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Aclamação “... E sendo justo que, conforme o uso antigo, costumes destes Reinos, se me faça o juramento, preito e homenagem, pelos grandes titulos, seculares e ecclesiasticos, vassalos e mais pessoas de nobreza: fui servido nomear o dia 6 do mez proximo futuro para esta solemnidade, que se há de celebrar na varanda que para este effeito se mandou levantar no terreiro do Paço.” Assim D. João VI decretou em 28 de janeiro de 1818, anunciando a data de sua aclamação como Rei do Reino Unido de Portugal, Brasil e dos Algarves, d’Aquém e d’Além- Mar em África, Senhor da Guiné e da Conquista, Navegação e Comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e Índia etc. Embora usasse o título de Rei desde a morte da rainha sua mãe, D. Maria I, em 20 de março de 1816, esperou quase dois anos para receber o juramento legal, eclesiástico e popular pela sucessão ao trono. A ao lado Gravura da Aclamação na visão oficial de Debret. in: “voyage pittoresque et historique au brésil...”, 1835. Dicionário Joanino.indd 13 Dicionário Joanino.indd 13 27/10/2008 13:36:28 27/10/2008 13:36:28

Aclamação - img.travessa.com.brimg.travessa.com.br/capitulo/OBJETIVA/DICIONARIO_DO_BRASIL_JOANINO... · ao Rio de Janeiro gado em pé, porcos, toucinho, galinhas, carneiros,

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Aclamação “... E sendo justo que, conforme o uso antigo, costumes destes Reinos, se me faça o juramento, preito e homenagem, pelos grandes titulos, seculares e ecclesiasticos, vassalos e mais pessoas de nobreza: fui servido nomear o dia 6 do mez proximo futuro para esta solemnidade, que se há de celebrar na varanda que para este effeito se mandou levantar no terreiro do Paço.” Assim D. João VI decretou em 28 de janeiro de 1818, anunciando a data de sua aclamação como Rei do Reino Unido de Portugal, Brasil e dos Algarves, d’Aquém e d’Além-Mar em África, Senhor da Guiné e da Conquista, Navegação e Comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e Índia etc. Embora usasse o título de Rei desde a morte da rainha sua mãe, D. Maria I, em 20 de março de 1816, esperou quase dois anos para receber o juramento legal, eclesiástico e popular pela sucessão ao trono.

Aao lado

Gravura da Aclamação na visão oficial de Debret.in: “voyage pittoresque et historique au brésil...”, 1835.

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[ 14 Ai Abastecimento da corte

Durante muito tempo o mercado interno colonial foi caracterizado por adjetivos como “secundário”, “ancilar”, “subsidiário” etc., resultado de uma historiografi a que dava ênfase à estrutura da economia mundial. Avaliava-se esse setor como pobre e ligado à subsistência, posto que a grande lavoura seria auto-sufi ciente na produção de alimentos destinados aos que a ela se dedicavam. Desde a década de 1970, entretanto, ao se desenvolverem teorias que estimularam a percepção de relativa autonomia das sociedades coloniais, multiplicaram-se os estudos que tinham como objeto o comércio interno no Brasil.

Constatou-se, assim, que grandes áreas produtoras destinadas ao setor de abastecimento interno eram bem mais escravistas do que se supunha, e que a grande lavoura era delas dependente. As primeiras revisões ocuparam-se da capitania de Minas Gerais, antes considerada decadente após o colapso da produção aurífera, mas que apresentou um dinamismo surpreendente no fi nal do século XVIII e no início do XIX, com uma população que aumentava vertiginosamente, inclusive com a entrada crescente de escravos, tudo ligado ao abastecimento interno.

Depois de Minas, outras áreas foram objeto de estudos sistemáticos, como o Rio Grande do Sul e suas estâncias e charqueadas, que se descobriu serem escravistas, entre outras de menor prestígio, como as pequenas localidades ao redor dos grandes centros urbanos ou das áreas agroexportadoras. Os resultados dessas pesquisas, algumas vezes dispersos em dissertações de mestrado e teses de doutorado não publicadas, descortinaram redes comerciais bastante diversifi cadas e

abrangentes, apresentando um conjunto por certo multifacetado e variável no tempo, mas que permite avaliar com alguma precisão a situação desse mercado no período em que a corte portuguesa esteve no Brasil.

Difícil saber com exatidão o número de habitantes da cidade do Rio de Janeiro quando da chegada da corte, em 1808, mas se tem plena certeza de que, no período joanino, esse número aumentou extraordinariamente. Estima-se entre 50 mil e 60 mil almas, em 1808, e o dobro, entre 100 mil e 120 mil, em 1821, quando da partida de D. João VI. Consta, na crônica do período, que chegaram 15 mil pessoas junto com a família real, apesar de haver quem duvide desse montante. Mesmo sendo um número menor, esse primeiro impacto demográfi co com certeza repercutiu seriamente na forma como até então se efetivava o abastecimento da cidade do Rio de Janeiro, principalmente porque, depois, várias pessoas vieram em seu rastro.

O porto do Rio de Janeiro já havia se tornado o principal centro de importação e exportação do Brasil desde meados do século XVIII, recebendo constantemente uma população fl utuante, como os tripulantes dos navios. Era, também, centro de redistribuição de mercadorias, principalmente as importadas, entre elas os escravos, para o interior e pelo comércio de cabotagem. Esse movimento incrementou-se sobremaneira após a abertura dos portos, diversifi cando-se, também, as origens da população residente, já que estrangeiros passaram a morar na cidade, gerando novas exigências de consumo.

Desde que o porto do Rio de Janeiro tornou-se a principal praça mercantil, a cidade passou a contar com três rotas de abastecimento, duas por mar e uma por terra, segundo detalhamento de Alcir Lenharo. Por mar, chegavam produtos de Portugal (principalmente de Lisboa e do Porto), incluindo mercadorias inglesas, da

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15 \AÁsia, da África e do Prata. Também por mar, a cabotagem ligava portos do litoral brasileiro ao Rio de Janeiro, como Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Bahia e áreas fl uminenses adjacentes, entre elas Campos dos Goytacazes, Cabo Frio, Itaguaí e Paraty. Por via terrestre, as principais áreas de abastecimento eram Minas Gerais e São Paulo. Essas rotas foram importantíssimas, mesmo com adequações, para garantir o funcionamento de uma conjuntura particularmente especial, pois permitiu que as exigências da cidade como sede do governo português, com todos seus encargos e atribuições, fossem razoavelmente atendidas. Proporcionou, inclusive, a infra-estrutura para o funcionamento do Brasil como reino independente, após 1822.

Emergencialmente, houve ordens de D. João para “socorrer a cidade de mantimentos”, no que foi prontamente atendido por diversos proprietários já tradicionais no abastecimento do Rio de Janeiro ansiosos por cair nas graças do príncipe regente. Mas não era um esquema viável nem duradouro. Alcir Lenharo considera que o período foi marcado por uma crise crônica, que se agravava em momentos de instabilidade política ou problemas climáticos. As principais queixas dirigiam-se aos denominados “atravessadores”, que se multiplicavam na cidade, acusados, entre outros estratagemas, de estocar certas mercadorias com o intuito de aumentar seu preço. Também foi motivo de apreensão, na época, a transformação no agro fl uminense, que trocava a lavoura de alimentos pela do café, além do alargamento das fronteiras urbanas, que expulsava os pequenos lavradores de alimentos ao redor da cidade.

Diversas medidas foram tomadas para tentar melhorar as condições do abastecimento da nova corte, como a isenção de recrutamento para tropeiros e demais envolvidos no transporte e

produção desses alimentos, liberação de áreas para construção de trapiches e armazéns e isenção de pagamento de taxas para embarcações costeiras da baía da Guanabara que conduzissem mantimentos e artigos de construções.

Das áreas próximas à cidade, vinham produtos variados, como hortaliças, frutas, peixes etc. A Vila Real da Praia Grande (atual Niterói) teve incrementada a produção de frutas, verduras, farinha de mandioca e leite. Segundo relato coevo de monsenhor Pizarro e Araújo, desde a entrada do porto do Rio de Janeiro até o interior do sertão existiam mais de 120 lugares ou portos que, por canoas, barcos ou lanchas, recebiam as mercadorias (entre elas, peixe salgado) de vários sítios, inclusive dos mais distantes, que chegavam diariamente ao Rio para o consumo cotidiano.

Mas a produção que realmente abastecia a cidade vinha de áreas mais distantes. Eram os cereais – farinha de mandioca, feijão e arroz – e as carnes – verde (fresca) e salgada (charque) – de bovinos, porcos, galinhas, carneiros e peixes. A principal demanda, entretanto, era de carne e de farinha de mandioca. A farinha de mandioca vinha por cabotagem do sul da Bahia, do litoral fl uminense e de Santa Catarina. Do Rio Grande do Sul vinham o charque, os couros, o trigo e o peixe salgado, sendo o charque o principal e mais caro produto de todo o comércio de cabotagem. As exportações de charque do Rio Grande do Sul para o Rio de Janeiro cresceram 249% entre 1799 e 1822. A farinha de mandioca, originada de diversas áreas, desde o sul da Bahia até Santa Catarina, aumentou 307%, ambos compondo a dieta básica das populações mais pobres e dos escravos, que entravam em abundância na corte naquele momento.

Por via terrestre, das capitanias do sul, de São Paulo e de Minas Gerais, chegavam

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[ 16 Aao Rio de Janeiro gado em pé, porcos, toucinho, galinhas, carneiros, queijos, feijão e algodão bruto, além das mulas, fundamentais como força de tiro para todo tipo de transporte. Criadas nos campos da Colônia do Sacramento e do Rio Grande do Sul, as mulas saiam ainda “xucras” (sem doma) em direção às famosas feiras de Sorocaba, em São Paulo, onde eram postas para a venda ao consumidor. Para chegar a Sorocaba, percorriam cerca de 2 mil quilômetros, parando em invernadas principalmente nos campos do Paraná, onde então eram domadas. A criação de muares, como a de cavalos, dependia em geral de certas condições de solo difi cilmente encontradas em áreas diferentes dos campos gaúchos, daí a concentração de criatórios no Sul do Brasil e de invernadas, para doma ou engorda, em outras paragens, como no planalto paranaense. Somente no ano de 1817, por exemplo, no registro de Jaguari, em Minas Gerais, foram importadas cerca de 12 mil “bestas”. Eram nas tropas de mulas que se fazia todo o comércio terrestre para o abastecimento urbano das várias cidades do Brasil.

O Sul também enviou gado em pé durante muito tempo para o Sudeste. Em 1818 entraram 25 mil reses para abastecer a corte, mas nos anos seguintes esse número declinou signifi cativamente, explicado por alguns estudiosos como resultado das guerras platinas. Há quem questione essa explicação única, alegando que houve, na realidade, uma reorientação econômica regional, que passou a destinar seu gado para a produção do charque. Em 1793, os campos gaúchos exportaram 13 mil arrobas; em 1805, foram 900 mil, e, em 1815, 1.400 mil arrobas. Quase toda a produção destinava-se ao mercado interno, com eventuais remessas para o exterior, como o sul dos Estados Unidos,

Havana etc. Enfrentava, entretanto, uma severa concorrência dos charqueadores argentinos e da colônia do Sacramento, cujos produtos eram melhores e preferidos pelos consumidores do Brasil. Especialmente na época das guerras cisplatinas e da independência da Argentina, os preços da arroba do charque variaram de 600 réis, em 1815, para 2 mil réis, em 1819. Foi um momento de aumento da demanda por carne verde, pois, enquanto o preço da libra da carne verde se manteve constante e tabelado em 30 réis, o charque, não tabelado, passou de 18,75 réis, em 1815, para 62,5 réis, em 1819. Entende-se, dessa forma, o interesse dos produtores de gado gaúchos em vender para os charqueadores em detrimento dos condutores de boiadas, comerciantes de carne verde. Os gaúchos deixaram de vez de enviar reses para o Rio de Janeiro, especializando-se na produção do charque, sendo substituídos defi nitivamente pelos criadores de Minas Gerais.

A capitania de Minas Gerais destacava-se como o grande celeiro de abastecimento do Rio de Janeiro. Era, também, a região com o maior número absoluto de escravos do Brasil. Minas recebia grande parte dos escravos chegados pelo tráfi co atlântico ao porto carioca. Esses escravos distribuíam-se por uma grande quantidade de unidades produtivas agropastoris, de pequeno e médio portes, a esmagadora maioria delas ligadas ao abastecimento interno. Os principais produtos eram bovinos, suínos e derivados, como toucinhos, carnes salgadas e feijão, além de cereais, como milho e, em menor escala, farinha.

Minas Gerais tinha contato comercial com diversas áreas, mas principalmente com o Rio de Janeiro, através de caminhos que ligavam suas comarcas à cidade do Rio de Janeiro, a Porto das Caixas, Aldeia da Pedra,

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17 \ACantagalo, Campos dos Goytacazes e São Fidélis, todas ligadas numa intricada cadeia comercial. Tentou-se desde o século XVIII melhorar os caminhos que levavam aos portos. Um dos destaques de investimento da Junta de Comércio, Agricultura, Fábricas e Navegação foi justamente o de tomar medidas para melhorar as comunicações terrestres que se ligavam ao Rio de Janeiro, interesse de vários produtores e comerciantes, tanto exportadores quanto importadores. Pontes, canais e estradas foram construídos nas comunicações entre o Rio de Janeiro, o interior e o sul do Brasil. Ao Caminho Novo, do século XVIII, se somaram mais dois criados no período joanino, a Estrada da Polícia e a Estrada do Comércio, que diminuíram a distância entre os produtores mineiros e o porto carioca. Também de meados do século XVIII era o caminho que ligava a cidade de Viamão, no Rio Grande do Sul, a São Paulo e ao Rio, melhorada também na época de D. João. Ao lado dessas estradas foram concedidas sesmarias aos negociantes envolvidos no abastecimento, que dessa forma puderam explorar também o abastecimento das caravanas e dos viajantes e, posteriormente, se transformaram em cafeicultores nas estradas que cortavam o vale do Paraíba. Os melhoramentos nas estradas não impediram, entretanto, a crítica de vários viajantes que por elas passaram e deixaram relatos.

Do exterior, chegavam ao Brasil diversos produtos ligados ao abastecimento interno, mas quase todos eles destinados aos consumidores mais enriquecidos. Mesmo os tecidos de algodão eram caros para a maioria da população do Rio de Janeiro. Em termos de alimentação, muitos produtos vindos de Portugal continuaram a ser consumidos, como bacalhau, azeite doce, vinagre, vinho, azeitona, aguardente do reino, especiarias etc., que nunca perderam

seu lugar nas mesas mais requintadas. Poucos produtos de outras nacionalidades, naquele momento, foram signifi cativos.

A venda das mercadorias destinadas ao abastecimento diário da cidade era realizada em várias etapas. Os animais de corte, por exemplo, eram deixados por meses em pastos de engorda próximos à cidade, sendo a Real Fazenda de Santa Cruz um dos principais locais para esse descanso, para o qual cobrava aluguel, que era uma fonte importante de sua receita. Seus pastos não eram sufi cientes para a quantidade anual de gado necessária ao consumo dos habitantes da corte (estimado em 40 mil reses) e, em 1814, D. João doou terras ao redor da cidade com a intenção de estimular a criação de novos pastos de engorda. Desses pastos de engorda, o gado era destinado à feira de São Cristóvão, criada em 1813 exclusivamente para a venda desses animais, que, depois de negociados, dirigiam-se aos currais e ao matadouro público, onde eram retalhados e vendidos em talhes aos consumidores.

Hortaliças, frutas, peixes secos, vindos dos diversos portos da baía da Guanabara, eram vendidos nas praias em barracas. Os alimentos mais fi nos eram comercializados nas inúmeras lojas de secos e molhados existentes na cidade, de propriedade tanto de súditos portugueses quanto de estrangeiros, cada vez mais numerosos. Havia um comércio ambulante especialmente ativo, composto por alimentos muito variados, quase sempre realizado pelas “negras de tabuleiro”, escravas ao ganho, mas muitas delas alforriadas e elas próprias proprietárias de escravas que se ocupavam do mesmo ofício. Os viajantes descrevem seus doces e salgados como bastante apreciados por pessoas de variadas condições, como inúmeros comerciantes que se reuniam nos largos e no cais do porto ao fi nal da tarde, mas eram aos grupos

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[ 18 Amais empobrecidos, entre eles os milhares de escravos que trabalhavam nos serviços urbanos e portuários, que se destinavam seus alimentos. Típicas vendedoras de uma comida mais substancial eram as negras que vendiam angu, alimento de origem africana apreciadíssimo pelos escravos da cidade.

Não se pode deixar de registrar que o comércio do Rio de Janeiro se sofi sticou um pouco com a vinda da corte e com a entrada de estrangeiros, mas a grande maioria da população, composta por mais de 40% de escravos, continuou a se abastecer de alimentos já tradicionais no mercado da cidade.

Sheila de Castro Faria

Remeter: Abertura dos portos, Alimentação e culinária, Rio de Janeiro, Tratados de 1810

Bibliografi a: CAMPOS, Pedro Henrique. Nos caminhos da acumulação: negócios e poder no abastecimento de carnes verdes para a cidade do Rio de Janeiro, 1808-35. Dissertação de mestrado em História defendida na UFF, Niterói, em 2007; FRAGOSO, João. Homens de grossa aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do rio de janeiro (1790-1830). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1992; LENHARO, Alcir. As tropas da moderação. O abastecimento da corte na formação política do Brasil – 1808-1842. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro, 1993.

i Abertura dos portos

Há certo consenso historiográfi co a respeito de que as medidas tomadas pelo príncipe regente, D. João, a partir da vinda da corte portuguesa para o Brasil, em 1808, acabaram por conduzir à independência do Brasil. A primeira medida, talvez a

de maior impacto, foi a denominada “Abertura dos portos brasileiros às nações amigas”, tida como inevitável, na época, por estar Portugal com seu comércio ultramarino interrompido pela ocupação napoleônica, motivo, aliás, da decisão da corte de se transferir para o Brasil. Nesse momento, o Brasil era a principal fonte de receita da metrópole, tanto para a corte quanto para comerciantes e demais segmentos econômicos. A chegada da coroa portuguesa ao Brasil, portanto, tornava imprescindível que se mantivesse sua principal fonte de receitas: as rendas derivadas das alfândegas.

Os termos da carta régia de 28 de janeiro de 1808, por meio da qual se abriram os portos às “nações amigas”, foram inspirados por José da Silva Lisboa (futuro visconde de Cairu), orientador da política econômica de D. João no Brasil, simpatizante dos princípios liberais de Adam Smith. Ainda na Bahia, antes mesmo de chegar ao seu destino, o Rio de Janeiro, D. João recebeu representações dos “exportadores da terra” alegando a necessidade de manutenção do comércio externo interrompido pela ocupação napoleônica. Na carta régia endereçada ao vice-rei do Brasil, conde da Ponte, D. João ordenava, em caráter provisório, que, primeiro, fossem admissíveis nas alfândegas do Brasil todos e quaisquer gêneros, fazendas e mercadorias, transportadas ou em navios da real coroa ou em navios dos vassalos, pagando por entrada 24%, e segundo, que não só os vassalos de Portugal, mas também os estrangeiros pudessem exportar para quaisquer portos em benefício do comércio e da agricultura, à exceção do pau-brasil, ou outros produtos estancados, pagando por saída os mesmos direitos já estabelecidos nas respectivas capitanias, suspendendo-se todas as leis, cartas régias,

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19 \A

no alto

Documento da Abertura dos portos.d. joão, príncipe regente. carta ao conde de ponte, admitindo nas alfândegas do brasil toda e qualquer mercadoria estrangeira, ao mesmo tempo que permitia a exportação de produtos da terra, à exceção do pau-brasil, para os países que se conservaram em paz com a coroa portuguesa. bahia, 28 de janeiro de 1808.

ou outras ordens que até então proibiam o recíproco comércio entre o Brasil e os estrangeiros.

Rompeu-se, assim, a base sobre a qual se assentava o domínio metropolitano – o monopólio do comércio. É ponto indiscutível, na historiografi a, que a abertura dos portos benefi ciou a Inglaterra, mentora da transferência da corte portuguesa para o Brasil. Os tratados de 1810 entre Portugal e Inglaterra, que privilegiaram os produtos ingleses com tarifas menores no comércio com o Brasil, iriam consolidar a preeminência inglesa. A abertura dos portos, apesar de seu caráter emergencial, manteve-se mesmo após a expulsão dos franceses do território português, em 1809. Segundo Caio Prado Júnior, não teria sido possível voltar atrás, sobretudo pelos interesses de ingleses e de comerciantes e produtores

do Brasil. Os grandes lesados foram os negociantes portugueses.

Contudo, um ponto posteriormente questionado pela historiografi a diz respeito à real existência do monopólio metropolitano em todo comércio do Brasil com o ultramar, tido como inquestionável nas obras clássicas de Caio Prado Júnior e Fernando Novaes, por exemplo. As relações comerciais diretas entre a Bahia e a Costa da Mina e entre Rio de Janeiro e Angola,

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[ 20 Ano tráfi co de escravos, que permaneceram após a independência, seriam demonstrações cabais de que o monopólio português sobre as transações comerciais não era exercido de maneira absoluta. Portanto, muito antes da abertura dos portos, os negociantes residentes no Brasil assumiram rotas que estiveram, por muito tempo, controladas pelos mercadores portugueses.

Sheila de Castro Faria

Remeter:D. João VI, Emancipação política, Rodrigo de Souza Coutinho, Tratados de 1810

Bibliografi a: ALENCASTRO, L.F. de. O trato dos viventes. São Paulo: Companhia das Letras, 2000; FRAGOSO, João Luís Ribeiro. Homens de grossa aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1992; PRADO JÚNIOR, C. História econômica do Brasil. (1945). 22a. ed. São Paulo: Brasiliense, 1979; SIMONSEN. R. História econômica do Brasil. 1500-1820. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1937.

i Academia de Belas-Artes

Anos após o estabelecimento da corte portuguesa, D. João contratou artistas franceses para aprimorar o ensino das artes no Rio de Janeiro. Esse grupo seria denominado de Missão Artística Francesa, ou “colônia de artistas franceses”. Idealizada pelo ministro de Estado Antonio de Araújo de Azevedo, o conde da Barca, a missão priorizava as artes úteis e a criação de uma Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios. Para reunir os artistas, o ministro foi auxiliado pelo embaixador extraordinário de Portugal, junto à corte de Luís XVIII, o marquês de

Marialva. Seguindo a indicação do naturalista prussiano Alexander Von Humboldt, o mencionado marquês escolheu Joaquim Lebreton para liderar o grupo e indicar os demais artistas. Inspirado na Academia de las Nobles Artes do México, ele planejava criar uma escola que desenvolvesse, ao mesmo tempo, o ensino do desenho e dos ofícios.

Para a escola, Lebreton destacava, particularmente, o ensino da pintura histórica, sem descuidar da pintura de paisagens, costumes, frutas, fl ores e animais. A partir do decreto de 12 de agosto de 1816, era fundada a Escola Real das Ciências, Artes e Ofícios, composta de pintores, escultores, músicos e engenheiros. O grupo enfrentaria o desafi o de ensinar as artes no molde neoclássico e pedagógico francês, contrariando a tradição barroca portuguesa. De fato, a instituição permaneceu no papel por muito tempo. A morte do conde da Barca, problemas fi nanceiros e políticos provocaram o atraso no início dos trabalhos da escola. Ainda que de forma precária, suas atividades somente tornaram-se realidade em 1820. De outubro a novembro do mesmo ano, a escola recebeu o nome de Real Academia de Desenho, Escultura e Arquitetura Civil; entre novembro de 1820 e 1824, chamar-se-ia de Academia de Belas-Artes; desta data até 1891 seria Academia Imperial de Belas-Artes.

O longo período entre a chegada da missão francesa e o funcionamento efetivo da Academia permanece uma questão controversa na historiografi a. Inicialmente, os debates se concentravam nas negociações entre o governo português e Joaquim Lebreton. Seria Lebreton, realmente, um convidado do governo de D. João, ou os artistas franceses que tinham servido a Napoleão, desejavam livrar-se de eventual perseguição do governo de Luis XVIII? À época do suposto convite, Lebreton era

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21 \Aex-secretário, recém-demitido, da Classe de Belas-Letras do Instituto de França e via na criação de uma escola no Rio de Janeiro a oportunidade para continuar suas atividades. Seria mais prudente, portanto, fazer confl uir as duas hipóteses e pensar que o francês sabia da intenção dos portugueses quando se lançou no empreendimento.

Para o historiador Afonso de E. Taunay, a trajetória política de Lebreton e de sua equipe, na França de Napoleão, atuou de forma decisiva para fortalecer o grupo contrário ao estabelecimento da Academia nos moldes franceses. Uma guerra sem trégua contra os bonapartistas era liderada pelo diplomata francês na corte de D. João VI, o cônsul-geral Maler. Para além do representante da monarquia francesa restaurada, as autoridades austríacas alertaram o soberano português para o perigoso contingente francês estabelecido

embaixo

Academia de Belas-Artes, de Debret.in: “voyage pittoresque et historique au brésil...”, 1835.

em uma terra nova e indefesa. Ao analisar o malogro da missão, o estudo de Almeida Prado destacou como a sociedade carioca era impermeável ao talento artístico de pintores e arquitetos franceses. Para construir a Quinta da Boa Vista e a Fazenda de Santa Cruz, a nobreza lusitana preferia profi ssionais portugueses e ingleses, em vez do renomado Grandjean de Montigny.

Com o decreto promulgado em 23 de novembro de 1820, iniciaram, de fato, as aulas de desenho, escultura e gravura. Atuariam na instituição de ensino não apenas os franceses, mas todos os “fi éis vassalos que se distinguissem no exercício

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[ 22 Ae perfeição das referidas artes e as mais pessoas que forem necessárias para ensino”. Em seguida, um novo decreto criava a fi gura do professor pensionário e indicava, de forma velada, um pintor português no cargo de diretor da Academia. Para Afonso de E. Taunay, o diretor Henrique José da Silva era um pintor medíocre, protegido do ministro Targini. Embora administrado pelo português, o ensino das artes na Academia era objeto de disputa com os franceses, mesmo depois do falecimento de Joaquim Lebreton, em 1819.

À época, um plano ofi cial para a Academia, baseado no ensino de desenho praticado em Lisboa, foi duramente refutado pelos franceses. A contenda estava evidente no manifesto assinado pelos artistas remanescentes da missão, intitulado “Projeto do plano para Academia Imperial das Belas-Artes do Rio de Janeiro”. Datado de 1824, ele sintetiza as principais controvérsias entre franceses e luso-brasileiros, desde a fundação da Academia. Ao repudiar o plano francês e defender o ofi cial, Silva asseverava que o primeiro não era uma produção do corpo acadêmico, “como falsamente se afi rma na dedicatória e introdução”. Para redigir, os artistas franceses não solicitaram a cooperação e as opiniões dos demais componentes. Em um livreto de 1827, Silva denunciava este trabalho como obra exclusiva dos professores franceses da Academia, liderados por Debret e Grandjean de Montigny. Eles planejavam aniquilar os Estatutos da Academia e repudiar a liderança do pintor português. Esses debates envolvendo franceses e portugueses, entre o neoclássico e a tradição artística lusa, atrasaram a efetiva contribuição da Academia de Belas-Artes para o aperfeiçoamento do ensino artístico no período joanino. A instituição somente atuaria de modo efetivo depois

da independência e receberia um prédio próprio em 1826.

Ronald Raminelli

Remeter: Antonio de Araújo de Azevedo, Artes plásticas, Joaquim Lebreton, Missão francesa

Bibliografi a: FERNANDES, Cybele Vidal. Os caminhos da arte. Tese de doutorado em História Social defendida no IFCS/UFRJ, Rio de Janeiro, em 2001. PRADO, J.F. de Almeida. O malôgro da missão artística. In: História da formação da sociedade brasileira. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1968; TAUNAY, Afonso de E. A missão artística de 1816. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1983; SILVA, Henrique José da. Reflexões abreviadas. Rio de Janeiro: Imperial Typographia de P. Plancher, 1827.

i Academial Real dos Guardas-Marinha

A Academia Real dos Guardas-Marinha foi criada em 1782, em Lisboa, destinada à formação de ofi ciais “hábeis e instruídos” para Armada Real. Suas atividades, contudo, foram iniciadas em 24 de março de 1783 na Casa de Formas do Arsenal de Marinha. Em 1796, foram redigidos seus estatutos, que vigoraram até 1858. A Companhia de Guardas-Marinha e sua Real Academia transferiram-se para o Brasil, acompanhando a família real, em 1807.

O decreto de 1782, ao restabelecer a Companhia de Guardas-Marinha, não mencionava a criação de uma academia específi ca destinada à formação de futuros ofi ciais. No entanto, foi criado um espaço para esses profi ssionais, dedicado ao estudo das ciências matemáticas e da arte

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23 \Ade navegar. A ênfase dada aos estudos matemáticos decorreu de estes terem sido consagrados e institucionalizados pela reforma pombalina, proporcionando não apenas um raciocínio sólido e metódico, mas também auxiliando o homem em uma série de artes consideradas úteis e necessárias ao Estado. Deve-se incluir, nessas “artes úteis”, a “arte militar”, composta pelos conhecimentos necessários às funções específi cas dos ofi ciais de terra e mar, tais como manobras e percursos da pilotagem, operações práticas de campanha e da Marinha, além da arquitetura naval e militar.

Entre as exigências para ser admitido à Academia estava a obrigatoriedade de se ter entre 14 e 18 anos de idade, embora nem sempre respeitada. Para que o candidato fosse aceito contava, também, ser fi lho de ofi cial de marinha de patente superior a capitão-tenente ou a sargento-mor (Exército). Embora esse decreto permitisse a incorporação dos candidatos que mostrassem “maior aplicação e habilidade” nos exames, o privilégio de nascimento era condição necessária. Todavia, dois decretos baixados em 1800 e 1801 puseram fi m a essa possibilidade, consolidando a exigência do foro de fi dalgo. Em 1788, surgiu a graduação de aspirante a guarda-marinha, institucionalizando a prática recorrente de chamar de aspirante os alunos do primeiro ano matemático. A partir de então, o posto de aspirante tornou-se condição à nomeação a guarda-marinha. As condições para ser admitido como aspirante eram as mesmas mencionadas no decreto de 1782, exceto quanto à idade exigida, que passou a ser entre 12 e 16 anos.

Parte importante do curso, os embarques de destacamentos ou viagens de instrução eram exigidos como condição para promoção. O Regulamento provisional para serviço e instrução dos destacamentos dos guardas-marinha embarcados [...], de

abril de 1783, estatuía sobre a disciplina a bordo e a instrução a ser ministrada aos alunos (pilotagem, aparelho, artilharia, construção, calafeto e manejos de armas de mão – brancas e de fogo). Inicialmente, os embarques eram feitos no começo do curso, sendo transferidos para o fi nal do primeiro ano a partir de 1788, como condição para promoção de aspirante ao posto de guarda-marinha. A partir de 1799, a exigência de embarque passou para o fi nal do terceiro ano, tornando-se exigência para promoção a graduação de 2º tenente. Observe-se que os embarques foram irregulares, pelo menos até 1807, e que durante as guerras napoleônicas houve embarques demorados com alunos participando de algumas campanhas.

Com os estatutos de 1796, confi rmou-se o que já se praticava na Academia, inclusive a preocupação com a aplicação prática da teoria ministrada. Tratava-se de um curso matemático de três anos de duração, ao fi nal dos quais eram realizados exames. O corpo docente seria composto de três lentes de matemática, sendo dois substitutos, um lente de artilharia, além de dois mestres: um de aparelho e outro de construção naval prática e desenho. Aos lentes e substitutos caberiam todos os privilégios, indultos e franquezas concedidos aos lentes da Universidade de Coimbra. Para matricular-se, além das condições do decreto de 1788, exigia-se a idade mínima de 15 anos, saber as quatro primeiras operações de aritmética e a língua francesa, além da ausência de defeito físico. Ao fi nal do terceiro ano, uma vez aprovados, eram considerados habilitados para o posto de 2ºs tenentes da Real Armada. Enquanto não fossem promovidos, fi cavam isentos dos exercícios acadêmicos e sujeitos apenas aos serviços da Companhia. Os estatutos instituíam também que aqueles que tivessem cursado a Academia teriam preferência

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[ 24 Anas promoções, exceto quando os “ofi ciais rotineiros” (sem curso acadêmico) fossem aprovados nos exames das matérias dadas na Academia ou possuíssem notória “conduta, ciência e prática do mar”.

Em 1802, a Academia foi dotada de uma biblioteca, estabelecendo-se um depósito dos escritos marítimos dos autores portugueses. Embora, quando já no Brasil, tenha-se cogitado franquear seu acesso ao público, este coube aos ofi ciais da armada, lentes e alunos, sendo que estes últimos somente podiam consultar as obras mediante autorização formal prévia. O privilégio do empréstimo de obras foi concedido apenas aos docentes. Em 1812, foi elaborado o Catálogo sistemático da Biblioteca da Companhia dos Guardas-Marinha, por ordem do capitão de Mar-e-Guerra José Maria Dantas Pereira, com a fi nalidade de revelar o que havia, entre livros e manuscritos, o que se carecia, além do propósito de “guiar o estudante ao pronto conhecimento [...] das obras que mais lhe convirá consultar”. Compunham seu acervo manuscritos importantes vindos da Torre do Tombo, como a carta de Pero Vaz de Caminha comunicando o descobrimento do Brasil e impressos variados, classifi cados quanto à sua natureza: ciências naturais, ciências matemáticas, ciências e artes navais, ciências e arte militares de terra.

Embarcada na nau Conde D. Henrique, a Companhia e sua Academia chegaram ao Rio de Janeiro em janeiro de 1808. A Academia foi instalada nas dependências do mosteiro de São Bento, na ilha das Cobras, onde permaneceu até 1839, embora tenha funcionado no largo de São Francisco de 1832 a 1833, quando incorporada à Academia Militar. Uma vez instalada, iniciou suas atividades, abrindo vagas ao público e matriculando civis, ditos “paisanos”, que

estudavam matemática para exercerem outras atividades.

Em 1821, por ocasião do regresso de D. João, continuou a Academia a funcionar normalmente, recebendo seu comandante instruções de Lisboa para regressar, juntamente com a sua biblioteca, em janeiro do ano seguinte. Proclamada a independência, três professores e alguns alunos obtiveram licença para retornar a Portugal, permanecendo no Rio de Janeiro a Academia e sua biblioteca sem interrupção nas suas atividades. Sabe-se, no entanto, que parte dos manuscritos presentes na biblioteca voltou para Portugal, inclusive a carta de Caminha.

Lúcia Bastos P. das NevesElaine C. Duarte

Remeter: Academia Real Militar, D. João VI, Milícias

Bibliografi a: ALBUQUERQUE, Antônio Luiz Porto e. Da companhia dos guardas-marinha e sua real academia à escola naval, 1782-1982. Rio de Janeiro: Escola Naval, 1982. A companhia dos guardas-marinha e sua real academia. Rio de Janeiro: Arquivo Geral da Marinha, 1982; COSTA, Augusto Zacarias da Fonseca. Esboço histórico da academia de marinha desde a sua fundação e da companhia de aspirantes e guardas-marinha: acompanhado dos regulamentos vigentes na escola de marinha. Rio de Janeiro: Tipografia do Imperial Instituto Artístico, 1873; COSTA, Fernando Marques da (org.). Do antigo regime ao liberalismo, 1750-1850. Lisboa: Veja, s/d.; SILVA, Maria Beatriz Nizza. A cultura luso-brasileira: da reforma da universidade à independência do Brasil. Lisboa: Estampa, 1999.

i Academia Real Militar

A Academia Real Militar foi instituída por decreto do príncipe regente D. João em 4 de dezembro de 1810, na cidade do Rio de Janeiro, para a “mais perfeita instrução dos

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25 \Aofi ciais do seu Exército”, como expressou sua carta de criação. Foi projetada para ser a primeira instituição destinada a um curso completo das ciências matemáticas e de observação (física, química, mineralogia, metalurgia e história natural), além das ciências militares propriamente ditas (tática, fortifi cação, estratégia, castramentação, ataque e defesa de praças e artilharia).

Essa concepção de academia surgiu entre a segunda metade do século XVIII e o início do século XIX, quando a ciência inaugurou um novo modelo cultural, assentado na idéia de utilidade e aplicação ao real. Espaços de formação científi ca, as academias militares possibilitaram a formação de um novo tipo de ofi cial através de currículos e diretrizes pedagógico-científi cos que eram porta-vozes desse novo modelo cultural, resultante da fusão da matemática e da física sob uma perspectiva prática.

Favorecida por toda uma conjuntura, propiciada pela instalação da corte portuguesa no Rio de Janeiro, a Academia Militar possibilitou a consolidação do ensino militar e de engenharia no Brasil. Inaugurada em 23 de abril de 1811, na Casa do Trem de Artilharia – hoje Museu Histórico Nacional –, foi transferida para o largo de São Francisco em 1812, em função dos exercícios práticos previstos em seus estatutos. Foi até 1874 o único estabelecimento de ensino superior de engenharia do Brasil, quando foi criada a Escola Politécnica.

A criação da Academia Militar, bem como seus primeiros estatutos, foi projeto de Rodrigo de Souza Coutinho, conde de Linhares, ministro de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra entre os anos de 1808 e 1812. Ao assumir a pasta da Guerra, em meio à invasão francesa em Portugal, D. Rodrigo não tardou em colocar em prática suas metas de prover o império

português de um exército profi ssional. Segundo J. Motta, o conde de Linhares acreditava no papel central desempenhado pelas lideranças esclarecidas, colocando a formação profi ssional do ofi cialato como peça básica da estrutura militar.

Os estatutos da Academia previam um curso de sete anos, sendo os primeiros quatro anos dedicados ao estudo das ciências matemáticas e naturais e os últimos três anos voltados à arte militar e à engenharia. Note-se que o curso completo era obrigatório apenas aos futuros artilheiros e engenheiros. Entre as novidades constantes nos estatutos, encontrava-se a importância atribuída à aplicação aos estudos, ao talento e ao mérito pessoal.

Sob a inspeção geral do ministro da Guerra, a direção desse estabelecimento de ensino foi submetida a uma Junta Militar, a qual coube a admissão dos alunos, a determinação do tempo e da forma dos exames, a escolha dos professores, assim como as questões econômicas e disciplinares. Para ingressar no primeiro ano da Academia era necessário que os candidatos dominassem as quatro primeiras operações matemáticas e tivessem, no mínimo, 15 anos de idade. O seu universo discente foi bastante heterogêneo por quase todo o século. Já nos seus primeiros anos, verifi cou-se a presença de civis, chamados “paisanos” – que, geralmente, seguiam o curso de engenharia, recebendo ao fi nal o diploma de engenheiro civil –, e de ofi ciais de patentes variadas.

O corpo docente era constituído por “lentes” proprietários e substitutos, os quais receberiam as mesmas honras e graças concedidas aos professores das Academias da Marinha e do Exército de Lisboa. Da mesma forma, seriam eles agraciados com “todos os privilégios, indultos e franquezas”, desfrutados pelos lentes da Universidade de Coimbra. Os

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[ 26 Aprofessores tinham como obrigação não somente traduzir as obras indispensáveis ao curso, como também elaborar compêndios e atualizarem-se, permanentemente, em sua área de especialidade.

Em sua estrutura, a Academia disporia de um observatório, um gabinete mineralógico, um gabinete de física, um laboratório de química e uma casa para guardar os instrumentos. Fazia-se, ainda, menção à formação de uma biblioteca científi ca e militar. Somente no fi nal da década de 1840, contudo, foi possível verifi car um esforço signifi cativo no sentido de dotar a Academia de uma biblioteca capaz de atender às necessidades da instituição.

Os estatutos da Academia, em relação aos exercícios práticos, deliberavam sobre sua importância, mas não determinavam nem o momento, nem o tempo de duração desses exercícios. Diziam apenas que os lentes eram obrigados a saírem “ao campo” com seus alunos para aplicar, na prática, a teoria que lhes ensinavam em sala. De fato, os exercícios práticos estiveram muito aquém do pretendido pelos estatutos até meados do século XIX, e a questão da insufi ciência desses exercícios conduziu a Academia a uma série de reformas em seus estatutos, ocorridas entre os anos de 1832 e 1845, as quais incidiram principalmente sobre as questões disciplinares e o ensino prático-profi ssional.

Em seus primeiros anos de existência, a Academia Real Militar participou de dois momentos importantes da história do Brasil, em 1817 e 1821. Por ocasião da Revolução Pernambucana, muitos alunos trancaram suas matrículas e professores deixaram suas funções para integrar as forças enviadas contra os revoltosos. Pouco mais tarde, foi a vez da independência alterar a rotina da instituição. Há notícia da participação ativa de alguns de seus

professores integrando a Assembléia e, sobretudo, atuando na imprensa combatente. Entre eles estavam: Manuel Ferreira de Araújo Guimarães, que participou da redação da Gazeta do Rio de Janeiro (1813-1821) e do jornal O Patriota (1813-1815) e, em meio ao movimento constitucionalista, publicou o Espelho (1821-1823) e o folheto Um cidadão do Rio de Janeiro à Divisão Auxiliadora Lusitana (1821); Antônio José do Amaral, que participou ativamente das manifestações a favor da liberdade em 1821 (Rossio e praça do Comércio); e José Saturnino da Costa Pereira, deputado e, mais tarde, senador do império. Quanto aos alunos, embora não haja registros sobre uma participação ativa destes, questiona-se se teriam fi cado alheios ao que ocorria em seu entorno, considerando o envolvimento de professores e a proximidade entre o largo de São Francisco e o Rossio (palco de comícios político-militares em defesa das idéias liberais em 1821).

Apesar dos esforços do conde de Linhares, o processo de profi ssionalização das forças de terra no Brasil se arrastou por toda a primeira metade do século, recebendo o impulso defi nitivo em 1850, quando foi aprovada a lei que estabeleceu a educação (curso superior das armas), o tempo de serviço e a conseqüente antigüidade como condições essenciais para as promoções.

Elaine C. Duarte

Remeter:Academia Real dos Guardas-Marinha, Milícias, Rodrigo de Souza Coutinho

Bibliografi a: CASTRO, Celso. O espírito militar: um estudo de antropologia social na AMAN. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990; COSTA, Fernando Marques da (org.) Do

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27 \AAntigo Regime ao liberalismo, 1750-1850. Lisboa: Veja, s/d.; MOTTA, Jehovah. Formação do oficial do exército. Currículos e regimes na Academia Militar, 1810-1944. Rio de Janeiro: Bibliex, 1998; SILVA, Maria Beatriz Nizza. A cultura luso-brasileira: da reforma da universidade à independência do Brasil. Lisboa: Estampa, 1999.

i Aclamação

“...E sendo justo que, conforme o uso antigo, costumes destes Reinos, se me faça o juramento, preito e homenagem, pelos grandes titulos, seculares e ecclesiasticos, vassalos e mais pessoas de nobreza: fui servido nomear o dia 6 do mez proximo futuro para esta solemnidade, que se há de celebrar na varanda que para este effeito se mandou levantar no terreiro do Paço.” Assim D. João VI decretou em 28 de janeiro de 1818, anunciando a data de sua aclamação como Rei do Reino Unido de Portugal, Brasil e dos Algarves, d’Aquém e d’Além-Mar em África, Senhor da Guiné e da Conquista, Navegação e Comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e Índia etc. Embora usasse o título de rei desde a morte da rainha sua mãe, D. Maria I, em 20 de março de 1816, esperou quase dois anos para receber o juramento legal, eclesiástico e popular pela sucessão ao trono.

Muitas podem ter sido as razões para adiamento tão grande, embora sejam ainda pouco discutidas e analisadas pela historiografi a brasileira ou portuguesa. Quando chegou ao Brasil, em 1808, D. João era príncipe regente, cargo que ocupava de fato desde 1792 e de direito desde 1799, em virtude do impedimento de sua mãe por problemas de saúde. Entre 1808 e 1818, o Brasil passara de colônia a Reino Unido de Portugal, em 1815, a guerra que assolara a Europa e causara a vinda da família real para a América havia acabado, a rainha morrera

e o Príncipe D. João se tornara D. João VI. Ainda durante esses dez anos D. João vira, em 1817, sua autoridade real desafi ada pelos patriotas pernambucanos e pelos militares liderados por Gomes Freire Andrade em Portugal.

Não é fácil compreender como todos esses acontecimentos e as pressões que passou a sofrer para que voltasse a Portugal desde 1814 se combinaram para retardar a cerimônia, que, conforme o uso antigo, disse o próprio rei, sempre se realizara em momentos de transferência de comando ofi cial da monarquia. Tampouco é claro como, e porquê, depois de tanto tempo, D. João decidiu-se por uma festa tão grandiosa, cara e inusual para um caráter discreto e introspectivo como parece ter sido o seu e para a monarquia que era considerada uma das mais pobres da Europa. Os relatos da cerimônia de aclamação nos quais se baseiam os historiadores mais antigos são de Bernardo Avelino de Souza e de Luiz Gonçalves dos Santos, o padre Perereca, produzidos respectivamente em 1818 e 1825. Ambos enfatizam o riqueza e o esplendor dos festejos que, minuciosamente preparados, deveriam representar a grandeza do poder do primeiro rei aclamado na América, evento extraordinário para europeus e americanos.

Houve um Plano das ordens que seriam executadas no dia do cerimonial de aclamação de D. João, elaborado pela Mordomia-Mor da Casa Real, que consta como guardado sem data no Arquivo Nacional, que previa o dia 6 de janeiro e não de fevereiro para a festa e pode muito ter sido preparado para celebrar a cerimônia em 1817. Segundo o padre Luiz Gonçalves o rei teria decidido esperar um ano para a festa, para não “misturar as lágrimas” de tristeza pela morte da mãe com as de júbilo pela aclamação. Mas, além dessa decisão, outro

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[ 28 Aacontecimento dramático teria contribuído para novo adiamento, segundo o mesmo relato: a notícia da tomada de Recife por grupo contrário à autoridade real, “proclamando a liberdade dos jacobinos”. Embora o movimento tenha sido debelado “rapidamente” e “com facilidade”, feito ruidosamente comemorado nas ruas do Rio de Janeiro com brados de “Viva El-Rei”, mais nenhuma palavra é dita pelo padre para explicar por que não teria D. João aproveitado esse momento de glória para realizar a festa de aclamação em 1817.

Oliveira Lima, autor de livro célebre sobre a presença e o governo de D. João VI no Brasil, repete as razões indicadas pelo padre Perereca e agrega difi culdades políticas criadas em Portugal para a realização de tão importante cerimônia no Brasil. A insatisfação dos portugueses, que reclamavam a volta da família real e sentiam-se abandonados pelo monarca, viam na decisão da aclamação na América a confi rmação da inaceitável inversão da relação metrópole-colônia. Essa resistência provavelmente adiou o envio de deputados dos reinos de Portugal e Algarves, que insistiam na impossibilidade da aclamação sem a presença das cortes em ato de tamanha importância.

O histórico das cerimônias de aclamação dos reis portugueses impede que aceitemos a justifi cativa da morte da rainha como causa primeira do adiamento da investidura solene de D. João VI. O famoso ditado “rei morto, rei posto” tinha o sentido político importante de manter a continuidade da dignidade real, que sobrevivia à morte humana de um rei, mas não de sua dinastia e linhagem. Exatamente por isso tornavam-se tão problemáticas as crises sucessórias decorrentes da ausência de herdeiros legítimos ou inquestionáveis, o que não era o caso de D. João. Por outro

lado, a solenidade de reconhecimento de um rei tinha a função de confi rmar a relação indissolúvel entre a cabeça – o rei – e o corpo do reino, reatualizando o caráter místico e sagrado dessa união. O adiamento dessa celebração parece indicar a frágil coesão desse corpo, e simbolicamente tinha grande signifi cado, sobretudo em contexto de franco questionamento dos modelos de monarquia absolutista como era a portuguesa.

Pode-se argumentar que, a rigor, D. João governava Portugal desde 1792, e que no Brasil chegara como príncipe regente, tornando talvez a cerimônia um tanto redundante. No entanto, quando decidiu realizá-la, não poupou esforços e reiteração da carga simbólica da representação, usando para isso a melhor colaboração artística disponível no Rio de Janeiro à época. Com a derrota de Napoleão e a morte de D. Rodrigo de Souza Coutinho em 1812, ascendera à posição de destaque no governo o conde da Barca, Antonio de Araújo de Azevedo, francófi lo desde sempre, o que provavelmente concorreu para a reaproximação de D. João com os franceses. Exemplo desse novo momento foi a chegada da Missão Francesa à cidade em 1816, parte do projeto do conde de criar uma academia de ciências, belas-artes e belas-letras na capital do Reino Unido. O chefe da missão, Joaquim Lebreton, trouxe consigo artistas que participaram diretamente da cerimônia de aclamação, como o arquiteto Grandjean de Montigny, o pintor Jean Baptiste Debret e o escultor Auguste-Marie Taunay.

O Paço transformou-se em uma praça imperial, na qual Montigny ergueu um templo de Minerva, que além da estátua da deusa abrigava outra de D. João, e um arco do triunfo foi desenhado por Debret e projetado por Taunay. Cada lado do arco continha colunas da ordem coríntia com

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estátuas de Minerva e Ceres, representando a sabedoria e a prudência do rei, além da fartura da terra. No arco estava encenado, à direita, o desembarque de D. João, amparado pela América e recebendo as chaves da cidade. À esquerda o rei recebia as homenagens das Artes e Comércio, em reconhecimento pelos favorecimentos de D. João, intitulado Libertador do comércio, no friso que encimava as armas do Reino Unido no centro do arco, gravado com J.VI. No meio da praça havia um obelisco, de mais de cem palmos de altura e “ à imitação das agulhetas do Egito”, que “fi ngia ser de granito”.

A cerimônia iniciou-se no Paço com a descida do rei para a varanda do palácio especialmente preparada para a ocasião. A sacada real ocupava toda a frente do palácio e acabava no átrio da Capela Real, onde o rei, tendo diante de si o infante D. Miguel e o príncipe Pedro, acompanhado dos grandes

do reino, bispos e ofi ciais, todos com suas insígnias, ministros e o secretário de Estado do Reino. Quando D. João entrou na varanda – vestido do manto real de veludo vermelho, bordado em ouro, e trazendo à cabeça um chapéu com plumas brancas – os menestréis tocaram as charamelas, as trombetas e os tambores, recebendo vivas e aplausos do povo que assistia da rua. O rei dirigiu-se à cadeira real, onde recebeu na mão direita o cetro de ouro em uma rica salva dourada das mãos do visconde de Rio Seco, dando início à etapa mais importante: o juramento.

Este obedeceu a rigoroso ritual, no qual o secretário de Estado Tomás

no alto

Acclamation Du Roi Dom Jean VI (à Rio de Janeiro).in: “voyage pittoresque et historique au brésil...”, 1835. litografia de debret.

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[ 30 AVilanova Portugal autorizou a entrada do desembargador do Paço, que anunciou: “Ouvi, ouvi, ouvi, estai atentos”. Depois de recitar uma “bela oração” e se retirar, teve lugar a parte religiosa da solenidade, quando o bispo capelão-mor recebeu dos mestres de cerimônias da Real Capela o missal aberto, e sobre ele o crucifi xo de prata, os dois depositados sobre uma mesa próxima ao rei. Para fazer o juramento, o rei se ajoelhou em uma almofada, mudou o cetro para a mão esquerda e pôs a mão direita sobre a cruz e o missal, e, conforme as palavras lidas pelo secretário de Estado, jurou diante do bispo capelão-mor. De volta ao trono real, o rei assistiu ao juramento do príncipe D. Pedro, que em seguida beijou a mão do rei, o mesmo fazendo o infante D. Miguel. Encerrada essa etapa, a bandeira real foi desenrolada pelo alferes-mor, e o rei de armas convidou os nobres e grandes senhores a prestar o juramento, assim como os títulos eclesiásticos e seculares, ministros de tribunais, fi dalgos e demais nobres. Depois de aceito pelo rei o juramento dos vassalos, o alferes-mor bradou: “Real, Real, Real, pelo Muito Alto, e Muito Poderoso Senhor Rei D. João VI Nossso Senhor”, repetido por todos ao mesmo tempo que soavam os instrumentos.

A festa se espalhou pelas ruas e teve no Campo de Santana outro pólo importante. Um palacete de madeira foi erguido para abrigar sua majestade e a família real e transformou-se no centro do segundo dia dos festejos, reservado às manifestações populares. Os soldados dos batalhões fi zeram evoluções, seguidos dos dançarinos do Real Teatro, além de corrida de touros. No dia 8 a real família e o soberano voltaram ao palacete, de onde assistiram a uma queima de fogos, cujo ponto culminante foi a expressão Viva El Rei iluminada no céu, e o rei recebeu,

segundo Oliveira Lima, para a cerimônia do beija-mão.

Para além do templo, dos arcos, dos palacetes e dos fogos, a iluminação foi um capítulo à parte, destacado por todos os cronistas. No Campo de Santana, Oliveira Lima cita 102 pirâmides luminosas, com brilho e gosto sufi cientes para “fazer pensar nas Tulherias e nos Campos Elíseos quando iluminados”. Houve verdadeira disputa entre corporações, repartições e particulares na elaboração das iluminações, e uma só casa teria se enfeitado com 6 mil lampiões!

A magnanimidade da festa procurou estar à altura da bondade do rei, que concedeu o perdão para vários dos acusados nas insurreições de Pernambuco em 1817, mas não para seus líderes, assim como o privilégio da aposentadoria para aqueles que tivessem servido na Câmara em demais cargos, e ainda concedeu o tratamento de Senhoria à Câmara do Rio de Janeiro, “que além de ser a Capital do Reino Unido do Brazil, teve a honra de assistir à Minha Gloriosa Coroação…”.

Não pode passar sem comentário a expressão coroação usada por D. João para se referir à sua aclamação, pois em todo o ritual não só não aparece a coroa, como D. João se apresenta de chapéu para a cerimônia e saúda o povo com ele. Ao considerar a solenidade de investimento do título de rei como coroação, terminou por confundir os historiadores e cronistas, pois mesmo em relatos minuciosos como o do padre Perereca, que cita apenas o cetro e o missal, podem-seencontrar expressões como a de que D. João“cingiu a coroa”, mesmo que em suas memóriaso coroamento do rei não apareça.

Debret, que produziu quadros da aclamação, em nenhum momento representa D. João de coroa, alegando que “o soberano só usou o uniforme de gala no dia de sua aclamação, ainda assim sem a

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31 \Acoroa em virtude do costume estabelecido desde a morte de D. Sebastião na África, em 1580. D. Sebastião, dizem, foi levado ao céu de coroa à cabeça e deve trazê-la novamente a Lisboa. Por isso foi colocada ao lado de D. João VI, sobre o trono…”. Não, nem D. Sebastião morreu em 1580, mas sim em 1578, nem foi coroado, pois os reis portugueses não eram coroados nem sagrados como os reis franceses e ingleses. Eram alevantados ou aclamados, participando a coroa como um símbolo do ritual, mas não adornando a cabeça dos monarcas. Os reis portugueses postularam o direito à coroação junto ao papa desde o XV, mas nunca obtiveram resposta positiva. Nem por isso o rei deixava de se referir a seu poder como a coroa real, embora não a usasse, como aconteceu com D. João.

Primeiro rei aclamado na América, D. João, considerado retraído e pouco atento às urgências de seu tempo, custou, de fato, a ser entronizado ofi cialmente, causando talvez um embaraço inédito de monarca legítimo que se manteve sem ser confi rmado no cargo. Por outro lado, quando o fez, não economizou na ritualização, que por até oito meses seguintes replicou em diversos lugares do Brasil. Os organizadores da confi rmação real com toda pompa e circunstância possíveis não descuidaram da carga simbólica de cada passo. A data foi negociada com o papado para que fosse no dia das Chagas de Cristo – quando dor e morte podem ser sinais de redenção –, imagens representam a “América largando o cocar, e em ação de pôr a Coroa Real na cabeça”, passiva, leal e obediente; a África oferecia suas riquezas para a grandeza do Reino Unido.

Para sustentar as despesas dos festejos envolveram-se todos os que entendiam a importância de D. João para a consolidação dos interesses americanos. A Junta de

Comércio foi responsável pela construção do arco do triunfo, enquanto o Senado da Câmara fi nanciou o templo e parte da elite providenciou a iluminação, além do empenho pessoal de vários particulares para a grandeza da festa.

Do outro lado do Atlântico, no entanto, as reações foram opostas. A insistência para a volta do rei não cessaram e as idéias de separação de Portugal e Brasil começavam a despontar. Em 1819, José Liberato, em carta aberta a D. João, ameaçava: “…porque sem povo não há Trono nem Coroa, quando pode haver, e tem havido, povo sem haver Trono ou Coroa”. A escolha do Brasil custaria caro ao primeiro rei aclamado no Novo Mundo.

Jacqueline Hermann

Remeter: Auguste M. Taunay, D. João VI, Festas, Grandjean de Montigny, Jean Baptiste Debret

Bibliografi a: CALMON, Pedro. O rei do Brasil. Vida de D. João VI. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1935; LIMA, M. de Oliveira. D. João VI no Brasil. (1908). 3a edição. Prefácio de Wilson Martins. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996; SANTOS, Luiz Gonçalves dos (Padre Perereca). Memórias para servir à história do reino do Brasil. (1825). Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo, Ed. da Universidade de São Paulo, 1981; SOUZA, Bernardo Avelino F. e. Relação dos festejos que a feliz acclamação do muito, muito poderoso, e fidelissimo Senhor D. João VI. Rio de Janeiro: Impressão Regia, 1818. SOUZA, Iara Lis Carvalho. Pátria coroada. O Brasil como corpo político autônomo. 1780-1831. São Paulo: Unesp, 1999.

i Administração joanina

Para analisar o estado joanino no Brasil, é necessário identifi car o que existiu efetivamente entre as duas balizas

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[ 32 Ainstitucionais que o delimitaram – o estado colonial tout court e o estado da independência. Assim, serão aqui consideradas sua estrutura, as políticas/ações que lhe marcaram a dinâmica e os pontos de continuidade e descontinuidade em relação ao momento anterior.

As evidências apontam para a constatação de que o estado joanino não foi mera continuação do colonial, quer em 1808, quando da instalação da corte no Rio de Janeiro, quer em 1815, quando da criação do Reino Unido. Admitida essa premissa, pode-se indagar se se trata de um novo estado constituído no Brasil, de um transplante de instituições metropolitanas ou de uma situação intermediária entre esses dois pólos.

A historiografi a referente ao período no ângulo aqui considerado pode ser categorizada em quatro vetores mais signifi cativos. A reprodução das instituições portuguesas no Brasil teve em Francisco Adolfo de Varnhagen e Manuel de Oliveira Lima seus maiores defensores. Ecoando uma crítica contemporânea de Hipólito José da Costa, jornalista radicado em Londres, que protestara contra o fato de os órgãos públicos terem sido transferidos para o país como que copiando o Almanaque de Lisboa, Varnhagen, na História geral do Brasil criticou o “plágio” das instituições portuguesas, lamentando a ausência de uma política mais ilustrada, que instalasse na colônia a Universidade, desenvolvesse o estudo das engenharias e criasse um ministério da colonização, para a distribuição de terras públicas e o estímulo à imigração. Oliveira Lima sublinhou também a “cópia” das instituições, embora reconhecendo o “desafogo” da situação para o Brasil, que, com a vinda da corte, perdera a condição colonial. Variante dessa perspectiva é a de Raimundo Faoro,

para quem a reprodução ocorreu pela incapacidade da monarquia estamental de organizar política e administrativamente o Estado, apoiando os interesses dos proprietários rurais de Minas Gerais, de São Paulo e do Rio de Janeiro.

A inversão brasileira, expressão cunhada por Silvio Romero, viu na transferência da sede das instituições portuguesas de Lisboa para o Rio de Janeiro a mutação do vínculo metrópole-colônia, com esta assumindo o papel metropolitano e Portugal o de colônia.Este ponto de vista foi valorizado pelo historiador Rodolfo Garcia em seu estudo sobre a história administrativa colonial. Linha semelhante de raciocínio, embora também contemplando outros aspectos, foi a de Maria Odila Leite da Silva Dias, ao constatar a transferência como uma “interiorização” da metrópole.

Outra perspectiva, declaradamente pró-joanina, foi a de Helio Viana, na qual pela primeira vez foi destacada a renovação administrativa que a sede da capital no Rio de Janeiro teria provocado.

Finalmente, Paulo Otávio Carneiro da Cunha e Maria de Lourdes Viana Lira identifi caram a transferência da corte com a concepção de um novo ou poderoso império. O primeiro, entretanto, não deixou de repetir a expressão de Hipólito da Costa sobre a transposição institucional e sua conseqüente inadequação aos trópicos e ao próprio conjunto dos domínios portugueses.

O desenvolvimento recente dos estudos sobre Estado, governo e administração no Antigo Regime vem apontando a peculiaridade de suas características, que não devem ser avaliadas à luz de critérios burocráticos modernos e racionalizadores (no sentido weberiano) ou morais, numa perspectiva conatural. Recusa-se, assim, a concepção segundo a qual as categorias (inclusive a de corrupção, freqüente desde

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33 \Aos juízos de valor da historiografi a liberal) seriam conceitos absolutos, transhistóricos e transculturais. Desse ponto de vista, é preciso lembrar que o modelo social e político das monarquias do Antigo Regime supunha situações como a venalidade dos ofícios, a concessão de prebendas e a remuneração dos cargos e dos serviços pelos próprios rendimentos que geravam, provocando a existência de relações econômicas e jurídicas diversas das que passaram a existir no mundo criado pela Revolução Industrial e pela Revolução Francesa.

A transferência da corte para o Brasil fez-se num momento histórico de transição, na Europa ocidental, do Estado absolutista para o Estado liberal. A este aspecto deve ser acrescentada a necessária adaptação da máquina pública ao seu novo habitat, no Brasil, quer em relação a este, quer em relação ao conjunto dos domínios, inclusive Portugal.

Por essas diferentes razões, a estrutura e a dinâmica do estado joanino no Brasil apresentaram elementos às vezes contraditórios e quase sempre polêmicos na própria época.

Havia traços de continuidade com a monarquia tradicional, como alguns órgãos e instituições considerados anacrônicos (o modelo alfandegário que favoreceria a corrupção, a Inquisição) e também com o reformismo ilustrado pombalino, que pretendia “tudo nivelar ante o absolutismo”, na expressão do historiador Oliveira Marques. Exemplo deste reformismo foram os planos de D. Rodrigo de Souza Coutinho, a maioria dos quais não saiu do papel, mas que refl etiram o objetivo de chegar a um novo modelo de Estado, desenhado pelo fi gurino estatista anterior à Revolução Francesa.

Havia traços de ruptura tanto com a monarquia tradicional quanto com o

reformismo ilustrado, por exemplo, pela introdução de medidas liberais como a abertura dos portos, a permissão de indústrias ou a autorização a estrangeiros para circularem pelo país; ou pela elevação do Brasil a Reino Unido, modifi cando a estrutura do império, que passava a constituir-se, pelo menos teoricamente, de três reinos – Portugal, Algarve e Brasil – e demais domínios e alterando a organização político-administrativa do próprio Brasil, com a existência de províncias em lugar de capitanias, o que, em tese, as igualava, desaparecendo a distinção secular entre gerais e subalternas.

Existiam descontinuidades, também, na mentalidade de indivíduos e setores, que viam como arcaicas as instituições do Antigo Regime no âmbito político e administrativo. Esse desconforto com as práticas patrimonialistas, sabe-se com o distanciamento que hoje possuímos, não se traduziu num rompimento com o modelo tradicional, nem em 1822, nem posteriormente. Mas se expressou entre os contemporâneos de diferentes modos, mais ou menos conscientizados.

Quanto à estrutura da organização político-administrativa, a cúpula dos órgãos públicos apresentou poucas modifi cações. Foram efetivamente transplantadas para o Brasil repartições estatais como o Erário Régio, o Conselho da Fazenda, a Junta do Comércio, a Mesa do Desembargo do Paço, a Mesa da Consciência e Ordens e a Intendência de Polícia da Corte; outras foram aqui repetidas, como a Casa da Suplicação do Rio de Janeiro, criada com a transformação do Tribunal da Relação. Sob esse ângulo e focando-se o ano de 1808, as críticas de Hipólito da Costa e suas reverberações na historiografi a são justifi cadas. Entretanto, considerando o conjunto do período e da estrutura estatal

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[ 34 A(e não apenas sua cúpula administrativa), ocorreram mudanças relevantes: uma efetiva e crescente centralização político-administrativa no Rio de Janeiro, que não existia antes de 1808, quando as capitanias gerais subordinavam-se diretamente a Lisboa e não à sede onde se encontravam os vice-reis. Pela primeira vez, desde iniciada a colonização, o Rio de Janeiro substituía a capital portuguesa como eixo político do Estado do Brasil; uma equalização das capitanias entre si, eliminando-se, paulatinamente, a distinção tradicional, entre gerais ou principais e subalternas, como aconteceu com as capitanias do Espírito Santo, Santa Catarina, Rio Grande do Norte, Piauí, Alagoas e Sergipe, as duas últimas após a Revolução Pernambucana de 1817, numa clara opção por enfraquecer politicamente Pernambuco. Essa equalização também contribuiu para o reforço da centralização, enfraquecendo a liderança política das capitanias gerais e estimulando novas forças regionais; um relativo adensamento e maior interiorização da justiça, apesar do problema que representava a continentalidade do país. Foram estabelecidas as Relações do Maranhão, em 1812, e de Pernambuco, em 1821, além da – e sobretudo com a – criação de novas comarcas e juizados de fora. Ambos, pela existência de ouvidores e juízes de fora nomeados pelo poder central, representavam maior presença do estado em vastas áreas dominadas pelos “régulos”, como os documentos ofi ciais denominavam as lideranças oligárquicas locais. Apesar da possibilidade sempre presente de cooptação por essas forças, ouvidores e juízes de fora podiam, mesmo limitadamente, representar um contrapeso a elas. De qualquer modo, é certo que deveriam representar, na ótica estatal, o papel que ouvidores (como corregedores) e juízes de fora (como presidentes das câmaras

municipais) desempenhavam havia séculos na metrópole; as juntas do Desembargo do Paço nas capitanias, criadas pelo alvará de 10 de setembro de 1811, deveriam encarregar-se da atribuição de tenças, pensões e outras prebendas. No Brasil colonial essa representação do Desembargo do Paço já ocorria em câmaras constituídas para este fi m nos tribunais da Relação da Bahia e do Rio de Janeiro. A medida era uma forma de acentuar a descentralização e agilizar a decisão dos pleitos, evitando a concentração da atividade em Lisboa e depois no Rio de Janeiro. Ela evidencia o fortalecimento institucional da colônia, com a criação de novos entes estatais, bem como a persistência, do ponto de vista social, da sociedade estamental e dos mecanismos que a relacionavam ao estado monárquico, o verdadeiro sancionador jurídico das situações econômicas (como as pensões) e sociais (como o enobrecimento de direito ou de fato).

Para além das modifi cações na estrutura formal do Estado e de sua implementação, há práticas institucionais e administrativas que merecem registro.

Mesmo sem criar, como desejava Varnhagen, um ministério da colonização e outro de obras públicas, o Estado joanino iniciou uma política de imigração estrangeira, com o estabelecimento de suíços em Nova Friburgo. Alterou também a política secular das sesmarias, admitindo sua concessão a estrangeiros (pré-condição da imigração), exigindo a prévia demarcação ofi cial das terras e criando em cada vila um juizado especial.

Ainda na área econômica, estimulou a siderurgia com a fábrica de Ipanema, em Sorocaba, e criou o Banco do Brasil, propiciando maior volume de recursos fi nanceiros e maior liquidez às transações, substituindo assim soluções empíricas

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35 \Apreexistentes nas praças do Rio de Janeiro e de Salvador. Emblematicamente, apesar de sem maiores conseqüências por diferentes razões, permitiu a atividade manufatureira no Brasil, vedada desde a proibição de 1785. Liberou, também, o comércio exterior, mas foi acusado por Hipólito da Costa de manter as práticas alfandegárias tradicionais: o monopólio da coroa, dizia o jornalista radicado em Londres, estimulava a corrupção e o contrabando e poderia dar lugar ao arrendamento das alfândegas a particulares.

Se na economia o Estado joanino promoveu instituições que implicavam uma discreta inovação – tímidos passos rumo ao liberalismo –, na diplomacia nada se alterou, nem em organização, nem em política. Pelo contrário, reafi rmou-se a tradicional política bragantina no rio da Prata, com a anexação da Banda Oriental, a partir de um pretexto dinástico.

Ainda antes do Reino Unido e refl etindo a insatisfação do monarca e de alguns dos seus conselheiros com a organização política e administrativa do Estado, foram apresentados ao príncipe regente vários planos de reforma, o principal dos quais de autoria de Silvestre Pinheiro Ferreira. Nele previa-se a proclamação de D. Maria I como imperatriz do Brasil, além de rainha de Portugal, com duas regências, a de Portugal e da ilha do Atlântico, a ser entregue ao Príncipe da Beira, e a do Brasil e dos domínios da África e Ásia para D. João. Sugeria-se também a organização dos dois estados em províncias, câmaras, distritos e freguesias, devendo o governo se organizar, em ambos, com sete secretarias de Estado, sete conselhos e quatro órgãos suplementares. Também este plano não se efetivou, exceto pela criação do Reino Unido.

Com tais indicações, pode-se indagar se havia uma política administrativa

coerente no Estado joanino. A crer em Oliveira Lima, ainda seu maior biógrafo, a resposta seria negativa: o poder continuou muito concentrado, predominava a “baixa cortesania”, havia corrupção generalizada – “dir-se-ia que a seriedade timbrava em não comparecer em um só domínio da administração”. O comerciante Tollenare, que pode ser visto como um representante dos novos tempos liberais e, portanto, como um antipatrimonialista, além de referir-se à “vergonha” que era a alfândega, dizia que também a justiça era um entrave às relações comerciais: “Nada mais custoso do que receber judicialmente uma dívida, não só porque as isenções são muitas, abrangendo os senhores de engenho nas suas máquinas, os concessionários de terras nos primeiros tempos de seus empreendimentos, como (porque) são onerosíssimas as custas, formidável a papelada, enormes as delongas.”

Nesse sentido, o modelo tradicional preexistia ao Estado joanino, em Portugal como no Brasil, e continuou depois dele, mesmo após a independência e a entrada ofi cial do país no mundo do liberalismo político e econômico e do constitucionalismo. Oliveira Lima, sem essa perspectiva conceitual, já intuíra que os problemas apontados por ele eram do próprio regime e que isto implicava “reformas radicais”. Elas seriam a adoção de um novo modelo de Estado (moderno e burocrático), que ainda estava em gestação mesmo na França e na Inglaterra, e que se derivava de um novo modelo de sociedade. Como esta continuava patrimonialista, não se deveria esperar do Estado uma estrutura diversa, que tinha sido desejada por intelectuais ilustrados como Jovellanos na Espanha e Rodrigo de Souza Coutinho ou Silvestre Pinheiro Ferreira no mundo luso-brasileiro.

Arno Wehling

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[ 36 ARemeter:Corte joanina, D. João VI, Manoel de Oliveira Lima, Rio de Janeiro

Bibliografi a:FAORO, Raimundo. Os donos do poder. Formação do patronato político brasileiro. Rio de Janeiro: Globo, 1987; LYRA, Maria de Lourdes Viana. A utopia do poderoso império. Rio de Janeiro: Sete Letras, 1994; LIMA, M. de Oliveira. D. João VI no Brasil. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997; MANCHESTER, Alan K. A transferência da corte portuguesa para o Brasil. In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, vol. 277, 1967; WEHLING, Arno. O estado português no Brasil, 1777-180l. Brasília: FUNCEP, 1986; ________. A monarquia dual luso-brasileira. Crise colonial, inspiração hispânica e criação do Reino Unido. In: Anais do Seminário Internacional D. João VI – um rei aclamado na América. Rio de Janeiro: Museu Histórico Nacional, 2000.

i África

Entre 1808 e 1821, a presença portuguesa na África era bem menor do que se apregoava nos documentos ofi ciais. Suas possessões não passavam de enclaves, alguns deles pequenos e até diminutos, como a fortaleza de S. João Batista de Ajudá, não maior do que uma chácara. O controle sobre terras que hoje formam Angola, embora extenso, se restringia, no litoral, às áreas entre a foz do rio Lifune e a boca do Cuanza e entre o rio Quiteve e a cidade de Benguela, a isso se somando, ao norte do rio Zaire (ou Congo), o entreposto fortifi cado de Cabinda. Para o interior, os limites não estavam determinados: avançavam e recuavam conforme as circunstâncias e mal chegavam a 300 quilômetros da costa. Pode-se considerar que os limites da infl uência portuguesa eram marcados, na região dependente de Luanda, pelos presídios de S. José de Encoge, a nordeste, e Pungo Andongo, a sudeste, e, na parte de Benguela, pelos presídios de Caconda, a leste, e de Quilengues, ao sul.

Esses presídios – assim se chamavam as vilas fortifi cadas, que tinham por principal missão proteger os mercadores – eram, porém, ilhas em territórios controlados por africanos e, sem o consentimento de seus reis e pagamento de imposto, nesses territórios não se comerciava, nem por eles passavam as caravanas. Muitos eram os reis e sobas que fechavam suas terras aos pombeiros e aviados, fossem brancos, mulatos ou os chamados “negros calçados”, isto é, aportuguesados. O jaga ou rei de Cassanje, por exemplo, não permitia atravessarem o Cuango. Assim atuando, garantia o seu papel de intermediário no tráfi co de escravos provenientes do centro do continente e impedia o comércio direto entre Luanda e o império da Lunda, que era o principal fornecedor de cativos. Na capital do jaga funcionava uma feira portuguesa, mas esta era inteiramente controlada pelo rei de Cassanje, que determinava até mesmo os preços nela vigorantes. O jaga vivia distante do mar, longe da capital da Angola portuguesa, e podia pôr em pé de guerra 120 mil soldados. Logo ao norte de Luanda, junto da costa e militarmente muito menos forte, o régulo de Mossulo continuava, porém, a mandar como queria, após ter derrotado em 1790 os portugueses, quando estes tentaram expandir-se para aquela área. Mais para cima no mapa, onde se localizava o reino do Congo, os portugueses tinham de se entender com vários senhores, pois os vaidosos nobres congueses mandavam sobre seus territórios sem prestar contas ao soberano, manicongo, que, embora por todos reverenciado, perdera o poder político fora de sua capital, S. Salvador. Para o sul, da margem meridional do rio Cuanza até o rio Queve, estendia-se o domínio inconteste dos reis quissamas, que repetidamente prevaleceram sobre as armas de Luanda. Havia, é certo, dirigentes que não eram hostis, como aqueles que os

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portugueses consideravam vassalos, alguns dos quais, contudo, se viam, na relação, como aliados e até mesmo suseranos.

Também as terras que dependiam de Benguela estavam cercadas de reinos africanos por todos os lados, e deles dependiam para se abastecerem de escravos, gado, cera, mel e marfi m. Ninguém mercadejava no planalto sem a aquiescência dos reis ovimbundos de Huambo, Bailundo e Bié. Neste último, havia uma feira portuguesa, mas sob completo controle do rei, que taxava cada escravo ali adquirido.

Não era muito diferente a situação no Índico. Tanto a ilha de Moçambique quanto Sofala, Quelimane, Inhambane, Lourenço Marques e outras feitorias da costa tinham de se haver com os sultões e xeques das várias cidades-estado suaílis vizinhas e não esquecer a proximidade protetora do sultão

omani de Zanzibar. Mal se saía das ilhas e do litoral, estava-se sob soberania africana: mandavam os herdeiros do monomotapa em Chidima e Dande e os reis de Barué, Quiteve, Manica, Lundu e Undi. Se a oeste pesava sobre europeus, árabes e africanos o poder dos rózuis de Changamira, ao sul, os angúnis, pressionados pelos zulus, começavam a atravessar o Limpopo e, logo ao norte da ilha de Moçambique, repetiam-se os ataques das fl otilhas malgaches dos betsimisaracas. Sobre o Zambeze, duas cidades, Sena e Tete, hasteavam a bandeira portuguesa, e, ao longo do rio, sucediam-se os prazos (grandes extensões

no alto

Mapa da África do século XIX.j. b. nolm, carte d’afrique: divisée en ses principaux etats. [s.l.]: [s.n.], 1818.

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