Acting Out e Passagem Ao Ato a História Do Ato No Corpo

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    Acting oute passagem ao ato: a histria do ato no corpo

    Autores: Francisco Garzon e Manoel Tosta Berlinck

    Francisco Gomes de Almeida Garzon

    Rua Teodoro Sampaio, 498 apto 153, Pinheiros, So Paulo SP. CEP 05406-

    000

    Graduado em Direito pela Faculdade de Direito do Largo de So Francisco e em

    Psicologia pela Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, Mestrando / pesquisador

    no Laboratrio de Psicopatologia Fundamental da PUC-SP, Psiclogo do Centro de

    Atendimento Multidisciplinar da Defensoria Pblica do Estado de So Paulo.

    Manoel Tosta Berlinck

    Rua Tupi, 39710o andarsala 103 So Paulo, SP Brasil 01233-001 tel: 55 11

    3825.8573

    Manoel Tosta Berlinck: Bacharel em Cincias Sociais pela Fundao Escola deSociologia e Poltica de So Paulo (1958-1961), Mestre em Cincias Sociais pelaFundao Escola de Sociologia e Poltica de So Paulo (1964), Ph.D. (DevelopmentSociology) pela Cornell University (1969). Professor de Sociologia do Instituto deFilosofia e Cincias Humanas (IFCH) da Universidade Estadual de Campinas(UNICAMP) (1972-1992). Diretor do IFCH da UNICAMP (1972-1976). Sciofundador do Centro Brasileiro de Anlise e Planejamento (CEBRAP). Professor doPrograma de Estudos Ps-Graduados em Psicologia Clnica da Pontifcia UniversidadeCatlica de So Paulo, onde dirige o Laboratrio de Psicopatologia Fundamental.

    Presidente da Associao Universitria de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental(2002-2012), diretor da Editora Escuta e da Livraria Pulsional (1987-2009). Editor dePulsional Revista de Psicanlise (1987-2009). Editor da Revista Latinoamericana dePsicopatologia Fundamental. Membro da WAME - World Association of MedicalEditors. Experincia na rea de Psicopatologia Fundamental, atuando principalmentenos seguintes temas: psicopatologia fundamental, psicanlise, mtodo clnico emelancolia.

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    Acting oute passagem ao ato: a histria do ato no corpo

    Autores: Francisco Garzon e Manoel Tosta Berlinck

    Em oposio clara qualidade de smbolo encontrada no sintoma, amplamente

    pesquisada por Freud, encontramos na observao clnica formas de expresso

    sintomtica, muitas vezes repetidas ao longo da histria de um sujeito, a respeito das

    quais no se pode reconhecer tamanha qualidade simblica. Sua expresso

    frequentemente alcanada por meio de atos, estes sim, providos de sentido se

    considerados no contexto de uma cena.

    Dentre as muitas formas deste tipo de expresso sintomtica que podemos

    reconhecer a partir de nossa vivncia clnica, como atos-falhos, lapsos, inibies,

    trataremos nesta exposio apenas do acting-out e da passagem ao ato, traando

    distines e aproximaes entre os conceitos, de acordo com o ponto de vista dos

    autores que nos servem de referncia.

    A respeito do acting out, encontramos valiosas definies na literatura

    psicanaltica. Segundo Laplanche e Pontalis (2001), genericamente, o termo acting out

    vem sendo utilizado em psicanlise para aes que apresentam carter impulsivo,

    isolvel em relao conduta usual, que toma, muitas vezes uma forma auto ou hetero-

    agressiva.

    Passagem ao ato (passage lacte), expresso mais utilizada em francs como

    equivalente ao acting out, sugere a ideia de que o sujeito faz uma passagem - da

    representao, de uma tendncia, ao ato nu e cru. O termo atuao, situado em verbete

    diverso de acting out, definido como um ato em que o sujeito atua uma pulso,

    fantasia ou desejo, vivendo-os no presente com sentimento de atualidade e

    desconhecendo sua natureza repetitiva. Retomemos a cena em que dipo Rei passa ao

    ato, furando os prprios olhos aps o suicdio de Jocasta. A passagem ao ato de dipo

    deve ser compreendida levando-se em considerao no apenas a morte (tambm uma

    passagem ao ato) de Jocasta, mas a constatao que fizeram anteriormente sobre o

    assassnio de Laio pelas mos de dipo e sobre a relao incestuosa que viviam.

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    A dipo foi revelada, pelo pastor que primeiro o acolheu, sua origem filho de

    Laio e de Jocasta. Ao tomar conscincia de ter assassinado o prprio pai e desposado a

    prpria me, dipo se desespera:

    dipo:

    Transtornado

    Ai de mim, ai de mim! As dvidas desfazem-se!Ah! Luz do sol. Queiram os deuses que esta sejaa derradeira vez que te contemplo. Hoje

    tornou-se claro a todos que eu no poderianascer de quem nasci, nem viver com quem vivoe, mais ainda, assassinei quem no devia!(SFOCLES, 2008, p. 82)

    Jocasta, tambm ciente da revelao, recolhe-se ao quarto e comete suicdio,

    enforcando-se. Ao encontr-la, j sem vida, dipo tira a prpria viso, ferindo os olhos.

    O relato do Criado do rei a seu amigo, Corifeu, oferece uma viso da cena:

    Criado:

    Ao contemplar o quadro, entre urros horrorososo desditoso rei desfez depressa o laoque a suspendia; a infeliz caiu por terra.

    Vimos, ento, coisas terrveis. De repenteo rei tirou da roupa dela uns broches de ouroque as adornavam, segurou-os firmementee sem vacilao furou os prprios olhos,gritando que eles no seriam testemunhasnem de seus infortnios nem de seus pecados:nas sombras em que viverei de agora em diante,dizia ele, j no reconhecereisaqueles que j no quero reconhecer!Vociferando alucinado ainda erguiaas prprias plpebras e desferia novos golpes. (...) (SFOCLES,

    2008, p. 86)

    O ato desesperado de dipo pode ser pensado como um recurso ao Real, daquele

    que j no pode ver diante de si a prpria histria. Ciente da catstrofe, restou a dipo

    cegar a si mesmo. No teria sido possvel encontrar outro meio de lidar com o afeto, que

    ultrapassou suas possibilidades de elaborao e defesa.

    Segundo Roussillon (2006), o ato de dipo uma descarga. (...) O ato ento o

    preo a pagar para salvaguardar a interioridade e a organizao psquica, ele se oferece

    como anteparo, como limite (p. 206).

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    A sada de cena, neste caso, supe um apagamento de si em relao a si mesmo.

    Todos, de escravos a deuses, teriam se tornado conhecedores dos infortnios do rei. No

    entanto, o impossvel para dipo foi olhar para o fim da cena. Furando os prprios

    olhos, encerra-se em si mesmo e encerra a cena insuportvel. Seu pedido foi, por fim, o

    prprio exlio.

    Roudinesco e Plon (1998), por sua vez, em seu Dicionrio de psicanlise,

    oferecem definio de acting outque congrega, em um mesmo verbete, as atuaes

    de modo geral:

    Noo criada pelos psicanalistas de lngua inglesa e depois

    retomada tal e qual em francs, para traduzir o que Sigmund Freud

    denomina de colocao em prtica ou em ato, segundo o verbo alemo

    agieren. O termo remete tcnica psicanaltica e designa a maneira

    como um sujeito passa inconscientemente ao ato, fora ou dentro do

    tratamento psicanaltico, ao mesmo tempo para evitar a verbalizao da

    lembrana recalcada e para se furtar transferncia. No Brasil, tambm

    se usa atuao. (p. 06)

    Como se pode observar na definio, acting out e passagem ao ato so

    agrupados segundo a concepo freudiana de colocao em prtica. No entanto, ao

    longo da discusso sobre o termo, os autores introduzem os avanos propostos por

    Lacan sobre as peculiaridades desses atos, sobretudo no que tange s distines

    psicodinmicas e na relao com o objeto, observadas por ele.

    Em seu seminrio sobre a angstia, Lacan (1962-63) abordou a questo dos atossintomticos de forma bastante esclarecedora. A distino que prope baseia-se na

    posio do sujeito em relao cena em torno do conflito. A passagem ao ato seria,

    segundo sugere Lacan, a queda do sujeito para fora da cena, interrompendo seu curso. O

    acting out, segundo prope, seria a criao e sustentao da prpria cena, em um nvel

    de demonstrao bastante intencional (mesmo sendo inconsciente).

    Lacan (1962-63) afirma que o momento da passagem ao ato o do embarao

    maior do sujeito, com o acrscimo comportamental da emoo como distrbio do

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    movimento(p. 129). Seria justamente a emoo, o afeto, a impulsionar o sujeito para

    fora da cena que vinha sustentando.

    A ideia do afeto como distrbio do movimento faz sentido quando a

    reconhecemos inserida em um sistema em que no se pode ter recurso ao uso do

    smbolo. Ali onde no haveria palavra e no haveria sequer a possibilidade de

    sustentao da cena, adviria o movimento que livra o sujeito do embarao em que se

    encontra, a passagem ao ato.

    Segundo Maria Cristina BechelanyDutra, a passagem ao ato representaria uma

    tentativa de cura realizada pelo sujeito que, diante de um encontro dessa ordem e no

    estando em condies de mobilizar um significante para temperar a perplexidade

    angustiante que o assalta, lana mo do ato como uma sada possvel (DUTRA, 2000,

    p. 55).

    Segundo sugere a autora, da impossibilidade de simbolizao diante do afeto, o

    ato representaria o avesso do pensamento e da dvida, fundando para o sujeito uma

    certeza; a certeza de sair da cena em que pode ser vista pelo Outro, afirmando que a

    passagem ao ato o movimento que consiste em separar a vida de sua traduo, de sua

    transposio no Outro. Ela representa este momento em que nenhum interlocutor e

    nenhuma mediao possvel (DUTRA, 2000, p. 52).

    Iniciando a distino entre passagem ao ato e acting out, Lacan (1962-63) sugere

    que tudo que acting out o oposto da passagem ao ato(p. 136). Tal oposio seria

    principalmente situada em relao ao endereamento do ato. O acting outseria, assim,

    algo que se mostra na conduta do sujeito, dotado de nfase demonstrativa e orientado

    para o Outro (LACAN, 1962-63).

    Ainda segundo ele, a escandalosa publicidade do acting out demonstra seu

    direcionamento em direo ao Outro, clamando por um espectador capaz de interpret-

    lo. Postula que, assim como o sintoma, o acting outdemonstra um desejo desconhecidopelo sujeito, afirmando at mesmo que o acting out um sintoma. O sintoma tambm

    se mostra como outro. Prova disso que deve ser interpretado(LACAN, 1962-63, p.

    137).

    Em resumo, Lacan (1962-63) aproxima o acting outdo sintoma por consider-lo

    passvel de interpretao. No entanto, traa clara distino entre ambos ao ponderar que

    o que a anlise descobre no sintoma que ele no um apelo ao Outro (....) o sintoma,

    por natureza, gozo(p. 140). Assim sendo, o sintoma, posto que gozo encoberto, no

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    requer o reconhecimento do Outro para cumprir sua funo, no mostrao, se basta

    em si.

    Por outro lado, nesta distino, Lacan distancia a passagem ao ato do sintoma,

    considerando-a desprovida de destinatrio e de interpretao. Por esse critrio da

    interpretabilidade, podemos sugerir que o acting out guarda, ainda que de forma

    precria, valor simblico, uma vez que dirigido ao Outro para que seja interpretado.

    Na passagem ao ato, a inteno seria a do desmonte da cena, sada do sujeito do

    campo de viso do Outro, recurso ao real que paralisa a interpretao do espectador, que

    passa a lanar o olhar sobre o corpo, inanimado, do sujeito. Segundo Dutra (2000),

    contrariamente ao acting outque viria sob a forma de um dizer, a passagem ao ato seria

    um eu no quero dizer capaz de separar o sujeito do Outro, veiculando a mensagem

    de um no profundo do sujeito, dirigido ao Outro (p. 52).

    Lacan ilustra as distines que traou valendo-se, para tanto, dos casos

    apresentados por Freud em Psicognese de um caso de homossexualidade numa

    mulher (1920) e em Fragmento da anlise de um caso de histeria (1905),

    especificamente em relao nota acrescentada por ele em 1923, na qual introduz a

    identificao homossexual de Dora em relao a sua me, observada na relao de Dora

    com a Sra. K. Afirma Lacan (1962-63), quanto situao que:

    No caso de homossexualidade feminina, se a tentativa de

    suicdio uma tentativa de passagem ao ato, toda a aventura com a

    dama de reputao duvidosa, que elevada funo de objeto

    supremo, um acting-out. Se a bofetada de Dora uma passagem ao

    ato, todo seu comportamento paradoxal na casa dos K., que Freud

    prontamente descobre com tanta perspiccia, um acting out. (p. 137)

    A respeito dessa afirmao, podemos considerar que, nos casos que nos servem

    de exemplo, a passagem ao ato encerra a cena que vinha sendo atuada, dirigida ao

    Outro. Isto reitera a ideia da passagem ao ato como ato que no dirigido a algum para

    que seja decifrado, mas uma retirada do sujeito da cena, ou, conforme sugere Pinho

    (2000),do mundo do reconhecimento, onde pode se manter somente como sujeito a

    partir do tecido simblico de sua histria. (...), um ato no simbolizvel, que leva o

    sujeito a uma situao de ruptura integral (p. 78).

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    Outro ponto importante da discusso em torno de acting oute passagem ao ato

    em relao angstia, segundo props Lacan, diz respeito ao posicionamento do sujeito

    em relao ao objeto a (pequeno a). Para o presente texto, limitaremos sua definio

    a: objeto causa do desejo, desejado pelo sujeito e que se furta a ele a ponto de no ser

    representvel, ou de se tornar um resto no simbolizvel (ROUDINESCO e PLON,

    1998, p. 551).

    A posio em relao ao objeto a, objeto inassimilvel pelo significante,

    sempre de proximidade, seja na passagem ao ato, seja no acting out. Na passagem ao

    ato, a proximidade com o resto da operao que resulta no sujeito da castrao, impe

    a angstia que precipita o sujeito ao largar de mo, laisser tomber(LACAN, 1962-

    63, p. 129), seus correlatos necessrios. O mesmo poderia ocorrer ao sujeito da negao

    da castrao, tambm angustiado pela proximidade com a, ainda que desde outro

    ngulo.

    A respeito do acting out, Lacan sugere que sua proximidade com o objeto a se

    revela no fato de que o acting out, em sua exuberncia performtica, sempre se mostra

    como algo diferente do que . A cena veiculada no acting outse dirige ao Outro como

    pedido de interpretao de um enigma. Para Lacan, o cerne desse enigma estar sempre

    atrelado emergncia do objeto a.

    Tanto no primeiro caso quanto no segundo, o ato se impe, segundo Lacan

    (1962-63), pelo carter irrepresentvel do objeto. O resultado em ato da angstia

    imposta pela aproximao do sujeito ao resto que lhe falta como sujeito castrado ou

    como sujeito que negou a castrao, impe questionarmos sobre a possibilidade da

    existncia de passagem ao ato e acting outnas diferentes estruturas clnicas.

    As concepes de passagem ao ato e acting out desenvolvidas por Lacan

    desvinculam-se do condicionamento estrutura clnica, uma vez que se relacionam,

    concomitantemente, s dimenses do significante (ou do Outro) e do objeto. Ainda queo faa de forma diferente, o sujeito, em algum nvel, estar s voltas com o Outro e

    ameaado pela aproximao com o objeto a, seja na neurose, na psicose ou na

    perverso (DUTRA, 2000).

    Especificamente em relao psicose, a passagem ao ato ocorreria quando o

    sujeito no consegue operar eficazmente uma mobilizao delirante do significante.

    Com a falncia do recurso simblico, no restaria ao psictico outra possibilidade que

    no fosse lanar mo desse outro meio: o sacrifcio de um objeto real (DUTRA, 2000,p. 54).

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    Entre os anos 1975 e 1976, em seu seminrio intitulado O sinthoma Lacan

    alcanou importante avano na cenceituao do sintoma em sua funo de smbolo. Em

    sua complexa e algo obsessiva explanao acerca das propriedades do n borromeano,

    ele nos oferece a esclarecedora imagem do sintoma como liame a costurar,

    compromissar, os registros do real, imaginrio e simblico. Na estrutura do n, o

    sintoma seria a pea responsvel por impedir a desarticulao entre os demais

    elementos. Segundo Lacan (1962-63), estabelecer o lao enigmtico do imaginrio, do

    simblico e do real implica ou supe a ex-sistncia do sintoma (p. 21).

    Sob este prisma, poderamos sugerir que nos atos sintomticos esta funo de

    articulao no se completa. Em oposio ao sintoma, o ato seria incapaz de sustentar o

    atrelamento do simblico aos registros do real e do imaginrio, ainda que guarde a

    possibilidade de sntese da cena, como sugere Roussillon (2006), ao afirmar que a

    passagem ao ato seria ento nela mesma algo que contm um movimento, no interior

    do qual j teria se operado uma funo de sntese elementar, mas que no possuiria

    representao metafrica ou simblica desse vnculo, dessa ligao (p. 202).

    Outro aspecto relevante diz respeito ao endereamento do ato, a que ou a quem

    se destina. Estes atos sintomticos dos quais vimos tratando, podem destinar-se ao

    desmonte ou composio de uma cena.

    Neste sentido, pensamos que o sintoma tambm ocupa determinada posio em

    relao cena; mais uma vez haveria, quanto a isto, uma distino qualitativa a apontar.

    Enquanto nas atuaes existiria o trnsito entre o dentro e o fora da cena, entre o

    desmonte e a montagem, o sintoma neurtico seria capaz de prover a composio

    simblica do microcosmo da cena do conflito, moldado sob foras muito potentes, de

    modo a ser a forma irreconhecvel da cena do todo do conflito. Tal composio

    enigmtica requer um vasto trabalho do aparelho psquico.

    O sintoma esconde a cena do conflito. Quando o sintoma opera, ele permite queo conflito opere em outro registro, o registro do simblico. Nesse registro at pode

    aparecer o desejo, mas o motor do sintoma o gozo, traduzido na (im)possibilidade de

    acesso ao resto do conflito.

    De forma anloga, na psicose, o trabalho psquico requerido para a composio

    do sintoma delirante seria to elaborado quanto aquele que apontamos em relao

    neurose. O delrio, capaz de transformar a realidade compartilhada, moldando-a

    negao da castrao pode ser reconhecido como rico trabalho imunolgico oferecidopelo psiquismo, evitando a total fragmentao do sujeito.

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    Sabemos, sobretudo quando nos submetemos anlise pessoal, o peso que tm

    determinaes impostas pelos fatos comuns de nossa histria, pequenos traumas aos

    quais atribumos sentidos os mais diversos. Construo de cicatrizes simblicas para

    sequelas lanadas ao des-conhecido do recalque.

    Por outro lado, existiria, segundo Dunker (2006), outro efeito da passagem ao

    ato, de certa maneira oposto ideia de conjurar um fantasma, mas que dela se aproxima

    no que diz respeito sua funo: Aqui poderamos localizar os efeitos da passagem ao

    ato. Ela exprime a realizao positiva do objeto em um ato paradoxal, tal qual o

    suicdio. No se trata de purificar o excesso, mas de uma identificao com o elemento

    perturbador (p. 48).

    A contribuio desses autores endossa nossa ideia de que o recurso ao acting

    out, atrelado passagem ao ato teria a funo de criao de uma cena em que o Outro

    convocado a implicar-se na tentativa de controle dos elementos de sujeio e afetao.

    Sua tentativa de passagem para a cena do Outro, onde o homem como sujeito tem de

    se constituir, tem de assumir um lugar como portador da fala, mas s pode port-la

    numa estrutura que, por mais verdica que se afirme, uma estrutura de fico

    (LACAN, 1962-63, p. 130).

    Retomemos a cena em que dipo Rei passa ao ato, furando os prprios olhos

    aps o suicdio de Jocasta. A passagem ao ato de dipo deve ser compreendida levando-

    se em considerao no apenas a morte (tambm uma passagem ao ato) de Jocasta, mas

    a constatao que fizeram anteriormente sobre o assassnio de Laio pelas mos de dipo

    e sobre a relao incestuosa que viviam.

    A dipo foi revelada, pelo pastor que primeiro o acolheu, sua origem filho de

    Laio e de Jocasta. Ao tomar conscincia de ter assassinado o prprio pai e desposado a

    prpria me, dipo se desespera:

    dipo:

    Transtornado

    Ai de mim, ai de mim! As dvidas desfazem-se!

    Ah! Luz do sol. Queiram os deuses que esta seja

    a derradeira vez que te contemplo. Hoje

    tornou-se claro a todos que eu no poderia

    nascer de quem nasci, nem viver com quem vivo

    e, mais ainda, assassinei quem no devia!(SFOCLES, 2008, p. 82)

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    Jocasta, tambm ciente da revelao, recolhe-se ao quarto e comete suicdio,

    enforcando-se. Ao encontr-la, j sem vida, dipo tira a prpria viso, ferindo os olhos.

    O relato do Criado do rei a seu amigo, Corifeu, oferece uma viso da cena:

    Criado:

    Ao contemplar o quadro, entre urros horrorosos

    o desditoso rei desfez depressa o lao

    que a suspendia; a infeliz caiu por terra.

    Vimos, ento, coisas terrveis. De repente

    o rei tirou da roupa dela uns broches de ouro

    que as adornavam, segurou-os firmemente

    e sem vacilao furou os prprios olhos,gritando que eles no seriam testemunhas

    nem de seus infortnios nem de seus pecados:

    nas sombras em que viverei de agora em diante,

    dizia ele, j no reconhecereis

    aqueles que j no quero reconhecer!

    Vociferando alucinado ainda erguia

    as prprias plpebras e desferia novos golpes. (...) (SFOCLES,

    2008, p. 86)

    O ato desesperado de dipo pode ser pensado como um recurso ao Real, daquele

    que j no pode ver diante de si a prpria histria. Ciente da catstrofe, restou a dipo

    cegar a si mesmo. No teria sido possvel encontrar outro meio de lidar com o afeto, que

    ultrapassou suas possibilidades de elaborao e defesa.

    Segundo Roussillon (2006), o ato de dipo uma descarga. (...) O ato ento o

    preo a pagar para salvaguardar a interioridade e a organizao psquica, ele se oferece

    como anteparo, como limite (p. 206).

    A sada de cena, neste caso, supe um apagamento de si em relao a si mesmo.

    Todos, de escravos a deuses, teriam se tornado conhecedores dos infortnios do rei. No

    entanto, o impossvel para dipo foi olhar para o fim da cena. Furando os prprios

    olhos, encerra-se em si mesmo e encerra a cena insuportvel. Seu pedido foi, por fim, o

    prprio exlio.

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    Nos, Francisco Garzon e Manoel T Berlinck autores do trabalho intitulado Acting Out ePassagem ao Ato: a histria do ato no corpo, o qual submetemos apreciao daComisso Executiva do V Congresso de Psicopatologia Fundamenta AUPPF, sendovedada qualquer reproduo total ou parcial, em qualquer outra parte ou meio dedivulgao impressa ou virtual sem que a previa e necessria autorizao seja solicitada

    por escrito e obtida junto AUPPF.31/08/2012