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TEMAS LIVRES FREE THEMES 3615 1 Departamento de Saúde Pública, Centro de Ciências da Saúde. Campus Universitário Trindade 88040-900 Florianópolis SC [email protected] 2 Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina. 3 Departamento de Medicina Preventiva, Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas. Acolhimento e (des)medicalização social: um desafio para as equipes de saúde da família User embracement and social (de)medicalization: a challenge for the family health teams Resumo Este artigo discute a relação entre a prá- tica do acolhimento na atenção primária (Pro- grama/Estratégia Saúde da Família) e o processo de medicalização social. Inicia com a síntese de uma revisão sobre medicalização social e a indi- cação de influências históricas e conceituais so- bre a organização da atenção básica brasileira, que prepararam terreno para a emergência da proposta do Acolhimento. Argumenta sobre a pos- sibilidade de se realizar o Acolhimento numa ló- gica desmedicalizante e interdisciplinar e sobre a forte potencialidade inversa, quando o Acolhi- mento é restrito a simples pronto-atendimento médico. Sugere mudanças em rotinas, agendas e atividades profissionais individuais e coletivas, terapêuticas e de promoção à saúde, para que cada equipe possa acolher seus usuários minimizando a medicalização. Conclui a favor de experimen- tações do Acolhimento como estratégia para se lidar com eventos inesperados e com a demanda espontânea, sempre tomando cuidados quanto ao seu potencial medicalizador. Palavras-chave Acolhimento, Medicalização so- cial, Programa Saúde da Família, Atenção pri- mária Abstract This article discusses the relation be- tween sheltering practice and social medicaliza- tion in the primary care. It begins with a revi- sion about social medicalization and mentions some influences concerning the organization of the Brazilian primary care. It also indicates that the ground of receptivity proposal was provided by those influences. It argues the potentiality to accomplish the sheltering with a demedicaliza- tion and interdisciplinary action and its reverse effect, when restricted simply to emergency medic care. There are hereby suggested changes in the management and organization of routines, agen- das as well as collective and individuals activities of the professionals with the intention to reduce medicalization. The conclusion favors the expan- sion of experimentation on sheltering as a strate- gy in dealing with unexpected events and with primary care spontaneous demand, always watch- ing out for its medicalization potential. Key words User embracement, Social medical- ization, Family Health Program, Primary care Charles Dalcanale Tesser 1 Paulo Poli Neto 2 Gastão Wagner de Sousa Campos 3

Acolhimento e Desmedicalização Social

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Arquivo sobre prevenção quaternária e o prejuízo de se medicalizar processos fisiológicos e normais

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    1 Departamento de SadePblica, Centro de Cinciasda Sade. CampusUniversitrio Trindade88040-900 Florianpolis [email protected] Centro de Filosofia eCincias Humanas,Universidade Federal deSanta Catarina.3 Departamento de MedicinaPreventiva, Faculdade deCincias Mdicas,Universidade Estadual deCampinas.

    Acolhimento e (des)medicalizao social:um desafio para as equipes de sade da famlia

    User embracement and social (de)medicalization:a challenge for the family health teams

    Resumo Este artigo discute a relao entre a pr-tica do acolhimento na ateno primria (Pro-grama/Estratgia Sade da Famlia) e o processode medicalizao social. Inicia com a sntese deuma reviso sobre medicalizao social e a indi-cao de influncias histricas e conceituais so-bre a organizao da ateno bsica brasileira,que prepararam terreno para a emergncia daproposta do Acolhimento. Argumenta sobre a pos-sibilidade de se realizar o Acolhimento numa l-gica desmedicalizante e interdisciplinar e sobre aforte potencialidade inversa, quando o Acolhi-mento restrito a simples pronto-atendimentomdico. Sugere mudanas em rotinas, agendas eatividades profissionais individuais e coletivas,teraputicas e de promoo sade, para que cadaequipe possa acolher seus usurios minimizandoa medicalizao. Conclui a favor de experimen-taes do Acolhimento como estratgia para selidar com eventos inesperados e com a demandaespontnea, sempre tomando cuidados quanto aoseu potencial medicalizador.Palavras-chave Acolhimento, Medicalizao so-cial, Programa Sade da Famlia, Ateno pri-mria

    Abstract This article discusses the relation be-tween sheltering practice and social medicaliza-tion in the primary care. It begins with a revi-sion about social medicalization and mentionssome influences concerning the organization ofthe Brazilian primary care. It also indicates thatthe ground of receptivity proposal was providedby those influences. It argues the potentiality toaccomplish the sheltering with a demedicaliza-tion and interdisciplinary action and its reverseeffect, when restricted simply to emergency mediccare. There are hereby suggested changes in themanagement and organization of routines, agen-das as well as collective and individuals activitiesof the professionals with the intention to reducemedicalization. The conclusion favors the expan-sion of experimentation on sheltering as a strate-gy in dealing with unexpected events and withprimary care spontaneous demand, always watch-ing out for its medicalization potential.Key words User embracement, Social medical-ization, Family Health Program, Primary care

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    Introduo

    A construo do Sistema nico de Sade (SUS) uma poltica de Estado democrtica e de bem-estar, que vem ampliando o acesso ao cuidado sade. Uma poltica na contramo da tendncianeoliberal hegemnica na sociedade e no Estadobrasileiro1. Com o SUS, vem ocorrendo uma pro-gressiva expanso da cobertura da populao bra-sileira em programas de ateno sade, ao mes-mo tempo que se manteve a hegemonia do mode-lo biomdico na maioria dos programas oferta-dos. Isto vem acontecendo notadamente a partirda dcada de 90, com a expanso da rede bsicaestimulada pelo Programa Sade da Famlia (PSF),depois Estratgia Sade da Famlia (ESF), bemcomo pela extenso de servios de pronto-atendi-mento e da ateno hospitalar2. Caberia pergun-tar o que essa expanso do acesso representa emtermos de medicalizao social, processo j emcurso atravs da mdia, da cultura e do mercado.

    A medicalizao social um processo socio-cultural complexo que vai transformando emnecessidades mdicas as vivncias, os sofrimen-tos e as dores que eram administrados de outrasmaneiras, no prprio ambiente familiar e comu-nitrio, e que envolviam interpretaes e tcnicasde cuidado autctones. A medicalizao acentuaa realizao de procedimentos profissionalizados,diagnsticos e teraputicos, desnecessrios emuitas vezes at danosos aos usurios. H aindauma reduo da perspectiva teraputica com des-valorizao da abordagem do modo de vida, dosfatores subjetivos e sociais relacionados ao pro-cesso sade-doena3-6.

    O PSF, na sua criao, propunha-se a supe-rar essa tradio medicalizante, substituindo-apor uma nova concepo apoiada na Promoo Sade. Em alguma medida, a introduo dessaestratgia de fato produziu uma saudvel tensoparadigmtica entre a biomedicina e abordagensmais ampliadas7. No entanto, no houve umareorganizao da formao de especialistas m-dicos e enfermeiros em escala suficiente para sus-tentar esse tipo de reforma cultural. Alm disso,o PSF, inicialmente, orientou as equipes a lidarcentralmente com os programas de sade, comprotocolos diagnsticos e teraputicos definidos.Observou-se, contudo, que no havia recomen-daes sobre como lidar com a demanda espon-tnea que recorre aos servios de ateno bsicaou como atender aos imprevistos to frequentese inevitveis no cuidado sade.

    Procurando responder a essas lacunas, apa-receu a proposta de Acolhimento, divulgada e

    recomendada no SUS por meio da Poltica Nacio-nal de Humanizao8. O Acolhimento envolvearranjos institucionais de difcil execuo, pro-pe-se a trabalhar a demanda espontnea, aampliar o acesso e concretizar a misso constitu-cional da APS no SUS, de ser a principal portade entrada do sistema.

    Entretanto, constata-se que ao reorganizar ocontato dos servios de APS com os usurios esuas demandas, a estratgia do Acolhimento temum potencial de ativar o processo de medicaliza-o social numa dimenso microssocial e local.Analisar a relao entre diferentes estratgias deAcolhimento e suas possibilidades de medicaliza-o e de desmedicalizao o objetivo deste ensaio.

    O campo de prticas subsidirias da discus-so amplo: um autor foi mdico generalistanove anos (dois na coordenao) em servio b-sico de uma comunidade rural, que inclua umpronto-atendimento (PA) (5 mil hab.); traba-lhou um ano em centro de sade centrado em PAde outra pequena cidade paulista; trs anos noPSF de uma grande cidade (1 milho de hab.),em servios com prticas de acolhimento distin-tas; e dois anos coordenando estgios de inter-nato mdico em vinte centros de sade com PSFem cidade de mdio porte (300 mil hab.). Outroautor trabalhou dois anos em uma equipe dePSF isolada em bairro rural e depois mais umano em centro de sade com cinco equipes deSade da Famlia. O terceiro autor foi gestor eassessor de servios de APS nas dcadas de 80 e90 e secretrio de Sade da grande cidade mencio-nada, em que o Acolhimento era diretriz institu-cional importante. Apesar de no ter havido co-leta sistemtica de dados nessas experincias, dasua diversidade e anlise foram extrados pontoscrticos para discusso, que no se quer exausti-va nem conclusiva.

    Sobre a medicalizao social

    Ao revisar estudos das cincias sociais sobre otema da medicalizao, Nye9 demonstra comoele compreendido de maneiras diferentes aolongo do tempo. Nos primeiros trabalhos, sig-nificava apenas a ampliao da assistncia mdi-ca e de novas tcnicas teraputicas, at a sua pos-terior converso a um significado mais amplo,referente crescente incorporao de diferentesaspectos da condio humana, sejam sociais, eco-nmicos ou existenciais sob o domnio do medi-calizvel; isto , do diagnstico mdico, da tera-putica, da patologia etc. Esses estudos surgem

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    justamente na segunda metade do sculo XX, emque houve uma grande expanso da medicina,com a utilizao de novos exames diagnsticos(especialmente de imagem), novas classes demedicamentos, novas tcnicas e materiais cirr-gicos e novas reas de pesquisa (gentica, imu-nologia, virologia etc.).

    De acordo com o conceito de biopoltica fou-caultiano, esse processo se origina no momentoem que a regulao mdico-sanitria da vida utilizada como estratgia para ordenar a relaoentre o Estado e indivduos10. A medicina, paraFoucault, uma das instituies ou disciplinas,assim como a escola, o exrcito, os presdios, queauxiliam e constituem o Estado moderno nessatarefa de organizar a vida coletiva e individual.Ao contrrio de outros autores, Foucault defen-de a existncia de positividade nessa relao entreo Estado e os indivduos, em que estes no sosimplesmente sufocados por uma superestrutu-ra, mas que haveria uma produo de subjetivi-dade que alimenta essa rede de poder. No casoda medicina, tolera-se a interferncia dessa redede saber-poder que redistribui os corpos, reor-ganiza o espao, introduz reformas na vida coti-diana, porque produz positividades, resolve pro-blemas mdicos, possui certa eficcia curativa.

    Foucault11 afirma que a biomedicina no resultado de uma progresso histrica linear,impulsionada por descobertas cientficas, masconsequncia de uma mudana na maneira dever e de entender a clnica, em que se separa adoena do doente nas chamadas espacializaesda doena. Ao se organizar em torno de umateoria das doenas e da anatomoclnica, o sabermdico se abre para uma medicalizao de no-vos espaos.

    O imaginrio biomdico dominante na bio-medicina apresenta algumas caractersticas mar-cantes, centrais ao chamado paradigma biome-cnico ou flexneriano: viso do corpo humanocomo mquina; viso das doenas como coisasconcretas, que no variam em pessoas e lugares,e que surgem como defeitos das peas dessa m-quina, de natureza material. As leses materiaisou germes so as causas ltimas das doenas edemandam exames que vasculham o interior docorpo para diagnstico. O tratamento centra-do preferencialmente em medicamentos quimi-camente purificados e cirurgias. O relacionamen-to autoritrio com os doentes (paradigma docuidado hospitalar), que devem se submeter aosprofissionais e aprender deles o saber cientfico,nico verdadeiro para cumprimento eficaz dotratamento e preveno5,12,13.

    A ao profissional nesse ambiente de ideiase valores tende a transformar toda queixa emsndrome, transtorno ou doena de carter bi-olgico, desligando-a da vida vivida pelo doente,considerando-a realidade distinta e independen-te. Em doenas crnicas, cada vez mais frequen-tes, ocorre o isolamento de fatores de risco quese destacam da vida e passam a ser consideradoscausas isoladas combatidas atravs de compor-tamentos saudveis prescritos do mesmo modoque drogas e cirurgias. Estas ltimas, mais o feti-che dos exames complementares, so o carro-chefe da cultura medicalizada. Assim, na inter-pretao e na interveno biomdicas h ntidatendncia medicalizante3,14.

    H certo consenso sobre o nascimento e as ca-ractersticas da biomedicina; mas o mesmo noocorre em relao ao binmio autonomia/hetero-nomia. Para Illich3, o excesso de funo e de uso deuma ferramenta social-tecnolgica ou o seu mo-noplio pode induzir ao que denominou de con-traprodutividade: uma ao paradoxal em que oresultado o contrrio do esperado: hospital queproduz doena, trnsito que produz engarrafamen-tos. A ao mdica padeceria desse mal. Ao causaruma iatrognese social e cultural, alm da iatroge-nia clnica individual, as pessoas so transforma-das em consumidores vorazes de mais e mais cui-dado e de tecnologias especializadas e tornam-sedependentes. Isso diminuiria a autonomia e a ca-pacidade de agir sobre a vida e sobre o meio paramanter, resgatar e ou ampliar a sade e a liberdade vistas como coeficiente de liberdade vivida e ca-pacidade de instituir normas vitais, seguindo Can-guilhem15. Na viso de Illich3, a sade pode, aocontrrio do que parece, estar decaindo, j que acapacidade de ao das pessoas sobre sua prpriavida, ambiente e sade, sobre suas vivncias e so-frimentos cotidianos, poderia estar diminuindo.

    Para Freidson16, que estuda o processo demedicalizao como um exemplo da profissiona-lizao, a medicina moderna essencialmente he-teronmica. O autor ocupa-se de percorrer o ca-minho que levou a medicina de uma ocupao auma profisso, quando, por virtude de sua posi-o autoritria na sociedade, vem a criar a subs-tncia do seu prprio trabalho. A partir do mo-mento em que se tornam oficiais, as profissesdefinem os objetos de seu trabalho, abrindo es-pao para que interesses corporativos interfiramnesse processo. Alm disso, a determinao deprofisses oficiais impede que outras ocupaesdeem-se a chance da exposio emprica, da expe-rimentao do erro e do acerto, da sua aplicaoem grande nmero de casos ou pessoas.

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    Mas h autores com viso mais otimista emrelao a esse processo, que avaliam no haveruma aceitao passiva por parte da populao,identificando at formas de contestao do po-der das instituies. Williams e Calnan17 lanammo das formulaes tericas de Giddens parase contraporem ao pessimismo da dcada de1960. Eles identificam a existncia de maior refle-xividade social na modernidade tardia, o que sig-nificaria uma suscetibilidade maior a vrios as-pectos da atividade social em razo de novas in-formaes e conhecimentos: a medicina torna-se uma empresa cada vez mais reflexiva em ter-mos de sua base de conhecimento, sua organiza-o social e a natureza da prtica mdica diria.

    Segundo os autores, h espao de crtica medicina moderna e a mdia tem um papel cru-cial de desmistificao da cincia e da tecnolo-gia17. Haveria um empoderamento da popula-o, j que as pessoas esto mais conscientes dasfragilidades das corporaes. A populao, mu-nida de maior acesso informao atravs daInternet ou de outros meios de comunicao,poderia estar mais consciente dos custos, benef-cios e malefcios da medicalizao de suas vidas18.

    Nos seus escritos tardios, Illich19 identificahaver, de fato, uma desmedicalizao, entretantoa medicina estaria perdendo espao para outrasreas esttica, moda, educao fsica, sadepblica que difundem uma concepo doentiade cuidado com o corpo e da busca da sadeperfeita. Nos seus ltimos trabalhos, Illich con-sidera que o fato de as pessoas hoje buscaremmais informaes sobre sade e haver maior pre-ocupao com a prpria sade representariaoutra forma grave de iatrogenia4.

    A medicina cedeu espao para outras reasporque surgiu outra concepo sobre o corpo a corpolatria que vai resultar na busca patog-nica pela sade19. O maior acesso s informaessobre doenas e hbitos saudveis que poderiarepresentar um empoderamento da populaodiante da corporao mdica representaria ape-nas o efeito de um tempo em que todas as ativi-dades humanas so maciamente relacionadas sade e h uma neurose coletiva em busca dasade perfeita, chamada de higiomania porNogueira20. Freidson16, em releitura posterior deseu prprio trabalho, tambm considera ter ha-vido nos ltimos anos uma diminuio da auto-nomia tcnica do profissional mdico, mas que aprofisso como um todo jamais teve o poderque detm hoje.

    importante ressaltar que apesar da nfasena profisso mdica, a medicalizao no se res-

    tringe a ela, mas ao processo presente em todasas reas da sade de categorizar sofrimentos esintomas em diagnsticos, oferecer explicaesnaturalizadas e terapias reduzidas ante a com-plexidade dos problemas.

    No entanto, outra caracterstica mais recentede nossa sociedade a expanso da nfase bio-mdica nos riscos, notadamente aps a possibi-lidade exemplar de seu tratamento via quimio-terapia (vejam-se as estatinas), o que parece es-tar gerando uma medicalizao importante nos do presente, mas tambm do futuro, acentu-ada ainda mais pelas promessas alardeadas pelagentica. Isso faz pensar que, no geral, a medica-lizao mantm-se firme e progressiva, a socie-dade (do risco) est cada vez mais dependente deinformaes e tecnologias mdicas, ao mesmotempo que os indivduos so instados a respon-sabilizar-se em relao a sua prpria sade21.

    Concepes que influenciarama Ateno Primria brasileirae o Acolhimento

    A organizao dos primeiros Centros de Sadeno Brasil, durante a primeira metade do sculoXX, e sua posterior expanso at os anos 80 foiinfluenciada pela concepo norte-americana deSade Pblica, segundo a qual o cuidado em sa-de comporia dois grandes sistemas: um de assis-tncia clnica hospitais, servios de urgncia,consultrios etc. e outro de Sade Pblica (vi-gilncia). Os Centros de Sade seriam um dosoperadores do setor de Sade Pblica. Eram or-ganizados em programas preventivos e de con-troles de doena: puericultura, pr-natal, tuber-culose e outros problemas de relevncia coletiva.Segundo essa tradio, a APS vista como espa-o para a preveno sade, no para o exerccioda clnica.

    Posteriormente, com o surgimento da SadeColetiva no Brasil e da Promoo da Sade noCanad, reforou-se essa tendncia. O PSF, cria-do em 1994, foi bastante influenciado por essaperspectiva, destacando-se as diretrizes da inter-setorialidade, de interveno no territrio, a abor-dagem da famlia ou de coletivos, que persistemat hoje22. Note-se que a abordagem clnica indi-vidual era justificada por programas de sade,com temas sanitrios considerados relevantespela epidemiologia.

    A introduo da lgica epidemiolgica no con-texto da organizao do dia a dia, proposta pelaprogramao em sade23 e pela Vigilncia

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    Sade24, tampouco facilitou o acesso aos usu-rios. Tal lgica, introduzindo critrios epidemio-lgicos para priorizao de aes de vigilncia,preveno, tratamento e controle de doenas, cri-ando grupos prioritrios, reservas de vaga e dire-cionamentos de agenda, acabou convergindo paraa desvalorizao da demanda espontnea, o quetendeu a reforar a rigidez das agendas na prtica,ainda quando isso no fosse buscado.

    Outra concepo que tem influenciado, con-cretamente, a APS no Brasil a estratgia de ga-rantir-se acesso ao SUS mediante a multiplica-o de servios de PA. Pouco teorizada e investi-gada, esta alternativa tem presena em municpi-os e junto a autoridades do Poder Executivo, jque prioriza o acesso sobre a qualidade e ofereceum servio de gesto mais simples do que a equi-pe interdisciplinar do PSF. Ao contrrio da tradi-o anterior, no valoriza programas, responsa-bilidade por territrio, seguimento de casos, aeseducativas ou comunitrias. Vrios municpiosbrasileiros, na prtica, adotaram esse estilo deorganizao, que utiliza o pronto-socorro dehospitais e prontos-atendimentos isolados comomodelo de APS. As consequncias negativas doPA so bastante consensuais no campo acad-mico: medicalizao, baixa autonomia dos usu-rios, ineficcia ante doenas crnicas, baixo apro-veitamento do potencial de outros profissionaisde sade e do trabalho em equipe e incapacidadede atuao em determinantes de sade coletivos25.

    Apesar da correo do olhar crtico da SadeColetiva para com a clnica biomdica, j h tem-pos Campos26 e Merhy27 advertiam que o saberepidemiolgico no deve ser tomado como ni-co potente para definio de necessidades, prio-ridades e problemas de sade. Deve ser articula-do com as necessidades sentidas, expressas emdemanda cotidiana aos servios de sade e pormeio da participao social na gesto do SUS(Conselhos de Sade)8,28-30.

    H, entretanto, uma terceira forma para seconceber a APS originria dos pases que implan-taram sistemas nacionais de sade, particular-mente na Europa. Neste caso, a APS vista comoporta de entrada de um sistema integrado emrede de ateno ambulatorial, hospitalar etc.Nessa tradio, valoriza-se a capacidade clnicapara resolver problemas de sade31.

    Vale ainda considerar que os servios pbli-cos brasileiros de APS no superaram o padrodominante em que a organizao estatal em ge-ral e a instituio mdica tendem a produzir umarelao ritualizada, enrijecida e burocratizada comos usurios. Nesse enquadramento a atividade

    profissional costuma resumir-se a programas,protocolos e procedimentos padro, como con-sulta, por exemplo. O modelo tpico de serviospblicos de APS no Brasil pode ser descrito comode uma repartio ou ambulatrio em que ousurio chega como a uma prefeitura ou outrorgo pblico: h horrios rgidos, comumentecomerciais, com guichs onde funcionrios ad-ministrativos (recepcionistas ou similares) fazemuma recepo. H um cardpio de serviosorganizados em forma de agenda, centrada emconsultas mdicas e, quando muito, de enferma-gem (alm de outros servios como vacinaes,curativos etc.). O nmero de vagas na agenda limitado e elas so preenchidas por ordem dechegada, em geral. Acabadas as vagas, acabou oacesso ao cuidado. Uma mistura de lgica de con-sultrio mdico privado dentro de/e sinrgicacom uma repartio pblica.

    Foi a partir da crtica a essa situao e buscan-do super-la que se construiu a proposta do Aco-lhimento no seu aspecto institucional, almejandodar viabilidade organizacional misso tica e ambio poltica de concretizar a universalidade eequidade na interao dos servios com os usu-rios. Em vez de servios apenas centrados em agen-das e procedimentos (consultas) ou em aes pro-gramadas para agravos e doenas epidemiologi-camente relevantes, servios estruturados paratrabalhar a partir de problemas reais dos usuri-os sob sua responsabilidade personalizada, semdeixar de fazer aes programadas e vigilncia.

    Acolhimento e organizao do trabalhonas equipes de sade da famlia

    O Acolhimento envolve um interesse, uma pos-tura tica e de cuidado, uma abertura humana,emptica e respeitosa ao usurio, mas ao mesmotempo implica avaliao de riscos e vulnerabili-dades, eleio de prioridades, percepo de ne-cessidades clnico-biolgicas, epidemiolgicas epsicossociais, que precisam ser consideradas. Issopermite, em tese, hierarquizar necessidades quan-to ao tempo do cuidado (diferenciar necessida-des mais prementes de menos prementes); dis-tinguir entre necessidades desiguais e trat-lasconforme suas caractersticas. Assim, ele envol-ve, supe e estimula um sentido tico individual ecoletivo32, assumido como fundamental paraorientar a postura do profissional. Mas envolvetambm questes de organizao e prtica dotrabalho, tpico enfocado aqui na sua relaocom a medicalizao social.

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    O Acolhimento uma proposta voltada paramelhoria das relaes dos servios de sade comos usurios. Neste caso, concretiza-se no encon-tro do usurio que procura o servio espontane-amente com os profissionais de sade, em queh uma escuta, um processamento de sua de-manda e a busca de resoluo, se possvel.

    O Acolhimento est baseado tambm em umdireito constitucional dos indivduos que o di-reito de acesso aos servios de sade. Como aAPS a porta de entrada desse sistema, neces-sria uma estratgia que permita um fluxo facili-tado das pessoas. Alm disso, uma das caracte-rsticas para a efetividade e o sucesso da APS ofcil acesso33, motivo que torna crucial o desen-volvimento de arranjos institucionais e prticasprofissionais facilitadores desse acesso.

    A proposta de Acolhimento no Brasil sugereformas de ateno demanda espontnea queno impliquem simplesmente maior acesso consulta mdica, mas prope-se a servir de eloentre necessidades dos usurios e vrias possibi-lidades de cuidado. Nesse sentido, foi original einovadora. No Acolhimento foram includos v-rios profissionais34. A ideia seria retirar do mdi-co o papel de nico protagonista do cuidado,ampliar a clnica realizada pelos outros profissi-onais e incluir outras abordagens e explicaespossveis (que no somente as biomdicas) paraos adoecimentos e demandas.

    Pode-se considerar que esto envolvidas naproposta do Acolhimento duas pernas funda-mentais: uma tica e poltica, em que se almejamelhorar a postura dos profissionais no contatocom a clientela; e outra de gesto e de modelo assis-tencial, que visa reformular a tradio burocrticae rgida ao melhorar o acesso e o cardpio de ofer-tas do servio, flexibilizar e ampliar a clnica, facili-tar o cuidado interdisciplinar. So necessrias estasduas pernas andando juntas harmoniosamentepara viabilizar e concretizar o Acolhimento.

    Isso pressupe uma nova cultura de traba-lho, bem como novas formas de organizar e ge-rir esse trabalho. A equipe de referncia (equipede sade da famlia) assume a responsabilidadede acolher os usurios nas suas demandas, ouvi-los, negociar com eles e tentar resolver seus pro-blemas da melhor e mais rpida forma possvel.Para tanto, um profissional (tcnico ou auxiliarde enfermagem, geralmente) precisa estar dis-posio para realizar o primeiro acolhimento,que por sua vez substitui e torna dispensvel arecepo como guich burocrtico35.

    O contato no programado do usurio pas-sa a se dar com um profissional (e no com um

    recepcionista), que realizar a misso difcil de,simultaneamente, acolher e escutar de formaqualificada e individualizada; fazer uma avalia-o de riscos e vulnerabilidades biolgicas, epi-demiolgicas e psicossociais; rediscutir e proces-sar essa demanda juntamente com o usurio,tentando localizar qual ou quais so os proble-mas; acionar outros membros da equipe respon-svel pelo cuidado daquele paciente para, con-juntamente, se necessrio, resolver ou dar segui-mento aos cuidados possveis. Isso requer umaprtica profissional com importante grau de co-municao, interpretao e negociao interdis-ciplinar e com os usurios, estimulando o vncu-lo, acalmando ansiedades e buscando solues.

    Obviamente, h que compatibilizar agendasde mdicos e enfermeiras para essa demanda deAcolhimento, pois eles so requisitados para su-pervisionar tal avaliao, negociao e prosse-guimento do cuidado. Tal proposta depende deuma abertura dos profissionais para um com-partilhamento de responsabilidades e decises,respeitados os ncleos de competncia36 decada profisso, mas flexibilizando os rituais tpi-cos de consultas e procedimentos, de deciso cl-nica e de avaliao de risco/vulnerabilidade.Quanto mais flexveis e versteis os profissio-nais, quanto mais diversificadas e pouco rituali-zadas suas aes, quanto mais misturadas e tra-balhando juntas as pessoas, quanto mais abertoe acessvel o servio a todos os tipos de demanda,maior a possibilidade de a equipe imergir nomundo sociocultural de sua rea de abrangn-cia, de trocar saberes pessoais e profissionais, derealizar melhor o Acolhimento e garantir o aces-so. O que no significa perder de vista gruposprioritrios, fazer busca ativa, vigilncia e pro-moo da sade.

    O funcionamento do Acolhimento cria a ne-cessidade de ampliar a oferta de servios e decuidados na APS: se s se dispe de consultas demdicos e enfermeiros, s se poder oferecer issoaos usurios e nunca haver o suficiente. Mas possvel e desejvel a oferta e inveno de outrosrituais de encontro, outros settings teraputicos,individuais e coletivos. Tal diversificao dos ser-vios necessria e deve haver um estmulo insti-tucional para sua construo. Outra necessidade um processo constante de educao permanentee capacitao clnica para os profissionais nomdicos, que comumente no exercitam sua cl-nica com tamanha responsabilidade e participa-o na avaliao e deciso de cuidados.

    Uma mudana fundamental envolvida naspropostas de Acolhimento que para organizar

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    de forma sustentvel um servio com Acolhimen-to, que faa aes programadas e atividades co-letivas, so necessrias modalidades de gestoparticipativa. a prpria equipe que pode avali-ar e decidir responsavelmente quais as aes aserem ofertadas populao, e para isso neces-sria a construo de uma cultura e um espaoprprios para a organizao do trabalho cotidi-ano, de forma democrtica, fazendo cogestoentre as demandas e diretrizes institucionais37. Aforma organizacional recomendada para isso uma reunio semanal da equipe de refernciapara discutir, avaliar e gerir o trabalho, a rotinade agendamento, acolhimento, visitas domicilia-res, grupos, elaborao e avaliao de projetosteraputicos individuais de casos complexos, pro-blemas sanitrios e sociais coletivos, demandasepidemiolgicas etc., da qual participam todosos membros da equipe de sade da famlia.

    Observa-se que a abertura das equipes pres-so da demanda costuma produzir angstia, car-ga exaustiva de trabalho e estresse emocional.Isso deve ser considerado, e a gesto local devebuscar formas de proteo para a equipe, demodo a permitir que prossiga lidando com ademanda e com a realidade sofrida da popula-o brasileira. Apoio humano, emocional e insti-tucional para a equipe necessrio, assim comofacilitar a construo de clima de equipe, de cor-responsabilizao e de parceria entre os profissi-onais; e sua educao permanente. Alm disso,outro importante esquema de proteo dos pro-fissionais a responsabilizao limitada. Reco-menda-se que o Acolhimento e a responsabilida-de devam ser personalizados e referentes coortede pacientes adscrita a cada equipe. Assim, o Aco-lhimento tende a lidar com pessoas conhecidascom problemas conhecidos, ainda que comple-xos. Este fator tende a diminuir o estresse da ava-liao de risco/vulnerabilidade e a facilitar a cor-responsabilizao entre equipe e usurios. Paci-entes de outras reas de abrangncia aparecero,mas sero avaliados e devolvidos para suas equi-pes de referncia.

    Desnecessrio dizer que a participao popu-lar na gesto do servio, atravs dos Conselhosde Sade, pode ser de grande relevncia na nego-ciao dos termos e limites do Acolhimento, quecostumeiramente envolve fatores tanto internosao servio quanto poltico-institucionais quetranscendem a equipe de sade da famlia, comocontratao de profissionais, espao fsico, ho-rrios etc.

    Acolhimento e desmedicalizao:uma estratgia possvel

    A presso da demanda espontnea tende, em ge-ral, a acabar em atendimento mdico. Os usu-rios assim o desejam, muita vez os tcnicos e en-fermeiras no tm alternativa, afinal do mdicoa maior responsabilidade de diagnose e terapu-tica. O ncleo de competncia clnica do mdico mais amplo do que o de outros profissionais desade. No entanto, a escuta, a avaliao de risco/vulnerabilidade, a orientao, a resoluo de pro-blemas e o cuidado fazem parte do campo decompetncia de todos os profissionais.

    Se a atividade profissional utiliza-se dessesncleos de competncia para justificar a buro-cratizao, se h pactos perversos que alimen-tam o no cuidado, se no h esprito de equipee de trabalho multiprofissional, o Acolhimentotende a transformar-se em PA. Nesse caso, amedicalizao tende a avanar e se difundir.

    O apoio gerencial e a existncia de profissio-nais em nmero suficiente so necessrios e es-senciais para possibilitar um contexto que facili-te o Acolhimento, ainda que esta suficincia nogaranta qualidade desmedicalizadora. Trata-sede uma construo e um aprendizado difcil, quepode ser facilitado e at induzido, mas dependedos profissionais. A habilidade clnica um fatorimportante, mas o trabalho conjunto em equipe,a construo de projetos teraputicos e avalia-es de riscos/vulnerabilidades individuais e co-letivas e a prpria discusso do problema damedicalizao podem ajudar muito. H que setrabalhar continuadamente com os profissionaispara desmedicalizar a ateno sade.

    Durante o Acolhimento na APS seria possveluma prtica voltada para a desmedicalizao? Boaparte da demanda no programada caracteri-zada por problemas de sade medicalizados, quechegam aos servios de sade em consequnciada mdia, da cultura do consumismo, do medo eda insegurana. A experincia com o Acolhimen-to mostra que essa influncia grande na deman-da do usurio. Mostra ainda que o espao doacolhimento pode ser mais ou menos medicali-zante na medida em que trabalha a sensibilidadedo usurio e do profissional no mdico em rela-o ao problema, em vez de usar esse momentopara apenas fornecer a tecnologia mdica.

    Na prtica da APS, muito prxima da vidacotidiana da comunidade, difcil enquadrarmuitos dos problemas trazidos pelos usuriosem classificaes diagnsticas precisas, o que fa-cilita a desmedicalizao. Se o mdico tem uma

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    tendncia geral a medicalizar os problemas trazi-dos, alguns profissionais, por maior contato como contexto de vida dos usurios (principalmenteAgente Comunitrio de Sade e tcnicos de en-fermagem), tm um potencial maior para umaabordagem ampliada desses problemas, trazen-do elementos da vida familiar e social, em algu-ma medida favorecendo a desmedicalizao dodiagnstico e da teraputica, ao relativizar a abor-dagem biologicista.

    Alm disso, o mdico pode funcionar comoator desmedicalizante e contribuir para ampliara abordagem, j que tem maior legitimidade paracriticar o consumismo e a informao da mdia,acalmar ansiedades e apoiar iniciativas desmedi-calizantes, reforando a autoestima e o respeitointerprofissional, o esprito de equipe e o vnculodo paciente com os outros membros da equipe.Por isso, a forma singular como as equipes tra-balham o Acolhimento fundamental para defi-nir o grau de medicalizao do Acolhimento. Ocuidado continuado e a responsabilizao peloacompanhamento dos pacientes, que implicaconhec-los progressivamente, seu contexto edinmica psicossocial, econmica e cultural, soum poderoso mecanismo para o aprendizado deuma clnica desmedicalizante. Perceber a relaoentre medicalizao, o retorno repetido excessi-vo e a iatrogenia facilita a crtica clnica centra-da na doena e o aprendizado cotidiano sobredesmedicalizao.

    Isso sugere fortemente a realizao do Aco-lhimento por rea de abrangncia, ou seja, quecada equipe acolha os usurios pelos quais res-ponsvel. Discutir os casos conjuntamente emvez de simplesmente basear-se em protocolos efluxogramas tambm facilita uma abordagemampliada dos problemas. J o inverso tende aocorrer nas prticas que utilizam demasiadamen-te os fluxogramas e protocolos rgidos. O enca-minhamento excessivo para outros profissionais,que comeam todo o cuidado de novo, tende aoreforo da lgica hegemnica e fragmentaodo cuidado.

    Quando as narrativas dos usurios so mo-nopolizadas pelo mdico, mesmo que ele exerauma clnica ampliada, somente ele perceber como tempo as fortalezas e as fragilidades do modelobiomdico e as brechas que poderiam ser preen-chidas ou expandidas por outros profissionaisou abordagens. Todavia, mesmo com todos essescuidados, h uma tendncia permanente e persis-tente do Acolhimento em centralizar-se no mdi-

    co, at pelo poder de seu ncleo de competnciase pela sua grande demanda numa sociedade jrelativamente muito medicalizada. Por isso, osespaos de reunio da equipe devem ser utiliza-dos para corrigir rumos e discutir dificuldades.

    Alm disso, o ambiente da APS permite o con-tato com a cultura popular e tcnicas e curadoresno cientficos, muitos dos quais podem pro-porcionar interpretaes e cuidados de baixo ris-co, culturalmente adequados, acessveis e porvezes surpreendentemente eficazes. Basta lem-brarmo-nos da eficcia simblica descrita porLvy-Strauss38, cuja traduo biomdica restrin-giu-se ao reconhecimento do efeito placebo, oqual, no entanto, no gerou know-how sobrecomo o mdico aumentar, utilizar ou induzir talefeito nos pacientes.

    Por ltimo, vale comentar o Acolhimento rea-lizado em unidades de sade que congregammuitas equipes de sade da famlia. No raramen-te ocorre a a organizao de um Acolhimentonico, que atende a pacientes de todas as reas deabrangncia por meio de um revezamento de pro-fissionais das equipes ali sediadas. Na prtica, esseacolhimento fica voltado para demandas agudase mantm as equipes no cuidado continuado.Observamos neste desenho a mesma tendnciamedicalizante do PA, j que se criam como quedois servios, com lgicas distintas, na mesmaunidade: um voltado para a doena, as intercorrn-cias e o sintoma e, assim, mais medicalizante; ou-tro que realiza aes programticas, promoo eeducao sade para uma parte da populaousuria. A vantagem desse modelo em relao aoservio de emergncia exclusivo que ele pode abrirrapidamente ao usurio as portas da sua equipese necessrio um seguimento para seu caso.

    Diferentemente, observamos que o Acolhi-mento realizado pela prpria equipe de refern-cia permite transform-lo, com o tempo, em maisum momento de cuidado, com possibilidade dese integrar ao relacionamento equipe-usurio.Em razo da nossa experincia, recomendamos,em geral, que as equipes de sade da famlia tra-balhem em um duplo registro, com atividadesde pronta ateno e de cuidado continuado eprogramado26,28,35.

    Reconhecemos a necessidade de se lidar com ademanda espontnea e com o inesperado na APS,e que a expanso das experincias de Acolhimen-to tem se demonstrado eficaz nesse particular. Su-gerimos, contudo, reflexo continuada sobre arelao entre Acolhimento e medicalizao.

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    Colaboradores

    CD Tesser foi o responsvel pela concepo e re-dao inicial do artigo e participou, juntamentecom PP Neto e GWS Campos, das sucessivasampliaes, redues, revises crticas, formata-o e redao final.

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    Artigo apresentado em 26/10/2007Aprovado em 27/06/2008Verso final apresentada em 06/08/2008

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