devem ser o norte da interpretação, ditando seus rumos. E

o ponto de chegada, pois que a interpretação criativa do direito não pode desembocar

em norma que vá de encontro aos princípios constitucionais, mas ao seu encontro.

2.2.1 – A Norma Jurídica Principiológica

Conforme demonstrado no primeiro capítulo deste trabalho, norma jurídica

é o resultado (conjunto logicamente articulado de significações) da interpretação 70 Em verdade, o tema dos princípios,por si só, carece de um trabalho específico e inteiramente voltado para a missão de melhor aclarar o tema. Certamente, este não é nosso propósito aqui. Há, para ficar no doutrina brasileira, importantes obras sobre a matéria (sem embargo de outras também importantes) a exemplo de Teoria dos Princípios, et passim, de HUMBERTO ÁVILA. Há, também, obras coletivas que demonstram o interesse que a matéria desperta atualmente na doutrina, a exemplo de Dos Princípios Constitucionais – considerações em torno das normas principiológicas da constituição, et passim, sob a organização de GEORGE SALOMÃO LEITE. Ademais, no curso de outras importantes obras é feito estudo de grande valor sobre a matéria, como se vê no Curso de Direito Constitucional Tributário, de ROQUE ANTONIO CARRAZZA, p. 27 a 424, ou em Tributação das Cooperativas,entre as páginas 21 a 90, de RENATO LOPES BECHO, com ênfase no princípio da igualdade tributária. Há, também, obras sobre princípios específicos, como é o caso de Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade, et passim, de CELSO ANTONIO BANDEIRA DE MELLO.

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(criativa) sistemática e contextualizada do texto legal, posta no esquema lógico de juízo

hipotético-implicacional.

Pois bem. Frente a essa premissa nos cabe, agora, alocar o conceito de

princípio. A primeira pergunta que se põe é: princípios são normas jurídicas?

A resposta só pode ser positiva. Parece-nos que a doutrina, no geral,

inclusive já superou esta questão, para firmar posição no sentido de que princípio é,

sim, norma jurídica, ou pelo menos espécie desta, dada a distinção sugerida entre

princípio e regra71. Estabelecer os termos e critérios precisos da distinção, isso sim –

segundo o próprio J. J. GOMES CANOTILHO72 – é tarefa particularmente complexa,

cujo aprofundamento refoge ao campo temático deste trabalho.

Com efeito, não há se olvidar a condição de norma jurídica afeta aos

princípios. No arcabouço dinâmico do ordenamento jurídico se encontram somente

normas jurídicas, como significação construída pelo intérprete na análise hermenêutica

dos documentos normativos. A estrutura lógica das normas jurídicas é sempre a mesma

(homogeneidade sintática). Contudo, as normas jurídicas não comportam o mesmo

conteúdo semântico (heterogeneidade semântica) ou função dentro do ordenamento. É

com base nisso, principalmente, que os doutrinadores farão distinção entre normas-

regra e normas-princípio.

Uma vez posto que princípio jurídico é norma jurídica, e que esta é

construída pelo intérprete através da interpretação dos textos normativos, devemos

expor a fragilidade da distinção entre “princípio explícito” e “implícito”. Esta distinção

71 A doutrina atual que se debruça sobre o tema, em boa parte, se inclina para seguir a posição capitaneada por RONALD DWORKIN e ROBERT ALEXY, no sentido de pregar a distinção entre princípio e regra, mas não sem discutir sobre quais seriam os critérios distintivos pertinentes a cada espécie. Cf. HUMBERTO ÁVILA, op. cit., p. 26 e ss. A obra deste autor, inclusive, traz importantes avanços sobre o tema. 72 Direito Constitucional, p. 172 ss.

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é mais uma daquelas que povoam o imaginário dos nossos juristas, e precisa ser

relativizada quando partimos da premissa de que norma jurídica é estrutura de

significação construída a partir dos textos.

Através da interpretação e a partir do texto legal, nós, os intérpretes do

direito, atribuímos significações aos enunciados prescritivos no afã de construir uma

(não a) norma jurídica – ou princípio jurídico. Ali, no texto mesmo, não há qualquer

norma jurídica. A rigor, portanto, nenhuma norma é explícita – nem implícita –, já que

não está nas linhas ou entrelinhas.

O importante é firmar o pressuposto segundo o qual os princípios são

normas jurídicas como quaisquer outras – ao menos quanto a sua conformação lógico-

sintática –, e, dessa forma, detêm imperatividade. Sua condição de princípio, em

verdade, só exsurgirá com considerações de ordem semântica e pragmática, pois a

norma principiológica, também, é construída pelo intérprete.

Em sendo assim, sensíveis às peculiaridades de algumas normas jurídicas

constitucionais (ou não), e ao pressuposto de que a pesquisa que almeja a foros de

cientificidade deve primar pela precisão terminológica, achamos por bem emprestar

nomenclatura própria às espécies diferençadas de normas jurídicas.

Então, a partir daqui, sempre que quisermos nos referir àquelas normas

jurídicas com função específica e maior grau de generalidade, usaremos a expressão

normas jurídicas principiológicas, ou simplesmente, princípios jurídicos. Todas as

demais normas jurídicas que não ostentem essas peculiaridades chamaremos,

simplesmente, de normas jurídicas ou mesmo de normas-regras. O qualificativo

princípio, por si só, serve à diferenciação. Mas o que vem a ser, finalmente, um

princípio jurídico? Vejamos.

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2.2.2 – Definição Semântica de Princípio Jurídico e Questões Afins

2.2.2.1 – Conceito de Princípio

O lugar dos valores fundamentais de uma sociedade, como não poderia

deixar de ser, é a Constituição Nacional. É aqui onde devem estar positivados os

valores máximos de uma sociedade historicamente dada73. De ver está que é nos

princípios constitucionais onde se alocam esses valores. Frise-se, contudo, que não há

se confundir os valores com os princípios jurídicos onde se encontram positivados.

Valores estão no plano axiológico, enquanto que os princípios jurídicos estão no plano

deontológico.

Para nós, princípio jurídico é aquele construído com base no texto

prescritivo do direito positivo. Por outros torneios: o valor que importa ao direito é o

valor positivado através de norma jurídica. Pensar diferente nos empurraria em direção

a uma concepção ontológico-essencialista-transcendentalizadora do dado jurídico, que

não se compagina com os pressupostos eleitos neste trabalho.

As definições construídas pela doutrina dão boa nota dos principais

aspectos jurídicos determinantes do caráter diferençado dos princípios.

Para ROQUE ANTONIO CARRAZZA74, princípios são normas

qualificadas com função específica no sistema do direito:

73 São os princípios constitucionais que apresentam a carga axiológica incorporada por um ordenamento jurídico, cf. ANDRÉ RAMOS TAVARES, Elementos para uma teoria geral dos princípios, in Dos Princípios Constitucionais... op. cit., p. 24. 74 Curso... op. cit., p. 33.

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Segundo nos parece, princípio jurídico é um enunciado lógico, implícito ou explícito, que, por sua grande generalidade, ocupa posição de preeminência nos vastos quadrantes do Direito e, por isso mesmo, vincula, de modo inexorável, o entendimento e a aplicação das normas jurídicas que com ele se conectam. (grifo no original)

Desse conceito podemos extrair dois relevantes aspectos jurídicos dos

princípios: a) o caráter de especial generalidade e b) sua função para a interpretação e

aplicação das normas jurídicas que com ele guardam relação.

Vejamos também a lição de PAULO DE BARROS CARVALHO75:

Sendo objeto do mundo da cultura, o direito e, mais particularmente, as normas jurídicas estão sempre impregnadas de valor. Esse componente axiológico, invariavelmente presente na comunicação normativa, experimenta variações de intensidade de norma para norma, de sorte que existem preceitos fortemente carregados de valor e que, em função de seu papel sintático no conjunto, acabam exercendo significativa influência sobre grandes porções do ordenamento, informando o vector (sic) de compreensão de muitos segmentos.

Nesse escólio fica clara a inferência de que as normas jurídicas, na posição

de objetos da cultura, estão saturadas de valor. Contudo, umas mais intensamente que

as outras. As que possuem uma carga valorativa mais significativa são chamadas de

princípios jurídicos e, no que segue a mesma linha teórica do autor precedente,

aplicam-se em boa parte76 do ordenamento, servindo, sobretudo, como vetor

interpretativo.

A importância sistêmica e a função integradora dos princípios podem ser

inferidas de uma das mais célebres conceituações cunhadas sobre o tema, da lavra de

CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO77:

Princípio – já averbamos alhures – é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre

75 Curso de Direito... op. cit., p. 104. 76 Nesse sentido, LUIS ROBERTO BARROSO também atenta para o fato de que “nem todos os princípios, no entanto, possuem o mesmo raio de atuação. Eles variam na amplitude de sua aplicação e mesmo na sua influência (...)”. Aproveita para citar, segundo o critério em liça, a existência de princípios gerais e princípios setoriais. In Interpretação e Aplicação... op. cit., p. 150 ss. 77 Curso de Direito Administrativo, p. 583 e 584.

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diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para a sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico (...)

E segue, tratando agora da circunstância em que a observância ou,

diríamos, a eficácia do princípio não se dá:

Violar um princípio é muito mais grave do que violar uma norma. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra.

Feita a necessária ressalva crítica à referência do autor ao “espírito” da

norma (onde soa um viés essencialista), fica sua posição no sentido de marcar, com

tintas mais vivas, a função interpretativa e de alicerce do sistema encampada pelos

princípios, donde se depreende a gravidade que sua violação representa.

Além destes aspectos, alguns autores ainda apontam outros, também

relevantes para a conceituação dos princípios, como seu caráter finalístico, haja vista

que visam a promoção de um estado de coisas. É o caso de HUMBERTO ÁVILA78,

para quem os princípios são “normas imediatamente finalísticas, isto é, normas que

impõem a promoção de um estado ideal de coisas por meio da prescrição indireta de

comportamentos cujos efeitos são havidos como necessários àquela promoção”.

O interessante nesse conceito é que ele nos remete a importante ilação de

que os princípios, dada a sua grande generalidade, prescrevem indiretamente alguns

comportamentos havidos como necessários para efetivar aquele estado de coisas. E isto

78 Teoria dos Princípios... op. cit., p. 89.

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é, também, uma função dos princípios. A ressalva que fazemos é sobre o apenas

prescrever indiretamente as condutas79.

Pois bem. Para nós os princípios jurídicos (ou normas jurídicas

principiológicas) consubstanciam a centelha jurígena nuclear, apta a lançar luzes por

sobre uma porção do ordenamento ou sua inteireza, atuando como premissa jurídico-

interpretativa ou postulado indicativo do caminho a ser trilhado na interpretação e

aplicação do ordenamento jurídico posto, inclusive no sentido de prescrever, direta ou

indiretamente, as condutas pertinentes a sua efetivação.

2.2.2.2 – Questões Como Hierarquia, Função e Peso Axiológico Contingente

As funções dos princípios se complementam, harmonizam-se para se

combinar, culminando num feixe orgânico de engrenagens jurídicas que, junto às

demais normas, conferem dinâmica ao sistema do direito.

As normas interagem no interior do sistema. Assim, de acordo com a

simultaneidade da dinâmica normativa é que os princípios informam e conformam

outras normas dentro do sistema para que os comportamentos necessários à promoção

do estado de coisas por eles prescritos se efetive. É dizer: os princípios informam a

construção das normas a eles conectadas, de modo que a conduta indiretamente

79 Cremos haver casos em que os princípios prescrevem diretamente a conduta a ser seguida, como é o caso do princípio constitucional do contraditório, onde está firme a prescrição, em linhas gerais, de que à outra parte do litígio deve ser facultada a condição de se pronunciar. Nesses casos é possível até vislumbrar o functor deôntico (P, O ou V), por interdefinição, presente na norma jurídica. Outros princípios, como o da segurança jurídica, prescrevem indiretamente comportamentos, e por isso necessitam informar a construção de outras normas para que mais objetivamente se efetivem. Em casos assim, é emblemático notar a dificuldade de se entrever o functor deôntico. Por fim, cremos que os princípios restariam alijados em sua condição de normas jurídicas caso lhes fosse negada a possibilidade de prescrever também diretamente a conduta.

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prescrita por eles (princípios) passa a ser diretamente prescrita em outras normas

(regras) aplicáveis ao caso concreto, sempre que o princípio não o faz diretamente.

O raio de abrangência dos princípios jurídicos é definido em função de sua

posição sintática dentro do ordenamento. Desse modo, os princípios constitucionais,

dada sua posição sobranceira, irradiam seus efeitos para uma porção mais substancial

do ordenamento, a depender de sua generalidade. Esta, por sua vez, será definida na

razão direta da intensidade de sua carga axiológica. Normas desse jaez, pois, precisam

ser levadas em conta pelo intérprete no momento da construção das demais normas

jurídicas e de sua aplicação, sob pena de se construir norma órfã de validade jurídica.

Nesse diapasão, calha sopesar que, malgrado sua insofismável

preeminência, os princípios constitucionais não se encontram em posição

hierarquicamente superior em relação às demais normas constitucionais do sistema.

Decerto, o fundamento de validade do sistema como um todo é a

Constituição, não a norma constitucional A ou B. Todas as normas constitucionais

servem de fundamento de validade para as demais normas componentes do

ordenamento, princípios ou não. Nada há para além da Constituição.

Porém, com espeque no caráter diferençado apresentado, e elegendo como

critério o teor axiológico das normas, há quem chegue a falar que há no altiplano

constitucional hierarquia entre normas jurídicas principiológicas e normas jurídicas em

geral. Mesmo entre os princípios constitucionais é feita uma certa hierarquização,

chegando-se a falar em princípios e sobreprincípios80.

80 De acordo com PAULO DE BARROS CARVALHO (Tributo e segurança jurídica, in Dos Princípios Constitucionais... op. cit., p. 352 e ss), seriam sobreprincípios os da certeza do direito, da segurança jurídica e da justiça, sem embargo de outros. Alguns dos demais princípios, ainda segundo o mestre, operariam para a realização desses princípios superiores em escala hierárquica, e todos eles para a operacionalização do

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Não cremos que haja hierarquia entre normas constitucionais, sejam meras

normas jurídicas ou normas jurídicas principiológicas. Não há norma constitucional

superior ou inferior: o que há são normas jurídicas constitucionais. E ponto.

Todavia, afiançar que inexiste hierarquia entre as normas constitucionais

não importa dizer que são todas iguais. O que dizemos é que tais normas estão no

mesmo plano normativo, mas “isto não impede que princípios e regras desempenhem

funções distintas dentro do ordenamento”81.

A função: este sim é o critério diferenciador de normas jurídicas e normas

jurídicas principiológicas, na medida em que, como vimos alhures, estas últimas

possuem sentidos de atuação próprios dentro do sistema, isto é, funções específicas e

eloqüentes, em estreita relação com o grau de generalidade que envergam.

E tão mais relevante será essa função quanto mais alto for o degrau onde se

hospeda o princípio na perspectiva vertical do ordenamento jurídico, cabendo aos

princípios constitucionais as funções primordiais ao sistema (como, v.g., unidade e

balizamento interpretativo) e à sociedade (efetivar seus valores máximos), por

conseguinte.

Sotopõe-se a essa afirmação, no contexto de nosso discurso, uma outra: na

sua condição de normas jurídicas, os princípios estão sujeitos a uma certa hierarquia

dentro do ordenamento jurídico, em última instância. Mas tão-somente no sentido de

que há princípios constitucionais e infraconstitucionais.

(sobre)sobreprincípio máximo da certeza do direito (que teria preeminência sintática) . Melhor nos parece uma concepção analítica que apontasse os ditos sobreprincípios, simplesmente, como os vetores axiológicos máximos informadores de dado sistema jurídico (porquanto positivados) e, aquele último (certeza do direito), como mero imperativo lógico inerente ao deôntico. A terminologia sobreprincípio também é utilizada por HUMBERTO ÁVILA, em relação à segurança jurídica, op. cit., p. 79. 81 LUIS ROBERTO BARROSO, O Direito Constitucional e a Efetividade de suas Normas, p. 292. O autor justifica sua posição com esteio no princípio da unidade da Constituição.

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Com isso, pretendemos asseverar que àqueles princípios alçados ao

patamar de normas jurídicas constitucionais é reservado lugar de maior relevo e

preeminência dentro do sistema jurídico. Em sendo assim, os princípios ditos

infraconstitucionais, como as demais normas deste calibre, devem guardar consonância

com aqueloutras de maior envergadura dentro do sistema, onde, afinal, abeberam-se de

sua validade.

Queremos fechar esse ponto com a afirmação de que o caráter de princípio

ou de mera regra atribuído a uma norma jurídica havida ao fim e ao cabo do labor

exegético empreendido pelo intérprete do direito dependerá, em derradeira análise, de

uma decisão deste. Sim, visto que a norma é construída segundo a ideologia (e,

portanto, os valores) de quem interpreta82. Logo, a definição do peso axiológico de

uma norma jurídica é contingente. É dizer: onde alguns constroem uma norma da

espécie princípio, outros podem edificar uma mera norma jurídica sem esse

qualificativo (norma-regra), ou mesmo um princípio mais ou menos abrangente, a

depender de sua concepção de valores e da importância dada a cada um deles.

Com isto em mente, poder-se-ia dizer, por fim, que não é a função que

define o princípio, mas a atribuição do caráter de princípio que define a função de uma

norma jurídica. Mas isso já é uma outra história 83.

82 Segundo PAULO DE BARROS CARVALHO, “o próprio saber se uma norma, explícita ou implícita, consubstancia ‘princípio’ é uma decisão inteiramente subjetiva, de cunho ideológico”. Dos Princípios Constitucionais... op. cit., p. 353. E aqui, vez mais, faz-se a malfadada referência às normas explícitas ou implícitas. O mesmo é feito, por exemplo, por ALIOMAR BALEEIRO, quando este leciona que a eficácia dos princípios implícitos é a mesma dos expressos. In Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar, pp. 783 e 784. 83 A questão é muito mais intrincada do que possa parecer, tanto do ponto de vista da teoria dos princípios jurídicos, quanto da Teoria Geral do Direito, passando por implicações na ordem da teoria da linguagem. Em verdade, o aprofundamento de tal temática refoge do delimitado campo investigativo eleito neste trabalho científico, e mereceria uma monografia própria. Quem sabe num próximo trabalho.

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2.2.3 - Princípios Constitucionais como Diretrizes do Sistema

Percebe-se, por tudo o que fora exposto, que todas as disposições ou

mandamentos oriundos da Magna Carta ganham relevo e estatura em relação àqueles

ditos infraconstitucionais. E tal aspecto é realçado quando essas normas assumem foros

de princípios constitucionais.

Dentro da noção básica de sistema, como conjunto de elementos

informados por um vetor comum, os princípios constitucionais assumem o relevante

mister de exercer a posição de vetores do sistema jurídico. São, enfim, o ponto comum

ao qual se direcionam as demais normas do ordenamento. Assim, emprestam-lhe

coesão e firmam sua estrutura.

Os princípios constitucionais se apresentam como a síntese mesma do

móvel axiológico que engendra a conformação de uma Constituição. Por isso exercem

papel fundamental no interior de uma ordem jurídica historicamente dada, revestindo-

se do caráter de limites objetivos e, concomitantemente, de efetivas diretrizes.

O que não se pode perder de vista em meio a abstrações é a circunstância

que subjaz a todo princípio jurídico: estamos diante de uma norma jurídica, como dito.

Com isto queremos realçar, uma vez mais, o caráter de imperatividade de que se

revestem os princípios jurídicos, sobremodo os de matriz constitucional, para firmar

posição no sentido de que os mesmos devem ser levados a efeito nos casos concretos

em que se aplicam.

Não sobeja afiançar que princípios jurídicos, por certo, não são meros

conselhos ou sugestões legislativas. Desse modo, sua observância e, mais que isso, sua

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efetiva aplicação aos quadrantes do direito a que se vinculam é, em tudo e por tudo,

imperiosa.

O direito é posto para realizar-se. É dizer: as normas jurídicas existem

para ser aplicadas. E com os princípios jurídicos não é diferente. Aliás, tal afirmação é

ainda mais grave em relação à eficácia destes, pois que sua efetivação assume foros de

vetor informativo da construção e aplicação das demais normas. A eficácia dos

princípios representa, para além disso, condição-de-possibilidade para a evolução

mesma do próprio direito, como se verá adiante.

2.2.4 – Os Princípios Constitucionais, a Interpretação e a Aplicação do Direito:

síntese de uma relação

A aplicação e efetivação dos princípios constitucionais quando não diz com

sua correlação direta com o caso concreto (atuação imediata), faz-se sentir pela sua

inarredável utilização como elemento ou, tão melhor, como pedra de toque da

interpretação.

Estamos com LUÍS ROBERTO BARROSO quando este bem afirma que

“o ponto de partida do intérprete há que ser sempre os princípios constitucionais”84.

Com efeito, toda interpretação do direito deve partir da Constituição, máxime dos

princípios constitucionais aplicáveis, até chegar às normas específicas que regulam o

caso concreto.

84 Interpretação... op. cit., p. 147.

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O mestre da USP, EDUARDO DOMINGOS BOTTALLO85, bem ensina

que “o extraordinário valor axiológico dos princípios aliado ao sentido de ampla

generalidade, acima destacado, justificam, também, que sejam reconhecidos como os

mais fortes e expressivos pontos de referência para a interpretação de todo o sistema

jurídico”.

Cremos há de haver uma correlação inescapável entre o direito produzido

(em todas as suas esferas) e os princípios constitucionais. A Carta Fundamental,

sobremodo no que diz respeito aos princípios nela esculpidos, serve como fundamento

de validade para toda a ordem normativa, ou seja, tudo aquilo que não passar pelo filtro

constitucional incorre em inequívoca invalidade.

No processo de interpretação do direito, os princípios jurídicos, sobretudo

os constitucionais, aparecem como normas, digamos, condicionantes. Assim é que o

intérprete do direito deverá condicionar seu labor hermenêutico ao que prescrevem os

princípios jurídicos pertinentes, informando a construção da norma jurídica com o

comando emergente destes princípios. Além disso, as demais normas jurídicas terão

sua validade condicionada à observância dos princípios jurídicos que com elas guarda

relação.

Assim é que ROQUE ANTONIO CARRAZZA86 assevera que “nenhuma

interpretação poderá ser havida por boa (e, portanto, por jurídica) se, direta ou

indiretamente, vier a afrontar um princípio jurídico-constitucional”. Sobreleva-se,

assim, a inferência de que não pode qualquer norma constitucional, principalmente

daquelas da espécie dos princípios, ser embaraçada em qualquer medida.

85 Fundamentos do IPI, p. 27. 86 Curso de Direito... op. cit., p. 35.

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O Direito não se compadece com o amesquinhamento das normas

fundantes do próprio sistema jurídico, sancionando com a pecha da

inconstitucionalidade tudo aquilo que – direta ou de forma sub-reptícia – cause

menoscabo aos princípios postos na Constituição.

Se considerarmos que no processo gerativo de sentido (ato de interpretar o

direito) nos valemos dos princípios constitucionais como ponto de partida para a

construção das demais normas jurídicas, o mesmo se dará para todo e qualquer ato de

aplicação ou criação do direito. Até mesmo o poder legislativo, seja no exercício do

poder constituído87 derivado ou do legiferante na esfera infraconstitucional, há de estar,

necessariamente, condicionado pelos princípios constitucionais, sob pena de

produzirem inconstitucionalidades na medida em que se afastem de seus postulados.

O mesmo se diga do Judiciário: no momento da aplicação do direito ao

caso concreto, os princípios constitucionais aplicáveis devem ser necessariamente

observados. É assim para qualquer caso de aplicação do direito.

Em suma: todo o processo de interpretação e aplicação do direito, da

produção da norma geral e abstrata até o momento de máxima positivação jurídica,

qual seja a produção da norma individual e concreta havida no momento derradeiro

de aplicação, deve assentar-se sobre o alicerce e estar sob os auspícios dos princípios

jurídicos constitucionais.

87 Atento à postura crítica de que o cientista do direito deve estar imbuído, não podemos nos furtar à censura da infeliz expressão “poder constituinte derivado” que, em muitos escritos científicos, tem passado despercebida. Como há se denominar poder constituinte aquilo que só existe por ter sido, já, constituído pelo poder constituinte (este sim) originário? Em que pese o poder “constituinte” derivado não possuir plena autonomia quanto ao que vai constituir, enquanto criatura que é. Sim, porque está adstrito aos limites impostos, não importa se em menor ou maior grau, por aquele outro poder (constituinte) dentro do sistema jurídico. Assim, parece-nos mais cientificamente adequada a expressão poder constituído.

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Os princípios jurídicos, máxime os constitucionais, espraiam seus

mandamentos sobre todo o ordenamento jurídico constituído. E não é sem razão que os

mesmos são dotados de tão alto grau de generalidade. Esta sua compostura estrutural

lhes permite a abertura necessária a novos sentidos, o que possibilita adaptação às

novas realidades – e impede a necessidade de renovação constante da Constituição, do

ponto de vista de sua textura enunciativa (seu plano de expressão empiricamente

objetivado).

É como se a Constituição aprendesse (numa espécie de abertura cognitiva)

com os fatos, para se amoldar a eles, tornando exeqüível o desenvolvimento

constitucional que a evolução social reivindica.

2.3 – Da Dúplice Função dos Princípios Constitucionais no Processo de Evolução

da Constituição e do Direito: fundamento e limite

2.3.1 – Interpretação Evolutiva no Contexto do Texto Normativo

Numa realidade com alto grau de complexidade, como na sociedade

moderna, cada vez mais o direito positivado absorve novos sentidos – postos pela

interpretação –, mercê de sua inelutável mutabilidade88. Nesse contexto de

hipercomplexidade, e por conta da distância que é cada vez maior entre o direito e o

88 Sobre o caráter de mutabilidade do direito, ver: KELSEN, Teoria Pura... op. cit., p. 215 e ss. Sob uma perspectiva diferente, agora de matiz sociológico, vide: NIKLAS LUHMANN, Law as a Social System, p. 230 ss.

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fato – na corrida89 travada pelo modelo positivista –, cresce em importância a

capacidade de conformação de todas as normas jurídicas, máxime dos princípios

constitucionais, à realidade circundante, nisto que GEORGE SALOMÃO LEITE

denomina de “aspecto dinâmico dos princípios”90.

A evolução do direito91 se faz com o texto normativo e nas suas

significações. Com isto queremos dizer que a variação do direito tanto pode ser feita

pela reforma dos enunciados textuais prescritivos componentes da Constituição e das

leis, como através da interpretação dos mesmos – que se altera na medida em que o

contexto histórico no qual se encontra inserido o direito também se transforma. Ambas

as formas são legítimas (excluímos, assim, o movimento revolucionário e afins92).

O processo de evolução do direito é complexo. De um lado são mudados os

textos legais (suportes de significação). De outro, alteram-se os paradigmas

interpretativos (postos pelo contexto) que condicionam a adjudicação de sentido.

Dentro do que chama de interpretação evolutiva, LUÍS ROBERTO

BARROSO93 traça o seguinte panorama quanto à evolução constitucional:

89 É cediço que primeiro é o fato. Então este é valorado pela sociedade. Só então, dada a sua relevância axiológica, passa a ser previsto no antecedente de uma norma jurídica. Assim é que o direito positivo está sempre a um passo atrás na corrida travada entre os fatos relevantes e sua disciplina legal. À evidência, o direito não pode ganhar essa corrida, ou subverter-se-ia a lógica do sistema. 90 In Interpretação Constitucional e Tópica Jurídica, p. 43. 91 As alterações empreendidas nas leis e, sobretudo, na Constituição – seja por meio de reforma legislativa ou pela mudança dos paradigmas interpretativos –, são realizadas para que o direito evolua. Evolua para suprir as expectativas da sociedade e para garantir a efetividade da Carta Máxima. Pelo menos é assim que deveria ser. Contudo, o que se observa no atual quadro de nosso ordenamento é toda sorte de mudanças que, quando não cumprem adequar o texto constitucional (via emendas constitucionais) a interesses menores, constituem-se em interpretações completamente divorciadas dos princípios constitucionais mais comezinhos. Faz-se tábua rasa da Constituição quando se nega à mesma qualquer eficácia, sobremodo quanto a seus princípios. Tudo com o abono do tribunal guardião da Constituição, o Supremo Tribunal Federal. A doutrina deve estar atenta. 92 Estudando as Constituições compreendidas no período de 1891 a 1946, LOURIVAL VILANOVA preceitua que todas elas advieram de uma revolução política, mas também jurídica, na medida em que importaram na “quebra da continuidade constitucional”. Teoria jurídica da revolução, in Escritos Jurídicos e Filosóficos, Vol. I, p. 275 e 276. 93 Interpretação, op. cit., p. 144.

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(...) duas são as possibilidades legítimas de mutação ou transição constitucional: a) através de uma reforma do texto, pelo exercício do poder constituinte derivado, ou b) através do recurso aos meios interpretativos. A interpretação evolutiva é um processo informal de reforma do texto da Constituição. Consiste ela na atribuição de novos conteúdos à norma constitucional, sem modificação do seu teor literal, em razão de mudanças históricas ou de fatores políticos e sociais que não estavam presentes na mente dos constituintes. (original grifado)

Inobstante a posição do citado autor, entendemos que a interpretação não

importa em reforma do texto. Uma coisa, como já visto, é o texto. A literalidade. O

suporte empírico objetivado. Outra é a significação ou sentido atribuído àquele. Por

meio de uma interpretação evolutiva reforma-se o sentido, melhor dizendo, empresta-se

novo sentido/significação ao texto. Este, pois, permanece o mesmo, inalterado94.

Percebe-se, agora mais facilmente, a função transformadora dos princípios.

Vimos alhures que os princípios constitucionais são, por assim dizer, condicionantes da

interpretação. Tal tarefa tem sua eficácia exponencialmente aumentada em razão do

acentuado grau de generalidade que lhes permite a abertura cognitiva necessária para

que novos sentidos sejam atribuídos.

Nesse contexto semântico e pragmático é onde ocorrem as mudanças dos

paradigmas interpretativos e, por conseguinte, a criação de novas normas jurídicas, de

alterações nos conteúdos semânticos dos princípios, até – sem que para tanto concorra

(necessariamente) a mudança do texto normativo. O que se altera, a rigor, é a estrutura

do contexto no qual está inserido o texto normativo.

94 Com peculiar agudeza, MARCOS EURICO DINIZ DE SANTI pondera sobre interessante aspecto da relação entre os princípios e os dispositivos textuais, dizendo: “observamos, contudo, que os dispositivos constitucionais servem, justamente, para que o constituinte possa objetivar e delimitar valores, imprimindo-lhes traços e feições peculiares aos objetivos que persegue. Não podem ser descartados ou tomados como obstáculo na construção sistemática do sentido de qualquer principio, sob pena de infundir no direito o absurdo de se pretender revogar dispositivos sem se ocupar com os conteúdos e as restrições, expressamente, veiculadas nestes preceptivos. Se assim não fosse, para que dispositivos legais?”. In Decadência e Prescrição no Direito Tributário, p. 74.

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Essa evolução passa pelas outras normas jurídicas. Sim, pois somente a

dialética havida entre os princípios e as ditas regras possibilita a evolução. Evoluem os

princípios para que as normas relacionadas também evoluam. É como se, só por assim

dizer, se tratasse de uma relação de causalidade.

A mudança do paradigma interpretativo da Carta Magna finda por alterar o

paradigma da interpretação de todo o direito. Mudem-se as normas constitucionais,

incluindo seus princípios, e estas mudanças repercutirão em todos os sítios do

ordenamento jurídico. A evolução, pois, é sempre do direito, não só da Constituição.

2.3.2 – Limite da Evolução ou de como os Princípios Jurídicos Limitam

(relativamente) a Interpretação do Direito

Impende aqui firmarmos, por fim, a importante posição que os princípios

constitucionais ocupam no complexo processo de evolução constitucional (e por que

não dizer, de todo o ordenamento jurídico), quando empreendido sem alteração do

corpo textual da Carta Magna95.

Sobreleva sua relevância em dois momentos distintos: a uma, quando

funcionam (os princípios) como paradigma, fundamento, ponto de partida, das

interpretações (evolutivas) que atribuem sentidos novos aos textos constitucionais,

diferentes, portanto, dos sentidos que eram, via de regra, atribuídos e utilizados pela

comunidade jurídica. E, a duas, quando se nos afiguram como verdadeiros limites

95 Sem embargo da função e importância que os princípios constitucionais exercem no processo formal de alteração constitucional, via emendas à Constituição, onde também funcionam como limites objetivos às reformas. Por uma questão de corte epistemológico (que é sempre uma decisão do ser cognoscente), damos ênfase neste trabalho à reforma constitucional sem alteração do texto.

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objetivos desta mesma interpretação que os toma como base. Sim, porque são os

princípios constitucionais que, em última análise, servirão de baliza para que se diga de

uma interpretação se a mesma é, ou não, possível.

O primeiro aspecto apresentado (função paradigmática), em que os

princípios funcionam como pontos de partida para a interpretação do direito, cremos, já

ficou suficientemente demonstrado nos tópicos anteriores. Não seria oportuno aqui

repisá-los, em respeito ao leitor.

Calha aprofundarmos, um pouco mais, a condição de limite para a

evolução do direito e de sua interpretação assumida pelos princípios constitucionais.

Pois bem. Princípios constitucionais servem de limites na medida em que

impedem que a construção de novas normas jurídicas implique a desconstrução de

outras que, devido a sua importância sistêmica, não podem desaparecer.

De fato, por mais que se mude o paradigma interpretativo, e disso defluam

novas normas jurídicas, sem que haja mudança de texto normativo constitucional,

algumas normas não poderão ser desconstruídas ou invalidadas por inteiro: é o caso dos

próprios princípios constitucionais.

Interessante notar que princípios há, como o da justiça (termo de infinitas

dificuldades de apreensão), que parecem dever sua juridicidade muito mais ao

arcabouço axiológico dos juristas do que a uma eventual base textual que sirva de

estribo para a construção de uma tal norma jurídica, no contexto normativo-textual

vigente. Isso se dá por conta do amplo quadro contextual em que o referido princípio é

erigido. Outrossim, para se afirmar que uma nova construção jurídica havida no

processo de evolução do direito afronta esse princípio, mister considerar sua ampla

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generalidade e, em contranota, a imensa vaguidade do termo justiça. Tudo, e nada, por

assim dizer, cabe em sua compostura terminológica.

O que resta clarividente em relação a um princípio da justiça é a grandeza

da dificuldade de se conformar seu conteúdo semântico. Mas dessa dificuldade não

escapam outros princípios jurídicos. Essa circunstância se deve, por certo, ao fato de

que a delimitação de sua significação se encontra na contingência de servir aos

diferentes arcabouços axiológicos de cada um dos intérpretes.

Somente pretendemos aqui enfatizar a importância que o caráter histórico-

ideológico do intérprete cumpre no processo de construção das normas jurídicas, regras

ou princípios, e da própria evolução do direito. A importância dada ao valor

(eventualmente) atribuído a uma norma jurídica é que irá efetivamente defini-la, em

derradeira análise, como princípio ou mera norma/regra.

A própria identificação de valores em normas jurídicas construídas com

base em textos que não fazem menção aos mesmos (valores) enunciativamente,

encontra-se condicionada pela ideologia de quem interpreta. Ali onde alguns enxergam

um valor subjacente, para outros não há nada além de enunciado normativo da mais

aguda crueza, que apenas prescreve uma mera obrigação, permissão ou proibição

simples. Mas ainda que se negue a preeminência de algum valor jurídico, dificilmente

se pode olvidar o grau de generalidade de uma norma dita principiológica.

Retomemos o fio do raciocínio para afirmar que a interpretação evolutiva

do direito esbarra, enfim, nos princípios jurídicos, mas que nesse sentido não aparecem

como fatores limitativos, mas como verdadeiros pontos de partida (e chegada). É dizer:

a interpretação do texto normativo, no processo de evolução do direito, é informada

pelos princípios jurídicos e só poderá ir até onde estes se encontram ou, tão melhor, até

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onde é conduzida. Com efeito, quando uma nova norma constitucional é haurida, o

móvel da evolução são os princípios constitucionais, que servirão de ponto de partida e

relativamente como limite para a evolução, na condição de ponto de chegada para a

interpretação, num processo cíclico insopitável.

Sendo a Carta Maior o fundamento de validade de toda a ordem jurídica,

onde a produção, interpretação e aplicação das demais normas do sistema se encontram

condicionadas por aquela, é possível afirmar que mutação em sede constitucional

importa, necessariamente, em mutação do próprio direito.

Assumem os princípios constitucionais, pois, uma dúplice função no

processo de evolução da Constituição e, por conseguinte, do direito: são ao mesmo

tempo o fundamento da mudança e o seu limite mesmo.

E é com supedâneo nos princípios constitucionais, e também nos

especificamente cooperativos (de matriz constitucional ou infraconstitucional), que a

interpretação dos textos legais relativos às sociedades cooperativas será empreendida

neste trabalho, no afã de construir uma teoria do fato jurídico cooperativo e de seu

tratamento tributário constitucional.

Tudo isso cumpre por patentear a inarredável relevância dos princípios

jurídicos no seio de nosso ordenamento constitucional e seu caráter de condição-de-

possibilidade para a evolução da Constituição e do direito – pois mudança que não é

progresso, não é evolução, mas involução – da Constituição e, portanto, do direito.

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CAPÍTULO III

FUNDAMENTOS TEÓRICOS DO ARQUÉTIPO JURÍDICO DAS

COOPERATIVAS: A COMPLEXIDADE DO REFERENCIAL

COOPERATIVO NA CONSTITUIÇÃO E NA LEI

3.1 – Prolegômenos

A esta altura, já a par dos problemas afeitos à linguagem, máxime a

linguagem do direito, e também da rica temática dos princípios constitucionais,

adentramos a seara mais propriamente dogmática de nossa empresa cognoscente.

Analisaremos agora os textos normativos que guardam relação com a temática

cooperativista, movidos pela azáfama de definir os seus referenciais jurídicos.

A previsão legal dirigida às cooperativas vai desde a Constituição Federal –

com referências diretas e indiretas —, passando pelo Código Civil, até chegar a uma

legislação especialmente edificada em torno das cooperativas (Lei n° 5.764/71). O que

faremos é analisar criticamente todo esse aparato legislativo, nos pontos julgados como

mais relevantes ao nosso estudo, no afã de construir as normas jurídicas dirigidas ao

campo, sobretudo, da tributação das cooperativas.

Ser-nos-ão úteis nessa tarefa científica os conceitos e categorias manejados

até aqui. Construir normas jurídicas, para nós, implica necessariamente a observância

dos princípios constitucionais aplicáveis ao caso. Destarte, analisaremos a letra fria dos

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enunciados normativos informados pelos princípios constitucionais e especificamente

cooperativos, para lograr tecer a compostura jurídica constitucionalmente mais

adequada à tributação dessa espécie singular de sociedade empresarial.

As dificuldades são muitas. Afinal, a tarefa interpretativa se torna

sobremodo árdua quando nosso objeto é composto de termos tão volúveis quanto “ato

cooperativo” ou “adequado tratamento tributário”. O próprio sistema cooperativo,

mercê de suas peculiaridades, é pródigo em oferecer problemas de difícil solução,

reclamando muitas vezes a análise detida de cada uma de suas muitas espécies.

A complexidade do tema é tal que muitos ainda nem se deram conta disso.

De fato, há inúmeras espécies de cooperativas, e cada uma delas guarda

particularidades em relação às demais, e de uma tal sorte que não chegaria a ser um

exagero completo afirmar que para cada espécie de cooperativa algum, ou alguns, dos

institutos comuns ao gênero assume insuspeita singularidade. É o que veremos.

3.2 – Analítica do Disciplinamento Constitucional e Infraconstitucional da

Matéria

3.2.1 – Contexto Normativo

Com o advento da Carta Política de 1988, o tratamento legal do

cooperativismo assumiu a dignidade de matéria constitucional no Brasil. As alusões às

cooperativas são feitas ao longo de todo o texto da Constituição, ora com maior grau de

abstração, ora definindo especificamente o trato a ser dispensado a particulares

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espécies de cooperativas. Ao longo dessas menções enunciativas é possível construir

uma série de conceitos-chave para a definição de um tratamento constitucional às

cooperativas, mormente em matéria tributária, como se verá logo em seguida.

No plano infraconstitucional destaca-se a Lei n° 5.764/71 (Lei das

Cooperativas), definidora dos mais diversos aspectos do disciplinamento legal dessas

sociedades. Também o Código Civil, que desde a sua última grande reforma traz

artigos direcionados especificamente ao tema. Tais veículos normativos se

complementam no trato da matéria.

Sem embargo da importância das novidades trazidas pelo Código Civil, é a

Lei n° 5.764/71 o corpo legislativo por excelência das cooperativas brasileiras, onde se

encontram enunciados acerca dos mais diversos aspectos, desde a constituição até a

dissolução dessas sociedades, num esforço de disciplinamento legal da matéria. Merece

menção o fato de que foi a primeira na América Latina a tratar expressamente do ato

cooperativo96, servindo de modelo para muitas das demais legislações.

O que mais nos interessará nessa análise são os enunciados que servirão

como base empírica para que construamos as normas jurídicas diretamente relativas à

tributação da atuação cooperativa, de acordo com o objeto científico especificado neste

estudo.

3.2.2 – Cooperativas na Constituição Federal

Como dito, são várias as indicações de matéria cooperativista na Carta

Suprema. Importam para este estudo, sobretudo, aquelas normas construídas com base 96 Cf. DANTE CRACOGNA, O ato cooperativo na América Latina, in Ato Cooperativo e seu Adequado Tratamento Tributário, p. 45.

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no texto constitucional com maior grau de abstração e generalidade e que, por isso, têm

um âmbito de eficácia mais amplo dentro do sítio normativo cooperativista. De ver está

que nos referimos às normas constitucionais principiológicas.

Pretendemos com isso erigir nosso paradigma interpretativo com base na

Constituição da República. Com isso queremos deixar claro que os vetores máximos da

interpretação em que se funda esse labor são os princípios constitucionais – em

primeiro lugar –, e os princípios cooperativos, logo em seguida.

Vejamos panoramicamente o todo para, no momento oportuno, destacar o

quadrante de maior relevância. Comecemos pelo art. 5° da Constituição:

Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

XVIII - a criação de associações e, na forma da lei, a de cooperativas independem de autorização, sendo vedada a interferência estatal em seu funcionamento;

Do enunciado constitucional supra, podemos extrair norma de grande

generalidade e abstração (sem embargo da norma jurídica que veda a interferência

estatal no funcionamento das cooperativas), qual seja aquela que perfaz o princípio da

igualdade jurídica97, pedra angular do sistema democrático de direito. Vários são seus

desdobramentos, como o princípio da igualdade tributária. É fundamental mantê-los

em mente quando tratamos de sociedades tão singulares como as cooperativas, pelos

motivos que demonstraremos ao longo deste trabalho.

97 Estudo dos mais inovadores sobre o referido princípio é a substantiva obra Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade, op. cit., da lavra de CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO.

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Pois bem, em se tratando de princípios erigidos à dignidade de primados

constitucionais, temos que os mesmos assumirão papel informativo e condicionante de

toda a interpretação normativa que se fizer a partir daqui. Eis o que podemos chamar de

nossa primeira premissa interpretativa jurídico-principiológica.

Com base nessa premissa, e nas que se seguirão, construiremos a partir dos

textos normativos que fazem referência às cooperativas, a norma jurídica prescritiva do

tratamento tributário adequado ao ato cooperativo. Mas sigamos, transcrevendo outras

passagens do texto constitucional referentes às cooperativas. Sempre que oportuno

faremos algum comentário acerca das mesmas:

Art. 21. Compete à União:

XXV - estabelecer as áreas e as condições para o exercício da atividade de garimpagem, em forma associativa..

Art. 187. A política agrícola será planejada e executada na forma da lei, com a participação efetiva do setor de produção, envolvendo produtores e trabalhadores rurais, bem como dos setores de comercialização, de armazenamento e de transportes, levando em conta, especialmente:

VI – o cooperativismo.

Art. 192. O sistema financeiro nacional, estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos interesses da coletividade, será regulado em lei complementar, que disporá, inclusive, sobre:

VIII - o funcionamento das cooperativas de crédito e os requisitos para que possam ter condições de operacionalidade e estruturação próprias das instituições financeiras.

O fator mais interessante depreendido da interpretação desses enunciados é

o reconhecimento, em sede constitucional, de que as cooperativas podem atuar em

praticamente todos os ramos do mercado, malgrado não se confundam com as demais

espécies societárias. Sim, sua atuação é própria, singular, pois a referência textual

específica a essa forma de sociedade a aparta das demais. Veremos mais adiante que

essa diferenciação não é sem razão e se funda em motivos de ordem jurídica.

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Tal atuação no mercado vai desde o setor agrícola até o financeiro. No

primeiro aparece como uma das diretrizes da política agrícola nacional. No caso do

setor financeiro, o que se prescreve é que a lei complementar disporá sobre a atuação

das cooperativas nesse mercado, de modo que estas detenham condições de

operacionalidade e funcionamento similares às das demais sociedades atuantes nesse

ramo. É dizer: à cooperativa é dado atuar no setor financeiro com as mesmas condições

das outras espécies de sociedade que aí atuam, donde se reconhece sua (cooperativa)

distinção em relação a estas (demais sociedades do ramo econômico).

Deixamos para o final os seguintes trechos, dada a sua importância para o

presente trabalho (os motivos para tanto se tornarão claros ao longo da exposição).

Art. 146. Cabe à lei complementar:

III - estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre:

c) adequado tratamento tributário ao ato cooperativo praticado pelas sociedades cooperativas.

No que concerne à tributação das cooperativas, não se encontrará na

Constituição enunciado que se lance mais diretamente na porção tributária da matéria

do que esse do art. 146, III, “c”. Aqui se faz menção ao ato cooperativo, e só aqui, para

dizer que a lei complementar cuidará de definir seu adequado tratamento tributário. O

tema será tratado amiúde em momento ulterior e oportuno.

No momento, o que nos interessa é destacar o reconhecimento

constitucional de que as cooperativas perfazem uma atuação própria, específica, só

delas. É a ilação que nos toma de assalto quando a Constituição expressamente

prescreve que o ato praticado por essas sociedades deve ter um tratamento tributário

adequado. O que a Carta Maior faz é prescrever que, dada a singularidade do tal ato –

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que portanto não pode ser igual ao praticado pelas demais sociedades –, a ele seja

emprestado o pertinente tratamento tributário.

Art. 174. Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado.

§ 2º. A lei apoiará e estimulará o cooperativismo e outras formas de associativismo.

§ 3º. O Estado favorecerá a organização da atividade garimpeira em cooperativas, levando em conta a proteção do meio ambiente e a promoção econômico-social dos garimpeiros.

§ 4º. As cooperativas a que se refere o parágrafo anterior terão prioridade na autorização ou concessão para pesquisa e lavra dos recursos e jazidas de minerais garimpáveis, nas áreas onde estejam atuando, e naquelas fixadas de acordo com o artigo 21, XXV, na forma da lei.

Também em relação ao art. 174 e seus desdobramentos, cuidaremos

adiante, em tópico próprio que se justifica dentro do contexto deste labor. Mas diremos

aqui somente que a interpretação que se faz é a de que a norma constitucional prescreve

um tratamento diferenciado às cooperativas, pois fala em incentivo e estímulo, e

diretamente prescreve tal promoção às cooperativas de garimpo, o que, por si só, tem

significação que excede a própria prescrição.

Fica claro, ao longo da dicção constitucional, o reconhecimento do caráter

socialmente inclusivo inerente ao cooperativismo, que como outras formas de

associação deve ser estimulado, diz a Constituição. Tal reconhecimento constitucional

exsurge clarividente do labor exegético quando este toma espeque numa postura

cognoscente preocupada com a sistematicidade do texto.

Cumpre destacar vivamente, ainda, que na dicção do § 3° do art. 174 da

Magna Carta já se menciona o caráter socioeconômico relativo à atividade cooperativa.

Eis reconhecimento constitucional de máxima importância, e que nem sempre tem

merecido o devido relevo pela doutrina.

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Com efeito, tanto quando foi específico, como quando foi mais

generalizante, o legislador constitucional – sensível ao modelo cooperativista –

reconheceu sua singularidade como espécie de sociedade, a necessidade de sua

proteção e estímulo, por fim, o que não pode ser olvidado, sob pena de se negar

eficácia à norma construída com base no Texto Supremo.

3.2.3 – Cooperativas e o Código Civil

Até o advento do novo Código Civil, o diploma legal disciplinador do

cooperativismo era a Lei n° 5.764/71. Esta lei trata, exclusiva e minudentemente, da

matéria cooperativa, definindo desde a sua constituição, até as hipóteses de dissolução

e liquidação, passando pela definição do ato cooperativo. Mas, com a reforma do

Código Civil, aquela lei (Lei das Cooperativas) passou a disciplinar o tema junto a este,

que o fez pontualmente, porém de maneira a manejar algumas importantes alterações98

no regime jurídico cooperativista, inclusive, no sentido de estimulá-lo99.

Urge salientar que o simples fato de o Diploma Civil ter passado a

disciplinar alguns aspectos das sociedades cooperativas, dedicando espaço de algum

destaque a estas, cumpre o papel emblemático de firmar, em nosso contexto jurídico –

98 Não é o objeto deste labor esmiuçar toda a legislação sobre cooperativas, que importa em infinitos desdobramentos jurídicos. Quanto ao Código Civil, malgrado a sua relevância inconteste, não trataremos de cada uma de suas disposições sobre cooperativas. Para estudos aprofundados especificamente sobre o tema das disposições do Código Civil acerca das cooperativas, seu cotejo com a Lei das Cooperativas e o desenvolvimento de questões polêmicas como, v.g., o registro da sociedade cooperativa, remetemos o leitor às seguintes obras: Cooperativismo e o Novo Código Civil, obra coletiva sob a coordenação de GUILHERME KRUEGER; Elementos de Direito Cooperativo (p. 54 ss), de RENATO LOPES BECHO; e os artigos de GUILHERME KRUEGER (p. 96 a 119), JOSÉ CLAUDIO RIBEIRO OLIVEIRA (p. 144 a 155) e VERGÏLIO FREDERICO PERIUS (p. 287 a 292), in Problemas Atuais do Direito Cooperativo, sob a coordenação de RENATO LOPES BECHO. 99 É o caso, v.g., da norma que põe a variabilidade ou mesmo a dispensa do capital social, o que serve de claro estímulo para a criação de sociedades cooperativas, a depender de sua espécie (art. 1.094, I).

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reflexo da conjuntura social em que se encontra inserido como subsistema social –, a

importância insuspeita do regime cooperativo.

Sim, pois a relevância dessas sociedades em nossa economia e em nossa

sociedade já não mais pode ser negada. Destarte, a inclusão da matéria no Código Civil

serve, antes e acima de tudo, para reforçar a relevância do tema e externar a

especificidade do modelo. O próximo passo, quem sabe, não será a criação do Código

Cooperativo Brasileiro. Já não seria sem tempo.

As sociedades cooperativas não se confundem com os demais tipos

societários, sendo espécie singular de sociedade, seja qual for o gênero em que

terminologicamente o código as insira.

De acordo com o Código Civil as cooperativas são sociedades do tipo

simples. É o que se depreende do enunciado seguinte:

Art. 982. Salvo as exceções expressas, considera-se empresária a sociedade que tem por objeto o exercício de atividade própria de empresário sujeito a registro (art. 967); e, simples, as demais.

Parágrafo único: independentemente de seu objeto, considera-se empresária a sociedade por ações; e, simples, a cooperativa.

A par da disposição do Código Civil, vale a arguta ressalva feita por

RENATO LOPES BECHO100:

Não deve o intérprete concluir apressadamente, apenas pela redação desse artigo, que as cooperativas não sejam estruturadas como empresa (...). A cooperativa não será ‘sociedade empresária’ para os fins da classificação disposta no Código Civil. E só. É dizer: as cooperativas não precisarão ter o registro típico de ‘sociedade empresária’ e não adotarão nenhum dos tipos de sociedade que visam o lucro (sociedade em nome coletivo, em comandita simples, em comandita por ações, de responsabilidade limitada, anônima ou por ações. Apenas isso. Não significa que, para todos os fins, notadamente acadêmicos, as cooperativas não tenham mais a estrutura organizacional de empresa”.

100 Elementos... op. cit., p. 63 e 64.

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Eis aqui uma característica (as demais veremos em seguida) inarredável das

sociedades cooperativas: debalde o nome que se dê, sua estruturação organizacional é

típica de empresa. Já tivemos oportunidade de afirmar que “atividade societária

organizada para a consecução de um objetivo comum e específico, de fim

essencialmente econômico, em linhas gerais, não é outra coisa que não empresa”101.

Empresa é antes um modelo de organização societária.

Com efeito, atuando no seio de uma conjuntura com um grau de

complexidade como a experimentada pela sociedade de hoje, não seria viável a atuação

(socioeconômica) cooperativa dentro de um outro modelo. Porém, há de ficar claro,

desde já, que “o aspecto econômico , ínsito ao caráter empresarial da cooperativa, não

deve ser confundido com o lucro”102. Cooperativa, como veremos, não obtém lucro.

Ainda sobre a inclusão, pelo Código Civil, das cooperativas no rol das

sociedades simples, é de bom alvitre anotar a ponderação tecida por ÊNIO

MEINEN103, com apoio em digressões de MIGUEL REALE, que assim se posiciona:

Mesmo que um apanhado literal o possa sugerir (elevando, além do devido, o teor do parágrafo único, in fine, do art. 982), revelamos nossa convicção baseados, de resto, no parágrafo único do art. 983 (1ª parte), na parte final do art. 1.093 e no art. 1.159, de que o CCB não converte as cooperativas em Sociedades Simples. O que o novíssimo diploma – assentado em preceitos abstratos e genéricos (instrumento de “partida”, matriz flexível), segundo o Prof. Miguel Reale – propõe é um alinhamento parcial com esse tipo societário (ao tempo em que as distancia das Sociedades Empresárias), visando a uma classificação referencial-padrão, uma segregação mínima (ainda que por semelhança – no caso das Sociedades Simples e das Cooperativas o elo é a natureza civil), dos diferentes tipos societários, já que a todos eles se pretende remeter (como que compondo um catálogo). A Lei Cooperativista – que, ademais, é posterior à concepção do projeto da vindoura Lei Civil (1965) -, enfim, sobrevive e, com ela, a natureza singularíssima das sociedades cooperativas. (grifos no original)

101 Atos cooperativos e sua tributação pelo ISS à luz da teoria geral do direito, in Problemas Atuais... RENATO BECHO (coord.), op. cit., p. 126. 102 RENATO LOPES BECHO, Elementos... op. cit., p. 123. 103 Assembléias Gerais: quorum e delegados, in Cooperativismo... op. cit., GUILHERME KRUEGER (coord.), p. 182.

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Primordial é ter em mente o caráter jurídico singular do arquétipo

societário cooperativo, qualquer que seja a terminologia usada pelo legislador,

notadamente quando sabemos que a tarefa legislativa é sempre prenhe de imprecisões

técnicas que cabe à ciência do direito averiguar criticamente.

Fato é que o Diploma Civil lança luzes apenas sobre uma parcela do

sistema cooperativo, pois não pretende exauri-lo, deixando boa parte do

disciplinamento ainda sob a batuta da legislação especial, leia-se, Lei n° 5.764/71,

conforme se infere do art. 1.093: “A sociedade cooperativa reger-se-á pelo disposto no

presente Capítulo, ressalvada a legislação especial”.

Ao dispor sobre cooperativas, o Código Civil não logra abordar largamente

a matéria, como o faz a Lei das Cooperativas. Basicamente, aquele diploma reedita

características cooperativas já previstas naquele dispositivo, ora reforçando-as, ora

atualizando-as, no mais das vezes.

Assim é que as disposições do Código Civil, a despeito de diminuir a

importância da Lei n° 5.764/71, vêm para lhe emprestar novo fôlego, na medida em

que os dois diplomas se complementam. Por isso o intérprete, ao se debruçar sobre

eles, deve ter o cuidado de, sempre que possível, conjugar tais disposições, manejando

tanto o código quanto a lei para, a partir de ambos – e dos princípios aplicáveis –,

construir as normas jurídicas cooperativas.

Cientes da objetividade inerente ao texto científico, decidimo-nos por não

enumerar a esse tempo todas as disposições sobre cooperativas contidas no Código

Civil, para nos referirmos a elas, sempre que oportuno, quando se faça necessário o

cotejo junto à Lei das Cooperativas. Assim, evitamos a repetição.

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3.3 – Sobre o Conceito de Cooperativa

3.3.1 – A Título de Premissa

Pois bem. A temática cooperativista remonta à Rochdale Society of

Equitables Pioneers, pequena sociedade de tecelões criada na região de Manchester,

Inglaterra, lá pelos já distantes idos de 1844. A moderna concepção de cooperativa, via

de regra, nasceu aí104.

As inspirações axiológicas oriundas dos Pioneiros de Rochdale podem ser

identificadas nas cooperativas atuais, em seus regramentos jurídicos locais e, também,

na doutrina. Cremos que grande influência nesse sentido é exercida pela Associação

Cooperativa Internacional (ACI), criada em 1895 com o fito de velar pelos princípios

universais do cooperativismo, extraídos do modelo rochdaleano.

Mas o que é uma cooperativa?

A pergunta pode ser respondida sob os mais diversos enfoques. Em

verdade, tal resposta varia de acordo com o ponto de vista que se lança sobre o objeto

(o termo cooperativa). Assim, poderíamos lançar mão de um conceito com viés

político, sociológico, econômico, jurídico, histórico...

O fato é que a concepção de cooperativa carrega sempre uma grande carga

ideológica e axiológica. Quando se estuda o tema das cooperativas não é difícil ver

104 Quem discorda é RUI NAMORADO, que entende que o cooperativismo moderno não pode ter seu nascimento confundido com os Pioneiros de Rochdale, malgrado a sua importância. Para tanto, aponta experiências cooperativas que chama de pré-rochdaleanas, do início do século XIX. Vide sua obra: Os Princípios Cooperativos, p. 7 ss.

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expressões como “socialismo”, “movimento operário”, “anticapitalismo”, “utópicos”

ou “valores” e “princípios universais”.

De pronto, fica claro o matiz essencialista e mesmo político-ideológico que

subjaz a esses termos. Com algum esforço é possível depreender os valores e as

ideologias que informam tais denominações, as quais historicamente repercutiram para

a criação desse modelo de sociedade chamado cooperativa.

A questão que se põe é saber se esses valores foram incorporados ao

ordenamento jurídico ao qual rendemos nossa atenção.

Não sobeja reafirmar a premissa eleita para o desenvolvimento desse labor

científico, qual seja, aquele da dogmática jurídica ou ciência do direito em sentido

estrito: o conjunto das normas jurídicas válidas (no caso, componentes do ordenamento

jurídico brasileiro).

Com isso não queremos desprezar aqueloutros pontos de vista sobre o

cooperativismo, mas apenas cingir metodologicamente o objeto de nossos estudos, para

deixar do lado de fora os contornos próprios de outras importantes ciências, como a

política do direito, a economia ou a história do direito. Isto vale para todo o nosso

trabalho, sem prejuízo, que fique claro, do enfoque pragmático dado também ao tema.

3.3.2 – A Cooperação em Cooperativa

Cooperativa, como sociedade, remete à idéia de um conjunto de pessoas

em torno de um objetivo comum. A própria cooperação não é mera reunião de pessoas,

mas reunião de pessoas com objetivos comuns e que pretendem colaborar mutuamente

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para a sua consecução. Entendem que juntos são mais fortes, simplesmente. O aspecto

pessoal e solidário (mutualístico) cresce em importância.

Mas a idéia de cooperativa implica uma nota outra, que se soma àquela: o

viés econômico. Sim, pois o móvel da cooperativa é, também, econômico. Pode-se

dizer que o objetivo comum do grupo que se une em cooperativa é de caráter

socioeconômico. É dizer: o intuito de se organizarem, ajudando uns aos outros

mutuamente, é atingir um fim de dupla face, social e econômico, que se traduz na

melhora ou promoção das condições socioeconômicas do grupo. Não fosse assim e não

nos seria dado falar em cooperativa, mas em mero mutualismo ou, simplesmente, em

cooperação.

Cooperar (operar com outros) assume um aspecto específico nessa espécie

de sociedade, visto que se coopera em cooperativa, e não com a cooperativa. É dizer: os

associados atuam entre si e na cooperativa, não com a cooperativa. Ajuda-nos a

compreender essa noção a opinião de ELSA CUESTA105:

El actuar en conjunto es uno de los rasgos que caracterizan a la cooperativa, es decir, se coopera, se opera com otros, juntamente con los demás asociados. Pero la masa de asociados no opera con la cooperativa, sino a través de ella.

La cooperativa ni vende, ni compra, ni emplea a sus asociados, ella distribuye, los asociados organizados distribuyen, a cada uno lo que demanda.

A lição do renascentista das Alagoas PONTES DE MIRANDA106 cumpre

por pontuar o objetivo da cooperação em cooperativa:

A cooperativa atende a que há necessidade ou necessidades, que podem ser satisfeitas ou mais eficientemente satisfeitas com a cooperação. Em princípio, a cooperativa supõe que outrem tire proveitos que pesam nos que se juntam, em cooperação, para que se pré-eliminem esses proveitos por terceiros (intermediários). Há algo de defensivo, de pré-eliminatório dos que teriam por fito ganhar, por falta de cooperação entre os sócios da cooperativa. O que caracteriza a cooperativa é essa função de evitamento do que os outros ganham

105 Naturaleza Juridica de las Cooperativas, in Temas de Derecho Cooperativo, p. 81. 106 Tratado de Direito Privado - Tomo XLIX, p. 431 e 432.

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com que o sócio da cooperativa paga a mais, ou recebe de menos. Não se pode dizer que essa atividade seja extra-econômica, como se tem afirmado. Não é só econômico o que se passa em defesa dos que alienam e dos que adquirem.

E mais adiante aplica tal raciocínio a alguns casos de atuação cooperativa:

O método de atividade, na sociedade cooperativa, consiste na prática de atos que diminuam o custo da produção, de jeito a haver vantagem pra os sócios, que são os consumidores, ou que levem à obtenção de melhor preço para os produtos, pois que produtores são os sócios, ou a conclusões de empréstimos com menores interesses.

Meditando em atenção ao tema, já tecemos algumas considerações de

mesmo jaez dando conta de nossa visão, e pedimos vênia ao leitor para reproduzi-las

aqui107:

A atuação em cooperativa é decorrência da noção de que se torna mais fácil executar uma tarefa, realizar um objetivo, negociar, enfim, deter melhores condições de desenvolvimento econômico atuando em conjunto, onde se parte da premissa de que a ajuda mútua é o melhor caminho para o engrandecimento social e econômico de cada um considerado individualmente.

Porém, o viés de cunho econômico não se traduz na busca de lucro por

parte da cooperativa, mas simplesmente da vantagem (econômica) imediatamente

advinda da cooperação. Eis uma outra característica particular das sociedades

cooperativas. “O cooperativismo, pois, deita raízes numa conjuntura organizacional de

apoio mútuo e de busca coordenada de soluções para a consecução dos interesses

sociais do grupo, em benefício de todos que o integram” 108, e esse benefício é

econômico, sem se sobrepor ao caráter pessoal da solidariedade cooperativa.

O importante é deixar claro que se coopera em cooperativa no afã de que

os sócios consigam vantagens econômicas que seriam impossíveis a eles, caso

atuassem isoladamente. O atuar-em-conjunto, mutuamente, para um fim

107 Atos cooperativos e sua tributação pelo ISS à luz da teoria geral do direito, in Problemas Atuais..., RENATO BECHO (coord.), op. cit., p. 121. 108 De nossa lavra. Idem, ibidem.

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socioeconômico de proveito comum caracteriza a cooperativa. Note-se que o elemento

mais importante dessa equação é o atuar-em-conjunto para o bem do grupo, que se

sobrepõe ao elemento econômico. Por outro giro: o elemento primordial da cooperativa

é o pessoal – presente na mutualidade –, não o econômico, que se submete, por assim

dizer, àquele.

3.3.3 - Traços de um Conceito

Agir coletivamente para um interesse socioeconômico e para o benefício

do grupo é o que caracteriza o que chamamos de solidariedade cooperativa. Esta

verdadeira característica, construída a partir do arquétipo jurídico que as cooperativas

apresentam, traduz-se em mutualidade, isto é, na “intenção de cada um contribuir para

as tarefas do conjunto, de modo a dar e receber em termos eqüitativos”109.

O caráter solidário afasta o matiz egoístico típico das empresas que visam o

lucro. Com isto queremos dizer que solidariedade cooperativa implica bem comum,

comunhão de interesses. Mais que isso, importa em gerência comum desses interesses.

Em uma expressão: gestão democrática. Com efeito, “a esta raiz mutualista adequa-se,

no plano do exercício dos poderes dentro das organizações cooperativas, uma

democraticidade tendencialmente completa”110.

Aprofundemos mais um pouco a abordagem analítica empreendida aqui.

Há, no contexto da cooperação em cooperativa, quatro elementos que se

sobressaem: a) a união de pessoas; b) o atuar em conjunto para um fim econômico 109 Cf. RUI NAMORADO, Introdução ao Direito Cooperativo, p. 19. 110 Idem, ibidem.

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comum e c) a vantagem econômica que só é possível porque a atuação é conjunta, e

que é comum a todo o grupo que agiu junto e, d) a gestão democrática dos interesses

cooperativos.

Apesar de podermos, metodologicamente, separar tais elementos, resta

claro seu imarcescível encadeamento lógico. Sim, pois o proveito econômico comum

alcançado pelo grupo deriva do fato de que a atuação visava a um único fim, o qual era

compartilhado por um grupo que se ajuda mutuamente nessa empresa e que, dessa

forma, gere igualitariamente essa atuação.

Mas sobre a circunstância de que a cooperação em cooperativa se dá para

melhorar as condições socioeconômicas do sócio, subtraindo intermediários na cadeia

de produção e consumo (em sentido amplo), temos a dizer que é efetivamente a figura

da cooperativa que torna exeqüível esse quadro. Por outros torneios: é através da e na

cooperativa que os associados alcançam o fim que os uniu.

Assim é que WALMOR FRANKE111, de modo pragmático, vai dizer:

O que é, certamente, essencial ao conceito de cooperativa é que esta promova a defesa e melhoria da situação econômica dos cooperados, quer obtendo para eles, ao mais baixo custo, bens e prestações de que necessitam, quer colocando, no mercado, a preços justos, bens e prestações por eles produzidos.

Com efeito, a cooperativa aparece como estrutura organizacional complexa

erigida com o escopo de servir aos seus sócios, de maneira a suprir suas deficiências

individuais e tornar efetiva uma vantagem econômica que seu modelo peculiar torna

viável em decorrência da estrutura cooperativa e da condição de seu usuário que esse

111 Direito das Sociedades Cooperativas, p. 12.

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sócio detém, além da atuação da própria cooperativa junto ao mercado112 visando

tornar tal fim algo concreto. Por isso se diz que o fim é alcançado na e através da

cooperativa.

Colocar a cooperativa na posição de agente, em verdade, denota seu

emblemático ofício de prestadora de serviços (aos associados). O agir da cooperativa

está em que a mesma presta serviços aos seus associados toda vez que viabiliza os fins

para os quais fora instituída.

A essa altura do andor cognoscitivo já exsurgem o elemento pessoal, a

solidariedade cooperativa, o fim econômico compartilhado, a gestão democrática e a

prestação de serviços pela cooperativa a seus associados como elementos

indissociáveis da noção de cooperativa. Mas há outros, como veremos em seguida.

Trata-se, afinal, de conceito complexo e somente com a apreciação

sistemática e crítica do enredo normativo afeto a esta espécie de sociedade faz-se

possível tracejar uma conceituação que disponha dos elementos julgados pelo

intérprete como mais importantes para esse fim.

3.3.4 - Conceito de Cooperativa na Doutrina e na Lei

Definir cooperativa, como organização de cunho social que é, leva-nos

quase que inarredavelmente na direção dos arredores movediços dos conceitos

112 Este termo aparecerá ao longo do texto com o sentido de ente indeterminado que personaliza toda a conjuntura econômica ao derredor da cooperativa, referido a todos os setores de produção e consumo de bens, serviços, utilidades, comodidades etc.

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tendentes à universalização, tão cara a alguns dos entusiastas do modelo. Se fosse

assim, seria o caso de se perguntar se há um conceito universal de cooperativa.

Mas não cairemos em tentação. Manteremos os rumos epistemológicos

deste trabalho para circunscrever tal conceito ao espectro do ordenamento jurídico

brasileiro. É o mesmo que dizer que a nós interessa apenas o conceito jurídico de

cooperativa que se pode construir a partir do ordenamento jurídico jungido com

supedâneo na Constituição Federal de 1988.

A doutrina tem conceituado cooperativas levando em conta suas principais

características, que assumem o viés de notas distintivas em relação às outras espécies

de sociedade e findam por imprimir um matiz singular às cooperativas. Nem poderia

ser diferente.

Para o autor português RUI NAMORADO113, sob a influência das

diretrizes postas pela ACI, eis o conceito de cooperativa:

Uma cooperativa é uma associação autónoma de pessoas unidas voluntariamente para prosseguirem as suas necessidades e aspirações comuns, quer económicas, quer sociais, quer culturais, através de uma empresa comum e democraticamente controlada.

Na doutrina pátria vale citar o conceito fundamentado de RENATO

LOPES BECHO114:

Para nós, as cooperativas são sociedades de pessoas de cunho econômico, sem fins lucrativos, criadas para prestar serviços aos sócios de acordo com princípios jurídicos próprios e mantendo seus traços distintivos intactos.

113 Introdução... op. cit., p. 187. 114 Tributação das Cooperativas, p. 95.

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O que há de comum nesses conceitos, basicamente, é o relevo dado ao

aspecto pessoal e ao econômico. Que, ao que nos parece, são indissociáveis em

cooperativa, por tudo que se disse. Mas só isso não é suficiente.

De fato, cooperativa é sociedade de pessoas, não de capitais. Isso se

depreende do móvel solidário que une os associados em torno de um objetivo

econômico comum que buscam através de seus esforços conjuntos e em benefício de

todos.

Mister situar o contexto desse discurso no raciocínio de PONTES DE

MIRANDA115, quando este afirma que “a sociedade cooperativa é sociedade em que a

pessoa do sócio passa à frente do elemento econômico e as conseqüências da

pessoalidade da participação são profundas, a ponto de torná-la espécie de

sociedade”.

O aspecto pessoal da sociedade cooperativa, de fato, não encontra paralelo

em nosso sistema societário, da forma como caracterizado legalmente, e se perfaz tão

pungentemente que finda por espraiar efeitos por todo o sistema cooperativo, talhando,

assim, uma feição única a este modelo societário.

A Lei n° 5.764/71 prescreve aspectos que servem de base para a construção

do conceito de cooperativa. Mais que isso não podemos afirmar quanto a sua dicção.

Afinal, conceituar é tarefa do intérprete, cientista do direito, não da lei.

Pois bem. A citada lei contém o seguinte texto:

Art. 4° As cooperativas são sociedades de pessoas, com forma e natureza jurídica próprias, de natureza civil, não sujeitas à falência, constituídas para prestar serviços aos associados, distinguindo-se das demais sociedades pelas seguintes características:

115 Tratado... op. cit., p. 429.

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I - adesão voluntária, com número ilimitado de associados, salvo impossibilidade técnica de prestação de serviços;

II - variabilidade do capital social representado por quotas-partes;

III - limitação do número de quotas-partes do capital para cada associado, facultado, porém, o estabelecimento de critérios de proporcionalidade, se assim for mais adequado para o cumprimento dos objetivos sociais;

IV - inacessibilidade das quotas-partes do capital a terceiros, estranhos à sociedade;

V - singularidade de voto, podendo as cooperativas centrais, federações e confederações de cooperativas, com exceção das que exerçam atividade de crédito, optar pelo critério da proporcionalidade;

VI - quorum para o funcionamento e deliberação da Assembléia Geral baseado no número de associados e não no capital;

VII - retorno das sobras líquidas do exercício, proporcionalmente às operações realizadas pelo associado, salvo deliberação em contrário da Assembléia Geral;

VIII - indivisibilidade dos fundos de Reserva e de Assistência Técnica Educacional e Social;

IX - neutralidade política e indiscriminação religiosa, racial e social;

X - prestação de assistência aos associados, e, quando previsto nos estatutos, aos empregados da cooperativa;

XI - área de admissão de associados limitada às possibilidades de reunião, controle, operações e prestação de serviços.

Esses enunciados findam por prescrever características que também atuam

substancialmente no sentido de distinguir essas sociedades das demais. Como o fim

econômico comum é flagrante, fica desde logo fixada a diferença em relação às

sociedades de caráter beneficente ou afins, onde se atua para o benefício de terceiros,

sem almejar qualquer benefício para si, que dirá econômico (argumento a fortiori). Em

cooperativa se atua em benefício dos associados que atuam solidariamente, não de

outrem.

O mais importante é deixar clara, principalmente, a distinção havida entre

cooperativa e empresa dita comercial. A ausência de lucro na atuação de uma

cooperativa talvez seja um dos pontos distintivos mais contundentes entre ela e os

demais tipos societários de caráter econômico previstos em nosso ordenamento. Dele

(lucro) trataremos em breve.

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3.3.5 - Nosso Conceito de Cooperativa ou de como se Constrói tal Conceito

Através de uma Hermenêutica Orientada para a Constituição

Características cooperativas há reconhecidas constitucionalmente (cf.

tópico 3.2.2). Seria decerto um exagero retórico, contudo, alegar que a Constituição

encerra, nela mesma, um conceito de cooperativa.

Mas o que pretendemos significar é, tão-só, que, malgrado não tenha ela

própria (Constituição) traçado todos os elementos de uma conceituação, ou em número

suficiente para que se construísse um tal conceito para o modelo brasileiro com base

em seu texto, ao menos alguns pressupostos do conceito de cooperativa podemos

construir a partir daí.

Em consonância com o que fora esposado no referido subitem 3.2.2, a

nosso ver dois pressupostos são fundamentais para uma conceituação de cooperativa

que assuma como ponto de partida a Constituição Federal, como a pretendida aqui: a) o

reconhecimento constitucional de que as cooperativas são modelo singular de

sociedade, com atuação específica, logo, não é dado que atuem exatamente como as

demais sociedades. Além disso, b) a prescrição constitucional do caráter (promocional)

socioeconômico das cooperativas, que, portanto, nem é só social, nem apenas

econômico.

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Em vista de sua tessitura no altiplano da Constituição, entendemos que tais

premissas são imprescindíveis para a conformação do modelo cooperativista e sua

compreensão plena por parte da doutrina e dos tribunais.

Causa certa espécie aos menos avisados a circunstância de que as

cooperativas detêm, obrigatoriamente, caráter econômico. Some-se a isso o fato de que,

a despeito disso, não auferem lucro (art. 3° da Lei das Cooperativas). Não há qualquer

paradoxo nisso.

Viés econômico não implica necessariamente lucro. Não são condição

suficiente um do outro. Sim, pois nem todo fim econômico é lucrativo. O fim

econômico cooperativo é típico e “a especificidade do fim econômico marca a

sociedade cooperativa”116, distinguindo-a das demais espécies societárias, mormente as

mercantis. É o econômico a serviço do pessoal/solidário, jamais o contrário. E essa

lógica não comporta o lucro117.

O que pretendemos é firmar o pressuposto de que a finalidade não é só

econômica, mas socioeconômica em cooperativa.

Ainda com PONTES DE MIRANDA118 vemos:

O fim econômico, nas sociedades cooperativas, é atingido diretamente pelos sócios, em seus contatos com a sociedade. O fim econômico nas sociedades lucrativas é obtido com a repartição do que a sociedade percebeu de lucro. A diferença é sutil, porém sempre de máxima relevância. (grifos no original)

116 PONTES DE MIRANDA, Tratado... op. cit., p. 432. 117 Válido é o ponto de vista de RUI NAMORADO sobre a questão, em relação ao qual estamos de pleno acordo: “A não lucratividade, que não implica qualquer desvalorização da empresarialidade, situa-se na convergência dos valores de mutualidade e democraticidade, para cujo conteúdo pleno contribui (...)”. Introdução... op. cit., p. 19. Nessa linha de pensamento é que WALDIRIO BULGARELLI vai dizer que “o capital não constitui o determinante da participação associativa, mas mero instrumento para a realização de seus objetivos” (grifamos). As Sociedades Cooperativas e sua Disciplina Jurídica, p. 12. 118 Ibidem, p. 434.

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São inúmeros os elementos distintivos entre cooperativas e empresas

outras, mormente as mercantis. Nem sempre tão sutis. No mais das vezes, aliás, são

bem contundentes. O fato é que não é possível confundir tais tipos societários.

Pois bem. Eis o nosso conceito de cooperativa fundado em pressupostos de

matriz constitucional: Cooperativa é sociedade de pessoas, de arquétipo e atuação

específicos, erigida primordialmente para prestar serviços aos associados, com viés

socioeconômico, sem fim lucrativo, solidária e democraticamente gerida, segundo seus

princípios jurídicos próprios.

3.3.5.1 – A Cooperativa como Chave de Abóbada do Cooperativismo

São muitos os prosélitos119 de uma posição teórica firmada na crença de

que a natureza jurídica da cooperativa ou a teoria cooperativa deve ser construída a

partir do ato cooperativo. Segundo esse raciocínio, os associados praticam uma série de

atos (sui generis) em que se lhes deve reconhecer um animus e um corpus que

conferem traços distintos daqueles praticados pelas demais sociedades, a ponto de

implicar a distinção da sociedade em que são praticados: a cooperativa.

Esse raciocínio, aparentemente adequado e inegavelmente sedutor, não nos

convence. Com efeito, já do prisma lógico salta aos olhos a incompatibilidade de se

pretender definir um agente em função dos atos que pratica. Ora, se tais atos são

119 É o caso, v.g., de ELSA CUESTA, in Derecho Cooperativo – Tomo I, p. 107 ss e DANTE CRACOGNA, O ato cooperativo na América Latina, in Ato Cooperativo e seu Adequado Tratamento... op. cit., GUILHERME KRUEGER (coord.), p. 66.

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praticados por um agente, então esse agente, necessariamente, subsiste ao ato por si

praticado. É dizer: primeiro é o agente, depois o ato.

Para além disso, acreditamos que a espécie societária cooperativa é

caracterizada e, por conseguinte, definida, em função das características singulares que

engendram sua conformação jurídica.

E a partir dessa sua compostura, e só então, é que se constitui como algo

singular também o ato por si levado a efeito. Por outro giro: o ato só é cooperativo

porque praticado por uma cooperativa. Não o revés.

Em sendo assim, o conceito fundamental do cooperativismo não é o de ato

cooperativo – talvez supervalorizado por parte da doutrina –, mas o de cooperativa.

Uma vez compreendido o conceito de cooperativa em toda a sua complexa integridade

constitutiva – com seus desdobramentos –, o horizonte cooperativo se expandirá, e

conceitos como o do ato cooperativo serão mais facilmente desenhados. Assim como

todos os outros concernentes ao tema.

Mas, para tanto, tem-se de decompor o esquema constitutivo da

cooperativa em seus diversos aspectos jurídicos, concebendo-se os elementos que a

tornam uma espécie única de sociedade. Some-se a isso, então, o complexo ato

cooperativo – que só é possível porque se dá em cooperativa. É dizer: a estrutura dele

(ato) é moldada pela estrutura em que está inserido (cooperativa).

Entender a estrutura que perfaz uma sociedade em cooperativa, portanto, é

o primeiro passo para se conceber uma teoria cooperativista, mormente em termos

jurídicos.

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3.4 – Sobre as Características das Cooperativas: cotejo do código civil com a lei

das cooperativas

Algumas características cooperativas já foram pontuadas ao longo desse

labor, a exemplo da solidariedade, da pessoalidade, da prestação de serviços a favor

dos cooperados, da ausência de lucro. De algumas tratamos com profundidade, de

outras apenas pontualmente. Sobre os primeiros não tornaremos, em favor da fluidez e

desenvolvimento do texto, apenas se for necessário. Acerca daqueles que vimos só de

passagem vamos falar um pouco mais. Então, avancemos para fixar outras

características igualmente importantes para a composição do contexto jurídico

cooperativo, em tudo e por tudo singular.

Dentre os enunciados textuais contidos no Código Civil, lei ordinária

federal de 2002, merece destaque o art. 1.094. A atuação do legislador ordinário federal

em relação ao trato da matéria cooperativa foi tímida. Parece que tentou evitar as

polêmicas que um trabalho mais aprofundado, e com as reformas reivindicadas pelo

sistema, poderia suscitar.

Ainda assim há novidades em relação à Lei n° 5.764/71. Destarte, cumpre

transcrevê-lo aqui, para, logo então, lançar mão do outro diploma, traçando um paralelo

entre ambos em seus pontos mais intimamente relacionados ao nosso circunscrito

objeto científico.

Art. 1.094 – são características da sociedade cooperativa:

I – variabilidade ou dispensa do capital social;

II – concurso de sócios em número mínimo necessário a compor a administração da sociedade, sem limitação de número máximo;

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III – limitação do valor da soma de quotas do capital social que cada sócio poderá tomar;

IV – intransferibilidade das quotas do capital a terceiros estranhos à sociedade, ainda que por herança;

V – quorum, para a assembléia geral funcionar e deliberar, fundado no número de sócios presentes à reunião, e não no capital social representado;

VI – direito de cada sócio a um só voto nas deliberações, tenha ou não capital a sociedade, e qualquer que seja o valor de sua participação;

VII – distribuição dos resultados, proporcionalmente ao valor das operações efetuadas pelo sócio com a sociedade, podendo ser atribuído juro fixo ao capital realizado;

VIII – indivisibilidade do fundo de reserva entre os sócios, ainda que em caso de dissolução de sociedade.

Não seria sequer preciso dizer que tais disposições não esgotam o universo

cooperativo. Isto ficou claro agora. Há, tão-somente, disposições gerais dando conta de

características das sociedades cooperativas. Mas só de algumas. Já vimos outras que

não se encontram prescritas nesse trecho. Não há surpresa. Já sabemos que os

componentes necessários à construção das normas jurídicas se encontram como que

dispersos, espalhados pelos mais diversos enunciados textuais normativos do direito.

As normas cooperativas não fogem à regra.

Calha transcrever, também, o já citado art. 4° da Lei das Cooperativas,

máxime em atenção ao mencionado no art. 1.093 do C.C., onde há ressalva à legislação

especial. E nenhuma outra é tão especial para as cooperativas como a Lei n° 5.764/71.

De ver está que a validade da maioria das suas normas subsiste. Mas não de todas:

Art. 4º - As cooperativas são sociedades de pessoas, com forma e natureza jurídica próprias, de natureza civil, não sujeitas à falência, constituídas para prestar serviços aos associados, distinguindo-se das demais sociedades pelas seguintes características:

I - adesão voluntária, com número ilimitado de associados, salvo impossibilidade técnica de prestação de serviços;

II - variabilidade do capital social representado por quotas-partes;

III - limitação do número de quotas-partes do capital para cada associado, facultado, porém, o estabelecimento de critérios de proporcionalidade, se assim for mais adequado para o cumprimento dos objetivos sociais;

IV - inacessibilidade das quotas-partes do capital a terceiros, estranhos à sociedade;

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V - singularidade de voto, podendo as cooperativas centrais, federações e confederações de cooperativas, com exceção das que exerçam atividade de crédito, optar pelo critério da proporcionalidade;

VI - quorum para o funcionamento e deliberação da Assembléia Geral baseado no número de associados e não no capital;

VII - retorno das sobras líquidas do exercício, proporcionalmente às operações realizadas pelo associado, salvo deliberação em contrário da Assembléia Geral;

VIII - indivisibilidade dos fundos de Reserva e de Assistência Técnica Educacional e Social;

IX - neutralidade política e indiscriminação religiosa, racial e social;

X - prestação de assistência aos associados, e, quando previsto nos estatutos, aos empregados da cooperativa;

XI - área de admissão de associados limitada às possibilidades de reunião, controle, operações e prestação de serviços.

A ressalva feita a essa legislação especial impõe ao intérprete um esforço

no sentido de identificar as normas incompatíveis resultantes do cotejo dos dois

diplomas. Mas mais importante que isso é perceber os hiatos da novel legislação que

devem ser preenchidos por outras proposições normativas, ou seja, sotopostos pelas

normas construídas a partir da legislação anterior. A relação, pois, entre os dois

diplomas deve ser integrativa. É como se a legislação anterior – Lei das Cooperativas –

integrasse o contexto do Código Civil, naquilo, ao menos, em que não contrastam.

A posição, por certo, não é pacífica na doutrina. Alguns autores comungam

da tese, em maior ou menor grau, quando outros simplesmente tomam por

inconstitucional tudo o que está disposto no diploma civil sobre cooperativas120.

120 Em estudo sobre as assembléias gerais cooperativas, ÊNIO MEINEN destaca a convivência entre os dois diplomas dirigidos às cooperativas, a Lei n° 5.764 e o código civil, apontando as vicissitudes da redação deste último. Segundo esse autor, “deve ser dado prestígio máximo à tese da prevalência da Lei Cooperativista (Lei Especial para todos os efeitos), ou pelo menos a sua harmoniosa convivência/integração com o CCB (...)”. Assembléias gerais: quorum e delegados, in Cooperativismo e o Novo Código Civil, GUILHERME KRUEGER (coord.), p. 185. Já para RENATO BECHO, em artigo publicado na mesma obra, houve grandes avanços e significativa modernização da legislação cooperativista com o advento do (novo) C.C. In As metodologias de cotejo da Lei 5.764/71 e o código civil para a definição do novo regime jurídico das sociedades cooperativas, ibidem, p. 44. No sentido de que as disposições do C.C. acerca de cooperativas padecem de inconstitucionalidade, consultar VERGÍLIO FREDERICO PERIUS, As sociedades cooperativas face o (sic) novo código civil, in Problemas Atuais do Direito... RENATO BECHO (coord.), op. cit., p. 287 ss.

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Da leitura dos enunciados transcritos do Código Civil e da Lei das

Cooperativas já se denota a maior abrangência desta última, que traz enunciados

ausentes do corpo textual do primeiro. Será então que as características previstas na

legislação anterior não existem mais?

Dentro da premissa apontada, segundo a qual as duas legislações devem ser

compatibilizadas sempre que possível, podemos responder que não.

No caput do artigo 4° da Lei n° 5.764/71 enuncia-se que as cooperativas

são empresas criadas para prestar serviços aos seus associados. O mesmo dispositivo

não se repete na legislação mais nova. Contudo, tal característica subsiste. Não poderia

ser diferente. O sistema cooperativista se funda, todo ele, nesse elemento indissociável

de sua estrutura. Uma empresa só é cooperativa, dentre outros motivos igualmente

fundamentais, porque presta serviços aos seus associados.

É traço próprio do sistema cooperativo a prestação de serviços aos

associados, e vedar isso subverteria toda a lógica do sistema, descaracterizando-o.

Aliás, essa é uma das características que mais fortemente dissociam esse modelo

societário (cooperativa) dos demais previstos em nosso ordenamento positivo, como

demonstraremos adiante.

Esse é só um exemplo que atesta a tese da complementaridade entre as

disposições textuais dirigidas às cooperativas.

No que diz respeito ao capital social houve alteração/novidade quanto à

redação legal anterior. Acresceu-se a possibilidade de haver cooperativa sem capital

social (art. 1.094, I). Ao que tudo indica, agiu bem o legislador ao inovar nesse sentido.

O capital social realmente só será elemento do qual não poderá se dissociar a

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cooperativa que, de acordo com seu objeto social, atua mais diretamente junto ao

mercado. Capital social é típico de outros modelos societários, como as sociedades

mercantis. A nova disposição, portanto, aprofunda ainda mais o abismo conceitual que

separa as cooperativas dessas outras espécies de sociedade, com as quais não se

confundem.

RENATO LOPES BECHO121 chega a falar que com isso se abre um leque

maior de possibilidades para as cooperativas e se estimula, inclusive, sua criação. De

fato, esta norma finda por estimular a abertura de novas cooperativas, removendo o

que, em muitos casos, afeiçoava-se como um óbice insuplantável122. Por esses motivos

merece destaque a novidade trazida no bojo do texto de Código Civil. Afinal, cuida-se

de avanço e estímulo para as cooperativas, à moda do tratamento dispensado

constitucionalmente a essas sociedades.

Há outras alterações no Código Civil, ocasionando debates e embates

doutrinários123 do mais alto nível científico. Como já dissemos, o primordial é pôr em

relevo a circunstância de que há uma insofismável distinção entre as cooperativas e

outros tipos societários, ditos civis ou mercantis. Cumpre, sobremodo, distingui-las

desses últimos. Já vimos que essa singularidade do modelo cooperativista é

reconhecido/prescrito em patamar constitucional. Os motivos para tanto, como não

poderia deixar de ser, são jurídicos. 121 Tributação das Cooperativas... op. cit., p. 136. No mesmo sentido: JOSÉ CLAUDIO RIBEIRO OLIVEIRA, para quem o capital social das cooperativas é apenas um meio, além do que se trata de norma permissiva, cabendo a cada cooperativa decidir a seu respeito. In Principais Problemas Envolvendo as Cooperativas no Novo Código Civil, Problemas atuais... op. cit., RENATO BECHO (coord.), p. 150. 122 Para VERGÍLIO PERIUS a nova disposição legal é “uma porta aberta pra a criação de novas cooperativas”, mercê de ser, ainda, inconstitucional. As sociedades cooperativas face o (sic) novo código civil, in Problemas Atuais... op. cit., RENATO BECHO (coord.), p. 292. A opinião do autor parece não proceder. Não vislumbramos a dita inconstitucionalidade, além do que nos parece que o problema da possibilidade, maior ou menor, de abertura das chamadas falsas cooperativas compete aos órgãos legalmente credenciados para a fiscalização do setor e que, portanto, não se consubstancia como argumento científico. 123 Para saber sobre questões afins, consultar a bibliografia apontada ao longo do subitem 3.2.3, além das que estão citadas neste tópico.

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A título de paralelo e de pontuação das distinções básicas entre os dois

modelos societários, vamos lançar mão do didático quadro exposto por ÊNIO

MEINEN124, que de maneira direta e clara expõe os contrapontos jurídicos havidos

entre empresas cooperativas e empresas mercantis:

a) são sociedades de pessoas, de natureza civil x sociedades de capital, de natureza mercantil;

b) têm como objetivo essencial a prestação de serviços aos cooperativados x visam ao lucro;

c) o usuário é o próprio dono/cooperativado, estabelecendo uma relação interna/não mercantil x o usuário é estranho ao dono – relação comercial/de consumo;

d) reúnem número ilimitado de cooperativados x restringem o número de acionistas;

e) o controle é democrático, cabendo um voto para cada cooperativado x a força do voto é ditada pelo número de ações;

f) o quorum de instalação e de deliberação nas assembléias leva em conta o número de associados x o quorum é baseado no capital;

g) as quotas-partes são intransferíveis a não-associados x a transferência de ações é livre;

h) os excedentes são retornados na proporção das operações dos cooperativados (aos próprios usuários) x o lucro é devolvido na proporção das ações detidas pelos acionistas (os usuários a nada têm direito).

Estamos cientes da importância de todas essas características distintivas e

do que mais consta no Código Civil. Mas, para nós, nesse trabalho, interessa

especialmente decalcar os enunciados mais gerais, leia-se, aqueles que podem servir de

base para a construção dos princípios cooperativos.

Antes de nos lançarmos ao tema, todavia, queremos pontuar ainda alguns

aspectos da mais alta relevância na temática cooperativa. Passemos por eles, pois, antes

de adentrarmos o sítio substantivo dos princípios cooperativos. Faremos remissão à Lei

Cooperativa e ao Diploma Civil sempre que for pertinente à exposição.

124 Assembléias gerais: quorum e delegados, in Cooperativismo... op. cit., GUILHERME KRUEGER (coord.), p. 187 e 188.

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3.5 – Dupla Qualidade: o sócio/tomador de serviços da cooperativa

Calha, de pronto, destacar a distinção existente entre o fim e o objeto das

cooperativas. Seu fim será sempre prestar serviços aos associados (art. 4°, caput, Lei n°

5.764/71), colaborando com a melhoria de seu status econômico. Já o seu objeto, a ser

desenvolvido, pode ser qualquer gênero de serviço, operação ou atividade, como

preconiza a Lei das Cooperativas em seu art. 5°, ou seja, o objeto será o ramo da

atividade socioeconômica desenvolvida pela cooperativa125.

Vimos que uma das características mais marcantes das sociedades

cooperativas repousa sobre o fato de que sua finalidade é prestar serviços aos seus

sócios, de modo a melhor atender a seus objetivos socioeconômicos, conforme a

redação do art. 4° da Lei das Cooperativas.

Nas cooperativas a associação não possui como móvel a remuneração do

capital, mas a possibilidade de fruir os serviços prestados pela sociedade e de exercer

uma atuação firmada na solidariedade socioeconômica. E esses serviços prestados pela

cooperativa aos associados, em derradeira análise, são a tradução ou o produto mesmo

da solidariedade que serve de amálgama àqueles que ali cooperam. Sim, pois que a

sociedade só estará apta a prestar seus serviços em função da conjunção harmoniosa de

seus objetivos e esforços.

Não há paralelo com as demais formas de sociedade. Somente a

cooperativa é sociedade constituída com o fim precípuo de prestar serviços a seus

próprios associados. Assim, consubstancia-se indelével a dupla qualidade/condição

125 Cf. WALMOR FRANKE, Direito das Sociedades Cooperativas, p. 15.

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inerente ao associado: que é sócio e tomador dos serviços prestados pela cooperativa.

Ser sócio é ser usuário da cooperativa. Por outros torneios: sendo o fim da sociedade

cooperativa prestar serviços a seus associados, perfaz-se como seu corolário lógico a

posição de proprietários/clientes ínsita aos associados.

Saquemos a preleção de WALMOR FRANKE126:

A cooperativa, porém, se distingue das demais organizações por um traço altamente característico: enquanto nas empresas não-cooperativas a pessoa se associa para participar dos lucros sociais na produção do capital investido, já na cooperativa a razão que conduz à filiação do associado não é a obtenção de um dividendo de capital, mas a possibilidade de utilizar-se dos serviços da sociedade para melhor o seu próprio status econômico.

Para isso, entretanto, impõe-se que o sócio da cooperativa seja, ao mesmo tempo, o seu usuário ou cliente. Nas cooperativas de consumo, por exemplo, a posição de sócio só tem razão de ser quando ele se associa para o fim de abastecer-se, nos armazéns da cooperativa, de bens necessários ao uso e consumo domésticos. Nas agrícolas, a filiação do produtor somente adquire sentido quando o seu ingresso se fez para permitir-lhe a entrega de seus produtos, a fim de que sejam vendidos, por intermédio da cooperativa, no mercado consumidor.

E conclui o autor:

É, pois, essencial ao próprio conceito de cooperativa que as pessoas, que se associam, exerçam, simultaneamente, em relação a ela, o papel de sócio e usuário ou cliente. É o que, em direito cooperativo, se exprime pelo princípio da dupla qualidade, cuja realização prática importa, em regra, a abolição da vantagem patrimonial chamada lucro que, não existisse a cooperativa, seria auferida pelo intermediário. (grifos no original)

WALDIRIO BULGARELLI127 abebera-se no mesmo raciocínio,

lecionando que “por força da característica das cooperativas, de empresas de serviços,

criadas para atender às necessidades de seus associados, resulta que estes são ao

mesmo tempo, como já se acentuou ao correr deste trabalho, associados e clientes”.

126 Direito das Sociedades Cooperativas, op. cit., p. 13 e 14. Como se denota da leitura do trecho transcrito da obra desse grande autor, a dupla qualidade aparece como princípio. De acordo com nosso conceito de princípio, não nos parece ser o caso. Entendemos que a dupla qualidade é um corolário lógico do modelo de sociedade consubstanciado em cooperativa. 127 As Sociedades Cooperativas e a sua Disciplina Jurídica, op. cit., p. 24.

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Então, temos que o associado passa a integrar o quadro societário da

cooperativa, empurrado pela azáfama de fruir de uma estrutura erigida com a finalidade

concreta de servi-lo. Equivale a dizer que a sua condição de sócio da cooperativa

implica, necessariamente, a fruição dos serviços essencialmente prestados por esta128.

Em esforço analítico (com fins didáticos) podemos decompor essa situação

em duas relações jurídicas distintas129, a de sócio (proprietário) e a de usuário

(tomador de serviços) em relação à cooperativa, com efeitos jurídicos igualmente

distintos. Outrossim, temos que só há, a rigor, sucessão lógica, jamais cronológica,

entre tais condições/qualidades assumidas por quem se insere nos quadros de uma

cooperativa – em termos jurídicos.

Com efeito, na condição de sócio da cooperativa, o cooperado atuará –

como proprietário – na sua administração, na decisão de seus rumos sociais e

operativos, nas alterações do próprio estatuto da sociedade, assim como nas demais

contingências relativas à condição de sócio.

Cumpre sopesar, ainda, que ser sócio de cooperativa, por si só, já implica

distinção graúda quanto a ser sócio de uma outra espécie de sociedade, mormente, de

capital. Isto fica mais claro, v.g., quando se leva em conta que na assembléia geral da

cooperativa o voto independe do número de quotas-partes representadas no capital

societário. Aqui vale a máxima: uma pessoa, um voto. É a democracia solidária das

cooperativas.

128 Para RENATO LOPES BECHO “é condição sine qua non, na cooperativa, ser proprietário para ser consumidor, apesar de que, por força das circunstâncias, principalmente pelo mercado, pode a cooperativa operar excepcionalmente com não-sócios”. Além disso, o autor frisa o relevante aspecto de que as conseqüências jurídicas dessas operações terão, inclusive, rumos diversos das primeiras, mormente para fins tributários, in Tributação das Cooperativas, op. cit., p. 164. 129 Cumpre anotar que não é possível cindir, fora dos propósitos acadêmicos, a dupla qualidade do sócio/usuário da cooperativa, pois ser sócio é ser usuário, necessariamente. Aliás, nem todo usuário é sócio, mas todo sócio é usuário em uma cooperativa.

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A relação jurídica havida na prestação de serviços pela cooperativa ao

associado, por sua vez, é conseqüência do fim mesmo da sociedade. O associado toma

os serviços que a cooperativa presta em atenção ao seu (associado) crescimento

socioeconômico. E também nesse ponto se aumenta a distância em comparação às

demais sociedades, porquanto a relação de prestação/fruição de serviço entre

cooperativa/associado não é eventual, mas peculiar e inerente ao próprio modelo

societário.

Se o sócio de uma rede de supermercados adquire algo em suas prateleiras,

isso se dá de maneira eventual, e não haverá qualquer distinção, do ponto de vista da

empresa, entre essa relação e aquela representada pela compra do mesmo produto por

um cliente qualquer. Em cooperativa é diferente. A relação não é eventual, mas

necessária. Se, por acaso, a cooperativa presta serviços a não-associados, a relação, do

ponto de vista da cooperativa, não será a mesma que aqueloutra, gerando efeitos

jurídicos também diversos.

3.6 – As Sobras na Atividade Cooperativa e a Inexistência do Lucro

Empresas que atuam no ramo econômico manejam sempre a contingência

de, ao final de seus exercícios financeiros, deparar-se com resultados positivos ou

negativos. Com as cooperativas, empresas com atuação socioeconômica, não é

diferente. Pelo menos quanto a esta perspectiva pragmática e simplificadora.

Em empresas mercantis, o resultado positivo se converte em lucro – que é

o próprio fim da atuação nesta espécie societária. Em cooperativas não é assim. Há,

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inclusive, expressa vedação legal a este fim (art. 3° da Lei das Cooperativas). O

elemento positivo porventura havido ao final do exercício econômico em uma

cooperativa perfaz-se em mera sobra – em tudo e por tudo diferente de lucro. O

resultado negativo é prejuízo. PONTES DE MIRANDA130 já afiançara que “a

complexidade do suporte fático das sociedades cooperativas resulta de existir o

elemento econômico sem a finalidade capitalística”.

Para corroborar a firmeza desse traço supino da distinção entre

cooperativas e as demais sociedades, calha citar o parágrafo único do art. 79 da Lei

Cooperativa que, de maneira meramente didática (pois se não estivesse posto ainda

assim valeria a significação de seu enunciado, pelo que expusemos), e em relação ao

ato interno, dispõe que “o ato cooperativo não configura ato de mercado, nem contrato

de compra e venda de produto ou mercadoria”. Seria mais claro se incluísse a

expressão: nem prestação de serviços tributáveis, a fim de deixar claro que o associado

não é terceiro em relação à sua cooperativa.

Sublinhe-se que o lucro não é o objetivo da cooperativa, e nem a sobra o

é131. De acordo com a sistemática de seu modelo, a finalidade econômica se dirige ao

incremento do status socioeconômico do cooperado, não da cooperativa, que só existe

para prestar-lhe os serviços necessários para tanto. A atuação cooperativa visa o ganho

em razão do esforço individual e através da ajuda mútua em benefício de todos. O

ganho sobre os esforços alheios é contra a lógica cooperativista.

Com efeito, a não-lucratividade das cooperativas pode ser entendida como

uma decorrência lógica e jurídica do mutualismo, da solidariedade, do específico viés

130 Tratado de Direito Privado – Tomo XLIX, op. cit., p. 432. 131 No mesmo sentido: RUI NAMORADO, Os Princípios... op. cit., p. 80 e 82. RENATO LOPES BECHO, Tributação... op. cit., p. 155.

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socioeconômico, além das demais características jurídicas que engendram a estrutura

cooperativa como uma estrutura que não comporta o lucro132. É dizer: a estrutura

operacional e, sobretudo, jurídica da cooperativa, consubstanciada pelas normas e

princípios cooperativos, implica a sua impossibilidade (jurídica) de auferir, em

qualquer caso, lucro.

Sobre a distinção entre lucro e sobra vale citar RUI NAMORADO133,

baseado nas palavras de FRANCESCO GALGANO:

Como contraponto, pela simplicidade e clareza com que foi exposta, pode recordar-se a lição de Francesco GALGANO, para quem: “os retornos distribuídos pelas cooperativas não se confundem com os lucros distribuídos pelas sociedades lucrativas, ainda que uns e outros apresentem a característica comum de serem somas de dinheiro periodicamente repartidas entre os sócios. Os lucros representam uma remuneração do capital, e são repartidos entre os sócios na proporção do capital, com que cada um deles entrou; os excedentes são pelo contrário, o equivalente monetário da vantagem mutualística: nas cooperativas de consumo, de cuja prática nasceu o termo ‘retorno’, eles são o reembolso aos sócios do maior preço pago relativamente ao custo do bem ou do serviço recebido; são, nas cooperativas de trabalho, somas atribuídas aos sócios para completar o menor salário recebido relativamente ao que levaram para a sociedade”.

Na atuação econômica que desenvolve em favor de seus associados, a

cooperativa presta serviços. Esses serviços têm, por certo, um custo. Então, a operação

cooperativa é urdida no sentido de minorar ao máximo e, por fim, distribuir este custo

entre os associados, em geral, na proporção de suas relações com a cooperativa, não

objetivando resultados positivos ao final, mas o “zeramento” de suas contas.

Porém, em virtude da complexidade das relações negociais e econômicas

experimentadas atualmente, nem sempre a cooperativa consegue fixar com precisão os

termos de seus custos. Os custos para a sociedade cooperativa são o somatório dos

custos de aquisição de bens, mais os custos de sua administração (com empregados,

132 No mesmo sentido: RUI NAMORADO, que chega a falar numa incompatibilidade estrutural da cooperativa com o fim lucrativo, in Introdução... op. cit., p. 256. 133 Os Princípios... op. cit., p. 84 e 85.

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energia elétrica etc.), para ficar no exemplo da cooperativa de consumo. Só estes custos

são repassados ao cooperado, sem qualquer ganho para a cooperativa.

Este, como cediço, não é o modelo operacional das empresas mercantis, em

que o lucro é embutido no custo (valor de aquisição + custos operacionais), para assim

definir o valor final. Então, temos o seguinte para a empresa mercantil: Valor final =

custo de aquisição + custos operacionais + lucro.

Tome-se o caso de cooperativa de consumo, na qual a cooperativa compra

os produtos no mercado e opera de maneira a distribuí-los a seus associados a preço de

custo (valor final = valor de aquisição + custos operacionais), sendo dificílimo, na

prática, delimitar o custo final e realizar a distribuição proporcional dos custos

operacionais, já que o mercado oscila a cada dia.

Pela mesma dificuldade passam as outras espécies de cooperativa. Numa

cooperativa de produção, v.g., cuida-se de tomar o conjunto das produções dos

associados, eventualmente fazendo-as passar por algum melhoramento, para vendê-las

no mercado pelo melhor preço. Nesses casos há uma espécie de adiantamento do valor,

com base em projeções mercadológicas.

Assim é que ao final do exercício as cooperativas, em suas relações e

negócios dirigidos ao cumprimento dos objetivos socioeconômicos, podem ter

resultados positivos – com sobras, ou resultados negativos, donde advirá o prejuízo.

Lembrando que por nenhum destes casos almeja a cooperativa.

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3.6.1 – Sobras e a Variabilidade (possível) de seu Conteúdo Semântico

Abrimos, nesse ponto, um breve parêntese somente para nos aprofundar e

sublinhar a pulsante complexidade do subsistema jurídico cooperativo – que não cessa

de nos surpreender –, dando conta do emblemático caso das sobras.

Na cooperativa de produção a sobra é resultado positivo advindo

diretamente dos negócios realizados com o mercado, onde se conseguiu um preço

melhor do que o projetado (e antecipado ao cooperado). Os cooperados, nesse caso,

têm um ganho, por assim dizer. Já na cooperativa de consumo, sobra só há nos casos

em que a cooperativa cobrou além de seus custos aos cooperados, ou seja, o cooperado

desembolsou a mais.

Note-se como assumem conteúdo semântico distinto as sobras no caso de

uma cooperativa de consumo, e no caso de cooperativa de produção, para ficar no

exemplo que acabamos por dar. De fato, na cooperativa de produção, se houver sobra,

é porque houve ganho para o cooperado, enquanto na cooperativa de consumo a sobra

assume novo conteúdo semântico, pois não será comemorada como um ganho do

cooperado, mas como mera devolução do que já lhe foi cobrado a mais134.

O resultado positivo nos dois casos, do ponto de vista do direito

cooperativo, é o mesmo: sobra. Mas a sistemática operacional que o ocasiona finda por

134 É assim que muito argutamente RUI NAMORADO vai dizer que resultado positivo nem sempre é indicativo de boa gestão cooperativa, assim como, nos casos de sucessivos resultados neutros em que o aspecto sobra não é valorizado, nem sempre a gestão poderá ser tida por deficiente. Acabamos de ver que, por vezes, o melhor é que o resultado não seja nem a sobra, nem o prejuízo. O importante é o equilíbrio entre os interesses de cada cooperativa e dos seus cooperados, a depender da espécie de cooperativa. In Princípios... op. cit., 81.

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alterar sutilmente sua significação de base, sem, contudo, torná-lo uma outra espécie

jurídica135.

3.6.2 – Disciplinamento Legal das Sobras e do Prejuízo

A Lei n° 5.764/71 dispunha de forma abrangente sobre o destino das

sobras (que são os excedentes subtraídos dos custos administrativos gerais da

cooperativa) e dos prejuízos, eventualmente, um e o outro, experimentados ao final do

exercício financeiro. Importante fixar a distinção entre excedente e sobra, que não se

confundem, a bem da precisão terminológica que o labor científico reclama.

No que diz respeito às sobras, assim enuncia a Lei das Cooperativas:

Art. 4° (...)

VII – retorno das sobras líquidas do exercício, proporcionalmente às operações realizadas pelo associado, salvo deliberação em contrário da Assembléia Geral;

Quanto aos prejuízos:

Art. 89 – Os prejuízos verificados no decorrer do exercício serão cobertos com recursos provenientes do Fundo de Reserva e, se insuficiente este, mediante rateio, entre os associados, na razão direta dos serviços usufruídos, ressalvada a opção prevista no parágrafo único do art. 80.

Eis a dicção do art. 80:

As despesas da sociedade serão cobertas pelos associados me diante rateio na proporção direta da fruição de serviços.

Parágrafo único. A cooperativa poderá, para melhor atender à equanimidade de cobertura das despesas da sociedade, estabelecer:

135 Cremos que o que há de mais relevante nessa constatação são as possíveis repercussões jurídicas no campo tributário advindas daí. Será que o tratamento jurídico tributário dispensado às sobras deve ser o mesmo para todos os seus casos? Ou seria possível uma variação conforme o modelo de cooperativa? Tornaremos ao assunto no último capítulo do presente escrutínio cognoscitivo, sem, todavia, pretender esgotar o tema ou apresentar uma solução definitiva.

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I – rateio, em partes iguais, das despesas gerais da sociedade entre todos os associados, quer tenham ou não, no ano, usufruído dos serviços por ela prestados, conforme definidas no estatuto;

II – rateio, em razão diretamente proporcional, entre os associados que tenham usufruído dos serviços durante o ano, das sobras líquidas ou dos prejuízos verificados no balanço do exercício, excluídas as despesas gerais já atendidas na forma do item anterior.

O Código Civil trouxe uma dicção diferente para o que parece, à primeira

vista, ser uma nova roupagem para o mesmo manequim (o inc. VII do art. 4°

mencionado acima):

Art. 1.094. (...)

VII – distribuição dos resultados, proporcionalmente ao valor das operações efetuadas pelo sócio com a sociedade, podendo ser atribuído juro fixo ao capital realizado.

Uma interpretação ligeira desse dispositivo cria a norma jurídica de que só

há a (única) possibilidade de distribuição dos resultados em proporção aos negócios

feitos com a sociedade – como entende boa parte da doutrina. Mas não é bem assim.

3.6.2.1 – Analítica Crítica do art. 1.094, VII, do Código Civil

O enunciado do art. 1.094, VII, do diploma civil representa um retrocesso –

malgrado tenha, com acerto, evitado falar em lucro, pois que cooperativa não lucra,

como estamos vendo –, pois acabou por obliterar o trato da matéria.

A expressão anterior “retorno das sobras líquidas” era mais rigorosa

terminologicamente do que “distribuição dos resultados”. Restava patente na Lei

Cooperativa que o dispositivo se dirigia exclusivamente aos resultados positivos

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auferidos ao final do exercício. Era preciso ao ponto de, a seu modo, distinguir

excedentes de sobras, ao se referir à liquidez.

A nova redação, a nosso ver, implica um equívoco a) lingüístico e b)

jurídico. Explicamos:

a) a expressão “distribuição de resultado” padece de incontornável

ambigüidade, posto que resultado tanto pode ser positivo como negativo. A confusão é

reforçada pela circunstância de que a distribuição de resultado, positivo ou negativo,

pode ser efetivada na proporção das operações realizadas pelos cooperados junto à

cooperativa, de acordo com os dispositivos da própria Lei n° 5.764/71 (art. 3°, VII e

89). Então, do ponto de vista da interpretação do enunciado do diploma civil, pode-se

construir norma abrangente a ponto de disciplinar a sobra e o prejuízo, à míngua,

inclusive, de disposição do C.C. que trate expressamente de prejuízo (ou resultado

negativo).

Com efeito, “distribuição de resultados, proporcionalmente ao valor das

operações efetuadas pelo sócio com a sociedade”, no contexto das disposições

constantes do C.C., tanto pode significar resultado positivo como negativo (sobra ou

prejuízo). Não há nada que impeça essa interpretação. A ambigüidade da expressão é

flagrante, máxime quando posta no contexto da legislação anterior e dos demais

dispositivos do diploma civil.

A questão é importante, pois uma interpretação abrangente construirá

norma jurídica contraposta, inclusive, ao disposto no art. 89 da Lei Cooperativa, haja

vista que não faz referência ao Fundo de Reserva. E, nesse caso, os prejuízos seriam

suportados somente pelos cooperados. As implicações negativas de uma redação

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legislativa infeliz, como a do enunciado em liça, são inúmeras. E não é dado ao

cientista ignorá-las136.

b) o imbróglio jurídico que se avulta quando nos deparamos com a redação

do art. 1.094, VII, do Código Civil diz respeito aos princípios cooperativos e às

características mais relevantes da espécie societária conhecida como cooperativa.

Vejamos:

De acordo com esse dispositivo legal, não há mais a possibilidade de a

assembléia geral definir um destino às sobras que não seja sua distribuição

proporcional às operações dos associados com a cooperativa, como constava do art. 4°,

VII, da Lei n° 5.764/71.

A restrição é substancial. Há, ainda, o caso de simplesmente não haver

distribuição (via de regra, no caso de sobra, haveria repasse aos fundos e, no de

prejuízo, ficaria o problema de se saber se ainda podem ser suportados pelo fundo de

reserva, ou se terão de ser levados à conta dos associados).

Sobre as possibilidades que a Assembléia Geral maneja na determinação

do destino das sobras, esclarece-nos o escólio de RENATO LOPES BECHO137:

Entendemos que as hipóteses colocadas à disposição da assembléia geral, até a vigência do novo Código Civil, são a) devolução das sobras aos associados, na proporção de suas relações com as cooperativas; b) incorporação às quotas-partes, também na proporção dos negócios de cada associado, que passaria a deter um numero variável de quotas-partes; ou c) não distribuição das sobras, modalidade que significa uma doação do resultado positivo à cooperativa. Ressalte-se que, havendo a hipótese “c”, em caso de liquidação futura da cooperativa, esses valores serão destinados ao Tesouro Nacional.

136 Não é o caso de, neste labor, aprofundar o tema. Mas vale o registro a fim de despertar a crítica para o assunto, suscitando os debates que, afinal, são o móvel da Ciência. 137 Elementos... op. cit., p. 101. A justificativa para a destinação ao Tesouro Nacional é dada por conta de dispositivo da lei das Cooperativas que previa a destinação dos fundos indivisíveis, no caso de liquidação, para o Banco Nacional de Crédito Cooperativo. Sua extinção (do BNCC) implicou a absorção de sua parte não comercial pelo Tesouro Nacional.

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Concordamos com o mestre quanto às possibilidades de destino das sobras

que à assembléia geral cabe decidir, lembrando que lhe é vedado, sobretudo, remunerar

o capital investido. Outrossim, as sobras “doadas” pelos cooperados, a nosso ver,

devem ser destinadas aos fundos cooperativos (o FATES, o Fundo de Reserva, ou

ainda um outro criado pela cooperativa, cf. art. 28, § 1°). Só não nos parece ser a

solução mais adequada para o caso de liquidação a que diz com a destinação dos

valores não distribuídos ao Tesouro Nacional138. É que o enredo constitucional e

infraconstitucional do regime jurídico cooperativo não se compadece com essa

possibilidade139.

Retomando o fio do novelo de nosso raciocínio, vemos que posta uma

norma assim no Código Civil, segundo a interpretação que se acomodou no senso

comum teórico da doutrina cooperativista, só haveria uma possibilidade: a distribuição

dos resultados na proporção das relações com a sociedade. Uma vez mais reafirmamos

a premissa de que as disposições do Código Civil devem ser harmonizadas, dentro do

possível, com a Lei das Cooperativas. Parece ser o caso.

Todavia, a nova dicção mereceu uma insuspeita recepção tímida por parte

da doutrina, que ora aplaudiu a nova redação e seu resultado140, ora criticou

138 De pronto, toma-nos de assalto a impressão de que essa medida (destinação do patrimônio cooperativo ao Tesouro Nacional) se trata de expediente confiscatório e expropriatório. A opinião de ÊNIO MEINEN é na mesma linha (ver: Assembléias Gerais: quorum e delegados, in Cooperativismo... op. cit., p. 184. Aqui o autor trata do inc. VIII do mesmo art., o qual dispõe acerca da “indivisibilidade do fundo de reserva entre os sócios, ainda que em caso de dissolução da sociedade”. Para este autor, o fundo de reserva, como patrimônio construído pelos associados, deve ser distribuído entre eles na proporção de seu capital social. 139 Há em norma desse jaez - onde o patrimônio de uma sociedade civil é levado aos cofres públicos - uma insuspeita ingerência estatal. A injuridicidade no caso das cooperativas, para nós, é clarividente, máxime por força da norma construída a partir do art. 5°, XVIII, da Magna Carta, donde se depreende que é vedada a intervenção estatal nas cooperativas, como corolário mesmo do primado da liberdade. Seria o caso de se perguntar qual o fundamento constitucional de uma medida assim. 140 RENATO BECHO, Elementos... op. cit., p. 101. O autor dispõe assim: “Agora, o novo código civil restringiu a apenas uma possibilidade”. E conclui: “Nesse sentido, parece ter laborado bem o legislador do novo código, ao ter restringido para apenas a distribuição proporcional”. Para fundamentar essa conclusão argumenta que o fundamental é a “filosofia” por trás da disposição do código (distribuição proporcional, ou

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(levemente) o resultado, apontando o retrocesso, mas com o mesmo se resignando141.

Parece que, em todos os casos, só fora considerada a possibilidade interpretativa

segundo a qual a norma seria relativa, apenas, às sobras (resultado positivo), que,

assim, teriam o destino único de ser distribuídas em proporção aos negócios feitos com

a cooperativa.

Essa interpretação, de onde decorre norma com uma única possibilidade de

destino dos resultados, não pode vingar – sob pena de se alijar irremediavelmente a

atuação cooperativa. Com efeito, a prosperar essa linha interpretativa, estará aberto o

caminho para que seja podado o agir-em-cooperativa não só com conseqüências para o

destino dos resultados positivos (as sobras, como pressuposto pela doutrina em geral),

mas, também, para o destino dos resultados negativos (prejuízos), vez que restará

prejudicada a norma que os remete em primeiro lugar ao fundo de reserva e, somente

no caso de sua insuficiência, ao reparte proporcional entre os associados (cf. art. 89 da

Lei n° 5.764/71).

A interpretação do citado artigo do C.C. deve ser compatibilizada com as

demais normas jurídicas atinentes à matéria, mormente as que definem as

características cooperativas (inclusive na legislação anterior) e, principalmente, seus

princípios.

Queremos crer que a administração democrática é um verdadeiro princípio

cooperativo que anda de mãos dadas com o princípio constitucional da solidariedade,

sendo até o caso de se falar num princípio de solidariedade cooperativa, como

procuraremos demonstrar. não se distribui e o resultado fica num fundo indivisível na cooperativa), encetada pela vedação de que outras pessoas se beneficiem do trabalho alheio. 141 É o caso de ÊNIO MEINEN, ibidem, p. 184 e 185. E também de PERCI LONDERO, Assembléias gerais e o retorno das sobras, in Cooperativismo... op. cit., p. 207 ss.

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Nada traduz melhor o princípio democrático nas cooperativas do que a

ampla atuação das assembléias gerais. Retirar delas o poder de dizer qual destino terão

as sobras (dentro das possibilidades que vimos acima) importa em indevido tolhimento

de suas funções, alijando as cooperativas de instrumento vital para sua sobrevivência. E

o que é pior, subverte-se a lógica do sistema cooperativo com o malogro de seus

princípios jurídicos mais elementares.

Em verdade, a depender do caso concreto, a viabilidade operacional de

uma cooperativa em um dado momento, ou mesmo a chance para que ela cresça ou

ainda adquira melhores condições de prestar seus serviços em benefício dos associados,

depende da maneira como as sobras são manejadas. Imagine-se o sem-número de

hipóteses em que a cooperativa poderia – de acordo com o consentimento de seus

cooperados expressado pelo voto em assembléia – destinar as sobras para fins

essenciais à melhor prestação de seus serviços numa dada situação, ou para assegurar a

sua sobrevivência.

Decisão desse jaez não pode ser subtraída dos cooperados, que a realizam

democrática e solidariamente na assembléia geral. Ora, o foro adequado para que se

efetive o equilíbrio necessário entre os interesses dos associados e os interesses da

cooperativa mesma só pode ser a assembléia geral.

Em sendo assim, pensamos que a interpretação do inc. VII do art. 1.094 do

C.C. deve ser, necessariamente, harmonizada com a letra do inc. VII, art. 4°, e art. 89,

da Lei Cooperativa e, notadamente, com os princípios cooperativos, no afã de manter,

também, a possibilidade de a assembléia geral dispor acerca do destino das sobras

(especificamente). Somente desse modo poderemos construir uma norma mais

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consentânea com o sistema cooperativo, máxime com seus princípios jurídicos da

solidariedade e da democracia cooperativa.

3.7 – Princípios Jurídicos Gerais do Cooperativismo

Examinando os enunciados, tanto da Lei n° 5.764/71 como do diploma

civil, é lícito diagnosticar bases para a construção de normas-regras. Mas também, e

principalmente, de princípios jurídicos cooperativos. Sobreleva-se, assim, para além da

distinção ou da importância entre essas duas espécies de normas jurídicas, os contornos

de um paradigma interpretativo a informar e vincular todo o arquétipo normativo

cooperativista.

Façamos então uma abordagem crítica de alguns enunciados com vistas a

construir os princípios jurídicos que servirão de paradigma para o modelo cooperativo

existente em nosso ordenamento positivo.

Nosso desiderato é, enfim, traçar os princípios jurídicos gerais do

cooperativismo, manancial alvissareiro dos demais princípios e normas (regras)

cooperativas componentes do subsistema jurídico cooperativo142. No desenvolvimento

do tema, por certo, serão vistas normas jurídicas que a doutrina também chama de

princípios, mas que aqui parecerão como corolários lógicos dos princípios gerais do

cooperativismo, sem prejuízo de sua importância sistêmica.

142 É inegável a importância e a pertinência do reconhecimento da existência (ainda que para fins didático-metodológicos) de um Direito Cooperativo, como a doutrina capitaneada por RENATO BECHO reclama.

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3.7.1 – Princípios Gerais da Democracia e da Solidariedade Cooperativa

3.7.1.1 – Princípio da Democracia Cooperativa

Comecemos pelo que chamamos de princípio democrático cooperativo.

Antes de passarmos aos enunciados que servirão de base para a sua construção,

fixemos a premissa de que mesmo a democracia numa cooperativa, informada pelo

primado constitucional da igualdade, assume contornos próprios, por conta do princípio

da solidariedade cooperativa – baseado na pessoalidade –, e seu entrelaçamento é total.

De ver está que os princípios jurídicos, como bem lembra ROQUE

ANTONIO CARRAZZA143, não se encontram em estado de isolamento, pois que

sempre atuam junto a outras normas principiológicas ou normas-regra.

Vamos aos enunciados que servem de base empírica para que possamos, a

partir daí, construir a norma jurídica principiológica em questão.

Na Lei das Cooperativas podemos citar, basicamente, os seguintes

enunciados:

Art. 4º - As cooperativas são sociedades de pessoas, com forma e natureza jurídica próprias, de natureza civil, não sujeitas à falência, constituídas para prestar serviços aos associados, distinguindo-se das demais sociedades pelas seguintes características:

III - limitação do número de quotas-partes do capital para cada associado, facultado, porém, o estabelecimento de critérios de proporcionalidade, se assim for mais adequado para o cumprimento dos objetivos sociais;

V - singularidade de voto, podendo as cooperativas centrais, federações e confederações de cooperativas, com exceção das que exerçam atividade de crédito, optar pelo critério da proporcionalidade;

VI - quorum para o funcionamento e deliberação da Assembléia Geral baseado no número de associados e não no capital;

143 Curso de Direito Constitucional Tributário, p. 34.

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VII - retorno das sobras líquidas do exercício, proporcionalmente às operações realizadas pelo associado, salvo deliberação em contrário da Assembléia Geral;

IX - neutralidade política e indiscriminação religiosa, racial e social;

X - prestação de assistência aos associados, e, quando previsto nos estatutos, aos empregados da cooperativa;

A dicção do C.C. ficou assim:

Art. 1.094 (...)

I – variabilidade ou dispensa do capital social;

II – concurso de sócios em número mínimo necessário a compor a administração da sociedade, sem limitação de número máximo;

III – limitação do valor da soma de quotas do capital social que cada sócio poderá tomar;

V – quorum, para a assembléia geral funcionar e deliberar, fundado no número de sócios presentes à reunião, e não no capital social representado;

VI – direito de cada sócio a um só voto nas deliberações, tenha ou não capital a sociedade, e qualquer que seja o valor de sua participação;

VII – distribuição dos resultados, proporcionalmente ao valor das operações efetuadas pelo sócio com a sociedade, podendo ser atribuído juro fixo ao capital realizado;

VIII – indivisibilidade do fundo de reserva entre os sócios, ainda que em caso de dissolução de sociedade.

A democracia cooperativa é fundada na preeminência do pessoal sobre o

econômico, ao revés do que se observa nas empresas de capital. Assim é que o voto

independe do número de quotas-partes do capital social. Vale a máxima: uma pessoa,

um voto.

Desse modo, a decisões que deverão ser tomadas no âmbito da cooperativa,

desde a eleição de seus dirigentes, até os rumos mesmos da sociedade, passando pelo

destino das sobras, terão como fundamento a vontade da maioria de cooperados

presentes na assembléia geral. Para tanto será indiferente o número de quotas-partes

detido por cada cooperado.

Vem a calhar esse princípio ao caso das cooperativas sem capital social, o

que é possível com o advento do disciplinamento legal das cooperativas feito pelo C.C.

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Este é franco exemplo da importância máxima que a pessoa adquire em uma sociedade

cooperativa.

Não é difícil notar a influência do princípio da solidariedade aqui. Afinal,

esquema de gestão mesmo por quem tem o número mínimo de quotas-partes, talvez por

não possuir condições de alcançar um número maior, demonstra, mais que democracia,

democracia solidária, democracia cooperativa.

Poder votar, seja qual for o critério, é democracia. Votar simplesmente por

ser associado, independentemente do número de quotas-partes do capital, dando espaço

e voz aos pequenos144, é democracia solidária cooperativista.

Neutralidade política e rechaço a qualquer forma de discriminação

também é reflexo de democracia solidária em cooperativa. Não há previsão legal

parecida no C.C., pois que entendemos, sistematicamente interpretando a lei – com

estribo nos princípios cooperativos –, que esta disposição convive com a legislação

nova, suprindo uma lacuna importante. É dizer: subsiste a norma que proíbe qualquer

espécie de discriminação ou alinhamento político por parte da cooperativa.

Não sobeja reafirmar, vez mais, que o princípio da democracia cooperativa

é de vital importância para a consecução do equilíbrio necessário entre os interesses

dos cooperados e os da cooperativa, que devem sempre rumar no mesmo caminho.

144 Para RENATO BECHO há mesmo falar numa verdadeira democracia econômica realizada pelas cooperativas. Vide sua obra: Elementos... op. cit., p. 132 ss.

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3.7.1.2 – Princípio da Solidariedade Cooperativa e Alguns de seus

Desdobramentos

No que pertine mais especificamente ao princípio da solidariedade

cooperativa (com matriz, inclusive, constitucional, cf. tópico 5.2.2), vale citar, v.g., os

enunciados que se referem à vedação do lucro; ao destino certo dos excedentes e à

fixação do juro sobre o capital, dentre outros.

A cooperativa é sociedade, como dito, onde se visa o ganho em razão do

esforço individual e através da ajuda mútua em benefício de todos. É impossível

cooperar sozinho. A solidariedade (socioeconômica) é o grande diferencial do modelo

societário cooperativo e seus efeitos se fazem sentir em toda a sua atuação.

Tal princípio está presente na disposição legal (art. 3° da Lei Cooperativa)

que define a atuação econômica cooperativa como de proveito comum e sem objetivo

de lucro. A uma, porque o proveito comum da atividade econômica é próprio do atuar-

em-conjunto para o benefício do grupo, tão característico no sistema cooperativo. O

proveito, aliás, só é possível porque atuam em grupo e unidos pelo mesmo objetivo,

somando forças.

A rigor, aliás, a vedação de lucro não se trata propriamente de uma

proibição, por assim dizer, no caso das cooperativas. Sim, porque, por todo o exposto,

cremos que o arquétipo jurídico da sociedade cooperativa, com suas normas-regras e

princípios todos, não propicia a auferição de lucro. É dizer: para que a cooperativa

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lucre é preciso que se torne um outro tipo de sociedade, isto é, deixe de ser cooperativa.

Não é juridicamente possível, enfim, lucrar em cooperativa145.

O lucro é diametralmente oposto ao princípio jurídico da solidariedade

cooperativa. Em cooperativa se age em conjunto para que se atinja uma vantagem

econômica impossível na atuação solitária. Em cooperativa só se ganha em função do

esforço próprio engendrado no contexto da atuação coletiva. Ganhar por conta do

esforço alheio é contra a lógica cooperativa. Coopera-se para que cada um possa

ganhar mediante seu próprio esforço, mas em razão do somatório de forças e em

benefício do grupo.

Destarte, a limitação do juro sobre o capital e o destino certo dos

excedentes têm uma razão de ser. Limita-se o juro sobre o capital porque, afinal, não se

coopera para auferir ganhos com o capital, mas com o esforço próprio. Ganhos sobre o

capital são próprios de empresas de capital, e cooperativa é empresa em que o

importante são as pessoas. E isso se faz sentir na sua própria estrutura societária, como

estamos vendo.

O destino certo dos excedentes, que tiveram os direcionamentos postados

linhas acima neste trabalho, finda por obstar que, mesmo sub-repticiamente, remunere-

se indevidamente o capital. É norma que estimula o ganho através do esforço, não o

capital, à moda cooperativista.

145 Não intentamos, com isso, subtrair a importância da norma jurídica (que há) que veda o lucro nas cooperativas. Ela é importante ao passo que delimita estritamente o modelo de sociedade que é a cooperativa. Até mesmo didaticamente, poder-se-ia dizer. A norma é relevante, também, porque não se dirige, apenas, à cooperativa como ente personalizado, mas aos seus cooperados, de modo que lhes é vedado, mesmo indiretamente, obter lucro por conta de suas atividades naquela. O que é importante para nós é deixar claro que, à mingua de um enunciado legal que vedasse o lucro, como faz o art. 3° da Lei n. 5.764/71, ainda assim não seria dado às cooperativas lucrar (pelo menos dentro do modelo jurídico vigente de sua estrutura e atuação).

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A limitação dos juros sobre o capital e o destino certo dos excedentes,

portanto, são normas jurídicas que se consubstanciam em corolários lógicos do

princípio da solidariedade cooperativa.

Outro dispositivo tendente a afirmar a eficácia do princípio da

solidariedade é o art. 28, II, presente na Lei n° 5.764/71.

Art. 28 – As cooperativas são obrigadas a constituir:

II - Fundo de Assistência Técnica, Educacional e Social, destinado à prestação de assistência aos associados, seus familiares e, quando previsto nos estatutos, aos empregados da cooperativa, constituído de 5% (cinco por cento), pelo menos, das sobras líquidas apuradas no exercício.

A criação do FATES é a concretização desse princípio de solidariedade

cooperativa. Seu fim não é, senão, servir a todos os associados indistintamente, e

independentemente do quanto contribuíram para ele, ou de quanto possuem em quotas-

partes. Além disso, seus benefícios podem ser estendidos aos familiares dos associados

e, até, aos empregados das cooperativas, numa denotação da preocupação social

inerente ao modelo cooperativo de sociedade.

Ainda uma outra faceta da solidariedade cooperativa pode ser

diagnosticada no enunciado do art. 8° da Lei n° 5.764/71. Aqui se encontra a previsão

da criação de cooperativas centrais e federações de cooperativas, com o intuito de

integrar e orientar as atividades das cooperativas filiadas. A intercooperação, por certo,

é decorrência direta do princípio da solidariedade cooperativa, conquanto se

desenvolve em termos de união e ajuda mútua para o fortalecimento como um todo do

sistema cooperativo.

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3.7.2 – Princípio das Portas Abertas

Um outro princípio, de onde derivam, só por assim dizer, outros princípios

e normas conexas, é o que se personifica na norma jurídica que define a possibilidade

de qualquer interessado se associar a uma cooperativa, respeitados alguns requisitos e

condições. Este princípio geral se encontra inter-relacionado com os demais que

acabamos de citar, e essa relação é notada em maior ou menor grau a depender da

situação em que são aplicáveis. É, também, elemento maior da superlativa distinção

com as sociedades comerciais.

Vejamos os (suficientes) enunciados de que nos valemos para a criação da

norma principiológica em testilha:

Art. 4º - As cooperativas são sociedades de pessoas, com forma e natureza jurídica próprias, de natureza civil, não sujeitas à falência, constituídas para prestar serviços aos associados, distinguindo-se das demais sociedades pelas seguintes características:

I - adesão voluntária, com número ilimitado de associados, salvo impossibilidade técnica de prestação de serviços;

IX - neutralidade política e indiscriminação religiosa, racial e social;

XI - área de admissão de associados limitada às possibilidades de reunião, controle, operações e prestação de serviços.

Complementam esse contexto legal os seguintes enunciados do Código

Civil:

Art. 1.094 (...)

I – variabilidade ou dispensa do capital social;

II – concurso de sócios em número mínimo necessário a compor a administração da sociedade, sem limitação de número máximo;

III – limitação do valor da soma de quotas do capital social que cada sócio poderá tomar;

IV – intransferibilidade das quotas do capital a terceiros estranhos à sociedade, ainda que por herança;

V – quorum, para a assembléia geral funcionar e deliberar, fundado no número de sócios presentes à reunião, e não no capital social representado;

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VI – direito de cada sócio a um só voto nas deliberações, tenha ou não capital a sociedade, e qualquer que seja o valor de sua participação;

A exemplo da abordagem empreendida nos subitens anteriores, não nos

debruçaremos aqui sobre cada um dos dispositivos legais, esmiuçando-os a fim de

tomá-los por “bons ou maus”. Interessa-nos aqui deixar claro o contexto textual

concreto a partir do qual é dado construir a norma jurídica principiológica. Tratamos,

pois, de norma jurídica de alta generalidade. Das normas jurídicas/regras erigidas com

base nesses mesmos textos, cuidam as obras específicas citadas ao longo do presente

labor cognoscitivo.

Pois bem. A adesão voluntária cooperativa prestigia a norma

constitucional do art. 5°, XX, que prescreve ser proibido compelir alguém a se associar

e a se manter associado. Portanto, a adesão é livre e voluntária.

Em cooperativa qualquer interessado pode se associar146, resguardadas

algumas condições e critérios, assim como o associado pode, a qualquer momento,

desligar-se dos quadros da cooperativa. Isso quer dizer que numa cooperativa de

médicos somente um outro médico pode ser cooperado. Não haveria sentido admitir-se

nos quadros de uma cooperativa de trabalho médico um advogado – que não teria as

condições necessárias para fruir os serviços prestados pela cooperativa na condição de

associado.

Demais disso, o número de associados deve ser limitado pelas condições de

prestação de serviços pela cooperativa. Sim, pois uma cooperativa cujos associados

somassem número superior às possibilidades de prestação de seus serviços findaria

146 Ressalva feita por RUI NAMORADO diz que o candidato a cooperador deve ter condições de fruir os serviços da cooperativa e deve estar disposto a se submeter às responsabilidades inerentes à condição de associado. In Princípios... op. cit., p. 58.

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inviabilizada. Cumpre deixar claro que somente razões desse jaez podem impedir o

ingresso de novo associado.

Com isso queremos significar que a adesão livre é um dever da

cooperativa e um direito do potencial cooperado. Mas esse direito não é absoluto.

Uma decorrência lógica desse princípio é a variabilidade do capital social.

Afinal, na medida em que é dado associar-se um número incerto de pessoas, somando-

se a isso que a cooperativa está sempre na contingência de sofrer desligamentos de

associados, não poderia haver engessamento de seu capital social composto de quotas-

partes147.

A dispensa de capital social (art. 1.094, I) prestigia o princípio das portas

abertas. Com efeito, essa norma jurídica (criada a partir da letra do Código Civil) tem o

condão de tornar mais efetivo o princípio das portas abertas, conquanto facilita o

ingresso de novos associados e, da mesma sorte, sua saída.

Pois bem. Eis, a nosso ver, o que podemos denominar de princípios gerais

do cooperativismo na ordenação jurídica brasileira: o princípio da solidariedade

cooperativa, o princípio da democracia cooperativa e o princípio das portas abertas.

Outras normas principiológicas podem até ser construídas, mas serão

inexoravelmente informadas por estas. Com efeito, estes princípios gerais são peças

fundamentais na engrenagem do paradigma interpretativo/aplicativo/evolutivo do

sistema jurídico cooperativo e com tudo o mais que lhe diz respeito – em termos de

pertinencialidade jurídica. E é com base neles, precipuamente, que se faz possível a

evolução do sistema cooperativo e de suas instituições. 147 No mesmo sentido assevera RENATO LOPES BECHO, que fala na impossibilidade de as cooperativas obstruírem a saída, ou entrada de associados, com meios artificiais, ao tratar do princípio das portas abertas. In Tributação... op. cit., p. 135 e ss.

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3.7.3 - Os Princípios Cooperativos para a ACI

Quando a ACI enumera princípios cooperativos com foros de

universalidade, pretende que os mesmos sejam válidos em todos os lugares onde haja

cooperativas. Para tanto pressupõe, logicamente, um conceito universal de cooperativa.

Não cabe discutirmos o mérito porventura ideológico ou utópico incorporado pela

instituição.

A gênese dos princípios postos pela ACI remonta aos Pioneiros de

Rochdale. O que a ACI faz, pois, é uma espécie de atualização histórica desses

princípios, válidos e vinculantes na mesma medida, quer fazer crer, em todo o mundo.

Sobre isso vejamos o apanhado realizado por RUI NAMORADO148:

E é precisamente nesta atmosfera humanista que se radica a recusa da Comissão em estabelecer graus de validade que levem a distinguir entre a energia vinculativa dos vários princípios. Cada um é essencial, tão importante como os restantes, de observância obrigatória, permanente e universal (ACI, 1968: 18). Ficaram fixados, deste modo, em Viena, em 1966, seis princípios com idêntica força normativa.

Afiguram-se-nos inexoráveis as dificuldades de ver efetivados os objetivos

pretendidos pela ACI.

Se acerta a entidade internacional quando não hierarquiza os princípios

cooperativos, incorre em equívoco, do nosso ponto de vista, quando recorre ao

expediente metafísico da universalidade de seus conceitos, firme no pressuposto de que

há valores válidos em qualquer lugar e a qualquer tempo – sem levar em conta as

idiossincrasias de cada sociedade historicamente considerada e de seu ordenamento

jurídico.

148 Os Princípios Cooperativos, p. 13 e 14.

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Isso nos parece impossível, porquanto os valores variam historicamente de

sociedade para sociedade, variando, inclusive, em grau de importância, de sorte que

aquilo que para alguns pode ser um valor, para outros pode não sê-lo. O mesmo vale

para os chamados valores cooperativos. Sim, pois uma sociedade, dentro de seu

contexto histórico, pode deter uma concepção com algumas peculiaridades acerca do

modelo cooperativo.

Em última análise, são os sistemas jurídicos nacionais que prescrevem

sobre a normatividade, e eles podem, ou não, positivar os princípios cooperativos da

ACI149. Demais disso, uma vez positivados surgiria, ainda, indelével, o problema da

sua interpretação, conformando um ambiente em que os sentidos são alterados dentro

de um mar quase infinito de possibilidades, mercê do contexto histórico e pragmático.

Tal percepção crítica não ficou à margem das observações de RUI

NAMORADO150:

O elenco do que a ACI considera serem os princípios cooperativos está hoje bem determinado. No entanto, não há um verdadeiro consenso universal, quer quanto à sua força normativa, quer quanto ao seu verdadeiro sentido. E a partir daí, por via indirecta, acaba por se potenciar a heterogeneidade das posições doutrinais, tornando-se algo fluido o seu conteúdo e chegando-se a pôr em causa o próprio elenco, multiplicando-se as propostas parcelares sem contudo se conseguir chegar a qualquer alternativa consistente à formulação da ACI.

No Congresso da ACI realizado em 1995, em Manchester, definiu-se um

rol (atualizado) de sete princípios universais do cooperativismo. Vale o registro. Então,

vamos aos princípios da ACI151:

149 Está claro, só levamos em conta em nossa análise o modelo positivista de direito, em função do corte metodológico empreendido nesta dissertação, sem prejuízo de outros modelos. Não seria o caso de se discutir qual o melhor modelo, ou sobre a viabilidade de qualquer deles, pois, estamos certos, ao fim e ao cabo da discussão a única conclusão a que chegaríamos seria a de que as respostas dependeriam do sistema de referência do ser cognoscente. 150 Os Princípios... op. cit., p. 16. 151 Cf. RUI NAMORADO, Introdução... op. cit., p. 186 ss.

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1° princípio - Adesão voluntária e livre: Cooperativas são organizações voluntárias, abertas a todas as pessoas aptas a utilizar os seus serviços e dispostas a assumir as responsabilidades de membro, sem discriminações de sexo, sociais, políticas, raciais ou religiosas.

2° princípio – Gestão democrática pelos membros: As cooperativas são organizações democráticas geridas por seus sócios os quais participam ativamente na formulação de suas políticas e na tomada de decisões. Os homens e as mulheres que exerçam funções como representantes eleitos, são responsáveis perante o conjunto dos membros que os elegeram. Nas cooperativas do primeiro grau, os membros têm iguais direitos de voto (um membro, um voto), estando as cooperativas de outros graus organizadas também de uma forma democrática.

3° princípio – Participação econômica dos membros: os membros contribuem equitativamente para o capital das suas cooperativas e controlam-no democraticamente. Pelo menos parte desse capital é, propriedade comum da cooperativa. Os membros podem receber uma remuneração limitada pelo capital subscrito.

Os cooperadores podem destinar os excedentes aos seguintes objetivos: desenvolvimento da cooperativa, através de fundo de reserva, que poderá, no todo ou em parte (pelo menos), ser indivisível; benefício dos membros na proporção de suas operações com a cooperativa; outros fins determinados democraticamente pelos membros.

4° princípio – Autonomia e independência: As cooperativas são organizações autônomas de entre-ajuda, controladas pelos seus membros. No caso de acordo com outras organizações, inclusive governamentais, ou de recorrerem a capital externo, devem fazê-lo de maneira que fique assegurado o controle democrático por seus membros e se mantenha as suas autonomias como cooperativas.

5° princípio - Educação, formação e informação: As cooperativas promovem a educação e a formação de todos os seus membros e dos seus trabalhadores, de modo que possam contribuir eficazmente para o desenvolvimento da suas cooperativas. Elas devem informar o público em geral, sobre as vantagens e natureza da cooperação.

6° princípio – Intercooperação: As cooperativas servem os seus membros mais eficazmente e dão mais força ao movimento cooperativo, trabalhando em conjunto, através de estruturas locais, regionais, nacionais e internacionais.

7° princípio – interesse pela comunidade: As cooperativas trabalham para o desenvolvimento sustentável das suas comunidades através de políticas aprovadas pelos membros.

Estes princípios denotam os valores básicos que informaram (e informam)

a criação e o desenvolvimento do modelo cooperativista. Como visto, todos eles se

encontram positivados em nosso ordenamento jurídico, mesmo que nas dobras dos

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princípios gerais cooperativos. E sua importância decorre disso. Sim, pois não

estivessem positivados em nosso sistema legal e só serviriam ao arcabouço axiológico

do intérprete, mercê da ausência de força normativa, ao menos jurídica – segundo as

premissas teóricas por nós adotadas.

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CAPÍTULO IV

TEORIA GERAL DO FATO JURÍDICO COOPERATIVO

4.1 – Introdução

Lançamo-nos agora à tarefa mais complexa e de mais difícil consenso

quando o assunto é cooperativismo: a definição de um de seus institutos mais

relevantes, junto da própria noção de cooperativa. Importância que se sobressai,

especialmente, quando o assunto é a tributação dessa espécie societária. Estamos

falando do chamado “ato cooperativo”152.

A doutrina tece os mais variados conceitos, com maior ou menor grau de

proximidade em relação ao enunciado do art. 79 da Lei n° 5.764/71, que está disposto

de modo a fazer crer que conceitua, ele próprio, o que é ato cooperativo.

A recepção do “ato cooperativo” pelos tribunais é uma outra questão que

não pode ser olvidada. Lá são construídas, também, definições do instituto.

Não cuidaremos aqui de fazer um levantamento histórico e exaustivo

dessas posições doutrinárias. Nem mesmo é nossa pretensão esgotar o tema,

oferecendo, ao final, uma solução definitiva. Nossa intenção se limita a analisar

criticamente a questão posta e seus desdobramentos básicos na seara jurídica

(tributária) para, ao cabo dessa tarefa, apresentar mais uma interpretação possível. 152 A denominação genérica “ato cooperativo”, da forma como é hoje largamente utilizada, não subsiste a um enfrentamento científico mais rigoroso, como demonstramos no tópico 4.2.2, mais adiante, e por isso deve ser repensada pela doutrina.

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Trataremos, tão-só, de lançar algumas luzes sobre o fato jurídico havido na

atuação cooperativa (equação central desta monografia), também no afã de melhor

conformar a exegese do enunciado “adequado tratamento tributário ao ato

cooperativo”.

4.2 - Apontamentos sobre o Conceito de Ato Cooperativo

Ato cooperativo é expressão amplamente utilizada nos mais diversos

ordenamentos jurídicos153, e onde há cooperativas se discute acerca de seu conceito,

muito embora um consenso seja algo difícil de ocorrer, de maneira que ROBERTO

PASTORINO chega a falar até em crise do ato cooperativo154.

Quando se fala em “ato cooperativo”, o conceito que perpassa nossas

idéias é daquilo que poderia ser considerado o produto da atuação própria relativa às

cooperativas. Sim, porque ato dá a noção de ação, da atuação de um agente. Difícil é

saber o que caracteriza essa atuação própria cooperativa.

Tomar a cooperativa como ponto de referência para o conceito de atuação

própria se nos impõe como premissa inescapável. Se cooperativa realmente é sociedade

empresária diferente de todas as demais, formando um modelo único, então os fatos por

si praticados também devem ter uma feição própria, identificável.

153 Cf. DANTE CRACOGNA, Aproximaciones a la teoría del acto cooperativo en derecho latinoamericano, in Temas de Derecho Cooperativo, p. 11 a 25. 154 Aproximacion a la esencia del acto cooperativo, in Temas ... op. cit., p. 49.

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Não custa repisar que é o ser cooperativa155 que impõe a singularidade do

agir cooperativo. E não o contrário.

Por fim, devemos ter em vista a questão posta pela complexidade do

próprio modelo cooperativista que, como vimos no tópico 3.6 e seus subitens,

empreende alterações semânticas em seus institutos, como sói ocorrer com as sobras. O

problema é saber se é possível um conceito único do que ambiguamente se

convencionou denominar “ato cooperativo”, ou se cada cooperativa pratica o seu ato.

Talvez o conceito comporte fracionamentos, ou mesmo uma maior ou menor

abrangência semântica. Uma vez posto o conceito, cumpre, ainda, definir os contornos

de sua tributação (possível).

As questões são muitas. Procuraremos, de acordo com nossas limitações e

com aquelas impostas pelo próprio trabalho, que é monográfico, enfrentá-las, e sempre

que possível, oferecer uma proposta interpretativa consoante com os princípios

cooperativos e constitucionais.

4.2.1 – O Falso Problema do Conceito Legal de Ato Cooperativo: crítica à

definição legal e a sua anuência (acrítica) por parte da doutrina e dos tribunais

O Código Civil, com acerto, não se prestou a conceituar o “ato

cooperativo”, como, ao revés, ocorrera na Lei n° 5.764/71, que assim dispõe156:

155 O ser aqui não tem qualquer conotação ontológico-essencialista, mas quer dizer, apenas, a condição jurídica de quem está estritamente de acordo com um modelo específico de sociedade empresária – no caso, a cooperativa. 156 Em rigor, o conceito (noção, idéia) está no plano abstrato. O que se tem no citado artigo de lei é mero enunciado lingüístico textual. Suporte físico de significação, enfim. Assim é que, em verdade, não é possível

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Art. 79. Denominam-se atos cooperativos os praticados entre as cooperativas e seus associados, entre estes e aquelas e pelas cooperativas entre si quando associadas, para a consecução dos objetivos sociais.

Não bastasse não ser essa a função do legislador157, tem-se um “conceito”

deficiente conquanto incompleto, que não é, senão, mero simulacro de conceito.

Exatamente o que temos em mãos é um enunciado que cumpre tão-somente o papel de,

em tese, indicar alguns elementos componentes do agir cooperativo. Dizemos em tese

porque o fato de algo estar disposto no texto legal não implica, necessariamente, seu

aproveitamento para fins jurídicos. É dizer: no direito ocorre de, por vezes, o enunciado

legal ensejar prescrições que não são adequadas ao restante do ordenamento.

Cumpre ao intérprete, portanto, buscar se valer de uma análise sistemática

do ordenamento jurídico posto, tomando como paradigma interpretativo por excelência

os princípios constitucionais, a fim de que possa construir (a partir dos textos) normas

jurídicas que se adequem ao sistema em que serão inseridas.

A postura crítica é imprescindível ao intérprete do direito. Por outros

torneios: o labor exegético importa em investigar o ordenamento em sua inteireza, pois

somente através da interpretação crítica e sistemática poderá construir a norma jurídica

validamente aplicável ao caso concreto e apreender os conceitos jurídicos em sua

integridade constitutiva. Assim é que o legislador cumpre (bem ou mal) seu mister, e os

o legislador conceituar o que quer que seja. Não importando, para tanto, a forma observada no enunciado. Com efeito, o conceito só é possível no plano do conteúdo, i.é, no plano proposicional alcançado pelo intérprete ao atribuir sentido ao texto frio. O texto por si só nada pode, pois precisa do intérprete para que se construa algo a partir dele. O conceito, pois, existe a partir do texto, não nele. 157 O legislador da norma em apreço, não circunscrevendo sua atuação à função que lhe incumbe fundamentalmente exercer, trata, inoportunamente, de bosquejar pelas tentadoras sendas da “conceituação”, definindo institutos, demarcando significações. Ora, não é senão à ciência do direito, e tão-somente a ela, que é dado o mister de tecer proposições descritivas (vide item 1.8), moldando definições/conceitos e, além disso, delimitando criticamente a abrangência semântica das categorias jurídicas. Ao direito positivo cabe prescrever como devem ser as condutas, visto que sua linguagem é prescritiva, de modo que importa inadvertida e infeliz essa extrapolação de sua função, por parte do legislador do dispositivo de lei em espeque. Fato que, no apagar das luzes, mais se presta a um desserviço ao progresso de nossas instituições jurídicas, haja vista que o legislador, no geral, não é amigo da melhor técnica. Apesar disso, o texto em questão, de regra, foi abonado pelo C.C. (art. 1.093) e está em vigor.

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cientistas, compromissados com a ciência do direito, cumprem o seu. Na seara

cooperativa não é diferente.

Pois bem. O enunciado do art. 79 da Lei das Cooperativas não é de todo

inútil. Só incompleto. As hipóteses que o mesmo alberga perfazem, realmente, espécie

de fato jurídico realizado pelas cooperativas. Mas não abrangem o instituto em toda a

sua complexidade constitutiva. Outras hipóteses há em que, também, aperfeiçoa-se o

que se denomina, ao largo, de ato cooperativo e que o enunciado não menciona nem

possibilita, por si só, construir. Eis a confirmação da premissa de que somente a análise

sistemática do texto torna exeqüível o profícuo labor exegético.

Aliás, só afiançamos que o conceito de “ato cooperativo” (como fato

jurídico) está para além do depreendido do dispositivo em análise, porque

consideramos que a partir deste só se construa, em interpretação literal, a noção de que

aquele é o fato praticado no contexto interno da cooperativa, entre esta e seus

associados, ou com outras cooperativas associadas – modo como, em geral, tem

entendido a doutrina e os tribunais –, na qual praticamente não é admitido falar em ato

cooperativo fora do ambiente interno de associação.

Ocorre que – malgrado sua condição de mera partícula de texto legal – o

enunciado do art. 79 da Lei n° 5.764/71, talvez por sua forma didática, tem cumprido o

papel de catalisador de interpretações, ao menos dos que acreditam poder construir toda

a complexa noção de agir cooperativo próprio com base num único dispositivo de lei –

em um expediente alijado de todo o contexto da atuação cooperativa –, redundando

num sem-número de notas dissonantes emitidas desde a doutrina até o Judiciário. O

que se faz notar com cores mais vivas no campo tributário.

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A bem da verdade, e em derradeira análise, o problema do “conceito legal

de ato cooperativo” desse art. 79 é antes dos intérpretes do que do direito. O que o

torna, enfim, um falso problema para a dogmática jurídica. Sim, porque o enunciado

legal está aí para ser interpretado. Mas não para ser interpretado

descontextualizadamente, literalmente até, como sói acontecer no mais das vezes.

Com o perdão da metáfora, o texto do citado art. 79 tem assumido as

feições angustiantes de uma verdadeira prisão sígnica da qual a maioria dos intérpretes

não quer se livrar. Não é o caso, em absoluto, de se creditar ao modesto texto de lei a

condição de fronteira insuperável para a conceituação (e compreensão) do “ato

cooperativo”, como se as letras do enunciado fossem grilhões hermenêuticos atrelados

ao pé do inconsciente do intérprete. Mas é exatamente o que finda por ocorrer. É como

se o “conceito” do art. 79 se tornasse, por fim, um pré-conceito de atuação cooperativa

própria.

Sobreleva-se a gravidade dessa constatação quando manipulamos a

hipótese (possível) de simplesmente não haver uma “definição” na lei como a do art. 79

da Lei das Cooperativas. E se não houvesse esse art. 79? Então não haveria “ato

cooperativo”?

Claro que sim. A atuação cooperativa é uma realidade. Como também o é a

singularidade de seu modelo – do que decorre, por conseguinte, a especificidade de sua

atuação. Não houvesse o art. 79 e esse conceito (de “ato cooperativo”) ainda assim

haveria de ser forjado pela ciência do direito – seu sítio adequado. Mais que isso,

subsistiria uma previsão normativa sobre o “ato cooperativo”, e também o “ato

cooperativo” como realidade jurídica. Eqüipole a afirmar: à míngua do citado art. 79,

ainda assim o suporte fático normativo que prevê abstratamente o fato (social) que uma

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vez concretizado faria eclodir o fato jurídico (cooperativo) haveria de ser construído

com base na análise sistemática do arquétipo normativo cooperativista.

O fato de haver uma “definição de ato cooperativo” na lei só nos empurra

para duas possibilidades interpretativas possíveis: a) ou a ignoramos (por inútil e

despropositada), ou b) a aproveitamos no enredo que perfaz o contexto a partir do qual

se realiza a interpretação – como mais um enunciado a nos servir de base para a

construção do conceito jurídico pretendido.

Ficamos com a última. Em sendo assim, o processo cognoscitivo de

conceituação do chamado “ato cooperativo” deve colher elementos ali (enunciado

prescritivo do art. 79) para ir além, conjugando sistematicamente elementos havidos ao

longo de toda previsão constitucional e infraconstitucional aplicável à matéria, com

ênfase nos princípios constitucionais e cooperativos.

Tão importante quanto isso, sublinhe-se, é observar o atuar concreto de

cada uma das espécies cooperativas, para, deste modo, lograr surpreender seus

contornos jurídicos peculiares.

Por certo, um conceito de tal magnitude não pode ser confiado à pena

vacilante do legislador. Seu “conceito”, como visto, só pode ser tomado como um

arremedo de conceito (a rigor, é só um enunciado com forma de descrição), mas que

não é de todo inútil. Além do mais, não esqueçamos, a evolução da realidade social não

se resigna com conceitos jurídicos engessados.

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4.2.2 – Ato Cooperativo: questão terminológica

A ciência do direito, a exemplo de toda ciência, deve primar pela precisão

terminológica no trato de seu objeto: o direito positivo. A imprecisão da linguagem da

ciência é, talvez, o pior de seus vícios, pois tem o condão de obnubilar o conhecimento,

afastando a possibilidade da completa compreensão do objeto investigado.

Um termo, quando não empregado com a pré-disposição (dentro do

possível) clara de seu significado, importa em inarredável ambigüidade, fonte de

desencontros e imprecisões interpretativas. Por isso, a precisão de termos deve ser uma

preocupação e motivo de cuidado constante por parte do intérprete do direito – sempre

às voltas com a sua imarcescível falibilidade –, em busca da melhor expressão de suas

idéias. Essas são regras do jogo de linguagem da ciência.

Fato – que sempre nos chamou atenção – no estudo do direito cooperativo

(observando a lei, a doutrina e os tribunais) é o uso indiscriminado da expressão ato

cooperativo. Não bastasse não se delimitar claramente seu conceito, ainda se faz uso da

expressão, ora para designar a hipótese abstratamente prevista na norma jurígena, ora

para indicar o fato jurídico propriamente dito – à moda do que era feito com a (hoje)

vetusta expressão fato gerador (tão bem atacada pela pena de GERALDO

ATALIBA)158.

São comuns fórmulas lingüísticas indicativas da confusão havida no uso da

citada expressão como, por exemplo: “atos cooperativos são os praticados pelos

cooperados junto à cooperativa, e por esta com uma outra quando associadas” (no

158 Vide: Hipótese de Incidência Tributária, et passim. O mestre imortalizou o uso das expressões hipótese de incidência e fato imponível.

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sentido de previsão legal abstrata), ou “sobre o ato cooperativo não incidem tributos”

(no sentido de fato jurídico). O mesmo termo não pode continuar a ser usado para

designar situações díspares, sob pena de não se emprestar a cientificidade reivindicada

pela ciência do direito cooperativo.

Em brevíssimas linhas, e somente a título de ilustração, poder-se-ia narrar

do seguinte modo a fenomenologia da juridicização: a concretização, no mundo

fenomênico, do suporte fático159 previsto abstratamente na norma jurídica (por fato que

se amolde sem arestas ao seu arcabouço hipotético), implica a incidência desta, e na

decorrente juridicização daquele (suporte fático), ou de parte dele, fazendo-o fato

jurídico.

Então, temos que a incidência “é o efeito da norma jurídica de transformar

em fato jurídico a parte de seu suporte fático que o direito considerou relevante para

ingressar no mundo jurídico”160, e apenas após o nascimento do fato jurídico, por efeito

da incidência da norma jurídica sobre o suporte fático concreto, é que podemos falar

em efeitos jurídicos e mundo jurídico, enfim, em eficácia jurídica. Lançando por sobre

o fenômeno da incidência o verniz da formalização, com uso de variáveis lógicas,

teremos o seguinte esboço simplificado:

NJ

= FJ EJ

F(SF)

159 Suporte fático é termo de uso universal em qualquer ramo do direito, pois que perfaz expressão da Teoria Geral do Direito, como bem posto por seu idealizador, PONTES DE MIRANDA – que adaptou para nosso vernáculo, a seu modo, a expressão germânica Tatbestand. Para mais sobre esse conceito e sua aplicação, vide a sua monumental obra: Tratado de Direito Privado (especialmente os primeiros cinco tomos). 160 MARCOS BERNARDES DE MELLO, Teoria do Fato Jurídico – plano da existência, p. 57.

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Desformalizando: NJ é a norma jurígena; F(SF) é o fato concreto adequado

ao suporte fático ou suporte fático suficiente; FJ é o fato jurídico; EJ a eficácia

jurídica; indica a incidência e, por fim, representa a produção de efeitos jurídicos.

Pois bem. A ilustração serve para demonstrar que são vários – e distintos –

os elementos básicos que atuam no fenômeno da juridicização. Temos o fato

hipoteticamente previsto na norma jurídica (suporte fático abstrato ou hipótese de

incidência); o fato concreto adequado à norma jurídica (suporte fático concreto ou fato

social); e o fato jurídico (porção do suporte fático que entra no mundo jurídico, para

produzir efeitos jurídicos).

Retomemos o fio do raciocínio para afiançar que não pode perdurar o uso

indiscriminado da expressão ato cooperativo, atualmente utilizada para designar

diferentes categorias do direito cooperativo. Com efeito, cada nuance jurídica deve ser

ressaltada, e cada componente do fenômeno deve ter denominação própria, afinal, de

ocorrências distintas estamos a versar, como visto.

Num esforço elucidativo, propomos o uso das seguintes expressões:

a) hipótese de incidência cooperativa, para a previsão abstrata posta no

antecedente de norma jurídica relativa a um fato cooperativo;

b) fato jurídico cooperativo, para denominar o produto da incidência de

norma jurídica de direito cooperativo sobre um fato, ou seja, o fato jurídico apto a

irradiar efeitos jurídicos – que poderíamos qualificar de cooperativos e,

c) para denominar o suporte fático concreto, ou seja, o fato concretizado no

mundo fenomênico que se adequa à hipótese de incidência cooperativa, utilizaremos,

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simplesmente, o termo fato social (cooperativo), ou mesmo a expressão suporte fático

concreto.

A partir daqui, procuraremos deixar claro – com o uso dessas expressões –

o exato sentido em que nos utilizaremos da ambígua noção corrente de ato cooperativo.

Inclusive, aprofundaremos sua análise nos itens que se seguem. O intuito é o de nos

esquivarmos dessa confusão terminológica ocasionadora de ruídos no discurso

científico. Ademais, a precisão de termos é expediente necessário ao avanço da própria

ciência do direito cooperativo.

4.3 - O Fato Jurídico Cooperativo na Doutrina: da necessidade de uma crítica da

razão ingênua na definição de “ato cooperativo”

Não é nosso desiderato fazer um apanhado exaustivo dos conceitos

emitidos pela doutrina acerca do fato jurídico cooperativo, mas apenas traçar um

panorama sobre as opiniões existentes que nos sirva de paradigma crítico sobre o

assunto, mormente para deixar claras as principais posições conceituais existentes.

Isto posto, impõe-se a necessidade de analisarmos alguns conceitos, a título

ilustrativo, com o fito de constatar a abrangência semântica que os autores, nacionais e

estrangeiros, dão ao tema, de forma geral.

Vejamos a doutrina de JUAN CARLOS BASAÑES161, que de forma

objetiva assim preleciona:

161 El acto cooperativo, in Temas de Derecho... op. cit., p. 27 e 28.

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(...) definimos que ‘el acto cooperativo es un acto interno entre el asociado y su cooperativa, por el cual la segunda presta al primero un servicio al costo, en cumplimiento de su objeto social.

a) es un acto interno en cuanto se desarrolla dentro del ámbito cooperativo. (...)

b) los sujectos del acto son el asociado y la cooperativa. (...)

c) en esta relación jurídica la cooperativa presta al asociado un servicio al costo y por lo tanto, no existe de parte de ninguno de los dos sujetos del acto un interés de lucro en el mismo; (...)

Para concluir que, dentro desses moldes, cada cooperativa realiza sua

própria espécie de ato cooperativo:

d) al estar el acto cooperativo íntimamente ligado al objeto social de la entidad y reconocer la amplia gama de objetos sociales que puede tener la cooperativa, debe necesariamente concluirse que existen varias clases de actos cooperativos. Todos ellos responden a las características generales indicadas, pero con particularidades que le son proprias.

Parece seguir no mesmo raciocínio a autora argentina ELSA CUESTA162,

que diz assim:

Son actos cooperativos los actos voluntarios lícitos y solidarios realizados por la interacción de miembros de grupos que tengan por fin inmediato la fundación de cooperativas, las operaciones previstas en el objeto social que, en cumplimiento del fin de servicio de las cooperativas con exclusión de la intermediación y el lucro, realizan los cooperarios a través de ellas para satisfacer sus necesidades individuales comunes, y las realizadas con el mismo fin entre cooperativas, procurando en forma mediata la integración cooperativa , social y el bienestar general.

Para bem compreendermos a definição dessa autora sobre o ato

cooperativo, tão prenhe de subjetividades, calha emendar o seguinte fragmento da

mesma obra:

El acto cooperativo es, ante todo, el resultado de conductas integradoras de esfuerzos individuales y compartidos, ordenadas a la satisfacción de necesidades iguales para todos sus miembros; es, en suma, la concreción de la cooperación, por interacción del grupo, en el orden interno163. (grifamos)

162 Derecho Cooperativo – Tomo I, p. 106. 163 Idem, ibidem, p. 77.

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Infere-se da leitura dos trechos citados que o raio de significação dessa

última definição é bastante difuso, abrangendo até o ato constitutivo da sociedade164.

Por ora, interessa-nos salientar a restrição feita ao conceito, no sentido de que “el acto

cooperativo es invariablemente um acto interno, um acto que se ejecuta en la

cooperativa”, como sintetiza ROBERTO PASTORINO165. Portanto, segundo essa

linha doutrinária, ato cooperativo objetivamente só se realiza no âmbito interno da

cooperativa, de acordo com seus fins e objetivos sociais.

Cumpre relembrar, por oportuno, o enunciado legal da Lei n° 5.764/71,

para que passemos a analisar o pensamento de nossa doutrina:

Art. 79. Denominam-se atos cooperativos os praticados entre as cooperativas e seus associados, entre estes e aquelas e pelas cooperativas entre si quando associadas, para a consecução dos objetivos sociais.

Parte da doutrina nacional (digna de nota) já constrói conceitos, em tudo e

por tudo, independentes da expressão literal do citado artigo de lei, oferecendo conceito

mais amplo e rico do fato jurídico cooperativo. Mas, como todo novo empreendimento,

este não está infenso às vicissitudes afetas a toda mudança. Melhor dizendo, evolução.

É certo que, se alguns emprestam definição claramente restritiva ao

conceito, amputando-lhe elementos fundamentais, outros findam por imprimir-lhe

excessiva dilatação semântica, fazendo com que colha toda sorte de situações vividas

pelas cooperativas. A ponderação é necessária ao rigor científico.

164 A despeito da opinião da autora, o ato constitutivo da sociedade cooperativa, para nós, não é fato jurídico cooperativo. Também nesse sentido, pondera ROBERTO PASTORINO que “la constitución de una cooperativa no presenta particularidad ninguna respecto del mismo acto em las sociedades ordinarias”, in Teoría General del Acto Cooperativo, p. 126 ss. Ao que nos parece, RENATO BECHO pensa como ELSA CUESTA, pois que para esse autor, “em um sentido amplo, já é ato cooperativo a própria constituição da cooperativa”. In Tributação das Cooperativas, op cit., p. 173. 165 Teoría General... op. cit., p. 174.

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Na doutrina posta na trilha do progresso do conceito de fato jurídico

cooperativo, destaca-se o empenho de RENATO LOPES BECHO166. Eis sua definição:

(...) definimos atos cooperativos como os atos jurídicos que criam, mantém (sic) ou extinguem relações cooperativas, exceto a constituição da própria entidade, de acordo com o objeto social, em cumprimento de seus fins institucionais.

Essa conceituação, como posta, não deixa totalmente clara a posição do

autor. Decerto, para este se inclui no conceito de fato jurídico cooperativo uma gama

ampla de situações, como se depreende de trecho complementar de uma outra obra sua,

que vale ser transcrito aqui:

Os negócios cooperativos poderão ser ou não atos cooperativos. Alguns deles serão nitidamente atos cooperativos, como os negócios-fim e os negócios-meio. Os negócios auxiliares poderão ser ou não atos cooperativos, o mesmo se afirmando dos negócios secundários, mesmo que estes, em tese, não devam ser assim classificados. Vários fatores influenciarão para classificar um negócio como ato cooperativo, notadamente o tipo de cooperativa e seus objetivos sociais, dentre outros167.

É emblemático notar que, seja na doutrina local ou alienígena, não há

discrepância quando o assunto é a) a ausência de finalidade lucrativa; b) o atendimento

aos objetivos e fins institucionais da cooperativa – concretamente considerada, assim

como, e principalmente, c) a presença da cooperativa.

Com efeito, o nó da discussão repousa na inclusão, ou não, no âmbito

semântico do conceito de fato jurídico cooperativo daquelas relações que se dão para

além do círculo interno cooperativo (cooperado – cooperativa – cooperativa

associada)168. É dizer: não há consenso quanto à qualidade de fato jurídico cooperativo

166 Tributação das Cooperativas... op. cit., p. 191. 167 Elementos... op. cit., p. 165. Com uma concepção bem ampla do conceito de fato jurídico cooperativo: REGINALDO FERREIRA LIMA, Direito Cooperativo Tributário, p. 53 ss. 168 É curioso observar que os autores argentinos citados rechaçam a relação da cooperativa com o mercado, em relação ao conceito de ato cooperativo, quando a legislação argentina (Lei n. 20.337/73) a prestigia. Em seu art. 4° está posto que “são atos cooperativos aqueles realizados entre as cooperativas e seus associados e por aquelas entre si, no cumprimento do objeto social e a consecução dos fins institucionais. Também o

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relativa ao negócio realizado, em determinados casos, entre uma cooperativa e o

mercado, fora do círculo interno da cooperativa, portanto.

A doutrina nacional (como visto acima), a despeito da dicção do art. 79 da

Lei das Cooperativas, começa a apontar novos rumos ao conceito do que denomina,

genericamente, de ato cooperativo. Para tanto, avançam sobre a questão da atuação

interna para surpreender o fato jurídico cooperativo também fora desse círculo, máxime

nas relações das cooperativas com o mercado realizadas para a consecução dos

objetivos socioeconômicos cooperativos.

Prima-se pela análise de cada cooperativa, nos mais diversos ramos de sua

atuação, para se identificar aí, nos casos concretos, o fato jurídico cooperativo de cada

espécie de cooperativa, numa proposta analítica mais completa do fenômeno.

Vislumbra-se, assim, um horizonte possivelmente alvissareiro para o fato jurídico

cooperativo no Brasil – ao menos doutrinariamente, por enquanto.

Contudo, não faltam os que (ainda) defendem no país uma maior

circunscrição do conceito em tela, valendo-se de interpretação claramente literal do

citado art. 79 da Lei Cooperativa. Estes, como se vê, ainda se encontram presos aos

malogrados grilhões sígnicos denunciados linhas passadas.

Há, portanto, posições contrárias inclusive às nossas (como ficará claro

adiante) e que, por isso mesmo, devem ser registradas. PAULO ROBERTO

STÖBERL169 vê o conceito do seguinte modo (em que resta flagrante a ambigüidade

são, em relação às cooperativas, os atos jurídicos, que, com idêntica finalidade, realizem com outras pessoas”. Isso é só um indicativo da dificuldade do tema. 169 Ato cooperativo nos ramos do cooperativismo: ramo agropecuário, in Ato Cooperativo e seu Adequado Tratamento Tributário, GUILHERME KRUEGER (coord.), p. 132.

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da expressão ato cooperativo, por dizer ora com o fato jurídico cooperativo, ora com a

previsão normativa abstrata de seus elementos):

A verificação da ocorrência ou não do ato cooperativo necessita da presença e existência, concomitante, dos três elementos essenciais contidos no art. 79, da lei cooperativista, a saber: existência de sociedade cooperativa, presença de sócio cooperado e ato atinente à concretização do objetivo social estatutário.

PEDRO EINSTEIN DOS SANTOS ANCELES e ELIANA KARSTEN

ANCELES170 não diferem em suas conclusões:

Verifica-se, do exame do dispositivo transcrito no art. 79 e parágrafo único, que um ato, para ser considerado como ato cooperativo, além de ser praticado na consecução dos objetivos sociais, necessariamente deve ser praticado entre as cooperativas e seus associados, entre estes e aquelas e pelas cooperativas entre si quando associadas. Portanto, os atos cooperativos abrangem os negócios jurídicos internos, negócios – fim, com características próprias, em relação aos atos civis, mercantis ou trabalhistas.

Segundo essa linha interpretativa, fato jurídico cooperativo só há no círculo

interno da cooperativa (e nunca fora dela), dentro daquela conclusão que vimos

explanada pela doutrina estrangeira, logo acima, mas sem o mesmo aprofundamento

teórico. Chega a soar tautológico afirmar, somente, que a relação entre a cooperativa e

seus associados (cooperados ou outra cooperativa) é ato típico ou “ato cooperativo”.

O aspecto ideal(izado) que se faz das cooperativas exerce, sem dúvida, sua

influência nessa peleja entre os que emprestam maior ou menor abrangência ao

conceito de fato jurídico cooperativo. É como se houvesse mesmo um quê de

romantismo na abordagem (limitadora) que alguns autores fazem do tema, inspirados,

ao que parece, por uma certa nostalgia quanto aos primórdios da dita utopia

rochdaleana, em que o ambiente interno de relações cooperativas é uma síntese dos

170 O adequado tratamento ao ato cooperativo: o imposto de renda pessoa jurídica e a contribuição social sobre o lucro líquido incidentes nas operações realizadas por cooperativas, in Ato Cooperativo e seu... op. cit., GUILHERME KRUEGER (coord.), p. 263. Saliente-se que os autores tratam negócio-interno e negócio-fim como sinônimos.

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valores sociais mais fundamentais, ainda livre da corrupção representada pelo mercado.

Para essa doutrina só são puros fatos cooperativos aqueles que a cooperativa realiza

com seus cooperados, ou com outra cooperativa associada, formando uma espécie de

círculo sagrado cooperativo.

Porém, como não poderia deixar de ser, até mesmo a corrente restricionista

do conceito de fato jurídico cooperativo reconhece a necessidade inafastável que as

cooperativas têm de atuar no mercado, mercê de seus específicos ramos de atuação

socioeconômica. Afinal, a depender da espécie de cooperativa, a relação com o

mercado é etapa vital para a consecução de seu objeto socioeconômico (como se verá

no item próprio), sem a qual a mera atuação interna perde sentido.

Não queremos significar com isso que o modelo de sociedade (empresária)

representado pelas cooperativas não tenha ampla inspiração social (quase utópica

mesmo ante toda a sua carga axiológica inspiradora), ou que suas relações internas não

consubstanciem fatos cooperativos. Pretendemos, tão-só, firmar nossa posição diante

dessa crise de paradigmas, para dizer que somos, enfim, refratários à fetichização do

ato (fato) cooperativo, que é visto como algo-em-si, dissociado de seu contexto

constitutivo, inspirador de uma pureza quase transcendente.

O fato é que não subsistem fundamentos de ordem eminentemente jurídica

que impeçam a cooperativa de atuar estritamente de acordo com seus fins institucionais

e objetivos socioeconômicos, portanto informada pelos princípios cooperativos e, por

conseguinte, sem se despir de suas características específicas, quando atua junto ao

mercado – nessas condições. E se é assim, não vemos por que o pré-conceito de que

somente relações internas são fatos jurídicos cooperativos.

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Há, pois, a necessidade de se realizar uma crítica à razão ingênua do ato

cooperativo vigorante na doutrina cooperativista. É pragmaticamente inadequado e

juridicamente insuficiente pensar na atuação cooperativa como se fosse

inexoravelmente imprópria/atípica a sua relação com o mercado.

A doutrina defensora de uma definição essencialista da atuação

cooperativa, como se as relações no seu ambiente interno fossem algo ideal, deve ser

superada, assim como todo o poder de violência simbólica que exerce através dessa sua

razão ingênua. Isso feito, o direito cooperativo terá dado um importante passo na

direção de sua plena compreensão e para o amadurecimento de suas instituições, enfim,

para a sua evolução.

4.4 – O Fato Jurídico Cooperativo e o Agir Cooperativo: atuação em cooperativa e

atuação da cooperativa

Ressalve-se que as premissas técnicas assentadas ao longo deste capítulo

têm, para nós, sua razão de ser. Com efeito, pretendemos – firmes em pressupostos da

Teoria Geral do Direito – transitar pelos aspectos de ordem marcadamente jurídica

pertinentes ao tema (sem prejuízo de uma análise crítica também de matiz pragmática),

no escopo de, ao fim e ao cabo deste labor, lograr surpreender o fato jurídico

cooperativo em toda a sua integridade constitutiva, traduzida num conceito

rigorosamente jurídico.

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Como demonstrado alhures, é cientificamente inadequado denominar

meramente de ato cooperativo todo fato jurídico (cooperativo) e, também, sua previsão

normativa abstrata (hipótese de incidência cooperativa), além dos fatos concretos.

O fato jurídico cooperativo, a nosso ver, pode ser de duas espécies: ato

jurídico cooperativo e negócio jurídico cooperativo. Assim é que o fato jurídico

cooperativo é gênero do qual o ato e o negócio jurídico cooperativo são espécies.

Aprofundemos a temática.

O que define juridicamente a qualidade do fato jurídico relativo a uma

cooperativa é o agir/atuar dessa cooperativa. Toda atuação nessa sociedade é atuação

cooperativa (gênero). Mas esta se subdivide do seguinte modo: atuação em cooperativa

e atuação da cooperativa. A distinção é sutil, mas de extrema relevância para o tema do

fato jurídico cooperativo, que só se consubstancia no primeiro caso. Explicamos.

Entendemos que atuação em cooperativa é o conjunto de ações

empreendidas diretamente no afã de concretizar a consecução dos objetivos

socioeconômicos justificativos de sua criação, dirigidas para a prestação de serviços

aos cooperados (seu fim institucional), sempre em consonância com suas

características específicas e princípios jurídicos próprios.

A atuação em cooperativa é o diferencial máximo em relação aos demais

tipos societários, porquanto com essas características jurídicas só a uma cooperativa é

possível atuar. Não confundir com a atuação da cooperativa (também diferençada),

pois esta é noção vinculada às demais formas do agir cooperativo, nas quais não se

encontram, em sua totalidade, os elementos constitutivos da atuação em cooperativa.

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151

A atuação da cooperativa se volta, especificamente, às demais ações

necessárias ao funcionamento e organização empresarial da cooperativa, mas que não

correspondem específica e diretamente à consecução dos objetivos socioeconômicos

cooperativos.

A diferença repousa em que – em linhas gerais – a atuação em cooperativa

é como um agir conjunto direcionado, específica e diretamente, à consecução do

objetivo social e econômico da sociedade. O agir da cooperativa, por seu turno, é

atuação corriqueira a qualquer empresa, que se vê na contingência de gerir fatores, não

menos importantes, para a sua estruturação e organização, visando, é claro, seu objeto

social, ainda que indiretamente, por assim dizer.

Obtempere-se, por oportuno, que o agir cooperativo importa em algumas

características inafastáveis, como o atendimento aos princípios cooperativos e a

ausência de finalidade lucrativa. É dizer: falar numa atuação cooperativa não autoriza

deduzir que uma cooperativa possa realizar algo como uma atuação avessa ao seu

modelo societário, estéril de todas as características cooperativas específicas, máxime

de seus princípios jurídicos.

Pois bem. O conjunto de descrições prescritas em normas jurídicas

relativas à atuação cooperativa conforma o suporte fático da norma jurígena

cooperativa ou a hipótese de incidência cooperativa. Aqui há a previsão do fato que,

uma vez concretizado no mundo fenomênico, e de acordo com a forma como o direito

reputa ocorrido o fato, sofrerá a incidência juridicizante dessa norma, ao tempo que se

consubstanciará o fato jurídico cooperativo – apto a irradiar efeitos jurídicos

desencadeadores de relações jurídicas cooperativas. Vejamos agora, mais amiúde, as

espécies de fato jurídico cooperativo, começando pelo ato jurídico cooperativo.

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4.4.1 – O Ato Jurídico Cooperativo

No seio da cooperativa os cooperados atuam mutuamente, movidos por

interesses socioeconômicos comuns, prestigiando o agir-em-conjunto em benefício do

grupo. É a solidariedade cooperativa. A estrutura organizacional que torna possível

essa atuação é a cooperativa, sociedade criada para viabilizar o progresso

socioeconômico de seus associados. Logo, os sócios fruem naturalmente dos serviços

prestados pela sociedade de que são proprietários, e que foi erigida para o benefício

deles.

Em sendo assim, e por tudo o que fora argumentado até agora, tem-se que a

cooperação aparece como forma de efetivação e consecução de fins e objetivos

bastante específicos. O cooperado não atua com a cooperativa, mas na cooperativa171.

Com efeito, os interesses da cooperativa e dos cooperados não são contrapostos, mas

antes e sempre, comuns. A cooperativa, por assim dizer, é o conjunto dos associados e

de seus interesses.

Isto posto, resta clarividente que relações há entre a cooperativa e seu

associado (cooperado ou cooperativa) que se prestam diretamente à consecução do fim

e objeto social da cooperativa.

Numa cooperativa de produção, v.g., os cooperados entregam sua produção

à cooperativa (onde será industrializada, ou não, e negociada com o mercado). O ganho

perseguido pelos cooperados mediante sua atuação conjunta é atingido pela escala de

produção alcançada pelo somatório de seus esforços, propiciando, assim, condições

171 Neste sentido: ROBERTO PASTORINO, Teoría General... op. cit., p. 119.

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para que a cooperativa, atuando no mercado, consiga melhores condições de venda

para esses produtos. Pode, ainda, realizar processo de industrialização destes,

agregando-lhes valor, para só então vendê-los no mercado. Não fosse assim e esse

ganho seria auferido, justamente, pelo intermediário que a atuação cooperativa tenta

evitar.

É o caso, por exemplo, de uma cooperativa de produtores de leite que

transforma esse produto em leite tipo “A” e “B”, onde ocorrem diversas etapas

(pasteurização, embalagem etc.) dentro da estrutura cooperativa para, ao fim do

processo, negociar esses produtos no mercado (mais uma vez por meio da estrutura

empresarial), que prestará serviços como: a cooptação de clientes (grandes

consumidores, supermercados etc.), negociação, entrega do produto, dentre tantas

outras etapas do cotidiano empresarial. E se essa mesma cooperativa fizesse também

iogurte com o leite, poderia (ou não) até se associar a uma outra cooperativa de

produtores de frutas, comprando sua produção para utilizá-la na transformação do leite

naquele derivado. As possibilidades são inúmeras para a consecução dos objetivos

socioeconômicos.

Transportando o exemplo para o ramo das cooperativas de consumo,

observaremos que os associados investirão ali suas economias com o intuito de adquirir

por melhor preço os bens de consumo de que necessitam. Sua união tornará possíveis

compras em grande número, viabilizando, assim, o incremento econômico pretendido.

Então, a cooperativa, sendo o conjunto de consumidores associados, deterá as

condições necessárias para barganhar com fornecedores, conseguindo preços mais

baixos nos produtos, ao passo que eliminará o intermediário existente nessa espécie de

negócio, que seria o supermercado ou o armazém. Uma vez adquiridos os produtos no

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mercado, a cooperativa irá distribuí-los entre seus cooperados. É plausível, ainda, a

hipótese de a cooperativa de consumo se associar a uma outra, de produção, para

adquirir seus produtos.

Há também relações entre a cooperativa e os cooperados concernentes ao

repasse de valores. Saquemos rapidamente o exemplo da cooperativa de produção.

Aqui a sociedade (geralmente) adianta o valor da futura venda ao associado, com base

em projeções de mercado. Já vimos (item 3.6.1) que se o valor de venda for melhor do

que o esperado, haverá sobras que serão repassadas ao cooperado na proporção de suas

relações com a cooperativa, salvo deliberação em contrário da assembléia geral (vide

item 3.6.2.1). Da mesma forma, o cooperado repassará para a cooperativa numerário

destinado a cobrir as despesas administrativas da sociedade, regularmente.

São inúmeros, portanto, e fundamentais para o funcionamento do sistema

cooperativo, os atos praticados entre a cooperativa e os seus associados, sejam

cooperados ou outras cooperativas. Atos que se efetivam em ambos os sentidos, ou

seja, da cooperativa para o cooperado (v.g., distribuição dos produtos de consumo), ou

do cooperado para a cooperativa (v.g., entrega da produção), o mesmo valendo para os

valores (repasse das sobras para o cooperado ou recomposição dos custos

administrativos da cooperativa).

Com isto queremos dizer que toda atuação em cooperativa, realizada entre

associado (cooperado ou cooperativa) e cooperativa, dirigida específica e diretamente

à consecução de seus objetivos socioeconômicos, consubstancia fato jurídico

cooperativo, da espécie ato jurídico cooperativo.

Poder-se-ia ilustrar o ato jurídico cooperativo com as seguintes fórmulas

lógicas:

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(c C’) v (C’ C”)

Onde: c é o cooperado; C’ é sua cooperativa; C” é a cooperativa associada;

v é o disjuntor includente, e, por fim, o símbolo é a atuação cooperativa específica e

diretamente dirigida à consecução dos fins e objetivos sociais.

4.4.2 – O Negócio Jurídico Cooperativo

4.4.2.1 – A Atuação Cooperativa no Mercado ou de Como a Cooperativa não é

uma Terceira Coisa entre o Associado e o Mercado

Nos exemplos que demos acima, observa-se que para a efetivação dos atos

jurídicos cooperativos é necessária uma série de outras atuações da cooperativa, que

não se passam dentro de suas paredes, mas necessariamente para além delas, chegando

até o mercado. Mas essa atuação junto ao mercado tanto pode ser atuação em

cooperativa, como atuação da cooperativa. Esta será vista mais adiante. Atenhamo-nos

à primeira, por ora.

Com efeito, as cooperativas não vivem num compartimento estanque,

alheias ao ambiente em seu derredor. Ao revés, seu peculiar caráter socioeconômico

exige atuação junto aos demais agentes econômicos. Soma-se a isso a complexidade

assumida pelo modelo empresarial nos dias de hoje. E as cooperativas que atuam no

mercado pretendem ser competitivas, sob pena de malograr o seu objetivo de fomentar

as economias de seus associados.

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156

E quase em sua totalidade, as cooperativas atuam no mercado, por força de

seus objetos sociais, para adquirir produtos, para dar vazão à produção de seus

associados, para conseguir-lhes clientes etc.. Seja como for, e onde for, a atuação

cooperativa continuará sendo típica – por força dos princípios e características jurídicas

próprias.

A constatação dessa relação com o mercado é feita por toda a doutrina,

qualquer que seja a orientação científica de suas idéias, pois decorre do próprio modelo

societário. A título de paradigma, vejamos a opinião de WALMOR FRANKE172, que

apesar de reconhecer a íntima conexão entre negócios-fim e negócios-meio não inclui

os últimos no conceito de fato jurídico cooperativo:

O negócio interno (negócio-fim), comumente, só pode realizar-se em benefício do cooperado se precedido ou sucedido de um negócio externo, ou de mercado, denominado ‘negócio com terceiros’, ou ‘negócio-meio’.

Assim, nas cooperativas de produtores, o negócio interno, isto é, a entrega dos produtos pelo cooperado para serem vendidos pela cooperativa (in natura ou após transformados) necessita, para a sua total execução, de outro negócio, o negócio-meio, consistente na venda do produto pela cooperativa no mercado, com reversão do respectivo preço, minus despesas, ao sócio.

Nas cooperativas de consumo, o negócio interno, isto é, o fornecimento de bens ou utilidades ao associado, somente é possível se, anteriormente, a cooperativa adquiriu tais utilidades ou bens no mercado, mediante outro negócio, o negócio-meio.

Embora se trate de negócios distintos, verifica-se, porém, que há nas cooperativas uma íntima conexão entre o negócio-fim e o negócio-meio.

Ocorre que, a depender do que determina o objeto social da cooperativa,

sua relação com o mercado será imprescindível para a consecução dos seus fins e

objetivos socioeconômicos. É dizer: em muitos casos o ato jurídico cooperativo

(negócio-fim para o citado autor) só é possível porque vinculado ao negócio jurídico

cooperativo (negócio-meio para aquele autor).

172 Direito das Sociedades Cooperativas, op. cit., p. 24.

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157

O motivo que leva um grupo de pessoas a se unir em cooperativa para a

consecução de um objetivo social e econômico comum é o fato de que, isoladamente,

tal desiderato é inalcançável. Com efeito, somente após galgar um patamar estrutural e

organizacional em forma de cooperativa é que se torna exeqüível seu objetivo. É a

força do conjunto, o somatório solidário de esforços e energias o móvel dessa espécie

de organização societária, na qual o aspecto socioeconômico é algo singular.

Ocorre que a viabilidade dos objetivos cooperativos passa,

necessariamente, por uma atuação complexa por parte da cooperativa. Nas cooperativas

de produtores, v.g., alcançar o objetivo socioeconômico passa, fatalmente, por uma

atuação junto ao mercado. Sim, pois se o cooperador entrega sua produção à

cooperativa, é para que esta a negocie com as melhores condições possíveis no

mercado (condições essas impossíveis para ele se estivesse sozinho). Logo, é possível

até dizer que o associado vai ao mercado através da cooperativa.

O importante é deixar claro que o objetivo do cooperado, ao entregar a sua

produção para a sua cooperativa, é vê-la despejada no mercado. Afinal, de que

adiantaria ao associado simplesmente ter sua produção nas mãos da cooperativa se não

fosse para que esta a negociasse no mercado, em seu favor?!? Logo, o próprio ato

jurídico cooperativo, em sua plenitude, restaria inviável não fosse essa atuação com o

mercado, pois não haveria relação de fim econômico para além da mera entrega da

produção à cooperativa pelo cooperado.

Nesses casos, como em tantos outros, a relação jurídica entre a cooperativa

e o cooperado, como efeito jurídico do fato jurídico da espécie ato jurídico cooperativo,

só é completa porque a cooperativa se relaciona no mercado. A mera atuação interna

em cooperativas cujo objeto social impõe a necessidade de se negociar junto ao

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mercado, por si só, é insuficiente para a consecução dos objetivos socioeconômicos em

sua totalidade.

O que se pode afirmar em sede de Teoria Geral do Fato Jurídico

Cooperativo é que, nos casos das cooperativas onde o objeto social não reivindica,

necessariamente, a atuação no mercado (ex.: cooperativa de crédito)173, a concretização

da relação entre cooperado e cooperativa (depósito de valores, empréstimos etc.), nos

termos da hipótese de incidência cooperativa, é condição suficiente, por si só, para que

a norma jurídica cooperativa incida, transformando aquele fato em fato jurídico

(cooperativo), da espécie ato jurídico cooperativo.

Mas o mesmo não vale para as cooperativas onde seu objeto social, ao

revés, implica fundamentalmente uma atuação junto ao mercado para a consecução

plena de seus fins e objetivos socioeconômicos. Aqui, na falta do negócio com o

mercado, não há se falar na cabal consecução dos objetivos que motivaram a criação da

cooperativa.

Nessas hipóteses, em verdade, o suporte fático atinge, por assim dizer, um

maior grau de complexidade, vez que o fato abstratamente previsto na hipótese de

incidência se constitui de elementos alheios à cooperativa, como o mercado. Quando a

norma jurígena (cooperativa) juridiciza, o fato havido nesses termos constitui um fato

jurídico cooperativo da espécie negócio jurídico cooperativo, que é, pois, o produto da

atuação em cooperativa junto ao mercado. Lembrando que o conceito de atuação em

173 Em tese, uma cooperativa de crédito pode operar somente com os valores apurados junto a seus cooperados, fazendo caixa com seus depósitos e emprestando-os, sem realizar qualquer outra relação com quem quer que seja. Porém, a cooperativa pode se tornar mais eficiente aplicando e movimentando tais valores junto ao mercado. Não há vedação para isso. O que ocorre é que essa espécie cooperativa, por força de lei, não pode operar com aqueles que, embora pudessem, não são associados (vide tópico 4.6). As cooperativas de crédito possuem uma série de peculiaridades, que começam pelo seu regramento legal bancário. Para mais detalhes sobre a atuação dessa espécie de cooperativa, consulte ÊNIO MEINEN, o ato cooperativo nas cooperativas de crédito, in Ato Cooperativo e seu Adequado Tratamento... op. cit., p. 143 ss.

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cooperativa implica a estrita observância dos princípios jurídicos cooperativos e a

manutenção das características próprias da cooperativa.

4.4.2.2 – A Atuação em Cooperativa no Mercado para a realização do Negócio

Jurídico Cooperativo

O aprofundamento da questão nos empurra para a inferência de que o

sistema jurídico cooperativo prevê situações de fato para as quais prescreve uma

atuação cooperativa junto ao mercado, em razão da estrita necessariedade dessa relação

para que se efetivem seus objetivos socioeconômicos. Mas não é qualquer atuação

cooperativa no mercado que importa em concretização do fato previsto nessa hipótese

de incidência cooperativa.

Somente a atuação em cooperativa no mercado, sempre que o objeto social

assim exige, é que é abarcada pelo sistema jurídico cooperativo. De fato, a atuação em

cooperativa junto ao mercado é uma exigência jurídico-estrutural para certas

cooperativas (aquelas cujo objeto social prevê uma atividade econômica que passa,

necessariamente, pelo mercado).

Com efeito, a atuação em cooperativa é possível no mercado. E uma tal

atuação é imposição inexorável do sistema, pois sem essa atuação não é possível a

consecução plena dos objetivos socioeconômicos da cooperativa, que, não fosse assim,

teria uma atuação quase inócua e de proveito questionável para seus associados.

Afigura-se-nos ilógico e insubsistente pretender dissociar absolutamente o

ato jurídico cooperativo do negócio jurídico cooperativo. Se a dissociação se justifica

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em espécies de cooperativas como as de crédito, onde até é possível que só haja

relações entre a cooperativa e o associado (c C’ e/ou C’ C”), nas demais, em que

o objeto social implica necessariamente relação com o mercado, como (única) forma de

realizar a consecução plena dos fins e objetivos socioeconômicos, essa dissociação não

se justifica cientificamente.

Assim, a complexa realidade levada a efeito pelas cooperativas em nosso

meio social concreto impede a dissociação conceitual absoluta entre tais práticas.

Pretender que o sistema cooperativo não prestigie a relação com o mercado é fechar os

olhos para a realidade cooperativa. É, enfim, insistir na mistificação desse modelo

societário – em seu detrimento.

Com o fito de melhor aclarar as idéias pontuadas aqui, é de bom alvitre

fazer uso didático de alguns poucos exemplos práticos:

1) o caso das cooperativas de crédito. Estas não podem oferecer seus

serviços de crédito aos não-cooperados (empréstimos etc.). Contudo, podem se

relacionar com outras cooperativas associadas (como uma cooperativa central), ou,

ainda, com o mercado (fazendo investimentos, tomando crédito etc., junto a uma

instituição financeira), em benefício dos cooperados. Em tese, nada impede, contudo,

que não atue com o mercado e se pretenda auto-subsistente, atuando apenas em seu

círculo interno de associação.

Colhe-se a inferência de que em relação às cooperativas de crédito é

plausível que só se efetivem os atos jurídicos cooperativos. Numa perspectiva

formalizadora, ficariam assim as situações descritas aqui:

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C’ c

C”

Então: C’ é a cooperativa de crédito; c, o cooperado; C”, a cooperativa

central associada, e (horizontal ou vertical) é a atuação cooperativa diretamente

dirigida à consecução dos fins e objetivos socioeconômicos.

Cumpre acrescentar, por oportuno, que em sendo o caso de a cooperativa

de crédito realizar negociação com o mercado, numa atuação em cooperativa, essa

relação se dará como negócio jurídico cooperativo. Isto porque, considerada a dura

realidade, as cooperativas de crédito só estarão plenamente aptas a efetivar seus

objetivos socioeconômicos se negociarem com o mercado de modo a oferecer mais

crédito aos cooperados, e também crédito mais barato, em razão dos ganhos que podem

vir a ser auferidos em investimentos financeiros, com o fito de melhor servir àqueles.

Note-se que essa relação com o mercado se dá direta e especificamente

para a consecução dos objetivos socioeconômicos da cooperativa, e em benefício direto

dos cooperados, respeitados os princípios e características cooperativas. Aí teríamos o

seguinte quadro:

M

C’ c

C”

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Onde: acrescenta-se M como o mercado, e (horizontal ou vertical) é a

atuação cooperativa diretamente dirigida à consecução dos fins e objetivos

socioeconômicos.

Nas demais espécies de cooperativa, entretanto, não é possível dissociar a

negociação com o mercado da consecução plena dos objetivos socioeconômicos. Com

efeito, o fato jurídico cooperativo nesses casos se constitui em suas duas espécies, pois

além do ato jurídico cooperativo há negócio jurídico cooperativo.

2) O caso das cooperativas de consumo. Aqui, para que se efetivem os fins

e objetivos socioeconômicos da sociedade, ocorrerão as seguintes relações: a) a

cooperativa (numa prestação de serviços vinculada aos interesses dos associados)

adquire junto ao mercado os produtos de consumo por um preço melhor; b) a

cooperativa distribui esses produtos aos associados e; c) os associados restituem a

cooperativa, para assim cobrir os custos de aquisição e os custos operacionais e de

administração inerentes a essa prestação de serviços.

Note-se que, de acordo com a letra do citado art. 79 e com a interpretação

literal que alguns fazem, só seriam “atos cooperativos” as relações “b” e “c”, malgrado

seja impossível que se concretizem à míngua da ocorrência da relação “a” – relação

inerente ao objeto socioeconômico e essencial para o desenvolvimento das atividades

dessa espécie cooperativa. Há, ainda, a possibilidade de a cooperativa adquirir os bens

de consumo em uma outra cooperativa (de produção) associada.

Vejamos o organograma das relações necessárias174 para que se efetivem

os objetivos socioeconômicos de uma cooperativa de consumo:

174 A relação (C’ C”) não é estritamente necessária à consecução dos objetivos socioeconômicos no caso do exemplo.

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M C’ c

C”

Aqui, temos: M como o mercado; C’ é a cooperativa de consumo; C” é a

cooperativa de produção associada; c é o cooperado, e (horizontal ou vertical) é a

atuação cooperativa diretamente dirigida à consecução dos fins e objetivos

socioeconômicos.

Já o quadro amplo daquele outro caso referido linhas passadas, 3) da

cooperativa de produção de leite, onde: a) o cooperado passa a sua produção para a

cooperativa; b) a qual adquire, também, as frutas de produtores de uma outra

cooperativa associada, para, enfim, c) negociar tal produção com o mercado (que por

sua vez vai vender os produtos ao consumidor final) para, só então, d) repassar tais

valores aos associados (no caso de sobras), poderia ser assim representado:

c C’ M cf

C”

Onde: c é o cooperado, C’ é a cooperativa de produção de leite; C” é a

cooperativa de produção de frutas associada; M é o mercado; cf é o consumidor final;

(horizontal ou vertical) é a atuação cooperativa diretamente dirigida à consecução

dos fins e objetivos sociais, e é o negócio que não está dirigido à consecução dos

fins e objetivos socioeconômicos da cooperativa.

As possibilidades apresentadas pelo modelo cooperativo são infindáveis,

podendo-se incluir toda sorte de variáveis nessas equações. Mister depreender do

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exposto que a realidade fática comporta duas situações capitais que devem ser previstas

e regidas pelo direito cooperativo:

a) nas cooperativas de crédito, dado às suas peculiaridades, é possível só se

materializar o ato jurídico cooperativo. Nesse caso particular, em tese, basta isso para

que sejam atingidos, plenamente, os fins e objetivos socioeconômicos da cooperativa.

Entretanto, para b) as demais cooperativas a relação com o mercado é fundamental

para que se alcancem seus objetivos socioeconômicos, pois apenas as relações entre os

associados e a cooperativa não são suficientes, inclusive, para configurar, em sua

plenitude, a hipótese de incidência da norma jurídica cooperativa. Impõe-se, portanto, a

presença de mais um elemento, qual seja, o mercado. Nessas hipóteses, a relação dos

associados com a cooperativa se encontra umbilicalmente ligada à relação da

cooperativa com o mercado. Logo, uma é condição necessária da outra, de modo que só

é possível exibir assim o negócio jurídico cooperativo: (c C’ M).

A cooperativa é, pois, algo como o ponto de intersecção na equação do fato

jurídico cooperativo. É indissolúvel o amálgama jurídico que une o ato jurídico

cooperativo ao negócio jurídico cooperativo na conformação do fato jurígeno

cooperativo havido nas cooperativas cujo objeto socioeconômico demanda a relação

com o mercado, com vistas a sua plena consecução.

A essa altura já podemos afirmar que o que define o negócio como negócio

jurídico cooperativo é a correlação lógica, direta e específica, com o ato jurídico

cooperativo e com a consecução do objetivo socioeconômico de uma cooperativa

concretamente considerada. Por outros torneios lingüísticos: sabe-se do negócio

jurídico cooperativo quando se identifica aquela atuação em cooperativa que, a partir

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do ato jurídico cooperativo, alcança a negociação junto ao mercado, tudo direta e

especificamente relacionado à consecução de seu objetivo socioeconômico.

Logo, numa cooperativa de produção, o negócio jurídico cooperativo será a

negociação da produção (entregue pelo cooperado à cooperativa) no mercado; numa

cooperativa de consumo, a aquisição dos bens no mercado (que serão distribuídos entre

os associados); numa cooperativa de trabalho, a contratação de trabalho (para os

cooperados) junto ao mercado; e assim por diante. Resta salientar que a cabal

identificação do fato jurídico cooperativo, e cada uma de suas espécies, só é possível a

partir da análise de cada atuação (em) cooperativa concretamente considerada.

É clarividente a circunstância de que, nesses casos, o cooperado auferirá

proveito econômico na sua atividade só, e tão-somente, se a sua cooperativa negociar

com o mercado. Cooperativa é um conjunto onde se opera solidariamente e somente

assim se coopera. Por isso, o sujeito do verbo atuar (em cooperativa) é a cooperativa –

sujeito coletivo, por assim dizer.

Não significamos com isso que a cooperativa coopera com o mercado, pois

o mercado não coopera. Sua lógica é diferente. Porém, nosso entendimento é no

sentido de que a cooperativa ao negociar com o mercado, nos casos em que o objeto

social assim exige, desempenha uma atuação em cooperativa, ou seja, presta serviços a

seus associados com o escopo de atingir diretamente seus fins e objetivos

socioeconômicos, em consonância com seus princípios jurídicos específicos e,

portanto, mantendo todas as suas características. E a especificidade dessa sua atuação é

especial ao ponto de tornar fato jurídico cooperativo o fato consistente nessa sua

atuação.

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166

Discordamos com os que pretendem fazer crer que a cooperativa sempre se

descaracteriza quando atua no mercado, operando como qualquer uma outra empresa,

havendo similitude na relação, sem qualquer traço distintivo nesse atuar175. Como se ao

se relacionar com o mercado a cooperativa deixasse de sê-lo, momentaneamente,

desvestindo-se de sua roupagem jurídica singular e assumindo as características de uma

outra espécie societária. Não é assim.

A cooperativa mantém, em qualquer situação, as suas características

jurídicas próprias e o respeito a seus princípios jurídicos, como já defendemos neste

trabalho. Ou simplesmente deixará de ser cooperativa. No caso dos negócios jurídicos

cooperativos fica claro que esse pensamento não subsiste juridicamente. O que ocorre é

que a cooperativa também pratica outras espécies de atuação relacionadas a vida

empresarial, em que o fato assume outra conotação jurídica, sendo regido, inclusive,

por outro ramo do direito (como o trabalhista), que não o direito cooperativo. Mas isso

é atuação da cooperativa, como se verá.

Outrossim, é lícito afirmar que o conteúdo semântico da expressão

prestação de serviços pela cooperativa abrange o seu atuar no mercado em benefício

direto dos cooperados, como demonstrado acima.

Destarte, negócio jurídico cooperativo é a negociação empreendida pela

cooperativa junto ao mercado, em que há correlação lógica com o ato jurídico

cooperativo, havida direta e especificamente para a consecução do objetivo

socioeconômico da cooperativa. Sendo fruto de atuação em cooperativa, está de acordo

com os princípios jurídicos e características próprias cooperativas.

175 Cf. ROBERTO PASTORINO, Aproximación a la esencia del acto cooperativo, in Temas de Derecho Cooperativo, p. 52.

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O fato jurídico cooperativo, como é de se ver, conforma um conceito de

alta complexidade, no qual um dos elementos mais ricos é o que acabamos de

descrever, e a base analítica disso só pode ser a compreensão plena do conceito de

cooperativa, com sua estrutura jurídica composta de normas e princípios particulares,

enfim, com atenção as suas peculiaridades jurídicas todas.

4.5 – Ainda o Fato Jurídico Cooperativo

Sempre que uma cooperativa atuar com o fito de assegurar, direta e

especificamente, a consecução dos seus fins e objetivos socioeconômicos, de modo a

prestar serviços a seus associados, com respeito aos princípios jurídicos cooperativos e,

portanto, às suas características jurídicas próprias, estaremos diante de uma atuação em

cooperativa. Assim, podemos afirmar que fato jurídico cooperativo é o produto, por

excelência, da atuação em cooperativa.

Já vimos que o fato jurídico cooperativo se subdivide em ato jurídico

cooperativo e negócio jurídico cooperativo. Ambos são realizados através da atuação

em cooperativa. O ato jurídico cooperativo diz respeito às relações havidas entre a

cooperativa e seus associados, realizadas direta e especificamente para a consecução do

objetivo socioeconômico (c C’ v C’ C”). Por sua vez, o negócio jurídico

cooperativo guarda correlação lógica com o ato jurídico cooperativo, e compreende

uma relação de negociação entre a cooperativa e o mercado, também direta e

especificamente dirigida à consecução dos objetivos socioeconômicos (c C’ M).

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O importante é deixar claro que na condição de fato jurídico cooperativo, e

a teor do que prescreve o parágrafo único do art. 79 da Lei n° 5.764/71, nenhuma de

suas espécies corresponde à operação de mercado, contrato de compra e venda ou

venda de produto ou mercadoria, para a cooperativa. Estes tipos jurídicos não são, em

absoluto, compatíveis com a atuação em cooperativa, tal qual visto ao longo de todo o

capítulo 3 e também do presente. Não houvesse a lei assim disposto e, da mesma sorte,

essa inferência haveria de ser realizada.

Toma-nos de assalto, a essa altura do labor cognoscitivo, a constatação de

que o fato jurídico cooperativo sofre variações semânticas e pragmáticas, visto estar na

contingência de haver numa certa cooperativa a necessidade (jurídica) de que atue

junto ao mercado para a consecução de seus objetivos socioeconômicos. Dessa forma é

que havendo ou não a necessidade jurídica de negociação com o mercado, e de acordo

com a espécie de negociação relativa a cada espécie de cooperativa, é que será possível

apontar concretamente o fato jurídico cooperativo (e cada uma de suas espécies).

Em sendo assim, a aplicação do conceito de fato jurídico cooperativo, com

fins de identificar a sua espécie realizada no caso concreto, deita raízes nas

características jurídicas do agir cooperativo de cada cooperativa. Sempre que houver

correlação lógica entre o negócio com o mercado e o ato jurídico cooperativo em razão

da consecução do objetivo socioeconômico da cooperativa, então estaremos diante da

espécie negócio jurídico cooperativo. Se não houver essa correlação, identifica-se

apenas o ato jurídico cooperativo.

Mister se faz que a criação e a aplicação das normas jurídicas cooperativas,

atinentes a todas as hipóteses, ostentem como supedâneo o conjunto dos princípios

jurídicos cooperativos e seus corolários.

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Obtempere-se, ainda, que todas as cooperativas desempenham atuação em

cooperativa. Logo, todas realizam fatos jurídicos cooperativos.

Enfim, ali onde se opera para a consecução de objetivos socioeconômicos,

e de acordo com os princípios jurídicos cooperativos, há cooperativa. E ali onde há

cooperativa, há fato jurídico cooperativo.

4.6 – Negócios com Não-associados

Não há vedação em nosso ordenamento jurídico que impeça as

cooperativas de prestarem serviços a pessoas alheias a seu âmbito interno de

associação. Ao revés, há previsão no sentido oposto, autorizando-as, encontrada, mais

especificamente, ao longo dos artigos 85, 86 e 88, ao que se soma, como contranota, a

redação do citado art. 79, todos da Lei n° 5.764/71. Esses enunciados servirão para a

construção do conceito de negócios com não-associados.

Art. 85. As cooperativas agropecuárias e de pesca poderão adquirir produtos de não-associados, agricultores, pecuaristas ou pescadores, para completar lotes destinados ao cumprimento de contratos e suprir capacidade ociosa de instalações industriais das cooperativas que as possuem.

Art. 86. As cooperativas poderão fornecer bens e serviços a não-associados, desde que tal faculdade atenda aos objetivos sociais e estejam de conformidade com a presente lei.

Parágrafo único. No caso das cooperativas de crédito e das seções de crédito das cooperativas agrícolas mistas, o disposto neste artigo só se aplicará com base em regras a serem estabelecidas pelo órgão normativo.

Art. 87. Os resultados das operações das cooperativas com não-associados mencionados nos arts. 85 e 86 serão levados à conta do “Fundo de Assistência Técnica, Educacional e Social” e serão contabilizados em separado, de molde a permitir cálculo para incidência de tributos.

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Art. 88. Poderão as cooperativas participar de sociedades não cooperativas para melhor atendimento dos próprios objetivos e de outros de caráter acessório ou complementar. (cf. redação dada pela MP n° 2.168-40/01, art. 13.).

Parágrafo único. As inversões decorrentes dessa participação serão contabilizadas em títulos específicos e seus eventuais resultados positivos levados ao “Fundo de Assistência Técnica, Educacional e Social”.

O art. 87 dispõe que o destino dos resultados positivos176, nas hipóteses dos

art. 85 e 86, deve ser o FATES. O parágrafo único do art. 88 dispõe, basicamente,

sobre o mesmo destino para a hipótese prevista ali. A medida visa salvaguardar o

primado da solidariedade cooperativa, em que o pessoal está acima do econômico, de

modo que não é dado ganhar à custa do trabalho de outrem.

Assim, as cooperativas podem prestar seus serviços – da mesma maneira

que os prestam a seus cooperados – para pessoas (terceiros) não-associadas, desde que

em consonância com seu objetivo socioeconômico. O fato de prestar exatamente os

mesmos serviços (de acordo com o fim institucional e o objeto social) oferecidos aos

associados já implica a inferência de que só pode usufruir dos serviços da cooperativa,

além do associado, o terceiro não-associado, ou seja, aquele que detém as condições

para ser associado, mas que, por qualquer motivo, não o é177.

Portanto, não colhe a assertiva de que o negocio com não-associados é tudo

o que está fora do conceito posto pelo art. 79 da Lei Cooperativa, como poderíamos ser

levados a pensar numa análise precipitada, em que o sentido do termo é composto por

exclusão.

176 Aqui não fazemos referência às sobras, apesar de tratarmos de resultado positivo. Nos casos em que o resultado positivo é obtido em razão de negócios com não-associados, não é dado falar em sobras. Estas são os resultados positivos da realização dos atos e negócios jurídicos cooperativos. Tal distinção não passou despercebida pela análise de RENATO LOPES BECHO, in Elementos... op. cit., p. 181 ss. 177 Nesse sentido: RENATO LOPES BECHO, ibidem, p. 169 ss; REGINALDO FERREIRA LIMA, Direito Cooperativo... op. cit., p. 55 ss.

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Sublinhe-se que usufruir dos serviços disponibilizados pela cooperativa,

tais quais são prestados aos seus próprios associados, não importa dizer que as

características destes são assumidas pelos não-associados. Não, em absoluto. Se bem

que na operação concreta da cooperativa seria praticamente impossível visualizar a

distinção entre esses fatos, pois a prestação de serviços é a mesma.

Se a cooperativa de produção recebe a produção do associado, também o

faz em relação ao não-associado; se a cooperativa de consumo repassa o produto que

adquiriu no mercado ao associado, o mesmo se dá com o não-associado (que o

compra). É assim em qualquer cooperativa, com as distinções que seu objeto social

impõe. Entretanto, a condição de não-associado jamais será equiparada à de associado,

já que este, além de fruir os serviços da cooperativa, ainda se reveste da condição de

seu sócio-proprietário, com todos os benefícios e ônus decorrentes dessa posição, e o

mesmo não se dá com o não-associado, sob qualquer hipótese.

Calha a lição conclusiva de RENATO BECHO178 sobre o “ato não-

cooperativo” (para nós, negócio cooperativo com não-associados), empreendida em

função de rica análise sistemática da normativa cooperativista:

Academicamente, então, podemos afirmar que será ato não-cooperativo aquele realizado entre a cooperativa e terceiro não-associado, entre este e aquela e entre cooperativas e empresas não-cooperativas para a consecução dos objetivos sociais (cooperativos).

Diante disso, a afirmação de que os atos não-cooperativos são encontrados por exclusão (sendo todos os que não sejam atos cooperativos) cai por terra. Fica evidente, para nós, que para ser ato não-cooperativo é necessário: 1) que o terceiro não-associado possa sê-lo; e 2) que os atos praticados entre a cooperativa e o não-associado sejam da mesma natureza dos atos cooperativos, ou seja, para a consecução dos objetivos sociais dessa entidade.

178 Idem, ibidem, p. 180. Para estudo mais detalhado sobre o tema indicamos esta obra do autor, especificamente o texto das páginas 169 a 184.

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O que pode ser dito, portanto, é que negócios com não-associados não são

todos os negócios que se dão fora do âmbito interno da cooperativa, com qualquer

terceiro estranho a seus quadros, mas somente os negócios que são realizados com

terceiros que poderiam ser, mas não são, associados – para a consecução dos objetivos

socioeconômicos da sociedade.

Impende justificarmos, por fim, o emprego da expressão negócios com

não-associados, em prejuízo da expressão ato não-cooperativo. O fato é que não

estamos convencidos de que a expressão atos não-cooperativos é a melhor para

denominar as hipóteses objeto de nossos cuidados neste tópico. Afinal, a negativa que

precede o qualificativo “cooperativo” na expressão ato não-cooperativo como que

infirma esse seu caráter completamente – pelo que seria mais apropriada para apontar o

que é impróprio, ou estranho, ao universo cooperativo. Mas, já vimos, somente a

cooperativa (como um dos pólos da relação) pode realizar esses negócios, e ainda para

a persecução de seu objetivo socioeconômico.

Com efeito, a expressão parece significar com tudo o que não é, em

absoluto, cooperativo. Aliás, essa terminologia nem aparece na Lei das Cooperativas. É

criação doutrinária e jurisprudencial. Deve-se creditar a ela, decerto, algo da confusão

que há em torno dessas hipóteses fáticas, pois expressão de abundante ambigüidade.

Destarte, para significar especificamente as relações havidas entre

cooperativa e quaisquer não-associados (entendidos como os que poderiam sê-los),

realizadas da mesma forma que as relações com associados, preferimos fazer uso da

expressão negócios com não-associados. A referência “não-associados”, haja vista

remeter diretamente aos enunciados que prescrevem essas hipóteses, diz mais do que se

trata, quando analisado o contexto dos enunciados legais concernentes às cooperativas.

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4.7 - A Atuação da Cooperativa

A atuação da cooperativa se volta, especificamente, às ações necessárias ao

funcionamento e organização empresarial da cooperativa, sem vinculação direta e

específica com a consecução dos objetivos socioeconômicos da sociedade. O não estar

direta e especificamente dirigido à efetivação desses objetivos – que não significa a

inexistência desse direcionamento – é o diferencial dessa forma do agir cooperativo em

relação ao que denominamos alhures de atuação em cooperativa.

Não sobeja reafirmar que a atuação cooperativa é sempre diferenciada em

comparação à forma como agem as demais espécies societárias. Afinal, acreditamos

que, seja qual for a sua área de atuação, a cooperativa jamais se despirá de suas

características e princípios específicos – e que findam por imprimir-lhe singularidade

(sob pena de não ser juridicamente uma cooperativa). Isso importa dizer, dentre outras

coisas, que a cooperativa não visará (ou atingirá) o lucro, e que atuará no sentido de seu

objeto social, sem se desviar para outros fins, alheios aos interesses dos cooperados, i.é,

não pode atuar à margem ou contra os interesses destes.

Ocorre que, apesar desse seu atuar específico, as cooperativas também

realizam atos de organização e estruturação societária necessários ao funcionamento da

empresa (que é), como: contratação de empregados, contratos de aluguel de imóveis,

contratos de fornecimento de bens e serviços essenciais, contratação de prestadores de

serviços diversos (advogados, contadores, eletricistas, propagandistas etc.), aquisição

de insumos, dentre tantos outros possíveis. Tal necessidade, por certo, não é uma

exclusividade da operação empresarial cooperativa, mas algo comum a todas as

empresas no dia-a-dia – sem que isso signifique coincidência de atuações.

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WALMOR FRANKE179, ao se referir a estes aspectos, usava as seguintes

expressões:

As próprias cooperativas que adotam, no seu funcionamento, o princípio do exclusivismo, operando unicamente com associados, necessitam praticar, além dos negócios internos (negócios-fim) e negócios de mercado (negócios-meio), outros negócios jurídicos, que não se confundem com aqueles, a saber:

a) negócio auxiliares, que são “todos os negócios que, em dado caso, precisam ser realizados por motivos especiais e imperiosos no interesse da persecução do objeto da sociedade, os quais, por conseguinte, se tornam necessários à execução dos negócios-fim”.

Incluem-se nos negócios auxiliares a locação de imóveis para o uso da cooperativa, a aquisição de material para escritório, a compra de combustível para máquinas agrícolas de uso comum, o fornecimento de caixas e cestos por uma cooperativa de fruticultores para uso dos sócios no acondicionamento de sua produção, etc.

b) Negócios acessórios, “os quais não se encontram em relação imediata com o fim da sociedade. Verificam-se, eventualmente, na esfera operacional da empresa e, conquanto se trate de negócios acessórios, não se equiparam a uma fonte autônoma de receitas (por exemplo, a venda de uma máquina imprestável ou tornada obsoleta, etc.)”.

A importância desses outros negócios (compra de insumos, aluguel de

imóvel para funcionamento da cooperativa, aquisição de material de escritório,

combustível de máquinas, compra de embalagens etc.) é inegável para o funcionamento

da cooperativa, e para que seja possível, em derradeira instância, a consecução dos seus

objetivos socioeconômicos.

Porém, esses expedientes não estão direta e especificamente dirigidos à

consecução dos objetivos socioeconômicos da cooperativa, mas direta e

especificamente vinculados à sua operacionalização empresarial, ou seja, ao

funcionamento e estruturação da cooperativa enquanto empresa. Logo, não se confunde

com a atuação em cooperativa. Mas a atuação da cooperativa comporta

desdobramentos.

179 Direito das Sociedades Cooperativas... op. cit., p. 27. No mesmo sentido: RENATO BECHO, Elementos... op. cit., p. 161. A expressão negócios acessórios é preterida por negócios secundários ou supérfluos.

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4.7.1 – Negócios Empresariais

Os “negócios auxiliares” referidos há pouco, que preferimos denominar

simplesmente de negócios empresariais (cooperativos), são, por assim dizer, a base

para o agir cooperativo. Esses negócios são realizados em função da particular área de

atuação empresarial a que se dedica uma determinada cooperativa.

Assim, em exemplos simples, observamos: que na cooperativa de produção

há compra de embalagens e de insumos industriais, ou aluguel de maquinário; na

cooperativa de consumo vemos aquisição de prateleiras e de suas demais instalações e,

em uma cooperativa de crédito, compra de computadores modernos e estrutura física

como a de um banco são necessárias, e assim por diante, em cada ramo de atuação

empresarial das diversas espécies cooperativas. Mas não enxergamos nesses negócios a

correlação específica e direta com o incremento socioeconômico cooperativo. Por isso

os negócios empresariais, para nós, não são abrangidos pelo conceito de fato jurídico

cooperativo.

Sublinhamos a importância contextual do negócio empresarial para dizer

que, com efeito, se o considerarmos isoladamente, restará desnudada a ausência de uma

correlação direta e específica com a efetivação do fim socioeconômico, o que importa –

de acordo com as premissas eleitas neste labor científico – uma conclusão diferente

daquela realizada, ao que nos parece, por RENATO BECHO180 quanto aos “negócios

auxiliares” (para quem estes seriam fatos jurídicos cooperativos).

180 Idem, ibidem.

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Com efeito, se a cooperativa de consumo adquire no mercado por melhor

preço, há correlação direta e específica com a consecução de seu objetivo

socioeconômico. Se a cooperativa de produção vende em melhores condições e preços,

também. Mas a mera aquisição de embalagens para os produtos comercializados ou de

insumos de industrialização em geral, a despeito de, em última instância, servir ao

objetivo socioeconômico (e aqui não se nega isso), não apresenta uma correlação direta

e específica com o mesmo, a ponto de efetivar, ela própria considerada (por assim

dizer), um incremento socioeconômico para os cooperados, como sói ocorrer com o

negócio jurídico cooperativo – espécie do fato jurídico cooperativo.

Negócios empresariais, em suma, são os negócios realizados pela

cooperativa em função (e por exigência) do ramo de atuação empresarial desenvolvido,

servindo para a organização e para a estruturação relacionadas aos objetivos

socioeconômicos cooperativos.

4.7.2 – Negócios Complementares

Já o que denominamos por negócios complementares são os demais

negócios que também compõem a estruturação e organização da atividade empresarial

cooperativa, mas sem relação próxima com os objetivos socioeconômicos. São, enfim,

negócios hauridos em mera complementaridade àquela atividade, como: contratação de

empregados, de prestadores de serviços (como advogados, contadores, engenheiros,

agências de propaganda, de serviços gerais etc.), aluguel de imóveis em geral, compra

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de material de escritório, venda de máquinas inúteis/obsoletas, dentre inúmeros

outros181.

Na moderna concepção de atividade empresarial é impossível imaginar a

sobrevivência de qualquer empresa sem a presença desses expedientes. Para as

cooperativas não é diferente. Aliás, as dificuldades peculiares desse modelo societário

até impõem que aqui, especialmente, erija-se uma engrenagem empresarial sólida e

eficiente.

Portanto, atuação sem correlação direta e específica com a efetivação do

objetivo socioeconômico de uma espécie cooperativa consubstancia-se em atuação da

cooperativa, podendo ser negócio empresarial ou negócio complementar, mas não

atuação em cooperativa – esta, o berço próprio do fato jurídico cooperativo.

181 Estes são, em linhas gerais, os chamados “negócios acessórios” por WALMOR FRANKE, como visto na passagem que acabamos de citar poucas páginas atrás. RENATO LOPES BECHO (in Elementos... op. cit., p. 158 ss) critica essa denominação porque acredita que ela serve melhor ao “ato-meio”, que para o autor guardaria relação desse jaez (acessoriedade) com o “negócio-fim”. Assim é que denomina o “negócio auxiliar” como “secundário ou supérfluo”. A expressão negócio acessório não nos parece, em breve análise, a mais adequada. De fato, não se nos apresenta como rigorosa a idéia (que se dá) de que o negócio jurídico cooperativo (negócio-meio) guarda relação de acessoriedade com o ato jurídico cooperativo (negócio-fim). O termo relacional de “acessório” implica subalternação lógica entre os elementos, onde o principal se sobrepõe ao (seu) acessório, que apenas o segue – à míngua de autonomia. Não cremos que seja esse o caso da relação entre o ato jurídico cooperativo e o negócio jurídico cooperativo, seja qual for o nome que se queira emprestar a ambos. Com efeito, nos casos em que a relação com o mercado (realizada de acordo com os critérios jurídicos desenvolvidos ao longo deste trabalho) é imperiosa para a maioria das espécies cooperativas, como passo fundamental para a consecução plena de seu objetivo socioeconômico, não se sustenta como a melhor interpretação do fenômeno aquela que põe esta relação (com o mercado) como mero acessório de uma outra, que em relação a esta efetivamente não é principal, já que restaria alijada ou inviabilizada na sua ausência. É dizer: em cooperativa só há ato jurídico cooperativo porque há negócio jurídico cooperativo e vice-versa. Ambos são, pois, protagonistas em um mesmo plano da atuação em cooperativa.

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CAPÍTULO V

EXEGESE DO “ADEQUADO TRATAMENTO TRIBUTÁRIO AO

ATO COOPERATIVO” OU SOBRE O TRATAMENTO TRIBUTÁRIO

CONSTITUCIONAL DA ATUAÇÃO COOPERATIVA

5.1 – Primeira Aproximação

Debruçar-nos-emos a partir daqui no labor cognoscente de empreender a

atribuição de sentido e, por conseguinte, a construção mesma da norma jurídica relativa

ao enunciado textual esculpido no art. 146, II, c, que discorre sobre o “adequado

tratamento tributário ao ato cooperativo praticado pelas sociedades cooperativas”.

A imprecisão terminológica do emprego da expressão “ato cooperativo”, já

denunciada (vide tópico 4.2.2), deve ser dissipada logo neste primeiro momento. Nesse

dispositivo da Constituição, decerto, é utilizada no sentido de fato jurídico

(cooperativo).

Não é empreitada das mais simples interpretar esse enunciado. Tanto é

assim que a doutrina, desde a promulgação da Constituição, esgrima os mais diversos

argumentos para tentar explicar e decifrar o enunciado constitucional, por vezes

chegando à mesma conclusão, mas por outras ensejando as interpretações mais

díspares.

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Por certo, o problema é o fato de que muitos, ao que parece, esforçam-se

para interpretar citado enunciado sem se preocupar em, antes, compreender todo o

complexo arcabouço jurídico, constitucional e infraconstitucional, em que se

consubstancia o contexto normativo cooperativo. A nosso ver, esse é o maior obstáculo

enfrentado pelas cooperativas no Brasil. É imperioso, portanto, que a doutrina se

debruce sobre o tema com ânimo ainda maior e que os tribunais sejam sensíveis a ele e

ao seu estudo.

Nosso escopo neste capítulo é claro: fazer uso do arsenal teórico manejado

ao longo desta dissertação para lograr, enfim, surpreender o regime tributário de matriz

constitucional afeto às cooperativas.

Quando se fala em tratamento tributário adequado ao ato cooperativo, a

primeira idéia de que se socorre a mente do intérprete é a de tratamento conforme,

apropriado, enfim, correspondente ao impropriamente denominado ato cooperativo.

Ocorre que a questão não é tão simples assim.

Para se saber com precisão o modo como deve ser efetivado o tratamento

do fato jurídico cooperativo em matéria de tributação, e para que se diga do mesmo que

é adequado, deve-se ter bem posta a delimitação semântica desse conceito (de fato

jurídico cooperativo). Demais disso, há de se (re)conhecer o regime jurídico das

sociedades cooperativas (tracejado desde a Constituição até a lei especial) e suas

peculiaridades todas, a torná-las espécie única de sociedade. Só a par disso estaremos

habilitados a iniciar a exegese do citado dispositivo constitucional.

Não se podem olvidar, sobretudo, as normas jurídicas havidas no texto

constitucional (máxime as que possuem a auspiciosa qualidade de princípio

constitucional), a servirem de parâmetro interpretativo para a construção das demais

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normas, tanto as constitucionais como as infraconstitucionais (cf. demonstramos no

capítulo II). Com isso queremos dizer que o contexto normativo, amplamente

considerado, oferecerá subsídios, em maior ou menor grau, para o desiderato

perseguido aqui. Por outros torneios: é fundamental que se tenha em conta o contexto

relativo ao texto interpretado, para bem compreendê-lo.

Vejamos o enunciado da Carta da República, que se põe nestes termos:

146 – Cabe à lei complementar:

III – estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre:

c) adequado tratamento tributário ao ato cooperativo praticado pelas sociedades cooperativas;

Pois bem. A despeito da inépcia redacional do legislador constitucional182,

de pronto salta aos olhos o reconhecimento de que o fato jurídico cooperativo, fruto da

atuação singularíssima das cooperativas (atuação em cooperativa), é algo único

juridicamente, ao ponto de merecer menção expressa na Constituição, acerca de seu

tratamento tributário. Logo, tratamento tributário adequado seria, a priori, o que

reconhece o fato de que a atuação cooperativa é singular e que assim também o é o fato

jurídico advindo daí.

Mas só isso é possível construir com base nesse enunciado. E essa

significação não é suficiente para a construção da norma jurídica completa que

buscamos. Logo, mister nos valermos de outros enunciados constitucionais pertinentes,

de modo a conjugarmos logicamente suas significações para, ao final e sob o pálio dos

182 Tal incúria legislativa é acoimada, por exemplo, pela pena eloqüente de ROQUE CARRAZZA, que destaca a infelicidade da redundância flagrante do dispositivo, e da expressão adequado - como se fosse possível emprestar aos contribuintes tratamento tributário inadequado. In Curso de Direito Constitucional Tributário, op. cit., p. 790.

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princípios jurídicos cooperativos, construir o juízo implicacional que perfaz a norma

jurídica constitucional prescritiva do tratamento tributário das sociedades cooperativas.

Para uma completa compreensão científica, por certo, é mister apreender

sistematicamente o que fora estudado até aqui, contextualizando o enunciado do art.

146, III, c, com os demais enunciados do texto constitucional e da Lei das

Cooperativas.

Ainda com o citado dispositivo constitucional, deve ser dito (sem maiores

aprofundamentos) que a lei complementar disposta ali poderá, tão-somente, aclarar o

que já está, de certo modo, contextualmente prescrito na Constituição acerca das

cooperativas e de sua tributação. Devem ser tratados, pois, os termos gerais da

tributação das cooperativas sem que a lei complementar se imiscua nos meandros de

cada tributo constitucionalmente reservado aos entes políticos (União, Estados, Distrito

Federal e Municípios). Isto porque as competências são delimitadas pela injunção dos

princípios constitucionais gerais e tributários, não cabendo à lei complementar se

arvorar o poder de inovar, mas tão-somente o de iluminar o texto constitucional183.

Com efeito, dispor sobre o “adequado tratamento tributário ao ato

cooperativo” não importa dizer que a lei complementar disporá, ao alvedrio do

legislador, sobre os termos desta tributação, inovando a ordem jurídica ao arrepio de

normas e princípios constitucionais.

183 Cf. profícuo estudo acerca da função da lei complementar e seus limites (em que se defende a tese de que tal lei está adstrita a tratar da generalidade das matérias postas sob a sua batuta, não podendo descer a detalhes que cabem a cada ente tributante, segundo os princípios constitucionais da federação e da autonomia das pessoas políticas), empreendido por ROQUE ANTONIO CARRAZZA, ibidem, p. 789 ss. Sublinhe-se a opinião, em parte, divergente, do mestre EDUARDO DOMINGOS BOTTALLO, para quem cabe à lei complementar fixar categoricamente, v.g., os prazos de prescrição e decadência (art. 146, III, b – “obrigação, lançamento, crédito, prescrição e decadência tributários”), sem prejuízo dos princípios constitucionais da federação e da autonomia dos entes políticos, em sua obra Fundamentos do IPI, p. 148 ss. Neste mesmo sentido pondera EURICO MARCOS DINIZ DE SANTI, in Prescrição e Decadência no Direito Tributário, p. 89 ss.

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Sobreleva-se, neste ponto, a importância de identificarmos precisamente o

problema – posto para a dogmática jurídica – que está a vindicar solução no citado

enunciado. Assim é que, para nós, a problemática não se põe em termos de se saber o

que é um tratamento tributário adequado ao fato jurídico cooperativo, mas onde ele se

encontra no ordenamento jurídico brasileiro. É dizer: o problema está em se saber

quais são as normas e princípios constitucionais e infraconstitucionais que prescrevem

o modus como a tributação deve ser imposta às cooperativas quanto às suas atuações

específicas, ou seja, é preciso identificar o paradigma jurídico aplicável ao caso.

Tratamento tributário adequado ao fato jurídico cooperativo ou à atuação

cooperativa, portanto, é algo que se constrói com estribo nas normas do ordenamento

jurídico vigente, e sempre com ênfase nos princípios constitucionais e nos demais

aplicáveis à matéria do caso concreto, ou seja, nos princípios cooperativos.

Retornaremos ao tópico específico da exegese do enunciado do art. 146,

III, c, da Constituição, em momento ulterior e amiúde. Cumpre-nos, agora, lançar mão

de mais algumas premissas a fim de demarcar o paradigma mencionado. Não nos

demoremos.

5.2 – Paradigma Jurídico-interpretativo Constitucional

Vimos no primeiro capítulo que toda interpretação é construtiva, malgrado

parte da dogmática jurídica no Brasil ainda não tenha se dado conta disso. Assim, na

medida em que o intérprete atribui significações ao texto prescritivo do direito positivo,

é construído um juízo hipotético-implicacional prescritivo que em sua completude

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183

estrutural consubstancia a norma jurídica, num percurso gerativo de sentido que parte

do texto para chegar à norma.

Mais adiante, no capítulo II, atentamos para a posição sobranceira ocupada

pela Constituição da República em nosso ordenamento jurídico e que, em sua

composição normativa, há normas especiais, pela sua função, que recebem o

qualificativo de (normas jurídicas) principiológicas. Os princípios constitucionais são o

fundamento e o limite de todo o ordenamento normativo, informando a aplicação, a

mutação e a evolução da Constituição e do direito. Pode-se dizer que toda a matéria

jurídica posta em nosso ordenamento jurídico é iluminada por princípios

constitucionais. Sua observância é imprescindível para a interpretação (construção) das

normas aplicáveis ao caso concreto.

No caso das cooperativas há normas e princípios constitucionais que lhes

dizem respeito. No particular sítio tributário, como não poderia ser diferente, todos os

princípios gerais de tributação são aplicáveis, e a depender da atividade desenvolvida

pela cooperativa, os princípios específicos de cada tributo eventualmente incidente.

Neste trabalho monográfico não nos deteremos neles.

Para a completa noção do contexto constitucional que engendra a definição

do paradigma interpretativo atinente ao cooperativismo e sua tributação, é interessante

ter em vista os enunciados que dizem mais de perto com a temática, além do art. 146,

III, c (citado há pouco):

Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

XVIII - a criação de associações e, na forma da lei, a de cooperativas independem de autorização, sendo vedada a interferência estatal em seu funcionamento;

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Art. 21. Compete à União:

XXV - estabelecer as áreas e as condições para o exercício da atividade de garimpagem, em forma associativa..

Art. 187. A política agrícola será planejada e executada na forma da lei, com a participação efetiva do setor de produção, envolvendo produtores e trabalhadores rurais, bem como dos setores de comercialização, de armazenamento e de transportes, levando em conta, especialmente:

VI – o cooperativismo.

Art. 192. O sistema financeiro nacional, estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos interesses da coletividade, será regulado em lei complementar, que disporá, inclusive, sobre:

VIII - o funcionamento das cooperativas de crédito e os requisitos para que possam ter condições de operacionalidade e estruturação próprias das instituições financeiras.

Algumas considerações já foram feitas sobre esses dispositivos (vide

subitem 3.2.2). O que interessa é apreender o contexto jurídico geral do cooperativismo

na Constituição. Estamos, pois, procurando edificar um paradigma jurídico e

interpretativo. Da interpretação dos enunciados acima podemos construir algumas

normas jurídicas específicas para alguns casos, outras gerais. Mas não é só isso. Num

contexto ainda mais amplo, pensamos ser possível construir mesmo princípios

constitucionais do cooperativismo.

Há normas que, dada a sua generalidade e teor axiológico, merecem

destaque dentro da conjuntura constitucional quando o assunto é cooperativismo.

Analisaremos dois casos que, do nosso ponto de vista, sobressaem.

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5.2.1 – A Norma Jurídica Principiológica Prescritiva de Incentivo e Estímulo ao

Cooperativismo

Com base no contexto normativo constitucional construído até aqui é

possível perceber a abrangência e a importância sistemática do texto esculpido no art.

174 da Lei Máxima, que é assim:

Art. 174. Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado.

§ 1°. A lei estabelecerá as diretrizes e bases do planejamento do desenvolvimento nacional equilibrado, o qual incorporará e compatibilizará os planos nacionais e regionais de desenvolvimento.

§ 2º. A lei apoiará e estimulará o cooperativismo e outras formas de associativismo.

§ 3º. O Estado favorecerá a organização da atividade garimpeira em cooperativas, levando em conta a proteção do meio ambiente e a promoção econômico-social dos garimpeiros. (grifamos)

§ 4º. As cooperativas a que se refere o parágrafo anterior terão prioridade na autorização ou concessão para pesquisa e lavra dos recursos e jazidas de minerais garimpáveis, nas áreas onde estejam atuando, e naquelas fixadas de acordo com o artigo 21, XXV, na forma da lei.

Pois bem. Nesse relevante tópico constitucional, diversas menções foram

feitas ao cooperativismo, pondo em destaque esta forma de associativismo.

O mais interessante é depreender o reconhecimento constitucional de que

as cooperativas exercem uma atividade de cunho social e econômico e que a atuação

cooperativa é como um meio para a promoção de um fim (vide especialmente o § 3°).

Sabemos que essa atuação, a rigor, é socioeconômica. O social da expressão guarda

relação com o caráter pessoal das cooperativas, sobreposto ao econômico, em tudo e

por tudo (vide capítulo III).

É mister sublinhar o relevo até mesmo simbólico de texto constitucional

que prescreve incentivo a uma espécie de sociedade e preceitua como concreta diretriz

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do Estado o objetivo de favorecê-la. O mandamento superior não é sem razão, pois há

pertinência da atuação cooperativa com os valores constitucionais e a atuação do

próprio Estado – máxime em razão do primado (constitucional e cooperativo) da

solidariedade (cf. o tópico seguinte).

Essa amálgama axiológico-jurídica implica o apoio, estímulo,

favorecimento e priorização, destacados no texto, em favor das cooperativas. A

Constituição dá o exemplo de como deve ser juridicamente conduzido o

cooperativismo, quando prescreve tratamento diferenciado (mais favorável) para as

cooperativas de garimpo. Não se admite que esse contexto constitucional seja

simplesmente ignorado.

Em assim sendo, temos que pode ser construída uma norma jurídica a partir

desses enunciados, dentro do contexto constitucional-cooperativo, da seguinte forma: o

cooperativismo deve ser obrigatoriamente apoiado e estimulado/beneficiado. Por

interdefinição dos modais deônticos184, seria o mesmo que prescrever: é proibido não

apoiar e estimular/beneficiar o cooperativismo.

Fizemos questão de pôr a norma jurídica supra em termos gerais (de

obrigação ou proibição), e não só dirigidos ao legislador. Com efeito, o contexto de

todos os enunciados constitucionais existentes, a partir do qual se constroem as mais

diversas normas jurídicas afetas ao cooperativismo, somadas ao conjunto de normas e

princípios cooperativos infraconstitucionais, nos autoriza a fazê-lo185. É dizer: o

184 Em lógica jurídica a interdefinição dos modais deônticos (P, O e V) aponta para a seguinte equação, quando se parte da obrigatoriedade da conduta (p): Op = - P – p = V –p. Desformalizando: sendo obrigatória (O) a realização da conduta (p), não é permitido (- P) não realizar a conduta (- p) e é proibido (V) não realizá-la (-p). 185 É cediço que a interpretação só se dá num contexto histórico, mas também textual. Logo, as significações dos diversos enunciados relativos ao caso devem ser manejadas de maneira sistemática, a fim de compor ao fim do processo hermenêutico a norma jurídica. O que não se admite é a interpretação literal e órfã de contextualização.

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contexto normativo-constitucional cooperativo, decerto, inflige a aplicação da norma

jurídica (principiológica) em testilha a todos os aplicadores do direito.

Com isso, deitamos em evidência a generalidade da norma jurídica

constitucional em questão, dirigida a todos os aplicadores do direito e a todas as

espécies cooperativas (e demais formas de associativismo). É dizer: a norma jurídica

principiológica de estímulo e apoio ao cooperativismo deve ser obedecida desde o

Legislativo, passando pelo Executivo, até o Judiciário – em todas as etapas de

positivação do direito.

É o caso, enfim, de assinalarmos o princípio constitucional de apoio e

estímulo ao cooperativismo. O apoio e o tratamento legal estimulante e mais favorável,

portanto, são garantias fundamentais das cooperativas hauridas no altiplano

constitucional, e por isso devem ser inexoravelmente levadas a efeito.

5.2.2 - Princípio Constitucional da Solidariedade: o ponto de intersecção com o

cooperativismo

Algo sempre nos despertou curiosidade (científica) no temário

constitucional cooperativista. Por que a normativa constitucional emprestou tamanha

deferência à cooperação? Há mais referências constitucionais textuais sobre

cooperação (e sobre cooperativas) do que sobre, por exemplo, sociedades filantrópicas.

Note-se que falamos em cooperação, não propriamente em cooperativas.

Essa é espécie, aquela é gênero (no sentido empregado nessa explicação). O

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cooperativismo é, em breve análise, uma prática, um modelo de atuação colaborativa

solidária – que aparece na Constituição com status de política pública.

A diferença está em que a cooperativa é sociedade onde há, além do

componente solidário/mutualístico, um especial fim econômico (socioeconômico, a

rigor). Logo, cooperativa é cooperação com fim socioeconômico (como previsto na

própria Constituição, no art. 174, § 3°), mas sempre uma forma de cooperação –

inclusive, para fins constitucionais.

Para bem interpretar e construir as normas jurídicas constitucionais

relativas às cooperativas, devemos nos valer ainda de outros enunciados, a fim de

assumir uma perspectiva a mais ampla possível sobre o cooperativismo na

Constituição. Vejamos alguns enunciados especialmente interessantes:

Art. 4° - A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios:

IX – cooperação entre os povos para o progresso da humanidade.

Art. 23 – É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:

Parágrafo único: Lei complementar fixará normas para a cooperação entre a União e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional.

É emblemática a prescrição constitucional sobre uma política nacional de

cooperação tanto no cenário interno quanto no internacional. Chega-se a falar, em

respeito a este último, em princípio jurídico da República (que parece ser o caso, dada

a sua generalidade e peso axiológico). A cooperação, como colaboração mútua,

assume, na Carta Constitucional, a condição de política pública da nação brasileira.

Não é pouco.

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Mas essa interpretação não pode ser completa sem que construamos a

significação de um outro enunciado da Constituição, para articulá-la às demais

significações no afã de arquitetar, finalmente, a norma jurídica constitucional sobre o

cooperativismo. Ei-lo:

Art. 3° - Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

I – construir uma sociedade livre, justa e solidária.

À evidência, o valor solidariedade é positivado no ordenamento jurídico

nacional para se tornar um dos objetivos basilares da nação. A cooperação é resultado

direto disso, como viemos demonstrando até aqui.

Pensamos que, no contexto da Constituição, é o caso de se falar mesmo em

uma norma jurídica principiológica construída a partir e para além daquele enunciado,

culminando, sim, em um princípio constitucional de solidariedade.

Para as cooperativas o valor (jurídico) solidariedade186 funciona como

alicerce maior de sua estrutura societária de fins socioeconômicos, com conseqüências

sensíveis em toda a sua atuação própria. Assim é que, para nós, o princípio jurídico

constitucional da solidariedade exsurge como o ponto de intersecção sotoposto entre o

arquétipo societário cooperativo e a Constituição da República.

Norma jurídica principiológica constitucional desse jaez inspira uma

significação que subjaz à própria prescrição normativa. Com efeito, é válida a

inferência de que há uma identificação direta entre os princípios jurídicos hauridos na

Constituição (máxime os da solidariedade e da cooperação) e que servem de

186 A doutrina, nacional e estrangeira, é uniforme no reconhecimento desse valor das cooperativas. Vide: WALDIRIO BULGARELLI, As Sociedades Cooperativas... op. cit., p. 17; WALMOR FRANKE, Direito das ... op. cit., p. 6; RUI NAMORADO, Introdução... op. cit., p. 257; CARLOS CORBELLA, Los actos cooperativos y sus fuentes de derecho. In Temas de Derecho Cooperativo... op. cit., p. 35; ELSA CUESTA, Derecho... op. cit., p. 78.

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fundamento mesmo ao modelo societário (cooperativas) objeto da prescrição normativa

baseada principalmente no citado art. 174 e seus parágrafos.

É de bom alvitre abrir um breve parêntese somente para enfatizar, a este

passo, a relação que há entre a estrutura cooperativa e as funções do Estado, na medida

em que as cooperativas estão obrigadas legalmente a compor Fundo de Assistência

Técnica, Educacional e Social – FATES (art. 28, II, § 2°, da Lei n° 5.764/71) cujo

objeto pode, inclusive, ser efetivado mediante convênios com entidades públicas e

privadas.

O fato de que as cooperativas realizam funções (educacionais e sociais)

próprias do Estado, torna ainda mais flagrante a identidade entre os traços marcantes do

cooperativismo e alguns dos mais acentuados propósitos sociopolíticos dirigidos à

promoção do desenvolvimento nacional positivados pelo ordenamento constitucional

pátrio.

Eis justificativa, de fundamento estritamente jurídico, para a forma como o

enredo normativo constitucional confere às cooperativas um tratamento protetor e

estimulante. Mais que isso, a preleção serviu para que, vez mais, confirmássemos a tese

de que a interpretação deve tomar como ponto de partida, e de chegada, os princípios

jurídicos, máxime os constitucionais.

5.3 – Ainda o Paradigma Jurídico-interpretativo

Toda interpretação construtiva de normas jurídicas pertinentes às

cooperativas deve se conformar ao paradigma jurídico-interpretativo constitucional da

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matéria, encabeçado pelos princípios constitucionais da solidariedade e de apoio e

estímulo ao cooperativismo, e seguido pelos demais princípios e normas

constitucionais aplicáveis à matéria.

Afora esse paradigma interpretativo de foro constitucional, sobreleva-se o

relevo do contexto de normas e princípios jurídicos cooperativos de plano

infraconstitucional. Pois do enlace imarcescível de ambos (paradigma jurídico-

interpretativo constitucional e infraconstitucional) é que parte a interpretação do direito

cooperativo. É dizer: o somatório das normas e princípios jurídicos (constitucionais ou

infraconstitucionais) relativos às cooperativas conformam o paradigma jurídico-

interpretativo do cooperativismo em sua plenitude constitutiva.

Decerto, o conjunto das normas cooperativas, constitucionais e

infraconstitucionais, vai se encadeando numa espiral que desemboca, ao fim e ao cabo

de seu complexo processo dialético, nos princípios jurídicos constitucionais e nos

princípios gerais do cooperativismo. Só assim parece possível uma interpretação e, por

conseguinte, uma normatização jurídica concernente às cooperativas mais condizentes

com os desígnios da Carta Constitucional.

Do ponto de vista da dinâmica normativa pode ser dito que esse paradigma

jurídico interpretativo, máxime o de índole constitucional, serve como efetivo critério

de aferição de validade das demais normas jurídicas sobre cooperativas.

Merece especial relevo nesse quesito o princípio constitucional de estímulo

e apoio às cooperativas. Eis princípio jurídico onde se prescreve diretamente a conduta:

o cooperativismo deve ser obrigatoriamente apoiado e estimulado. Ou: é proibido não

apoiar e estimular o cooperativismo.

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Desse modo, podemos afirmar que toda a norma jurídica que implique

desestímulo às cooperativas deve ser rechaçada, por inconstitucional. Com efeito, após

o advento da Carta Suprema as leis criadas em relação às cooperativas devem servir de

efetivos meios de apoio e estímulo a essas sociedades, sob pena de afrontar a

Constituição e de negativa de eficácia às suas normas principiológicas.

O mandamento constitucional não está adstrito ao legislativo, e vale para o

Executivo e o Judiciário também – como visto. Afinal, em um Estado (que se pretende)

Democrático de Direito o mandamento supremo deve ser levado a efeito, a qualquer

custo. Não se admite que, ainda que indireta ou sub-repticiamente, negue-se eficácia às

normas constitucionais.

5.4 – O Microcosmo Cooperativo e sua Autopoiese

Em razão de tudo o que fora exposto até aqui, faz-se imperiosa a ilação de

que as cooperativas conformam sítio próprio dentro do ordenamento jurídico pátrio.

Sim, pois há não só normas-regras, mas também normas jurídicas principiológicas, de

índole constitucional e infraconstitucional, especificamente voltadas para a matéria. Por

outro giro lingüístico: o complexo enredo normativo que engendra o modelo

cooperativo é composto de normas e princípios jurídicos específicos, além de normas e

princípios jurídicos de superior envergadura, porquanto erigidos no bojo da própria

Constituição Federal.

Impende, assim, afirmar que o modelo cooperativo encerra um subsistema

dentro do sistema do direito positivo brasileiro. Isto porque, desde a Constituição até a

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legislação especial, é tecida a arquitetura de uma plêiade de normas e princípios

jurídicos – gerais e específicos – voltados para um objeto exclusivo. Calha a ressalva

de que, como todo o corte que se faz na matéria do direito, este também é apenas um

corte epistemológico.

Ao fim e ao cabo dessa dinâmica normativa o que resta é uma entidade

jurídica singular, única, com características e princípios próprios: as sociedades

cooperativas. Some-se a isso a circunstância de que há também particulares categorias

jurídicas cooperativas, como as sobras, o agir cooperativo e o fato jurídico cooperativo

– já apresentados ao longo deste labor cognoscitivo.

Essa conjunção de complexidades cuida por cingir um arquétipo jurídico

único – com características, regras, categorias e princípios específicos (constitucionais

ou não) – em que toda a interpretação e aplicação normativa deverá sofrer a filtragem

necessária, consubstanciando o que chamamos de microcosmo cooperativo, no interior

do universo jurídico pátrio.

Assim é que a filtragem mencionada (instrumentalizada, sobremodo, pelo

paradigma jurídico-interpretativo cooperativo) serve para que o intérprete (desde o

cientista até o juiz) contextualize sua atuação em função das inúmeras peculiaridades e

exigências de uma trama jurídica tão rica, identificando, para compreender, suas

categorias. A complexidade do arquétipo cooperativo não pode ser considerada como

um problema a ser superado, mas antes como condição de possibilidade de sua

existência e evolução.

Usando o léxico de LUHMANN, seria o caso de se falar em uma

autopoiese cooperativa, ou mais propriamente, de seu subsistema jurídico, onde o

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microcosmo cooperativo, auto-regulado, interagiria com os demais subsistemas, sem

que isso implicasse a deturpação de suas instituições jurídicas.

Trazendo esse raciocínio para uma perspectiva mais pragmática, seria o

caso de se afirmar que, enquanto realidade jurídica singular, os demais subsistemas do

direito devem se ajustar às cooperativas, como, v.g., o tributário. Assim, a tributação

deve incidir sobre as cooperativas somente naquilo em que as hipóteses tributárias

forem compatíveis com o agir cooperativo. Portanto, não é possível maquiar ou alterar

os traços do sistema cooperativo (suas normas e princípios constitutivos) somente para

que as normas tributárias incidam, ou para que o façam do mesmo modo que nas

demais sociedades. A complexa teia normativa e principiológica cooperativa, base de

um modelo único, deve ser sempre observada e servir de parâmetro nas relações com

os demais subsistemas.

5.5 – O “Adequado Tratamento Tributário ao Ato Cooperativo”: a doutrina

Relembremos, de pronto, o enunciado legal em liça:

146 – Cabe à lei complementar:

III – estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre:

c) adequado tratamento tributário ao ato cooperativo praticado pelas sociedades cooperativas;

A dicção desse artigo da Carta Federal, como dito, suscita por parte da

doutrina (e também dos tribunais) as interpretações mais variadas. A maior dificuldade,

por vezes, é depreender o alicerce que serviu de base para a construção da norma

jurídica proposta pelos diversos autores.

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Não é difícil, porém, nos depararmos com interpretações que mais se

assemelham a exercícios de prestidigitação. É como se o intérprete houvesse se

deparado, inesperadamente, com o enunciado constitucional e, tomado pela surpresa,

tentado lhe emprestar algum sentido. Nesses casos o que se colhe é uma interpretação

simplista e, mais das vezes, alheia às peculiaridades jurídicas do modelo cooperativista,

órfã do contexto constitucional e infraconstitucional em que se encontra submersa essa

complexa matéria. Soluções assim não servem ao progresso do direito cooperativo.

Mas há esforços (e avanços) científicos louváveis por parte de

doutrinadores de escol para construir a norma jurídica geral, por assim dizer, relativa ao

adequado tratamento tributário ao ato cooperativo. Vejamos alguns, a título de

exemplos, sobre o que se tem escrito a respeito do enunciado constitucional objeto de

nossas atenções.

Antes mesmo de se falar em tributação ainda que adequada ao fato

jurídico cooperativo, devemos registrar que há quem propugne, como é o caso de

REGINALDO FERREIRA LIMA187, que a matéria cooperativa é absolutamente

intributável, não sendo possível a qualquer tipo tributário vigente colher sua atuação

própria, chegando até a se falar em uma norma limitadora do poder de tributar quanto

à lei complementar do art. 146, III, c. Essa posição, no entanto, não congregou

prosélitos na doutrina cooperativista.

Pois bem. Tratando do artigo constitucional em testilha, no bojo de sua

abrangente e rica análise do sistema constitucional tributário, ROQUE ANTONIO

CARRAZZA188, após afirmar com percuciência que não se trata de mero conselho ao

187 Direito Cooperativo Tributário, p. 64 ss. 188 Curso de Direito... op. cit., p. 799 e 800.

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Poder Público, preleciona que, “na verdade, dispensar adequado tratamento tributário

é reconhecer as peculiaridades do ato cooperativo e, ao fazê-lo, eximi-lo, o quanto

possível, de tributação”.

Logo adiante, deitando os olhos, também, sobre o art. 174, § 2°, da CF/88,

complementa o mestre:

(...) as cooperativas titularizam uma série de faculdades e prerrogativas que, em princípio, as empresas privadas não possuem. Embora não sejam imunes à tributação, devem receber um tratamento tributário diferençado daquele que alcança as pessoas jurídicas de direito privado em geral.

O já citado art. 146, III, “c”, da CF traduz o reconhecimento de que as cooperativas somente reúnem condições de sobreviver, num mercado dominado pelas empresas de grande porte (nacionais e internacionais), se receberem especial amparo. Este, em suma, é um valor que o Estado é obrigado a perseguir. (grifo no original)

Concordamos plenamente quando se fala no caráter de valor do Estado

brasileiro assumido pela cooperação – traduzida concretamente no cooperativismo –,

que por isso deve ser obrigatoriamente perseguido. Esses fatores, somados ao

diferencial do modelo cooperativo, conclui o autor, redundariam num comando

constitucional para eximir o fato jurídico cooperativo o mais que possível de

tributação.

Destaca-se na interpretação supra, outrossim, o argumento de que, mais do

que reconhecer a singularidade do modelo cooperativo e de sua atuação, atesta-se

constitucionalmente a hipossuficiência econômica das cooperativas em sua atividade

empresarial no mercado. O raciocínio procede. Com efeito, mercê das peculiaridades

de seu modelo, no qual o pessoal se sobrepõe sensivelmente ao econômico, e o lucro é

categoricamente vedado, as cooperativas não gozam das mesmas condições que as

demais empresas atuantes no mercado. Levar também esse fato em conta para lhes

incentivar é, em verdade, efetivar o primado constitucional da igualdade.

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Prega, porém, em sentido diverso GUSTAVO AMARAL189, segundo o

qual não há comando constitucional de “preferência, que demande dotar as

cooperativas de vantagens efetivas na competição com as empresas”, e favorecê-las

fiscalmente, pois seria desnivelamento competitivo contrário ao princípio da isonomia.

Em parecer publicado sobre a matéria, IVES GANDRA DA SILVA

MARTINS190, pugnando pelo reconhecimento constitucional da singularidade do ato

cooperativo em relação aos demais atos econômicos, para então definir o adequado

tratamento tributário, asseverou o seguinte:

Se, entretanto, o inciso “c” não tivesse por finalidade diferenciar o “ato cooperativo” dos demais “atos de densidade econômica”, o dispositivo seria rigorosamente inútil, absolutamente inócuo, acintosamente desnecessário, sobre passar um atestado de insensatez ao constituinte, em dispor que o “tratamento adequado ao ato cooperativo” haveria de ser rigorosamente igual aos demais atos mercantis ou de prestação de serviços.

Para concluir:

Em homenagem à inteligência e técnica legislativa do constituinte, só posso admitir que o tratamento de ato cooperativo deva ser diferenciado e não igual aos demais atos, assim como deverá ostentar, necessariamente, onerosidade tributária menor, para que o cooperativismo – objeto maior do comando supremo – seja estimulado.

De ver está que o pensamento do autor sistematiza as significações

normativas atribuídas aos enunciados dos art. 174, § 2° e art. 146, III, c (ambos da CF),

para chegar à conclusão de que o adequado tratamento tributário ao fato jurídico

cooperativo importa em menor onerosidade tributária, como forma de inventivo ao

cooperativismo. É um caminho possível.

189 ICMS e cooperativas: há um “adequado tratamento tributário ao ato cooperativo praticado pelas sociedades cooperativas”? In Ato Cooperativo e seu Adequado... op. cit., p. 389 ss. 190 Sociedades cooperativas de serviços médicos – conceito de ato cooperativo, in Revista Dialética de Direito Tributário n° 106, p. 121 e 122.

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Por sua vez, RENATO LOPES BECHO191 pondera que não há se falar em

imunidade ou mesmo isenção no contexto das normas constitucionais do

cooperativismo, quando se interpreta o termo adequado constante no enunciado do art.

146, III, c. O autor mineiro tem razão.

Afinal, os casos de imunidade são tratados de maneira clara no texto

constitucional, mercê de sua relevância para a delimitação das competências tributárias.

E isenção é matéria que diz respeito ao plano da incidência mesma dos tributos, e por

isso é disciplinada em sede de lei ordinária – veículo, via de regra, apropriado para a

condução da regra-matriz de incidência tributária. São planos jurídicos distintos. Um,

constitucional (alheio à incidência mesma) e um outro, infraconstitucional (relativo às

incidências) 192.

Ainda com esse autor193, que faz uma análise sistemática da conjuntura

cooperativa desde a Carta Maior até a legislação especial, tem-se que a norma

constitucional deve, necessariamente, implicar um tratamento tributário mais benéfico

para as cooperativas (art. 174, § 2°, CF), reconhecendo-se, para além da singularidade

do fato jurídico cooperativo, também as peculiaridades dos negócios cooperativos

(atuação da cooperativa) e dos negócios com não-associados, além das diferenças

frente ao ato comercial. Acrescenta, com propriedade, que a lei complementar a ser

191 Tributação das Cooperativas... op. cit., p. 216. 192 De acordo com as premissas eleitas neste trabalho, sobre construir normas jurídicas diríamos que, no plano constitucional das imunidades, os enunciados textuais prescritivos das competências tributárias têm suas significações coadunadas com as dos enunciados relativos às imunidades, de modo que a conformação lógica dessas significações findam por erigir a norma jurídica delimitadora das competências tributárias. A mesma linha de raciocínio vale para o caso (agora infraconstitucional) das isenções, em que um conjunto de enunciados traça a regra-matriz de incidência de um certo tributo e, em momento lógica e cronologicamente ulterior, um outro enunciado prescritivo é inserido no sistema de maneira que, ao coordenar todas as significações atribuídas com base nesses enunciados agora vigentes relativos a determinado tributo, construir-se-á uma (nova) norma jurídica diferente daquela havida antes da entrada do novo enunciado no sistema. Teremos, pois, uma norma jurídica nova, onde uma determinada categoria até então colhida pela incidência da norma ficará à sua margem. São vários enunciados e uma só norma jurídica. 193 Idem, ibidem, p. 216 ss.

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199

editada sobre o tratamento tributário do fato jurídico cooperativo deve conter previsões

atinentes a todos os tributos que tenham relação com ele, sem exceção194.

Uma (outra) via interpretativa é esgrimida por MARCO AURÉLIO

GRECO195, que interpreta assim o art. 146, III, c:

Em síntese, dar adequado tratamento tributário ao Ato Cooperativo realizado por sociedades cooperativas significa que, pelo fato de alguém se reunir em cooperativa, não deve haver tributação maior do que resultaria da ação isolada dos cooperados no mercado. O sentido do dispositivo é assegurar que a reunião em cooperativa (na medida em que se realizem atos cooperativos) não implica ampliar as incidências tributárias, fazendo com que os cooperados sejam, por si ou através da sociedade, obrigados a pagar duas vezes, por estarem reunidos em cooperativa.

E continua, para afiançar que “o dispositivo não concede nenhuma

imunidade nem benefício. Apenas impede que reunião em cooperativa gere novas

incidências”.

A posição é interessante, malgrado pareça não levar em conta o contexto

constitucional cooperativo, mormente o enunciado do art. 174, § 2°, da Magna Carta. É

inequívoco que da interpretação do enunciado do art. 146, III, c, isoladamente

considerado, não há se falar em incentivo em matéria tributária às cooperativas. Mas

isso só e tão-somente quando se interpreta esse dispositivo fora de seu contexto

constitucional.

Os autores mencionados, na sua maioria, como se depreende de suas

opiniões, calcam sua interpretação na conjunção sistemática dos enunciados

constitucionais, não se limitando ao enunciado do art. 146, II, c (que sozinho pouco

significa). Concedem especial atenção ao art. 174, § 2°, da Constituição, embora

cheguem a conclusões, por vezes, diametralmente opostas. Qual a norma jurídica

194 RENATO BECHO, ibidem, p. 199. 195 Adequado tratamento tributário do ato cooperativo. In Ato Cooperativo e seu Adequado... op. cit., p. 81.

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verdadeira ou correta? Tal coisa simplesmente não existe. O que há é sempre mais

uma interpretação possível. Com fundamento no que foi apresentado no primeiro

capítulo desta dissertação, temos pela consistência, ou não, de um argumento jurídico –

e sua aferição só é possível com a análise do todo.

De ver está que uma investigação cognoscitiva mais preocupada com a

sistematicidade da normatividade cooperativa conduz para uma solução interpretativa

mais completa. Isso expõe, ainda mais, a fragilidade das malsinadas interpretações

literais e daqueloutras descontextualizadas do complexo sistema jurídico cooperativo.

Por fim, é o caso de enfatizar que o art. 146, II, c, nos termos em que

vazado na Constituição, importa na recepção das normas tributárias havidas antes do

advento da nova ordem político-constitucional, concernentes às cooperativas, como

normas materialmente complementares196. Isso é possível pelo fenômeno jurídico da

recepção da ordem jurídica anterior pela atual, naquilo em que não são conflitantes. É

necessário, portanto, que seja feito o cotejo com as normas e princípios constitucionais

cooperativos. O tema da recepção é conhecido de todos e não carece aqui de maiores

glosas.

5.6 – A Crise de Paradigmas de Dupla Face do Modelo Teórico Cooperativo

Como visto no tópico precedente, não há univocidade possível no direito.

O que há, por certo, são caminhos melhores ou piores para se chegar à interpretação

final dos enunciados prescritivos. Decidimos que, tal qual procuramos fazer ao longo

196 Cf. RENATO LOPES BECHO, Tributação das... op. cit., p. 223 ss. No mesmo sentido, mas não especificamente sobre cooperativas: ROQUE ANTONIO CARRAZZA, Curso... op. cit., p. 818 ss.

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de todo este trabalho intelectivo, a análise sistemática do direito positivo, com

fundamento nos princípios constitucionais e demais princípios aplicáveis ao caso, é o

caminho que devemos invariavelmente seguir. Se o melhor ou o pior, o tempo dirá.

O que não se pode é fechar os olhos para a crise por que passa o

cooperativismo e sua tributação. Uma crise de paradigmas de dupla face, em que se

coloca o problema de se saber o que é o “ato cooperativo”, para então exsurgir a

dificuldade de se averiguar o que pode servir de espeque jurídico para interpretar a

expressão “adequado tratamento tributário ao ato cooperativo” e, por fim, o resultado

de tudo isso.

Uma das faces dessa crise de paradigmas é o fato de a doutrina brasileira e

estrangeira do direito cooperativo continuar na busca da essência normativa, diríamos,

da essência do (f)ato cooperativo em si (vide capítulo I), tendo por solo fértil, no caso

brasileiro, o art. 79 da Lei das Cooperativas.

Outra faceta da crise (do cooperativismo no Brasil) se materializa no

deslocamento do núcleo do problema materializado no art. 146, III, c (definição do

arquétipo jurídico da sociedade cooperativa e de qual o contexto normativo

constitucional e infraconstitucional que prescreve seu tratamento tributário, com todas

as implicações decorrentes disso), para a discussão sobre o que quer dizer a

Constituição quando fala em “adequado tratamento tributário ao ato cooperativo

praticado pelas sociedades cooperativas” e, por conseguinte, qual o tratamento que

pode vir a ser dado. O resultado disso é toda sorte de interpretações fora do contexto

cooperativo (constitucional e infraconstitucional) e soluções desencontradas.

O que queremos deixar claro é o fato de que o paradigma jurídico e

interpretativo hoje vigorante no modelo cooperativo, especialmente o brasileiro, não

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consegue oferecer respostas satisfatórias aos problemas surgidos no contexto

hipercomplexo da realidade. Com efeito, a tradição dogmática cooperativa no Brasil e

no mundo, baseada em paradigmas compartilhados em torno de um consenso aparente,

não fornece soluções convincentes acerca do quebra-cabeças cooperativo. Eis a crise.

É preciso que haja uma revolução científica no cooperativismo, com a transição entre

paradigmas (vale dizer: com a mudança das formas de ver o mundo), pois este “é o

padrão usual de desenvolvimento da ciência amadurecida”197.

Reforçamos aqui nossa convicção de que só é possível interpretar e, por

conseguinte, criar normas jurídicas cooperativas (e um sistema jurídico cooperativo

mesmo) com base no amplo quadro normativo-principiológico desse modelo societário.

E esse trabalho deve começar pelos princípios da Constituição. No cooperativismo,

talvez mais do que em qualquer outro lugar, é necessário relacionar as normas jurídicas

e princípios de plano constitucional e infraconstitucional, para que seja compreendida

essa complexa realidade jurídica. De fato, para se interpretar basta que haja um texto,

mas para que se compreenda há de haver um contexto.

5.7 – Nossa Posição

5.7.1 – Nova Aproximação

Sobre interpretar o art. 146, III, c, da Constituição temos que ter em mente

todo o enredo de normas e princípios jurídicos, constitucionais ou não, expostos até

197 Cf. THOMAS S. KUHN, is A Estrutura das Revoluções Científicas, p. 30 ss.

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aqui para delimitar o sistema cooperativo. Somente uma análise sistêmica baseada na

CF, e a partir de seus princípios magnos, é meio hábil para nos conduzir à interpretação

do enunciado apontado ou, melhor dizendo, para tornar possível construir um

paradigma jurídico que sirva de alicerce à tributação das cooperativas.

Com efeito, todo o embasamento normativo pertinente ao tratamento

tributário (ou não) dirigido às cooperativas já se encontra prescrito na Carta da

República e nas leis infraconstitucionais definidoras de suas características únicas. A

questão está em se identificar estas normas jurídicas no quadro geral do contexto

jurídico do cooperativismo, em sede constitucional ou não, a fim de que possamos

emprestar tratamento tributário às cooperativas em consonância com seu arquétipo

jurídico (principiológico e normativo) e, sobremodo, com os princípios constitucionais

gerais e cooperativos.

A abordagem do problema do “adequado tratamento tributário ao ato

cooperativo” proposta neste trabalho não implica a pergunta sobre o que é tratamento

adequado, mas acerca de qual o paradigma jurídico-interpretativo conducente da

construção da norma jurídica constitucional de tributação das cooperativas.

Destarte, podemos elencar algumas normas jurídicas (inclusive princípios)

relacionadas à tributação das cooperativas, máxime com sede na Constituição, nos

moldes expostos, principalmente, no tópico 3.2.2 deste labor, a fim de erigir um

paradigma. As principais delas são relativas à prescrição constitucional: a) da

singularidade do modelo cooperativo e do fato jurídico cooperativo; b) da atuação

socioeconômica cooperativa; c) do princípio da solidariedade; d) do princípio de

cooperação e, e) do princípio de estímulo e apoio ao cooperativismo.

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Essas normas são as vigas mestras do paradigma jurídico que servirá para a

exegese pretendida. Mas o paradigma assumido não se resume a isso. Conta, ainda,

com as normas infraconstitucionais definidoras dos princípios cooperativos e de suas

características singulares (expostas ao longo de todo o capítulo III).

Obtempere-se que não é suficiente, à evidência, dizer que adequado

tratamento tributário das cooperativas importa em, simplesmente, reconhecer as

peculiaridades do modelo cooperativo e do fato jurídico cooperativo, e respeitá-las,

quando da sua tributação. É fato, v.g., que muito da atuação cooperativa se perfaz,

juridicamente, em caso de não-incidência tributária (seja pela insuficiência de critérios

da regra-matriz, seja por completa ausência de previsão legal).

Para que tudo isso restasse reconhecido seria redundante, quando não

inútil, o art. 146, III, c. Sim, pois que a injunção de normas jurídicas constitucionais,

como o princípio da igualdade (para ficar aqui), por si só, cumpre efetivar tal comando.

O tratamento prescrito na Constituição, decerto, vai para além disso.

5.7.2 - O Tratamento Constitucional Tributário da Atuação Cooperativa

Cumpre salientar que o mero enunciado do art. 146, III, c, da CF não é, por

si só, suficiente para que construamos uma norma constitucional de tributação das

cooperativas. Assim como, esclarecemos no tópico 1.6 desta dissertação, por vezes, é

necessário mais de um enunciado para a construção de uma norma jurídica. É o caso.

Não sobeja reforçar que o contexto dessa arquitetura normativa tributária cooperativa

guarda relação estreita com os princípios cooperativos constitucionais e legais.

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À evidência, a definição de um tratamento tributário relativo às

cooperativas passa, necessariamente, pelo princípio de índole constitucional prescritivo

de estímulo e apoio ao cooperativismo. Impossível dissociar a norma tributária que se

pretende construir do desígnio constitucional prescrito no bojo do art. 174, e seus

parágrafos, e dos demais princípios cooperativos.

O favorecimento tributário do cooperativismo funciona, de certo modo,

como uma espécie de cooperação entre o poder público e o privado. Sim, pois foi visto

que o móvel axiológico das cooperativas se confunde, em grande monta, com os

alicerces fundamentais do Estado brasileiro.

Por certo, a expansão, o desenvolvimento e o sucesso do cooperativismo,

em última análise, consubstanciam-se na efetivação de diversas políticas sociais e na

consecução de objetivos do próprio Estado, prescritos no altiplano constitucional,

como, v.g., a promoção dos valores sociais do trabalho, da própria cooperação, da

igualdade, de uma sociedade justa, da solidariedade, da erradicação da pobreza e das

desigualdades sociais, da eliminação dos preconceitos, dentre inúmeros outros.

A interpretação do art. 146, III, c, pois, encontra-se inspirada pelos

princípios cooperativos todos. E a síntese, por assim dizer, do contexto constitucional

em que se encontra engendrado o modelo cooperativo, pode ser assumida pelo

princípio do estímulo e apoio ao cooperativismo.

Importa ter em mente, também, a complexa conjuntura da atuação

cooperativa, toda ela singular. Logo, o tratamento tributário a ser dispensado, para ser

considerado um tratamento constitucional, deve levar em conta não só o fato jurídico

cooperativo, mas toda a atuação solidária cooperativa, pois toda ela é própria, única.

São estes os pressupostos do paradigma posto no tópico precedente.

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A norma tributária constitucional, ao fim e ao cabo da dialética normativa

cooperativista, pode ser construída no sentido de propiciar às cooperativas uma

tributação estimulante, que sirva de meio para a sua promoção. Isto eqüipole a dizer

que a Constituição veda um tratamento mais gravoso aos desdobramentos do agir

cooperativo, assim como também não admite que as cooperativas tenham o mesmo

tratamento dado às demais espécies societárias, visto que com elas não se confunde.

As cooperativas se encontram (numa espécie de limbo jurídico) no

entremeio das sociedades com fins exclusivamente econômicos (mercantis) e das

sociedades de objetivos estritamente sociais (beneficentes), à míngua de lei

complementar que lance luzes sobre os comandos constitucionais. As sociedades

mercantis são amplamente tributadas, enquanto que as benemerentes são imunes à

tributação. Em sendo assim, seria lógico supor que o tratamento das cooperativas deve

estar situado entre o que é imposto juridicamente a umas e a outras sociedades,

respeitadas as características específicas da sistemática estrutural das cooperativas, por

força dos princípios constitucionais.

Com isto queremos dizer que a norma constitucional não outorga

imunidade às cooperativas, mas também não permite que lhes seja emprestada a mesma

tributação imposta às sociedades mercantis. Também não é o caso de afiançar, em

respeito ao primado da federação, que a Magna Carta prescreve a todos os entes

federados que isentem a atuação cooperativa dos tributos que lhes são afetos. Nada

obsta, contudo, que a União, os Estados, o Distrito Federal ou os Municípios, ao seu

alvedrio, concedam isenções às cooperativas.

Certo é que, por injunção constitucional, não é possível oferecer tratamento

tributário igual ou mais gravoso às cooperativas, em relação ao que é imposto às

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demais sociedades com atividades econômicas. É cogente que o tratamento sirva de

estímulo e promoção às cooperativas. Logo, tributação de cooperativas não adequada à

Constituição não pode subsistir validamente no sistema. Mais do que adequado

tratamento tributário, deve ser garantido às cooperativas um tratamento tributário

constitucional de sua atuação.

Sobreleva-se a dificuldade de conformar uma lei complementar definidora

do tratamento constitucional tributário das cooperativas ao passo que a complexidade

do arquétipo cooperativo implica a observância atenta das peculiaridades de cada um

de seus ramos de atuação. O legislador deve ficar atento aos relamos da realidade

cooperativa.

Sotopõe-se a essa circunstância a variabilidade semântica experimentada

por algumas categorias cooperativas (caso das sobras) e a complexidade da dialética

operacional do fato jurídico cooperativo em cada espécie de cooperativa. Com efeito, a

depender da espécie de atividade econômica empreendida pela cooperativa, haverá

variação semântica em algumas de suas categorias. É dizer: a tributação deve levar em

conta a realidade concreta de cada espécie de cooperativa, de cada um de seus institutos

jurídicos, e sua relação com os diversos tributos (todos eles) relacionados à atividade

desenvolvida.

Pois bem. A conjuntura ampla da composição jurídica constitucional

cooperativa nos autoriza a afirmar que o tratamento tributário há de ser amplo. Tanto

no sentido de alcançar todos os tributos relacionados às atividades desenvolvidas, como

no de envolver toda a complexa atuação cooperativa. Por outro giro lingüístico: o

tratamento constitucional tributário das cooperativas repousa na conformação

estimulante de todos os tributos relacionados a todas as etapas da atuação cooperativa.

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Tal prisma deixa entrever o deslocamento do foco do enunciado normativo

esculpido no art. 146, III, c, da Carta Federal, que estava no fato jurídico cooperativo,

para o quadro amplo da atuação cooperativa como um todo.

Destarte, para que se efetive plenamente a (sistemática) prescrição

constitucional, devem receber tratamento tributário estimulante (quando e se incidente)

o ato jurídico cooperativo, o negócio jurídico cooperativo, os negócios com não-

associados, os negócios empresariais e os negócios complementares, ou seja, todos os

desdobramentos da atuação solidária socioeconômica das cooperativas devem ser

reconhecidos e desonerados.

Para além disso, podem (e devem) ser criados mecanismos específicos que

facilitem a relação do fisco com as cooperativas, com a criação de regimes especiais e

simplificados, à exemplo do que ocorre com as micro e pequenas empresas, pois esta

também é uma forma de apoiar e incentivar as cooperativas198, no contexto jurídico do

tratamento tributário constitucionalmente prescrito a estas sociedades.

Assim é que, o mandamento alvissareiro de estímulo e apoio às

cooperativas deve informar a tributação incidente sobre qualquer etapa de sua atuação,

sob pena de se negar eficácia às normas e princípios constitucionais. Sendo o caso do

fato jurídico cooperativo de não-incidência, torna-se imperioso desonerar

tributariamente os demais passos do agir cooperativo em que seja juridicamente

198 Neste sentido, RENATO LOPES BECHO lança luzes sobre a alínea “d” do inciso III do art. 146 da CF, acrescida pela Emenda Constitucional n° 42, de 19 de dezembro de 2003, que tem a seguinte redação: “d) definição de tratamento diferenciado e favorecido para as microempresas e para as empresas de pequeno porte, inclusive regimes especiais ou simplificados no caso do imposto previsto no art. 155, II, das contribuições previstas no art. 195, I e §§ 12 e 13, e da contribuição a que se refere o art. 239”. Assim preleciona o autor mencionado: “quer nos parecer que o legislador constituído em função emendante da Constituição Federal quis superar as interpretações dúbias no dispositivo antecedente, justamente o objeto de nossa atenção, e usou em 2003 de uma linguagem mais incisiva do que a empregada pelo legislador constituinte originário em 1988”. Para concluir com a seguinte pergunta: “terão por ventura as cooperativas uma justificativa constitucional menor do que tais entidades econômicas, principalmente à luz de tantas menções constitucionais?” (in Tributação das... op. cit., p. 218).

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possível a incidência tributária. Eis a maneira de levar a efeito o que sistematicamente

prescreve a Constituição Federal. Somente a análise profunda dos casos concretos de

atuação de cada uma das espécies de cooperativa possibilitará a aferição dessas

hipóteses.

Sob o pálio desse contexto jurídico, enfim, deita raízes uma interpretação

evolutiva do direito cooperativo, por meio da qual somos levados a afirmar que o

“adequado tratamento tributário ao ato cooperativo praticado pelas sociedades

cooperativas”, sistematicamente considerado, se traduz na efetivação do tratamento

(também tributário) que a Constituição já prescreve ao cooperativismo. Logo, o

tratamento tributário adequado nada mais é que o tratamento constitucional tributário

da atuação cooperativa.

5.8 – Os Tribunais e a Alopoiese Cooperativa

Por todo o exposto, já se pode falar que a atuação cooperativa, em tudo e

por tudo, conforma um subsistema jurídico próprio, visto que diferençado em relação a

tudo que está fora dele (ambiente). No ambiente estão, inclusive, os demais

subsistemas jurídicos, como o comercial ou o tributário, e também os demais

subsistemas sociais, como o político ou o econômico, cada um com sua trama peculiar.

As inter-relações entre esses sistemas jurídicos parciais, poder-se-ia dizer, são regidas

pelos magnos princípios constitucionais.

Não queremos significar que cada subsistema ou microcosmo deve ficar

(ou está) isolado, como numa espécie de auto-referência recursiva hipercíclica. Não é

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isso. Mas é que, sobretudo no ato de interpretação e aplicação do direito, a unidade do

microcosmo deve ser observada e, para além disso, mantida. É dizer: a trama normativa

que lhe empresta feição singular, com suas normas e princípios jurídicos próprios, deve

ser preservada para que o mesmo continue a ser um sistema.

De forma ilustrativa seria o caso de falarmos em autopoiese do sistema

sempre que ele se reproduz (produz novas normas jurídicas) de acordo com sua própria

conjuntura normativo-principiológica, mesmo quando recebe os influxos dos demais

sistemas. Então, numa relação entre os sistemas parciais cooperativo e tributário, v.g., a

tributação deve se adequar, por assim dizer, à realidade jurídica cooperativa, e não o

contrário.

Se na aplicação do direito cooperativo essa complexa realidade normativa

não é levada em conta, total ou parcialmente, então restará desvirtuada,e haverá uma

confusão entre este e os demais subsistemas. Não há se falar, pois, em autopoiese, mas

em alopoiese199 sistêmica. Neste caso, operar-se-á uma corrupção nos elementos do

microcosmo, sua operacionalidade enquanto estrutura orgânica se desestabiliza,

viciam-se suas características basilares, o microcosmo, enfim, perece.

Decerto influenciados pela atmosfera malsã de um conhecimento pouco

aprofundado sobre o complexo microcosmo cooperativo – no interior da qual suas

instituições não conseguem alcançar a maturidade necessária –, os tribunais, no trato

diuturno da matéria que chega às suas mãos, findam por subverter as premissas mais

comezinhas do sistema cooperativo em decisões que significam, antes, mostras da

perplexidade que ostentam ante o cooperativismo. Sobre manejar os conceitos 199 O termo não é usado aqui exatamente como aparece na teoria dos sistemas. Até porque esta teoria não serve como paradigma teórico deste trabalho. A menção, repetimos, é meramente ilustrativa. Para um apanhado geral sobre alopoiese, sua relação com a teoria autopoiética do direito de LUHMANN e outras implicações do conceito, ver: MARCELO NEVES, A Constitucionalização Simbólica, p. 124 ss.

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cooperativos, deixam entrever os pré-conceitos que detêm sobre o tema. Institutos de

outros ramos do direito são aplicados indiscriminadamente às cooperativas, e sua

atuação própria é ignorada no que possui de mais específico.

Vejamos algumas amostras disso200:

TRIBUTÁRIO. AGRAVO REGIMENTAL. FINSOCIAL. INCIDÊNCIA. COOPERATIVA. ATO COOPERATIVO. 1. A isenção prevista na Lei nº 5.764/71 só alcança os negócios jurídicos diretamente vinculados à atividade-fim das cooperativas, entre eles, a entrega de mercadoria do cooperado à cooperativa. Precedente. 2. Agravo regimental improvido. (STJ - Agravo Regimental no Recurso Especial 217511/SP; 999/0047679-4. Ministro Castro Meira, 2ª Turma, Diário da Justiça: 02.05.2006, p. 279).

Dois pontos merecem destaque nesse acórdão: primeiro, a referência a uma

suposta isenção concedida pela Lei n° 5.764/71 (art. 79, parágrafo único). Por último,

deve ser destacada a circunscrição do fato jurídico cooperativo à atividade-fim da

cooperativa, ou seja, ao “conceito de ato cooperativo” literalmente posto na letra do

art. 79.

Para melhor entendermos a maneira como se desenvolve o raciocínio da

corte, vale reproduzir um breve trecho do voto201 do Ministro CASTRO MEIRA, a fim

de contextualizar a decisão. Até porque seu voto é emblemático da visão geral que o

STJ tem sobre o “ato cooperativo” e o “ato não-cooperativo”.

As cooperativas praticam atos que lhes são próprios - por isso chamados de atos cooperativos, e, também, atos comuns a toda e qualquer pessoa jurídica - por essa razão denominados atos não-cooperativos. Os atos cooperativos encontram-se definidos no artigo 79 da Lei nº 5.764/71, que assim dispõe: (omissis) Por exclusão, chega-se ao conceito de atos não-cooperativos, que seriam aqueles praticados entre as cooperativas e pessoas físicas ou jurídicas não-associadas, revestindo-se, nesse caso, de nítida feição mercantil. O ato cooperativo, ao revés, por expressa dicção do parágrafo único, do artigo 79 da Lei nº 5.764/71, não implica operação de mercado ou contrato de compra e venda de mercadoria. (grifamos)

200 Fazemos aqui a opção pelo enfoque nas decisões mais recentes do Superior Tribunal de Justiça, que tem sido uma espécie de vitrine do pensamento judicial acerca das cooperativas, especialmente em matéria tributária. Transcreveremos as ementas e, quando necessário, faremos apenas referência ao teor dos votos. 201 “Documento: 2242049 – Relatório, Ementa e Voto - certificado – p. 3 de 4”.

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Quanto à isenção, pode ser dito que não é disso que se trata. Com efeito,

quando a dicção do parágrafo único do art. 79 prescreve que fato jurídico cooperativo

não é operação de mercado, nem compra e venda de produto ou mercadoria, não se

cuida de isenção. Em verdade, não fosse essa previsão e, assim mesmo, o fato jurídico

cooperativo para a cooperativa não teria aquelas características, por tudo o que vimos

ao longo deste trabalho. O enunciado apenas reforça um traço da realidade jurídica

cooperativista, pelo que seria até despiciendo. Mais apropriado, portanto, falar-se em

não-incidência tributária sobre o fato jurídico cooperativo.

Outrossim, vemos que o conceito empregado de fato cooperativo fica

limitado ao ato jurídico cooperativo. Atividade-fim para o tribunal é aquela descrita no

art. 79 da Lei das Cooperativas. Logo, desconsidera-se o contexto amplo do

cooperativismo na Constituição e na lei, amesquinha-se sua atuação.

Ademais, fazendo prosperar uma visão estreita da atividade cooperativa

específica, restringem-na às hipóteses previstas no art. 79, em que tudo o mais é “ato

não cooperativo” – chegando a uma definição (com que pretendem significar, em

verdade, o que não é cooperativo) por exclusão. Com efeito, causam espécie

afirmações como a de que tudo o que a cooperativa opera além das hipóteses do citado

art. 79 assume “nítida”(!) feição mercantil. Como se, por acaso, uma cooperativa

pudesse deixar de sê-lo para atuar como as demais empresas.

Sabemos que as cooperativas, por injunção de sua trama jurídica, nunca

atuam como as demais empresas, pois seu arquétipo jurídico, de matriz constitucional e

infraconstitucional, não pode ser posto de lado, ainda que momentaneamente. Por isso

se justifica um tratamento diferenciado para as cooperativas, mesmo para além do fato

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jurídico cooperativo. Infelizmente, ao que parece, os tribunais estão longe de se

aperceberem disto.

PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. RECURSO ESPECIAL. PIS E COFINS. BASE DE CÁLCULO. DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE DO § 1º DO ART. 3º DA LEI 9.718/98 PELO PLENÁRIO DO STF. ATOS COOPERATIVOS TÍPICOS. NÃO-INCIDÊNCIA. ART. 79 DA LEI 5.764/71. 1. No julgamento dos RE 346.084/PR, 357.950/RS, 358.273/RS e 390.840/MG, o Plenário do Supremo Tribunal Federal declarou, por maioria, a inconstitucionalidade do § 1º do art. 3º da Lei 9.718/98, não o aplicando à base de incidência do PIS e da COFINS. 2. A Primeira Seção desta Corte, a partir do julgamento do REsp 616.219/MG, Relator Ministro Luiz Fux, julgado em 27.10.2004, manifestou o entendimento de que, dos atos cooperativos típicos praticados pelas entidades albergadas na Lei 5.764/71, não decorrem receita, ou receita bruta, ou, ainda, faturamento. 3. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa parte, provido. (STJ – Resp. 597983/RS; 2003/0182848-8; Min. Denise Arruda; 1ª Turma; D.J. 06.03.2006, p. 169). (grifamos)

Toma-nos de assalto, de pronto, a constatação paradoxal de que no seio do

STJ são criadas normas individuais e concretas em relação às cooperativas, ora de

isenção, ora de não-incidência tributária para o ato jurídico cooperativo. Em que pese a

confusão de termos, deve ser destacado o reconhecimento de que, na prática dos atos

jurídicos cooperativos, não decorrem receita bruta ou faturamento para as cooperativas.

O raciocínio se coaduna com o pensamento praticamente unânime da doutrina

especializada202. Porém, vez mais, os julgadores teimam em não se aprofundar na

análise sistemática do cooperativismo, preferindo permanecer presos à letra fácil (e

enganosa) do art. 79 da Lei das Cooperativas.

Avancemos em nossa breve observação crítica da realidade enfrentada

pelas cooperativas na lida diária dos tribunais. Além do fato jurídico cooperativo,

202 Somente a título de ilustração, calha transcrever a ilação tecida por JOSÉ EDUARDO SOARES DE MELO em trabalho voltado diretamente ao tema: “a finalidade das sociedades cooperativas é atingir o interesse comum dos associados sem almejarem intuito lucrativo, em razão do que entende-se que estas sociedades – que agem em nome e no interesse exclusivo de tais associados – não possuem efetivas receitas, uma vez que os valores apenas transitam por seu caixa, e que, em realidade pertencem exclusivamente aos próprios associados”. Pis e Cofins sobre o ato cooperativo. In Problemas Atuais... RENATO BECHO (coord.), op. cit., p. 157.

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outras categorias jurídicas cooperativas também são objetos de discussão, como é o

interessante caso das sobras.

TRIBUTÁRIO E PROCESSUAL CIVIL. ARTIGO 535 DO CPC. CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA RURAL. SOBRAS DE CAIXA DE COOPERATIVAS. 1. Não há violação ao artigo 535 do Código de Processo Civil quando o Tribunal de origem resolve a controvérsia de maneira sólida e fundamentada, apenas não adotando a tese do recorrente. 2. O julgador não precisa responder todas as alegações das partes se já tiver encontrado motivo suficiente para fundamentar a decisão, nem está obrigado a ater-se aos fundamentos por elas indicados. 3. "A contribuição previdenciária do trabalhador rural cooperativado incide sobre o valor que lhe é pago ou creditado pelo recebimento do produto pela cooperativa. Não há previsão legal de incidência da contribuição sobre o valor das sobras eventualmente apuradas, de que trata o art. 44, II, da Lei 5.764/71". (STJ - EREsp 260.282/RS, Rel. Min. Teori Zavascki, DJ de 23.03.05). 4. Recurso especial improvido. (STJ – Resp. 433339/PR, 2002/0051596-9; Min. Castro Meira; 2ª Turma; D.J. 14.11.2005, p. 238). (grifos nossos)

Nesse acórdão nos é dada oportunidade de saber o que é dito sobre a

tributação das sobras nesse importante tribunal. Trata-se de não-incidência da

contribuição previdenciária rural, por alegada ausência de previsão legal. O fato é que o

tema das sobras, assim como o dos fundos cooperativos – com destaque para o FATES

–, é dos mais ricos na temática cooperativa, e merece um estudo amplo e aprofundado

por parte da doutrina, sobremodo no que concerne a seu tratamento tributário203.

203 Não é nosso desiderato aprofundar neste trabalho o tema das sobras ou do FATES, quanto a sua tributação. Mas, tal qual posto no tópico 3.6.1, pensamos que um primeiro passo é reconhecer a mutabilidade semântica que pode ser experimentada pelo conceito em cada espécie de cooperativa. Seria o caso de se analisar a fundo a atuação de cada cooperativa para se saber qual a extensão semântica que as sobras assumem nesse contexto. Quanto ao FATES, podemos adiantar que a sistemática constitucional a que se encontra vinculada juridicamente sua destinação (vide tópico 5.2) nos empurra para a inferência de que o tratamento tributário de índole constitucional que lhe pode ser dado é o de sua não-tributação. Afinal, cuida o FATES de funções estatais, no que as cooperativas agem em complementaridade à atividade do Estado. A rigor, não vemos como possível tributar tal espécie de atuação. Porém, é o caso de sublinharmos um pensamento também preliminar sobre o caso. Quando o FATES se destina à assistência técnica prestada aos associados, não há se falar em atuação complementar à atuação do Estado, que só há quando o FATES se dirige a atividades educacionais e sociais. Seria, de regra, caso de realização de mero ato jurídico cooperativo, em que a cooperativa presta serviços diretos aos associados. Para concluir essa breve análise, podemos afirmar que, segundo o paradigma jurídico que erigimos em relação às cooperativas ao longo desta obra, e atentos ao contexto constitucional, o tratamento constitucional tributário que deve ser dado ao FATES é o de sua total desoneração tributária. Mas parece que nada é simples em matéria cooperativa. Resta claro, pois, que o tema das sobras e do FATES é complexo e merece estudos profundos por parte da doutrina cooperativista.

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Especificamente acerca do adequado tratamento tributário prescrito na

Constituição, assim se pronunciam os tribunais:

AGRAVO REGIMENTAL - RECURSO ESPECIAL - MATÉRIA DECIDIDA COM FUNDAMENTOS CONSTITUCIONAL E INFRACONSTITUCIONAL -COOPERATIVAS - COFINS - ISENÇÃO CONCEDIDA PELA LEI COMPLEMENTAR N. 70/91 (ART. 6º, I) - LEGISLAÇÃO ALTERADA PELA MP N. 1.858/99 E LEI N. 9.718/98, DE MODO A EXIGIR O PAGAMENTO DA CONTRIBUIÇÃO - IMPOSSIBILIDADE. Deve prevalecer o entendimento, segundo o qual, (sic) a análise da aplicação de uma lei federal não é incompatível com o exame de questões constitucionais subjacentes ou adjacentes. A competência somente seria deslocada para a Máxima Corte se a v. decisão recorrida tivesse julgado o feito única e exclusivamente sob o prisma constitucional, o que não se deu no caso ora em exame. "Não cabe a este STJ examinar no âmbito do recurso especial, sequer a título de prequestionamento, eventual violação de dispositivo constitucional, tarefa reservada ao Pretório Excelso (C.F., art. 102, III, e 105, III)" (EDREsp 247.230/RJ, Rel. Min. Peçanha Martins, DJ 18.11.2002). Não se insere, dentre as características da sociedade cooperativa, o intuito lucrativo, razão pela qual é correto afirmar que não se confunde com as denominadas sociedades comerciais; ao contrário, o traço marcante que a diferencia é a “cooperação, com o objetivo de trazer para os cooperados as vantagens que terceiros obteriam se os interessados não 'se cooperassem'" (cf. Milton Paulo de Carvalho, “Enciclopédia Saraiva do Direito”, coordenação Prof. R. Limongi França, vol. 20, p. 412). De acordo com a característica peculiar das cooperativas, quando da prática de seus atos típicos, não se verifica a hipótese de incidência da COFINS, ou seja, atividade-fim das sociedades não visa ao proveito do faturamento, pois os valores percebidos são repassados aos cooperados. Por outro lado, pode-se afirmar que o artigo 146 da Constituição Federal prevê a necessidade de lei complementar para estabelecer normas gerais em matéria tributária, para dispor sobre o adequado tratamento tributário ao ato cooperativo praticado pelas sociedades cooperativas. Assim, pois, enquanto ausente a referida norma complementar, prevalece o disposto na Lei n. 5.764/71 e, bem assim, a característica dos denominados atos cooperativos. A incidência de eventual tributo somente será possível desde que desconfigurado o caráter das relações que envolvem a cooperativa e os seus associados. A disposição que isenta as cooperativas do pagamento da COFINS ajusta-se, também, aos termos do artigo 146 da Carta da República. Essa peculiaridade decorre não da circunstância de cuidar de norma de caráter geral em matéria tributária, mas sim porque, diante da ausência de norma complementar específica, a predita “isenção” confere o “adequado tratamento tributário ao ato cooperativo praticado pelas sociedades cooperativas” (letra “c” do inciso III). Agravo regimental improvido. (STJ - AgRg no REsp 636369/RS, 2004/0009095-0; Min. Franciulli Netto, 2ª Turma, DJ: 25.04.2005). (grifamos)

O enfoque dado neste acórdão ao tema versado no art. 146, III, c, da Carta

Suprema é dos mais alvissareiros. Aqui foi definido que, na ausência de lei

complementar definidora das normas gerais de tributação cooperativa, vale a isenção

dada em relação à COFINS, por corresponder a um tratamento adequado. Mister

sublinhar, especialmente, a circunstância de que o tratamento adequado

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constitucionalmente prescrito foi entendido como algo relativo às cooperativas, e não

só ao ato cooperativo, especificamente. O pano de fundo de tal decisão, inclusive,

parece-nos ser o reconhecimento da não-incidência da COFINS, por ausência de

faturamento por parte da sociedade cooperativa.

Há ainda um derradeiro caso para ser visto:

PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. INEXISTÊNCIA DE IRREGULARIDADES NO ACÓRDÃO. CPMF. ISENÇÃO. COOPERATIVAS. LEI Nº 5.764/71. ATOS VINCULADOS À ATIVIDADE BÁSICA DA ASSOCIAÇÃO. 1. Os Embargos de Declaração somente são cabíveis quando "houver, na sentença ou no acórdão, obscuridade, dúvida ou contradição" ou "for omitido ponto sobre o qual devia pronunciar-se o Juiz ou Tribunal" (incisos I e II, do art. 535, do CPC). 2. Inocorrência de irregularidades no acórdão quando a matéria que serviu de base à interposição do recurso foi devidamente apreciada no aresto atacado, com fundamentos claros e nítidos, enfrentando as questões suscitadas ao longo da instrução, tudo em perfeita consonância com os ditames da legislação e jurisprudência consolidada. O não acatamento das argumentações deduzidas no recurso não implica em (sic) cerceamento de defesa, posto que ao julgador cumpre apreciar o tema de acordo com o que reputar atinente à lide. 3. A egrégia Primeira Turma, ao julgar, à unanimidade, em 20/09/2001, o REsp nº 328775/RS, com matéria idêntica à presente, postou-se no de que a transação financeira bancária, embora praticada por uma 'cooperativa', não se caracteriza como ato cooperativo. Este é, apenas, o concluído com os seus associados. Isenção tributária decorre expressamente de lei. O adequado tratamento tributário que a CF prevê para os atos cooperativos não colhe interpretação que alcance isenção tributária da CPMF. 4. Embargos rejeitados. (STJ – Embargos Declaratórios no Agravo Regimental no REsp 324045/RS, 2001/0060482-8; min. José Delgado, 1ª Turma, DJ: 04.02.2002).

Nessa decisão, vez mais, leva-se o art. 79 da Lei n° 5.764/71 em sua enxuta

literalidade textual. Outrossim, firma-se o entendimento de que tratamento adequado

não se traduz necessariamente em isenção. É razoável tal interpretação, haja vista que a

atuação cooperativa é altamente complexa, merecendo um estudo profundo de cada um

dos seus ramos de atuação concreta, a fim de que possamos definir o tratamento

tributário constitucionalmente adequado a cada uma de suas categorias jurídicas e áreas

de atuação econômica.

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Pois bem. Já está genericamente tracejado o posicionamento

jurisprudencial vigorante no país, além dos pré-conceitos que povoam o imaginário de

nossos juízes, quando o assunto é tributação de cooperativas.

Restam clarividentes, sobremodo, as dificuldades enfrentadas pelas

cooperativas no Brasil para terem reconhecidos seus direitos constitucionalmente

salvaguardados. O amadurecimento de suas instituições ainda está longe de ser

alcançado, principalmente no que depende do Judiciário. Mas, para tanto, a doutrina

cooperativista também deve continuar a fazer a sua parte204.

À míngua de tal amadurecimento, decerto, os estudos científicos sobre

cooperativas devem ser intensificados, de modo a propiciar solo teórico fértil em que

os aspectos jurídicos fundamentais da temática cooperativista possam florescer. O

caminho para o reconhecimento pleno do arquétipo jurídico cooperativo (constitucional

e infraconstitucional) é árduo, mas precisa ser trilhado.

Mais do que interpretar o cooperativismo, enfim, precisamos nos esforçar

em compreendê-lo, pois que interpretação sem compreensão é, antes, incompreensão

do cooperativismo e do direito.

204 Há obras com farto e valoroso material sobre a tributação das cooperativas, enfocando especificamente aspectos relativos aos diversos ramos de atuação cooperativa e sua relação com os variados tributos eventualmente incidentes. Sugerimos consultar: ROQUE ANTONIO CARRAZZA, ICMS, p. 69 ss; RENATO LOPES BECHO, Tributação das Cooperativas, op. cit., p. 230 ss.; Problemas Atuais do Direito Cooperativo, op. cit., sob a coordenação do mesmo autor, com contribuições de vários autores nacionais sobre diversos temas tributários, inclusive a nossa (Atos cooperativos e sua tributação pelo ISS à luz da teoria geral do direito, p. 120 ss, op. cit.); JOSÉ EDUARDO SOARES DE MELO, também nesta obra coletiva, trata de “Pis e Cofins sobre o ato cooperativo”, p. 156 ss. Do mesmo autor: Aspectos Teóricos e Práticos do ISS, p. 16 ss; Atos Cooperativos e seu Adequado Tratamento Tributário, GUILHERME KRUEGER (coord.), também com diversas contribuições de autores nacionais e estrangeiros, dentre outras.

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CONCLUSÕES

Conclusões gerais

1. O direito e a dogmática jurídica (como a ciência do direito em sentido estrito)

evoluíram com o passar do tempo, mercê da complexidade social que informa,

primeiro, aquele. A filosofia também evoluiu. Deu-se o chamado “giro lingüístico” –

um movimento filosófico que, superando os pressupostos metafísicos da filosofia da

consciência, instaurou um novo paradigma, segundo o qual a linguagem deixou de ser

um mero instrumento condutor de essências ou de representação do mundo em si.

Assim, à linguagem é reconhecido o papel de condição de possibilidade para o ser-no-

mundo. Não há essências, não há verdades absolutas, mas apenas formas de uso das

palavras dentro de um contexto (jogos de linguagem).

2. O próprio direito passa a ser tido como um corpo de linguagem prescritiva

(linguagem-objeto), e a ciência do direito como uma metalinguagem descritiva

daquele. Logo, não há se falar em buscas da norma jurídica em si, da intenção do

legislador ou da vontade da norma, que traduzem uma concepção ontológico-

essencialista-transcendentalizadora do dado jurídico. O que há é o texto, como suporte

físico de significações, que são construídas pelo intérprete. É dizer: o intérprete, a partir

do texto, constrói uma (não a) norma jurídica. No Brasil, porém, a dogmática jurídica

tem se mostrado refratária ao giro lingüístico. Insiste-se na busca pela essência da

norma jurídica e, pois, da correta e única interpretação do direito.

3. Em sua condição de conjunto de normas posto na cúspide da pirâmide normativa em

que se traduz figurativamente um ordenamento jurídico, a Constituição fundamenta e

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empresta validade jurídica para todo este e, além disso, informa a atividade que se

exerce desde o legislador até o realizador do momento de máxima positivação do

direito: a produção da norma individual e concreta. Em suma: a supremacia

constitucional se opera sobre o Direito.

4. Os princípios jurídicos (normas jurídicas principiológicas) consubstanciam a

centelha jurígena nuclear, apta a lançar luzes por sobre uma porção do ordenamento ou

sua inteireza, atuando como premissa jurídico-interpretativa ou postulado indicativo do

caminho a ser trilhado na interpretação e aplicação do ordenamento jurídico posto,

inclusive no sentido de prescrever, direta ou indiretamente, as condutas pertinentes a

sua efetivação.

5. Não se pode perder de vista a circunstância que subjaz a todo princípio jurídico:

estamos diante de uma norma jurídica. Destaca-se, assim, seu caráter de

imperatividade, pelo que deve ser levado a efeito nos casos concretos em que se aplica.

O raio de abrangência dos princípios jurídicos é definido em função de sua posição

sintática dentro do ordenamento. Desse modo, os princípios constitucionais irradiam

seus efeitos para uma porção mais ou menos substancial do ordenamento, a depender

de sua generalidade. Esta, por sua vez, será definida na razão direta da intensidade de

sua carga axiológica.

6. De um ponto de vista pragmático (e não somente sintático e/ou semântico), o caráter

de princípio ou de mera regra atribuído a uma norma jurídica havida ao fim e ao cabo

do labor exegético realizado pelo intérprete dependerá, em derradeira análise, de uma

decisão deste. Sim, visto que a norma é construída segundo a ideologia (e, portanto, os

valores) de quem interpreta. Logo, a definição do peso axiológico de uma norma

jurídica é contingente. Assim é que onde alguns constroem uma norma da espécie

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princípio, outros edificam mera norma-regra, ou mesmo um princípio mais ou menos

abrangente, de acordo com sua concepção de valores e da importância dada a cada um

deles.

7. No processo de interpretação do direito, os princípios jurídicos, sobretudo os

constitucionais, aparecem como normas, por assim dizer, condicionantes. O intérprete

do direito deverá condicionar seu labor hermenêutico ao que prescrevem os princípios

jurídicos pertinentes, informando a construção da norma jurídica com o comando

emergente destes princípios.

8. Todo o processo de interpretação/criação e aplicação do direito, da produção da

norma geral e abstrata até o momento de máxima positivação jurídica, qual seja a

produção da norma individual e concreta havida no momento derradeiro de aplicação,

deve assentar-se sobre o alicerce e estar sob os auspícios dos princípios jurídicos

constitucionais. A interpretação do texto normativo, no processo de evolução do

direito, é informada pelos princípios jurídicos e só poderá ir até onde estes se

encontram ou, tão melhor, até onde é por eles conduzida. Assumem os princípios

constitucionais, pois, uma dúplice função no processo de evolução da Constituição e,

por conseguinte, do direito: são ao mesmo tempo o fundamento da mudança e o seu

limite mesmo.

9. Os princípios jurídicos, máxime os constitucionais, são dotados de tão alto grau de

generalidade. Esta sua compostura estrutural lhes permite a abertura necessária a

novos sentidos, e possibilita a adaptação às novas realidades – evitando a necessidade

de renovação constante da Constituição, do ponto de vista de sua textura enunciativa. É

como se a Constituição aprendesse (numa espécie de abertura cognitiva) com os fatos,

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para se amoldar a eles, tornando exeqüível o desenvolvimento constitucional que a

evolução social reivindica.

10. O processo de evolução do direito é complexo. De um lado são mudados os textos

legais (suportes de significação). De outro, alteram-se os paradigmas interpretativos

(postos pelo contexto) que condicionam a adjudicação de sentido. Assim, a mutação do

direito tanto pode ser feita pela reforma dos enunciados textuais prescritivos

componentes da Constituição e das leis, como através da interpretação dos mesmos –

que se altera na medida em que o contexto histórico no qual se encontra inserido o

direito também se transforma. A mudança do paradigma interpretativo da Carta Magna

finda por alterar o paradigma da interpretação de todo o direito. Mudem-se as normas

constitucionais, incluindo seus princípios, e estas mudanças repercutirão em todos os

sítios do ordenamento jurídico. A evolução, pois, é sempre do direito, não só da

Constituição.

Conclusões sobre as cooperativas

11. Da análise dos enunciados constitucionais, colhemos relevantes ilações. Podemos

citar o reconhecimento constitucional de que: as cooperativas perfazem um modelo

singular e com atuação própria; fazem jus a um tratamento diferenciado (incentivo e

estímulo) e, por fim, o caráter socioeconômico relativo à atividade cooperativa.

12. Com efeito, o objetivo comum do grupo que se une em cooperativa é de caráter

socioeconômico. É dizer: o intuito de se organizarem, ajudando uns aos outros

mutuamente, é atingir um fim de dupla face, social e econômico, que se traduz na

melhora ou promoção das condições socioeconômicas do grupo. Não fosse assim e não

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nos seria dado falar em cooperativa, mas em mero mutualismo ou, simplesmente, em

cooperação.

13. O cooperativismo deita raízes numa conjuntura organizacional de apoio mútuo e de

busca coordenada de soluções para a consecução dos interesses do grupo, em benefício

de todos que o integram, e esse benefício é econômico, sem se sobrepor ao caráter

pessoal, fruto da solidariedade cooperativa. O atuar-em-conjunto para um fim

socioeconômico comum caracteriza a cooperativa. O elemento mais importante dessa

equação é o pessoal, não o econômico, que se submete, por assim dizer, àquele.

14. Há, no contexto da cooperação em cooperativa, quatro elementos que se

sobressaem: a) a união de pessoas (não de capitais); b) o atuar em conjunto para um

fim socioeconômico comum e c) a vantagem econômica que só é possível porque a

atuação é conjunta e, d) a gestão democrática dos interesses cooperativos. Apesar de

podermos, metodologicamente, separar tais elementos, resta claro seu imarcescível

encadeamento lógico.

15. A cooperativa aparece como estrutura organizacional complexa erigida com o

escopo de servir aos seus sócios, suprindo suas deficiências individuais e tornando

efetiva uma vantagem econômica. O agir da cooperativa está em que a mesma presta

serviços (seu fim por excelência) aos seus associados toda vez que viabiliza os

objetivos para os quais fora instituída. E esses serviços prestados aos associados, em

derradeira análise, são o produto mesmo da solidariedade que serve de amálgama

àqueles que ali cooperam. Sim, pois que a sociedade só estará apta a prestar seus

serviços em função da conjunção harmoniosa de seus objetivos e esforços.

16. A condição de sócio da cooperativa implica a fruição dos serviços prestados por

esta. Eis a dupla qualidade que singulariza o sócio/tomador de serviços de uma

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cooperativa. Em esforço analítico, podemos decompor essa situação em duas relações

jurídicas distintas, a de sócio (proprietário) e a de usuário (tomador de serviços) em

relação à cooperativa, com efeitos jurídicos igualmente distintos. Só há, a rigor,

sucessão lógica, jamais cronológica, entre tais condições/qualidades assumidas pelo

associado – em termos jurídicos.

17. É possível construir um conceito de cooperativa a partir de pressupostos jurídicos

constitucionais. Eis o nosso conceito: Cooperativa é sociedade de pessoas, de

arquétipo e atuação específicos, erigida primordialmente para prestar serviços aos

associados, com viés socioeconômico, sem fim lucrativo, solidária e democraticamente

gerida, segundo seus princípios jurídicos próprios.

18. O conceito fundamental do cooperativismo não é o de ato cooperativo – talvez

supervalorizado por parte da doutrina –, mas o de cooperativa. Uma vez compreendido

o conceito de cooperativa, em toda a sua complexa integridade constitutiva, o horizonte

cooperativo se expandirá, e conceitos como o do fato cooperativo serão mais

facilmente desenhados.

19. Ao dispor sobre cooperativas, o Código Civil não logra abordar largamente a

matéria. Assim é que, a despeito de diminuir a importância da Lei n° 5.764/71, vem

para lhe emprestar novo fôlego, na medida em que os dois diplomas devem ser

sotopostos. A relação, pois, há de ser integrativa. Por isso devemos, sempre que

possível, conjugar suas disposições para, a partir de ambos – e em consonância com os

princípios cooperativos aplicáveis –, construir as normas jurídicas cooperativas.

20. O elemento positivo porventura havido ao final do exercício econômico em uma

cooperativa é sobra – em tudo e por tudo diferente de lucro. O lucro não é o objetivo

da cooperativa, mas nem a sobra o é. Procura-se o resultado neutro.

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21. Com efeito, a não-lucratividade das cooperativas pode ser entendida como uma

decorrência lógica e jurídica do mutualismo, da solidariedade, do específico viés

socioeconômico, além das demais características jurídicas (constitucionais e

infraconstitucionais) que engendram a estrutura cooperativa como uma estrutura que

não comporta o lucro.

22. Dada a complexidade da estrutura e da atuação cooperativa, alguns de seus

institutos podem, na dinâmica de sua fenomenologia concreta, assumir variações de seu

conteúdo semântico. É o caso das sobras, v.g., em uma cooperativa de consumo e em

uma cooperativa de produção. De fato, nesta, se houver sobra, é porque houve ganho

para o cooperado, enquanto naquela a sobra não será “comemorada” como um ganho,

mas como mera devolução do que já lhe foi cobrado a mais. O termo, pois, assume

uma variação em seu conteúdo semântico. O resultado positivo nos dois casos, do

ponto de vista do direito cooperativo, é o mesmo: sobra. Mas a sistemática operacional

que o ocasiona finda por alterar sutilmente sua significação de base. A repercussão

tributária disso precisa ser estudada com profundidade, em atenção ao concreto agir

cooperativo.

23. O art. 1.094, VII, do Código Civil representa um retrocesso no direito cooperativo,

a vingar a interpretação que se acomodou no senso comum teórico da doutrina

cooperativista, em que só haveria uma possibilidade: a distribuição dos resultados na

proporção das relações com a sociedade. Haveria conseqüências para o destino dos

resultados positivos (como pressuposto pela doutrina em geral), mas, também, para o

destino dos resultados negativos (prejuízos), vez que restará prejudicada a norma que

os remete em primeiro lugar ao fundo de reserva e, somente no caso de sua

insuficiência, ao reparte proporcional entre os associados (cf. art. 89 da Lei n°

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5.764/71). Essa interpretação não pode prosperar – sob pena de se alijar

irremediavelmente o arquétipo jurídico das cooperativas. Nada traduz melhor o

princípio solidário e democrático nas cooperativas do que a ampla atuação das

assembléias gerais. Retirar delas o poder de dizer qual destino terão as sobras (art. 4°,

VII, da Lei das Cooperativas) importa subversão da lógica do sistema cooperativo e

malogro de seus princípios jurídicos mais elementares.

24. Da ampla análise sistemática do contexto jurídico cooperativista construímos

princípios jurídicos que espraiam seus efeitos sobre toda a porção cooperativa, tendo

como corolários lógicos os demais princípios e normas gerais cooperativas. São

princípios jurídicos gerais do cooperativismo os princípios da democracia, da

solidariedade cooperativa e das portas abertas.

25. O problema do “conceito legal de ato cooperativo” do art. 79 da Lei das

Cooperativas é antes dos intérpretes do que do direito. O que o torna, enfim, um falso

problema para a dogmática jurídica. O texto do citado dispositivo tem se mostrado

como uma espécie de prisão sígnica da qual a maioria dos intérpretes não quer se

livrar. É como se o “conceito” do art. 79 se tornasse, por fim, um pré-conceito.

26. A imprecisão da linguagem da ciência é, talvez, o pior de seus vícios, pois tem o

condão de obnubilar o conhecimento, afastando a possibilidade da completa

compreensão do objeto investigado. É o caso do uso indiscriminado da expressão ato

cooperativo pela doutrina cooperativista. Não bastasse não se delimitar claramente seu

conceito, ainda se faz uso da expressão, ora para designar a hipótese abstratamente

prevista na norma jurígena, ora para indicar o fato jurídico propriamente dito – à moda

do que era feito com a expressão fato gerador. O mesmo termo não pode continuar a

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ser usado para designar situações díspares, sob pena de não se emprestar a

cientificidade reivindicada pela ciência do direito cooperativo.

27. Num esforço elucidativo, propomos o uso das seguintes expressões: a) hipótese de

incidência cooperativa, para a previsão abstrata posta no antecedente de norma jurídica

relativa a um fato cooperativo; b) fato jurídico cooperativo, para denominar o produto

da incidência de norma jurídica de direito cooperativo sobre um fato, ou seja, o fato

jurídico apto a irradiar efeitos jurídicos – que poderíamos qualificar de cooperativos e,

c) para denominar o suporte fático concreto, ou seja, o fato concretizado no mundo

fenomênico que se adequa à hipótese de incidência cooperativa, utilizaremos,

simplesmente, o termo fato social (cooperativo), ou mesmo a expressão suporte fático

concreto.

28. Há a necessidade de se realizar uma crítica à razão ingênua do ato cooperativo

vigorante na doutrina cooperativista, que só o enxerga na atuação interna (cRC’ v

C’RC”), influenciada por razões, muitas vezes, ideológicas. Afinal, é pragmaticamente

inadequado e juridicamente insuficiente pensar na atuação cooperativa como se fosse

inexoravelmente imprópria/atípica a sua relação com o mercado. O fato é que não

subsistem fundamentos de ordem jurídica que impeçam a cooperativa de atuar no

mercado em consonância com seus objetivos socioeconômicos e informada pelos

princípios cooperativos, logo, sem se despir de suas características específicas.

29. O que define juridicamente a qualidade do fato jurídico relativo a uma cooperativa

é o agir/atuar dessa cooperativa. Toda atuação nessa sociedade é atuação cooperativa

(gênero). Mas esta se subdivide do seguinte modo: atuação em cooperativa (onde se dá

o fato jurídico cooperativo) e atuação da cooperativa. Obtempere-se, por oportuno, que

o agir cooperativo importa em algumas características inafastáveis, como o

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atendimento aos princípios cooperativos e a ausência de finalidade lucrativa. Não é

dado falar, sobre cooperativas, numa atuação avessa ao seu modelo societário, estéril

de todas as características específicas e de seus princípios jurídicos.

30. Atuação em cooperativa é o conjunto de ações empreendidas diretamente no afã de

concretizar a consecução dos objetivos socioeconômicos justificativos de sua criação,

dirigidas para a prestação de serviços aos cooperados (seu fim institucional), sempre

em consonância com suas características específicas e princípios jurídicos próprios.

31. A atuação da cooperativa se volta, especificamente, às demais ações necessárias ao

funcionamento e organização empresarial da cooperativa, mas que não correspondem

específica e diretamente à consecução dos objetivos socioeconômicos cooperativos.

Pode ser das espécies: negócios empresariais ou negócios complementares.

32. Ali onde se opera para a consecução de objetivos socioeconômicos, e de acordo

com os princípios jurídicos cooperativos, há cooperativa. E ali onde há cooperativa, há

fato jurídico cooperativo.

33. Toda atuação em cooperativa, realizada entre associado (cooperado ou cooperativa)

e cooperativa, dirigida específica e diretamente à consecução de seus objetivos

socioeconômicos, consubstancia fato jurídico cooperativo, da espécie ato jurídico

cooperativo: (c C’) v (C’ C”).

34. Afigura-se-nos ilógico e insubsistente pretender dissociar absolutamente o ato

jurídico cooperativo do negócio jurídico cooperativo. Se a dissociação se justifica em

espécies de cooperativas como as de crédito, onde até é possível que só haja relações

entre a cooperativa e o associado, nas demais, em que o objeto social implica

necessariamente relação com o mercado, como (única) forma de realizar a consecução

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plena dos fins e objetivos socioeconômicos, essa dissociação não se justifica

cientificamente.

35. Negócio jurídico cooperativo é a negociação empreendida pela cooperativa junto

ao mercado, em que há correlação lógica com o ato jurídico cooperativo, havida direta

e especificamente para a consecução do objetivo socioeconômico da cooperativa: (c

C’ M).

35. Para significar especificamente as relações havidas entre cooperativa e quaisquer

não-associados (entendidos como os que poderiam sê-los), realizadas da mesma forma

que as relações com associados, preferimos fazer uso da expressão negócios com não-

associados. A referência “não-associados”, haja vista remeter diretamente aos

enunciados que prescrevem essas hipóteses, diz mais do que se trata, quando analisado

o contexto legal concernente às cooperativas, em comparação com a expressão “atos

não-cooperativos”.

36. Negócios empresariais são os negócios realizados pela cooperativa em função (e

por exigência) do ramo de atuação empresarial desenvolvido, servindo para a

organização e para a estruturação relacionadas (não direta e especificamente) aos

objetivos socioeconômicos cooperativos.

37. Já o que denominamos por negócios complementares são os demais negócios que

também compõem a estruturação e organização da atividade empresarial cooperativa,

mas sem relação próxima com os objetivos socioeconômicos. São, enfim, negócios

hauridos em mera complementaridade àquela atividade.

38. A abordagem do problema do “adequado tratamento tributário ao ato cooperativo”

proposta não implica a pergunta sobre o que é tratamento adequado, mas acerca de qual

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o paradigma jurídico-interpretativo conducente da construção da norma jurídica

constitucional de tributação das cooperativas. Logo, é preciso identificar o paradigma

jurídico do cooperativismo em sua plenitude constitutiva.

39. Tal paradigma se consubstancia no complexo arquétipo jurídico constitucional e

infraconstitucional relativo às cooperativas, sobretudo nos princípios cooperativos.

Posição de relevo no paradigma por nós assumido é protagonizada pelos magnos

princípios constitucionais do estímulo e apoio ao cooperativismo e da solidariedade.

Este último, o ponto de intersecção alvissareiro entre a Constituição e o arquétipo

jurídico cooperativo (que se traduz em um verdadeiro microcosmo cooperativo).

40. A interpretação do art. 146, III, c, pois, encontra-se inspirada pelos princípios

cooperativos todos. E a síntese, por assim dizer, do contexto constitucional tributário

em que se encontra engendrado o modelo cooperativo, pode ser assumida pelo

princípio do estímulo e apoio ao cooperativismo.

41. A norma constitucional não outorga imunidade às cooperativas. Também não é o

caso de afiançar, em respeito ao primado da federação, que a Magna Carta prescreve a

todos os entes federados que isentem a atuação cooperativa dos tributos que lhes são

afetos, mas também não permite que lhe seja emprestada a mesma tributação imposta

às sociedades mercantis. Nada obsta, contudo, que a União, os Estados, o Distrito

Federal ou os Municípios, ao seu alvedrio, concedam isenções às cooperativas.

42. A conjuntura ampla da composição jurídica constitucional cooperativa nos autoriza

a afirmar que o tratamento tributário repousa na conformação estimulante de todos os

tributos (quando e se incidentes) relacionados a toda a complexa atuação cooperativa

(ato jurídico cooperativo, negócio jurídico cooperativo, negócios com não-associados,

negócios empresariais e negócios complementares). Para além disso, podem (e devem)

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ser criados mecanismos específicos que facilitem a relação do fisco com as

cooperativas, com a criação de regimes especiais e simplificados, à exemplo do que

ocorre com as micro e pequenas empresas, pois esta também é uma forma de apoiar e

incentivar as cooperativas.

43. Sob o pálio desse contexto jurídico deita raízes uma interpretação evolutiva do

direito cooperativo, por meio da qual somos levados a afirmar que o “adequado

tratamento tributário ao ato cooperativo praticado pelas sociedades cooperativas”,

sistematicamente considerado, se traduz na efetivação do tratamento que a Constituição

já prescreve ao cooperativismo. Logo, o tratamento tributário adequado nada mais é

que o tratamento constitucional tributário da atuação cooperativa.

44. Os tribunais pátrios ainda estão, infelizmente, longe de se dar conta de toda a

complexidade jurídica do modelo cooperativo e, por conseguinte, de efetivar um

tratamento tributário constitucional da atuação cooperativa.

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