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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS LINGÜÍSTICA APLICADA E ESTUDOS DA LINGUAGEM A LINGUAGEM ORAL NOS LIVROS DIDÁTICOS DE LÍNGUA PORTUGUESA DO ENSINO FUNDAMENTAL - 3º E 4º CICLOS: ALGUMAS REFLEXÕES ADELMA DAS NEVES NUNES BARROS MENDES SÃO PAULO 2005

Adelma Das Neves Nunes Barros Mendes (1)

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Linguagem oral nos Livros didáticos

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  • PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO

    PROGRAMA DE ESTUDOS PS-GRADUADOS

    LINGSTICA APLICADA E ESTUDOS DA LINGUAGEM

    A LINGUAGEM ORAL NOS LIVROS DIDTICOS DE LNGUA PORTUGUESA DO ENSINO FUNDAMENTAL - 3 E 4 CICLOS: ALGUMAS REFLEXES

    ADELMA DAS NEVES NUNES BARROS MENDES

    SO PAULO 2005

  • PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO

    PROGRAMA DE ESTUDOS PS-GRADUADOS

    LINGSTICA APLICADA E ESTUDOS DA LINGUAGEM

    DOUTORADO

    A Linguagem Oral nos Livros Didticos de Lngua Portuguesa do Ensino Fundamental - 3 e 4 ciclos: Algumas Reflexes

    Adelma das Neves Nunes Barros Mendes

    Tese apresentada Banca Examinadora da

    Pontifcia Universidade Catlica de So

    Paulo, como exigncia parcial para a

    obteno do ttulo de Doutor em Lingstica

    Aplicada e Estudos da Linguagem, sob a

    orientao da Prof.Dra. Roxane Helena

    Rodrigues Rojo e Co-orientao do Prof. Dr.

    Bernard Schneuwly.

    SO PAULO -2005

  • BANCA EXAMINADORA

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  • Autorizo, exclusivamente para fins acadmicos e cientficos, a reproduo total ou parcial desta tese por processos de fotocopiadoras ou eletrnicos.

  • Agradeo

    A Deus, Senhor de todas as horas; A Nossa Senhora Aparecida, pela f que me sustenta; minha orientadora, Professora Dra. Roxane Rojo, que mais que orientadora da Tese, foi orientadora de caminhos, abrindo-me as portas da pesquisa e do mundo, contribuindo para meu crescimento intelectual; Ao meu co-orientador no exterior, Professor Dr. Bernard Schneuwly, pela orientao sria e amiga e por sua to calorosa acolhida em seu grupo de pesquisa; Professora Dra. Glas Sales Cordeiro (UNIGE-Suia), minha gratido infinita por sua enorme colaborao, ateno e cuidado em minha estada em Genebra; equipe de professores do grupo de Pesquisa GRAF da Faculdade de Psicologia e Cincia da Educao (FAPSE) da Universidade de Genebra (UNIGE), Sua, em especial Sandrine Aeby, Joaquim Dolz, Terse Thvenaz e Simon Toulouse por nossas constantes trocas de idias sobre o ensino de lngua materna e, como no poderia deixar de ser, sobre a vida; Ao Professor Dr. Antnio Gomes Batista (FAE-CEALE-UFMG) por suas contribuies, sugestes de leitura no momento em que esse trabalho ainda era semente; Luza e ao Itamar (FAE-CEALE-UFMG), sempre prontos a auxiliar nas diversas coletas do material de pesquisa; Aos professores Doutores Beth Brait (PUC-SP), Manoel Corra (USP), Jacqueline Barbosa (PUC-SP) e Anna Bentes (UNICAMP) pelas sugestes e orientaes preciosas na tecitura desse trabalho nas diferentes fases de qualificao da tese; Maria Lcia, Mrcia e Rosngeles do LAEL/PUC-SP, sempre prontas a nos auxiliar; Ao Adail Sobral, amigo leal de todas as horas; Aos colegas do Colegiado do Curso de Letras da Universidade Federal do Amap, em especial Eduza, Regina, Rosilene, Martha e Maneca; Universidade Federal do Amap (UNIFAP) pela licena concedida; Ao Projeto de Pesquisa Integrada IEL-UNICAMP/CEALE-UFMG Livro Didtico de Lngua Portuguesa: Produo, Perfil e Circulao; Ao CEALE-UFMG /MEC/SEB/PNLD por ter permitido a coleta do material; Ao CNPq pela bolsa de estudos concedida; A CAPES pela bolsa de estudos de estgio no exterior.

  • Para:

    Adilson, pela vida que, paradoxalmente,

    dividimos e somamos.

    Wagner, Marlia e Jlio,

    por quem luto sempre.

    Minha me, in memoriam.

    Meu pai.

    Meus irmos.

    Andria, irm-amiga-filha por sua importncia

    singular em minha vida.

    Maria Clara, que plantou a semente e por seu

    exemplo de fora e luta: meu afeto e gratido

    eternos.

    Josiara, pelo companheirismo. s minhas tias, Carmem e Esmeralda, pela educao que me deram. Simone Padilha (UFMT), pela amizade nascida e cultivada nesses anos de doutorado.

  • O caminho de Deus perfeito,

    a palavra do Senhor provada,

    um escudo para todos em que

    nele confiam (Salmo, 18).

  • RESUMO

    Este trabalho baseia-se na perspectiva scio-histrico-discursiva

    bakhtiniana e em teorias advindas da didtica das lnguas, da histria da

    educao e dos estudos sobre a linguagem de modo geral. A anlise dos dados

    aqui exposta busca demonstrar que o novo lugar dado linguagem oral no

    ensino-aprendizagem de lngua materna (PCN, 1998) e (PNLD, 2002, 2005)

    suscitou mudanas e que os livros didticos de Lngua Portuguesa (LDP) esto

    tratando cada vez mais desse objeto em suas propostas de trabalho.

    Nos livros aqui pesquisados, observou-se que entre um programa de avaliao

    oficial e outro, PNLD/2002 e PNLD2005, a linguagem oral ultrapassou o total de 122

    para 587 propostas. A linguagem oral nos LDP se apresenta concretizada tanto nos

    Gneros orais formais e pblicos como nas atividades de linguagem (Dolz, Schneuwly e

    Haller, 1998) e tratada sob dois grandes modos: como meio ou passarela de

    explorao de objetos diversos e como objeto em que se visa o ensino dos gneros

    orais da esfera pblica de comunicao.

    O modo que trata a linguagem oral como meio explora essencialmente leitura,

    compreenso e produo de textos escritos e conhecimentos lingsticos. O modo que

    a trata como objeto com vistas ao ensino, mostra-se sob trs perspectivas: da imerso,

    da transmisso e da reflexo (Rojo, 2005), mas somente essa ltima perspectiva

    trabalha com saberes e capacidades de linguagem (Dolz e Schneuwly, 1998),

    necessrios para compreenso, produo e gesto dos gneros de circulao pblica,

    isto , promove o ensino-aprendizagem desses gneros como objeto autnomo de

    ensino (PCN, 1998) e (Dolz e Schneuwly, 1998), abrindo possibilidades para uma

    formao cidad.

    Nesse trabalho desenvolvido, verifica-se que os livros didticos de lngua

    Portuguesa no apresentam um discurso monolgico (Bakhtin, 1953/4/1979; 1929) de

    seus autores, mas esto dialogando com os novos paradigmas de ensino da Lngua

    Portuguesa, com os documentos oficiais (PCN) e com as orientaes das sucessivas

    avaliaes (PNLD).

  • ABSTRACT

    This thesis is based on the socio-historical-discursive perspective proposed by

    Bakhtin as well as on theories developed in language teaching methodology, in

    education and in language studies in general. The analysis of the data points to the

    attention given to oral language in the teaching and learning of the mother tongue (PCN,

    1998) and (PNLD/2002, 2005) that contributed to a change in focus of Portuguese

    language textbooks used in schools

    The research based on the examination of the classroom textbooks showed that

    the emphasis on oral language increased from an original proposal of 122 to 587

    proposals. In this study, the presence of oral language is apparent in formal and public

    spoken discourses as scholastic activities (Dolz, Shneuwly & Haller, 1998). Oral

    production is treated from two different standpoints: as a means of exploration of diverse

    objects and as an object in which the focus is on the presentation of oral genres used in

    public communication.

    Oral language is thus treated as a means to explore essentially reading,

    comprehension and production of written texts as well as linguistic knowledge. Following

    (Rojo, 2005) spoken discourse is treated as a teaching objective from three different

    perspectives: immersion, transmission and reflection. Only the perspective of reflection

    deals with knowledge and language abilities (Dolz & Schneuwly, 1998) which are

    necessary for the comprehension, production and management of genres employed in

    the public sphere, promoting the teaching and learning of those genres as an

    autonomous objective of instruction (PCN, 1998), (Dolz & Schneuwly, 1998), preparing

    the groundwork for civic education.

    The findings of this study show that the authors of Portuguese-language textbooks

    do not present a monologic discourse (Bakhtin, 1953/1979, 1929) but engage the new

    teaching paradigms and successive textbook evaluations presented respectively in both

    the (PCN) and (PNLD) in dialogue.

  • SUMRIO

    Introduo 1

    Captulo 1. A disciplina Lngua Portuguesa e a transposio didtica 5

    1.1. A lngua Portuguesa como entidade poltico-cultural 6

    1.2. O processo de disciplinarizao da lngua portuguesa no Brasil 9

    1.3. As transformaes dos saberes tericos, a didatizao e o livro didtico 18

    1.4. A disciplina Lngua Portuguesa atualmente e o PNLD 29

    Captulo 2. Compreender a linguagem oral para o ensino 41

    2.1. As mltiplas dimenses da linguagem oral 43

    2.2. Linguagem oral e linguagem escrita: relaes complexas 56

    Captulo 3. Compreender a linguagem oral no ensino 76

    3.1. Os orais no ensino de Lngua Portuguesa: perspectivas para didatizao 86

    3.2. Duas correntes que definem o tratamento do ensino da linguagem oral 89

    Captulo 4 Princpios de pesquisa 103

    4.1. Questes de pesquisa 103

    4.2. Dispositivos de pesquisa 106

    4.2.1.Seleo e descrio do corpus 107

    4.3. Procedimentos de anlise 116

    Captulo 5 - A anlise dos dados 122

    5.1.O primeiro momento de analise 122

    5. 2 O segundo momento de anlise 130

  • 5. 2. 1-Primeiro nvel: Os gneros e atividades presentes nos LDP 130

    Captulo 6 - Os modos de tratamento da linguagem oral nos LDP 144

    6.1. Segundo nvel de anlise: dois modos de tratamento da linguagem oral 144

    6.1.1 Primeiro Modo: a linguagem oral como meio 145

    6.1.2. Segundo Modo: a linguagem oral numa perspectiva de ensino 157

    6.2. A relao entre linguagem oral e escrita nos dois modos de tratamento 176

    6.2.1. As relaes entre linguagem oral e linguagem escrita no modo em que

    a linguagem oral concebida como meio

    177

    6.2.2. As relaes entre linguagem oral e escrita no modo que visa ao ensino

    dos gneros orais

    179

    Consideraes Finais 184

    Bibliografia 192

    Anexos

  • A LINGUAGEM ORAL NOS LIVROS DIDTICOS DE PORTUGUS DO ENSINO FUNDAMENTAL-3 E 4 CICLOS: ALGUMAS REFLEXES

    1

    INTRODUO

    As novas perspectivas para o ensino-aprendizagem da lngua materna

    que surgiram nos ltimos anos vm favorecendo mudanas e reconhece-se

    que tais mudanas no ocorreram de uma hora para outra, mas graas, por

    um lado, aos grandes avanos das cincias da aprendizagem e das cincias

    da linguagem, introduzidos nos currculos de formao de professores desde

    a dcada de 60, e, por outro, s prprias exigncias sociais que impem a

    reviso de paradigmas (Batista, 2003: 42).

    Essas exigncias sociais encontram-se representadas principalmente, na

    nova Lei de Diretrizes e Bases da Educao Brasileira (LDB) e nas novas Diretrizes

    para o Ensino Fundamental emanadas do Conselho Nacional de Educao (CNE).

    Da mesma forma, essas demandas so contempladas pelos Parmetros

    Curriculares Nacionais (PCN/1998) propostos pelo MEC para funcionarem como

    elemento catalisador de aes, na busca de uma melhoria na qualidade da

    Educao Brasileira (Batista, 2003: 42).

    Pode-se dizer que, na dcada de 90, houve uma maior ebulio que

    favoreceu a chamada mudana de paradigma e que vem refletindo uma

    nova configurao da Lngua Portuguesa como disciplina, atualmente. Nessa

    nova configurao, novos objetos de ensino e aprendizagem foram

    reivindicados. Considerando a extrema variedade das prticas de linguagem,

    so os gneros que passam a ser considerados para o ensino de lngua

    materna.

    A eleio dos gneros nasce de suas possibilidades de estabilizar os

    elementos formais e rituais das prticas. Segundo Dolz & Schneuwly (1998),

    o trabalho sobre os gneros dota os alunos de meios de anlise das

    condies sociais efetivas de produo e de recepo dos textos e fornece

    um quadro de anlise dos contedos, da organizao do conjunto do texto e

    das seqncias que o compem, assim como das unidades lingsticas e das

    caractersticas especficas da textualidade oral.

  • A LINGUAGEM ORAL NOS LIVROS DIDTICOS DE PORTUGUS DO ENSINO FUNDAMENTAL-3 E 4 CICLOS: ALGUMAS REFLEXES

    2

    A linguagem oral, que, historicamente, esteve presente nas salas de

    aula (nos seminrios e apresentaes/exposies orais), concebida dentro

    da perspectiva da tradio escolar como mediadora das interaes entre

    professor/aluno/aluno, passa a ser mais um dentre os novos objetos de

    ensino da lngua materna, especialmente os gneros orais da esfera pblica

    de comunicao.

    Talvez por conta da participao do Estado atravs do Programa

    Nacional de Livros Didticos (PNLD), alguns dos objetos propostos passaram

    a ser incorporados pelos livros didticos de Lngua Portuguesa (LDP) e a

    linguagem oral, conforme defendida tambm pelos PCN (1998), configura-se

    como exemplo desses objetos. Inegavelmente interrelacionados a esse

    objeto, outros contedos se apresentam, como a complexa relao entre

    linguagem oral e escrita.

    Entretanto, Rojo (2003: 87) julga que o trabalho com a linguagem oral

    ainda se apresenta como um dos pontos de menor clareza para os autores e

    editores de LDP: sobre como ensinar e sobre como aprender. Em funo

    disso, procuramos, nesse trabalho, verificar se, nas propostas de ensino-

    aprendizagem da linguagem oral, estabelecidas pelos livros didticos de

    Lngua Portuguesa (LDP), os gneros orais formais e pblicos esto sendo

    tomados como objeto de ensino e como esto sendo tratados. Para

    desenvolv-lo, inserimo-nos numa perspectiva scio-histrico-discursiva

    bakhtiniana e nos apoiamos em teorias advindas da didtica das lnguas, da

    histria da educao e dos estudos sobre a linguagem de modo geral.

    Nossas discusses no visam a questionar ou sancionar a avaliao

    efetivada pelo PNLD, nem tampouco estabelecer crticas negativas com o intuito de

    depreciar autores de LDP sobre quaisquer que sejam suas posies frente ao

    trabalho com a linguagem oral. Nossa inteno dada a reconhecida importncia

    e a necessidade do LDP nas nossas escolas fazer uma reflexo a partir dos

    frutos dessa nova poltica de educao que vem desencadeando alguns

    procedimentos de anlise e avaliao do ensino e, nesse contexto, se insere o

    livro didtico de Lngua Portuguesa, que elegemos como foco deste trabalho.

  • A LINGUAGEM ORAL NOS LIVROS DIDTICOS DE PORTUGUS DO ENSINO FUNDAMENTAL-3 E 4 CICLOS: ALGUMAS REFLEXES

    3

    Assim, no Captulo 1, distinguimos a lngua portuguesa, como

    identidade nacional, da disciplina Lngua Portuguesa (DLP), entendendo o

    processo que a configurou como saber a ser ensinado. Alm disso, buscamos

    compreender o processo de transposio didtica e sua relao com a

    didatizao dos saberes de referncia. Estendemos tal compreenso s

    perspectivas mais atuais sobre o ensino-aprendizagem da Lngua

    Portuguesa, mostrando como os acontecimentos scio-poltico-econmicos

    influenciaram as mudanas ocorridas nessa disciplina ao longo dos anos e,

    conseqentemente, nos livros didticos. Por fim, tentamos compreender o

    livro didtico de Lngua Portuguesa no como um suporte, mas como um

    gnero do discurso complexo e mltiplo, scio-historicamente construdo e

    situado na interseco das diferentes esferas de produo da vida social.

    Isso nos ajudou a analis-lo como um enunciado que dialoga com os novos

    paradigmas de ensino da Lngua Portuguesa, com os documentos oficiais

    (PCN) e com as orientaes das sucessivas avaliaes do Programa

    Nacional do Livro Didtico (PNLD).

    No Captulo 2, apresentamos alguns traos do funcionamento da linguagem

    oral em suas mltiplas dimenses, destacando as dimenses discursiva e material.

    No Captulo 3, traamos um panorama geral do que se tem proposto para o

    ensino da linguagem oral na sala de aula de lngua materna, destacando a

    perspectiva que inspira as orientaes dos PCN (1998), ou seja, a abordagem que

    prev a linguagem oral como objeto autnomo de ensino e aprendizagem. Alm

    disso, fazemos uma sntese das vrias correntes que tratam da relao entre

    linguagem oral e escrita, verificando a influncia forte de duas vertentes que

    circulam atualmente. Entendendo que tais relaes ainda so sujeitas a controvrsia

    e mal-entendidos, procuramos olh-las nas dimenses dos gneros em que oral e

    escrita se interpenetram e se inter-relacionam de forma bastante complexa.

    No Captulo 4, descrevemos os mecanismos de pesquisa (questes de

    pesquisa; dispositivos de pesquisa; descrio do corpus; seleo dos dados;

    procedimentos de anlise).

    No Captulo 5, expomos a anlise dos dados, que se configurou em

    dois momentos: o primeiro, constituiu-se numa anlise documental em que

  • A LINGUAGEM ORAL NOS LIVROS DIDTICOS DE PORTUGUS DO ENSINO FUNDAMENTAL-3 E 4 CICLOS: ALGUMAS REFLEXES

    4

    traamos um perfil geral sobre o trabalho com a linguagem oral nos LDP,

    para que nos revelassem indcios que nos levassem s colees de livros

    didticos que estariam tomando a linguagem oral como objeto de ensino.

    Essa anlise se configurou como essencialmente descritiva dos fatos

    observados, o que nos permite qualific-la como uma pr-anlise. O

    segundo momento se constituiu pela anlise propriamente dita das colees

    selecionadas, por meio dos indcios obtidos no primeiro momento. Nessa

    anlise, que se subdividiu em dois nveis, incluiu-se a explorao do material

    quanto s atividades propostas para a produo e compreenso dos gneros

    orais formais e pblicos, onde fizemos um levantamento de todas essas

    propostas presentes nas colees eleitas, no primeiro nvel.

    No Captulo 6, no segundo nvel de anlise, verificou-se como eram

    abordados os gneros propostos pelos LDP, olhando quais capacidades de

    linguagem e saberes esto envolvidos. Discutimos os dois modos de

    tratamento da linguagem oral e suas perspectivas diversas que se

    apresentaram no decorrer dessas anlises e constatamos a presena de

    traos de, pelo menos, trs abordagens que circulam no Brasil sobre a

    linguagem oral que inspiraram decididamente os trabalhos desses LDP. Por

    fim, traamos nossas consideraes finais onde sintetizamos algumas das

    possibilidades e limites do trabalho com a linguagem oral em sala de aula

    tomando os gneros orais formais e pblicos a partir do livro didtico de

    Lngua Portuguesa.

  • A LINGUAGEM ORAL NOS LIVROS DIDTICOS DE PORTUGUS DO ENSINO FUNDAMENTAL-3 E 4 CICLOS: ALGUMAS REFLEXES

    5

    Captulo 1

    A disciplina Lngua Portuguesa e a transposio didtica dos saberes

    Extrair de uma rea de conhecimento uma disciplina curricular , fundamentalmente, escolarizar esse conhecimento (Soares, 1996: 9).

    Considerando nosso objeto de pesquisa, a linguagem oral como objeto

    de ensino na segunda metade do Ensino Fundamental, um dentre os diversos

    que precisam ser postos na sala de aula de lngua materna, faz-se

    necessria uma compreenso dos aspectos que nele esto implicados. Para

    viabilizar uma aproximao desses aspectos, neste captulo, primeiramente

    procuramos distinguir a lngua portuguesa (LP), como idioma fundante da

    identidade nacional, da disciplina Lngua Portuguesa (DLP), no processo que

    a configurou como saber a ser ensinado1. Em seguida, buscamos entender o

    processo de transposio didtica e sua relao com a didatizao dos

    saberes de referncia, para definir o livro didtico de Lngua Portuguesa

    1 Embora no estejamos, para este captulo, privilegiando uma abordagem histrica ou adotando uma

    cronologia exaustiva, em alguns pontos do texto se imps um tratamento apoiado em datas exatas, perodos

    determinados e sculos, como recurso para melhor se compreender o longo processo de transformao da

    lngua portuguesa em disciplina escolar.

  • A LINGUAGEM ORAL NOS LIVROS DIDTICOS DE PORTUGUS DO ENSINO FUNDAMENTAL-3 E 4 CICLOS: ALGUMAS REFLEXES

    6

    (LDP): como compreend-lo? Como um suporte de textos ou como um gnero

    de discurso?

    Veremos ainda que as alteraes efetivadas na disciplina Lngua

    Portuguesa (DLP), a partir das aes e didatizaes dos saberes produzidos

    pelos estudos sobre a lngua e a linguagem, de modo geral, so incorporados

    tambm aos livros didticos de Lngua Portuguesa (LDP), j que o que

    determina a poltica da escolarizao do saber e, portanto, a poltica do livro

    didtico , fundamentalmente, uma poltica da cultura, da cincia e das

    prticas sociais, e que resultado de lutas e compromisso sociais e

    econmicos um substrato ideolgico, portanto (Soares, 1996b: 5).

    1.1. A lngua portuguesa como entidade poltico-cultural

    Segundo Collinot et al. (1999: 10), por instituio de uma lngua se

    compreende o fato histrico e poltico em que se coloca determinada lngua

    como lngua nacional.

    A lngua portuguesa do Brasil do sculo XVI, embora reconhecida como

    lngua oficial, no era a mais utilizada pela populao. Era a lngua geral (que

    recobria as lnguas indgenas faladas no territrio brasileiro, em sua maioria,

    advindas de um nico tronco tupi), sistematizada pelos Jesutas, que servia

    ao povo.

    Essa lngua geral era utilizada entre os portugueses e os indgenas

    para a evangelizao, a catequese e para a comunicao diria. Foi nela,

    tambm, que se nomearam a fauna e a flora, acidentes geogrficos,

    povoaes (Soares, 1996a). O latim se constitua na terceira lngua e nele se

    fundavam os trabalhos de ensino secundrio e superior dos Jesutas.

    O decreto institudo pelo Marqus de Pombal foi o fato histrico

    principal que forou a instituio da lngua portuguesa como lngua nacional

    no Brasil. Nessa reforma, chamada de Pombalina, determinava-se que, em

    todas as povoaes do Brasil,

    No seria consentido por modo algum que os meninos e meninas, que

    pertencessem s escolas, e todos aqueles ndios, que fossem capazes de

  • A LINGUAGEM ORAL NOS LIVROS DIDTICOS DE PORTUGUS DO ENSINO FUNDAMENTAL-3 E 4 CICLOS: ALGUMAS REFLEXES

    7

    instruo nesta matria, usassem da lngua prpria das suas naes ou da

    chamada geral, mas deveriam utilizar-se unicamente da Lngua

    Portuguesa [...] (Soares, 1996a: 13).

    Esse contexto pode ser compreendido a partir do que Rey (2001: 118-

    119) explica sobre a construo ideolgica da norma. Para esse autor, essa

    construo repousa por inteiro no conceito habilmente manipulado de uso.

    A noo de uso formada antes que a noo de sistema seja apreendida,

    pois a histria das reflexes sobre a linguagem, principalmente a da

    gramtica, reflete e ilustra um esforo constante para atingir o sistema,

    atravs dos produtos do uso. Foram as condies scio-polticas de

    unificao dos grandes Estados, sobretudo do sculo XVII (na Espanha,

    Frana e Inglaterra) uma das principais responsveis pela introduo, no

    quadro ainda impreciso do sistema recoberto pelas coeres sociais do uso e

    produtor do discurso, de uma dimenso voluntarista e de um sistema de

    valores predeterminados.

    De acordo com o referido autor, o que se verifica, ento, que o

    discurso avaliativo-prescritivo da classe dominante se abriga por trs da

    constatao de uma lei abstrata. E a regra objetiva que os gramticos se

    empenhavam em descobrir por trs dos usos assimilada a uma

    pseudocoero da norma social (o uso geral) e recobre de fato uma inteno

    unificadora. Isto talvez explique, segundo ele, porque a norma tem m

    reputao entre os lingistas.

    Rey (2001: 125) apresenta trs noes de norma. A norma objetiva

    (variedades do uso), segundo a qual cada grupo social tem a sua prpria

    norma e, conseqentemente, no se pode falar de norma, mas de normas no

    plural, j que existiro tantas normas quantos grupos sociais houver. Com

    isso, para ele, preciso se reconhecer e se voltar para a pluralidade das sub-

    normas do domnio da estilstica, no sentido de Bally e da sociolingstica.

    H ainda, a norma prescritiva e a norma subjetiva. A norma prescritiva

    diz respeito ao uso extrado da lngua literria, dos grandes escritores

    clssicos e, por ser codificada e concebida como detentora de maior prestgio

    na comunidade lingstica, a nica que se presta realizao dos objetivos

  • A LINGUAGEM ORAL NOS LIVROS DIDTICOS DE PORTUGUS DO ENSINO FUNDAMENTAL-3 E 4 CICLOS: ALGUMAS REFLEXES

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    poltico-pedaggicos da escola. A norma subjetiva, que o ideal de lngua

    aspirado por uma dada comunidade, um uso da lngua que representaria o

    ideal de perfeio lingstica. Para o autor,

    Somente uma lingstica da norma objetiva, de suas variaes e de seus

    tipos, subjacentes s variaes dos usos, em um estudo sistemtico das

    atitudes metalingsticas numa comunidade que usa o mesmo sistema

    lingstico (lngua ou dialeto, segundo a definio do sistema) podero

    fundar os estudos das normas subjetivas, dos juzos de valor sobre a

    linguagem e de suas retroaes sobre o uso, estudo que poderia construir

    uma cincia social aparentada s teorias dos valores. A tendncia

    unificao manifestada pela norma prescritiva se dirige pluralidade das

    normas objetivas, s quais os juzos de valor estruturados em uma norma

    avaliativos do uma coerncia sociolgica (sistema hierarquizado, eixo

    opositivo: prestgio X antiprestgio) [...] A presso social unificadora, que se

    manifesta em outros planos pela estruturao de classes pela tendncia

    hierarquizao, pelo estabelecimento de uma ideologia dominante, cria, no

    plano da linguagem, uma tendncia unificao da norma subjetiva (Rey,

    2001: 130).

    Em linha semelhante, Along (2001: 153) explica que a lngua um

    fato social e a sociedade, mais do que uma soma de indivduos organizada

    de acordo com as regras que regulam e condicionam o comportamento

    individual. H um conjunto de formas lingsticas que so objeto de uma

    tradio de elaborao, de decodificao e de prescrio, isto , uma norma

    que socialmente dominante, pelo fato de se impor como o ideal a ser

    buscado nas circunstncias que exigem um uso refletido ou monitorado da

    lngua, o que autor chama de norma explcita. Mas inegvel a existncia de

    outra, a norma implcita que, embora se apresentando de maneira pouco

    monitorada, nem por isso deixa de representar os usos concretos da

    linguagem atravs dos quais o indivduo participa em sua sociedade (Along,

    2001: 153).

    O Portugus culto brasileiro (ligado norma e unificao), somente

    vai se configurar na segunda metade do sculo XVIII em diante, graas,

    segundo Mattos e Silva (2001: 278) poltica geral e lingstica estabelecida

  • A LINGUAGEM ORAL NOS LIVROS DIDTICOS DE PORTUGUS DO ENSINO FUNDAMENTAL-3 E 4 CICLOS: ALGUMAS REFLEXES

    9

    pelo Marqus de Pombal, poca em que se inicia o incentivo ao seu ensino,

    antes preterido pelos jesutas em funo da catequese e da colonizao.

    Desse modo, a instruo escolar sistemtica o maior impulso

    constituio do Portugus culto brasileiro, comprovando o que Collinot et al.

    (1999: 3) expem sobre os espaos responsveis pela instituio de uma

    lngua. Alm de alguns espaos que determinam a instituio da lngua e a

    escola seria o primeiro , existem as prticas e discursos institucionalizantes,

    tais como os exerccios escolares, os dicionrios e as gramticas (Collinot et

    al., 1999: 3). A nosso ver, o livro didtico, abarcando objetos diversos dessas

    prticas e discursos, constitui-se, tambm, como discurso institucionalizante.

    1. 2. O processo de disciplinarizao da lngua portuguesa no Brasil

    Collinot et al. (1999: 3) concebem disciplina como um conjunto de

    discursos em constante transformao, na medida em que se atualizam os

    domnios do conhecimento. Fazendo referncia a Michel Foucault (1971: 31-

    38), explicam que esse autor apresenta disciplina como um dos princpios da

    delimitao, do corte dos discursos admitidos como verdades, em um campo

    determinado de conhecimento. Esses discursos admitidos como verdades

    so validados em um dado momento e constituem os sistemas de formulao

    e reformulao de regras, de definies, de instrumentos, de mtodos, de

    objetos, em relao com as aquisies e os avanos dos saberes em

    construo.

    De acordo com Chervel (1988: 60-61), o termo disciplina, no sentido

    voltado para o trabalho com os contedos de ensino, at o sculo XIX estava

    ausente dos dicionrios. O sentido que se detinha era o da ordem, da

    represso das condutas prejudiciais etc. O termo reaparece no incio do

    sculo XX com sentido de matria de ensino, suscetvel de servir aos

    exerccios intelectuais. A partir da, pde-se falar de disciplinas, no plural.

    Entendendo disciplina como contedos de ensino, verifica-se que a

    lngua portuguesa, no Brasil, instituiu-se como componente curricular

    somente na segunda metade do sculo XVII, a partir das reformas

  • A LINGUAGEM ORAL NOS LIVROS DIDTICOS DE PORTUGUS DO ENSINO FUNDAMENTAL-3 E 4 CICLOS: ALGUMAS REFLEXES

    10

    pombalinas. No entanto, ainda ao lado da gramtica latina, que se manteve

    por longo tempo como componente do currculo.

    A gramtica do portugus precedia a gramtica latina, com carter

    quase instrumental, e, ao lado desse ensino, havia o da Retrica que

    permaneceu no ensino do sculo XVI primeira metade do sculo XIX.

    Assim, foi em 1837, na ento criao do Colgio D. Pedro II, que se incluiu o

    estudo da Lngua Portuguesa no currculo, sob a forma das disciplinas

    Retrica e Potica, mas foi somente em 1838 que a Gramtica Nacional

    passou a objeto de ensino.

    Desse modo, embora estivesse nas escolas, j que se constitua como

    lngua oficial, at 1838, a lngua portuguesa no era tida como disciplina

    escolar, ou seja, no era concebida como um legtimo objeto de ensino.

    Prestava-se antes alfabetizao dos poucos que podiam freqentar a

    escola naquela poca (a camada mais privilegiada economicamente). Por ser

    considerada uma lngua significativamente vulgar, a lngua portuguesa

    deveria ser instrumento para aprender a gramtica latina. Os alunos iam

    aprender a ler e a escrever, depois seguiam estudando Retrica e Gramtica

    da Lngua Latina.

    Somente quando a lngua se torna objeto de instruo oficial, dos

    programas, dos planos de estudos que ela adquire um status de disciplina

    (Collinot, 1999). Quando a lngua erigida como disciplina de ensino, no

    so somente questes lingsticas que se vo considerar: ela se coloca

    tambm sob o controle poltico, na medida em que a escola mais um

    aparelho poltico-ideolgico. Veremos que todo o percurso da disciplina

    Lngua Portuguesa aqui no Brasil testemunha isso, pois no haver alterao

    na situao scio-poltico-econmica e cultural que no seja, de alguma

    forma, refletida nessa disciplina e, conseqentemente, nos livros didticos de

    Lngua Portuguesa.

    Interpretao semelhante dada por Cameron (1995: 11), que explica

    que as convenes lingsticas so frutos de uma autoridade indiscutvel

    para as pessoas educadas em uma sociedade secular. Por exemplo, segundo

    a autora, se se disser s pessoas o que elas devem vestir, algumas, ao

  • A LINGUAGEM ORAL NOS LIVROS DIDTICOS DE PORTUGUS DO ENSINO FUNDAMENTAL-3 E 4 CICLOS: ALGUMAS REFLEXES

    11

    menos, questionaro e podero at rejeitar e julgar absurda a campanha,

    mas se se colocar que certa conveno lingstica deva ser mantida ou

    rejeitada, elas humildemente obedecero; entretanto, tal regra to arbitrria

    como seria a campanha sobre o modo de se vestir.

    Nesse sentido, tanto Estado como poder so apresentados como

    entidades superiores e neutras e da mesma forma ocorre com o cdigo

    aceito oficialmente pelo poder: ele visto como neutro e superior e todos os

    cidados precisam reproduzi-lo e entend-lo nas relaes com o poder.

    Assim, tambm para Gnerre (1989) uma variedade lingstica vale o que

    valem na sociedade os seus falantes, isto , vale como reflexo do poder e

    da autoridade que eles tm nas relaes econmicas e sociais.

    Pode-se dizer que, a partir da primeira reforma a reforma pombalina que reconfigurou o papel da lngua portuguesa, colocando-a como

    disciplina a ser ensinada, os manuais didticos2 ficaram entrelaados na

    longa histria da escola e do ensino dessa disciplina no Brasil.

    Um primeiro reflexo nesse sentido so as publicaes dos Manuais de

    Gramtica e Retrica dessa poca, que testemunham o que era considerado

    no currculo escolar. Desse ponto de vista, conclui-se que os manuais

    didticos utilizados nesse perodo3 j eram os livros feitos propositadamente

    para aprender e ensinar 4.

    2 Quando nos referirmos a livros didticos, estaremos mencionando a forma atual que os manuais escolares

    assumiram. Quando nos referirmos a manuais ou livros escolares ou a manuais didticos, estaremos

    mencionando um conjunto maior de obras que podem circular nas escolas, que abrange obras de referncia

    (gramticas, dicionrios, atlas), livros didticos, antologias e livros paradidticos. Ver, a respeito, Choppin

    (1992).

    3 Para saber mais, a esse respeito, ver Pessanha, Daniel & Menegazzo (2003/2004) Histria da Lngua

    Portuguesa no Brasil atravs dos livros didticos -1870 a 1950, pp. 31-36. Ver ainda Soares (1996a/2002

    Portugus na escola: Histria de uma disciplina curricular.

    4 Soares (1996b), como vimos, estabelece uma distino interessante entre os livros utilizados para ensinar e

    aprender e os livros propositadamente feitos para ensinar e aprender. Os primeiros se constituem pelos livros

    religiosos, antologias etc. Os segundos, seriam os manuais de retrica, os abecedrios, as gramticas

    escolares (como por exemplo, a publicada em 1881, do ento professor do Colgio D. Pedro II, Jlio Ribeiro,

    que teve presena marcante nas ltimas dcadas do sculo XIX e incio do XX). Atualmente, os livros que

    circulam nas salas de aulas das escolas brasileiras so principalmente os propositadamente feitos para

    ensinar e aprender.

  • A LINGUAGEM ORAL NOS LIVROS DIDTICOS DE PORTUGUS DO ENSINO FUNDAMENTAL-3 E 4 CICLOS: ALGUMAS REFLEXES

    12

    De acordo com Pessanha et al. (2003: 4), as disciplinas Retrica,

    Potica e Gramtica fundiram-se em numa s disciplina somente no final do

    Imprio e esta passou a ser denominada Portugus. Mas com o decreto

    4.430, de 30 de outubro de 1869 (que entrou em vigor em 1870), que o

    exame de Portugus foi includo nos exames de ingresso nas faculdades,

    chamados de Exames Preparatrios. Os referidos autores inferem ainda

    que foi pela a instituio desse exame a criao, por um decreto imperial, do

    cargo de Professor de Portugus, em 1871.

    A Lngua Portuguesa como disciplina do componente curricular das

    escolas brasileira vai ganhando autonomia, graas, por um lado, aos vrios

    manuais didticos escritos por professores brasileiros e, por outro, segundo

    Soares (1996a: 15), pela progressiva constituio desse objeto como uma

    rea de conhecimento, ou seja, a lngua concebida como sistema. Um

    exemplo de obra didtica dessa poca a Antologia Nacional que, ao longo

    de 75 anos, teve 43 edies, a ltima, em 1955.

    A partir de Razzini (2000: 28-29) depreende-se que a Antologia

    Nacional abarcava no s uma seleo de excertos de textos literrios

    clssicos, mas tambm um estudo gramatical introdutrio sobre noes

    elementares de sintaxe da proposio simples e da proposio composta.

    Para a autora, esse perfil se aproxima do projeto pedaggico da tradio

    escolar de ensino da lngua materna, onde o texto literrio intermedirio da

    explorao dos conhecimentos lingsticos, e se constitui em um modelo de

    currculo que vai basear o ensino de Lngua Portuguesa desse perodo at os

    anos 50.

    Com as transformaes das condies sociais e culturais, o final dos

    anos 50 e a dcada de 60 do sculo XX vo testemunhar uma nova realidade

    social, que obriga reformulaes das funes e dos objetivos da escola, o

    que vai gerar mudanas nas disciplinas curriculares e, conseqentemente,

    nos LDP.

    Dos fatores que foraram tais mudanas pode ser apontada, em

    primeiro lugar, a mudana no perfil do alunado que, antes constitudo

    exclusivamente por uma clientela que tinha o conhecimento da variedade

  • A LINGUAGEM ORAL NOS LIVROS DIDTICOS DE PORTUGUS DO ENSINO FUNDAMENTAL-3 E 4 CICLOS: ALGUMAS REFLEXES

    13

    padro da lngua portuguesa (j que os alunos vinham de famlias letradas,

    onde testemunhavam e participavam de prticas de letramentos diversos e a

    ida escola objetivava um aprimoramento do saber sobre a lngua). Na

    segunda metade do sculo XX, com as mudanas scio-polticas e a

    progressiva ampliao das redes pblicas de ensino, tem-se uma sala de

    aula grandemente heterognea, composta por alunos com nveis culturais e

    sociais e letramentos muito diferenciados. No so mais os filhos da

    burguesia5, mas os filhos dos trabalhadores6 que, a partir de ento, esto nas

    salas de aula das escolas brasileiras.

    Em segundo lugar, em conseqncia do grande aumento do nmero de

    alunos nas escolas, h necessidade de um nmero bem mais elevado de

    professores, que tambm tm seu perfil alterado. Antes, provinham da elite,

    eram usurios da variedade padro da lngua e tinham formao intelectual

    de nvel elevado; partir dos anos 60, no mais pertencentes classe de

    prestgio econmico e intelectual, muitas vezes no detm uma formao

    ampla, nem tampouco o domnio profundo da variedade padro da lngua

    portuguesa (embora se reconhea que alguns vinham das recm-criadas

    Faculdades de Filosofia, formados em contedos de lngua, literatura,

    pedagogia e didtica). Para reiterar essas informaes vejamos o que explica

    Geraldi (1991) sobre essa realidade:

    A democratizao, ainda que falsa, trouxe em seu bojo outra clientela. De repente, no damos aula s para aqueles que

    pertencem a nosso grupo social. Representantes de outros grupos

    esto sentados nos bancos escolares. Cresceu espantosamente,

    de uns anos para c, a populao escolar brasileira. Antigamente

    os professores eram da elite cultural e os alunos, da elite social;

    os alunos aprendiam, apesar das evidentes falhas didticas;

    aprendiam muito com professores altamente capazes por vocao

    5 Que se deslocaram para a rede privada de Ensino Fundamental e Mdio.

    6 Como conseqncia da crescente reivindicao pelas camadas populares do direito escolarizao,

    democratiza-se a escola. Assim, nos anos 60, o nmero de alunos no Ensino Mdio quase triplicou e duplicou

    no Ensino Primrio. Alunos com nenhuma prtica de letramento ou com prticas de letramento muito

    diferenciadas daquela reconhecida e defendida pela escola adentram os muros escolares (Batista, 2003 e

    Soares, 1996a).

  • A LINGUAGEM ORAL NOS LIVROS DIDTICOS DE PORTUGUS DO ENSINO FUNDAMENTAL-3 E 4 CICLOS: ALGUMAS REFLEXES

    14

    e, sobretudo, pelas condies favorveis: sade, alimentao, farta

    possibilidade de leitura [...] (Geraldi,1991:115-116)(nfase do

    autor).

    Mudam-se as condies histrico-sociais e as necessidades e

    exigncias culturais, mudam-se os perfis de alunos e professores, as

    condies escolares e pedaggicas tambm se alteram. Os manuais

    didticos tambm se modificam como atesta Geraldi (1991):

    Em relao ao trabalho do professor, a profecia de Comenius se

    concretiza: tudo aquilo que dever ensinar e, bem assim, os modos como h de ensinar, o tem escrito como que em partituras (Geraldi, 1991: 93) (nfase do autor).

    neste momento que se excluem as antologias e, nos livros didticos,

    so includos exerccios de vocabulrio, de interpretao, de redao e de

    gramtica. Para Geraldi (1991: 117) a soluo para o despreparo dos

    professores pareceu ser colocar em suas mos um livro didtico que sozinho

    ensinasse tudo o que fosse preciso aos alunos.

    Batista (2003: 46) esclarece que, no Brasil, entre os anos de 1960 e

    1970 um modelo de livro didtico se instituiu como forma de buscar assumir a

    funo estruturadora do trabalho pedaggico. Esse livro didtico no se

    caracteriza como um material de referncia, mas cadernos de atividades para

    expor, desenvolver, fixar e, em alguns casos, avaliar o aprendizado.

    Desse modo, o professor destitudo da tarefa de preparar sozinho

    suas prprias aulas. Cabe, agora, aos autores de livros didticos grande

    parte da responsabilidade de formular exerccios e questes, inclusive com a

    orientao das respostas. A funo que resta a esse professor, segundo

    Geraldi (1991:94), parece ser a de controlar o tempo de contato do aluno com

    o material previamente selecionado, definir o tempo de exerccio e sua

    quantidade, comparar as respostas do aluno com as respostas dadas pelo

    manual do professor, marcar o dia da verificao e a prova.

    Em linha semelhante, Soares (1996a) explica que tambm nessa

    poca que se verifica o incio do processo de depreciao da funo docente.

    Os salrios passam a ser reduzidos e as condies precrias de trabalho

  • A LINGUAGEM ORAL NOS LIVROS DIDTICOS DE PORTUGUS DO ENSINO FUNDAMENTAL-3 E 4 CICLOS: ALGUMAS REFLEXES

    15

    obrigam os professores a buscarem estratgias que minimizem o trabalho na

    atividade docente (j que precisam ocupar dois ou mais postos de trabalho

    para ampliar a renda, por exemplo) e uma delas deixar nas mos do autor

    do livro didtico a funo de organizar contedos e mtodos a serem

    utilizados nas salas de aulas (Soares, 1996a: 24). Assim,

    interessante verificar como, ao longo do tempo, os manuais didticos

    vo progressivamente incluindo e ampliando o apoio ao professor para o

    desenvolvimento das aulas [...] medida que mudam as condies sociais e econmicas dos professores, vo sendo acrescentados comentrios, notas, explicaes que orientam o trabalho do professor [...] (Soares, 1996a: 24) (nfase adicionada).

    Embora tenham ocorrido mudanas nos livros didticos (que passam a

    considerar, na disciplina Portugus, texto e gramtica organizados por

    unidades, onde cada unidade se constitua de texto para interpretao e de

    tpico gramatical)7, o estudo da. gramtica prevalece sobre o do texto.

    Segundo ainda Soares (1996a), essa primazia (embora com certa

    relativizao da gramtica no ensino da lngua materna) permanece ainda

    hoje, nas escolas brasileiras, nas aulas de Lngua Portuguesa.

    Uma outra mudana, radical nos termos de Soares (1996a: 18),

    resultante da interveno poltica do perodo do governo militar, sobre a Lei

    de Diretrizes e Bases da Educao nmero 5692/71, que reformulou o Ensino

    Primrio, Ginasial e Mdio, segundo os objetivos e a ideologia desse governo

    (a servio do desenvolvimento da industrializao). Nesse contexto, a lngua

    passou a ser concebida como suporte para esse desenvolvimento e muitas

    alteraes foram feitas, inclusive na prpria denominao da disciplina8.

    7 Como exemplo de manuais com esse perfil, Soares cita um de sua prpria autoria: Portugus Atravs de

    Textos, da dcada de 60.

    8 Segundo Rojo (no prelo), a denominao Lngua Portuguesa, que recobria todos os nveis de ensino,

    desdobrada em trs outras, a saber: Comunicao e Expresso, para as sries inicias do ento recm criado

    1 Grau, em substituio dos antigos Primrio e Ginsio; Comunicao em Lngua Portuguesa, para as sries

    finais desse Grau (antigo Ginasial) e, para o 2 Grau, antigo Cientfico/Clssico, a denominao de Lngua

    Portuguesa e Literatura Brasileira.

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    16

    Para Clare (2002: 3), a proposta educacional passa, nesse momento

    histrico, a ser condizente com a expectativa de se fornecer recursos

    humanos que permitam ao Governo realizar a pretendida expanso industrial.

    Neste mesmo perodo, aparece como referencial terico a Teoria da

    Comunicao, advinda da rea dos meios eletrnicos. A concepo de lngua

    como expresso esttica, prevalente inicialmente no ensino da Potica e,

    posteriormente, no estudo de textos, substituda pela concepo da lngua

    como Comunicao. Os objetivos passam a ser utilitrios: trata-se de se

    desenvolver e aperfeioar os comportamentos do aluno como emissor e

    recebedor de mensagens, atravs da utilizao e compreenso de cdigos

    diversos verbais e no verbais.

    Os livros didticos testemunham, mais uma vez, esse quadro de

    alteraes na disciplina Lngua Portuguesa, devendo, no ensino de

    Comunicao e Expresso, ser considerados os variados cdigos (verbal e

    no verbal), ampliando-se, dessa forma, o conceito de leitura. Nesses livros,

    ainda segundo Soares (1996a), os textos que circulam socialmente,

    sobretudo os representantes da mdia, como textos de jornais e revistas,

    publicidade, humor, histrias em quadrinhos, so os mais privilegiados,

    embora no sejam desconsiderados os textos literrios.

    Um ponto a ser destacado, nessa poca, a proposta de trabalho com

    a linguagem oral em sala de aula, onde pela primeira vez, aparecem em

    livros didticos de Lngua Portuguesa exerccios de desenvolvimento de

    linguagem oral em seus usos cotidianos (Soares, 1996a: 19)9. Pode-se

    exemplificar esse perfil de livro didtico a partir da apresentao de um LDP

    de Magda Soares (1973), intitulado Comunicao em Lngua Portuguesa, em

    que

    A lngua vista, essencialmente, como instrumento de comunicao, meio

    de emisso de mensagens pelo falar, pelo escrever; recepo de

    9 Veremos adiante, no captulo que trata especificamente do ensino-aprendizagem da linguagem oral, que,

    diferente dessa proposta que priorizava os gneros cotidianos, as propostas atuais visam, ao contrrio, ao

    ensino-aprendizagem dos gneros orais formais e pblicos, ou seja, os gneros de menor conhecimento e

    domnio por parte dos alunos e mais exigidos na atuao cidad.

  • A LINGUAGEM ORAL NOS LIVROS DIDTICOS DE PORTUGUS DO ENSINO FUNDAMENTAL-3 E 4 CICLOS: ALGUMAS REFLEXES

    17

    mensagens pelo ouvir e pelo ler. Vrias linguagens so estudadas: a

    palavra, o desenho, o smbolo, a expresso facial, a mmica. A lngua

    proposta ao aluno como um instrumento para conviver, para entrar em

    contato com o outro, para formar-se, afirmar-se e acrescentar-se, em

    inmeras atividades socializadas, como discusso dirigida, grupos de

    discusso, painel, dramatizao, jogos, coro falado [...].Todas as

    atividades so de comunicao ao. Por tudo isso, este livro, um livro de portugus, essencialmente um livro de comunicao. (Soares, 1973: 6-7) (nfase da autora).

    Com o processo de redemocratizao do pas, a concepo de lngua

    como instrumento de comunicao e meio de emisso e recepo de

    mensagens j no encontra apoio, nem no contexto poltico e ideolgico, nem

    nas novas teorias lingsticas. Assim, na segunda metade da dcada de 80, a

    denominao da disciplina Comunicao e Expresso em Lngua Portuguesa

    abandonada e retoma-se a antiga Portugus. Nesse contexto, os livros

    didticos, que j tinham incorporado o texto para o ensino da lngua, vo

    ampliar esse universo, principalmente sob influncia das teorias da lingstica

    textual.

    Segundo Geraldi, (1991:105) o texto sempre esteve presente nas salas

    de aula, embora no com a relevncia adquirida a partir desse perodo. Essa

    presena tinha uma forma de insero muito particular e, mesmo com a

    predominncia do ensino gramatical, o texto era colocado como modelo em

    vrios sentidos: Como objeto de leitura vozeada (leitura oralizada) onde a

    leitura feita pelo professor servia de modelo para a leitura posterior dos

    alunos; como objeto de imitao em que a leitura servia para o aprendizado

    da produo de outros textos tanto escrito como orais, mas visando a um

    modo de falar bem a lngua e como objeto de fixao de sentidos. Nesse

    ltimo modelo havia um sentido autorizado, ora pela leitura feita pelo

    professor ora pela leitura de algum crtico.

    O texto ganha evidncia com a lingstica textual que se prope a

    apresentar meios que permitam a representao dos mecanismos e

    processos de tratamento do texto. Esses mecanismos e processos, quando

  • A LINGUAGEM ORAL NOS LIVROS DIDTICOS DE PORTUGUS DO ENSINO FUNDAMENTAL-3 E 4 CICLOS: ALGUMAS REFLEXES

    18

    postos em ao pelos usurios da lngua, sofrem restries que obedecem a

    determinaes psicolgicas e cognitivas, scio-culturais, pragmticas e

    lingsticas10.

    Entretanto, embora as perspectivas para o trabalho com o texto na sala

    de aula sejam ampliadas com o advento da lingstica textual, exploram-se

    especialmente suas propriedades estruturais, originando, segundo Rojo &

    Cordeiro (2004: 9) a gramaticalizao dos eixos do uso, passando o texto a

    ser pretexto tanto a para o ensino da gramtica normativa como para

    gramtica textual, na crena de que quem sabe as regras sabe proceder11.

    Dos fatos acima apresentados, compreende-se o processo de

    transformao da lngua portuguesa (entidade poltico-cultural) na disciplina

    Lngua Portuguesa (explorao dos objetos que a ela se relacionam) como

    um processo mais amplo, em que a transposio didtica e a didatizao

    (fortemente ligadas ao livro didtico) seriam dois dentre os seus vrios

    aspectos. disso que trataremos a seguir.

    1.3. As transformaes dos saberes tericos, a didatizao e o livro didtico

    A transposio didtica

    Os saberes tericos precisam ser transformados para entrar na sala de

    aula e no simplesmente resumidos ou simplificados. Alm disso,

    necessrio que sejam coerentes e estejam sustentados por fundamentos

    epistemolgicos claros.

    O termo transposio foi concebido por um socilogo, Verret (1975), e

    desenvolvido por um didtico, Chevallard (1985). Para este autor, a

    10 Para saber mais, entre outras obras desses autores, ler Kock, I. V. & Travaglia, L. C.(200 1) A coerncia

    textual. 13 ed. So Paulo: Contexto; Kock, I. V. & Travaglia, L. C.(1997) O texto e a construo de sentidos.

    So Paulo: Contexto; Fvero, L. L. (2001) Coeso e coerncia textuais. 9 ed. So Paulo: tica.

    11 Essas crticas so retomadas mais adiante, quando se discute sobre o perfil da disciplina Lngua

    Portuguesa atualmente.

  • A LINGUAGEM ORAL NOS LIVROS DIDTICOS DE PORTUGUS DO ENSINO FUNDAMENTAL-3 E 4 CICLOS: ALGUMAS REFLEXES

    19

    transposio didtica se define por um processo de passagem de um

    contedo de saber preciso a uma verso didtica.

    A anlise dessa passagem, ou seja, desse processo de transformao,

    implica a compreenso de um esquema, a saber: objeto de saber objeto a ensinar objeto de ensino. A passagem do saber, atravs da constituio desses diferentes objetos, faz-se na transformao, na variao e, s vezes,

    na substituio (Chevallard, 1985: 49).

    Dessa forma, a cada momento, quando o objeto de saber se constitui

    em objeto de ensino e, em seguida, em objeto ensinado, o contedo

    trabalhado por adaptaes sucessivas, ou seja, o trabalho de transposio

    um trabalho que continua aps a introduo didtica do objeto de saber.

    Semelhantemente, para Schneuwly (1995a), a transposio didtica

    ocorre quando se retira um objeto que funciona dentro de certo contexto

    social, exterior ao sistema de ensino-aprendizagem, para torn-lo objeto de

    ensino:

    Este movimento de tirar o objeto de seu contexto para ser colocado dentro

    de outro para ser ensinado, transforma fundamentalmente o sentido deste

    objeto. Por exemplo, o fato de se tomar um gnero de discurso e coloc-lo

    em contexto escolar, faz com que este gnero no tenha mais a mesma

    funo, ele se transformou em um objeto de ensino. Para os alunos,

    subsistem os traos de seu funcionamento anterior []. No se pode

    ensinar sem que se faa a transposio (Schneuwly, 1995a: 14-15).

    Esse mesmo autor ressalta que, para ensinar, necessrio que se

    saiba o que se ensina; necessrio tomar o saber em dois sentidos: um

    primeiro sentido seria o de ter um projeto de ensino, uma inteno, e o outro

    sentido seria o de conhecer de forma consciente; ter uma conscincia

    reflexiva do que ensinar. Portanto, sem o reconhecimento desses

    sentidos, no existir ensino, mas imitao ou iniciao no nvel puramente

    prtico (Schneuwly, 1995b: 48).

    Ainda na esteira de Schneuwly (1995b), depreende-se que o saber,

    ingrediente essencial do ensino, existe em princpio como saber til dentro

    das situaes sociais diversas e no para ser ensinado. E, quando ele

  • A LINGUAGEM ORAL NOS LIVROS DIDTICOS DE PORTUGUS DO ENSINO FUNDAMENTAL-3 E 4 CICLOS: ALGUMAS REFLEXES

    20

    transposto para a situao de ensino, transforma-se em saber a ser

    ensinado, ou seja, passa a se constituir como um outro saber, modificado

    pela fora mesma do objetivo de ensino.

    Mas afinal, quais saberes so passveis de ser ensinados? Schneuwly

    (1995b: 49) explica que, embora um saber se justifique por sua pertinncia

    para a ao dentro de uma dada situao, diferencia-se quando se trata da

    realidade de ensino, em que, segundo ele, o saber saber a ser ensinado;

    saber a ser aprendido; saber ensinado no lugar de ser um saber que dever

    apenas ser utilizado. Diante disso, a questo no a pertinncia do saber,

    mas a sua legitimidade.

    necessrio um reconhecimento social, uma legitimidade, para que o

    saber possa vir a ser um saber a ser ensinado. Essa legitimidade lhe dada,

    dentre outros, pelos saberes ditos tericos, ou seja,

    Os saberes utilizados ao mesmo tempo para produzir um novo saber e

    para estruturar o saber novamente construdo dentro de um conjunto

    terico coerente. Um saber que, em um dado momento histrico,

    considerado pela sociedade como um saber terico por suas

    caractersticas visveis, notadamente acadmicas, segundo as instituies

    que o gera (Schneuwly, 1995b: 49).

    Barbosa (2001: 112-113) explica haver pelo menos duas maneiras de se

    pensar a transposio didtica. A primeira seria refletir que ela poder implicar numa

    simplificao dos objetos das cincias, para que os mesmos possam ser

    compreendidos pelos alunos. Nesse sentido, pensar-se-ia numa adaptao para

    facilitar a apreenso de certos contedos pelos alunos. Mas, para a autora, a

    transposio didtica concebida dentro de tal perspectiva colocaria escola um

    papel eminentemente reprodutor.

    O segundo modo de compreender a transposio didtica seria antes, em

    oposio adaptao e simplificao de objetos, pensar nas dimenses ensinveis

    dos objetos que se pretende ensinar,

    j que no se objetiva formar fsicos, gegrafos, lingistas, matemticos

    etc. A partir dessa definio, os objetos teriam que ser decompostos,

    recortados (e no simplificados), para que pudessem ser aprendidos. No

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    21

    caso especfico do ensino de lngua materna, preciso, ento, a partir de

    definies curriculares mais gerais, definir que gneros seriam focados e

    em que grau de aprofundamento (Barbosa, 2001: 113).

    Em resumo, uma transposio no pode ser feita de forma direta e imediata,

    o que significa dizer que os saberes ensinados na escola no podem ser simples

    adaptaes ou decalques das teorias elaboradas por pesquisadores ou experts.

    Os gneros orais formais e pblicos so exemplos desse processo. Pela urgncia

    das transformaes da sociedade moderna, gneros como debate, seminrio,

    apresentaes orais, necessrios ao funcionamento dessa sociedade por sua

    pertinncia, passaram a ser considerados importantes para a formao escolar. Um

    saber que precisa, portanto, ser ensinado e aprendido por sua legitimidade para a

    ao dentro do contexto scio-histrico atual, que exige que os que sujeitos sejam

    preparados para as situaes comunicativas diversas, da sua transformao em

    objeto de ensino-aprendizagem. Esses gneros passam a ser, ao mesmo tempo,

    instrumentos de comunicao e objetos de ensino, ou seja, saberes sociais que se

    transformaram em objetos de ensino, pelo objetivo mesmo da transposio didtica.

    A didatizao

    Transformados em saberes a serem ensinados, os saberes precisaro

    tambm ser didatizados e, embora fortemente relacionados entre si, os

    processos de transposio didtica e de didatizao no so sinnimos.

    Enquanto o processo de transposio se ocupa da transformao dos

    saberes de referncia em saberes a serem ensinados, a didatizao seria a

    maneira de organizar esses saberes para a compreenso do aluno.

    De maneira simplificada, poderamos dizer que a didatizao o

    como, por meio de exerccios e atividades, os saberes so expostos com a

    finalidade de concretiz-los em saberes ensinados e aprendidos.

    A importncia do livro didtico no processo de didatizao , sem

    dvida, incontestvel, j que, como veremos no captulo que segue, o livro

    didtico se transformou no responsvel (quase que nico) pelos

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    22

    procedimentos de organizao e elaborao de contedos, exerccios e

    avaliao/correo dos saberes a serem ensinados12.

    Vale lembrar que, no processo de didatizao, est implicada ainda a

    questo da sistematizao desses saberes. Tal sistematizao no estaria

    necessariamente vinculada a uma ordem, um passo a passo ou ao relevo

    dados a esses saberes, mas sim a uma organizao do todo que componha

    cada objeto, de forma que os saberes referentes a esses objetos possam vir

    a ser apreendidos e aprendidos de fato, mas considerando a dinmica de

    cada sujeito aprendiz.

    A disciplina escolar, a transposio didtica, a didatizao e o livro

    didtico se relacionam to fortemente que diramos se constiturem no

    corao do currculo. Pois , basicamente, atravs deles que se coloca aos

    jovens uma organizao, um recorte e uma hierarquia do campo de saber.

    Diramos, ainda, que o livro didtico poderia at ser considerado como

    ator da transposio didtica e da didatizao, pois ele materializa os

    objetos e opera na construo e cristalizao mesmas desses objetos a

    serem ensinados, para que passem a objetos realmente ensinados.

    Aqui, particularmente tratando do livro didtico de Lngua Portuguesa,

    reconhecemos ser ele que, ao longo dos anos, vem auxiliando o professor no

    ensino da leitura, da escrita e, agora, da linguagem oral formal e pblica. Da

    a necessidade de compreend-lo de forma mais ampla, no bastando a idia

    de que seja, simplesmente, um suporte de textos e de atividades a serem

    trabalhados pelos alunos. Disso que nos ocuparemos a seguir.

    O livro didtico

    Em 1979, Richadeau, em um trabalho para a UNESCO, j dizia que o

    livro escolar representa o meio de ensino mais largamente utilizado no

    12 Esclarecemos que no estamos, aqui, questionando a capacidade e o papel do professor em sala de aula,

    mas h de se reconhecer os diversos fatores como, por exemplo, as longas jornadas de trabalho , que

    foram o professor a contar com o livro didtico como um aliado forte na seleo de contedos e preparao

    de suas aulas.

  • A LINGUAGEM ORAL NOS LIVROS DIDTICOS DE PORTUGUS DO ENSINO FUNDAMENTAL-3 E 4 CICLOS: ALGUMAS REFLEXES

    23

    mundo e para se definir o que vem a ser um livro escolar, deve-se evitar

    qualquer qualificao formal ou restrita (Richadeau, 1979: 47).

    Para esse autor, pela complexidade mesma do livro didtico, por sua

    riqueza e diversidade, por sua importncia real ou potencial, esse se torna

    um objeto privilegiado para a pesquisa.

    Ainda segundo Richadeau, o livro escolar seria desde um atlas, um

    dicionrio, uma enciclopdia, uma antologia, at um livro didtico

    propriamente dito, quer se encarregue do aprendizado de leitura, de

    literatura, de lngua materna, de gramtica ou de matemtica. No limite, todo

    texto impresso (jornal, obra literria, tcnica, filosfica, cientfica) pode

    exercer o papel de livro escolar, na medida em que seja integrado

    sistematicamente a um processo de ensino e de aprendizagem.

    Em funo do seu modo de integrao ao processo de ensino-

    aprendizagem, pode-se colocar em duas grandes categorias os livros

    escolares: de um lado, os que apresentam uma progresso sistemtica e, de

    outro, as obras de consulta e de referncia (Richadeau, 1979: 51). Significa

    dizer, nas palavras de Soares (1996b), que a primeira categoria seria a dos

    livros feitos para ensinar e a segunda, a dos livros utilizados para ensinar 13.

    Choppin (1980), tambm v o livro didtico como um objeto mltiplo e

    complexo, que no se reduz a refletir mais ou menos os programas oficiais de

    ensino, pois toca diversos domnios da sociedade, o que levaria a dizer que

    se apresenta como uma sntese da sociedade que o produz. O livro didtico

    seria, paradoxalmente: um objeto, um suporte, um refletor da sociedade, um

    instrumento pedaggico e um veculo (Choppin, 1980: 1-3).

    a) Como objeto: porque sua fabricao evolui, de acordo com o progresso

    das tcnicas do livro; sua comercializao e sua distribuio evoluem,

    com as transformaes do mundo editorial, dos contextos econmico,

    poltico e legislativo;

    13 Estamos, como vimos, privilegiando a terminologia livro didtico quando se tratar de livros que se

    enquadram na categoria dos que so produzidos a partir de uma sntese dos conhecimentos e modos de

    ensino exigidos para uma dada disciplina e que tm por objetivo auxiliar no ensino dessa disciplina.

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    24

    b) Como suporte, por muito tempo privilegiado, do contedo educativo,

    como depositrio dos conhecimentos e das tcnicas cuja aquisio

    julgada pela sociedade;

    c) Como espelho da sociedade: embora deformado, incompleto, mas um

    grande revelador do estado de conhecimento de uma poca e dos

    principais aspectos e esteretipos de uma sociedade;

    d) Como instrumento pedaggico: por ser inscrito em uma longa tradio

    inseparvel, tanto na sua elaborao como em seu emprego, das

    estruturas, mtodos e condies de ensino de seu tempo;

    e) Como veculo: alm das prescries estreitas de um programa, de um

    sistema de valores, de uma ideologia, de uma cultura; o livro didtico

    participa, assim, do processo de socializao (Choppin, 1980: 1-3).

    Batista & Rojo (2004: 2), tomando uma outra obra de Choppin (1992),

    explicam que este terico distingue, ainda, quatro grandes tipos de livros

    escolares, organizados de acordo com sua funo no processo de ensino-

    aprendizagem. Segundo esses autores, o primeiro tipo seria os manuais ou

    livros didticos qualificados como utilitrios da sala de aula. Nessa categoria

    se enquadrariam:

    Os livros produzidos com o objetivo de auxiliar no ensino de uma

    determinada disciplina, onde seria apresentado um conjunto extenso de

    contedos do currculo, de acordo com uma progresso, sob a forma de

    unidades ou lies e por meio de uma organizao que favorece tanto

    usos coletivos (em sala de aula), quanto individuais (em casa ou em sala

    de aula).

    No segundo tipo, estariam categorizados os livros paradidticos ou para-

    escolares. Essas obras tm carter de complementaridade dos contedos

    estudados em determinada disciplina; em outros termos, tm por funo resumir,

    intensificar ou aprofundar contedos especficos do currculo de uma disciplina, seja

    por meio de uma utilizao individual em casa, seja por meio de uma utilizao

    orientada pelo professor, na escola (Batista & Rojo, 2004: 2).

  • A LINGUAGEM ORAL NOS LIVROS DIDTICOS DE PORTUGUS DO ENSINO FUNDAMENTAL-3 E 4 CICLOS: ALGUMAS REFLEXES

    25

    Como exemplo, explicam que o programa de aquisio e distribuio de livros

    para o Ensino Fundamental do Estado de So Paulo oferece uma abertura ao

    professor para que escolha livros didticos ou paradidticos e que, na maioria das

    vezes, os paradidticos entram como auxilio complementar do trabalho pedaggico

    estabelecido a partir de um livro didtico. Afirmam ainda que,

    Na tradio brasileira, esse tipo de livro escolar abarca, prioritariamente,

    obras que aprofundam ou enriquecem um contedo especfico de uma

    disciplina (o tema da escravido ou da vida cotidiana no Brasil Colnia, por

    exemplo) ou que se voltam para a formao do leitor (como os ttulos de

    literatura infantil, em geral, apresentados nos catlogos de editoras como

    obras paradidticas) (Batista & Rojo, 2004: 2).

    Os dois ltimos tipos, ainda segundo Choppin (1992, apud Batista & Rojo,

    2004: 3-4), seriam, respectivamente, os livros de referncia, como dicionrios, atlas

    e gramticas, utilizados como apoio aos aprendizados, ao longo da escolarizao e

    as edies escolares de clssicos, que renem, de modo integral ou sob a forma de

    excertos, as edies de obras clssicas (gregas, latinas, estrangeiras ou em lngua

    materna) abundantemente anotadas ou comentadas para o uso em sala de aula.

    Puech (1999) no v de forma diferente dos outros autores; para ele, o

    livro didtico tambm um complexo de representaes que busca refletir,

    ao mesmo tempo, as necessidades dos alunos, as atividades a serem

    desenvolvidas na sala de aula e responder aos documentos oficiais. E mais,

    estes diferentes componentes so intrinsecamente indissociveis e

    constituem o prisma dentro do qual se reflete uma representao de saberes

    disciplinares, da disciplina enquanto matria de ensino e complexidade de

    contedo.

    Concordamos com esses autores que, em comum, vem o livro didtico

    como complexo, mltiplo e paradoxal. Em face dessas caractersticas e

    considerando toda a histria da construo do livro didtico no nosso pas14,

    traamos uma hiptese, ancorada na concepo de gnero de discurso de

    14 No se pode negar que o livro didtico de Lngua Portuguesa um produto scio-historicamente construdo

    ao lado da disciplina Lngua Portuguesa e que inevitavelmente reflete, grosso modo, os contextos scio-

    polticos e econmicos de cada momento.

  • A LINGUAGEM ORAL NOS LIVROS DIDTICOS DE PORTUGUS DO ENSINO FUNDAMENTAL-3 E 4 CICLOS: ALGUMAS REFLEXES

    26

    Bakhtin (1952-53/1979), de que o livro didtico de Lngua Portuguesa poder

    ser compreendido no como um suporte de textos e atividades,

    simplesmente, mas como um gnero do discurso15.

    Conforme Bakhtin (1952-53/1979), uma carta lida em um romance no

    mais a mesma carta, ela foi transformada pelo lugar, pelo novo contexto

    social que agora ocupa no romance. O livro didtico, igualmente,

    construdo a partir de um conglomerado de outros gneros que saem de um

    determinado contexto social para entrar em outro, por meio da transposio

    didtica: o contexto escolar. Por exemplo, um conto infantil, o extrato de uma

    pea teatral de Shakespeare, uma notcia jornalstica ou um extrato filosfico

    transpostos ao livro didtico de Portugus, embora guardem suas

    caractersticas particulares, intercalam-se no texto no gnero livro didtico,

    com suas funes alteradas pela didatizao.

    Desse ponto de vista, no LDP incluem-se textos cujos gneros podem

    ser considerados variantes dos gneros de referncia (Dolz, Scnhneuwly &

    Haller, 1998: 179). O conto infantil, ao entrar no LDP, por exemplo, passa a

    ser uma ferramenta, um instrumento que, embora possa tambm funcionar

    como objeto de conhecimento, tem essencialmente a funo do ensino de uma variedade de contedos. O mesmo ocorre tambm com os demais

    gneros de referncia.

    Dessa forma, o livro didtico de Portugus apreende, em conjunto,

    diferentes discursos e espaos discursivos imbricados em seus campos de

    produo e de circulao. O livro didtico, concebido como um gnero,

    concretiza um exemplo da dinmica viva dos gneros, pois,

    Os gneros do discurso tal como compreendidos por Bakhtin, explicitam

    uma gama pluralista de aspectos composicionais, que incluem desde

    procedimentos construtivos, at cdigos culturais onde os desdobramentos

    temporais se reportam ao grande tempo em que a variabilidade de usos da

    15 A discusso aqui estabelecida objetivou, principalmente, uma melhor compreenso do corpus com que

    estamos trabalhando, os livros didticos de Lngua Portuguesa (LDP). Tal discusso nos levou a considerar

    esse objeto como um gnero de discurso, tal como defendem Bunzen (2004, 2005) e Bunzen & Rojo (no

    prelo), e no como um suporte.

  • A LINGUAGEM ORAL NOS LIVROS DIDTICOS DE PORTUGUS DO ENSINO FUNDAMENTAL-3 E 4 CICLOS: ALGUMAS REFLEXES

    27

    lngua pode ser focalizada em sua dinmica criadora (Machado, 2003:

    248).

    Ou ainda, nas prprias afirmaes de Bakhtin (1986), em que se l

    que a vida dos gneros eternamente viva, j que os gneros renascem e se

    renovam em cada nova etapa do desenvolvimento da literatura e em cada

    obra individual de um dado gnero. O gnero vive no presente, mas recorda

    seu passado, seu comeo. representante da memria criativa no processo

    de desenvolvimento literrio. precisamente por isso que tem a capacidade

    de assegurar a unidade e a continuidade desse desenvolvimento (Bakhtin,

    1986, apud Machado, 2003: 247). Conforme a conceituao de gnero do

    discurso de Bakhtin (1952-53/1979), o livro didtico tambm organizado por

    uma forma composicional (sumrio, instrues para o professor, captulos ou

    unidades, sees etc.), estilo e tema(s)16, pois, embora cada autor organize

    seu livro com certa particularidade (estilo de autor), na organizao mesma

    da obra, em sua estruturao,, em sua seleo temtica ou, ainda, no uso de

    um certo estilo verbal (estilo de gnero injuntivo), um livro didtico

    imediatamente reconhecido como tal pelo conhecimento que os sujeitos tm

    de suas caractersticas relativamente estveis.

    Apoiando-se nas posies bakhtinianas, Canelas-Trevisi (1997)

    concebe tambm o livro didtico como um gnero do discurso. Partindo do

    princpio de que a variedade infinita dos gneros est ligada variedade dos

    domnios das atividades humanas. Segundo essa autora, pode-se afirmar que

    o texto reflete as condies especficas do domnio da atividade de que ele

    emana e, embora ele seja incontestavelmente nico, divide com o conjunto

    de outros textos a especificidade de uma dada esfera de trocas. Esta

    especificidade se traduz pela forma de organizao de uma linguagem, de

    certa maneira, convencionalizada: o gnero, o qual se ajusta ao querer

    dizer do locutor.

    Segue suas explicaes dizendo que, para identificar o gnero de um

    dado texto emprico, o locutor se funda sobre certo grau de conhecimento do

    contexto de onde o texto provm e opera, por meio de inferncias, a partir da 16 Ver Bunzen & Rojo (no prelo) a respeito.

  • A LINGUAGEM ORAL NOS LIVROS DIDTICOS DE PORTUGUS DO ENSINO FUNDAMENTAL-3 E 4 CICLOS: ALGUMAS REFLEXES

    28

    organizao e das unidades lingsticas reconhecidas no texto. Esclarece,

    ainda, que, embora com aspectos formais bem conhecidos, os textos de um

    gnero podem apresentar grandes diferenas e cita como exemplo o gnero

    livro didtico. Segundo suas palavras:

    Tomemos o gnero livro didtico. Produzido em um contexto

    freqentemente identificvel, o livro didtico tem objetivo complexo de

    fazer agir, informar, explicar etc. e essas finalidades mltiplas so

    refletidas na organizao formal de sua estrutura geral (Canelas-Trevisi, 1997: 159) (nfase adicionada).

    Semelhantemente, para Bunzen (2005), o livro didtico de Lngua

    Portuguesa se configura como um enunciado em um gnero do discurso

    secundrio, produzido por diversos agentes como os autores, editores,

    ilustradores, numa instncia pblica, que seriam as editoras, e que procura

    satisfazer as necessidades de ensino-aprendizagem formal da lngua

    materna. Para efetivar tal objetivo, segundo o autor, o LDP seleciona

    determinados objetos de ensino que comporiam seu(s) tema(s) que

    recebero um tom valorativo, dependendo do ponto de vista

    especificamente adotado.

    Bunzen & Rojo (no prelo) entendem que a compreenso do LDP como

    gnero escolar de discurso favorece uma maior visibilidade no somente na

    sua apreciao ou na sua anlise, mas tambm em seu uso sobre as

    apreciaes de valor sobre ensino de lngua presentes no projeto discursivo

    do autor.

    Os autores identificam certa regularidade na forma de composio e

    estilo de gnero do livro didtico de Portugus, como, por exemplo,

    y a intercalao de textos de gneros e esferas variados, regidos e articulados para certo efeito de sentido pelo projeto, pela voz e pelo

    discurso autoral;

    y a diviso do livro em captulo ou unidades, sees e subsees, onde os temas so selecionados a partir do projeto autoral.

  • A LINGUAGEM ORAL NOS LIVROS DIDTICOS DE PORTUGUS DO ENSINO FUNDAMENTAL-3 E 4 CICLOS: ALGUMAS REFLEXES

    29

    Segundo eles, essas escolhas refletem e refratam uma apreciao

    valorativa do autor sobre o que e como se faz o ensino de lngua materna. Constatam tambm que, assumida a postura autoral no gnero (explicativa,

    expositiva, injuntiva), diferentes autores, dialogando com interlocutores de

    diferentes nveis de ensino, vo, conseqentemente, articular discursos

    didticos tambm bastante diferenciados, sobretudo, pela maneira como

    orquestram o coro de vozes presentes no LDP (Bunzen & Rojo, no prelo).

    Em se tratando do uso do LDP, principalmente no momento da escolha feita

    pelos professores, segundo esses autores, considerar o LDP como um enunciado

    num gnero, portanto nico e irrepetvel, j que apresenta uma postura autoral e um

    projeto discursivo singulares, facilitaria fazer escolhas mais bem embasadas em que

    tais professores (e conseqentemente os alunos) podero se relacionar com o

    discurso do autor de maneira respondente, por meio de rplica e compreenso ativa,

    na medida em que podero compreender, criticar e responder postura e ao projeto

    autoral. Talvez isso possa tambm contribuir para que o LDP deixe de ser

    meramente consumido e passe a ser um elemento do dilogo plurivocal de sala de

    aula (Bunzen & Rojo, no prelo).

    Compreender o livro didtico de Portugus como um gnero de

    discurso (complexo e mltiplo, scio-historicamente construdo e situado na

    interseco das diferentes esferas de produo da vida social, ou seja,

    imbricado nos diferentes campos ou esferas, como o religioso, o poltico, o

    filosfico, o cientfico etc.), ajudar-nos- a analis-lo como um enunciado que

    dialoga com os novos paradigmas de ensino da Lngua Portuguesa, com os

    documentos oficiais (PCN) e com as orientaes das sucessivas avaliaes

    (PNLD). Com isso, deixa de apresentar um discurso monolgico do autor, j

    que, dentro da obra, estas outras vozes, num movimento dialgico crescente,

    estaro presentes.

    1.4. A disciplina Lngua Portuguesa atualmente e o PNLD

    As pesquisas e a mudana de paradigmas

    Apesar de se reconhecer que o ensino-aprendizagem da Lngua

    Portuguesa conquistou grandes avanos com a proposio do texto como

    objeto de ensino da lngua escrita e com as propostas da lingstica textual,

  • A LINGUAGEM ORAL NOS LIVROS DIDTICOS DE PORTUGUS DO ENSINO FUNDAMENTAL-3 E 4 CICLOS: ALGUMAS REFLEXES

    30

    nas dcadas de oitenta e noventa do sculo passado, o texto era ainda

    compreendido por muitos professores e autores de livros didticos como um

    objeto neutro, visto apenas como artefato do qual o professor retira as

    questes gramaticais.

    Essas questes levaram a uma discusso sobre as mudanas nos

    saberes de referncia (lingstica, anlises de discurso, teorias de

    enunciao) que vm lentamente sendo incorporadas aos documentos

    oficiais e s transposies e didatizaes, atingindo, assim, parcialmente, o

    LDP.

    Alguns pesquisadores, com destaque aqui para Rojo (2001b: 164)17,

    vem um trabalho centrado na estrutura gramatical da lngua, com um fim em

    si mesmo como muito limitador e insatisfatrio, pois o ensino-aprendizagem

    de Lngua Portuguesa no Ensino Fundamental no se dedica a formar

    analistas de textos ou revisores gramaticais, mas cidados capazes de

    interagir criticamente com os discursos-alheios e com o prprio discurso.

    De acordo com Rojo (2001b), para a construo de uma perspectiva

    didtica para o ensino de lnguas, baseado dos estudos enunciativos

    bakhtinianos, mais especificamente na Teoria dos Gneros do Discurso

    (Volochnov, 1929; Bakhtin, 1953/1979), foram feitas discusses sobre as

    resistncias, sobrevivncias e lacunas, no ensino-aprendizagem da Lngua

    Portuguesa, que convivem com e traduzem certos saberes da lingstica

    textual e das teorias cognitivas de processamento e memria como, por

    exemplo, as noes de coeso e de coerncia textual. Em suas palavras,

    Os processos discursivos (as situaes de produo dos discursos, a

    interao entre os interlocutores, a subordinao das formas significao

    e a marcao ideolgica dos textos) no eram considerados no trabalho de 17 Destacamos essa autora por entender que suas produes e pesquisas apresentam uma preocupao

    bastante forte com a realidade das salas de aula de lngua materna no Brasil. Ser, portanto, a partir de seu

    texto de 2001, intitulado A teoria dos gneros em Bakhtin: Construindo uma perspectiva enunciativa para o

    ensino de compreenso e produo de textos na escola, em que expe a histria da construo de uma

    perspectiva didtica para o ensino de lngua materna, elaborada a partir dos estudos enunciativos

    bakhtinianos (mais especificamente, da Teoria dos Gneros do Discurso), que descreveremos, grosso modo, o

    processo dessa construo. Lembramos, ainda, que a teoria bakhtiniana tambm inspira, em parte, os

    Parmetros Curriculares Nacionais de Lngua Portuguesa (Brasil/MEC, 1998).

  • A LINGUAGEM ORAL NOS LIVROS DIDTICOS DE PORTUGUS DO ENSINO FUNDAMENTAL-3 E 4 CICLOS: ALGUMAS REFLEXES

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    ensino-aprendizagem de lngua, j que, balizado pelos conhecimentos

    pautados na viso cognitivista advinda das teorias psicolgicas que d

    linguagem ela mesma um papel reduzido bem como pelo grau de

    generalizao presentes nas descries de tipos de textos da Lingstica

    Textual, o professor implementava um trabalho com o texto, mas a nfase

    era dada ao ensino gramatical (inclusive gramtica de texto) (Rojo, 2001b:

    164).

    Uma outra lacuna apontada era a do tratamento das relaes entre a

    linguagem oral e a linguagem escrita, ainda bastante marcada por uma viso

    dicotmica. Em outros termos, prevalecia a viso de que a linguagem oral se

    relacionava com a escrita pela ordem da interferncia negativa. Um

    julgamento pautado por um critrio de pureza, a pureza projetada como

    caracterstica ideal da escrita que no permite, pois, que se reconhea na

    mesma a presena do oral no escrito, como um dado da constituio

    heterognea da escrita (Corra, 2001: 146-147).

    A linguagem oral, que ainda no era concebida como objeto de ensino,

    tinha apenas a funo de mediar as interaes em sala de aula. Isso gerava

    a compreenso de que o aluno, quando chegava escola, dominava a

    linguagem oral18 e, portanto, no caberia ensin-la. Esta postura deixava de

    fora, novamente, um campo fundamental para a constituio da cidadania,

    que era o campo da construo do oral pblico (Rojo, 2001b: 164).

    Alm dessas questes, havia a que Rojo (2001b) qualifica como de

    primeira importncia do ponto de vista terico - a perspectiva scio-histrica

    ou scio-cultural vygotskiana -, que, por muito tempo tomada como saber de

    referncia, sustentava as investigaes dos pesquisadores, mas que, no

    entanto, carregava alguns descompassos srios com as teorias cognitivas de

    processamento e de memria e com as teorias lingsticas e textuais.

    Na vontade de acertar os passos, de acordo com Rojo (2001b), as

    discusses centraram-se, a partir da obra do Crculo de Bakhtin, em uma

    releitura da noo de interao e em uma reviso das verses desta noo

    18 O aluno poderia sim dominar alguns gneros orais, os de uso mais cotidianos, mas, mesmo assim, nada

    garantia que dominasse os gneros formais e pblicos, que no so ensinados.

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    nos trabalhos de Vygotsky e dos vygotskianos. Essa discusso, segundo a

    autora, tambm girava em torno das noes de internalizao/apropriao e

    de ZPD (Zona Proximal de Desenvolvimento), de importncia crucial para a

    lingstica aplicada ao ensino de lnguas.

    Nesse caminho, ainda de acordo com a referida autora, os fenmenos

    abrangidos pela noo de ZPD, tais como a interao e a internalizao, embora

    nas duas ltimas dcadas do sculo passado tenham se apresentado como um rico

    campo vygotskiano de investigao, mostrou-se tambm um controverso campo de

    debates.

    A autora concorda com Wertsch (1985) quando atribui a dois aspectos o

    grande interesse de pesquisas e o nmero de trabalhos de enfoque diferenciado

    dado noo de ZPD nessa poca. O primeiro diz respeito inteno vygotskiana

    original de resolver problemas prticos de psicologia da educao, ligados

    avaliao das capacidades intelectuais das crianas e s prticas de instruo e o

    segundo remete formulao insuficientemente desenvolvida da noo na obra do

    autor. Mas para Rojo (2001b: 168),

    justamente esta elaborao insuficiente - que torna as noes ricas,

    porque polissmicas que implicou que investigadores, interessados em

    enfoques diversos da construo do conhecimento, atribussem aos

    conceitos interpretaes e leituras muito diversificadas, a ponto de, s

    vezes, encontrarmo-nos diante de um dilogo de surdos.

    Seguindo ainda a exposio de Rojo, verifica-se que, nas diversas

    discusses, pelo menos trs vertentes interpretativas foram vislumbradas. A

    primeira a vertente centrada na perspectiva cognitivista que foca o aspecto

    intrapessoal. A segunda, dentro de uma perspectiva interacionista,

    centrada no aspecto interpessoal, ou seja, nas pautas de interao

    presentes no desenvolvimento potencial e tidas como responsveis pela

    internalizao e a terceira, a vertente que se insere dentro de uma

    perspectiva discursiva e que tende a no dissociar interao, discurso e

    conhecimento, cuja base de anlise essencialmente a linguagem (e no a

    (inter)ao ou os conceitos). (Rojo, 2001b: 169).

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    Para a autora, as duas ltimas vertentes se aproximam, no que diz respeito

    s abordagens mais propriamente lingsticas ou discursivas. A primeira se

    aproximaria das abordagens mais pragmticas ou comunicativas (sociolingstica

    interacional, etnografia e micro-etnografia da fala, anlise conversacional) e a ltima,

    das abordagens discursivo-enunciativas (anlise de discurso de linha francesa ou

    mesmo anlise crtica do discurso; teoria(s) da enunciao).

    Nessa primeira abordagem, a interao vista, em alguns casos como ao

    conjunta, interpessoal, entre indivduos enfocados de um ngulo estritamente

    psicolgico e pragmtico. Alm disso, muitas vezes tambm, a perspectiva de

    anlise micro (sociolgica ou psicolgica), envolvendo uma abordagem sociolgica

    quase que durkheimiana. J na segunda abordagem, interao vai-se traduzir

    quase que imediata e automaticamente seja em discurso (formaes discursivas e

    ideolgicas), seja em enunciao, determinada pelas situaes socio-histricas de

    produo dos enunciados e pelos gneros do discurso em circulao social (Rojo,

    2001: 197).

    Por fim, a autora sintetiza que foi justamente nessa ltima vertente e nessa

    releitura da noo de interao que o grupo de pesquisadores a que se filia optou

    por se aprofundar, trabalhando a partir da teoria enunciativa bakhtiniana e

    objetivando sua transposio para o campo do ensino-aprendizagem de linguagem.

    Como fruto dessas discusses tericas, foi proposta uma

    ressignificao do processo de ensinoaprendizagem e a eleio de um novo

    objeto de ensino da lngua materna. Dessa forma, o processo de ensino-

    aprendizagem, sendo

    Um processo social e histrico, culturalmente determinado e grandemente

    dependente das prticas interacionais, e re-enfocada a interao como

    circulao de discursos (enunciao) e a internalizao como apropriao

    de discursos em circulao, o objeto prioritrio