Adoção suficientemente Boa

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    Psicologia: Teoria e Pesquisa

    Jan-Mar 2012, Vol. 28 n. 1, pp. 55-63

    Ad Scienteente Ba: Expeincia de Casal c Filhs Bilgics1

    Livia Kusumi OtukaUniversidade de So Paulo - Ribeiro Preto

    Fabio Scorsolini-CominUniversidade Federal do Tringulo Mineiro

    Manoel Antnio dos Santos2Universidade de So Paulo - Ribeiro Preto

    rESumo - A partir de um estudo de caso, aborda-se a experincia de adoo de uma criana de quatro meses de idade porum casal com trs lhos biolgicos. Os dados obtidos por entrevistas semiestruturadas mostraram que a parentalidade adotivafoi experienciada em meio a temores/fantasias de perda/roubo da criana adotada. Isso pode ser associado ao modo comofoi realizada a adoo, sem os cuidados preconizados pelo Estatuto da Criana e do Adolescente e a nova lei de adoo. Oprocesso de adoo gurou para os adotantes como fonte de intensa carga emocional, permeada por sentimentos ambivalentesque merecem ateno dos prossionais da Psicologia. Os resultados ilustram a necessidade de ateno psicossocial-jurdica aadotantes, adotado e famlia biolgica do adotado.

    Palavas-chave: adoo; pais adotivos; relaes familiares; motivao para adoo.

    Gd Engh Adptin: The Expeience f a Cple with Bilgical Childen

    ABSTrACT This case study investigates the experience of adoption of a four months old child by a couple who alreadypossessed three biological children. The analysis of data, obtained by means of a semi-structured interview, showed that theadoptive parenthood experienced thorough fears of loss of the adopted child. These feelings seemed to be related to the wayin which the adoption came to terms, without following all necessary steps set up by the new Brazilian adoption law. For theadopting couple, the adoption process was an intense emotional experience, which was permeated by feelings of ambivalencethat deserve the attention of psychology professionals. Results show the need of offering psychosocial and legal attention bothto the adopters, the adopted and the family.

    Keywds: adoption; foster parents; family relations, motivation for adoption.

    1 Apoio: FAPESP

    2 Endereo para correspondncia: FFCLRP-USP, Departamento de Psi-cologia, Av. Bandeirantes, 3900, Monte Alegre, 14040-901, RibeiroPreto, SP.E-mail: [email protected]

    Estudos dedicados adoo no contexto de investigaoclnica (Gomes & Iyama, 2001; Iyama & Gomes 2005; Le-vinzon, 2006; Otuka, 2009; Rosa, 2008; Santos, Raspantini,Silva & Escrivo, 2003; Scorsolini-Comin & Santos, 2008)apontam a prevalncia de uma constelao de elementosespeccos na vivncia das famlias adotivas: preconceitos,fantasias e medos permeiam o universo da adoo, tais comofantasias inconscientes de apropriao (roubo) da crianade outrem. Uma das possibilidades mais instigantes que seabrem a de que as investigaes avaliem tais elementosa partir dos diferentes modos como a adoo pode se dar:

    pelas vias legais, pelas vias informais (adoo pronta), entreparentes, entre desconhecidos, com ou sem a participao deintermedirios, entre outras possibilidades discutidas na novalei da adoo (Brasil, 2009; Ghesti-Galvo, 2008).

    Segundo Winnicott (1953/1997) a adoo pode sercompreendida em duas amplas categorias. Na primeira,encontram-se os problemas relacionados de modo simples situao da adoo, que no geram necessariamente an-siedade, visto que, se a adoo transcorre bem, caracterizauma histria comum, com contratempos e perturbaes que

    fazem parte de qualquer itinerrio humano. A segunda ca-tegoria, entretanto, refere-se s complicaes resultantes domanejo inadequado do beb antes da adoo, o que envolveno apenas questes clnicas como tambm sociais e legais,incluindo a segurana jurdica na passagem da criana deuma famlia a outra (Ghesti-Galvo, 2008). Nesse ponto,a me adotiva estaria lidando com uma criana que sofreu

    privaes ou deprivaes e tambm com a famlia de origemda criana, muitas vezes privada de condies mnimas desobrevivncia e acesso aos direitos de cidadania. A famlia deorigem estaria privada tanto de informaes e procedimentos

    para efetivar a validade de seu consentimento para a adoo,como tambm de um olhar sucientemente generoso por

    parte dos psiclogos e de outros prossionais que acompa-nhariam esse processo. A deprivao, segundo Gomes (2006), denida como a perda de algo bom, que havia sido positivona experincia do beb at determinado momento, tendosido retirado por um perodo de tempo maior do que aqueledurante o qual a criana capaz de recordar-se da experin-cia. Nessas condies desfavorveis, a me adotiva poderiatornar-se, alm de me, terapeuta de uma criana carente(Winnicott, 1954/1997), exagerando em seus cuidados paraconstituir-se como uma me sucientemente boa.

    Winnicott (1955/1997) destaca a importncia da estabili-dade e da continuidade do novo lar para o desenvolvimentosaudvel da criana. A adoo, assim, caracterizar-se-ia como

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    uma vivncia positiva, sendo frequentemente associada a umaprtica que tende a ser bem-sucedida, na medida em que anova famlia possa se rmar enquanto sucientemente boa

    para a criana ou o adolescente adotado. O desao, portanto,passa pela necessidade de que a nova famlia seja capaz deoferecer um ambiente seguro e estvel no qual a criana possacrescer, identicar-se, tomar contato com a sua histria e,

    enm, criar a sua prpria experincia.A literatura acerca da adoo comumente no diferenciafamlias constitudas apenas pela parentalidade adotiva dearranjos familiares mistos, isto , congurados por vnculosde parentesco consanguneo e adotivo (Costa, 2005; Palacios,Snchez-Sandoval & Len, 2004; Solon, 2009). Emboramenos frequentes no universo da adoo, esses arranjos noso to incomuns e requerem a ateno dos investigadoresdo campo da Psicologia. Segundo estudo realizado porCosta e Campos (2003), pouco mais da metade das famliasadotantes do Distrito Federal, nos anos 1998 e 1999, tinhamlhos biolgicos em comum, um achado que se ope ideiacorrente de que a impossibilidade de gerar lhos biolgicosseja uma das principais razes para a adoo. Somando-seessa informao ao tempo mais frequente de convivncia docasal (de 11 a 15 anos e acima de 20 anos), pode-se inferirque a fase do ciclo de vida da famlia pode inuenciar nadeciso de adotar uma criana. Assim, famlias cujos lhosestejam vivenciando a adolescncia ou o incio da vida adulta

    poderiam apresentar maior disponibilidade para a adoo.Nesse sentido, como se daria a adoo na situao de

    um casal que tinha lhos biolgicos antes de iniciar esseprocesso? Como seria vivenciada a parentalidade adotivaem comparao com a biolgica, experienciada anterior-mente? Como essas distintas formas de ser pai e de ser mecoexistem e se inuenciam mutuamente? Quais as fantasiasconscientes/inconscientes que permeariam esse processosingular de adoo?

    Considerando essas questes, o objetivo do presenteestudo foi investigar a experincia da adoo por um casalque j tinha lhos biolgicos, destacando suas fantasias cons-cientes e inconscientes em relao ao processo de adoo,

    bem como os modos de construo da parentalidade adotivaem comparao biolgica.

    mtd

    Trata-se de um estudo do tipo descritivo e exploratrio,conduzido sob o enfoque qualitativo de pesquisa. A estra-

    tgia metodolgica adotada o estudo de caso (Peres &Santos, 2005), entendendo-se que essa opo adequada aosobjetivos do estudo. Nesse tipo de estratgia metodolgicaexiste, por um lado, uma limitao na extenso da casusticainvestigada, mas, por outro lado, o estudo de caso permiteuma abordagem em profundidade do fenmeno focalizado.

    A opo pelo estudo de caso tambm se ajusta ao marcoterico adotado para a interpretao dos dados: a psicanlise,

    particularmente no referencial winnicottiano. Nessa concep-o terica valorizada a singularidade das experinciasemocionais e o foco colocado na compreenso da inter-subjetividade, entendendo-se que o ser humano se constituia partir de suas relaes com o outro e o ambiente. Portanto,

    preciso analisar essas experincias na particularidade daconstituio de cada sujeito. No presente estudo, esse olhar

    privilegia o vrtice do discurso parental como fonte primriade informaes.

    Paticipantes

    O estudo contou com a participao de um casal queefetivou a adoo de uma criana. Como critrio para a in -cluso dos participantes foi denido que o casal deveria ter

    pelo menos um lho biolgico, nascido antes do processode adoo, e consentir em colaborar voluntariamente como estudo. Arlete (41 anos) e Carlos (49) estavam casadoshavia 20 anos3. Tiveram trs lhos biolgicos: Emanoel(20), Juliano (18) e George (16). Posteriormente, adotaramGabriel, aos quatro meses, o qual, no momento da entrevista,encontrava-se com seis anos. Arlete completou o EnsinoMdio e trabalhava como auxiliar de Enfermagem; Carlos,

    por sua vez, concluiu o Ensino Fundamental e trabalhava noramo de aparelhos eletrnicos. Pais e lhos habitavam umaresidncia prpria.

    Instent

    Para a coleta de dados, foram utilizados: (a) question-rio de caracterizao sociodemogrca, contendo questesrelativas idade de cada membro da famlia, nvel de esco-laridade, prosso/ocupao, estado civil, religio e rendafamiliar; e (b) roteiro de entrevista semiestruturada, delineadoespecialmente para atender aos objetivos do presente estudo,com base em investigaes similares desenvolvidas anterior-mente (Otuka, 2009; Pereira & Santos, 1998).

    Esse roteiro era composto por questes abertas queexploravam a experincia do casal adotante em relao ao

    processo de adoo, particularmente os motivos que levaram busca desse recurso, suas expectativas anteriores em relaoao nascimento dos lhos biolgicos e chegada da crianaadotiva, suas vivncias do exerccio da parentalidade e suasconcepes acerca da criana adotada.

    Pcedient

    Para viabilizar o acesso aos participantes foi contatada acoordenao de um servio-escola de Psicologia, que dispe

    de atendimento especializado em adoo (Grupo de Assis-tncia Integral Adoo GAIA). A pesquisadora obtevea autorizao do servio para realizar a pesquisa com seususurios, alm do consentimento do casal, que foi previa-mente consultado pela coordenao do servio. A entrevistafoi realizada com ambos os cnjuges em uma sala do prprioservio, no decorrer de um nico encontro, com durao de90 minutos. A entrevista foi audiogravada e, posteriormente,transcrita na ntegra.

    3 Para preservar o anonimato dos participantes, os nomes prprios refe-ridos neste estudo foram substitudos por pseudnimos.

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    exercer a parentalidade deve estar claro para os mesmos. preciso que o lho adotivo ocupe um espao no imaginrio enas fantasias dos pais e da famlia. Seria interessante pensar,assim, se haveria outras motivaes que levaram Carlos eArlete a adotarem Gabriel, e que possveis consequnciastal adoo poderia ter para o amadurecimento da criana.Haveria, nesse caso, um espao para Gabriel no imaginrio

    do casal em questo? Estaria presente o desejo de exercer aparentalidade, alm do querer ajudar pessoas desampara-das, conforme relatado pelo casal?

    Igual outro dia [falaram]: , Gabriel, a sua me faz tudo,tem que agradecer. Voc entendeu, tipo uma cobrana? Eletem que ser certo porque eu adotei ele? Voc entendeu? Eu nogosto desse tipo de coisa. (Arlete)

    Arlete rejeita a viso sobre si prpria como uma me --benfeitora, a qual o lho deve respeito e gratido. Em suafala, arma amar Gabriel, sentimento que a levou a tomar adeciso de adot-lo, esperando que o mesmo retribua o seuamor, no como uma cobrana por t-lo ajudado, mas pelofato de am-la simplesmente. No discurso da participanteca claro o querer ter mais um lho, o que demonstra queo simples desejo de ajudar no se constituiu como o nicofator motivador para a adoo. Uma interpretao possvel a de que houve uma construo do lugar desse novo lho a

    partir de uma situao de cuidados que foram generosamenteoferecidos dade me biolgica-beb. Embora, inicialmen-te, esse anseio de auxiliar o prximo tenha sido alimentadounicamente pelo vnculo de humanidade e solidariedade. Poroutro lado, a me expressa nitidamente sua expectativa deque haja, de algum modo, retribuio de seu investimentoamoroso na criana. Portanto, uma contrapartida que a com-

    pensasse por seus esforos e pela devoo empenhada. Essaexpectativa de reciprocidade, se no for bem esclarecida eelaborada, pode levar a criana a se esforar para ser o queos pais querem que ela seja, em detrimento de seu verdadeiroself(Winnicott, 1957/1982).

    Segundo Schettini, Amazonas e Dias (2006), embora ocasal frequentemente arme que pensa junto e deseja o lhocom a mesma intensidade, importante considerar que oscnjuges so regidos por uma dinmica inconsciente. Cadamembro do casal tem sua histria particular, seus desejos efantasias em relao ao lho que esperado. Carlos armater achado um pouco estranho, no incio, a presena de umacriana desconhecida em sua casa, mas que, com o passardo tempo, acostumou-se. A deciso inicial de ajudar fora

    tomada unicamente por Arlete. Dessa maneira, no caso emquesto, nota-se uma clara diferenciao entre as motiva-es, ao menos iniciais, de Carlos e Arlete. A participante,nesse contexto, aparece como uma pessoa de personalidadeextremamente forte e resoluta, com enorme inuncia sobreas decises que afetam a vida familiar. Tanto que tomoua deciso de acolher Gabriel em sua casa sem ao menosconsultar o marido ou os lhos. Arlete arma que j levarauma me e seu beb para casa em outra ocasio, da mesmaforma, sem o consentimento prvio do marido. Tais arma-es parecem condizer com a atitude que Arlete demonstroudurante a realizao da entrevista, impondo-se claramente,

    tomando a iniciativa de responder s questes formuladas everbalizando mais do que Carlos.

    Arlete relata que a reao dos lhos biolgicos ante adeciso de adotar caracterizou-se por uma resistncia inicial,

    por parte do lho mais velho. Conta que, no incio, Emanoelno se mostrou muito satisfeito com a incluso de Gabriel nafamlia. Explica que o rapaz, no passado, cuidara de George

    e Juliano para que ela pudesse trabalhar e, com a chegadado lho adotivo, talvez tenha pensado que seria mais umaresponsabilidade que teria de assumir.

    Entretanto, com o passar do tempo, a participante armaque o lho aceitou o irmo mais novo, apegando-se a ele, oque pode ser compreendido como um processo gradual deconstruo vincular, e no como a ocupao de um lugar

    previamente reservado para a criana no universo familiar.Emanoel se afeiou a Gabriel de tal maneira que se mostroudisposto a prover-lhe cuidados nos momentos em que houvenecessidade.

    No que diz respeito forma como vivenciaram o exerccioda parentalidade adotiva, o casal referiu que Gabriel enfren-tou diversas complicaes de sade em seu incio de vida.

    Ele operou, n, com 10 meses ele teve meningite... Quase morri,quase quei doida, porque... Eu s tinha ele e um registro de

    nascimento dele, mais nada... A ele operou, teve meningite,cou uma semana internado, l no isolamento. (Arlete)

    Para Winnicott (1951/1993), a me sucientemente boa aquela que consegue identicar-se estreitamente com seulho, adaptando-se ativamente s suas necessidades. Taladaptao, entretanto, deve diminuir gradativamente ao longodo processo de desenvolvimento, com o fortalecimento dacapacidade da criana em tolerar frustraes e assimilar osfracassos da me-ambiente. Ao relatar os cuidados que teveem relao sade frgil de Gabriel, Arlete parece ter seempenhado para se constituir como uma me sucientemente

    boa, adequando-se s necessidades do lho e provendo-lheo apoio necessrio; a gura materna mostrou-se presente eestvel no momento em que o lho necessitava de seus cui-dados. Nesse sentido, Arlete parece ter sido capaz de proverholdingao lho, construindo um vnculo descrito por elaem termos positivos. As diculdades de sade vivenciadas

    por Gabriel, nesse sentido, no foram sentidas pela meadotiva como um peso, pois parece t-las enfrentado comdisposio e energia. Considerando a importncia atribuda

    por Winnicott (1952/1993) relao beb-ambiente, inte-ressante destacar que o ambiente em questo parece ter se

    constitudo como sucientemente bom para o acolhimentoda criana adotiva, favorecendo, assim, seu processo deamadurecimento gradual.

    Ademais, os participantes recordam-se de terem enfren-tado preconceitos, por parte da famlia de Arlete, com o pro-cesso de adoo. O qu que foi outro dia que falaram [olha

    para Carlos]? Ento, se no tivesse pego este menino, notava passando por isso agora! Ento, esse tipo de coisa quetem que aguentar assim, tem hora. (Arlete). ... Eu tenhouma tia que adotou... E quando o menino cou sabendo queera adotivo, virou a casaca. (Carlos)

    So vrios os preconceitos que circulam no universo daadoo. Dentre eles, pode-se mencionar a crena no sangue

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    Adoo Sucientemente Boa

    ruim: acredita-se que a criana adotiva j traria em seu san-gue todas as mazelas, comportamentos e carter de seus pais

    biolgicos (Andrei, 2001). Na esteira desse suposto defeitode origem, diversas preconcepes so estabelecidas nosentido de atribuir um lugar desqualicado para o adotado.Segundo Levinzon (2004), comum encontrar referncias associao entre desenvolvimento psicopatolgico e adoo.

    No raro deparar-se com a crena de que a adoo predispeao desenvolvimento de problemas psicolgicos e compor-tamentais. A literatura cientca, entretanto, no unnimequanto a esse aspecto (Schettini, Amazonas & Dias, 2006;Serrano, 2008; Solon, 2009). Segundo Paiva (2004), os pro-

    blemas geralmente descritos na criana adotiva no podemser relacionados diretamente e a priori, ao fato de ter sidoadotada, nem s vivncias traumatizantes anteriores adoo.Porm, a forma e o momento como se d a constituio dessaliao, quem e como so os pais adotivos, a natureza dosvnculos estabelecidos entre pais e lhos e o modo como asvivncias da criana so articuladas sua histria de vidaso fatores que devem ser considerados quando se buscacompreender as vicissitudes da adoo.

    Nos trechos destacados, Arlete e Carlos deslocam ospreconceitos a respeito da adoo para os familiares. En-tretanto, importante reetir at que ponto tais fantasias,ideias preconcebidas e temores fundamentados em crenasinfundadas e preconceituosas, possam tambm estar presen-tes no imaginrio do casal em questo. Como ser expostoa seguir, Arlete parece ter encontrado certa diculdade paraconversar com o lho sobre seu passado. Ademais, os paisfazem referncia s diculdades escolares e comportamen-tais do lho adotivo, armando que ele teria de refazer a

    primeira srie. Explicaram que Gabriel se sai muito bem emdisciplinas como msica, ingls, informtica e educao ar-tstica, entretanto, em matemtica e portugus no apresentaum bom desempenho. Tanto que ele vai refazer a primeirasrie... Mas a gente, eu j conversei com ele... Voc vai re-fazer, voc j sabe, mas a voc vai fazer pra voc aprendermais... (Arlete)

    O casal parece encarar com serenidade as diculdadesde aprendizagem do lho, explicando que ele ainda muitonovo, no vendo, portanto, problema no fato de ele ter derefazer a primeira srie escolar. No entanto, o modo comoconversam com o lho sobre essa questo parece indicar uma

    preocupao em preservar sua autoestima, o que tambm,em geral, constitui um receio relatado por pais em relaoa crianas adotadas. Mais uma vez, importante ressaltara concepo de Winnicott (1965/997) sobre o sintoma,conceituando-o como um sinal de esperana. As dicul-dades escolares levaram os pais de Gabriel a procurarematendimento psicolgico para o lho em uma clnica-escolade Psicologia. Gabriel foi atendido por um perodo de umano e quatro meses, bem como sua me. interessante notar,dessa forma, que o sintoma constituiu-se como um fator quedeagrou a busca de auxlio prossional externo, no sentidode procura por recursos no ambiente mais amplo, na prpriacomunidade, para lidar com os impasses do amadurecimentoda criana e de sua relao com a famlia e o ambiente escolar.

    essencial destacar, a partir do discurso do casal, o medoda perda do lho adotivo, presente na vivncia de Arlete, bem

    como seu sentimento de traio em relao me biolgicade Gabriel.

    Nossa Senhora... Porque s vezes eu co pensando... Engra-ado, eu precisava tirar isso da cabea... Porque eu falei praela [me biolgica de Gabriel] que eu cuidava, e depois, o quque eu z? Acabei foi cando com o menino dela, n? Ento,

    parece que d aquela sensao, assim, de traio, n? (Arlete)

    A literatura refere que so comuns as fantasias de roubopor parte dos pais adotivos que, ao retirarem o lho de suame biolgica, sentem como se a tivessem privado da mater-nidade (Gomes & Iyama, 2001; Levinzon, 2004). A adoo,nesse contexto, tratada como um ato delitivo, o que acaba

    por gerar intensos sentimentos de culpa e, em consequncia,medo de represlias. A fantasia de traio tornaria explci-to o medo de ser punida com a perda da criana (Vargas,1998). Na fala de Arlete ca evidente o desconforto que elaexperimenta por ter se apropriado do lho de outra mulher:a participante relata sentir a adoo como uma traio me

    biolgica de Gabriel, temendo, ainda, que a mesma possaretornar a qualquer momento e tomar-lhe o lho roubado.Poderia ocorrer, ainda, de o lho desejar o rompimento doslaos afetivos. Esse receio reforado pelo fato de Joana, ame biolgica, residir nas proximidades da casa da famlia.A traio, nesse sentido, seria reeditada: o lho trairia os

    pais adotivos, os quais sentem que traram a me biolgica.

    E engraado que, mesmo ele estando registrado no nossonome e tudo, parece que... O medo, a sensao de perda estsempre ainda por cima [baixa o tom de voz]... Esses tempos,acho que foi ano passado, n? Voc lembra quando eu faleique encontrei a Joana no supermercado? Menina, estava eue o Gabriel no supermercado... Se eu achasse um buraco naprateleira, eu socava ele dentro. (Arlete)

    Por este relato, a assim chamada adoo pronta, mesmosendo ocializada/legalizada depois de a criana estar convi-vendo h pelo menos dois anos com a famlia adotante com odevido consentimento da genitora (no caso, a me biolgicaencontrava-se ciente de que a criana estava sendo cuidada

    pelo casal em questo, embora tenha combinado, inicialmen-te, que iria busc-lo posteriormente), acaba contribuindo paraestimular a fantasia de Arlete de roubo/perda do lho. Sendoassim, no se tratam apenas de fantasias inconscientes, mastambm daquilo que se apia em dados de realidade, pelacontraveno operada pelo casal ao assumir mais do que

    os cuidados prometidos que asseguraram a subsistncia deGabriel, mas tambm o vnculo de parentalidade, que culmi-nou com a destituio da liao biolgica. Mesmo com alegalizao da adoo, o espectro da apropriao indevida dacriana de outrem parece continuar latente no imaginrio dame adotiva, a qual revela temer que, um dia, Joana retorne

    para recuperar Gabriel. Parece acreditar, assim, que a mebiolgica regressaria, mais cedo ou mais tarde, para cumpriro acordo informal que celebraram originariamente, reivindi-cando a posse do menino que, no imaginrio de Arlete, ainda

    pertenceria me biolgica.No caso em questo, embora no se possa postular a in-

    veja em relao fertilidade dos pais biolgicos, posto que

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    Carlos e Arlete foram capazes de exercer a parentalidadepelas vias biolgicas, pode-se reetir a respeito de uma faltade segurana em relao estabilidade do vnculo existenteentre pais e lho adotivo (Levinzon, 2006) e tambm acercados aspectos legais desse processo. A fantasia de roubo acabatendo respaldo em um dado de realidade, na medida em que,se considera o pacto explcito da adotante com a genitora

    que corresponderia a fazer uma Guarda e no Adoo, tendoem vista que a adotante prometera me biolgica que elapoderia voltar a qualquer momento e reaver a criana.

    A legtima parentalidade parece estar relacionada, nessesentido, tanto aos laos consanguneos (em detrimento doslaos socioafetivos, construdos por meio da adoo), quantoao modo como foi realizada a adoo. Assim, podemos de-

    preender que a participante relata no apenas a necessidadede contar com maior segurana afetiva, como tambm desegurana jurdica (Ghesti-Galvo, 2008): o medo e a inse-gurana aparecem no discurso da me adotiva estreitamenterelacionados ao contrato que ela estabelecera com a genitorade Gabriel. No incio, Arlete prometera que cuidaria do meni-no, mas no que o faria deixar de ser lho de Joana. Ou seja,Arlete entende que poderia ter mantido a promessa(cuidar)sem romper o vnculo de liao anterior, o que explica osentimento de ter trado a conana de Joana.

    Na legislao sobre a adoo (ECA, 1990; Brasil ,2009), existe a previso do consentimento explcito dos

    pais biolgicos para adoo, o que no ocorreu nessecaso. A ausncia de concordncia explcita nos permite

    pensar que Arlete sofre intensamente com um sentimentode culpa que tem sustentao na realidade, situao que

    perdura mesmo depois da legalizao da adoo. O exer-ccio da parentalidade adotiva se d em meio a temorese fantasias de perda, ainda mais quando abordamos ocontexto das chamadas adoes prontas ou diretas. Estudode Mariano e Rossetti-Ferreira (2008), que acompanhou110 processos de adoo ocorridos no perodo de 1991 a2000 na Comarca de Ribeiro Preto, SP, comprovou que70% correspondiam a adoes diretas. Aps a vignciada nova lei da adoo (Brasil, 2009), resta questionar emfuturos estudos se tal fantasia/realidade de roubo/perdase manteria nas adoes realizadas nos moldes legais,mediante inscrio prvia, tanto de adotantes como decrianas potencialmente passveis de adoo, junto sVaras da Infncia e da Juventude. No caso das crianas/adolescentes, prev-se a realizao de estudo psicossocial

    prvio de sua condio de adotabilidade, em que se incluia ateno psicossocial famlia de origem (no mnimo, me biolgica). Alm disso, a adoo legal envolve agoraa preparao para a parentalidade adotiva.

    Em relao revelao ao lho sobre a adoo, Carlose Arlete armam que Gabriel j sabe que, biologicamente, lho de outras pessoas. O casal fez vrias tentativas deexplicar ao lho essa realidade, ao que ele parecia nocompreender muito bem, at que, h algum tempo, Arletecontou-lhe sobre a adoo de uma forma mais direta. Relataque Gabriel mostrou-se agitado quando soube da verdadee que levou muito tempo para tocar no assunto novamen-te. Segundo Maldonado (1989), as perguntas e conversassobre a adoo, por se tratarem de temas ansiognicos,costumam surgir intercaladas por extensos perodos de

    tempo, nos quais parece no haver mais interesse no as-sunto. Atualmente, o lho tem preferido no falar sobresua histria pregressa, optando, assim, por manter silnciosobre seu passado.

    Porque sempre a gente vinha falando, sempre vinha falando,que ele no da barriga, que ele do corao... O George da barriga, o Emanoel da barriga, o Juliano da barriga,

    ele no, ele do corao... E eu, como eu tenho essa cicatrizaqui [aponta para marca prxima ao pescoo], eu acho queele, que ele falava: eu sa daqui, ento? A eu falei: no,voc saiu da barriga de outra mulher. A ele perguntou quemque era a mulher... A eu falei: , ela foi embora, ela noapareceu mais. Mas nunca contei a histria, sabe, que elaabandonou, que ele passava fome com ela... Eu no quero... Euquero poupar ele disso... Ento assim, ele pergunta... Falei:A gente ama muito voc, a gente amava muito voc, por issovoc cou com a gente... E ela foi embora, a voc cou com a

    gente, porque a gente ama muito voc... (Arlete)

    Ainda que no existam elementos sucientes, a partir doque se pde apurar durante a entrevista possvel questionarse a me biolgica realmente abandonou ou entregou esselho aos cuidados de Arlete. Motta (2001), ao contrrio doque permeia o imaginrio social, arma que a deciso deentregar um lho em adoo pode ter vrios signicados,desde assumir a impossibilidade de cri-lo, admitir sua re-

    jeio criana ou aceitar a frustrao do amor e do desejode maternagem. Pela nova lei da adoo (Brasil, 2009), ame que quiser entregar seu lho (nascituro) adoo terassegurada assistncia psicolgica e jurdica do Estado,devendo ser encaminhada Vara da Infncia e Juventude.

    Winnicott (1955/1997) postula que a revelao sobre asorigens da criana deve ser realizada precocemente, posto queo mistrio a respeito do passado gera uma mistura entre fatoe fantasia. Assim, amor, desgosto e horror so sentimentosiminentes na criana, devendo ser experimentados para seremelaborados e deixados para trs, no seu devido tempo. Pode-sereetir, assim, que a diculdade de dilogo a respeito do pas-sado do lho possa estar relacionada s fantasias de roubo

    presentes nos pais em questo. Parece persistir o medo de queGabriel possa voltar aos seus pais biolgicos, caso conheae tenha contato com os mesmos; um temor de que venhamreivindicar sua criana roubada e que esta opte pela famliade origem em detrimento da adotiva. Haveria, nesse sentido,um temor latente de que Gabriel vire a casaca, caso venhaa conhecer seus pais biolgicos. Frente a essas consideraes,

    pode-se imaginar por que razes o casal evita tanto falar

    sobre o assunto e, consequentemente, posterga a aberturade um dilogo franco e aberto sobre a verdadeira origem dacriana, o que inibe ou impede que o lho mantenha ativasua curiosidade e faa perguntas a respeito de seu passado.

    Nessa vertente, o silncio da criana, mesmo aps ter sidointeirada da verdade pelos pais adotivos ainda que umaverdade parcial, j que a identidade da me biolgica conti-nua a ser escamoteada sinal de interrupo dos processosinvestigativos que ela comeou a desenvolver, ao explorarsuas origens. Essa suspenso da curiosidade pode contribuir

    para sua inibio intelectual, que est na raiz dos problemasde aprendizagem evidenciados na escola.

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    Adoo Sucientemente Boa

    No que diz respeito ao relacionamento entre pais e lhos, importante salientar que as semelhanas e diferenas entreos lhos biolgicos e adotivo so bastante enfatizadas nodiscurso de Carlos e Arlete. O casal faz questo de salientarque os lhos so criados em condio de igualdade.

    Bom, eu pelo menos tento fazer tudo igual... O Carlos tambm,

    nunca foi de... O Gabriel sempre o mais mimado porque ele o mais novinho, n? Alis, todo o mundo mima ele, n, at ogato e o cachorro. (Arlete)

    Carlos e Arlete justicam a superproteo e os cuidadosespeciais dispensados a Gabriel devido diferena de idadeentre os lhos. Assim, por ser o mais novo, ele seria o maismimado, fato que no estaria relacionado, segundo os pais, sua histria de adoo. Nesse sentido, as diferenas perce-

    bidas entre os lhos estariam associadas faixa etria e no condio de biolgico ou adotivo. possvel relacionartal achado a uma tentativa compensatria de combater pre-conceitos presentes no contexto da adoo. O casal, dessamaneira, perceberia e trataria os lhos da mesma forma, paraque eles se sentissem igualmente amados e protegidos, o quegarantiria que a condio de aliao biolgica em nadainuenciasse os relacionamentos intrafamiliares.

    A negao de que a parentalidade e a liao adotivassejam diferentes bastante comum em nossa sociedade. A di-culdade de lidar com o diferente, nesse contexto, conduziriaa uma tentativa de traz-lo para o espao da normalidade.Schettini, Amazonas e Dias (2006) postulam que, para a so-ciedade em geral, existe uma nica possibilidade de construira diferena: por meio do pleno reconhecimento da excluso.Entendemos que a questo assumir a diferena no paralegitim-la ou justic-la, mas como uma condio quedignica a singularidade. Portanto, reconhecer a condio

    peculiar de cada lho, independentemente de suas origens,congura-se ainda como um desao para o casal investigado.

    De modo geral, o relacionamento entre pais e lhos conotado positivamente pelo casal, sendo caracterizado

    pela proximidade. O casal relata que existe sentimentode unio entre os membros da famlia, disponibilidade eespao para promover o dilogo e preocupao, por partede pais e lhos, com o bem comum. O ambiente familiar,nesse sentido, parece ser capaz de atender s necessidadesdos lhos, proporcionando-lhes um contexto favorvel dedesenvolvimento.

    No que concerne ao relacionamento entre irmos, ocasal recorre novamente ao discurso da normalidade, com o

    qual tenta minimizar e homogeneizar as diferenas entre oslhos. Nota-se uma tentativa de naturalizar o relacionamentofraterno, tornando-o prximo quele vivenciado em famliascompostas somente por irmos biolgicos. Para Costa e Ros-setti-Ferreira (2007), algumas pessoas que buscam a adooesto tomadas por concepes de maternidade, paternidade efamlia que valorizam o modelo biolgico de parentalidade,o que poderia explicar o desejo do casal de normalizar orelacionamento fraterno dos lhos. Mais uma vez, pode-se

    pensar que a diferena sentida na famlia como algo nodesejvel, excludente, que por isso deve ser negado e evitado.

    Carlos e Arlete relatam, ainda, que os lhos conversammuito entre si, apesar das brigas corriqueiras. Referem-se

    ao cime que parece existir entre os rapazes, com eventuaisdiscusses sobre qual lho seria o preferido da famlia.

    Novamente, parece haver uma tentativa de negar possveisdiferenas no relacionamento parental. importante pensarque, embora os lhos de Arlete e Carlos possivelmentesintam que os pais os tratam de maneiras distintas, o casaltenta invalidar tal percepo. O casal explica que se trata

    de uma tentativa de no fazer diferena entre seus lhos,pois acreditam que, tratando-os de forma igualitria, eles sesentiriam igualmente amados.

    Arlete faz referncia aos cuidados dos lhos biolgicosem relao ao lho adotivo. Segundo estudo realizado porFernandes, Alarco e Raposo (2007), percebeu-se que osirmos mais velhos so mais conscienciosos (mais obe-dientes ao dever e mais deliberados), menos hostis e maisaltrustas do que os do meio. Os mais velhos, desse modo,so vistos como aqueles que mais seguem os padres deconduta, princpios ticos e obrigaes morais, recebendoa responsabilidade de serem os guardies detentores dasnormas e valores familiares. Tal achado encontrado naliteratura cientca parece condizente com a descrio queArlete faz de Emanoel: considera-o o mais responsvel doslhos, aquele que mais auxiliou no cuidado dos irmos, porser o primognito. Dessa forma, parece assumir um papelde cuidador na famlia em questo, educando e contribuindocom a formao dos irmos mais novos.

    Pode-se inferir, a partir dessa anlise, que a adoo no um processo que se limita aos cuidados supridos pelas guras

    parentais, mas envolve e mobiliza o restante da famlia, emparticular os lhos mais velhos. Como destacado pela teoriawinnicottiana, o ambiente sucientemente bom, inicialmenteconstitudo pela me, amplia-se a partir da incluso do pai,da famlia como um todo, no caso, os irmos, e de toda asociedade (Frota, 2006). No caso em questo, houve conver-gncia na questo dos lhos mais velhos tambm adotaremo irmo adotivo, o que se traduz, no cotidiano, no provimentode afeto, proteo, segurana e cumplicidade. Esses cuidadosajudam a consolidar o ambiente sucientemente bom e con-vel de que a criana necessita para sustentar seu amadureci-mento (Winnicott, 1965/1997). Considerando a peculiaridadeda criana adotada, essa adaptao ativa dos pais, que reforada e ampliada pelo apoio e superviso permanentedos irmos mais velhos, ajuda a solidicar o sentimento deincluso e pertena ao ncleo familiar, contribuindo paraatenuar o processo traumtico de rompimento precoce dosvnculos familiares que est na origem de qualquer adoo.

    Ademais, possvel apreender, a partir do discurso docasal em questo, a proximidade afetiva entre os irmos.Carlos e Arlete relatam que os lhos costumam ajudar uns aosoutros e preocupam-se com o bem-estar dos demais familia-res. Mais uma vez, destaca-se o papel ocupado por Emanoel,o lho mais velho, na famlia em questo. O primognito

    parece gurar como um segundo pai para os irmos maisnovos, biolgicos e adotivo; preocupa-se com a formao

    prossional dos mesmos e contribui nanceiramente parasua educao.

    Os planos que o casal tece para o futuro esto vinculadosao xito prossional dos lhos; esperam que os mesmosarranjem bons empregos (melhores que os atuais) e queGabriel possa estudar em uma boa escola. Nota-se, assim,

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    LK Otuka et al.

    uma preocupao a respeito do futuro dos lhos, os quais,segundo Carter e McGoldrick (1995), seriam o elemento quegarantiria a continuidade do sistema familiar, a permannciados legados transmitidos s prximas geraes e a heranaconsumada por meio da realizao dos descendentes. Oslhos, nesse sentido, seriam o depositrio dos melhoressonhos e esperanas dos pais, e tambm a forma que estes

    encontraram de se perpetuarem e continuarem a existir nomundo, transcendendo sua nitude.

    Cnsideaes nais

    O processo de adoo discutido neste estudo mostrou-seenvolvido em intensa carga emocional, permeado por afetosambivalentes. A partir dos dados obtidos, pode-se concluirque a origem da adoo, o modo como a criana foi inseridano novo ncleo familiar, as motivaes e a maneira como o

    processo de adoo se congura na realidade do lar substitutopodem impactar o desenvolvimento posterior da criana eseu relacionamento intrafamiliar. Sendo assim, precisofavorecer tanto condies para que os pais possam reetira respeito de seus temores e fantasias, de modo a se forta-lecerem e encontrarem segurana no exerccio de seu papelcomo cuidadores legtimos, quanto inform-los e fornecersuporte acerca dos aspectos legais que envolvem a adoo.

    Nesse sentido, no caso relatado constatou-se a relutnciados pais em revelar ao lho adotivo sua histria inicial devida, o que se ancora tanto em fantasias inconscientes de rou-

    bo/perda quanto em um discurso consciente, derivado de umdado real de contraveno do pacto estabelecido com a me

    biolgica da criana. Essas fantasias ainda no puderam serelaboradas e ressignicadas. Nesse contexto, abrir canais parauma comunicao aberta, bem antes da consumao da ado-o em si, pode contribuir para a construo de um vnculo

    parental baseado na conana, facilitando o desenvolvimentosaudvel da criana. Nessa direo, o projeto de adoo noapenas deve ser desenvolvido, elaborado e amadurecido pelocasal adotante, mas tambm pelo seu entorno familiar oque, no caso em apreo, inclui os lhos biolgicos e pelafamlia de origem da criana (pelo menos na gura de suagenitora). No apenas a parentalidade adotiva que est em

    jogo, mas toda uma reorganizao familiar que se d emfuno da adoo.

    A adoo sucientemente boa, como prope o o con-dutor deste estudo, no pode ser entendida apenas como umevento bem-sucedido de integrao da criana em um lar

    substituto. Trata-se de um longo processo no qual os familia-res, os pais e a prpria criana se esclarecem, identicam-see se enriquecem mutuamente e, portanto, se transformam,na medida em que assumem/negociam posies que con-tribuem para a construo de um ambiente saudvel, noqual papis, escolhas, nalidades, valores e necessidadessejam congruentes. A famlia que consegue levar a cabo aadoo no como um processo normalizante, mas criativo etransformador, pode promover a instaurao de um projetoque realmente contribua para o desenvolvimento de todosos seus membros, sendo receptculo contenedor de angs-tias ou fantasias destrutivas que podem coexistir e seremelaboradas, dando espao s possibilidades de encontro,

    aprendizado compartilhado e construo de laos afetivosslidos e duradouros.

    Compreender, a partir de um estudo de caso, o modocomo se congurou a adoo em um contexto localizado,mostrou-se essencial para que novos olhares e prticas so-ciais, fundamentadas do ponto de vista psicolgico, sociale jurdico, possam ser empregadas, conduzindo a desfechos

    bem-sucedidos. Assim, preciso que os prossionais estejamno apenas conscientes do papel que desempenham nessecontexto, mas que conheam a legislao vigente e as formasde oferecer apoio trade formada por adotantes, adotado efamlia de origem do adotado (Ghesti-Galvo, 2008).

    O presente estudo contribui com novas reexes quepermitem avanar na compreenso das peculiaridades dadinmica de famlias que, mesmo aps terem seus lhos bio-lgicos, optam pela adoo. Obviamente, a abordagem dessescasos no pode considerar mais a impossibilidade de gestao

    biolgica como deagrador da busca da parentalidade porvia adotiva, mas desvelar outras motivaes, desejos, inten-cionalidades e devires subjacentes ao processo de adoo.

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    Recebido em 11.12.2009Primeira deciso editorial em 21.09.2010

    Verso nal em 04.10.2010

    Aceito em 02.12.2010 n