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ADVOCACIA HISTORIA E PERSPECTIVAS Luiz Amaral (*) «Profissilo nilo é o mister que se cumpre por necessidade, nem somen- te a tarefa a que se metem ombros para sustentar o corpo, nem um cargo ou carga a que se curve a cerviz para ganhar o pilo. É uma função que es- colhe livremente na disciplina d<i colméia é missilo que se no afã de servir a fraternidade humana>>, eis a fulgurante conceituaçao de Eduardo Lustosa.f11 Assim, para que se configure a profissionalização de uma certa ativida- de, importa que haja com nitidez: um conjunto de conhecimentos; uma técnica baseada neles; uma formação sistemática dos que praticam a atividade; um código de honra. A par disso, vejamos a história profissional do advogado. Advogado, vócabulo latino que na etimologia quer dizer o que vem junto, para João Monteiro é o «jurisconsulto que aconselha as pártes liti- gantes, esclarece os juizes e dirige a causa, alegando, de fato e direito, o que convenha aos intereses do constituinte». Ja para Teixeira de Freitas «ad- vogado é a pessoa do Juizo que, por seus conhecimentos de jurisprudência, instrui e patrocina seus constituintes». (2l Essas definições sao contemporâneas do regime do livre exercício da profissão (co/egiación libre), isto é, antes da criação da Ordem dos Advoga- dos do Bras i I. Hoje, entretanto, definimos o profissional da advogada como «O pro- fissional diplomado. regularmente inscrito na Ordem dos Advogados, habili- tado a aconselhar sobre questões de ordem juridica ou contenciosa, e de defender na Justiça, oralmente ou por escrito, a honra. a liberdade, a vida e os interesses de seus clientes, que ele assiste ou representa»[3). Essa, a defi- niçilo do notável tratadista da advocacia Appleton, cujos termos apenas me- ("') O autor Luiz Otávio de Oliveira Amaral é advogado em Brasllia, autor das obras (,Relações de Copsumo» e «A Legislação do Advogado». Lecionou na Faculdade de Direito da UNB. (1) Ântônio Augusto de Mello. Moral, Direito, profissa.o. Revista de lnformaçao Le- gislativa. Brasília, 33:181, jan./mar. 1972. (2) ·Sodré, Ruy Azevedo. A ética profissional e o estatuto do advogado. São Paulo, LTr., 1975, págs. 271/272. (3) Sodre. Op. cit. acima nota 2, pâg. 273. 22

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ADVOCACIA HISTORIA E PERSPECTIVAS

Luiz Amaral (*)

«Profissilo nilo é o mister que se cumpre por necessidade, nem somen­te a tarefa a que se metem ombros para sustentar o corpo, nem um cargo ou carga a que se curve a cerviz para ganhar o pilo. É uma função que es­colhe livremente na disciplina d<i colméia soci<~l, é missilo que se abraç<~ no afã de servir a fraternidade humana>>, eis a fulgurante conceituaçao de Eduardo Lustosa.f11

Assim, para que se configure a profissionalização de uma certa ativida-de, importa que haja com nitidez:

um conjunto de conhecimentos;

uma técnica baseada neles;

uma formação sistemática dos que praticam a atividade;

um código de honra.

A par disso, vejamos a história profissional do advogado.

Advogado, vócabulo latino que na etimologia quer dizer o que vem junto, para João Monteiro é o «jurisconsulto que aconselha as pártes liti­gantes, esclarece os juizes e dirige a causa, alegando, de fato e direito, o que convenha aos intereses do constituinte». Ja para Teixeira de Freitas «ad­vogado é a pessoa do Juizo que, por seus conhecimentos de jurisprudência, instrui e patrocina seus constituintes». (2l

Essas definições sao contemporâneas do regime do livre exercício da profissão (co/egiación libre), isto é, antes da criação da Ordem dos Advoga­dos do Bras i I.

Hoje, entretanto, definimos o profissional da advogada como «O pro­fissional diplomado. regularmente inscrito na Ordem dos Advogados, habili­tado a aconselhar sobre questões de ordem juridica ou contenciosa, e de defender na Justiça, oralmente ou por escrito, a honra. a liberdade, a vida e os interesses de seus clientes, que ele assiste ou representa»[3). Essa, a defi­niçilo do notável tratadista da advocacia Appleton, cujos termos apenas me-

("') O autor Luiz Otávio de Oliveira Amaral é advogado em Brasllia, autor das obras (,Relações de Copsumo» e «A Legislação do Advogado». Lecionou na Faculdade de Direito da UNB.

(1) CanÇ~do, Ântônio Augusto de Mello. Moral, Direito, profissa.o. Revista de lnformaçao Le­gislativa. Brasília, 33:181, jan./mar. 1972.

(2) ·Sodré, Ruy Azevedo. A ética profissional e o estatuto do advogado. São Paulo, LTr., 1975, págs. 271/272.

(3) Sodre. Op. cit. acima nota 2, pâg. 273.

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recem escólio quanto ao aconselhamento jurídico, que, entre nós, nao é privativo de advogado (art. 71, § 3?, do Estatuto da OAB), como o é nou­tros. países (v.g França)

Aliás, releva notar que dar consultas, aconselhar e preparar trabalhos de assessoria jurídica. a chamada advocacia preventiva, hodiernamente tem larga utilidade social, uma vez que previne demandas judiciais e organiza melhor a sociedade. Eis aí o magistério social do advogado, no entender de Angel Ossorio, ou a engenharia social que lhe cabe, segundo a sociologia de Roscoe Pound. Por isso exigem tais serviços, da mesma forma que os clássicos serviços forenses, profissionais tão habilitados quanto responsáveis legalmente. Urge, pois, que estes misteres sejam privativos do advogado.

Advogado é, nas palavras autorizadas de Azevedo Sodré, «servidor do público e do Estado»(4J; àquele serve, como intérprete da lei, e a este, co­mo elemento indispensável à administraçao da Justiça .

• o primeiro advogado foi o primeiro homem que, com a influência da razao e da palavra, defendeu os seus semelhantes contra a injustiça, a vio­lência e a fraude», eis a perene lição de Rui Barbosa.'SJ

Segundo consta teria sido Péricles, em Atenas, o primeiro advogado profissional ou ainda Antifronte (Grécia, 479 a.C.) como parece a João Gualberto de Oliveira e também o primeiro em seu ensino. Registra, com efeito, a história, a existência do advogado desde as remotas eras. No Brasil teria sido um degredado o nosso primeiro bacharel que fora deixado em Cananéia pela expedição de Gaspar de Lemos, em 1501, cujo nome se­ria Duarte Peres. E o que nos conta João Gualberto de Olíveira.(6J

Azevedo Sodré, valendo-se de Dupim, assevera que nos primeiros tem­pos a defesa era feita por parente ou amigo «que emprestava à ignorãncia ou à fraqueza o apoio de sua coragem ou do seu saber>>. No entanto, as ne­cessidades da Justiça paulatinamente reclamavam, mais que formação técni­ca, profissionalização daqueles patronos. Nos dias coevos, porém, já se exi­ge especialização para além da mera profissionalizaçao. Eis a linha de evo­lução da advocacia.

Deste quando o Estado assumiu a funçao de julgar, organizando o apa­rato judiciário e legal, a presença do advogado neste sério mister passou a ser mais ou menos essencial. Contudo, sempre imprescindível ao bom de­sempenho da justiça, já porque. transformando os fatos em lógica, permite ao juiz transformá-los em justiça; já porque, sendo homem livre, servo ape-

(4) Ibidem, pilg. 277.

(5) Sodré. Op. cit. acima nota 2, pág.267.

(6) ibidem. pilg. 277.

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nas da lei frise-se leis justas e legítimas garante o processo social da­quela liberdade que pressupõe todas as demais, ou seja, a liberdade do me­do.

Na Grécia, a advocacia quase confundia-se com a oratória, tal era o valor da eloqüência forense (lt.g. Demóstenes, Hypérides e Péricles). Em Roma modera-se a oratória e cuida-se mais do caráter técnico-jurídico da advocacia. Em França, desde Carlos Magno (séc. IX), já há documentação sobre a profissão de advogado. Neste país a advocacia evoluiu ao longo do tempo, até quando, com S. Luiz, foi a profissao regularmente organizada, estabelecendo regras e imposições legais ao exercício da advocacia.

Em Portugal os forais, já a partir do século XIII. traziam alguns vestígios da existência da profissao. Todavia, só com as Ordenações Afonsinas foi que a profissão teve certa organizaçao. Maiores exigências para o exercício da advocacia, na Casa de Suplicação e na Casa do Cível, foram feitas pelas Ordenações Manuelinas. Depois, com as Ordenações Filipinas, a disciplina e organização da profissão foram completadas. Eram, então, aferrados a princípios como a probidade, o sigilo profissional (nao testemunhavam}, a responsabilidade por dano decorrente do desleixo, ignorância, procrastina­ção. Todas essas infrações eram conhecidas e reprimidas com penas de pri­vação do ofício. e até mesmo de degredo por longos anos, aplicadas pelos juizes. Porém, a par destes deveres. desfrutavam os advogados de certos privilégios além de algumas concessões mi fitares, não pagavam impostos aos conselhos. tinham acesso à Magistratura, gozavam de tratamentos e ho­menagens que nobilitavam a profissão.

Em Roma, a Lex Cincia proibia expressamente a remuneração do advo­gado. Nos idos do imperador Otávio Augusto reiterou-se a vedação, estabe­lecendo a sanção da restituição em quádruplo do pagamento recebido. Mais tarde, com o imperador Cláudio. revogou-se tal proibição.

Na Idade Média, tornou-se a põr em dúvida a legitimidade da remune­ração pelos serviços advocatícios. A autoridade de São Tomás de Aquino, no entanto, dirime a hesitação a favor dos causídicos.

f fato, por outro lado, que os advogados, no curso da história, já des­frutaram de vários privilégios e distinções. Nas ordenações lusitanas, por exemplo, gozavam de certas imunidades e só poderiam ser recolhidos à pri-' são quando cometessem crimes para os quais a pena prevista fosse a de morte. Em qualquer outra hipótese, a prisão era domiciliar e sob palavra.(71

(7) Souza, Carlos Fernando Mathias. Saudaçao ao quadragésimo ano da OAB: discurso, Re· vista do Instituto dos Advogados. Brasilia, 1:105, 1971

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No Brasil, colônia que foi de Portugal, teve ampla aplicaçao o Direito da metrópole (as Ordenações) e as regras profissionais da advocacia: Veja­mos, pois, como isto se deu.

O DIREITO E A ORGANIZAÇÃO JUDICIÁRIA NA HISTÚRIA BRASILEIRA

Na primeira fase de nossa colonização, o órgao máximo da suprema função judiciária foi o poderoso senhor do feudo, de quem tudo emanava, e que, possuindo a terra, possuía a soberania quase plena.

Mas, com o advento da gestão administrativa da Coroa, por intermédio dos governadores gerais, a situação modificou-se notavelmente. Ouvidores e Provedores funcionários batizados na pia do livro 1~ das Ordenações

tiveram o encargo de declarar o direito entre indivíduos e de resguardar, contra estes, os interesses do Estado. E o que nos dá noticia o ilustre Mar­tins júniorJBJ

No entanto, outros órgãos judiciários se faziam necessários. Surge, en­tao, o Conselho da lndia (1604) que deu lugar ao Conselho Ultramarino (1642). E este, ao lado da Mesa da Consciência e Ordens e do Desembargo do Paço, formavam os tribunais que primavam nos negócios político­jurídicos do Brasil, cumprindo a cada um deles, aqui, os da Fazenda, ali os da Igreja e de defuntos e ausentes, acolá, os da magistratura ordinária.

Verifica-se, de logo, a intensa participação do elemento clerical na ju­risdição temporal, como sóia acontecer (no ensino p. ex.) naqueles tempos.

Era anseio que no Brasil se instalasse uma organização judiciária apro­ximadamente semelhante à do Reino. Em Portugal, nessa época, se sobre­punham aos juízes ordinários, aos juízes de fora, aos corregedores e aos outros magistrados especiais de primeira inst.!!.ncia, tribunais como o Desem­bargo do Paço, a Casa do Cível de Lisboa (depois Relação do Porto) e a Casa da Suplicação (terceira e última instância). Assim, o Brasil-Colônia ca­recia de um tribunal de segunda instância para revisar as decisões da juris­diçao simples dos ouvidores e provedores gerais, ou ainda dos governadores e capitães-mores que, também, detinham poder jurisdicional.

Tal necessidade manifestara-se já em 1587, ano em que na Bahia criou­-se a primeira Relaçao para o BrasiL Devia este Tribunal contar com dez mi­nistros, com títulos e funções de desembargadores do agravo e desembarga­dores extravagantes, chanceler, ouvidor-geral, juiz dos feitos, provedor dos órfãos e resíduos, provedor dos feitos, promotor da justiça. De todos estes

(8) Martins Júnior, lsidoro. História do Direito NacionaL Brasília. Ministério da Justiça, 1979, pág.125 (Col. Memória Jurídica Nacional, 1).

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cargos, só três foram ocupados. Os demais, apesar de providos, os nomea­dos jamais chegaram ao Brasil. Dai por que esse Tribunal não vingou.(9J

De modo que só em 1609 se instalou, efetivamente, na Bahia, a Rela­ção tão reclamada, embora ainda de futuro muito incerto. Em 1626, por Al­vará de 5 de abril, deixou ela de existir. para alguns, em virtude de confli­tos entre desembargadores e bispos (VarnaghenL para outros em face da crescente autonomia colonial(101. Com pouco mais de cinco lustros de in­cessantes reinvindicações restaurou-se aquele Tribunal Superior, com a su­pressão dos desembargadores extravagantes e de um dos agravistas, no mais, em tudo semelhante à Relação de 1609.

Destarte, ficou definitivamente estabelecido, na Colônia, o Tribunal de segunda instância que buscava <divrar os moradores das moléstias, vexações e perigos do mar, a que estavam expostos, indo requerer Justiça aos Tribu­nais do reino»C111. Em 1751, seguiu-se a instituiçao do segundo Tribunal Su­perior do Brasil-Colônia: a Relação do Rio de Janeiro.

O Brasil estava então dividido em dois grandes departamentos judi­ciários: o do Norte e o do Sul (excluídas daquele as Capitanias do Estado do Maranhão, cujo ouvidor-geral era imediatamente subordinado aos tribu­nais da metrópole). Do Ceará para o Sul, assim se organizava o aparelho judiciário da Colônia: vários magistrados ou juizos singulares de 1~ instân­cia (ouvidor, provedores, juizes ordinários e especiais como os de órfãos, os de fora e etc.), sobre os quais encontravam-se os tribunais coletivos de 2~' instância e um tribunal supremo de 3? e última instância, com sede na Metrópole (Casa de Suplicação).

Registrem-se, ainda, as juntas de Justiça mandadas instituir em toda a Colônia pelo Alvará de 18-1-1765, que eram pequenos tribunais compostos do ouvidor de uma capitania e de dois letrados adjuntos. Tinham por com­petência «deferir os recursos contra as violências dos juizes eclesiásticos, devendo os provimentos que nelas se tomassem ser cumpridos logo, e sem se esperar pela decisão última da respectiva Relação ou do Desembargo do Paço».C121

Como se vê, eram órgãos jurisdicionais intermédios que. segundo Mar­tins Júnior. traziam o selo do grande estadista, o Marquês de Pombal, que assim visava a apoucar o elemento clerical na prestação jurisdicional tem­poral Recebendo em seu solo as raizes da árvore real transplantada, o

(9) Martins Júnior. Op. cit. acima nota 8, pág, 127.

(10) Martins Júnior. Op. cit. acima nota 8, pâ.g_ 128.

(11) Ibidem. piig. 129. (12) Martins Júnior. Op. cit. acima nota 8. pág. 130.

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Brasil-Colônia passava a ser Brasil-Corte e tinha, pois, ne.._, tornar-se Brasil-Reino, como efetivamente se tornou em 1815.

Por ocasiao da vinda de Dom Joao VI. transplantou-se para cá toda " organizaçao judiciária de Portugal. Instalou-se entao, em solo brasileiro, o Conselho de Estado, o da Fazenda e a Junta de Comércio. A Relação do Rio de Janeiro foi elevada à preeminência de Casa de Suplicação e organizou­se um Desembargo do Paço, com atribuições análogas às do que havia em Lisboa. Dava-se, desse modo, o fenômeno que mui apropriadamente Silvio Romero chamou de «inversão brasileira»(13l, isto é, a Colônia transmuta-se em Metrópole e, de fato, sobrepõe-se à ex-metrópole.

Neste período (1808-1822). o Direito Nacional se revela pela predomi­nância, ou quase exclusividade, dos institutos de Direito Público interno ou externo. Assim, com a profunda revolução sócio-política por que passou o Brasil, preponderava as medidas e providências legislativas de natureza pú­blica. No tocante ao Direito Privado, bastava-nos, ao que parece, as vetus­tas Ordenações.

Ainda uma vez mais ouçamos Martins Júnior:

«O Direito que ia vigorar na Colônia nilo tinha de nascer do choque de interesses das populações postas em contato; era um Di­reito que eslava feito e que precisava simplesmente ser aplicado, depois de importado. ,(14}

11 A CRIAÇÃO E ORGANIZAÇÃO DOS CURSOS JURlDICOS NO BRASIL

As discussões em torno da criaçil.O dos cursos jurídicos no Brasil (1823-1827). mais que simples debates parlamentares, aliàs, os primeiros acerca do ensino e educaçao nacionais, significaram, antes de tudo, histórico ore­lúdio da institucionalização sócio-política do incipiente processo de inde­pendência e consolidação do Estado nacional brasileiro. Estes debates. frise-se, travaram-se durante a Assembléia Constituinte (1823) e o fracasso desta Constituinte postergou, também o êxito da primeira tentativa de im­plantaçao. no Brasil, daqueles cursos.

A criação desses cursos no Brasil já se fazia uma exigência mais do que política, vez que «Uma porção escolhida da grande família brasileira, a mocidade, a quem o nobre estimulo levou à Universidade de Coimbra, ge-

(13} Ibidem. pág. 146.

(14} Martins Júnior, lsidoro. História do Direito Nacional. lntrod. de Nelson Saldanha. Brasília. Ministério da justiça. 1979. pãg, 9 (CoL Memória Jurídica Nacional. 1}.

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me ali debaixo dos mais duros tratamentos de apressao ... ))(15). Eis a sentida fundamentaçao do pioneiro José Feliciano Fernandes Pinheiro (Visconde de Sao Leopoldo). propositor da lndicaçao de 14-6-1823 que redundaria no Projeto (de criaçao dos cursos jurídicos) da Comissao de lnstruçao Pública de 19-8-1823. O deputado Almeida e Albuquerque expressava a necessidade daquela criaçao nos seguintes termos: « ... é prec iso tirar os brasileiros da penosa necessidade de irem mendicar as luzes nos países remotos.»(16l

Polemizou~se sobre a localização dos dois cursos. Uns queriam na Cor­te do Rio de Janeiro tais academias. No entanto, «a pressão que os jovens poderiam representar no processo de andamento político das decisões impe­riais» era o temor dessa localizaçao, segundo o senador Vergueiro(17l , um destaque do parlamento do Primeiro Império. Outros viam nas Minas Gerais a melhor sede para estes cursos: « .. é a mais populosa do Império. é a mais polida do interior, é a que está colocada mais ao meio de todas as ou­tras))(18l. Eram estas as razões de ordem prática (e nao política) do deputado Francisco Gê Acaiaba Montezuma, cuja importância histórica para nossa profissao ainda veremos adiante. O exímio Bernardo Pereira de Vasconcel­los por seu turno empenhava-se para que sua Sao Joao D'el Rei fosse a se­de escolhida(19l .

A Bahia era outra opçao , sobretudo porque lá concentrava-se a maior parte dos intelectuais brasileiros e porque dali saía mais de sessenta por cento dos nossos estudantes que demandavam Coimbra. Todavia, nenhuma dessas províncias lograram êxito por razões eminentemente políticas: Minas, em virtude de haver sido berço das idéias radicais de Independência ou por representar perigo à propensão conciliatória do regime que se instalava; a Bahia porque houvera resistido à Independência. Com efeito, a explêndida posiçao política de São Paulo e Pernambuco, em relaçao à Independência, garantiram o sediamento em Sao Paulo (capital) e em Olinda, dos dois pri­meiros cursos jurídicos brasileiros.

Quanto ao Rio de Janeiro, o Imperador chegou mesmo a outorgar um curso jurídico àquela cidade, através do Decreto de 9-1--1825, cujo cumpri-

(15) Bastos, A. Wander. O Estado e a formaçcto dos currículos jurídicos no Brasil, in Brasil, Cimara dos Deputados. Os Cursos Jurídicos e as Elites Políticas Brasileiras. Brasília, 1978, pág. 16.

(16) Pereira, Nilo. Perspectivas da Universidade na Assembléia Constituinte de 1823, in Brasil. Clmara dos Deputados. Os Cursos Jurldicos e as Elites Brasileiras. Brasília, 1978, pág. 17.

(17) Bastos, Op. cit. acima nota 15, pag. 17. (1B) Ibidem . pág. 18. (19) Vasconcellos, Bernardo Pereira de. Manifesto Polftico e ExP<>siçao de Princípios. 8rasilia,

Senado Federal - UnB. 1978, pág. 98 (Col. B. Pereira Vasconcellos).

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mento jamais se deu. Tal evento, no entanto, originou o primeiro estatuto dos cursos jurídicos que mais tarde tornar-se-ia documento de sumo valor histórico na formação daqueles cursos. Elaborado por Luiz José de Carvalho Melo, Visconde da Cachoeira, este documento ficou conhecido como o Es­tatuto do Visconde da Cachoeira e foi incorporado à Lei de 11-8-1827 que, então, definitivamente, criou os cursos jurídicos em São Paulo e Olin­da - como regulamento supletivo (art. 10). Na introdução deste monumen­tal documento, lê-se:

«Tendo-se decretado que houvesse nesta Corte um curso jurídi­co para nele se ensinarem as doutrinas de jurisprudência em geral, a fim de se cultivar este ramo de instrução pública, a se formarem homens hábeis para serem um dia sábios magistrados e peritos ad­vogados, de que tanto se carece; e outros que possam vir a ser dig­nos deputados e senadores, e aptos para ocuparem os lugares diplo­máticos e mais empregos do Estado ... ,(20l

Esse Estatuto, em que pese seu valor metodológico (extremamente zelo­so com a didática). ainda trazia os traços do colonialismo coimbrano (mor­mente da reforma pombal i na) de ideais de estreita vinculação com as pro­postas do Estado Imperial. Como, aliás, pretendia Cairu, um liberal no pen­samento econômico (Smith, Mill, Ricardo). porém um cáustico critico do li­beralismo político-social (Rousseau, Montesquieu, Locke) e cujas idéias muito influenciaram esse nosso primeiro regulamento dos cursos jurídicos.

Criados pela Lei de 11-8-1827, regulamentados pelo Estatuto do Viscon­de da Cachoeira, apesar de elaborado em consonância com o Decreto Im­perial de 9-1-1825 vinculação maior com os ideais estatais os cursos jurídicos foram instalados no Convento de São Francisco, em São Paulo (1-3-1828). e no Mosteiro de São Bento, em O linda (15-5-1828). Constavam do currículo dezoito disciplinas, divididas em nove cadeiras, que seriam minis­tradas em cinco anos. Destas disciplinas, apenas uma voltava-se para o en­sino do processo (Teoria e Prática do Processo, lecionada no quinto ano). Todas as demais estavam direcionadas à formação político-administrativa das elites funcionais do Estado. E de se observar que das 219 pessoas que exerceram a função de Ministro do Império, 147 (67%) eram bacharéis em Direito, vindo a seguir 49 (22.4%) formai:Jos pelas academias militaresl21l. Diga-se de passagem que essa participação preponderante de advogados

(20) Bastos. Op. cit. acima nota 15, pág. 30.

(21) Eizirik, lacks Nelson. O liberalismo econômico e a criaçao das disciplinas do direito co­mercial e economia politica. In: Brasil. Câmara dos Deputados. Os cursos jurídicos e as elites políticas brasileiras. Brasilia, 1978, pág. 124.

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nos altos postos de governo, ontem e hoje, é fato encontradiço nas grandes nações do mundo.

Note-se, ainda, o rigor dos Estatutos no referente ao aproveitamento es­colar e disciplinar dos acadêmicos. Assim, por exemplo, em caso de duas reprovações por ano, nos vários exames, impedia a matrícula nas faculda­des de Direito. Havia até mesmo a pena de prisão correcional, de um a oito dias, determinada pelo Diretor e acima deste limite pela Congregação.

Com seis bacharelandos, São Paulo forma a primeira turma em 1831. Eram estudantes que retornaram de Coimbra para concluírem seus cursos no Brasil. Já Olinda forma sua primeira turma de bacharéis em Direito, com 37 bacharelandos, em 1832{*1, como historia Clõvis Bevilácqua(2ll .

No atinente aos currículos jurídicos, passaram por várias transforma­ções que refletiram as mudanças da sociedade brasileira. Assim, tivemos a reforma de 1891 (chamada Rivadávia Correa). que dividiu em três partes os cursos jurídicos (Decreto n? 1 .232-H). a saber:

a) Ciências Jurídicas: que formava o pessoal que era voltado para as altas funções do Estado e para advocacia;

b) Ciências Sociais : que formava pessoal para a diplomacia; e

c) Notariado: que com três anos de duração habilitava o pes­soal para funções administrativas do Judiciário (escreventes) .

Tivemos mais reformas. Em 1895 (lei n? 314). extinguiu-se a tripartição do curso jvridico. Em 1896 (Decreto n? 2.226). enfatizou-se o ensino de Economia Política e Ciências das Finanças. Em 1901 (Decreto n? 3.905), introduziu-se a cadeira de Teoria e Prática do Processo Civil. Comercial e Criminal, até então englobados sob o titulo de Prática Forense. Em 1915 (Decreto n? 17.782-A), estabeleceu-se o ensino de Direito Penal M ilitar e respectivo Processo. Em 1931 (Decreto n? 19.852), a reforma Francisco Campos trouxe o Doutoramento em Direito.

Depois dessa sucessão de reformas , as alterações foram sempre de me­nor significado. Porém, em 1956, tivemos a autonomia da cadeira do Direi­to do Trabalho, até então estudada sob o título genérico de Direito Indus­trial e legislação do Trabalho (lei n? 2.724, de 9 de janeiro) .

(*) Nesta turma de 1832 (Oiindal destaca-se o nosso (que. alias, era angolano) grande fusebio de Queiroz, jurisconsulto consagrado e figura impar no Segundo Reinado. Coube-lhe , co­mo Ministro da Justiça. assinar a lei n? 556, de 25-6-1850 (Código Comercial ). entre ou­tros diplomas legais de valor inestimável.

(22) Bevilácqua, Clóvis. História da Faculdade de Direito do Recife . S!o Paulo, INL/ CFC/ MEC. 1977, pág. 28.

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llf - A CRIA<;ÃO DA ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL

A Ordem dos Advogados, como tal , na cultura universal tem origens que Sé -p-eraerrí.rlãsâOhrâsOo .TerríPo~-sUstentã-Se: ·Ofém-, -q-z;e--noànõãe 524 dC (há 14 sécu1os , no segun o cons!J ado e Justmo Augus o, ela Já exisha~O~"fern--btrs"cã=lanaslefS desól~n~a. Ja eS­teve ela sob a direção da Igreja, tendo. então, contribuído para a formação do Direito Canônico.

Em França, contudo , consolida-se como corporação (universitas personarum dos romanos) por Ordenança de Fel ipe Valois e assume em de­finitivo o nome de Ordem. como confraria religiosa de advogados e procu­radores (avocats e avoués). Instalou-se na Capela do Pafais, na pequena lsfe de La CitéC23J, onde nasceu Paris, e onde. ainda hoje, funciona, transforma­da no BarreauC~J leigo, sediada no mesmo Palais de }ustice . Bâtonnier era o advogado escolhido como homenagem à sua dignidade profissional, para, nos festejos a São Nicolau (Santo patrono dos advogados fran ceses). osten­tar o bâton (bastão) com as insígnias do Santo.

Ao lado do Bâtonnier sempre existiu na França a figura do doyen . ou seja, o advogado mais velho; essa tradição a França conserva até hoje. An­tes indicava que o doyen dispunha de poderes para administrar a classe . Hoje é só mera tradição esse titulo. O Bâtonnier orienta. dirime dúvidas so­bre a conduta profissional e ainda realiza atividades paternais e de concilia­ção em caso de conflito entre advogados. Como líder ou como chefe da classe, desde 1600 o Bâtonnier é eleito. Este modelo francês é que nos ser­viu de inspiração, ao lado da Associação dos Advogados de Lisboa. primei­ro para o Instituto da Ordem dos Advogados do Brasil , e, ao depois, para a própria Ordem.

TAo velha quanto a advocacia é a Ordem dos Advogados . Já em 1834, em França, uma célebre Ordenança de São Luiz obrigava à matrícu,la todos os advogados franceses «Com fim de manter a profissão em toda a pureza para que seja útil aos advogados e ao público». E ainda havia um juramen­to perante o parlamento, objetivando o compromisso de cumprimento dos deveres profissionais , cuja maioria, nos dias de hoje, se acha estampada em nosso Código de Ética, segundo Azevedo SodréC24l .

No Brasil Império malograram todas as tentativas de criação de nossa Ordem, embora comungassem desse ideal influentes homens públicos,

(2J l -Gueiros, Nehemias. A advocacia e o seu estat\rto. Rio de Janeiro. Livraria Freita Bastos, 1964. pág, 20.

(") Barreau: Cada uma das organizações de advogados (Ordem) que funcionam junto a cada Tribunal, na França.

(24) Sodré. Op. cit . acima nota 2, pág. 236

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como José de Alencar e Nabuco de Araújo. Em vista dos muitos obstáculos, criou-se, então, o Instituto da Ordem dos Advogados Brasileiros, com sede na Corte e filiais nas províncias, cujos estatutos, aprovados por D. Pedro 11, em 7 de agosto de 1843, já em seu artigo 2?, determinavam: «O fim do Insti­tuto é organizar a Ordem dos Advogados, em proveito geral da ciência da jurisprudência».

E bem de ver que a luta pelo Direito, pela Justiça e pelo aperfeiçoa­mento moral e intelectual do advogado, mais que as relagias e favores pro­fissionais, mobilizou e conduziu a classe desde os primórdios até os dias atuais. Dai, pois, a sua reconhecida autoridade moral e humanística.

Fundado por um grupo de conspícuos personagens {Francisco Aragão, Teixeira de Freitas, Montezuma e etc.), o Instituto da Ordem dos Advoga­dos Brasileiros, além daquela atividade precípua, tinha outra destinada a perpetuá-lo, qual seja, a de fórum de cultura jurídica. Aliás. como entidade cultural, só lhe antecedeu o Instituto Histórico Geográfico Brasileiro, criado que foi em 1837.

No dia 21-8-1843, na Rua dos Dardonos, n? 66, residência do Conse­lheiro Francisco Aragão, reuniram-se vinte e seis advogados para eleger a primeira administração (provisória). Francisco Gê Acaiaba de Montezumaf•J foi então eleito o primeiro presidente do silogeu (alguns autores destacam­no como o fundador). A instalação solene deu-se no salão nobre do Colé­gio Pedro 11. no Rio de Janeiro, na presença dos Ministros do Estado, Corpo Diplomático, Corpo legislativo, Magistrados e Advogados. Concedeu-se na oportunidade ao Conselheiro Aragão o título de Presidente Honorário, em agradecimento aos valiosos serviços prestados à causa dos advogadosf25l.

Acumulando, informalmente, as atribuições que mais tarde seriam da Ordem dos Advogados, o Instituto ora chamava-se simplesmente de Instituto dos Advogados Brasileiros. ora denominava:-se Instituto da Ordem dos Ad­vogados Brasileiros. Com a criação, em 1930, da Ordem dos Advogados Brasileiros, o Instituto consolidou o nome atual.

Lançada, destarte, a semente da Ordem, muitos foram os projetos legis­lativos que germinaram. Todos. no entanto, não chegaram a bom termo. como os projetos do Barão de loreto, de Inglês de Souza, de Eugênio de

(*J Seu nome de nascimento fora Francisco Comes Brandão; porém, seu irrequieto espírito, assaz nativista, levou~o a assumir o novo nome, rejeitando os apelidos lusitanos, e em seu lugar adotou Cê (aldeia tapuia), Acaiaba (ârvore tupi} e Montezuma por sua semelhança fisica com o grande imperador asteca. Este grande paladino do Brasil-independente mais tarde seria o Visconde de Jequiti[lhonha, Cf. in «OAB - 50 anos de luta''· Conferência do Dr. Carlos Araújo lima OAB-P/ (18-11-1980).

(25) Sodrê. Op. cit. acima nota 2, pãg 233.

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Barros, de Saldanha Marinho (1880). de Celso Bayma (1911) e da Comiss~o do Instituto dos Advogados do Rio de Janeiro, encabeçada por Aurelino LeaL Alfredo Pinto e Fernando Mendes de Almeida (entre 1916 e 1921). Em 1.917, no Instituto da Ordem dos Advogados de S~o Paulo, Azevedo Mar­ques, como delegado da Faculdade de Direito, afirmava, magoadamente, que na profiss~o «n~o existe disciplina e compostura suficiente nem está­gios, n~o tendo o valor que deviam ter os diplomas científicos, a experiên­cia, a proficiência, o tirocínio e o esforço»{26l. Cumpre observar , todavia, que, em 1866, Nabuco de Araújo, quando Ministro da Justiça, por ocasi~o de uma reforma judiciária, já propunha a criaç~o da Ordem dos Advoga­dos, uma corporaç~o «que se governe a si mesma, por meio de seus man­datários, e possa, pela inspeçao, pela disciplina, pela emulaçao, manter a honra, a glória e as tradições da profiss~o». (Projeto de 15-5-1866).

Era de fato o reino da impunidade, sendo que os advogados estavam sujeitos ao Juiz, o único competente para repreendê-los ou puni-los. A de­manda judicial, com efeito, n<lo era mais que mera questao de arbítrio dos litigantes. Advogados dignos sofriam concorrência de aventureiros(27) . ..

+- Nao havia disciplina organizada, seleçao, exigência de suficiência inte-lectual e moral. Ao bacharel concluinte do curso de Direito era bastante a apresentaçao do diploma para simples registro nos Tribunais de Justiça, que era concedido sem qualquer diligência prévia. Os Institutos dos Advogados estaduais ou mesmo o Instituto-matriz, com sede no Rio de Janeiro, n~o dis­punham de poderes para qualquer supervisao ou outra ingerência na vida profissional do advogado. o Essa longa e gloriosa pugna dos advogados pela obtenç~o de sua Or­

dem, por um capricho da história - cuja única lei parece ser mesmo a im­previs<lo - só veio a frutificar em 18-11-1930, quando o regime político im­perante era centralizador, violento e arbitrário; exatamente quando as liber­dades públicas e os direitos humanos se restringiam ao mínimo.

Quis o destino que esse milagre fosse consagrado a um ilustre magistra­do, o Desembargador da Corte de Apelaç~o do Rio de Janeiro (hoje Tribu­nal de Justiça) , André Faria Pereira. Encarregado pelo Ministro da Justiça, Oswaldo Aranha, de elaborar um decreto de reforma daquele Tribunal , fê­- lo com a inclus~ da norma que tornava real o longo e coletivo sonho da classe: a cr' ão da Ordem dos Advogados, no Brasil. Esta norma capitula­da no hoje emoldurado artigo 17 o Decreto n~ 19.408, de 18~11-1930, fora a única a merecer a objeçao daquele Ministro. Isto, entretanto, n~o logrou

(26) Sodré. Op. cit. acima nota 2. pAg. 237. (27) Haddock Lobo. Eugênio R. Experiência no campo ético-profissional. Rev. da OAB/ R). Rio

de Janeiro, 11 : 1979.

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postergar o surgimento da Ordem, visto que o eminente magistrado infun­diu sua inabalável convicção no Ministro, obtendo deste plena adesão.

Recebendo assim a OAB, por aquele festejado artigo 17, delegação do Estado para estabelecer seus próprios estatutos e para punir seus membros (autodiscjplina), delegado lhe foi tamoem o poder de seleção profissional.

Legalmente criada, faltava à Ordem dos Advogados Brasileiros (esta a denominação original naquele artigo 17) o toque da execução. Assim é que o chamado Regulamento da OAB - que pelo art. 17 do Decreto nO 19.408/1930 devia ser votado pelo Instituto da Ordem dos Advogados Brasi­leiros, com a colaboração dos Institutos Estaduais e aprovados pelo Governo Federal advém de intensa discussão nos meios jurídicos pelo Brasil afora. Tratava-se, por conseguinte, de organizar aquela concretização do velho e revelho sonho da classe.

Resulta, pois, o anteprojeto de Regulamento da OAB de amplo concur­so de opiniões colhidas em pareceres, sugestões e debates, movimento este liderado pelos Institutos dos Advogados estaduais e superiormente coorde­nado pelo Instituto da Ordem dos Advogados Brasileiros, que, por feliz coincidência, era presidido, na oportunidade, por Levy Carneiro, então Consultor-Geral da República e figura de primeira fila no processo de cria­ção da Ordem. Por isso mesmo, logo ele se tornou o nosso primeiro basto­nário, em cuja administração a Ordem deu seus passos iniciais.

Aprovado pelo Governo, o anteprojeto tornou-se o Decreto n? 20.784, de 14-12-1931, alterado posteriormente pelos Decretos n?s 21.592, de 1-7-1932, 22.039, de 1-11-1932, e 22.266, de 28-12-1932, cuja consolidaç<iO veio a lume pelo Decreto n<;> 22.478, de 20-2-1933. Este último decreto consolida­dor, perdurou regendo os destinos da profissão e da Ordem dos Advogados do Brasil (este decreto também trouxe-lhe a denominação atual) até advir, em 27-4-1963 - quando, então, a conjuntura sócio-política já não era tão desfavorável aos anseios da classe - a Lei n° 4.215, que tanto é o Estatuto da Ordem como também regula a profissão.

Na autorizada palavra de Nehemias Gueiros - bastonário que pontifi­cou durante outro evento assaz precioso em nossa história, qual seja, a ela­boração (por ele próprio, auxiliado por uma comissãoC*l) do anteprojeto de reforma do velho e insuficiente regulamento - temos que:

«Na verdade, não se poderia dizer do nosso antigo Regulamen­to impróprio até na denominação, pois era de lei que se tratava e não de Regulamento - que ele fosse, nos seus quatro únicos arti-

(*] Essa Comissao estava assim constituída: Themistocles Marcondes Ferreira , Alberto Barreto de Melo. C. B. Aragilo Bozano, ). M. MacDowell da Costa e C. A. Dunshee de Abran­ches. Porem, estes trabalhos já tinham sido iniciados na gestao de Seabra Fagundes ..

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gos alusivos à profiss~o . uma disciplina ao exercício da advocacia. Antes. era, e somente. uma tábua de regras à jurisdiçao disciplinar contra o advogado faltoso e ao funcionamento do Colégio que, por delegaçao do Poder Público. exercia e ainda continua a exercer o poder de policia aplicado aos seus membros.»(2Bl

O novo diploma legal da profissao, a lei n? 4.215 , de 27-4-1963 , surge após 33 anos da criaçao da Ordem e 17 anos de diligências (todas as sec­cionais da OAB se manifestaram) e empenho para a reformulaçao do seu velho regulamento. Longamente apurado e depurado, o anteprojeto é entre­gue ao governo Juscelino Kubitschek por meio do seu Ministro da Justiça, Nereu Ramos.

Em 11-8-1956 é assinada a mensagem presidenci.al ao Congresso Nacio­nal com que se acolhera o anteprojeto da Ordem e sua Exposiçao de Moti­vos, transformando-o em projeto governamental. Nas duas Casas do legis­lativo, o anteprojeto teve como relatores, na Câmara, o deputado Milton Campos e . no Senado Aloísio de Carvalho. Por sete anos muito se discutiu no Congresso acerca deste projeto. E até que s.e tornasse lei, aquela aspira­çao da classf.'! dos Advogados fez vir a lume eruditos documentos(*)_

Desta feita, regularam-se exaustivamente os deveres profissionais (obri­gações cívicas e éticas), entre os quais têm especial destaque: defender a ordem jurídica e a Constituição da Repúbiica; pugnar pela boa aplicação das leis e rápida administraçao da Justiça; contribuir para o aperfeiçoamen­to das instituições jurídicas; velar pela existência, fins e prestígio da Ordem; exercer a profissao com zelo e probidade; defender. com independência, os direitos e as prerrogativas profissionais e a reputaçao da classe; zelar pela própria reputaçao, mesmo fora do exercício profissional ; zelar pela dignida­de da magistratura, tratando as autoridades e funcionários com respeito e independência, não prescindindo de igual tratamento; prestar, gratuitamen­te, serviços profissionais aos necessitados no sentido da lei, quando nomea­do pela Assistência Judiciária, pela Ordem ou pelo Juízo ; indenizar pronta­mente o prejuízo que causar por negligência, erro inescusável ou dolo; prestar contas ao constituinte. ou propor contra ele açao de prestaçao de contas, quando se recuse a recebê-las ou dar quitação (art. 87, EOAB)

[28) Gueiros. Op. c it. acima nota 23, pâg. 17/ 18.

(*) O deputado Milton Campos externou toda sua cultura no s.eu parecer datado de 13-11-1958; nâo menos monumental foi o parecer do senador Aloisio de Carvalho. n~ 284, de 7-7-1962. ambos foram de real peso no encaminhamento a contento do projeto originário da própria classe. Estes dois documentos. a Exposiçao de Motivos do Conselho Federal e ainda a Exposiçi!o de Motivos de Levy Carneiro. (do velho regulamento) silo pe­ças de inestimável valor histórico. Eis por que seus autores mereceram expressa lembrança neste estudo:

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Com tantas e sérias imposições e deveres há, decerto que em menor quantidade, prerrogativas que são legalmente outorgadas ao advogado, co­mo condição sine qua non do seu ministério de defesa (defensor do Direi­to), e de cujo rol extraem-se as seguintes: exercer, com liberdade, a profis­são, em todo o território nacional, na defesa dos direitos ou interesses que lhes forem confiados, fazer respeitar, em nome da liberdade de defesa e do sigilo profissional , a inviolabilidade do seu domicílio, do seu escritório e dos seus arquivos; ingressar livremente em dependências do Fórum, reparti­ções públicas, delegacias, presídios ou onde quer que deva, o advogado, praticar ato ou colher prova ou informação útil ao exercício profissional, dentro ou fora do horário regulamentar, desde que se ache presente qual­quer funcionário; reclamar. quando preso em flagrante por motivo do exercício da profissão, a presença do presidente da Secçao local para a la­vratura do auto respectivo (art. 89, EOAB)

Instituída sob a forma federativa (com Conselhos Seccionais, nos Esta­dos e Territórios), possuindo personalidade jurídica própria (assim como suas seccionais) , a Ordem é coordenada. no âmbito nacional, pelo Conse­lho Federal , seu órgão supremo, composto de delegados das seccionais , de­mocraticamente eleitos pela classe. Dai por que se diz que o Presidente do Conselho Federal , que é o mesmo Presidente da Ordem dos Advogados do Brasil , é o intérprete maior do pensamento da classe que tão altos interes­ses e deveres incorpora.

• Na Carta Constitucional de 1946, a Ordem foi «inscrita como órgão au­xiliar do Poder Judiciário, na alta missão de recrutamento para o ingresso na Magistratura vjtalícia (art. 124, lll(*l). Passou a ter, assim, existência co­mo órgão ao mesmo tempo institucional e constitucional, com função ne­cessária, além das corporativas»(l9J.

Bem se vê que a natureza jurídica da Ordem tem rhuito de público (au­tárquico), sem que, no entanto, haja qualquer redução de sua autonomia plena.

Várias vezes discutiu-se sobre essa híbrida conotação jurídiCa, quando se pretendeu restringir a independência da Ordem, submetendo-a ao Tribu­nal de Contas da União, ao Ministério da justiça (1955) e ao Ministério do Trabalho (1974) .

Por não administrar dinheiro ou bens públicos, por não estar subordi­nada à fiscalização permanente do Governo, ou à nomeação do seu órgão

(*) Essa norma na atual Constituição (EC n? 1/ 69) acha-se no art. 144, I.Vide, ainda, nesta mesma Constituiçllo. a participaçao dos advogados em nossos Tribunais: no TFR (art. 121). no TST (jlrt. 141, § 1?, a), no TSE (art. 131 11) e nas Justiças estaduàis em todos os tribunais (art. 144, IV) .

(29) Gueiros. Op. cit. acima nota 23, pág. 53.

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de direç~o pelo Poder Público, n~o se inclui a Ordem entre as entidades su­jeitas à prestaç~o de contas ao TCU. Esta foi , sinteticamente, a conclusão a que chegou o eminente Dario de Almeida Magalhães, que ainda ensina:

«Úrgão de cooperação com a Justiça e indispensável ao bom desempenho desta. a Ordem, pelas finalidades que lhe são reserva­das, executa, assim, inquestionavelmente, um serviço público es­pecializado de caráter permanente e de natureza daqueles que só podem ser realizados por entidade estatal, ou por entidade a q!Je se transferiu o atributo específico da autoridade, isto é , o imperium. Na realização de sua tarefa e no exercício de seus poderes, a Or­dem não está subordinada senão à lei.»(30l

Com tais precisas ponderações jurídicas deste consagrado administrati­vista, pôde a OAB livrar-se das ameaças da subordinação.

Outras lições(*) de venerandos mestres atestam a necessária insubmis­são da Ordem:

«Não há o que se discutir: considere-se ou não a Ordem como autarquia, as disposições legais referentes a esta Mo se lhe apli­cam.>> Adroaldo Mesquita Costa.

«Se é incontroverso o caráter publicístico da Ordem, tam­bém inequívoco se afigura o regime de direito singular a que está submetida.>> Paulo Alberto Pasqualini

<< . é uma entidade (a Ordem) que integra a própria estrutura do Estado de Direito, com atribuições que só podem ser exercidas precisamente sob condições de não sujeiçao, de não vinculação a qualquer dos Poderes.>> José Ribeiro de Castro Filho.

«Para o desempenho de sua posição no plano das institui­ções ligadas ao funcionamento do Poder Judiciário e de sua incumbência de zelar pelas prerrogativas dos advogados e de seus clientes , ante os órgãos da administração pública, neces­sita a Ordem de plena liberdade de ação.>> Carlos Medeiros da Silva.

«No longo itinerário da OAB se firmaram marcos definitivos, o prímP.iro dos quais assinala a natureza peculiar da nossa instituição, como pessoasui generis do Direito Público. » Prado Kelly.

(30) Sodré. Op. cit. acima nota 2, pàgs. 250/ 252.

(*l Vide os referidos pareceres. na íntegra. in As Razões da Autonomia da Ordem dos Advo­gados do Brasil. Conselho Federal da OAB. Rio de Janeiro. 1975.

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«0 que mais importa é saber-se que à Ordem dos Advo­gados do Brasil nao se aplicam as regras jurídicas referentes às autarquias ou entidades paraestatais .» Pontes de Miranda.

«Essa autonomia nao constitui uma peculiaridade nossa, mas sim um imperativo, em todos os países não ditatoriais, do papel do advogado. por vezes chamado a atuar contra autoridades públicas e até contra o próprio Estado.» Seabra Fagundes.

Todavia, e em que pese essa sagrada autonomia legal da Ordem (art. 139, § 1?, EOAB). que aliás é a garantia da autonomia individual do advo­gado, para o notável administrativista Themistocles B. Cavalcanti, ela «não perde a sua natureza especificamente estatal; a sua personalidade jurídica, qualquer Que seja a forma orgânica que tomar, será de direito público, por­que a sua capacidade jurídica é de direito público, inconfundível com a das inúmeras entidades de direito privado>>(11 l. O advogado «no seu ministério privado presta serviço público, constituindo, com os juízes e membros do Ministério Público, elemento indispensável à administraçao da justiça» (art. 68, EOABL não havendo, é certo, qualquer hierarquizaçao entre estes ele­mentos (art. 69, EOAB). Esse munus público já era reconhecido na advoca­cia, entre nós, desde o Aviso Ministerial n? 326, de 15-11-1870.

Enquanto a maioria das nossas corporações profissionais congêneres surge em meio ao fenômeno administrativo da descentralização ou autar­quizaçao de serviços , a Ordem, como vimos , exsurge ao longo de um pro­cesso de paulatino aperfeiçoamento institucional que envolve, também, é bem verdade, necessidades profissionais. Tem, demais disso, certos deveres (prestaçao gratuita de serviço ao necessitado) e determinadas atribuições (compõe um dos poderes do Estado, ou seja os tribunais, defender a ordem jurídica) conferidas em geral aos advogados e em particular a seu órgão de classe, que comprovam a natureza e as finalidades da Ordem, as quais são diversas das outras dignas corporações profissionais.

Versando a questão, leciona Nehemias Cueiros: «a independência ne­cessária do advogado é a mesma independência do Juiz»02l. À vista disso, o órgão que congrega esses profissionais há de ter plena independência pa­ra defender essa prerrogativa (art. 89, I. EOAB) do advogado e máxime para defender, com autoridade, a ordem jurídica, a Constituição da República, a boa aplicação das leis e etc. (art. 87, I, EOAB). além da «defesa burocrá-

(31) Ca valcanti. Themistoc les Branda.o. Tratado de d ireitO administrativo. 4~ ed., Rio de Janei­ro. Freitas Bastos. 1960, v. 11 , pág. ZlO.

(32) Ibidem . pág. 78.

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tica»(*J dos interesses especificas da profissão. De efeito, os advogados e posteriormente a OAB sempre se fi zeram presentes nos momentos históricos mais agudos do País . jamais os chamados interesses profissionais imediatos superaram a sensível consciência sócio-política da OAB. A sociedade. o Di­reito, a Justiça são e sempre foram perenes compromissos da classe dos Ad­vogados perante a Nação brasileira, que. aliás, não se confundem, de mo­do algum, com a praxis político-partidária. A OAB, mais do que casuístico relacionamento profissional , mantém com a sociedade profunda simbiose política. Isto é fato de rigorosa observação histórica.

Quiçá se explique assim a intolerância de certos regimes e governos para com os advogados. Napoleão pretendeu cortar-lhes a língua, impedindo-os de se servirem dela contra o governo. No entanto. a força da utilidade social da profissoo fê-lo convencido da necessidade de se restabe­lecer a Ordem dos Advogados, isto em 1811(33!,

Na Rússia comunista, a par do reconhecimento da necessidade funcio­nal da profissão, reduziram-na a simples serviço prestado por funcionários públicos. (34)

VI:

Nestas águas turvas é sempre oportuna a lição bíblica:

<<Praticar a justiça é alegria para o justo, mas espanto para os que praticam a iniqüidade» (Provérbios, 21 :5) .

A propósito, recolhamos as galvanizantes palavras de 5.5. o Papa Paulo

«Ninguém talvez, a não ser o sacerdote. conheça melhor do que ele (o advogado) a vida humana sob seus aspectos mais varia­dos, mais dramáticos, mais dolorosos, por vezes os mais defeituo­sos, mas não raro também os melhores. Não é. portanto. de admi­rar tenha sido o advogado, desde a antiguidade. o candidato natu­ralmente indicado para as funções políticas ou encargos públi­cos. »(35)

~em embargo, a advocacia nêl.o é apenas uma profissão liberal. nem simples munus público, é mais do que isto; ela é uma função pública exer­cida por particulares, relevo merecido cuja contrapartida é a exigência de grande responsabilidade na atuação profissional. O advogado exerce, de fa­to, função pública sem ser servidor público. f que, inobstante sua larga fai-

(~l Essa el!pressao e do bastonário português Dr. Mário Raposo. citado em esplêndido traba-lho do Ptof. Nelson Saldanha, intitulado - A OAB-PE e sua trajetória. Recife, 1982.

(33} Sodré. Op. cit. acima nota 2, pág. 284

(34} Gueiros. Op. cit. -acima nota 23. pág. 8 .

(35) Sodré . Op. cit. acima nota 2, pág. 280.

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xa de atividade privada, estará ele sempre prestando serviço público como «elemento indispensável à administraçao da Justiça» {art. 68, EOAB). Eis a origem das prerrogativas profissionais, que, de si, não se confundem com privilégios. Estes promanam de mera discriminaçao; já as prerrogativas indi­cam o legal reconhecimento de necessários pré-requisitos. Até mesmo no flrocesso de adequaçao do Direito, sobretudo do Direito dito estatal ou po­sitivo {creio em um Direito supra-estatal), os advogados exercem papel de relevo. lutando, pois, pelo aperfeiçoamento, pela eqüidade, pela humani­zaçao e sobretudo pela legitimidade da legislaçao, ou mantendo acesa a chama do estudo e da reflexão profunda acerca dos princípios mais gerais ou universais do Direito, os advogados interferem, com grande autoridade moral e científica, naquele processo. No mister de defender o Direito e a Justiça, ou outros interesses gerais da sociedade, os advogados, iterativa­mente, estarão emprestando ao desenvolvimento jurídico o valor de sua for­mação humanística, como, aliás, concluiu magistralmente Miguel Reale:

«0 advogado deve preservar contra tudo e contra todos o cu­nho liberal e humanista de sua profissao liberal, porque fundada na liberdade e convicça_o científica; humanista, porque tem como fun­damento a dignidade da pessoa humana e a livre afirmação das in­finitas tendências e inclinações do homem.»(36)

Ao lado desta atuaçao junto aos órgaos estatais, máxime os legiferan­tes, em prol da coletividade. o advogado também promove interesses nao gerais perante aqueles órgaos. É o chamado lobbyingC*l que, aliás, já nao mais ostenta, nos países mais desenvolvidos, a conotaçao de ilicitude ou de corrupção, mas sim de simples e regular veiculaçao direta de certos interes­ses nao gerais.

IV - A ÉTICA PROFISSIONAL DOS ADVOGADOS

A Ética profissional é o conjunto de princípios que regem a conduta funcional de determinada profissao. Está dividida a Ética em: Deontologia - ciência dos deveres e Diceologia ciência dos direitos. Nós, os ad­vogados, estamos, desde tempos imemoriais, submetidos a uma moralidade absoluta de extremo rigor . Qual a razao desta extrema moralidade profissio-

(361 Sodré. Rui A/.evedo. O advogado, a regulamentaçao e a ética profissional. Sao Paulo. Rev. dos Tribunais. 1963. pág. 38.

(*) Nos EUA. após a grande maioria dos Estados ja ter regulado o lobbyíng . surge. em 1946. precisamente em dois de agosto, o Federal Regu/ation of Lobbying Act que reconhece, le­gitima e disciplina a postulaçao (aprovaçao ou rejeiçao de projeto de lei) perante o legis­lativo Federal. Já se disse que o lobbying é a tercei ra Câmara ou o governo invisível que comanda o Congresso Americano. O próprio presidente Franklin Roosevelt. com sua imensa autoridade moral. animou certos grupOS extraparlamentares para influirem. pelo lobbying. sobre a legislaçao que apoiaria o New Oeal.

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nal? É que somos essencialmente livres. Obedecemos apenas à nossa cons­ciência que é o único árbitro de nossa atuaçao. Vem daí que sobre o advo­gado; como se vê, pesam tao-somente servidões voluntárias. Por essa e ou­tras prerrogativas pagamos sempre o alto preço dos grandes deveres. Daí por que, segundo E. Couture, «a advocacia como ética é um constante exercício de virtude>)(37l. Danet afirma que «pode,-se viver sem talento, mas nao se vive sem honra>> (3Bl . Sem dúvida, para o advogado, esta é uma ver­dade absoluta. «A autoridade do advogado será tanto maior quanto menos pasto der à crítica)), eis a norteadora exortação de Maurice CarçonC39l.

Na medida em que o advogado nao se subordina na sua atuação pro­fissional a nenhum poder humano, como disse Rui Barbosa!40l , a não ser à sua própria consciênc ia e à lei, cresce a sua necessidade de balizamentos éticos . «Para que possamos ser livres, devemos ser escravos da lei», ditosa e atual esta reflexao de CíceroC41l. Assim também para Angel Ossório: «a reti­dao de consciência é mil vezes mais importante Que o tesouro dos conheci­mentos(42l.

Os nossos valores ético-profissionais, quanto mais rigorosos, melhor garantem as nossas prerrogativas. conquistadas com muita luta e ardor e que nos são legadas. de geraçao em geraçao, como honroso galhardete. Iludem-se os que, à guisa de originalidade, pregam por maior liberalização ético-profissional, por maior desprendimento dos nossos valores superiores de eqüidade e de humanismo.

Desavisadamente, estes companheiros conjuminam contra o Direito e a Justiça para se subjugarem a descompromissados interesses imediatos (eco­nômicos e/ ou políticos), invariavelmente intensos aos anseios mais caros à humanidade e à nossa profissao.

Se é verdade que o Direito vem se marginalizando, transformando-se em subproduto das relações de produçaoC43l, conseqüentemente os seus

(37) Sodré. Op. cit. acima nota 2. pág. 64 .

(38) Sodré. Op. cit . acima nota 36. pág. 170. (39) Apud. Azambuia. Ruy Rodrigo Brasileiro. ftica profissional do advogado. Revista do Cur­

so de Direito da Univ. fed. de Uberlândia. Uberlândia. 112(12): 297. 1983. (40) Apud. Sodré. Op. cit. acima nota 2, pág. 48. (41) B.arata, Júlio. Ministro do Trabalho e Previdência Social. Discurso proferido na solenidade

de inauguraç~o do Jnst. dos Advogados do DF. em 11-08-70. Rev. da OAB/ DF. Brasília. 2:95, 1970.

(42) ,A,pud. Osório, Antônio Carlos. Humanismo e técnica do advogado no desenvolvimento brasileiro. Rev. da OAB/ DF. Brasília, 2:129, 1970.

(43) Dantas. San Thiago. A educaçao jurídica e a crise brasileira: aula inaugural do curso da · faculdade Nacional de Direito. 1955. In Encontros da UnB. Brasília, Univ. de Brasrlia,

1978, pág. 53.

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profissionais vêm perdendo importância social. Devemos então lutar contra esta devassidão (e não contra o Direito} repensando o que carece ser repen­sado e melhorando a crença popular nos fins do Direito. Jamais, no entan­to, rendendo-nos às astúcias da razão fácil, ou às ladinas propostas de esva­ziamento axiológico do Direito e da advocacia, cuja função social, historica­mente imprescindível, já foi sobejamente ratificada.

«Os bárbaros regem-se por instintos. usos e sentimentos ele­mentares, sem terem deles qualquer consciência. Porém, quando o Direito é decretado e se torna consciente, desaparece todo o acaso da sensação, todo o contingente das opiniões, a vingança, a com­paixão e o egoísmo.»

Eis a grandiosa elucidação de Kant(44J.

Adverte o jurista de nota, Manoel Pedro Pimentel, que «a ética profis­sional não é absolutamente um empecilho para o sucesso. Ao contrário. So­mente podem chegar aos cimos da carreira aqueles que forem dignos do título que ostentam»{4Sl. É que «as regras éticas silo para o advogado tao ne­cessárias como, por exemplo, as regras de trânsito para o motorista», segun­do o magistério de Azevedo Sodré(46l.

Em conferência, por ocasião da entrada em vigor do nosso Estatuto, o grande bastonário Nehemias Gueiros proferiu essa inexcedível lição aos ad­vogados: «A Ordem é o seu templo e o seu Tribunal. A Ética é o seu Evan­gelho e o seu próprio Código Penal. O Estatuto que hoje entra em vigor é a sua lei»(47l.

~ O primeiro Código de Ética Profissional organizado em toda a América do Sul foi o do Instituto dos Advogados de Sao Paulo. Data de agosto de 1921. e foi elaborado pelo Dr. Francisco Morato, então presidente do Insti­tuto. Eram apenas recomendações morais, e sem poder coercitivo, de uso restrito aos associados daquele Instituto. Este código modelou os dos demais Institutos dos outros Estados e, em 1922, o Instituto dos Advogados Brasilei­ros, a par da decisiva influência de Levy Carneiro, adotou-o como seu, pas­sando então a vigorar para todos os advogados brasileiros associados, ainda como simples recomendações morais.

(M) Radbruch, Custav. Filosofia do Direito. Trad. Prof. L. Cabral de Moncada. 6~ ed., Coim­bra, Armenio Amado. Sucessor, Coimbra. 1979, pág. 191

(45) Gil. Otto. Da necessidade do estudo da deontologia jurídica nos cursos de bacharelado. Rev. do Instituto dos Advogados do DF. Brasília. s.n.: 97, 1977.

(46) Sodre. Op. cít. acima nota 2, pàg. 59.

(47) Cueiros. Op. cit. acima nota 23. pág, 45.

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Com a criaçao da a~dem, em 1930, atribui-se-lhe competência para votar o Código de Ética Profissional, ouvidos os Conselhos das Secções e as diretorias das Subsecções (art. 107 do antigo Regulamento). Em maio de 1933, o Conselho Federal recebeu do IAB projeto do Código de Ética (serviu-lhe de modelo o Código do IA/ SP, de f92\) que, discutidoíndusive pelas Seccionais da Ordem, e com algumas emendas. foi aprovadO em · 25-7-1934 Sua vigência começou em todo o País em 15-11-1934.

O nosso Código gg Ética, deve-se ressaltar, não é apenas um repos itó­rio de deveres e de interdições. E também um faro( a iluminar os problemas de ê:onsciª-~Zii; d~ c~da advogado no seu dia-a-dia profissional - · · - -- -

. - . . """ ... . _.. ·-·--Pelo Estatuto atual. só ao Conselho Federal, ouvidas as Secções, com­

pete alterar o Código de Etica (art. 18, XIII , EOAB). E ainda é competência do Conselho Federal cassar ou modificar atos de autoridades da Ordem que contrariem o Código de Etica (art. 18, XII , EOAB). Mais que meros conse­lhos, é dever, legalmente institurdo, a observância dos ditames do Código de Ética por todos os advogados (art. 86, IV, EOAB). E mais, é infraç~o dis­ciplinar transgredir preceito do mesmo Código (art. 103, L EOAB). Aliás , é bem de ver, muitas das regras do nosso Código de Etica foram consignadas (como deveres profissionais) pelo Estatuto dos Advogados . Eis que a cons­ciência ético-profissional da Classe já estava bem sedimentada. Ademais, o próprio Código já se afigurava como uma emanação da consciência da pró­pria classe.

Convém dizer também que a dignidade e a respeitabilidade social do advogado reclamam permanente vigilância da Ordem, tanto no que se refe­re ás práticas reiteradas que denotam a inépcia profissional (art. 110, IV, EOABL cuja apuração compete à Comiss~o de Seleção (e não a de Etica e Disciplina) no que pertine aos desvios ético-profissionais e à fundamental solidariedade da classe na defesadas prerrogativas.

Com razão , anota Azevedo SodréC48J que:

«Comprimido entre a lei e a moral , o advogado vive momento histórico, em que ninguém quer respeitar a lei e, muito menos ain­da, viver segundo os preceitos morais. Uma época de subversão da ética como a atual é, indiscutivelmente, hostil ao Direito, que é re­gra de conduta. E, portanto, época adversa à atividade do advogado - o paladino do Direito)).

E, arrematando, o nosso emérito doutrinador da advocacia assegura:

«Contra esse ambiente em que atua, a melhor defesa do advo­gado é , sem dúvida, o Código de Etica, como esteio da consciência

(48) Sodré. Op. cit. acima nota l, pág. 438.

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profissional. assim como o Estatuto é a garantia de sua independên­cia».

Quanto a alguns colegas que transfogem da habitual elegância e corte­sia para o grotesco do ataque pessoal e escandaloso, ecoam-nos as palavras do grande Maurice Garçon:

«Nada mais prejudicial para o êxito de uma causa do que a in­civilidade. Todos os termos que o advogado empregue devem ser medidos.»(49)

O advogado. portanto, se de seu natural ou por educação, não for um cavalheiro, há de. ao menos, parecer tal por força de lei (art. 87, VIII e XIII, c.c. art. 103, XXIX, EOAB).

Ressalve-se, porém, que a combatividade do advogado, na defesa de seu constituinte e de suas prerrogativas não constitui senão mérito de cora­gem e firmeza de propósitos. Sobre isso eis o abalizado ensino do preclaro Pedro lessa:

«E próprio do advogado, quando fala ou escreve, usar uma lin­guagem animada, enérgica, veemente, pois só deve ser advogado quem tem a bossa da combatividade. Mas releva não confundir a animação da linguagem com o remoque soez; a energia da frase com a charra injúria das mariolas; a veemência das expressões com a gíria caluniosa, de que tanto abusam os dardanários das chicanas forenses» (SOl.

Com esteio em Kant, o Professor João Baptista Villela profere imensa verdade:

«Ü exercício da autodeterminação constitui, ao mesmo tempo, grandeza e dor, crescimento e pena, morte e ressurreição do ser hu­mano. Quem, pois, se recusa à liberdade não padece a angústia de decidir. Ao preço, porém, de não crescer. De continuar sempre me­nor, de um modo ou de outro, por preguiça ou covardia(S1l.

E expende, em arremate, que:

«0 homem só é feliz à condição de ser livre. Só é livre quando responsável. E só é responsável se os motivos de sua conduta estão dentro e não fora dele.»(52l

(49) Garçon, Maurice. O advogado e a moral. Trad. Antonio de Souza Madeira Pinto. Coim­bra. Arménio Amado. 1963, pág. 115 e 120.

(50) Gil. Otto. Op. cit. _acima nota 45, pãg. 97.

(51) Villela, Joao Baptista. Direito, coerçao & responsabilidade: por uma ordem social nao­violenta. Belo Horizonte, Ed. Fac. Direito da UFMG, 1982, pág. 31.

(52) Ibidem, pág. 32.

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Enfim, a crescente perda de prestigio que vem experimentando o Direi­to, a ética e, conseqüentemente, o advogado, tem, indubitavelmente, inú­meras causas. Sem embargo disso, cada advogado tem o dever de se per­guntar se aquele desprestigio não é, parcialmente, explicado por sua própria conduta individual.

V ~ O ADVOGADO E A EMPRESA

Ontem a divisão do trabalho do profissional da advocacia estava repre­sentada pelos civilistas e pelos penalistas. Com efeito, a dinâmica social­econômica, logo também a do Direito, ainda permitia tal polarizaçi!o da advocacia clássica. Hoje, no entanto, novas áreas de atuaçi!o se abrem para o advogado.

Da advocacia de partido e da advocacia em sociedade ~ esta, aliás, a mais funcional e eficiente forma de advocacia desvinculada passamos para a advocacia vinculada à empresa. Eis que a empresa moderna repousa sobre o tripé advogado, economista e administrador. Dai por que a advoca­cia de empresa é a nota marcante dos novos tempos. A profusi!o desordena­da de leis e demais atos normativos, o solapamento da livre empresa pela insaciada intervenção estatal em todos os níveis e direções, a celeridade e a segurança como dogmas da economia moderna, o crescer da consciência jurfdica do cidadão (operário, consumidor e etc.). todas essas contingências contemporâneas tornaram indispensável, na estrutura da moderna empresa, o setor jurídico.

A partir dai nasce a figura do advogado de empresa (ou advogado­empregado) que a prima facie parece irremediavelmente incompativel com os pressupostos básicos do exercicio da advocacia, ou seja, a liberdade e a independência. É que o Código de Ética assegura ao advogado a competên­cia exclusiva na orientação técnica da causa (Seçi!o 111, IV) e o Estatuto da Ordem consagra-lhe o direito de exercer, com liberdade, a profissão em to­do o território nacional (art. 89, I, EOAB).

Já a CLT, regulando a relação de emprego, conceitua como empregado «toda pessoa fisica que prestar serviço de natureza não eventual ao empre­gador, sob a dependência deste e mediante salário» (art. 3?). Como conci­liar a subordinaçtlo na relaçi!o de emprego, com a liberdade e independên­cia na relaçao de patrocínio?

Consoante o sistema adotado em cada país variará a solução. Assim, na Bélgica, França e em alguns Cantões da Suíça, não se admite advogado­assalariado. Ali o antagonismo é real. O advogado-empregado não pode postular em Juizo, limitando-se tão-somente à assessoria ciu consultoria.

No meio termo, entre a proibição e a liberação, temos o sistema ale­mão. O advogado-empregado (relação de emprego) ni!o pode representar

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em Juízo o empregador (relação de patrocínio), ressalvado o direito de pos­tular para outros clientes. Já em Portugal, Inglaterra e Estados Unidos da América do Norte (este em parte) o princípio é de nenhuma restrição no exercício da advocacia, mesmo quando há a vinculação da relação de em­prego.

Para Azevedo Sodré, há duas correntes pretendendo resolver o proble­ma, excluída uma terceira de tons ecléticos.

A primeira é a dos idealistas, filiados à orientaçao francesa, que eleva a profissão à categoria de sacerdócio, cuja remuneração é dada em forma de honorários (honra) e que significa compensação pelo tempo gasto, ja­mais retribuições de serviço prestado.

A segunda corrente não nega a vai idade dos requisitos de independên­cia e liberdade. Porém, nao os vê necessariamente como incompatíveis com a relaçao de emprego.

A questao hoje em dia tem outra configuração, diversa daquela que le­vou, em 1939, a Ordem dos Advogados em São Paulo a triLhar pelas razões da primeira corrente.

A CLT (art. 3?, parágrafo único) não distingue a espécie de emprego, a condição do trabalhador e o trabalho intelectual, técnico ou manual. A Car­ta Constitucional de 1934 (art. 123) equiparou, para todos os efeitos das ga­rantias e dos beneficios da legislação social, os que exercem profissões libe­rais.

O problema não se cinge, como pode parecer, à mera questão de pri­vilégio profissional. E, pois, mais complexa. É acima de tudo. uma questão de boa equação dos conflitos de interesses. Que valor teria um advogado que só devesse cumprir rigorosas ordens no seu serviço técnico? Um profis­sional da advocacia, quando sob qualquer temor, jamais será profissional­mente melhor que qualquer curioso da matéria.

O vinculo empregatício (e a subordinação funcional) e as prerrogativas todas elas previstas em lei federal (Estatuto dos Advogados) conferidas

aos inscritos nos quadros da OAB não são, modernamente, e em principio, incompatíveis entre si. A subordinação (e seus atributos) decresce na pro­porção inversa do nível intelectual do trabalho e da qualificação profissio­nal. São Tomás de Aquino, em sua iluminada Suma Teológica, já externava a consideração de que no operário o que prepondera é o opus (o trabalho do ponto de vista objetivo) e no labor intelectual o que predomina é a pes­soa do trabalhador (o trabalho visto pelo prisma subjetivoj(53J.

(53) Sodrê, Azevedo Ruy. O Advogado, seu estatuto e a ética profissional, Silo Paulo. Rev. dos Tribunais, 1%7, pág. Uq.

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Vejamos o que professa o mestre de nomeada internacional Jean Sava­tier (lançamos os termos entre parênteses):

«. em principio, ele {o advogado) deve servir aos interesses e obedecer às diretivas de seu cliente (empresa empregadora), mas somente se isso não o obriga a violar as obrigações de ordem públi­ca que lhe impõe sua missão social»(54l,

Durand et Vitu, mestres do direito trabalhista, do mesmo modo, doutri­nam:

«0 Contrato de Trabalho seria nulo se ele impusesse ao assala­riado obrigações contrárias às regras da consciência profis­sional. »(55)

Já o nosso insigne comercialista Rubens Requião, estudando o mercado de trabalho do advogado, observa que:

«A integração do advogado como colaborador da empresa, evi­dentemente, não o despe da dignidade profissional, nem de seus deveres éticos implícitos e explícitos da profissão.»(56l

Esta, aliàs, a regra do art. 483, letra a, da CLT. Em verdade o Estatuto dos Advogados {Lei Federal n? 4.215/63) e o Código de Etica Profissional {legalmente obrigatório) corroboram esse preceito da CLT.

Na primeira Conferência Nacional da Ordem dos Advogados ficou so­beranamente decidido:

«Cabe a nós, advogados de empresas, essa defesa, resguardan­do as nossas prerrogativas. Para tanto, apoiadas em dispositivos do Estatuto da Ordem e do Código de Etica e mesmo na própria Con­solidação das Leis do Trabalho, devemos recusar o patrocínio de causa que considerarmos ilegal injusta ou imoral zelando pela nossa competência exclusiva na orientação técnica, reservando ao empregador a decisão do que lhe interessar pessoalmente>>.

A conclusão, enfim, que se impõe é que o advogado pode ser empre­gado sem perder sua dignidade profissional, sem afetar sua independência e sua liberdade profissionais. Quando encontrar dificuldades referentes à dire­tiva a assumir junto ao empregador (empresa), deve o advogado, cônscio de

(54) Savatier, Jean. La profession libera/e, Paris, 1947, pâg. 305. Apud. Enciclopédia Saraiva do Direito. Sao Paulo, Ed. Saraiva, v. 5, 1977. pág. 42.

(55) Durant et Vitu. Traitê de droit du travail. V. 2. pâg. 246. Apud. Enciclopédia Saraiva do Direito, Sa:o Paulo, Ed. Saraiva, v. 5, 1977, pág. 42.

(56) Requiao, Rubens. A advocacia e o mercado de trabalho. Conferência Nacional da OAB. 6~. Salvador, 1976. In Aspectos Modernos de Direito Comercial. V. 11. Ed. Saraiva. 1980. pág. 145.

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seus deveres legais, procurar resguardar os interesses da empresa. sem, no entanto, usar de meios ilícitos e sem refugir às normas do bem comum e aos cânones da lei justa e certa. Ressalte-se. neste passo, que a obrigação profissional do advogado é de meios (envidar esforços para) , jamais se obri­gando por resultados(*) que de resto são condenados pela ética profissional. A empresa empregadora ao contratar um advogado - isto é, inscrito na OAB e ungindo pelas suas normas - não poderá jamais ignorar que os ad­vogados (e não os meros bacharéis) têm rigorosos preceitos ético­-profissionais, legalmente compulsórios (Lei n? 4.215/63, art. 87, IV).

Não podem os advogados renunciar, sob hipótese alguma. às suas prer­rogativas. Impõe-se-lhes, como sempre, aliás, enfrentar todos os riscos para mantê-las dignamente respeitadas. Principio este que prevalecerá nas vinte e quatro horas do dia, nos sete dias da semana e nos doze meses do ano, tal é sua importância.

A advocacia empresarial está a exigir deste profissional melhor qualifi­Cação técnica, sensibilidade econômica e certa dose de destreza administra­tiva, pois é mais fácil ele aprender a administrar que o administrador apren­der a advogar. Bem certo é que a empresa precisa estar ciente de que não pode resolver os problemas de «eficiência» dos seus advogados, adotando os meios de controle comuns à massa de seus empregados. E mais, é mister que o empregador - que hoje perfaz a figura clássica do cliente individual - compreenda bem as imposições éticas e legais do advogado.

VI - NOVOS PROBLEMAS PROFISSIONAIS

Por outros problemas atravessa a moderna advocacia. Há grande defa­sagem entre o que as escolas ensinam e o que as empresas estão a exigir do advogado. Assim, é muito comum, no meio empresarial. a declaração paté­tica do administrador de que está disposto a afrontar o Direito para cumprir sua estratégia administrativa, remetendo as eventuais repercussões às barras dos tribunais. Ora, isto denuncia, a mais não ser possível , o declínio do prestígio e da confiança no Direito e nos seus profissionais. E, é claro, na base dessa impatriótica descrença está. entre outras causas(*), a situação las-

('.*) A esse respeito disse bem o grande Rui Barbosa: «Nó.s outros. advogados, nao dispomos se­quer, nas relações com a clientela, do poder que exercem os médicos sobre os seus doen­tes: na medicina. entre a ciência e a cura, apenas intervêm os decretos da Providência; ao passo que. no fo ro. entre o direito e a sentença, se metem os erros da justiça humana, a cuja discriçao esta o destino das causas» - Cf. in Rosa, Eliasar. «Dicionário de Conceitos para o Advogado•. Ed . Rio. RJ. 1974. pàg. 79.

(* ) Certamente a causa fundamental disto é a débil visll.o do administrador, ·tao-somente tecno­burocrata, de que os valores ético-humanísticos, logo os jurídicos. podem. impunemente. ser preteridos. t como salienta o grande administrativista argentino Cordilho: «0 .desenten­dimento entre as cil!ncias jurídicas e as nll.o jurídicas parte de uma crença errada de que o Direito deve ser mero instrumento das técnicas ou ciências nll.o jurídicas, absolutamente

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timável do ensino jurídico. Eis que este ensino forma, com exclusividade, profissionais integrantes de um dos poderes do Estado (o Judiciário) e a matéria-prima de outro dos poderes (a lei, para o Legislativo)

A pretexto de rapidez e modernização na formação profissional, anulou-se no alunato, tanto a consciência de que o Direito é o caminho pa­ra a Justiça como a capacidade de reflexão sobre o fenômeno social é a norma. O exegetismo ou os antolhos positivistas na candente observação do nosso festejado mestre Roberto Lyra Filho(57) são os adjetivos que hoje bem qualificam os cursos jurídicos, cuja grande meta é a mera preparação quan­titativa de profissionais hábeis na leitura e na aplicação sem maiores ques­tionamentos axiológicos do Direito Positivo.

Este tipo de ensino que anula o senso critico do estudante e lhe infun­de a idéia redutora do Direito estatal, único e hermético não forma e nem mesmo bem informa, tão-só urgencia mão-de-obra barata e servil, que é o quanto basta para tornar o Direito instrumento maleável a qualquer con­formação sócio-política e econômica e às circunstanciais exigências da tec­noburocracia. (•I

No entanto, a intima natureza do fazer advocatício não se reduz á me­ra atividade técnica, pois esta é simples suporte para realização do oficio do advogado. O humanismo em nossa profissão constitui sua responsabili­dade histórico-social, hoje, aliàs, mais imprescindível que ontem e amanhã, decerto mais que hoje. Tópica e particularista, a técnica busca unicamente a racionalidade instrumental e a eficácia; já o humanismo é integral e global e eminentemente teleológico é, em suma, constante auto-indagação acerca dos fins da ação. A advocacia lastreada em técnica (cada vez mais exi­gente). mas, sobretudo. inspirada no humanismo por sua própria nature­za tem graves responsabilidades ético-sociais na busca de uma harmoniza­ção de valores. Sucede que a lei, o Direito e a justiça são concepções da razão, mas também do sentimento humano. Por isso que leciona o jurisfiló­sofo germânico Engisch: «a lógica jurídica é uma lógica filosófica e nao uma lógica técnica., (581

maleá.vel para qualquer coisa que o técnico queira fazer e que a deformaçao profissional do jurista faz com que ele tenda a oferecer a soluçao juridica que no momento é circuns­tancialmente aplicável, como a. única soluçAo viável» (Tratado de Derecho Administrativo I, B. Aires, 1974, pág. Vl-21. in «0 Advogado e a Formaçao Jurfdica». Tese apresentada na VI Conferência Nac. da OAB (Salvador 1976) pela Professora Ada Pellegrini Grinover).

(57) Brasilr Conselho Federal da OAB. Of. n? 667 /82-GP ao Ministro da Educaçao e Cultura. )an. 1982.

("') Sobre esta deformaçao do Direito e dos advogados, leia-se na obra de Gordillo. infrtulada «Tratado de Direito Administrativo». V. I. Bueno Aires, 1974, pág. VJ~21

(58) Engisch, Karl. Introdução ao pensamento jurídico. Trad. j. Batista Machado. 3~ ed., lis~ boa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1972, pâg. 2.

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Nossa prática profissional hoje carece de novos horizontes, para além da tradicional advocacia judiciária. O advogado há de ser um agente do progresso social, um conciliador das imposições tecnológicas e humanísti­cas, buscando fórmulas de segurança e de tranqüilidade sociais. Para tanto, sao mister novos conhecimentos Juriscibernética, Direito Econômico, Di­reito comparado(•), direitos sociais (interesses difusos) e etc.

O renascer da ênfase no estudo da Filosofia Jurídica é impostergável, bem assim a Etica Profissional há de lograr melhor atenção, já que tendo o Direito um vasto continente ético, nao é razoável que seus profissionais se tornem descrentes e insensíveis a estes valores que, reafirmemos, consti­tuem o justo preço ideal de seus direitos e prerrogativas.

Só com boa formação humanística, científica e ética é que o advogado moderno exercerá criticamente a função que hoje lhe compete de enge­nheiro social, artífice da construção de uma sociedade mais justa e livre. Assim, pois, a prática forense e o Direito legislado, embora importantes, não devem constituir-se em prioridades. Com essa reformulaçllo erradicar­se-ao as chamadas «vocações residuais» que se voltam para o estudo juridi­co, como denuncia o emérito Professor João Baptista Vi llela(S9). A reforma do currículo é, pois, imperiosa para se pôr cobro ao des.calabro da Prática Forense, que em sendo prática nllo deveria configurar-se como disciplina comum, mas sim como atividade complementar e extraclasse, que deve ser, ao lado do exame de Ordem, um dos pré-requisitos à inscriçllo nos quadros da OAB.

Com efeito, «quando a faculdade é benevolente, o Fórum é impiedo­so», eis a advertência de San Thiago Dantas que há de ser hoje enfatizada. Vale lembrar, a propósito, o queixoso discurso de Levy Carneiro perante o IAB, em 1938. Mais precisamente, a seguinte passagem:

«Avultam já os sintomas de declínio da nossa cultura jurídica. Nos tribunais. Na legislação. Na publicística. Nas escolas. Na práti­ca da vida».

(*) Sobre o ensino do Direito Comparado no Brasil, merece nota a lei de fundaç:ip dos cursos juridicos que exigia conhecimentos plenos do Latim, Inglês e do Françês; obrigava «o es­tudo da jurisprudência análoga das nações civilizadas». O Decreto n? 7.247, de 1g..4-1872, ordenava que no estudo do Direito Constitucional, Criminal, Civil e Administra­tivo fosse sempre feita a comparaça.o entre a legislaça.o nacional e a dos povos cultos (art. 23, § 3?). O Decreto n~1 9.360, de 17-1-1986, criou a cadeira de Direito Privado Compara­do. Cf. In Vallada.o, Haroldo «História do Direito, especialmente do Direito brasileiro». Parte 11, RJ. Freitas Bastos, 1973. pág. 23.

(59) Coelho, Inocêncio M. A reforma universitária e a crise do ensino juridico. Rev. OAB/DF. Brasília, 8: 209, 1979.

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E mais adiante: «A legislaçao vai perdendo a sistemática, feita dia a dia, multi­

fária, incoerente, caótica, contraditória. Aplica-se mal, ao sabor de interesses de ocasii!o."f60l

A demagógica complacência com a mediocridade repele o critério do mérito intelectual, tanto na seleçao do corpo discente quanto na do corpo docente. Isto vem gerando entre nós (ni!o só no ensino) um obscuro quadro ao feitio de um darwinismo intelectual às avessas (os piores afastam os me­lhores).

Repleta de evidências é esta afirmaçi!o do ilustre Professor e membro do Conselho Federal de Educação, Afrânio Coutinho, dissertando acerca das deturpações do nosso ensino superior:

«E fantàstica a nossa capacidade de desmoralizar, abastardar, distorcer e desviar o rumo das melhores idéias e instituições. A uni­versidade está passando por este processo".f61l

Merece destaque, igualmente, a assertiva do Professor José Lamartine Correia:

«Uma escola cujos professores nao são homens capazes de re­fletir o Direito por si mesmo, mas são meros repetidores de livros alheios, já, por si mesmo, se autodefine como uma subescola de Di rei to". (62)

Ainda uma vez mais, voltemos à acuidade do mestre San Thiago Dan­tas, que, em 1955, pronunciava tais palavras sobre a crise do ensino jurídi­co:

« ... se há problemas novos sem solução técnica adequada; se há problemas antigos cujas soluções se tornam obsoletas sem serem oportunamente substituídas; se aparecem novas técnicas, que o nos­so meio não aprendeu e assimilou; em grande parte isso se deve ao alheamento e à burocratização estéril das nossas escolas, que passa­ram a ser meros centros de transmissão de conhecimentos tradicio­nais, desertando debates dos problemas vivos. Daf a necessidade de se fazer uma revisão da universidade, para recuperaçào plena de

(60) Araújo, Paulo Barreto de. Discurso proferido no encerramento da VI Conferência Nacío~ nal da OAB. In Conferência Nacionaf da OAB, 6~. Salvador, 1976. Anais. Salvador, 1976. pág. 87.

{61) Coutinho. Afrânio, Universidade. instituiça.o critica. Ed.Rio de Janeiro, Brasileira. 19n, pág. 53.

(62} Correia, José lamartine. Por estranho Que pareça, estudar ainda é preciso: djscurso proferi-do na OAB/RJ. em 13-1-81 Rev. OAB/RJ de Jan .. 16:45, 1981

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seu papel elaborador dos novos instrumentos, que a vida social re­clama.»(63l

A desastrosa «democratização do ensino», que num toque de mágica fez nascer faculdades onde o grupo escolar ainda era novidade, e fez colé­gios e ginásios transformarem-se em faculdades, que tornou a docência um «bico», fez também com que o custo econômico-social do curso superior, amiúde sacrificante, se agravasse, na medida em que a avalanche de profis­sionais de nível superior não encontra razoáveis perspectivas de realização profissional, tampouco intelectual

No ensino jurídico, tal situação tem mais outro gravame, qual seja, ao baixar-se o nível intelectual do advogado, abaixar-se-á, conseqüen,temente, o nível dos magistrados, ou seja, de um Poder do Estado. O notável Cala­mandrei em sua bela obra intitulada «Eles, os juizes, vistos por nós os Ad­vogados» muito bem divisou esta correlação.

Na mesma linha de soluções falaciosas de nossos problemas, buscou-se resgatar o despreparo com a facilitação das exigências legais. Assim, por exemplo, o exame de Ordem (o bar examination, dos americanos] quase que desaparece, como instrumento de seleção profissional. Uma vé'z com­provado o estágio profissional realizado na faculdade, nada mais é exigido para o ingresso na OAB, muito embora para a Magistratura e para o Minis­tério Público haja seleção por concurso.

Ora, a razão destoutra demagógica deturpação era clara. Com a multi­plicação das faculdades de Direito, seus «donos» facilmente lograram, com o hipócrita e dissimulado argumento da eficiência presumida, com base na aprovação e fiscalização dos cursos pelas autoridades federais, convencer os nossos parlamentares a editarem a Lei n? 5.842/72, cujo fim era instituir o estágio profissional interno, ou seja, realizado nas próprias faculdades, à margem, portanto, da OAB, que legalmente era e é o órgão de seleção pro­fissional. Pois bem, ao lado do estágio profissional vinculado à Ordem (art. 50 do Estatuto e Provimento n? 33/67) e, ainda, do alternativo exame de Ordem, surge o novo estágio profissional (a chamada disciplina Prática Fo­rense). Essa inovação foi sem dúvida «a mais nauseabunda ficção, uma mi­serável farsa», palavras ditas por Calamandrei(64l, acerca do estágio profis­sional como sistema de seleção e capacitação profissional na Itália, cuja aplicação é plena em nosso caso.

{63) Apud, Sá, Constança Pereira e Ferreira Filho, Zafer Pires. O advogado e a empresa. Rio de janeiro. OAB, 1982, pâg. 22.

{64) Apt.Jd. Sodré, Azevedo Ruy. Advocacia. ensino jurídico e a prâtica profissional. In,- Confe­rência Nacional da OAB, 6~1 Salvador, 1976. Anais. Salvador, 1976, pág. 248.

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As novas formas de atuaçao do advogado vêm de exigir adequações, no Estatuto e no Código de Ética, para prevenir desvirtuamento ético­profissional e robustecer os princípios que norteiam a profissao. O estabele­cimento do salário profissional mínimo, a ampliaçao dos atos privativos, maior eficácia na defesa das prerrogativas, sAo também reclamos inadiáveis dos dias coevos.

No que se refere aos atos privativos, hao se admite que, ainda hoje, funções como as de Consultor, Assessor, Diretor Jurídico, ou seja, ativida­des que envolvem análise, orientação, elaboração, supervisão e pesquisa jurídico-legal, ou mesmo o patrocínio extrajudicial de interesses lícitos ou legalmente amparados (inclusive os chamados interesses metaindividuais), de entidades privadas ou públicas, nao constituam atos ou funções privati­vas dos inscritos nos quadros da OAB. Observe-se que esse pleito já estava atendido nos parágrafos do artigo 71 do projeto de nosso atual Estatuto; pa­rágrafos estes, que foram, porém, cancelados na C.1mara dos Deputados. Restabelecendo-se , por impreterível necessidade, as normas daqueles dispo­sitivos, as prerrogativas advocatícias, estariam plenamente fortalecidas, tan­to para os tradicionais advogados-escoteiros (vinculados apenas à relação de patrocínio, ou seja, aos compromissos de atuação no foro) quanto aos advogados-empregados.

Tradicionalmente definida como ciência e arte, a advocacia é cada dia mais um oficio complexo que requer técnica apurada, base cultural ampla, especializada habilitação e sobremodo sólida formaçAo ética{65l. Estas ca­racterísticas, aliás, sao indispensáveis também aos magistrados e membros do Ministério Público (estes, de certa forma, exercem uma advocacia es­pecífiCa)

Diz-se que, quando os juízes tiverem medo, ninguém dormirá em paz. No entanto, poucos dormirAo em paz, quando os advogados se acomoda­rem - «a acomodação é o sepulcro das gerações vencidas»{66) - ou o Mi­nistério Público se fi zer «Patrono da autoridade executiva e não da lei»{67l . Quando o Estado de Polícia se sobrepõe ao Estado de Direito, o advogado acha-se então desgraçadamente entre dois extremos: ou se rebela ou se aco­moda.

(65) Dunshee de Abranches, Çarlos Alberto. Advogados para a década de 80. Rev. OAB/ DF. Brasllia. 9:233, 1980.

(66) Marinho, Josaphat. Exceçao e [egalidade: discurso. Brasília. 1969. Senado Federal.

(67) Fagundes. Seabra. O advogado e os regimes de fo rça: discurso por oc.asiao da inaugura­çao da nova sede da casa de Montezuma em Sao Paulo, em 25-8-1970. Rev. OAB/ DF. Brasília, 2:87, 1970.

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Com o advento da sociedade chamada pós-industrial(") e com a cres­cente escalada da implementaçao de avançadas tecnologias, torna-se cada vez mais vital o dado humano na rota do desenvolvimento. E, por certo, para o jurista (no lato sentido) enquanto especialista em humanismo a razão de todo o Di rei to é a pessoa humana não há a alternativa de con­templar, silencioso e indiferente, o acontecer humano.

Conquanto admirável o avanço em todos os setores do chamado co­nhecimento tecnológico. jamais esse progresso material será absolutamente sufíciente para ocasionar, indenemente, um rompimento com o ideário do humanismo e do Direito, posto que sua importância e ·necessidade social ja­zem no fato de que:

«A Justiça é o derradeiro escolho a que se agarram os que nau­fragam e os desenganados também. ,(68)

E ainda que mais não seja porque:

«Se o Direito não é tudo, é, todavia, condição primordial para que, na comunidade dos homens, surjam e se desenvolvam as ativi­dades mais diversas, a começar pela revelaçao de cada homem, en­quanto homem ... » (69l

Os registros históricos, aqui e alhures, indicam que todas as vezes em que aquele ideário e os principias jurídicos foram desrespeitados, ou mes­mo desmerecidos, mergulhou-se nas trevas do arbítrio.

Vale lembrar, nesse passo, que, já na Roma antiga, a corporação dos advogados perdeu sua autonomia e seu poder quando os tiranos se fizeram imperadores. De tal sorte o cerceamento do advogado redunda no cercea­mento do cidadão; o enfraquecimento da OAB representa o enfraquecimen­to da sociedade civil. E certo, em suma, que limitar as prerrogativas profis­sionais do advogado é restringir, de modo reflexo, os direitos inerentes ao cidadão.

Sucede que, quando já não há a quem recorrer, na busca de justiça, para a dirimência dos conflitos individuais, metaindividuais e do cidadão

(*) A expressao «Sociedade pós-industrial» significa a sociedade surgente, cuja base nao é a màquina (sociedade industrial). mas o conhecimento (a informação). a habilitação profis­sional e o serviço. Essa transformaçao econômico-social é pioneiramente estudada por Daniel Bell, professor de Sociologia de Harvard, na obra intitulada «O Advento da So­ciedade Pós-Industrial» (Trad. Heloysa de Uma Dantas). Ed. Cultrix, Sao Paulo. 1973.

(68) Pereira, Caio Mário da Sflva. Discurso pronunciado na abertura da VI Conferência Nacio­nal da OAB./n Conferência Nacional da OAB. 6~. Salvador, 1976. Anais. Salvador, 1976, pag. 43.

(69) Szklarowsky, Leon. Responsabilidade tributária dos administradores de empresas. Rev.

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OAB/DF. Brasilia, -8:123, 1979 (palavras de Miguel Reale, 11 Conferência Nacional da OAB, São Paulo).

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contra o governo, ressurge a barbárie da «justiça>> privada e da sensação pa­tética da guerra de todos contra todos (grupos de extermínio, terrorismo político, psicose do medo e da violência).

O injusto desprestígio que nossa Justiça vem experimentando - vide a jocosa crônica de Carlos Drumond de Andrade intitulada «Serginho quer ser Juiz, coitado!» (70l - injusto porque maior parte de culpa não lhe é imputá­vel. injusto porque sendo tratada como mero programa de ação governa~ mental e nao como Poder Constitucional , outra boa parte da culpa nao lhe cabe. Assoberbada de processos que, aliás, não é problema para Juiz, mas sim para o Estado - submersa no oceano das leis algumas ilegítimas, outras ineptas com deficiência de pessoal e de técnicas mais modernas e sobretudo carente de recursos financeiros, com todas essas mazelas, só mesmo o conhecimento de sábio, a bravura de guerreiro e a postura de san­to dos magistrados têm merecido compadecidas homenagens.

Nos Estados Unidos da América a estrutura operacional do Judiciário tem um custo que é, aproximadamente, 231 vezes maior que o último orça­mento do Judiciário no Brasil!71l. Já na pequena Costa Rica, a Corte Supre­ma de justiça recebe destaque no orçamento geral da Nação da oraem per­centual de 6% para custeio da Justiça nacional, cuja autonomia, como se pode avaliar, é absoluta. No Brasil , no entanto, raros são os Estados que consignam até 2% de seus orçamentos .gerais para o Poder judiciário e. a nível de União, tradicionalmente não se ultrapassa o percentual de 1%.!*1

Obviame·nte. Poder que nao pode não é poder. E mais, se um Poder se torna todo poderoso é porque, com certeza, ocupa o lugar no espaço deixa­do pelos outros.

Há de se convir que o elemento fundamental da Democracia é uma or­dem jurídica estável que torne adulto e consciente o povo. Assim, pois, a ordem jurídica não é um formalismo artificioso de bacharéis. Reputam-na, assim, aqueles a quem ela incomoda, porque ao poder pessoal, arbitrário e comandado pela vontade e interesses pessoais ou de castas, opõe o poder determinado por normas impessoais, elaboradas no interesse de todos e pa­ra garantir a todos contra a injustiça, a prepotência e o abuso. A ordem

(70) Andrade; Carlos Drun1ond. Serginho quer ser Juiz, coitado! Rey. Associaçao dos Magistra­dos Mineiros. Belo Horizonte, (1) :181 , 1983. Trans. do Jornal do Brasil.

(71) Judiciário dependente: O refugio da impunidade. Visilo . São Paulo, 14:36, abr .. 1984.

(*) Vide: Revista. da Associação dos Magistrados Mineiros (M-1AGIS) já citada, págs. 37/ 38 -Vide também nesta Revista (pãg. 90) o parecer do Prof . Geraldo Ataliba acerca da corre­ção monetária integral dos vencimentos dos magistrados, onde, aliás, comenta-se a deci­sao de dezembro de 1980 da Suprema Corte Americana, que determinou correçao mone­târia plena (defasagem entre valor real e nominal) para os irredutíveis vencimentos de ma­gistrado.

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jurídica, destarte, significa paz, nao a da submissao, mas a da justa segu­rança, a do bem-estar social e da justiça.

De notar que, tanto na esfera interna quanto na internacional, a paz é obra do Direito e da justiça da ordem social. É que, invariavelmente, a raiz da violência é a injustiça.

Precisamos, por outro lado, dar por encerrado o ciclo histórico do pri­vilégio na exploraçao econômica da Justiça, para que possamos passar ao ciclo da formaçao técnica dos serventuários {outrora tivemos tais cursos). mais afinado no concerto das nações civilizadas (v.g. Alemanha, Espanha e Argentina). (*J

A lei , hoje, é um estad.o tateante - «envolta na velha névoa infecta», usando o verso de T. S. Eliot - porque nao mais concordamos sobre <>s va­lores a serem, por ela, servidos; porque mercê de sua concepção, elabora­çao e até mesmo de sua aplicaçao, torna-se psicossocialmente desprestigia­da. A crise profunda do mundo contemporâneo. tao bem identificada por Hannah Arendt<**J no vácuo existente entre o passado e o futuro, e. ao de­mais, a antinômica questao da pretensao de certeza e segurança do Direito, diante da simultânea exigência, que se lhe faz, de não obstaculizar as mu­danças sociais(*l, eis a contextura histórico-social em cujo âmago a funçao (de tranqüila superaçao dialética} do homem do Direito, ao lado de outros profissionais, se faz mais sensível.

Daí a preocupação de Gonzales Sabathié - renomado autor do Códi­go de Ética da Federação Argentina do Colégio dos Advogados - ao assi­nalar que <<entre os diversos motivos que assinalam a decadência inegável da nobre profissão, falta de seriedade e de profundidade dos estudos uni­versitários , excessivo número de profissionais e a crise de valores morais -esse último é, sem dúvida, o mais grave e pernicioso»J72l

Mais adiante, o mesmo doutrinador argentino, em magistral síntese, pondera que:

«Sem consciência profissional clara e digna, o advogado é sempre cúmplice da fraude, investigador do dolo, encobridor de delitos. Sem respeito pelas normas morais a versaçao jurídica é inú­til e ainda nociva .>>

Sábias palavras que, de quando em vez, carecem ecoar.

{*) A esse respeito. vide a obra «Direito Notarial . Teoria e Prática», do Professor Cláudio Martins, Ed. Imprensa Universitá ria UFCE, pág. 60 e passim.

{**) Vide: KEntre o Passado e o Futuro», de Hannah Arendt.

{*) Vide: EI Derecho como obstáculo ai cambio social. de Eduardo Novoa Monreal. {72) Sodrê. Op. cit. acima nota 36 pág. 6.

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De resto, nao nos esqueçamos que os advogados têm tido, no tempo e no espaço, destacada participação na árdua e diuturna luta pela superação do arbítrio e pela supremacia do Direito como forma de governo. Eis a pe­rene missao de todos e de cada um dos advogados.

«Para poder exercer de maneira digna e útil a profissão, é pre­ciso começar por bem conhecê-l_a». Observa Louís Crémieu.!73)

Exatamente este é o intento que se move nesta introduçao.

Por fim, bem pode haver quem julgue demasiado difíceis os compro­missos de advogado, contudo, a verdade inexorável é que:

«A advocacia não é profissão para medíocres», como procla­mou o insigne Seabra Fagundes.(74)

(73) Ibidem, pág. 8.

(74) fagundes, Seabra. Op. cit. acfma nota 66, pâg. 83.

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