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ACUSADO E PROTAGONISTA A ATUAÇÃO DE UM EX-ESCRAVIZADO AFRICANO Autor: Anderson Antonio De Santana Justino Orientador: Prof. José Bento Rosa Universidade Federal de Pernambuco [email protected] O artigo tem como objetivo compreender a crença na feitiçaria no período imperial brasileiro. Durante o Império, não existiam leis que regulassem as acusações de feitiçaria, diferentemente da colônia e do período republicano. Além disso, foi analisado um processo criminal ocorrido no litoral norte do Estado de Santa Catarina. O envolvido que foi estudado nesse processo tem como nome José Cabinda. Ele é um ex- escravizado africano que é acusado de roubar duas aves e praticar mandingagem na sociedade de Zimbros[SC]. A análise se estende na tentativa de entender como a sociedade imperial tratava as questões das práticas religiosas aplicadas pelos africanos e seus descendentes na questão da cura das enfermidades e de algumas necessidades que permeavam os cidadãos. Além do mais como a medicina tradicional se relacionava com as práticas africanas em relação à obtenção da cura das doenças. No período colonial as manifestações religiosas afro-brasileiras eram consideradas como práticas criminosas. A feitiçaria (como eram conhecidos os rituais) estava sujeita a pena de morte pelas Ordenações Filipinas 1 . Já no Império, diferentemente da colônia, a feitiçaria não era classificada como crime, nem pelo Código Criminal tão pouco pela Constituição. A imagem negativa do feiticeiro como o homo magus, conceito de Francisco Bethencourt ao estudar processos inquisitoriais do século XVI que tinha relação com a magia, foi nutrida pelo imaginário religioso propagado pelo Tribunal do Santo Ofício. 1 Ordenações Filipinas - LIVRO 5, Título III - Dos feiticeiros. [...] qualquer pessoa que em circulo, ou fora delle, ou em encruzilhada invocar spiritos diabolicos, ou der a alguma pessoa a comer ou a beber qualquer cousa para querer bem, ou mal, a outrem, ou a ontrem a elle, morra por isso morte natural.

ACUSADO E PROTAGONISTA A ATUAÇÃO DE UM EX …€¦ · diabólica. A grande parte dos curandeiros eram homens indígenas, africanos e mestiços. O curandeirismo colonial associava

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ACUSADO E PROTAGONISTA – A ATUAÇÃO DE UM EX-ESCRAVIZADO

AFRICANO

Autor: Anderson Antonio De Santana Justino

Orientador: Prof. José Bento Rosa

Universidade Federal de Pernambuco

[email protected]

O artigo tem como objetivo compreender a crença na feitiçaria no período

imperial brasileiro. Durante o Império, não existiam leis que regulassem as acusações de

feitiçaria, diferentemente da colônia e do período republicano. Além disso, foi analisado

um processo criminal ocorrido no litoral norte do Estado de Santa Catarina. O

envolvido que foi estudado nesse processo tem como nome José Cabinda. Ele é um ex-

escravizado africano que é acusado de roubar duas aves e praticar mandingagem na

sociedade de Zimbros[SC].

A análise se estende na tentativa de entender como a sociedade imperial tratava

as questões das práticas religiosas aplicadas pelos africanos e seus descendentes na

questão da cura das enfermidades e de algumas necessidades que permeavam os

cidadãos. Além do mais como a medicina tradicional se relacionava com as práticas

africanas em relação à obtenção da cura das doenças.

No período colonial as manifestações religiosas afro-brasileiras eram

consideradas como práticas criminosas. A feitiçaria (como eram conhecidos os rituais)

estava sujeita a pena de morte pelas Ordenações Filipinas1. Já no Império,

diferentemente da colônia, a feitiçaria não era classificada como crime, nem pelo

Código Criminal tão pouco pela Constituição.

A imagem negativa do feiticeiro como o homo magus, conceito de Francisco

Bethencourt ao estudar processos inquisitoriais do século XVI que tinha relação com a

magia, foi nutrida pelo imaginário religioso propagado pelo Tribunal do Santo Ofício.

1 Ordenações Filipinas - LIVRO 5, Título III - Dos feiticeiros.

[...] qualquer pessoa que em circulo, ou fora delle, ou em encruzilhada invocar spiritos diabolicos, ou der

a alguma pessoa a comer ou a beber qualquer cousa para querer bem, ou mal, a outrem, ou a ontrem a

elle, morra por isso morte natural.

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Esse órgão religioso perseguiu e foi fundamental na construção negativa do feiticeiro.

Conforme Bethencourt o homo magus possuía técnicas e poderes, dentre eles,

[...] a comunicação com os espíritos (almas, demônios anjos e

santos), obtida por revelação [...] conjuros, transes, fervedouros. [...] As

capacidades taumatúrgicas raras vezes se assumiam abertamente,

permanecendo envolvidas pela manipulação formal de algumas técnicas

tradicionais de cura: benção, unções, rezas, mezinhas, emplastros, ungüentos

e lavatórios (BETHENCOURT, 2004, p. 164).

No novo mundo esse imaginário ajudou a conceituar as características das

pessoas com crenças que divergiam da religião oficial, Católica Apóstólica Romana, e

que por causa dessa diferença religiosa deveriam ser punidas. Essas manifestações

religiosas poderiam ter diferentes nomenclaturas a depender do tempo e do espaço.

Feitiçaria, cura, magia, batuque são descritas nos documentos, algumas vezes

indistintamente, demostrando que ambas as palavras eram utilizadas para caracterizar o

uso de diferentes práticas erradas, marginalizadas e perigosas.

As práticas mágicas, no período colonial, eram inúmeras e estavam presentes no

cotidiano social. Entre as mais conhecidas estão o curandeirismo e a magia simpática.

A magia simpática é uma junção de superstições populares com credos religiosos

católicos, ela tenta solucionar questões costumeiras de saúde, casamento, dinheiro e

conflitos amorosos.

Para alguns historiadores o uso de alguns ritos da Igreja no paganismo, foi uma

maneira de interferência do Diabo na vida humana, invertendo os ritos da Igreja, como

os Sabás (missas às avessas). Isto é, as bruxas quando praticam seus rituais não

“construíam” algo novo, mas sim, faziam as mesmas práticas cristãs de uma maneira

diabólica.

A grande parte dos curandeiros eram homens indígenas, africanos e mestiços. O

curandeirismo colonial associava o conhecimento de ervas e procedimentos rituais de

matriz africana e indígena à medicina popular praticada na Europa. Além de realizar

cura de doenças também tinham uma característica de desfazer feitiços. Sendo ele

mesmo um feiticeiro, também poderia provocar malefícios. Segundo Pieroni (2006, p.

169) “quase sempre, o curandeiro era um homem que se dizia capaz de curar as chagas

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do corpo e da alma, acumulando múltiplas funções como as de médico, de padre e de

sábio”. As pessoas que eram curandeiras tinham um grande prestígio entre a população

colonial, pois devido à falta de médicos, estas representavam esse papel de administrar a

cura. Algumas vezes quando o curandeiro não conseguia sanar uma doença, o doente

recorria aos padres exorcistas (esses casos eram raros, por causa do grau de

conhecimento que deveriam possuir para exercer esta função). A Inquisição acreditava

que os poderes de cura destes homens vinham do Diabo, sendo constantes as acusações

contra eles.

As benzeduras, alcovitarias (magia que tem por objetivo solucionar problemas

amorosos) e as adivinhações também estavam incluídas nas de práticas mágicas

coloniais. Estas eram as práticas mais frequentes neste período e ainda são devido ao

fato desse tipo de magia simpática continuar presente no Brasil atual.

Faziam parte do cotidiano colonial, feitiços realizados com o objetivo de

provocar danos e até mortes de inimigos. Nesse contexto colonial, existia uma grande

tensão entre senhores e escravos que se destacava. Por causa da exploração e violência a

qual o escravo estava submetido, a magia maléfica transformou-se em um mecanismo

necessário para a autodefesa do escravo. Ao mesmo tempo em que esta magia servia

como uma defesa do escravo contra o senhor, também assegurava a violência deste

sobre o cativo. Os escravos acusados de feitiçaria sofriam de grande violência física,

para que seus malefícios fossem desfeitos.

As práticas mágico-religiosas eram uma das questões que tiravam o sossego dos

senhores e das autoridades, pois tinham como objetivo envenenar, curar ou enfeitiçar

pessoas. As práticas das curas e adivinhações eram exercidas por diferentes grupos

sociais e classes, de várias etnias e procedências culturais nos oitocentos. Apesar da

diversidade de grupos sociais, entre os curandeiros, benzedores, adivinhos e feiticeiros,

existiam um grupo que se destaca que são os africanos e os crioulos. Esses sofriam

perseguições da polícia e de seus próprios clientes, pois souberam apropriar dos

conhecimentos mágico-religiosos, atrelados as tradições terapêuticas, com o objetivo de

atender as necessidades e desejos das pessoas que lhe procuravam no intuito de serem

favorecidas pelos seus poderes. Estes conseguiram alcançar fama, influência e capital

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que o ajudaram no convívio social, em alguns casos por causa dos benefícios adquiridos

e em outros por causa do medo de seus poderes.

No Império a feitiçaria não era um crime. Não existia nenhum dispositivo na

Constituição de 1824 e no Código Criminal de 1830 que apontasse a feitiçaria2 como

crime. Entretanto existiam outras maneiras de torná-la crime e uma das principais era

atribuir ao fato a transgressão da moral e dos bons costumes além da associação com

outros crimes, como roubo e revoltas.

A crença da elite brasileira na mesma estava no limite do

aceitável como norma de comportamento e atingiu a Justiça através das

várias etapas de um processo criminal. Este não poderia ser instaurado

porque, segundo nossas pesquisas, a prática da feitiçaria e nem mesmo a

acusação de feitiçaria faziam parte do Código Criminal do Império.

Lembremos que a acusação de feitiçaria é uma acusação de natureza moral, e

que, no bojo de um processo criminal, entra na esfera jurídica pelo

entendimento do que era um comportamento negativo ou positivo por parte

do Estado imperial brasileiro. Para tanto, a elite senhorial devia acreditar na

existência da feitiçaria, ao menos em sua eficácia. (COUCEIRO, 2004, p. 23-

24).

O feiticeiro é regido por parâmetros religiosos que o mostram de forma

negativo, acarretando em uma imagem social de um indivíduo perigoso e causador de

males. Devido a sua imagem negativa, existe um combate social para expulsão ou

afastamento, da pessoa identificada como feiticeira, do convívio da sociedade. Esse

distanciamento, algumas vezes, ocorre pelo acionamento de dispositivos legais, mesmo

quando a constituição garantia o direito a todas as outras religiões, não católicas, de

praticarem seu culto doméstico em casas que não parecessem com características de

templos.

O Código Criminal vigente no Império do Brasil em 1830 não classificava como

crime a prática de feitiçaria, como mencionado anteriormente, entretanto as Ordenações

Filipinas, agrupamento de leis das colônias portuguesas, e o Código Penal da República,

de 1890, previa a aplicação de punições para os indivíduas que fizesse uso dessa prática.

2 Não apenas a feitiçaria, mas a magia, bruxaria e outras nomenclaturas relacionadas às religiões de matriz africana não eram classificada enquanto crime.

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No Título 3 do Livro 5 daquelas Ordenações, intitulado “Dos Feiticeiros”, é possível ler

vários atitudes que são consideradas como sendo ‘’feitiçaria’’, porém não fica claro a

definição desta palavra. A pessoa que fosse acusada de feitiçaria deveria pagar três mil

réis ao acusador, levar açoites no braço, na vila em que morasse, além disso, o indivíduo

era degredado para o Brasil. A feitiçaria também aparece em outras situações como

acusação nas Ordenações. No Título 88 do Livro 4, “Das causas porque o pai ou mãe

podem deserdar seus filhos”, o Item 7 diz respeito a deserção no caso de alguém “usar

de feitiçaria ou conversar com feiticeiros”. Existe também uma nota com um nome

chamado de “Feiticeiros” que não consegue definir a feitiçaria e também o feiticeiro (a).

Com relação ao Código Penal republicano, existe a regulamentação da crença,

mas não deixa aparente a feitiçaria, em três artigos. O artigo 156 reprovava: “Exercer a

medicina em qualquer de seus ramos e a arte dentária ou farmácia; praticar a

homeopatia, a dosimetria, o hipnotismo ou o magnetismo animal, sem estar habilitado

segundo as leis e regulamentos”. Já o artigo 157 desaprovava “Praticar o espiritismo, a

magia e seus sortilégios, usar talismãs e cartomancia para despertar sentimentos de ódio

e amor, inculcar cura de moléstias curáveis e incuráveis, enfim, para fascinar a

credulidade pública”, e o artigo 158 reprovava “Ministrar, ou simplesmente prescrever,

como meio curativo para uso interno ou externo e sob qualquer forma preparada,

substância de qualquer dos reinos da natureza, fazendo ou exercendo, assim, o ofício

denominado de curandeiro”. (MAGGIE, 1992, p. 22-3)

O termo ‘’feitiçaria’’ não aparece no Código Criminal do Império3. Nos arquivos

brasileiros os crimes cometidos no Império são regulamentados por esse Código, e

nesse não há acusações referentes à prática e crença de feitiçaria como justificativa legal

para a abertura de um processo criminal. No entanto, essas acusações podem ser

encontradas dissolvidas em outras fontes, como: um processo criminal de homicídio,

outro de estelionato, notícias de jornais. Além do mais, a feitiçaria pode ser vista em

3 Foi utilizada a edição: Código Criminal do Império do Brazil annotado com os atos dos poderes

Legislativo, Executivo e Judiciário, que têm sofrido mudança desde que foi publicado, e com o cálculo

das penas em todas as suas aplicações por Araújo Figueiras Júnior (Bacharel em Direito), 2ª Edição,

cuidadosamente revista e aumentada com os atos dos Poderes supra-referidos, expedidos depois da 1ª

Edição, [1876], Rio de Janeiro, Eduardo e Henrique Laemmert.

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narrativas românticas, com personagens principais chamados de feiticeiros4. As pessoas

sofriam punições por diferentes delitos previstos no Código Criminal, como homicídio,

estelionato, e entre outro, mas pela prática ou crença na feitiçaria não.

No século XIX, o uso das práticas de curandeiros parece ter sido comum. De

acordo com Oswaldo Cabral, quando tratado dos oitocentos em Santa Catarina, aponta

que “entre a gente fina, de altos coturnos, não era menor o temor ao sobrenatural” do

que entre as pessoas pertencentes às camadas menos favorecidas (CABRAL, 1942, p. 264-

65).

O século XIX foi marcado por várias circunstâncias, entre essas uma guerra

estabelecida entre médicos contra aqueles que exerciam práticas de cura. Eles

organizaram-se institucionalmente na defesa do monopólio da saúde e também das

práticas de curar, com a confecção de diplomas, que assegurava ao indivíduo portador

do mesmo a permissão para tratar das doenças. De acordo com Paula Montero, durante

todo o século XIX, o domínio da profissão médica não foi capaz de suficientemente

afastar outras maneiras de praticar a cura e de definições de doenças e devido a isso a

instituição médica não conseguiu se colocar na sociedade de forma absoluta.

A autora Gabriela Sampaio constatou que no período do Império uma grande

parte da população da Corte observava com certa apatia os conflitos internos entre os

médicos sobre as práticas médicas e afirmou como esse fato prejudicou a construção de

um grupo de influência política forte o suficiente para introduzir novas leis no Código

Criminal, que versassem a respeito de outras práticas de cura que não as denominada

como medicina. Com frequência, médicos faziam agressões uns aos outros através de

acusações de imperícia e, em alguns momentos chegando até mesmo, a afirmar

ineficácia dos tratamentos recomendados – queixas semelhantes àquelas realizadas pelos

médicos aos curandeiros – e acusavam-se, até mesmo publicamente, de

“charlatanismo”. A medicina não tinha um prestígio junto à população e também não

conseguia se firmar, o que reforçava ainda mais o “reconhecimento” das atividades mais

antigas de cura pela sociedade.

4 Em alguns romances foi analisada, percebe-se a presença de feiticeiros, por exemplo, por Gabriela dos

Reis Sampaio, “Majestades do oculto: imagens de líderes religiosos negros na literatura dos oitocentos no

Brasil.”

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Segundo Maria Lúcia Schritzmeyer, embora tenha surgido na década de 1870 um

debate organizado entre médicos e jurisconsultos a respeito das maneiras de legalização

das práticas curativas, esse debate, ao longo de todo o Império, não conseguiu resultar

na inserção da feitiçaria como prática curativa no Código Criminal não aprovada pelo

Estado. Uma grande parte dos jurisconsultos, entretanto, preocupava-se com as relações

entre a criminalidade e as práticas curativas que não tivessem sob o controle do Estado.

Apesar de Sampaio e Schritzmeyer sustentar a ideia de que a instituição médica

no Brasil demorou a se constituir de maneira hegemônica por uma “falha” no combate

aos falsos médicos e curandeiros, Yvonne Maggie, estudando o período republicano,

descobriu outra estrutura do mesmo processo. A autora encontrou que a repressão aos

falsos médicos, curandeiros e mágicos obedecia a uma estrutura que em vez de extinguir

a crença na magia serviu para organiza-la, hierarquizá-la e, dessa maneira discipliná-la.

Há um caso interessante que ocorre em Tijucas, Litoral Norte de Santa Catarina,

no início da República, que mostra esse contexto de feitiçaria e práticas de cura como

um processo conflituoso entre o indivíduo que fazia uso dessas práticas e a sociedade

que o cercava. Esse era um ex-escravizado africano que tentou sobreviver dentro desse

meio social. Ele é indiciado e preso, provisoriamente para as investigações, pelo furto

de duas aves. Este tem por nome José Cabinda. Ele foi acusado pelo roubo das aves,

mas, no entanto o processo criminal é conduzido pelas testemunhas no intuito de acusa-

lo de práticas que o conduziam a fazer o mal para as pessoas que estão a sua volta.

Em 20 de outubro de 1890, o africano Cabinda foi preso em sua casa, que se

localizava em Zimbros, da comarca de Tijucas. A autoridade que efetuou a prisão foi o

inspetor do décimo quarteirão, Marcos João de Deus, que naquele momento contou com

a ajuda dos guardas Martinho Lourenço de Souza e João Batista Sobrinho. O processo

criminal foi iniciado com a Autuação do réu, para investigações, e em segue caminha

por várias etapas para o esclarecimento dos fatos que estão descritas no código do

processo criminal como peças processuais. Entre essas podemos citar: auto de prisão5,

5 Nessa peça processual o promotor público do Município da Comarca de São Sebastião de Tijucas –

Estado de Santa Catarina informa o mandado de prisão contra o acusado.

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auto de qualificação6, inquérito policial7, interrogatório8, exame de corpo e delito9,

argumentos da promotoria e depoimento das testemunhas. As autoridades envolvidas

no processo são: Escrivães10, Subdelegado de Polícia11, Promotor Público12, Guarda

Policial 13e o Oficial de Justiça14.

Cabinda foi preso preventivamente para investigações e junto dele foi aprendida

uma caixa de madeira, chamada caixa de mandingagem pelos seus acusadores. Nela

foram realizados pelos peritos nomeados, os cidadãos Zeferino Antônio Rodrigues de

Carvalho e José Romualdo de Caldas, o Exame de Corpo e Delito. Dentro da caixa

foram encontrados objetos que contribuíam para a imagem negativa de Cabinda de ser

curandeiro. Entre os objetos encontrados estavam: um caramujo hermeticamente

fechado contendo dentro do mesmo alguns fragmentos de cascas de vegetais, um

pedaço de lixa de cação, um pedaço de uma vela de sebo e um cálice quebrado e grande

quantidade de raízes de vegetais, que era desconhecida a ação delas pelos peritos. Esses

instrumentos encontrados dentro da caixa reforçavam o argumento das testemunhas de

acusação. Elas diziam que esses utensílios eram usados por Cabinda nas práticas de cura

6 O Auto de Qualificação é uma peça necessária que antecede o Interrogatório, é a junção de várias

perguntas que são realizadas pela autoridade policial, com fundamento legal, que contribuem para dar

respaldo ao inquiridor a respeito dos dados pessoais e a personalidade do indivíduo a ser interrogado. 7 Inquérito policial: Procedimento que é formado por diversas diligencia apresentadas na lei que tem

como objetivo a obtenção de indícios de autoria e materialidade delitiva. 8 Interrogatório: É o ato pelo qual o juiz questiona o acusado a respeito do fato de objeto do processo e

também a respeito dos dados de sua qualificação pessoal. 9 Exame de Corpo e Delito: É o conjunto de características materiais ou vestígios que indicam a

existência de um crime. 10 Responsável por catalogar as informações do processo. Este organiza a fala de cada elemento

constituinte no processo criminal e também registra as resoluções de cada autoridade criminal. 11 Autoridade que representava um poder local. Foi o elemento jurídico responsável pela prisão

preventiva de José Cabinda para maiores investigações. 12 De acordo com o Código do processo criminal de 1832: ‘’Art. 36. Podem ser Promotores os que podem

ser Jurados; entre estes serão preferidos os que forem instruidos nas Leis, e serão nomeados pelo Governo

na Côrte, e pelo Presidente nas Provincias, por tempo de tres annos, sobre proposta triplice das Camaras

Municipaes.Art. 37. Ao Promotor pertencem as attribuições seguintes: 1º Denunciar os crimes publicos,

e policiaes, e accusar os delinquentes perante os Jurados, assim como os crimes de reduzir á escravidão pessoas livres, carcere privado, homicidio, ou a tentativa delle, ou ferimentos com as qualificações

dos artigos 202, 203, 204 do Codigo Criminal; e roubos, calumnias, e injurias contra o Imperador, e

membros da Familia Imperial, contra a Regencia, e cada um de seus membros, contra a Assembléa Geral,

e contra cada uma das Camaras. 2º Solicitar a prisão, e punição dos criminosos, e promover a execução

das sentenças, e mandados judiciaes. 3º Dar parte ás autoridades competentes das negligencias, omissões,

e prevaricações dos empregados na administração da Justiça. ‘’ 13 Profissional responsável pela captura de José Cabinda e também pela condução do mesmo para as

investigações. 14 De acordo como o Código do Processo Criminal no ‘’ Art. 21. Aos Officiaes de Justiça compete: 1º

Fazer pessoalmente citações, prisões, e mais diligencias. 2º Executar todas as ordens do seu Juiz.

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e também nos trabalhos realizados pelo mesmo para se desfazer de algum desafeto.

As testemunhas apontam que Cabinda era um curandeiro. Elas afirmavam que o

mesmo se utilizava de práticas mágicas para ganhar dinheiro e se sustentar. Algumas

pessoas afirmavam que ele vivia como um Paxá, 15que não ganhava a vida do suor de

seu trabalho físico. Para as testemunhas a vida de Cabinda não requeria tanto esforço.

Em alguns depoimento é percebido um sentimento de inveja da vida do ex-escravizado,

pois como um africano livre conseguia ter uma qualidade de vida melhor do que os que

nunca conheceram a escravidão.

Nenhuma das testemunhas que se apresentaram no processo criminal defendeu

Cabinda. Essa atitude pode ser explicada pelo fato do ciclo de amizade do ex-

escravizado ser fechado. Nos primeiros anos da República, era difícil para um ex-cativo

se integrar dentro da sociedade brasileira, pois existiam mecanismos que privavam seu

ingresso. Entre os obstáculos enfrentados estão o fato da repressão social as práticas

religiosas africanas exercidas por Cabinda. Por ser africano carregava consigo cultura e

religiosidade que dentro da sociedade brasileira era enxergada de maneira

marginalizada. A religião africana era e ainda é colocada como diabólica16.

As testemunhas de acusação em grande maioria exerciam atividades relacionadas

com o cultivo da terra. Eram pessoas que cuidavam e tiravam da terra seu sustento.

Existia dentre os lavradores um que se diferenciava ocupando a função de negociante.

Esse se chamava Francisco José dos Santos.

Cabinda no início do processo criminal, Inquérito policial, se coloca como

fazedor de esteiras, passado algum tempo, ocorre uma mudança na sua resposta quando

interrogado a respeito da sua ocupação. No segundo momento, no Interrogatório,

quando questionado sobre sua ocupação, Cabinda afirmou que era um lavrador. Essa

mudança na resposta demonstra como era difícil à vida de um ex-escravizado nos

primeiros anos da República. Este deveria exercer várias funções para tentar sobreviver

e provar para a sociedade que poderia desempenhar uma ocupação. Ele quando

demonstra a necessidade de exercer várias funções, aponta para uma hipótese de que

estava tentando se integrar na sociedade de uma maneira que não infringisse as normas

15 Indivíduo que tem uma vida faustosa. Sujeito que demonstra pompa, poderoso e rico. 16 Que faz oposição ao cristianismo. As suas práticas religiosas se colocam como antagonistas a doutrina

cristã.

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do Código do Processo Criminal. Ele com essa atitude provavelmente não queria ser

apontado como vagabundo assim como regia o Art. 300 do Código do Processo

Criminal:

[...]São considerados vagabundos os individuos que, não tendo

domicilio certo, não têm habitualmente profissão ou officio, nem renda, nem

meio conhecido de subsistencia. Serão considerados sem domicilio certo os

que não mostrarem ter fixado em alguma parte do Imperio a sua habitação

ordinaria e permanente, ou não estiverem assalariados ou aggregados a

alguma pessoa ou família[...].

As testemunhas, no Inquérito Policial, acusaram Cabinda de práticas que traziam

males para a sociedade que estava a sua volta. Os seus depoimentos eram embasados

em discursos que anunciavam a presença de cada testemunha no momento da ocorrência

dos fatos, mas em outros momentos os depoimentos eram sustentados por discursos de

falas de terceiros, o ouvir dizer. Em outro momento do processo, no Interrogatório,

pode-se perceber que as testemunhas não estavam mais seguras dos seus relatos. Esse

fato de abrandamento das acusações pode ter ocorrido devido ao distanciamento do fato

ocorrido do roubo das aves até o Interrogatório.

Cabinda falou que não sabia com certeza quantos anos possuía, mas que fazendo

alguns cálculos tinha aproximadamente oitenta anos no início do processo. Entretanto

quando o processo criminal avança passando por diferentes peças processuais, ocorre

uma mudança na afirmação do acusado. Ele quando é indagado pelo juiz a respeito de

sua idade no Auto de Qualificação, fala com mais firmeza sua idade e diz que tem cem

anos de idade. Além disso, ele se coloca como um preto velho que não poderia causar

mal para ninguém.

Cabinda quando questionado no Interrogatório se possuía uma residência, falou

que sim, e que no momento do roubo das aves passou o dia todo fora de casa e só a

noite retornou para sua residência. Quando chegou a sua casa, foi abordado por sua

esposa que pediu para este recolher a ave do casal que estava no quintal da sua casa com

seus filhotes. Cabinda fala que se dirigiu ao quintal para recolher as aves e não percebeu

que existia um quantitativo maior de aves, devido ao fato de sua ave ter gerado

recentemente filhotes. Só quando amanheceu é que Cabinda falou que percebeu que

entre as suas aves estava as do vizinho, o senhor Fermiano Mathias. Ele afirma que na

circunstância do furto das aves não tinha conhecimento do que estava fazendo e que

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acreditava que o ocorrido aconteceu devido ao fato de que sua ave, um peru, tinha

gerado filhotes e que as aves de Fermiano haviam acompanhado esses filhotes o dia

todo, por isso estas estavam na sua casa. Ele no decorrer do processo percebe que

precisava se defender para não ser condenado pelo crime que foi acusado. Este começa

a informar as autoridades elementos que demonstravam seu vinculo com o meio que

estava inserido. Ainda no Interrogatório, Cabinda é questionado por qual motivo ele

achava que Fermiano Mathias tinha o acusado de roubo. O ex-escravizado se defende

dizendo que Fermiano tem um desafeto com ele e que este havia pedido para que as

testemunha jurassem em seus depoimentos contra Cabinda. Ele ainda alegava que nada

tinha feito do que foi acusado, portando inocente de todas as acusações, sejam essas

diretas, dentro do código criminal, ou indiretas, aquelas que não possuem registro de

infração no código criminal do Império.

No dia 15 de dezembro de 1890 Cabinda foi absorvido pelo promotor público

Henrique Carlos Boiteux após dois meses em que esteve preso. O promotor julgou

improcedente a denúncia feita contra o réu José Cabinda alegando que não existiam

exames cadavéricos que comprovasse o crime. Além disso, Boiteux falou que o

depoimento das testemunhas não são claros e constantes, e que não existe nenhuma

prova da culpabilidade do acusado no crime. Dessa maneira, Cabinda é inocentado no

processo criminal. Este processo judicial na qual teve como participante José Cabinda

ajuda a fornecer alguns elementos de como era o contexto do pós-abolição. Além disso,

nesse processo podem-se perceber algumas maneiras e estratégias de sobrevivência de

um indivíduo escravizado durante a vigência do Código Criminal de 1830 e o Código

do processo criminal de 1832. Esse indivíduo se apresenta dentro do processo criminal

como um sujeito histórico ativo que foi construindo sua identidade ao longo do

processo. Identidade essa confusa devido ao fato de que estava dentro de uma sociedade

que não criou mecanismos para a sua inserção na mesma após o período da abolição.

FONTES

Processo manuscrito no qual é réu José Cabinda. Esse processo já foi transcrito pelo professor Dr. José

Bento (arquivo do Fórum de Tijucas) .

REFERÊNCIAS

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