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BAHIA ANÁLISE & DADOS SALVADOR • v.22 • n.3 • JUL./SET. 2012 ISSN 0103 8117 DI

A&D Biodiversidade

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Revista Bahia Análise & Dados Biodiversidade - Ano 2012

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BAHIA ANLISE & DADOSSALVADOR v.22 n.3 JUL./SET. 2012 ISSN 0103 8117

BIODIVERSIDADE

BAHIA ANLISE & DADOS

ISSN 0103 8117

Bahia anl. dados

Salvador

v. 22

n. 3

p. 463-595

jul./set. 2012

Foto: Stock xchng/Domenic Gebauer

Governo do Estado da Bahia Jaques Wagner Secretaria do Planejamento (Seplan) Jos Sergio Gabrielli Superintendncia de Estudos Econmicos e Sociais da Bahia (SEI) Jos Geraldo dos Reis Santos Diretoria de Informaes Geoambientais (Digeo) Antonio Jos Cunha Carvalho de Freitas Coordenao de Recursos Naturais e Ambientais (CRNA) Aline Pereira RochaBAHIA ANLISE & DADOS uma publicao trimestral da SEI, autarquia vinculada Secretaria do Planejamento. Divulga a produo regular dos tcnicos da SEI e de colaboradores externos. Disponvel para consultas e download no site http://www.sei.ba.gov.br. As opinies emitidas nos textos assinados so de total responsabilidade dos autores. Esta publicao est indexada no Ulrichs International Periodicals Directory e na Library of Congress e no sistema Qualis da Capes.

Conselho Editorial ngela Borges, ngela Franco, Ardemirio de Barros Silva, Asher Kiperstok, Carlota Gottschall, Carmen Fontes de Souza Teixeira, Cesar Vaz de Carvalho Junior, Edgard Porto, Edmundo S Barreto Figueira, Eduardo L. G. Rios-Neto, Eduardo Pereira Nunes, Elsa Sousa Kraychete, Guaraci Adeodato Alves de Souza, Inai Maria Moreira de Carvalho, Jos Geraldo dos Reis Santos, Jos Ribeiro Soares Guimares, Laumar Neves de Souza, Lino Mosquera Navarro, Luiz Filgueiras, Luiz Mrio Ribeiro Vieira, Moema Jos de Carvalho Augusto, Mnica de Moura Pires, Ndia Hage Fialho, Nadya Arajo Guimares, Oswaldo Guerra, Renato Leone Miranda Lda, Rita Pimentel, Tereza Lcia Muricy de Abreu, Vitor de Athayde Couto Editoria-Geral Elisabete Cristina Teixeira Barretto Editoria Adjunta Patricia Chame Dias Editor Urandi Paiva Conselho Especial Temtico Antonio Cunha (SEI), Cristiana Vieira (Sema), Ftima Espinheira (Seplan), Rosalvo de Oliveira Jnior (Inema) Coordenao Editorial Antnio Cunha Aline Rocha Rita Pimentel Coordenao de Biblioteca e Documentao (Cobi) Eliana Marta Gomes da Silva Sousa Normalizao Eliana Marta Gomes da Silva Sousa Isabel Dino Almeida Coordenao de Disseminao de Informaes (Codin) Elisabete Cristina Teixeira Barretto Reviso de Linguagem Laura Dantas (port.), Rafael Cardoso Cunha (ing.) Editoria de Arte Ludmila Nagamatsu Capa Daniel Soto Editorao Agap Design Produo Daiane Oliveira rika EncarnaoBahia Anlise & Dados, v. 1 (1991- ) Salvador: Superintendncia de Estudos Econmicos e Sociais da Bahia, 2012. v.22 n.3 Trimestral ISSN 0103 8117 CDU 338 (813.8) Impresso: EGBA Tiragem: 1.000 exemplares Av. Luiz Viana Filho, 4 Av., n 435, 2 andar CAB CEP: 41.745-002 Salvador Bahia Tel.: (71) 3115-4822 / Fax: (71) 3116-1781 [email protected] www.sei.ba.gov.br

SUMRIOApresentao Metas brasileiras de biodiversidade para 2020: exemplo de construo participativa no marco da Conveno de Diversidade Biolgica CDB/ONU Frederico Soares Machado Luiz Fernando Krieger Merico Suzana Machado Pdua Caroline Deliles Rafael Morais Chiaravalloti Maria Ceclia Wey de Brito Biodiversidade e desenvolvimento na Bahia Guilherme Fraga Dutra Jean Franois-Timmers Carlos Alberto Bernardo Mesquita Lcio Cadaval Bed Tiago Cisalpino Pinheiro Luiz Paulo Pinto RPPN na Bahia: uma estratgiade conservao que vem dando certo Leonardo Euler Laranjeira da Silva Santos Ney Lucas dos Reis Ribeiro Samantha Almeida Nery G. Grimaldi Eduardo Morais Macedo Avaliao da eficincia da rede de Unidades de Conservao da Natureza na proteo da avifauna da caatinga baiana Marianna de Santana Pinho Carlos Hiroo Saito 467 469 Influncia do crdito de reposio florestal na reduo dos impactos negativos causados pelas atividades das indstrias baianas que utilizam bioenergia Pascoal do Sacramento Arajo Jnior Jos Carlos Jesus da Fonseca Pricles Ferreira de Cristo Maria Tereza de A. e Andrade Ana Cristina Franco Magalhes Diversidade vegetal e etnoconhecimento: a etnobotnica da aldeia Trevo do Parque, Itamaraju-BA Danielli Gigante Trancoso Karen Frana Moreira Tathiane Maiara Ferreira Miranda Henrique Machado Dias Biodiversidade da regio de Busca Vida/Abrantes: subsdio para a criao de uma unidade de conservao no litoral norte da Bahia Jaelson de Oliveira Castro Marianna de Santana Pinho Marco Antonio de Freitas As relaes ambientais e a biodiversidade: transversalidade no currculo da educao bsica na Bahia Maria Sacramento Aquino Moyss Peixoto Aquino 537

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Foto: Jaelson Castro

APRESENTAOpreocupao com a proteo diversidade biolgica emergiu nas ltimas dcadas do sculo XX, a partir do alerta em relao aos perigos iminentes de extino de espcies e degradao de ecossistemas. Questes geopolticas importantes foram levantadas na medida da variao desses perigos entre as regies tropicais e aquelas de clima temperado do planeta. A associao da proteo da biodiversidade com a defesa do patrimnio cultural de comunidades tradicionais de pases emergentes colocou em pauta a necessidade do estabelecimento de regras para a explorao desse patrimnio, garantindo novas perspectivas de superao de desigualdades histricas num ambiente ps-industrial. Tornou-se corrente o fenmeno da biopirataria, que a expropriao de conhecimento tradicional de povos de pases emergentes por parte de agentes de pases desenvolvidos, incansavelmente denunciado por ambientalistas e organizaes da sociedade civil, o que deu origem a mecanismos institucionais de proteo da biodiversidade. A biodiversidade tambm est relacionada com os servios ecossistmicos, como a produo de gua e a ciclagem de nutrientes. Os servios ecossistmicos so descritos como contribuies diretas e indiretas dos ecossistemas, sendo classificados em servios de proviso, servios de regulao, servios culturais e servios de suporte. Sabe-se que o bem-estar humano e o desenvolvimento econmico dependem do equilbrio dos servios ecossistmicos, sendo fundamental observar como o uso, a conservao e o manejo da biodiversidade podem influenciar na sua oferta. Considerando-se essas questes, a Superintendncia de Estudos Econmicos e Sociais da Bahia (SEI) dedica este volume da Revista Bahia Anlise & Dados anlise das inter-relaes entre a biodivesidade num pas considerado megadiverso como o Brasil e o desenvolvimento sustentvel, com vistas estruturao de arranjos socioprodutivos capazes de enfrentar os nossos problemas de desigualdade social e regional. Uma discusso particularmente importante para a Bahia, que conta com quatro biomas em seu extenso territrio e com uma variedade de ecossistemas de grande potencial para o desenvolvimento de uma economia verde e inclusiva. Os artigos ora apresentados retratam a riqueza da biodiversidade brasileira e, alm disso, demonstram como iniciativas bem pensadas e alinhadas com o desenvolvimento econmico permitem o equilbrio entre as esferas ambiental e socioeconmica, perpassando pela discusso e aplicao da legislao especfica, a gesto de unidades de conservao e a necessidade de insero das questes ambientais na estrutura curricular da educao bsica. Registramos a importncia fundamental da parceria estabelecida com a Secretaria do Meio Ambiente e do Planejamento do Estado na concepo e edio deste nmero da revista e agradecemos a valiosa parceria firmada com os diversos autores que submeteram seus artigos e tornaram possvel a sua publicao, enriquecendo a discusso necessria sobre a biodiversidade enquanto relao social.

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Foto: Adriano Gambarini

BAhIA ANlISE & DADOS

Metas brasileiras de biodiversidade para 2020: exemplo de construo participativa no marco da Conveno de Diversidade Biolgica CDB/ONUFrederico Soares Machado*, Luiz Fernando Krieger Merico** Suzana Machado Pdua***Mestre em Ecologia e Manejo de Recursos Naturais pela Universidade Federal do Acre (Ufac). Coordenador de Programas na Unio Internacional para a Conservao da Natureza (UICN). [email protected]. ** Doutor em Geografia pela Universidade de So Paulo (USP). Gestor ambiental e coordenador Nacional da Unio Internacional para a Conservao da Natureza (UICN). [email protected] *** Doutora em Desenvolvimento Sustentvel pela Universidade de Braslia (UNB). Presidente do Instituto de Pesquisas Ecolgicas (IP). [email protected] **** Especialista em Gesto Territorial e Relaes Internacionais pela Escola Nacional de Administrao Territorial (Enact Frana); graduada em Engenharia Ambiental pelo Instituto Superior Ambiental (ISA Frana). Coordenadora de projetos no Instituto de Pesquisas Ecolgicas (IP). [email protected] ***** Mestre em Desenvolvimento Sustentvel pela Escola de Conservao Ambiental e Sustentabilidade (Escas). Pesquisador colaborador pelo Instituto de Pesquisas Ecolgicas (IP). [email protected] ****** Mestre em Cincia Ambiental pela Universidade de So Paulo (USP). Secretria Geral da WWF-Brasil. [email protected]*

Caroline Deliles**** Rafael Morais Chiaravalloti***** Maria Ceclia Wey de Brito******

Resumo A iniciativa Dilogos sobre biodiversidade: construindo a estratgia brasileira para 2020 reuniu os diversos setores da sociedade brasileira para debater e sugerir metas de biodiversidade para 2020, no marco da Conveno sobre a Diversidade Biolgica (CDB) de Nagoya, Japo (COP-10). Um conjunto de documentos foi gerado durante 12 eventos nacionais, conduzidos entre abril de 2011 e maio de 2012, com setor privado, diferentes nveis de governo, academia, sociedade civil, comunidades locais e povos indgenas. Mais de 280 instituies e 400 pessoas participaram do processo. Uma consulta pblica virtual tambm foi conduzida, ampliando ainda mais a participao da sociedade. Os desafios agora so de implementao e comea a ser desenvolvido um plano de ao e a se organizar o Painel Brasileiro de Biodiversidade (PainelBio). Palavras-chave: Dilogos sobre biodiversidade. Metas de Aichi. PainelBio. PNB. COP-10. Abstract The initiative about Dialogues on biodiversity: building Brazilian strategy for 2020 brought together the various sectors of brazilian society to discuss and suggest biodiversity targets for 2020, within the framework of the Convention on Biological Diversity (CBD) in Nagoya, Japan (COP-10). A set of documents was generated for 12 national events, conducted between April 2011 and May 2012, with the private sector, various levels of government, academy, civil society, local communities and indigenous. More than 280 institutions and 400 people participated in the process. A virtual public consultation was also conducted, further expanding the participation of society. The challenges of implementation are now to be developed an action plan and to organize the Brazilian Panel on Biodiversity (PainelBio). Keywords: Dialogues about biodiversity. Aichi target, PainelBio. PNB. COP-10.

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A CONVENO SOBRE A DIVERSIDADE BIOLGICA A Conveno sobre Diversidade Biolgica (CDB) o arranjo de colaborao internacional assumido pela Organizao das Naes Unidas (ONU) para aconservao da diversidade biolgica, a utilizao sustentvel de seus componentes e a repartio justa e equitativa dos benefcios derivados da utilizao dos recursos genticos, mediante, inclusive, o acesso adequado aos recursos genticos e a transferncia adequada de tecnologias pertinentes, levando em conta todos os direitos sobre tais recursos e tecnologias, e mediante financiamento adequado (CONVENO SOBRE DIVERSIDADE BIOLGICA, 1992).

A CDB governada pela Conveno das Partes (Convention of the Parties COP), que j se reuniu dez vezes. um marco para a proteo da natureza e representa a evoluo em direo a uma viso mais abrangente dos recursos naturais. Deu soberania aos pases sobre os recursos biolgicos presentes em seus territrios, alterando a lgica prevalecente de ser a biodiversidade um bem da humanidade. Porm, como outros acordos internacionais, a CDB tem dificuldade em chegar a resultados concretos. Aparentemente, as regras da governana global contribuem para isso. Similarmente, objetivos coletivos e a inexistncia de mecanismos de cumprimento de metas dificultam avanar com os objetivos da CDB. Todos so responsveis e ningum responsvel. As partes devem fazer o que for necessrio em conjunto, mas dentro de suas condies. A primeira definio de metas de biodiversidade, aprovadas pela CDB em 2002 para serem alcanadas em 2010, foi uma forma de obter resultados concretos, com as partes, ento, comprometendose a atingir at 2010 uma reduo significativa da taxa atual de perda de biodiversidade em nveis global, regional e nacional, como contribuio para a 470

diminuio da pobreza e para o benefcio de toda a vida na Terra (CONVENO SOBRE A DIVERSIDADE BIOLGICA, 2002). As metas de 2010, contudo, no foram alcanadas em sua totalidade. O Panorama da Biodiversidade Global 3 (GBO 3) de 2010 (SECRETARIADO DA CONVENO SOBRE DIVERSIDADE BIOLGICA, 2010) apontou no ter havido um nico governo a afirmar que a meta de biodiversidade para 2010 tivesse sido completamente satisfeita em nvel nacional. Cerca de um em cada cinco governos declarou que o objetivo no havia sido atingido e 80% deles revelaram que a transversalidade da biodiversidade em outros setores era limitada. O secretrio-geral das Naes Unidas, Ban Ki-Moon, definiu esta situao como um fracasso coletivo que deveria ser rapidamente corrigido para o bem de toda a humanidade. O Brasil, considerando-se o plano estratgico para 2010 e suas metas, assumiu, na dcada passada, 51 metas nacionais, algumas das quais mais restritivas que aquelas da CDB. Duas foram atingidas a publicao de listas e catlogos das espcies brasileiras e a reduo de 25% do nmero de focos de calor em todos os biomas. Quatro metas alcanaram 75% de cumprimento a conservao de pelo menos 30% do bioma amaznico e 10% dos demais biomas; o aumento nos investimentos em estudos e pesquisas para o uso sustentvel da biodiversidade; o aumento no nmero de patentes geradas a partir de componentes da biodiversidade e a reduo em 75% na taxa de desmatamento na Amaznia (BRASIL, 2010). O dado mais marcante no processo de avaliao do cumprimento das metas nacionais foi a contribuio do Brasil na proteo direta da biodiversidade. O pas contribuiu com quase 75% das reas protegidas criadas no mundo desde 2003. No perodo 2002-2010, o Brasil produziu avanos, bem como apresentou deficincias, nos campos legal, institucional, de conhecimento, de monitoramento e controle e de incentivos. De acordo com Brasil (2010), foram identificados 550 instruBahia anl. dados, Salvador, v. 22, n. 3, p.469-484, jul./set. 2012

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mentos legais relativos s metas de conservao e ritmo que permita incorporar rapidamente estas inuso sustentvel da biodiversidade da CDB: 53 leis formaes aos processos de tomada de decises federais; dois decretos-leis; uma medida provisria; (BRASIL, 2010). 194 decretos federais; 190 resolues da Comisso Muitos setores da sociedade apresentaram Nacional do Meio Ambiente; avanos quanto gesto da alm de 75 leis e 35 decretos O Brasil adotou oficialmente a biodiversidade. Com relaem nvel estadual. o ao setor privado, existe ENB, que constituda por um Esses diversos instru- conjunto de documentos e apoiada um rol de empresas que tem mentos legais complementaintroduzido a preocupao pelas metas nacionais res combinam-se para conscom a conservao da bioditituir a Estratgia Nacional de Biodiversidade (ENB), versidade em seus processos produtivos, a exemmas tm, em geral, baixa implementao por vrios plo de parte daquelas que integram o Movimento rgos e agncias ambientais. O Brasil adotou ofi- Empresarial pela Biodiversidade (MEB) e o Consecialmente a ENB, que constituda por um conjunto lho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento de documentos e apoiada pelas metas nacionais. A Sustentvel (CEBDS). A sociedade civil, os povos Poltica Nacional da Biodiversidade (PNB), forma- indgenas e as comunidades locais, por sua vez, lizada por decreto em 2002, e seu Plano de Ao vm contribuindo sistematicamente no desenho, no Nacional de Biodiversidade (PAN-Bio) so partes monitoramento e na aplicao de iniciativas positidesse conjunto de documentos. vas. No mbito da produo agropecuria, soja e Esses avanos tm sido, no entanto, desafiados gado so, em parte, exemplos de cadeias produtisistematicamente por argumentos que advogam ser vas que tm avanado no sentido de associar proa conservao do meio ambiente e o desenvolvi- duo e cumprimento de leis ambientais, mantendo mento dois objetivos em contradio e que, por mercados e investindo na conservao da biodiverisso, os arcabouos legais e tcnicos existentes sidade como um diferencial competitivo. devem ser flexibilizados. Dando incio ao planejamento de uma nova Nos ltimos anos, uma boa base institucional dcada e ao estabelecimento de um novo acordo foi estabelecida. Isso se deu por meio da criao internacional para a biodiversidade, em 2010 comede novas organizaes, pelo desenho e desenvol- morou-se o Ano Internacional da Biodiversidade e vimento de uma srie de polticas, programas, pla- foi realizada a 10 Conferncia das Partes (COPnos e sistemas, no mbito do Ministrio do Meio 10) da CDB, em Nagoya, Japo. Grande expectaAmbiente (MMA) e fora dele. Porm, no caso do tiva foi criada sobre a COP-10 e muitas delas, de MMA, muitos desses avanos no vieram acompa- fato, foram alcanadas, especialmente com o esnhados dos incrementos em recursos humanos e tabelecimento de um novo plano estratgico global financeiros necessrios ao sistema ambiental. Em para a biodiversidade. Outro grande avano foi a 2008, o MMA representava apenas 0,12% do Or- aprovao de um protocolo para regular o acesso amento federal e continua a ter um dos menores aos recursos genticos e a repartio de beneforamentos do governo federal. cios advindos do uso da biodiversidade (Protocolo Com relao ao conhecimento cientfico, o 4o de Nagoya). No mbito do plano estratgico, foram Relatrio Nacional para a CDB indica que, em m- acordadas 20 metas internacionais de biodiversidia, 700 novas espcies animais so reconhecidas dade para 2020, na cidade de Aichi, em Nagoya, por ano no Brasil. Contudo, a atual capacidade ta- denominadas assim metas de Aichi. xonmica instalada insuficiente para analisar os Apesar do grande avano alcanado com o materiais biolgicos das colees brasileiras em comprometimento das partes em metas expressiBahia anl. dados, Salvador, v. 22, n. 3, p.469-484, jul./set. 2012

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vas e fundamentais, novamente o plano estrat- presses e do tratamento das causas da perda da gico possui poucas obrigaes legais, funcionan- biodiversidade. Os cinco objetivos e as metas relado mais como um guia aos esforos nacionais e cionadas so flexveis, podendo passar por adapinternacionais na proteo da biodiversidade. Os taes nacionais: desafios agudizam-se ainAs partes so convidadas a definir da mais quando avaliado o Aumentar os benefcios gerados os seus prprios objetivos, neste cenrio para o perodo de pela biodiversidade depende da quadro flexvel, tendo em conta cumprimento das metas, com as necessidades e prioridades namelhora da sua situao atual previso de aumento da pocionais, ao mesmo tempo, tendo pulao mundial (7,6 bilhes de pessoas em 2020), em mente as contribuies nacionais para o crescimento econmico com aumento da pegada cumprimento das metas globais, e apresentar ecolgica (footprint) individual sobre a natureza e um relatrio para a dcima primeira reunio a diminuio do espao de reas naturais. O ceda Conferncia das Partes (SECRETARIADO nrio ainda agravado pelo declnio dos servios DA CONVENO SOBRE DIVERSIDADE ecossistmicos. BIOLGICA, 2010). Cada pas dever identificar se as metas globais de biodiversidade so relevantes em seu contexto PLANO ESTRATGICO DE BIODIVERSIDADE: e se outras metas importantes no foram includas OBJETIVOS E METAS DE AICHI pela CDB. As metas globais foram desenvolvidas no escopo dos objetivos estratgicos, e a essncia O plano estratgico da CDB est organizado nos dos temas abordados nas 20 metas pode ser obobjetivos centrais elencados a seguir, assim como servada a seguir. em 20 metas a serem alcanadas at 2020. Objetivo A: meta 1 conscientizar as pes Objetivo A - Tratar das causas fundamentais soas sobre o valor da biodiversidade; meta de perda de biodiversidade, fazendo com 2 integrar os valores da biodiversidade no que preocupaes com a biodiversidade desenvolvimento; meta 3 eliminar incentipermeiem governo e sociedade. vos lesivos e implementar incentivos positi Objetivo B - Reduzir as presses diretas vos; meta 4 produzir e consumir de forma sobre biodiversidade e promover o uso sustentvel. sustentvel. Objetivo B: meta 5 reduzir a perda de habi Objetivo C - Melhorar a situao de biodivertat nativos; meta 6 adotar a pesca sustensidade, protegendo ecossistemas, espcies tvel; meta 7 implementar a sustentabilidae diversidade gentica. de da agricultura, da aquicultura e do manejo Objetivo D - Aumentar os benefcios de bioflorestal; meta 8 controlar a poluio; meta diversidade e servios ecossistmicos para 9 controlar as espcies exticas invasoras; todos. meta 10 reduzir as presses sobre os re Objetivo E - Aumentar a implementao por cifes de coral. meio de planejamento participativo, gesto Objetivo C: meta 11 expandir e implemende conhecimento e capacitao. tar os sistemas de reas protegidas; meta H uma relao lgica entre esses objetivos. 12 evitar a extino das espcies; meta Por exemplo, aumentar os benefcios gerados pela 13 conservar a agrobiodiversidade. biodiversidade depende da melhora da sua situa Objetivo D: meta 14 restaurar ecossisteo atual que, por sua vez, depende da reduo das mas provedores de servios essenciais; 472Bahia anl. dados, Salvador, v. 22, n. 3, p.469-484, jul./set. 2012

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meta 15 recuperar os ecossistemas degraEsses fatos estimularam a preparao de um dados para mitigao e adaptao s mu- novo passo, com inteno de integrar a sociedade danas climticas; meta 16 implementar o brasileira na construo de uma estratgia nacional Protocolo de Nagoya. de biodiversidade para cumprir as metas do plano Objetivo E: meta 17 estratgico 2011-2020, con elaborar e impleUma proposta de envolvimento forme aprovadas pela CDB mentar a Estratgia em sua COP-10. da sociedade quanto s questes Nacional de BiodiverEvidentemente, considecentrais em biodiversidade sidade; meta 18 resrou-se que os desafios eram comeou a se desenvolver em peitar as populaes expressivos, principalmente agosto de 2010 e os conhecimentos diante das metas anteriortradicionais; meta 19 investir em cincia e mente aprovadas pela CDB em 2002, visando ser tecnologia para a biodiversidade; meta 20 cumpridas at 2010, que no foram alcanadas. mobilizar recursos financeiros. Em nvel global, nenhuma meta foi cumprida integralmente. A questo central a orientar o incio da construo foi: o que fazer de diferente que garanta COMO O BRASIL SE PREPAROU PARA A que as imensas falhas no sero repetidas? COP-10 E COMO SE POSICIONOU APS A Nesse contexto surgiu a iniciativa Dilogos sobre CONVENO? biodiversidade: construindo a estratgia brasileira para 2020, um esforo de contribuir decisivamente Uma proposta de envolvimento da sociedade para uma estratgia brasileira de biodiversidade que quanto s questes centrais em biodiversidade co- auxiliasse o alcance das novas 20 metas propostas meou a se desenvolver em agosto de 2010, no lan- em Nagoya, entendendo-se que o Brasil, por sua amento oficial do escritrio da Unio Internacional importncia econmica e ambiental, pode e deve para a Conservao da Natureza no Brasil (UICN). liderar o mundo na conservao da biodiversidade. MMA, WWF-Brasil, IP e UICN deram incio ao pro- E liderar pelo exemplo. cesso e decidiram informalmente, na ocasio, que deveriam promover uma discusso sobre o plano estratgico da CDB para o perodo 2011-2020, o DILOGOS SOBRE BIODIVERSIDADE: qual seria analisado na COP-10, em Nagoya. CONSTRUINDO A ESTRATGIA BRASILEIRA A ideia evoluiu e, em outubro de 2010, realizou- PARA 2020 -se em Braslia um evento com representantes da sociedade civil brasileira para analisar a verso de As instituies at ento envolvidas (MMA, trabalho do plano estratgico e desenvolver uma UICN, WWF-Brasil e IP) decidiram encaminhar o viso brasileira para as metas de conservao da desafio de construir as metas brasileiras por meio biodiversidade nele propostas. O documento final foi da iniciativa Dilogos sobre biodiversidade, com entregue ao MMA e ao Ministrio das Relaes Exte- apoio financeiro oferecido pelo MMA, pelo Minisriores (MRE) do Brasil, os quais incorporaram pro- trio de Alimentao e Assuntos Rurais do Reino posta oficial brasileira alguns dos encaminhamentos Unido (Defra) e pelo Projeto Nacional de Aes feitos pela sociedade civil. Considerando-se o ativo Integradas Pblico-privadas para Biodiversidade papel que a delegao brasileira teve em Nagoya, (Probio II). A iniciativa reuniu os diversos setores muitas perspectivas levantadas no Brasil acabaram da sociedade brasileira para, coletivamente, idenfazendo parte dos acordos finais da COP-10. tificar os melhores meios e prticas que nos aproBahia anl. dados, Salvador, v. 22, n. 3, p.469-484, jul./set. 2012

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ximem da viso de futuro para 2050, estabelecida cumento faz uma anlise da situao do pas no plano estratgico 2011-2020 da COP-10, viver com relao a cada uma das metas e foi um em harmonia com a natureza, onde, em 2050, a dos subsdios essenciais na preparao dos biodiversidade valorada, conservada, restaurada representantes setoriais que participaram e utilizada com sabedoria, dos eventos dos Dilogos mantendo os servios ecosOs Dilogos sobre biodiversidade sobre biodiversidade. sistmicos, sustentando um Conduo de quatro evenforam organizados de forma a planeta saudvel e produzinfavorecer um processo intenso de tos preparatrios com: 1) do benefcios essenciais a toparticipao e construo coletiva povos indgenas; 2) raizeiros das as pessoas (CONVENe raizeiras do cerrado; 3) coO SOBRE A DIVERSIDADE BIOLGICA, 2010). munidades locais da Amaznia, e 4) repreOs Dilogos sobre biodiversidade foram organisentantes de governos estaduais de todos zados de forma a favorecer um processo intenso de os biomas. participao e construo coletiva, sendo conduzi Realizao de cinco dilogos setoriais para dos de acordo com os passos descritos a seguir. discusso e sugesto de metas nacionais Produo e publicao de um documento de biodiversidade, com: 1) setor empresarial contextualizador intitulado Biodiversidade brasileiro; 2) academia e centros de pesquibrasileira: anlise de situao e oportunidasa; 3) organizaes da sociedade civil; 4) des (UICN; WWW-BRASIL; IP, 2011), com diferentes ministrios e governos estaduais; o objetivo de servir como documento-base 5) comunidades tradicionais e povos indgea todo o processo, iluminando as situaes nas. Adicionalmente, o setor empresarial que permeiam o conjunto de aes relativas conduziu uma discusso de aprimoramento conservao e ao uso sustentvel da biode suas decises, encaminhando as delibediversidade brasileira. Esse documento faciraes ao MMA. litou a visualizao da situao e das opor Recolhimento de sugestes da sociedade tunidades a todos os setores envolvidos nas brasileira quanto aos elementos centrais a construes das metas brasileiras. serem includos num futuro instrumento legal Lanamento dos Dilogos sobre biodiverque traduza nacionalmente as metas de biosidade em um seminrio nacional com a diversidade aprovadas na COP-10 da CDB. presena da ministra de Meio Ambiente do Esse esforo foi conduzido durante os diloBrasil, Izabella Teixeira, da ministra do Defra gos setoriais. (Reino Unido), Caroline Spelman, e do em Sistematizao das contribuies dos dilobaixador Luiz Alberto Figueiredo, do Ministgos setoriais na forma de uma matriz, com rio de Relaes Exteriores, alm de outras metas e submetas nacionais, organizada autoridades. com base no grande volume de informaes Organizao e publicao de um documento recolhidas ao longo de todos os eventos. pragmtico intitulado Metas de Aichi: situa Lanamento de uma consulta pblica online, o atual no Brasil (WEIGAND JR.; SILVA; com acompanhamento e compilao final SILVA, 2011), com o objetivo de mostrar a das contribuies recebidas. realidade brasileira em relao s 20 metas Realizao de um evento com um comit amdo plano estratgico 2011-2020, acordadas pliado, composto por organizaes de todos durante a COP-10 da CDB, e apontar quesos setores (ver em detalhe na Seo 5), para tes e caminhos para o seu alcance. O doavaliao dos resultados da consulta pblica 474Bahia anl. dados, Salvador, v. 22, n. 3, p.469-484, jul./set. 2012

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e preparao da minuta de documento final os produtos a serem entregues e todos os demais que seria posteriormente discutida no evento detalhes dos eventos. O comit ampliado, por sua Dilogos sobre biodiversidade. vez, foi constitudo por um grupo menor de repre Realizao de um evento com todos os seto- sentantes de cada setor e assumiu as definies de res envolvidos no procunho mais estratgicos da cesso dos Dilogos A postura pr-ativa, construtiva iniciativa. sobre biodiversidade, Ao todo, sem incluir as e empenhada no alcance de tendo como produto quatro instituies antes citaconsenso foi uma constante final um documento das (UICN, MMA, WWF-Bradurante toda a caminhada com 20 metas brasileisil e IP), estiveram envolviras de biodiversidade para 2020 (Anexo). das 19 instituies, sendo elas, no setor acadmico: Conduo de um evento na Rio+20 com a Sociedade Brasileira para o Progresso da Cincia apresentao dos resultados do trabalho e (SBPC) e a Associao Brasileira de Cincias (ABC); com indicao dos prximos passos e apre- no setor privado, o Conselho Empresarial Brasileisentao do Painel Brasileiro de Biodiversi- ro para o Desenvolvimento Sustentvel (CEBDS), a dade (PainelBio) como um dos instrumentos Confederao Nacional da Indstria (CNI) e o Mopotenciais de implementao, monitoramen- vimento Empresarial pela Biodiversidade (MEB); to, gerao de conhecimentos e desenvolvi- nos governos: a Associao Brasileira de Entidades mento de capacidades no alcance das me- Estaduais de Meio Ambiente (Abema) e o Ministrio tas brasileiras. do Planejamento (MP); nas organizaes no gover Como desdobramento final, uma apresenta- namentais: a Conservao Internacional (CI), o Instio dos resultados dos Dilogos sobre bio- tuto Direito por um Planeta Verde (IDPV), o Instituto diversidade na COP-11 de Hyderabad, ndia, Socioambiental (ISA), a Fundao Grupo Boticrio assim como dos passos que a sociedade de Proteo da Natureza, a Rede de ONGs da Mata brasileira e o governo federal esto adotan- Atlntica, a Associao de Preservao do Meio Amdo para o adequado alcance das 20 metas biente e da Vida (Apremavi), os Dilogos Florestais nacionais. e a Fundao Vitria Amaznica (FVA); entre povos indgenas e comunidades locais: o Comit Intertribal, o Instituto Indgena para Propriedade Intelectual (InCONFORMAO DO COMIT ORGANIZADOR brapi), o Grupo de Trabalho Amaznico (GTA), a Via Campesina e a Articulao Pacari. Para um adequado desenvolvimento do compleAcredita-se que, alm dos resultados alcanaxo processo dos Dilogos sobre biodiversidade e dos e registrados em toda a documentao gerada com intuito de alcanar seus desafiadores resulta- pelos Dilogos sobre biodiversidade, a forte estrudos, optou-se pela composio de uma abrangente tura de governana foi um dos aspectos mais marestrutura de governana, envolvendo lideranas de cantes ao longo da construo. A postura pr-ativa, todos os setores. A participao dos representan- construtiva e empenhada no alcance de consenso tes setoriais foi organizada em dois nveis, em cinco foi uma constante durante toda a caminhada. Em comits setoriais e um comit ampliado. Os comits diversas ocasies viam-se representantes setoriais setoriais apoiaram ativamente a organizao dos abdicando de posicionamentos de cunho corporatiDilogos sobre diversidade com seus respectivos vo, para permitir o encontro do caminho do meio, pares, definindo a lista de convidados, os exposi- de forma a gerar encaminhamentos equilibrados e tores, a metodologia e a dinmica dos encontros, de bom senso.Bahia anl. dados, Salvador, v. 22, n. 3, p.469-484, jul./set. 2012

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patrimnio natural, a probabilidade de se continuar perdendo o que ainda se tem a proteger grande. A conduo de trabalhos coletivos, nos quais, A definio do processo de envolvimento so- pela prpria natureza, afloram diferentes pontos de cial estabelecido nos Dilovista, exige uma facilitao gos sobre biodiversidade leO Brasil, com sua riqueza natural hbil, de modo a garantir vou em conta o fato de que que todos sejam ouvidos e e importncia singular, precisa a participao da sociedade construir caminhos e dar o exemplo respeitados. O sucesso dos nos processos decisrios fruns depende do que Barno tem sido uma prtica comum. Considera-se bier (1998) chamou de escuta sensvel, que ocorre que estimular o engajamento efetivo das pessoas quando a pessoa acessa sua prpria sensibilidade para exercerem a cidadania depende de se encon- e abre sua percepo complexidade. O indivduo trarem meios de motiv-las a transformar a reali- sensvel no alheio, pois, quando tem a chance de dade que julgam necessitar mudanas. Todavia, perceber o olhar do outro, pode compreender outras grande parte das decises tem sido tomada de realidades e tomar decises a partir de vises mais cima para baixo, o que desestimula a participa- abrangentes. Com essa abertura, a pessoa passa a o das pessoas e de grupos, muitas vezes por- escutar a si mesmo e ao outro, pois percebe a comque as reais necessidades no so contempladas plexidade ao seu redor. por quem lidera os processos decisrios. A falta As percepes das diferentes realidades e as de compreenso da complexidade do que ocorre oportunidades de interagir com atores distintos tornos diferentes setores e contextos leva a propos- nam os encontros, como os fruns, em oportunitas inadequadas ou no pertinentes s questes dades de transformao. Cada um pode perceber a serem trabalhadas. O resultado tem sido de um seu papel como agente de mudana e, com isso, descompasso entre as decises tomadas e as ne- se sentir estimulado a implementar, individual ou cessidades reais da atualidade. coletivamente, aes que visem transformaes A ideia da participao como base para o forta- socioambientais. A ousadia de expressar opinies, lecimento da sociedade no nova. A Agenda 21, a compreenso da existncia das diferenas e a documento elaborado durante a Rio 92, aponta a importncia de se engajar em causas que afetam a participao e o engajamento de todo cidado nas coletividade refletem-se nas tomadas de deciso e decises como modo de influenciar a realidade so- em processos de mudanas. A construo de nocioambiental. Um de seus princpios afirma que a vas realidades, a partir da motivao que emerge melhor maneira de tratar os assuntos ambientais de um sentimento de autoestima e da compreenso por meio da participao de todos os cidados inte- da importncia do envolvimento pessoal em quesressados (SATO SANTOS, 1997). O Captulo 28 da tes ligadas ao bem comum, representa a chance Agenda 21 ressalva que a maioria dos problemas de a pessoa se perceber como ser em transformae solues ter chance de sucesso quando tratada o e capaz de transformar sua realidade. no mbito regional, o que depende de processos A razo para se tentar algo novo nos Dilogos somais efetivos de educao e mobilizao da socie- bre biodiversidade, como mencionado anteriormendade para a construo conjunta de estratgias que te, se deve constatao de que quase nada do que levem ao desenvolvimento sustentvel. havia sido acordado, nacional e internacionalmenEsta foi a premissa utilizada nos Dilogos sobre te, com o objetivo de se proteger a biodiversidade biodiversidade, a de que, sem a compreenso da chegou a ser cumprido. O Brasil, com sua riqueza sociedade sobre a importncia da conservao do natural e importncia singular, precisa construir ca476Bahia anl. dados, Salvador, v. 22, n. 3, p.469-484, jul./set. 2012

BASE CONCEITUAL DA ABORDAGEM PARTICIPATIVA ADOTADA

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minhos e dar o exemplo. Foi nesta busca de novas paisagsticas do pas, a realidades sociais, ticas e abordagens e com a compreenso da importncia tnicas, culturais, polticas, administrativas, jurdicas de se envolverem setores distintos da sociedade que e econmicas. O contedo de parte das metas alteos Dilogos sobre diversidade foram concebidos, radas aponta para o papel de lder que o Brasil deve numa construo participativa assumir no processo de condesafiadora e bem-sucedida. O Brasil deve assumir no servao da biodiversidade no mundo, sendo metas mais processo de conservao da desafiadoras que as globais. biodiversidade no mundo ANLISE DAS 20 METAS Quanto s metas que soBRASILEIRAS DE BIODIVERSIDADE freram alguma modificao, a maior parte delas foi alterada por questes semnticas e de formulao, O processo de participao intersetorial mos- e um nmero menor por seu contedo e implicatrou resultados surpreendentes. Apesar da com- es futuras. Neste ltimo caso, duas metas destaplexidade dos temas, houve consenso na maioria caram-se ao longo dos debates, as metas 5 e 11. A das questes trabalhadas. O principal resultado foi meta 5 trata da perda de habitat, e os debates reoferecer ao governo federal, como sugesto da so- sultaram em trs propostas distintas com prazos a ciedade brasileira, um conjunto de metas a serem serem alcanados e diferentes taxas de reduo de alcanadas at 2020. Houve comprometimento e perda em funo da variao dos biomas. A meta boa vontade de todos os setores da sociedade em mais polmica no processo foi a 11, que trata das ordenar e ajustar ideias, abrir mo de interesses reas protegidas, terrestres e marinhas. Nesta, as individuais e colocar disposio, de forma pr- discusses giraram em torno da ambio do Brasil -ativa, as diferentes expertises trazidas por cada de ir alm do que foi proposto na meta internacional. grupo para promover uma dcada promissora para Longo debate foi conduzido no sentido de definir o a biodiversidade no pas. conceito de rea protegida que deveria ser adotaO processo dos Dilogos sobre a biodiversida- do no mbito nacional. Foram feitas muitas reflede levou discusso as 20 metas, organizadas em xes sobre a pertinncia de reservas legais, reas cinco objetivos estratgicos, mantendo a mesma de preservao permanente e outras reservas em sequncia elencada internacionalmente em Aichi, propriedades privadas deverem ou no figurar nos no Japo, quando da COP-10. A deciso da propos- percentuais que estavam sendo definidos. Ao final, ta brasileira de manter o mesmo nmero de metas a proposta que obteve maior consenso superou os foi tomada por parte dos consultados, com o intuito percentuais da meta internacional, definindo taxas de facilitar uma abordagem internacional que pode maiores de proteo para as unidades de conservavir a ser til na estruturao de estratgias futuras, o no Brasil, correspondentes a 40% na Amaznia assim como permitir uma melhor comunicao e o e 20% nos demais biomas terrestres, de guas conmonitoramento das metas nacionais quando com- tinentais e nas reas costeira e marinha. paradas com as globais. Assim como no caso da meta 11, outras acabaQuanto ao texto final oferecido ao governo bra- ram refletindo um comprometimento maior e uma sileiro (Anexo), as metas 1 e 8 mantiveram o conte- ambio mais elevada do Brasil em relao s medo e o texto como foi elaborado originalmente nas tas de Aichi, principalmente nos casos das metas metas globais da CDB, COP-10. As demais metas 3, 4, 5, 9, 6 e 17, com formulaes mais exigentes apresentam algum tipo de mudana em relao ao (por exemplo, nas metas 3 e 4 foram substitudos texto internacional. As alteraes so adaptaes li- trechos como ou estaro em vias de eliminao e gadas principalmente a singularidades ecolgicas e adotando medidas por eliminados e implemenBahia anl. dados, Salvador, v. 22, n. 3, p.469-484, jul./set. 2012

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tado), prazos mais curtos (caso das metas 5, 16, de integrao e transversalidade nas atividades e 17) e processos mais detalhados. Nestes ltimos, polticas de todos os setores quanto a questes astem-se como exemplo a meta 5 brasileira que indica sociadas com a conservao da biodiversidade (no a partir de quando deve ser considerada a redu- escopo da meta 7). o de 50% da taxa de perda Alm das 20 metas brados habitat nativos, enquanFoi feita uma recomendao de sileiras definidas no mbito to que a meta 9 aponta como dos Dilogos sobre biodiverintegrao e transversalidade nas essa reduo deva ser imsidade, para facilitar sua imatividades e polticas de todos plementada e considera que plementao e contribuir com os setores quanto a questes a realidade federal brasileira o (PAN-Bio), tambm foram associadas com a conservao necessita de maior comprodefinidas 517 submetas, cada da biodiversidade metimento dos estados. uma delas relacionadas direA maioria das metas tambm sofreu mudanas e tamente a uma das 20 metas brasileiras. Por exemadaptaes do ponto de vista semntico, com acrs- plo, para a meta 1, que trata da conscientizao das cimos ou detalhamentos (metas 2, 7, 9, 10, 12 a 17), pessoas sobre o valor da biodiversidade, definiu-se substituindo, por exemplo, o termo valor da biodiver- como submeta, at 2013, reformular a Poltica Naciosidade por valorao da biodiversidade e servios nal de Educao Ambiental, visando alterar o status ecossistmicos (meta 2), ou incluindo atividades da educao ambiental como tema transversal nas brasileiras relevantes e s vezes especficas, como escolas e tornando-a disciplina obrigatria, com topecuria, silvicultura e extrativismo, alm da noo das as formalidades de ensino. de conectividade (meta 7), ou ainda categorias bioVisando ao alcance efetivo das metas brasileilgicas como microorganismos (meta 13). ras, outro resultado de alta relevncia dos DiloEm funo da proximidade da COP-11 da CDB, a gos sobre diversidade foi o incio do processo de realizar-se em outubro de 2012 em Hyderabad, ndia, criao do Painel Brasileiro de Biodiversidade (Paidestacam-se tambm as discusses sobre a meta 20, nelBio). A partir da forte estrutura de governana que ser o objeto principal das discusses previstas intersetorial ora estabelecida, o PainelBio ser uma para esta conveno. A meta 20 trata dos recursos plataforma da sociedade brasileira para animao, financeiros necessrios implementao e ao alcan- articulao dos atores, monitoramento, planejace das outras 19 metas de biodiversidade. Durante os mento e identificao de aes, capacitao, moDilogos sobre biodiversidade houve consenso entre bilizao de recursos financeiros, disponibilizao os setores, definindo-se um texto mais ambicioso e de informaes e execuo de tarefas. detalhado do que o acordado na COP-10. No final do processo, em plenria com todos os setores, foram tambm definidas recomenda- O PAINELBIO: UM DOS MECANISMOS DE es gerais, visando melhorar o processo de im- IMPLEMENTAO DAS METAS plementao. Indicou-se a necessidade de conduo de avaliaes peridicas e permanentes das A proposta do PainelBio foi concebida aps metas brasileiras, meno que deve ser includa uma srie de estudos preliminares que visaram no prembulo do plano estratgico da biodiversi- explorar as diversas dimenses e complexidades dade 2011-2020. Este dever ser norteado pelos de implementao das metas de Aichi, em trabalho princpios de transparncia, respeito diversidade coordenado pela UICN e o MMA, em cooperao cultural e ambiental, participao e controle so- com o IP, a Fundao Museu do Homem Americial. Adicionalmente, foi feita uma recomendao cano (Fumdham) e o Instituto Direito por um Plane478Bahia anl. dados, Salvador, v. 22, n. 3, p.469-484, jul./set. 2012

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ta Verde (IDPV). Um trabalho tambm relacionado muitos dos dados gerados permanecem com os com o Componente 3 do Probio II, que tem como pesquisadores que conduzem os estudos ou se resobjetivo o fortalecimento institucional e a gerao tringem a determinadas instituies. Sem um ordede informaes sobre biodiversidade. namento estruturado, torna-se difcil a compreenso O PainelBio est sendo ampla dos problemas, assim desenvolvido como uma ofer- Sem um ordenamento estruturado, como o desenvolvimento de ta de soluo apresentada possveis solues. Adiciotorna-se difcil a compreenso pelos setores envolvidos nos nalmente, existem dificuldaampla dos problemas Dilogos sobre biodiversidades em se traduzir o conhecide, na forma de um mecanismo operacional de im- mento existente em uma linguagem acessvel, para plementao das metas nacionais. Sua efetivao que tanto os tomadores de deciso como o pblico depender da articulao de todos os setores e do em geral possam facilmente compreender, se engadesejo de constituir um processo abrangente asso- jar e apoiar as aes necessrias resoluo dos ciado ao concreto alcance das metas. problemas identificados. Entre os resultados esperados, juntamente com No desenvolvimento da proposta do PainelBio, o outras iniciativas relevantes em curso no pas, a primeiro passo foi investigar e melhor compreender exemplo do Sistema de Informao sobre a Biodi- as lacunas existentes e como os pesquisadores e versidade Brasileira (SIBBR) e do Projeto Biota-Fa- outros importantes atores visualizavam uma ferrapesp, o PainelBio poder favorecer a coordenao menta para conectar a cincia e a tomada de dee o alinhamento das instituies brasileiras que tra- ciso. Para isso, foram entrevistados 25 dos mais balham com temas relacionados biodiversidade eminentes atores em biodiversidade no pas, um e poder se constituir num mecanismo para sanar grupo composto por profissionais com capacidade o desafio comum no Brasil de transformar infor- tcnica de pesquisa, instituies que formam novas maes sobre conservao e uso sustentvel da lideranas e outras que promovem articulao pobiodiversidade em instrumento para a tomada de ltica e cientfica. deciso (LIMA; MUNIZ; MARCO JNIOR, 2010). A partir das entrevistas, o IP elaborou um diagEsse desafio, no entanto, no pontual e faz par- nstico da situao atual e, com base neste, a Fute de diversas lacunas ao longo do processo, que mdham desenvolveu mecanismos tcnicos que viavo da produo de conhecimento s tomadas de bilizassem a implantao de uma plataforma virtual, deciso. O primeiro ponto a falta de conhecimen- enquanto que o IDPV buscou os caminhos possto bsico sobre a biodiversidade. Mesmo que haja veis e as questes jurdicas pertinentes criao avanos nos ltimos anos, com diversas iniciativas do PainelBio. Concludos esses estudos, foi realizapara se levantarem informaes (com destaque para do um evento em Braslia no dia 8 de maio de 2012, o Projeto Biota-Fapesp), muitas ainda so regiona- com participao de diversos pesquisadores e geslizadas e concentram-se principalmente no Sudeste tores do Brasil, assim como de representantes dos do pas. Segundo Lewisohn (2005), por meio de uma vrios setores da sociedade. De forma participativa, reviso de artigos cientficos, h grandes lacunas de os atores presentes idealizaram um formato de plainformao sobre a caatinga e o pantanal e, mesmo, taforma que pudesse se transformar em instrumensobre a Amaznia, onde constantemente ocorrem to de apoio ao alcance das metas brasileiras. descobertas de espcies novas, at de grandes maO PainelBio est ainda sendo estruturado. Aps mferos (VAN ROOSMALEN et al., 2007). a reunio de maio, ocorreram diversos encontros As dificuldades tambm permeiam o comparti- com o MMA, com os articuladores do Probio II e com lhamento do conhecimento cientfico, uma vez que a Comisso Nacional de Biodiversidade (Conabio),Bahia anl. dados, Salvador, v. 22, n. 3, p.469-484, jul./set. 2012

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como forma de aprimorar a proposta. Provavelmen incentivar o registro de boas prticas em te, ao longo do segundo semestre de 2012, o Paigesto da biodiversidade e promover sua nelBio ser oficialmente criado. Em 2013 dever ser disseminao; definido seu planejamento estratgico e, em segui catalisar esforos para a gerao de informada, entrar em funcionamenes nas lacunas existentes; to para cumprir sua misso e A articulao de instituies efetuar avaliaes reguseus objetivos. lares e oportunas sobre os dos diferentes setores poder A definio de uma mis- promover o acesso s informaes servios da biodiversidade so para o PainelBio foi um e dos ecossistemas e suas em biodiversidade e identificar fator fundamental na organiinterligaes, promovendo o vazios de conhecimento zao do processo de criamonitoramento e o alcance o e ficou assim definida: das metas brasileiras de biodiversidade recontribuir para a conservao e o uso suslacionadas com a CDB; definir prioridades e fomentar a capacitao tentado da biodiversidade brasileira, promopara melhorar a interface entre cincia e povendo sinergias entre instituies e reas de ltica e a gesto da biodiversidade; conhecimento, disponibilizando informao fomentar a conscientizao da sociedacientfica para a sociedade, fomentando cade brasileira sobre a importncia da pacitaes em diversos nveis e subsidiando biodiversidade; tomadas de deciso e polticas pblicas1. O contexto de materializao desta misso so disponibilizar informaes sobre a biodiveras metas brasileiras de biodiversidade. O PainelBio sidade brasileira para a sociedade. guarda uma forte relao com o recm-institudo O PainelBio dever se constituir na forma de Painel Intergovernamental de Biodiversidade e Ser- uma rede de organizaes com capacidade de gevios Ambientais (IPBES), criado no mbito das Na- rar informaes, anlises, capacitaes e proposies Unidas como suporte superao do dficit es de polticas, reduzindo as distncias entre o de implementao da Conveno sobre a Biodiver- conhecimento cientfico e as aes prticas da sosidade na dcada passada. ciedade. A articulao de instituies dos diferentes Dentre as muitas possibilidades de colaborao setores poder promover o acesso s informaes e dilogo com todos os setores envolvidos no uso e em biodiversidade e identificar vazios de conhecina conservao da biodiversidade no Brasil, o Pai- mento. Tal arranjo institucional agregar atores e nelBio pode colaborar com o abaixo elencado: facilitar o uso da informao existente, subsidian Estabelecer uma plataforma intersetorial bra- do a tomada de deciso. sileira em biodiversidade e servios ecossisDever incluir um grupo de organizaes pblitmicos, criando um think-tank nacional em cas e privadas, representando autoridades poltiestreita conexo com as principais redes cas, organismos de pesquisas, organizaes no internacionais; governamentais, empresas e associaes profis apoiar a formulao e a implementao de sionais, com o intuito de reunir esforos para propolticas e a gesto da biodiversidade por mover iniciativas de conservao e uso sustentvel meio da identificao de informaes, ferra- da biodiversidade. O PainelBio seria concebido mentas e metodologias relevantes; no para duplicar estruturas ou sistemas existentes da academia ou de instituies cientficas, mas principalmente para atuar como uma ponte entre 1 Essa misso foi definida em reunio de stakeholders no ms de maio as iniciativas existentes, facilitando o acesso s inde 2012, ainda no h uma publicao cientfica que a cite. 480Bahia anl. dados, Salvador, v. 22, n. 3, p.469-484, jul./set. 2012

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formaes sobre biodiversidade, compartilhando conhecimentos e identificando aes necessrias para a conservao da biodiversidade.

reviso de polticas pblicas, de modo a acomodar as metas nos investimentos projetados. Essa tarefa, que no fcil nem trivial, tem que ser complementada por uma profunda discusso das metas de biodiversidade nos diversos fruns CONSIDERAES FINAIS Entre os esforos a serem e colegiados que o governo possui, tal como a Conabio. conduzidos, acredita-se ser As metas estabelecidas ao Este e outros colegiados com relevante a conduo de um longo dos Dilogos sobre bioinsero na temtica de bioprocesso de reviso de diversidade correspondem a diversidade e ecossistemas polticas pblicas sugestes da sociedade brasitm a capacidade tcnica de leira ao governo federal, assim, no so metas oficiais propor aperfeioamentos e de desvendar caminhos do pas. O desafio que se coloca neste momento bas- operacionais para a progressiva implementao do tante claro: como institucionalizar as metas e torn-las que se prope para 2020. consistentes com o planejamento dos diversos setores Mesmo tendo a clara noo das dificuldades governamentais e da sociedade, sem que se perca a de um processo como o descrito acima, preciriqueza de contribuies oferecidas durante o processo so reconhecer que um processo insuficiente. H de discusso relatado ao longo deste artigo? a necessidade, ainda, de incorporao das metas No um desafio pequeno. Mas seu nvel de pela sociedade, o que inclui academia, setor privainstitucionalizao, ou seja, de incorporao pela do e seus investimentos, sociedade civil organizada sociedade e governo, definir seu grau de sucesso. e demais setores governamentais, dos estados e Quanto mais institucionalizadas as metas, maior a municpios. possibilidade de se alcan-las. Este amplo acordo deve ser traduzido na forO desafio a partir do ponto em que se est a ma de um documento legal seja um conjunto de incorporao das metas nos diversos setores de go- portarias, decretos ou mesmo leis federais , sem verno. Uma discusso entre ministrios se faz neces- o qual se corre o risco da no-implantao das mesria, com uma coordenao que envolva necessaria- tas. Faz-se crucial a atualizao e adequao da mente o Ministrio do Planejamento. fundamental a Poltica Nacional da Biodiversidade (PNB), formalipercepo de que as metas de Aichi, conforme acor- zada por decreto em 2002, e do PAN-Bio. dadas em Nagoya, um produto do esforo diplomH, portanto, uma complexidade considervel tico no qual o Brasil foi ator fundamental. O Brasil, no processo que se necessita para reverter quadros portanto, no apenas assina as metas de Aichi, mas de perda de biodiversidade e fortalecer atividades um de seus principais propositores. de recuperao ambiental. Considerando-se esta Uma vez garantida essa percepo e conside- complexidade, os setores envolvidos nos Dilogos rando-se as 20 metas oferecidas pela sociedade sobre biodiversidade foram concebendo progressibrasileira atravs dos Dilogos sobre biodiversida- vamente uma proposta que pudesse dar respostas de, necessrio o avano na elaborao de um satisfatrias aos desafios representados pelo alplano de ao nacional para alcance das metas, cance dos objetivos traados. Para esse fim, um com definio de submetas claras, estabelecimento relevante instrumento em desenvolvimento aprede competncias e dotao oramentria corres- sentado neste artigo poder ser o PainelBio. pondente ao desafio de implementao. O PainleBio constituir-se- na forma de uma Entre os esforos a serem conduzidos, acredita- articulao de organizaes de todos os setores, -se ser relevante a conduo de um processo de cumprindo com a tarefa de animao, articulaoBahia anl. dados, Salvador, v. 22, n. 3, p.469-484, jul./set. 2012

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Metas brasileiras de biodiversidade para 2020: exeMplo de construo participativa no Marco da conveno de diversidade biolgica cdb/onu

dos atores, monitoramento, planejamento e identificao de aes, capacitao, mobilizao de recursos financeiros, disponibilizao de informaes e execuo de tarefas. Considera-se que, aps um amplo debate brasileiro, produzido coletivamente para construir as metas de biodiversidade para 2020, o PainelBio ser apresentado como um interessante mecanismo de alcance dessas metas. Os avanos promovidos atravs dos Dilogos sobre biodiversidade foram expressivos, mas seu real valor estar relacionado com a estruturao de um processo pragmtico de implementao e monitoramento que permita o alcance efetivo das metas em 2020. A soma das capacidades coletivas o que ir possibilitar que, em 2020, a relao do Brasil com a biodiversidade seja harmoniosa e colaborativa, j que nenhum ator isoladamente rene as condies para promover esta to necessria transio.

CONVENO SOBRE A DIVERSIDADE BIOLGICA. Rapport de la dixime runion de la Confrence des parties la Convention sur la diversit biologique. 2002. Disponvel em: . Acesso em: 20 jul. 2012. CONVENO SOBRE A DIVERSIDADE BIOLGICA. Rapport de la dixime runion de la Confrence des parties la Convention sur la diversit biologique. 2010. Disponvel em: . Acesso em: 20 jul. 2012. LEWINSOHN, Tomas M. Avaliao do estado do conhecimento da biodiversidade brasileira. Braslia: MMA, 2005. 2 v. LIMA, Flvia Pereira; MUNIZ, Jos Norberto; MARCO JNIOR, Paulo de. Evaluating Brazilian Conservation Projects the Weak Link between Practice and Theory. Natureza e Conservao, v. 8, n. 1, p. 41-45, 2010. SATO, Michle; SANTOS, Jos Eduardo dos. Sinopsis de la agenda 21. Mexico: Centro de Educacin y Capacitacin para el Desarrollo Sustentable e Programa de las Naciones Unidas para el Desarrollo PNUD, 1997. SECRETARIADO DA CONVENO SOBRE DIVERSIDADE BIOLGICA. Panorama da Biodiversidade Global 3. Montreal, Canad: Secretariado da CDB, 2010. UICN; WWF-BRASIL; IP. Biodiversidade Brasileira: anlise de situao e oportunidades, documento-base. Braslia, DF: UICN; WWF-BRASIL; IP, 2011. VAN ROOSMALEN, M. G. M. et al. A new species of living peccary (Mammalia: Tayassuidae) from the Brazilian Amazon. Bonner zoologische Beitrge, v. 55, n. 2. p. 105-112, 2007. WEIGAND JNIOR, Ronaldo; SILVA, Danielle Calandino da; SILVA, Daniela de Oliveira. Metas de Aichi: situao atual no Brasil. Braslia, DF: UICN; WWF-Brasil; IP, 2011.

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Agradecemos s 24 instituies citadas neste artigo que coordenaram os Dilogos sobre biodiversidade. A todos os mais de 400 participantes dos eventos e da consulta pblica para a definio das 20 metas brasileiras de biodiversidade. Ao Ministrio do Meio Ambiente por apoiar e participar de todas as etapas dos Dilogos sobre biodiversidade. Ao Ministrio do Meio Ambiente, Alimentao e Assuntos Rurais do Reino Unido (Defra) e ao Probio II pela viabilizao dos recursos financeiros.

Artigo recebido em 3 de agosto de 2012 e aprovado em 6 de agosto de 2012.

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Frederico SoareS Machado, Luiz Fernando Krieger Merico, Suzana Machado Pdua, caroLine deLiLeS, raFaeL MoraiS chiaravaLLoti, Maria cecLia Wey de Brito

ANExO PROPOSTA DE 20 METAS BRASILEIRAS DE BIODIVERSIDADE PARA 2020 Orientao para leitura: os trechos entre colchetes so aqueles que no obtiveram consenso.Objetivo estratgico A: tratar das causas fundamentais de perda de biodiversidade fazendo com que preocupaes com biodiversidade permeiem governo e sociedade. Meta brasileira 1. At 2020, no mais tardar, a populao brasileira ter conhecimento dos valores da biodiversidade e das medidas que podero ser tomadas para conserv-la e utiliz-la de forma sustentvel. Meta brasileira 2. At 2020, no mais tardar, a valorao da biodiversidade e dos servios ecossistmicos ter mecanismos consolidados e integrados s estratgias nacionais e locais de desenvolvimento, erradicao da pobreza e reduo da desigualdade, e em procedimentos de planejamento, sendo incorporados em contas nacionais, conforme o caso, e sistemas de relatoria. Meta brasileira 3. At 2020, no mais tardar, incentivos lesivos biodiversidade, inclusive os chamados subsdios perversos, tero sido eliminados ou reformados visando minimizar ou evitar impactos negativos. Incentivos positivos para a conservao e o uso sustentvel de biodiversidade tero sido elaborados e aplicados, de forma consistente e em conformidade com a CDB e outros compromissos internacionais relevantes, levando-se em conta as condies socioeconmicas nacionais. Meta brasileira 4. At 2020, no mais tardar, governos, setor privado e grupos de interesse em todos os nveis tero implementado planos de produo e consumo sustentveis e tero conseguido [restringir] [mitigar ou evitar] os impactos negativos da utilizao de recursos naturais [dentro de limites ecolgicos seguros]. Objetivo estratgico B: reduzir as presses diretas sobre a biodiversidade e promover o uso sustentvel. Meta brasileira 5. Proposta 1: At 2020, o pas ter reduzido a zero a taxa de perda, degradao e fragmentao de todos os ambientes nativos terrestres, de guas continentais, costeiros e marinhos por ao ilegal, priorizando os territrios de comunidades tradicionais e povos indgenas e seu entorno. Proposta 2: At 2015, o pas ter reduzido a zero a taxa de perda, degradao e fragmentao de todos os ambientes nativos por ao ilegal, e, at 2020, a taxa de perda de ambientes nativos ser reduzida em pelo menos 50% (em relao s taxas de 2009) e, na medida do possvel, levada a perto de zero. A degradao e a fragmentao tero sido reduzidas significativamente em todos os biomas, priorizando os territrios de comunidades tradicionais e povos indgenas e seu entorno. Proposta 3: At 2020, o pas ter reduzido a zero a taxa de perda, degradao e fragmentao de todos os ambientes nativos por ao ilegal e atingido a taxa de 100% de reduo de perda de ambientes naturais terrestres e de guas continentais na mata atlntica; de 90% na Amaznia e de 80% no pampa, cerrado, caatinga e pantanal, bem como alcanado a taxa de 100% de reduo da perda de ambientes costeiros e marinhos (em relao s taxas de 2009). Meta brasileira 6. At 2020, o manejo e a captura de quaisquer estoques de vertebrados, invertebrados e plantas aquticas sero sustentveis e feitos com aplicao de abordagens ecossistmicas, de modo a evitar a sobre-explorao; sero colocados em prtica planos e medidas de recuperao para espcies exauridas; a pesca no ter impactos adversos significativos sobre espcies ameaadas e ecossistemas vulnerveis, e os impactos da pesca sobre estoques, espcies e ecossistemas permanecero dentro de limites ecolgicos seguros [quando estabelecidos]. Meta brasileira 7. At 2020, as reas utilizadas para agricultura, pecuria, aquicultura, silvicultura, extrativismo, manejo florestal e da fauna sero utilizadas de forma sustentvel, visando assegurar a conservao da biodiversidade nas reas produtivas [e no seu entorno], principalmente garantindo a conectividade da paisagem. Meta brasileira 8. At 2020, a poluio, inclusive resultante de excesso de nutrientes, ter sido reduzida a nveis no prejudiciais ao funcionamento de ecossistemas e da biodiversidade. Meta brasileira 9. At 2020, a Estratgia Nacional sobre Espcies Exticas Invasoras dever estar totalmente implementada, com a participao e o comprometimento dos estados e com a formulao de uma poltica nacional, garantindo o diagnstico continuado e atualizado das espcies e a efetividade dos planos de ao de preveno, conteno e controle [priorizando as bioinvases mais crticas ou que ocorrem em unidades de conservao]. Meta brasileira 10. At 2017, todos os manguezais e recifes de corais tero sido mapeados e, pelo menos, 70% dos planos de manejo das unidades de conservao costeiras e marinhas tero sido implementados. E, at 2020, sero mitigadas as mltiplas presses antropognicas sobre recifes de coral, manguezais, praias arenosas, banhados, vrzeas, florestas costeiras e demais ecossistemas impactados especialmente por questes relacionadas s mudanas climticas ou acidificao ocenica, para que sua integridade e funcionamento sejam mantidos. Objetivo estratgico C: melhorar a situao da biodiversidade, protegendo ecossistemas, espcies e diversidade gentica. Meta brasileira 11. At 2020, o Sistema Nacional de Unidades de Conservao (SNUC) ser fortalecido e consolidado, ampliando-se progressivamente os oramentos pblicos direcionados s unidades de conservao, tendo como base o Oramento de 2011. Tal medida visa promover uma gesto efetiva, equitativa, ecologicamente representativa e integrada paisagem, alcanando um percentual mnimo de proteo em unidades de conservao (excetuando-se as APA) de 40% para a Amaznia, 20% para todos os demais biomas terrestres e de guas continentais e, pelo menos, 20% para reas costeiras e marinhas. Em reconhecimento importante contribuio dos territrios indgenas e territrios quilombolas para a conservao e o uso sustentvel da biodiversidade, devero ser assegurados e respeitados os direitos territoriais de povos indgenas e quilombolas, mediante demarcao e regularizao dos seus territrios. A partir de 2013, considerando-se a importncia das RL, APP devidamente regularizadas e outros tipos de reas protegidas e espaos de conservao sero apoiados e contabilizados entre os valores reportados pelo governo brasileiro como reas destinadas conservao e ao uso sustentvel, alm da meta anterior. Sugesto alternativa: At 2020, sero conservadas, por meio de unidades de conservao (categorias previstas no SNUC e outras categorias de reas oficialmente protegidas, exceto APA, bem como reas protegidas na forma de APP e reas de reserva legal compostas por vegetao nativa), pelo menos, 30% da Amaznia, 17% de cada um dos demais biomas terrestres (incluindo ecossistemas aquticos) e 10% de reas marinhas e costeiras, principalmente reas de especial importncia para a biodiversidade e os servios ecossistmicos, alm da importante contribuio das terras indgenas e territrios quilombolas como reas protegidas lato sensu, assegurada e respeitada sua demarcao e regularizao, observando a gesto efetiva e equitativa, ecologicamente representativa e satisfatoriamente interligados e integrados em paisagens terrestres e marinhas mais amplas. OBSERVAO: houve consenso entre todos os setores para a meta 11 (incluindo setor privado) Apenas o subsetor agrcola defendeu o texto apresentado como sugesto alternativa.

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Metas brasileiras de biodiversidade para 2020: exeMplo de construo participativa no Marco da conveno de diversidade biolgica cdb/onu Meta brasileira 12. At 2020, o risco de extino de espcies ameaadas ter sido reduzido significativamente, tendendo a zero, e sua situao de conservao, em especial das que sofrem maior declnio, ter sido melhorada. Meta brasileira 13. At 2020, a diversidade gentica de microorganismos, plantas cultivadas, animais criados e domesticados e variedades silvestres, inclusive de espcies de valor socioeconmico e/ou cultural, ter sido mantida e estratgias tero sido elaboradas e implementadas para minimizar a perda de variabilidade gentica. Objetivo estratgico D : aumentar os benefcios da biodiversidade e dos servios ecossistmicos para todos. Meta brasileira 14. At 2020, ecossistemas provedores de servios essenciais, inclusive servios relativos gua e que contribuem apara a sade e o bem-estar, tero sido restaurados e preservados, levando em conta [as necessidades das mulheres], povos e comunidades tradicionais, povos indgenas e comunidades locais e de populaes vulnerveis. Meta brasileira 15. At 2020, a resilincia de ecossistemas e a contribuio da biodiversidade para estoques de carbono tero sido aumentadas atravs de aes de conservao e recuperao, inclusive por meio da recuperao de, pelo menos, 15% dos ecossistemas degradados, priorizando biomas, bacias hidrogrficas e ecorregies mais devastados, contribuindo para a mitigao e a adaptao mudana climtica e para o combate desertificao. Meta brasileira 16. At 2013, assegurar que o Protocolo de Nagoya tenha sido ratificado e que esteja em vigor um novo marco legal nacional adequado s suas provises e, at 2015, criar um programa de implementao operacional para desburocratizar e simplificar a base regulatria, de acordo com a CDB. Objetivo estratgico E: aumentar a implementao por meio de planejamento participativo, gesto de conhecimento e capacitao. Meta brasileira 17. At 2013, a estratgia nacional de biodiversidade ser atualizada e adotada como instrumento de poltica, com planos de ao efetivos, participativos e atualizados, com monitoramento e avaliaes peridicas. Meta brasileira 18. At 2020, os conhecimentos tradicionais, inovaes e prticas de povos indgenas e comunidades tradicionais relevantes conservao e ao uso sustentvel da biodiversidade e a utilizao consuetudinria de recursos biolgicos tero sido respeitados, de acordo com seus usos, costumes e tradies. E os compromissos internacionais sero plenamente integrados e refletidos na implementao da CDB, com a participao plena e efetiva de povos indgenas e comunidades locais em todos os nveis relevantes. Meta brasileira 19. At 2020, as bases cientficas e as tecnologias necessrias ao conhecimento sobre a biodiversidade, seus valores, funcionamento, tendncias e sobre as consequncias de sua perda tero sido ampliadas e compartilhadas, assim como o uso sustentvel, a gerao de tecnologia e inovao a partir da biodiversidade estaro apoiados e devidamente transferidos e aplicados. At 2017, a compilao completa dos registros j existentes sobre a fauna, a flora e a microbiota, aquticas e terrestres, estar finalizada e disponibilizada em bases de dados permanentes e de livre acesso, resguardadas as especificidades, com vistas identificao das lacunas do conhecimento nos biomas e grupos taxonmicos. Meta brasileira 20. Imediatamente, a partir da aprovao das metas brasileiras, sero mobilizados e alocados recursos financeiros (de forma progressiva), assegurando em carter permanente, a partir de 2015, o montante necessrio para a implementao efetiva e o monitoramento do Plano Estratgico da Biodiversidade 2011-2020, para o cumprimento dessas metas. Sero consideradas as possibilidades de definio de novos mecanismos financeiros.

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BAhIA ANlISE & DADOS

Biodiversidade e desenvolvimento na BahiaGuilherme Fraga Dutra* Jean Franois-Timmers** Carlos Alberto Bernardo Mesquita***Mestre em Ecologia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Diretor do Programa Marinho, Conservao Internacional do Brasil. [email protected]. ** Mestre em Ecologia, Conservao da Biodiversidade e Desenvolvimento Sustentvel pela Escola Superior de Conservao Ambiental e Sustentabilidade (Escas) / Instituto de Pesquisa Ecolgica (IP). Gerente de Projetos na Bahia, Conservao Internacional. [email protected]. *** Doutorando em Cincias Ambientais e Florestais pela Universidade Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ); mestre em Manejo e Conservao de Florestas e Biodiversidade pelo Centro Agronmico Tropical de Investigacin y Enseanza na Costa Rica (CATIE). Diretor do Programa Mata Atlntica, Conservao Internacional. [email protected]. **** Doutor em Ecologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Diretor de Gesto do Conhecimento, Conservao Internacional. [email protected]. ***** Doutorando em Tratamento da Informao Espacial pela Pontfica Universidade Catlica de Minas Gerais (PUC Minas). Coordenador de Socioeconomia, Conservao International. [email protected]. ****** Mestre em Ecologia, Conservao e Manejo da Vida Silvestre pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Diretor Snior de Biomas, Conservao Internacional. [email protected].*

Lcio Cadaval Bed**** Tiago Cisalpino Pinheiro***** Luiz Paulo Pinto******

Resumo A construo de economias verdes, novo paradigma no contexto de desenvolvimento sustentvel e reduo da pobreza, pe trmino viso antagnica entre proteo ambiental e desenvolvimento econmico e estabelece o capital natural como alicerce para economias verdadeiramente sustentveis. Nesse contexto, o estado da Bahia tem os ingredientes necessrios a um papel de liderana nesse processo de transio, visto que concentra um enorme capital natural em pores representativas de diferentes biomas. No entanto, faltam ainda Bahia instrumentos de planejamento, ordenamento territorial e licenciamento ambiental necessrios aos propsitos de preveno e mitigao de demandas conflitantes. So discutidos exemplos de territrios do estado onde as atividades econmicas so diretamente dependentes dos servios ecossistmicos e onde o desenvolvimento de estratgias de economias verdes parece estar mais prximo. Palavras-chave: Biodiversidade. Bahia. Desenvolvimento. Economia verde. Capital natural. reas protegidas. Abstract The building of Green Economies, a new paradigm in the context of sustainable development and poverty reduction, puts to an end the antagonistic views of environmental protection and economic development, and establishes the natural capital as a foundation to truly sustainable economies. In this context, the state of Bahia has the necessary ingredients to play a leadership role in this process of transition, as it concentrates an enormous natural capital within representative portions of its constituent biomes. The state lacks, however, the necessary instruments of territorial planning and governance and environmental licensing for the prevention and mitigation of tradeoffs. Examples of state territories where economic activities are directly dependent on ecosystem services and where the development of green economy strategies seem closest. Keywords: Biodiversity. Bahia. Development. Green economy. Natural capital. Protected areas.

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INTRODUO A Conferncia das Naes Unidas para o Desenvolvimento Sustentvel Rio+20, finalizada em junho, teve resultados controversos. De um lado, os governos anunciaram um texto de consenso, com pontos que consideram inovadores e capazes de pavimentar o caminho para compromissos mais fortes nos prximos anos. De outro, a sociedade civil considerou que os avanos foram pequenos, j que praticamente no foram assumidas metas ou definidas fontes de recursos para atender s novas agendas propostas. Essas distintas vises refletem a percepo da sociedade sobre a necessidade urgente de importantes transformaes nos modelos de desenvolvimento, enquanto os governos resistem a estas mudanas por se encontrarem presos s concepes e amarras do atual modelo, ao tempo em que enfrentam uma grande crise econmica mundial. Uma anlise mais acurada da conferncia, entretanto, mostra alguns resultados importantes. Ao inserir no centro das discusses a economia verde, no contexto de desenvolvimento sustentvel e reduo da pobreza (UNITED NATIONS, 2012), as Naes Unidas colocam uma pedra sobre a viso antagnica do sculo passado entre proteo ambiental e desenvolvimento econmico. Ao contrrio, o capital natural (meio ambiente e benefcios provenientes deste) passa a ser um alicerce dos modelos de economia verdadeiramente sustentveis, e a ter valor cada vez maior para a sociedade. importante notar tambm que a realizao da Rio+20 no Brasil coloca o pas no centro deste debate, envolvendo a sociedade brasileira de maneira significativa. Isso cria um campo frtil para a discusso e a implementao de novos modelos de desenvolvimento, alinhados com o novo paradigma das economias verdes. Neste contexto, a Bahia tem os ingredientes necessrios para assumir um papel de liderana neste processo de mudanas. O estado, que 486

concentra pores representativas do cerrado, da caatinga, da mata atlntica e de ambientes costeiros e marinhos do Brasil (Figura 1), possui um enorme capital natural, que presta servios ecossistmicos de grande valor para sua sociedade. Atividades como a agricultura, a pesca e o turismo, assim como o funcionamento dos centros urbanos, beneficiam-se diretamente destes servios, muitas vezes sem que a sociedade tome conhecimento disso. Neste artigo feita uma anlise da biodiversidade na Bahia como expresso mxima de seu capital natural , analisando formas de mant-la e torn-la ainda mais central na perspectiva do desenvolvimento do estado.

BAHIA: ESTADO DA MEGADIVERSIDADE A Bahia potencialmente o estado com a maior diversidade biolgica do pas. Agrega, nos seus limites e mar costeiro, vrias regies e conjuntos de ecossistemas considerados recordistas de riqueza biolgica em nveis nacional e mundial: a regio dos Abrolhos, a mata atlntica costeira, as vrias feies da caatinga e as amplas extenses de cerrado no oeste, alm dos campos rupestres nas cadeias de serras e chapadas, diversos ecossistemas ecotonais e florestas estacionais espalhadas nas transies entre esses quatro biomas. Alm disso, reconhecidamente, a Bahia apresenta um patrimnio espeleolgico entre os mais relevantes do Brasil, com amplos complexos de grutas, incluindo as mais extensas cavernas do Hemisfrio Sul. Sabe-se que as florestas costeiras da Bahia tm valores de biodiversidade muito acima da mdia da mata atlntica de outros estados, chegando a ser quase trs vezes mais rica em espcies de plantas lenhosas por hectare que a mata atlntica de So Paulo (MARTINI et al., 2007; CARNAVAL et al., 2009). Essas florestas associadas s restingas, que possuem fauna e flora bastante peculiarBahia anl. dados, Salvador, v. 22, n. 3, p.485-502, jul./set. 2012

guiLherMe Fraga dutra, Jean FranoiS-tiMMerS, carLoS aLBerto Bernardo MeSquita, Lcio cadavaL Bed, tiago ciSaLPino Pinheiro, Luiz PauLo Pinto

CAATINGA

Barreiras

Salvador

CERRADO

MATA ATLNTICASalvador Sedes Unidades de Conservao (exceto APAs) Remanescentes Mata Atlntica Remanescente Cerrado Remanescente Caatinga Lei da Mata Atlntica Caatinga Cerrado

Batimetria Cota0 - 50 51 - 200 201 - 1000 1001 - 2000 2001 - 3000 3001 - 4000

Porto Seguro

REGIO DOS ABROLHOS

Figura 1 Biomas, remanescentes de vegetao e unidades de conservao (excluindo reas de Proteo Ambiental) do estado da BahiaFonte: Elaborado por Conservao Internacional a partir de IBGE (2001); Brasil (2006); Fundao SOS Mata Atlntica e Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (IPE) (2011); Inema (2012).

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(DIAS; ROCHA, 2005), e a ambientes ainda pou- flora. O cerrado baiano ainda possui uma poro cos conhecidos como as mussunungas1, as flores- significativa da cobertura vegetal nativa, que estas de altitude e as matas de cip2, constituem um sencial para a manuteno de servios ambientais dos centros de endemismo da mata atlntica o e das nascentes dos maiores contribuintes da marCentro de Endemismo do Sul gem esquerda do Rio So da Bahia e Norte do Esprito A regio dos Abrolhos apresenta Francisco. Santo (MULLER, 1972,1973; Concomitantemente, o os maiores e mais ricos recifes de KINZEY, 1982; SILVA; SOUestado da Bahia est rececorais do Atlntico Sul SA; CASTELETI, 2004). bendo ou planejando receOs campos rupestres da caatinga, entre outros ber, em curto prazo, investimentos de dezenas de da Chapada Diamantina, tm tambm biodiversida- bilhes de reais em projetos industriais, nas reas de recorde mundial, medida por metro quadrado de de infraestrutura, minerao, turismo, energia elivegetao rasteira de altitude (STANNARD, 1995). ca, alm da indstria florestal no sul/sudoeste, da Outras serras e complexos de dunas no interior da agroindstria no oeste e da indstria de petrleo e Bahia tm a fauna e a vegetao de riqueza e/ou gs no mar costeiro. Esses investimentos tm forte endemismo comparveis, porm diferenciados ou potencial de impactos ambientais, especialmente nicos em cada local (RODRIGUES, 2003; SILVA; em reas de ecossistemas frgeis e/ou ameaados. TABARELLI; FONSECA, 2003; JUNC; FUNCH; No oeste baiano concentra-se mais de 90% da ROCHA, 2005; SILVA et al., 2008). produo de gros do estado. A rea total cultivada A regio dos Abrolhos apresenta os maiores e com gros, em 2004, era de 2,4 milhes de hecmais ricos recifes de corais do Atlntico Sul, alm do tares (ha), com projeo de 3,9 milhes de ha em maior banco de rhodolitos (formados por algas cal- 2020 e 4,4 milhes de ha em 2024, na maioria das crias) descrito no mundo, importantes manguezais vezes, sobre reas nativas de cerrado (MENDONque funcionam como berrios da vida marinha, e A, 2006). Estudo recente (SERRANO et al., 2012) feies rochosas que constituem o Arquiplago dos mostra que, entre 2002 e 2008, a mdia anual de Abrolhos (DUTRA et al., 2006; AMADO-FILHO et desmatamento na regio foi de cerca de 51 mil ha; al., 2012). A sua riqueza biolgica, j conhecida j para o perodo de 2008 a 2011, a mdia anual pela ocorrncia da maior populao conhecida de de desmatamento saltou para mais de 164 mil ha. baleias jubarte na costa do Brasil (ANDRIOLO et Isso representa um incremento de 221% na mdia al., 2010), est sendo desvendada aos poucos. anual de desmatamento. As projees de desmaIsso tudo, sem mencionar o cerrado no oeste do tamento at 2051 para o oeste da Bahia indicam estado que, apesar de fortemente pressionado pela aproximadamente 15.300 km2 desmatados no cefronteira agrcola mais dinmica do planeta, possui nrio business-as-usual. Nesse contexto, conflitos grande diversidade biolgica, especialmente da sua pelo uso da gua e da terra devero trazer enormes dificuldades para os produtores, sem falar nas perdas do capital natural. 1 Vegetao arbustiva ou herbcea (chamada localmente de campo nativo ou campo cheiroso), sobre areias quartzosas tercirias Infelizmente, ainda no existe no estado um zo(podzois hidromrficos). Vegetao especializada, provavelmente neamento ecolgico-econmico capaz de ordenar relquia, com influncia de campos rupestres, cerrado, restingas e campinaranas amaznicas. Ocorrem nas formaes barreiras em territorialmente esses investimentos e estabelemanchas isoladas, na Bahia e no Esprito Santo. 2 Floresta Estacional Decidual com alta biodiversidade, muitas epfitas cer diretrizes e atividades adequadas a cada sube grandes bromlias terrestres, em faixa estreita de transio entre -regio, de acordo com sua riqueza e fragilidade a mata atlntica e a caatinga. Formao naturalmente rara e muito localizada, quase totalmente destruda, com plantas e animais endecolgica, capacidade de suporte ambiental e pomicos, entre os quais o gravatazeiro (Rhopornis ardesiaca), globaltencialidades. O desafio gerar riquezas econmimente ameaado. 488Bahia anl. dados, Salvador, v. 22, n. 3, p.485-502, jul./set. 2012

guiLherMe Fraga dutra, Jean FranoiS-tiMMerS, carLoS aLBerto Bernardo MeSquita, Lcio cadavaL Bed, tiago ciSaLPino Pinheiro, Luiz PauLo Pinto

cas sem destruio irreversvel da riqueza biolgica nar o mapa de reas prioritrias do estado, de forma atual, que tambm representa um enorme potencial a apontar precisamente reas insubstituveis ou de econmico, para as geraes futuras. grande relevncia em biodiversidade. Este mapeaA Bahia tem menos de 2% de seu territrio co- mento pode tambm propor grandes desenhos de berto por unidades de concorredores de biodiversidade servao de proteo inteTorna-se urgente estabelecer uma e de conexo entre biomas; gral (Figura 1), muito abaixo identificar reas-chave de estratgia de gesto do territrio da meta assumida pelo Brasil recarga de aquferos e para que permita seu uso econmico na Conveno da Diversidacombate eroso. Tambm, sem perda da sua riqueza de Biolgica das Naes Unideve evidenciar as reasbiolgica atual das (16%). A elevada diversi-chave pelo seu acervo ardade biolgica do estado encontra-se ainda quase queolgico, de cavernas, de potencial ecoturstico; totalmente desprotegida, o que pode comprometer, reas de populaes tradicionais, quilombos, funa longo prazo, a manuteno dos fluxos de servios dos de pasto etc. ambientais to necessrios para a cadeia produtiva Outra estratgia promissora o Planejamento e o bem-estar da populao. Por sua vez, j exis- Sistemtico da Sustentabilidade (PSS), em fase tem vastas reas ambientalmente degradadas no de elaborao pela Conservao Internacional, no estado, que podem abrigar os investimentos pre- contexto do termo de cooperao tcnica com o Govistos e a necessria incluso econmica e social verno do Estado da Bahia e de dilogos especficos da populao baiana, sem a necessidade de com- com setores e projetos de investimentos no estado. prometer a proteo, a longo prazo, de seu acervo Trata-se de realizar, na escala de um grande prode biodiversidade. jeto setorial, um esforo de planejamento sistemNas paisagens j amplamente degradadas, como tico, integrando a conservao da biodiversidade na mata atlntica, fundamental identificar e prote- e a manuteno dos servios ecossistmicos, os ger os ltimos fragmentos significativos ainda rema- investimentos pblicos e privados previstos e outros nescentes que so at hoje alvo de desmatamentos, interesses identificados no mesmo territrio. O obde forma a, paralelamente a estratgias mais amplas jetivo adequar o uso e a disponibilidade dos recurde restaurao de corredores ecolgicos, garantir sos s diversas necessidades e demandas sociais os ltimos repositrios de biodiversidade do bioma. que ocorrem no mesmo espao, sem preestabeleOs ecossistemas isolados, ou raros e frgeis, como cer nveis hierrquicos entre cada interesse e cada os campos rupestres e as dunas da caatinga, bem setor. Essa abordagem permite no somente precomo as florestas estacionais do oeste, devem ser venir e mitigar conflitos entre a questo ambiental e identificados, localizados, apontados e efetivamente determinado interesse econmico, dando seguranprotegidos, de forma a no ser degradados antes de a maior ao processo de licenciamento ambiental, nem sequer conhecidos. Nas reas maiores, com como deve propiciar a mitigao de conflitos dos ecossistemas ainda preservados especialmente no diversos projetos econmicos e sociais entre si. cerrado e na regio dos Abrolhos , torna-se urgente comum observar, por exemplo, conflitos de inestabelecer uma estratgia de gesto do territrio teresses relacionados a turismo vs. indstria, gua que permita seu uso econmico sem perda da sua para gerao de energia vs. agricultura, consumo riqueza biolgica atual. humano vs. minerao vs. agricultura etc. Da mesAssim, torna-se urgente mapear e retratar, com ma forma que, na abordagem clssica de planejarapidez e a maior preciso possvel, os ativos am- mento sistemtico da conservao (MARGULES; bientais e o capital natural da Bahia. preciso refi- PRESSEY, 2000), determinam-se e localizam-seBahia anl. dados, Salvador, v. 22, n. 3, p.485-502, jul./set. 2012

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biodiversidade e desenvolviMento na bahia

geograficamente metas ideais e, em funo de cus- perfis socioeconmicos das populaes residentes to/benefcio, prioridades e estratgias para atingir es- nos biomas do estado. sas metas. A mesma metodologia pode ser aplicada A mata atlntica, por exemplo, concentra a maior para diversos setores econmicos e sociais, que parte da populao, possuindo 9,2 milhes dos 13,8 devem ser todos compatibilimilhes de habitantes do eszados entre si no mesmo terA elevada biodiversidade tado em 2010 e apresenta o ritrio. Essa compatibilizao maior percentual de populado estado se traduz em uma deve ser feita por negociao o residente em reas urbaheterogeneidade nos padres direta entre os diversos intenas entre os biomas do estado socioeconmicos e de resses envolvidos, a partir da desenvolvimento em cada um dos (80%). A concentrao histrivisualizao espacial e dos ca da populao e as atividabiomas do estado cenrios construdos no condes econmicas nas regies fronto espacial. costeiras por conta do modelo de ocupao territorial A primeira fase da cooperao tcnica da Con- do pas explicam esse padro. Os municpios baianos servao Internacional com o Governo do Estado na mata atlntica respondem por 80% do PIB estaduda Bahia permitiu identificar casos concretos emble- al e 66% da populao, o que lhes garante um PIB por mticos e prioritrios, que se prestariam aplicao habitante superior mdia estadual. do PSS: a gerao de energia elica na caatinga, A caatinga, por sua vez, concentra quase um tero plantio de eucalipto no extremo sul e sudoeste o da populao e apresenta os menores ndices de da Bahia (na mata atlntica), a fronteira agrcola no desenvolvimento do estado. Sua participao no PIB Corredor do Jalapo no oeste do estado (cerrado), estadual no atinge 20% do total. O cerrado, ltima em reas de prospeco para minerao de bau- regio a ser ocupad