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ACUDA, MAMÃE !!! José Gilson Farias Cavalcanti Tempos modernos os de hoje. Aliás modernos já há algum tempo. Muitas transformações no estilo de vida das pessoas no planeta. O mundo gira, as coisas mudam. Enquanto estão em processo de mudança a gente nem percebe. Quando vê mudaram. Era assim antigamente e hoje é assado. Quando vamos refletir sobre as mudanças a gente encontra explicações, justificativas e muitos somos capazes de elaborar um processo pelo qual passou uma mudança. Isso acontece em nível individual e em nível coletivo. As mudanças afetam o indivíduo e os elos da cadeia em que está envolvido. A história é o caminho pelo qual percebemos o que mudou, seja novamente individual seja em grupo. O percurso de mudança da mulher na história é dos mais emocionantes, dos mais espinhosos. O papel da mulher mudou muito, principalmente na sociedade ocidental, mudança essa impulsionada por mudanças econômicas, políticas e espirituais. Até meados do século XX, a mulher ficava em casa. Era-lhe reservado um papel de retraimento na atividade econômica e de expoente no campo afetivo da família. A menina começava a brincar de boneca, de casinha, explorando sua natureza materna. A natureza materna é essencialmente de cuidar. Cuidar da casa, do marido, dos filhos, dos irmãos. Cuidar significava, então, escutar, perceber, compreender e apoiar afetivamente os outros. Cuidava de si, é bem verdade, arrumando-se para ficar bonita também para os outros. É claro que estou me referindo a uma cultura média predominante que assim definia o que devia a mulher fazer. Sempre houve aquelas que não se enquadravam nesse papel e, por isso, pagavam um preço, às vezes alto. Mas, isso também sempre fez parte do cotidiano humano. Os que não se enquadram nos padrões definidos pelo social, embora sejam os que avancem, não são bem vistos. São criticados, excluídos, apedrejados e, muitas vezes, mortos. Tem Um que foi crucificado. Muito bem, voltemos à média das mulheres. Ao homem cabia prover a casa, materialmente falando. À mulher cabia procriar e cuidar dos filhos e do marido. Aqui cabe nos deter um pouco mais no aspecto ser mãe.

Acuda mamãe

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ACUDA, MAMÃE !!!

José Gilson Farias Cavalcanti

Tempos modernos os de hoje. Aliás modernos já há algum tempo. Muitas transformações no estilo de vida das pessoas no planeta. O mundo gira, as coisas mudam. Enquanto estão em processo de mudança a gente nem percebe. Quando vê mudaram. Era assim antigamente e hoje é assado. Quando vamos refletir sobre as mudanças a gente encontra explicações, justificativas e muitos somos capazes de elaborar um processo pelo qual passou uma mudança. Isso acontece em nível individual e em nível coletivo. As mudanças afetam o indivíduo e os elos da cadeia em que está envolvido. A história é o caminho pelo qual percebemos o que mudou, seja novamente individual seja em grupo. O percurso de mudança da mulher na história é dos mais emocionantes, dos mais espinhosos. O papel da mulher mudou muito, principalmente na sociedade ocidental, mudança essa impulsionada por mudanças econômicas, políticas e espirituais. Até meados do século XX, a mulher ficava em casa. Era-lhe reservado um papel de retraimento na atividade econômica e de expoente no campo afetivo da família. A menina começava a brincar de boneca, de casinha, explorando sua natureza materna. A natureza materna é essencialmente de cuidar. Cuidar da casa, do marido, dos filhos, dos irmãos. Cuidar significava, então, escutar, perceber, compreender e apoiar afetivamente os outros. Cuidava de si, é bem verdade, arrumando-se para ficar bonita também para os outros. É claro que estou me referindo a uma cultura média predominante que assim definia o que devia a mulher fazer. Sempre houve aquelas que não se enquadravam nesse papel e, por isso, pagavam um preço, às vezes alto. Mas, isso também sempre fez parte do cotidiano humano. Os que não se enquadram nos padrões definidos pelo social, embora sejam os que avancem, não são bem vistos. São criticados, excluídos, apedrejados e, muitas vezes, mortos. Tem Um que foi crucificado. Muito bem, voltemos à média das mulheres. Ao homem cabia prover a casa, materialmente falando. À mulher cabia procriar e cuidar dos filhos e do marido. Aqui cabe nos deter um pouco mais no aspecto ser mãe.

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Como era a nossa mãe? Bem, falo das mães que hoje têm ou teriam 80 anos de idade. Independentemente de ter desejado o filho a relação sempre foi mais próxima do que hoje em dia. Explico. A presença física da mãe serviu para construir, na média das situações, um vínculo forte com o filho criança. Podia até ter babá mas a mãe estava presente o que lhe dava suporte, mesmo nas horas de castigo. Como a relação da mãe com o bebê passa da simbiose para a interdependência, a mãe ajudava a construir um lastro, uma fundamentação, um grounding para a criança. Como? A mãe é o primeiro objeto de amor e de raiva da criança (seio bom e seio mal). É quem a acolhe na dor da fome ou da doença. É muito mais que um tomar providências. É um cuidar afetivo-emocional. A relação que vai sendo construída tem sintonia com o desenvolvimento físico-emocional, psicológico, social e espiritual da criança. A mãe estava presente em todos os momentos de passagem do filho. Amor, carinho, toque, interdição, punição, aprendizagem e acolhimento estavam à hora para a criança. E mais, os valores culturais de uma forma geral e as qualidades femininas em particular estavam à disposição para serem e eram introjetados pelos filhos. A mãe passava uma estrutura para a criança. A presença do pai ou de um substituto masculino ia, aos poucos, ajudando a construir essa estrutura. Havia tempo para olhar e saber do filho. O que gerou esse sistema? Adultos sãos, a maioria neuróticos e alguns psicóticos, é claro, quando havia uma estrutura para tal. Bem ou mal esses adultos tocaram suas vidas com alegrias e sofrimentos próprias da vida humana. Mas, o que aconteceu depois que o papel da mulher foi espichado para além do que estava colocado? Muita coisa diferente, certamente. O desenvolvimento do capitalismo acenou para um consumo desenfreado; a competição mais acirrada para existir bem, para ser reconhecido no meio da multidão. O ter passou a ser mais importante que o ser. O reconhecimento e o respeito ficaram mais estreitos para os que tem, que são os que podem. Poder passou a ser a palavra chave, a razão de viver das pessoas na sociedade. Dessa forma, o dinheiro passou a não dar para o sustento da família dentro de novos padrões que foram estabelecidos. O homem, sozinho passou a não ser capaz de suprir as necessidades materiais da família. A comida faltava ou, então, faltava a televisão colorida, a passagem para o colégio que ficava cada vez mais distante da casa, os deslocamentos cada vez mais distantes e caros, os livros que não podiam mais ser aproveitados pelos mais novos, o colégio público que caiu de nível e a necessidade de se pagar um particular, as roupas de grife cada vez mais caras, os eletrodomésticos mais facilitadores da vida no lar, os carros mais modernos, as viagens mais longínquas, o novo idioma que é preciso aprender, o computador com o qual se precisa lidar, o rejuvenescimento que é preciso perseguir etc. etc. etc. Estamos, agora, focando muito mais na vida da classe média. E aí, o que aconteceu? A mulher teve de sair de casa para trabalhar, para ajudar o sustento dessa “nova família” e para, certamente, desenvolver suas potencialidades criativas como qualquer ser humano. O padrão a ser seguido foi, então, o masculino. As mulheres foram à luta. Estudaram, ralaram e conseguiram produzir, realizar e realizar-se. Vida dura porque depois de um dia ou de um expediente de trabalho retorna a casa para, cansada, cuidar da família. Independente da qualidade de sua aparição em casa, as relações familiares mudaram, porque não poderia ser diferente.

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E o que aconteceu? A ausência da mãe no lar deixou faltas. Não dá mais para ser a mãe presente. Os cuidados hora-hora foram assumidos por babás, empregadas, avós, creches. Por melhor que seja a qualidade da presença, quando ocorre, a criança sente falta dela. O que é passado para a criança é que a vida deve ser assim mesmo, ou seja, o afeto é restrito a momentos tal qual a disponibilidade dessa mãe. O filho passa a reclamar de suas “dores” utilizando várias formas: adoece, desobedece mais freqüentemente, fica mais agressivo ou deprimido, vai mal na escola etc. etc. etc. Coitada dessa mãe que tenta conversar, primeiro, e,depois, entra no esquema das punições. Chora, desespera-se muitas vezes. “Eu faço tudo para você, veja os meus sacrifícios”. E aí, assoma um momento muito propício para a instalação do sentimento de culpa com relação ao filho. O mecanismo para a diminuição dessa culpa é pagando-lhe coisas. Faz um esforço danado para suprir sua ausência dando presentes e, claro, diminuindo os necessários limites que devem se dados desde cedo porque a vida tem limites e isso precisa ser introjetado pela criança desde cedo. Vinda desse contexto, a outrora criança mergulha na fase de adolescência. A adolescência em si já é uma fase conturbada: confrontos, necessidade de afirmação, oposição, transformações físicas pronunciadas. Mais uma vez a falta da mãe será sentida mas não admitida, agora. Quem lhe ajuda a compreender o que está se passando? Quem lhe ajuda a atravessar as dúvidas, os medos, as ansiedades, as tensões, as tristezas, as decepções? Quem lhe dará o necessário suporte afetivo-emocional para atravessar esses tortuosos caminhos? O que é da mãe? O que é do pai? Estão trabalhando, dando duro para suprir as necessidades mais materiais da família. Sobra pouco temo para a escuta, para a percepção de sinais das “dores” do agora jovem. O que fazem é reagir aos estímulos emitidos pelos filhos. Tentam uma conversa com o filho mas num momento em que podem, em que têm disponibilidade. Em vez de compreender sentem-se incompreendidos pelos filhos; em vez de escutarem, falam porque têm experiência e sabem como é a vida. Derramam sua sabedoria para, depois, acionarem o sistema de punição: suspensão da mesada, não irão mais comprar o que era desejado pelo filho, proíbem de ir à balada no ou nos próximos finais de semana quando não estabelecem uma relação de negócio: “se você for bem no colégio eu deixo você ficar na Internet” ou seja lá o que for. A distância que foi construída ao longo da história do filho vai se acentuando e, muitas vezes, chega a um fosso instransponível. Esse jovem está “pronto” para aproximar-se de outras pessoas ou situações que aplaquem a sua dor; a dor dessa realidade carregada de solidão, de incompreensão, de sentir-se deslocado, de não ser reconhecido, de falta de perspectiva na vida. O escoamento da energia poderá ir na direção das drogas, da violência, da promiscuidade sexual, da depressão, do delito. Essa passa a ser a linguagem inconsciente de sua fase atual para chamar a atenção da mãe. Mas o estrago já está feito. Mesmo que haja um movimento da mãe nessa direção, a raiva acumulada normalmente é maior do que o entendimento que possa haver. “Quando precisei você não me atendeu; agora não quero mais”. O esquema de punição da mãe pelo filho está assim montado. Parece ser intransponível o fosso que foi criado na comunicação mais profunda entre ambos. As conseqüências são as sabidas: filho matando pai; pai matando filho; filhos drogados; delinqüência; falta de profissionalização; jovem desempregado ou com subemprego; filhos desadaptados; gravidez precoce; desacato às autoridades; empobrecimento material, psicológico e espiritual. No fundo, no fundo mesmo parece haver um grito “Acuda, mamãe”. É de se supor que esses são sintomas que tem, também, outros motivos. Mas, uma de suas causas está no “cadê a mamãe?”.

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E o que tende a acontecer? Tornar-se-ão adultos que vão ter seus filhos e que reproduzirão esse padrão até que novas mudanças transformem novamente a relação entre pais e filhos.