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UNIVERSIDADE DE SAtildeO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA LETRAS E CIEcircNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA PROGRAMA DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO EM FILOSOFIA
ADRIANA BELMONTE MOREIRA
Cliacutenica e Resistecircncia
a medicina filosoacutefica de Georges Canguilhem
(versatildeo corrigida)
Satildeo Paulo
2013
2
ADRIANA BELMONTE MOREIRA
Cliacutenica e Resistecircncia
a medicina filosoacutefica de Georges Canguilhem
(versatildeo corrigida)
Tese apresentada ao programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas da Universidade de Satildeo Paulo para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutor em Filosofia sob a orientaccedilatildeo do Prof Dr Pablo Ruben Mariconda
Satildeo Paulo
2013
3
Para Eduardo e Marinalva
exemplos de luta e resistecircncia
4
AGRADECIMENTOS
Ao Prof Pablo Mariconda pelo apoio constante confianccedila e sobretudo por
compreender que somente eacute possiacutevel pensar em liberdade
Aos professores Vladimir Safatle Rodolfo Franco Puttini Mauriacutecio de Carvalho
Ramos Ivan Domingues e Joseacute Luis Garcia pelas contribuiccedilotildees dadas a meu
trabalho por ocasiatildeo do Exame de Qualificaccedilatildeo e Defesa
Aos membros do Grupo de Estudos de Filosofia Histoacuteria e Sociologia da Ciecircncia e
da Tecnologia (USP) em especial a Max Vicentini
Aos colegas do Departamento de Terapia Ocupacional da Universidade Federal
do Paranaacute (UFPR) pelo incentivo
Aos funcionaacuterios da Secretaria do Departamento de Filosofia em particular agrave
Geni pelo suporte operacional de uacuteltima hora
Agrave Mocircnica Gama e Christiane Siegmann pela forccedila da amizade
5
ldquoAinda estou agrave espera de que um meacutedico filosoacutefico
no sentido excepcional da palavra - um meacutedico que tenha o problema da sauacutede geral do
povo tempo raccedila humanidade para cuidar -
teraacute uma vez o acircnimo de levar minha suspeita ao aacutepice e aventurar a proposiccedilatildeo em todo
filosofar ateacute agora nunca se tratou de lsquoverdadersquo mas de algo outro digamos sauacutede
futuro crescimento potecircncia vidardquo
(Nietzsche)
6
RESUMO
MOREIRA A B Clinica e resistecircncia a medicina filosoacutefica de Georges
Canguilhem 2013 227 f Tese (Doutorado) - Faculdade de Filosofia Letras e
Ciecircncias Humanas Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 2013
Este trabalho procura apresentar atraveacutes de uma anaacutelise do conjunto das obras de
Canguilhem uma ldquocriacutetica da razatildeo meacutedica praacuteticardquo tal como sugere num de seus
escritos Vale dizer que embora ele tenha afirmado natildeo pretender renovar a
medicina procurando apenas ajudaacute-la a pensar sobre seus pressupostos e
conceitos fundamentais em nosso entender ao realizar uma criacutetica agrave hegemonia
do modelo meacutedico cientiacutefico-moderno e ao operar o desvelamento de sua
ideologia de controle da vida acabou por delinear os contornos de uma nova
racionalidade meacutedica que por se ancorar numa definiccedilatildeo de medicina como arte
que se coloca a serviccedilo da capacidade de resistecircncia vital pode vir a fazer frente
agrave mecanizaccedilatildeo da vida agrave normalizaccedilatildeo dos indiviacuteduos e agrave gestatildeo sociopoliacutetica
meacutedica da vida cotidiana Assim eacute adotando o ponto de vista canguilhemiano de
que a ideia de normalidade como normalizaccedilatildeo mais se identifica agrave medicina
cientiacutefica moderna que opera com a ideia de norma como meacutedia estatiacutestica e tipo
ideal do que a uma medicina que considera que na natureza haacute apenas
normalidade como normatividade que procuramos ao fim de nosso trabalho
vislumbrar outro horizonte para as praacuteticas e a eacutetica do cuidado em sauacutede na
atualidade
Palavras-chave medicina ndash cliacutenica ndash normalidade ndash patologia - vitalismo
7
ABSTRACT
MOREIRA A B Clinic and Resistance Georges Canguilhemrsquos philosophical
medicine 2013 227 f Thesis (Doctoral) - Faculdade de Filosofia Letras e
Ciecircncias Humanas Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 2013
This work seeks to present through the analysis of Canguilhemrsquos complete work a
ldquocritique of the practical reasoning in medicinerdquo as suggested by the author
himself Although he has not intended to renovate medicine his intention was to
help thinking about its assumptions and fundamental concepts It is believed that
by criticizing the hegemony of the modern scientific-medical model and operating
the unveiling of its ideology of control over life he ended up outlining the contours
of a new medical rationale This approach is based on the definition of medicine as
a type of art which is at the service of a vital resistance capacity This way it can
cope with the mechanization of life the normalization of individuals and
sociopolitical medical management of everyday life Thus by adopting
Canguilhemrsquos perspective the idea of normality as normalization is more related to
the modern scientific medicine that works with the idea of statistical average and
the ideal type than the medicine which considers that in nature there is only
normality as normativity At the end of this work the aim is to glimpse another
horizon for the practices and the ethics of current health care
Keywords medicine ndash clinic ndash normality ndash pathology ndash ethics ndash vitalism
8
LISTA DE ABREVIACcedilOtildeES
NP ndash Le normal et le pathologique
FCR- La Formation du concept de reacuteflexe aux XVIIe et XVIIIe siegravecles
CV - La connaissance de la vie
D - Du deacuteveloppement agrave leacutevolution au XIXe siegravecle
E - Eacutetudes dacuteHistoire et de Philosophie des Sciences
I - Ideacuteologie et rationaliteacute dans lacutehistoire des sciences de la vie
EM ndash Eacutecrits sur la meacutedecine
CP - Le cerveau et la penseacutee
MNHT - Milieu et normes de Ihomme au travail
QE- La question de lrsquoeacutecologie la technique ou la vie
9
SUMAacuteRIO
INTRODUCcedilAtildeO 10
CAPIacuteTULO I Medicina uma arte enraizada na vida 34
CAPIacuteTULO II Arte da cura ou ciecircncia das doenccedilas 82
CAPIacuteTULO III Medicina psicologia e normalizaccedilatildeo 119
CAPIacuteTULO IV A revitalizaccedilatildeo da cliacutenica 154
CONCLUSAtildeO 214
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 220
10
INTRODUCcedilAtildeO
Bem-estar eacute a simples consciecircncia de viver
e soacute seu impedimento suscita a forccedila de resistecircncia (Kant)
Nosso trabalho objetiva mostrar que Canguilhem no conjunto de seus
escritos sobre medicina histoacuteria e filosofia das ciecircncias da vida ao refletir sobre
os principais conceitos que datildeo inteligibilidade agrave praacutetica meacutedica - vida normal e
patoloacutegico ndash e sobre a produccedilatildeo do saber e exerciacutecio do poder meacutedicos acaba por
apresentar outra deacutemarche para a cliacutenica que a transforma em dispositivo de
resistecircncia agraves praacuteticas de normalizaccedilatildeo em sauacutede Com efeito como filoacutesofo e
meacutedico ele defende que a filosofia pode ajudar a medicina a pensar sobre seus
pressupostos natildeo somente pela problematizaccedilatildeo de seus conceitos
fundamentais mas tambeacutem atraveacutes do esclarecimento de que o cuidado em
sauacutede eacute um fato de natureza poliacutetica tanto quanto cientiacutefica concernindo natildeo
apenas a intervenccedilotildees de ordem teacutecnico-cientiacutefica mas tambeacutem a uma tomada de
posiccedilatildeo de caraacuteter eacutetico-poliacutetico Assim considerando a ideologia de controle que
subjaz agrave ciecircncia moderna e dada a alianccedila da terapecircutica ao imperativo da
normalidade ele acredita que eacute chegado o tempo de uma criacutetica da razatildeo meacutedica
praacutetica como estrateacutegia para invenccedilatildeo de uma nova racionalidade em sauacutede que
consiga fazer frente ao modelo biomeacutedico moderno
Em nossa trajetoacuteria de investigaccedilatildeo utilizamos como textos de referecircncia
sua tese de doutorado em medicina intitulada Essai sur quelques problegravemes
concernant le normal et le pathologique (1943) que somada a suas Nouvelles
Reacuteflexions concernant le normal et le pathologique (1963-1966) compotildeem a obra
Le normal et le pathologique sua tese em filosofia La Formation du concept de
reacuteflexe aux XVIIe et XVIIIe siegravecles (1955) as coletacircneas La connaissance de la vie
(1952) Eacutetudes dacuteHistoire et de Philosophie des Sciences (1968) Ideacuteologie et
rationaliteacute dans lacutehistoire des sciences de la vie (1977) Aleacutem destas obras
recorremos ao artigo Milieu et normes de Ihomme au travail (1947) agrave conferecircncia
11
Le cerveau et la penseacutee (1980) e agrave publicaccedilatildeo poacutestuma intitulada Eacutecrits sur la
meacutedecine (2002) que agrega artigos e conferecircncias publicados entre os anos de
1972 a 19901 A opccedilatildeo pela anaacutelise deste conjunto de obras apesar dele ter sido
elaborado ao longo de mais de quatro deacutecadas se fez necessaacuteria para que
pudeacutessemos recolher um maior nuacutemero de elementos a fim de apresentarmos os
contornos desta outra racionalidade em sauacutede que acreditamos ter sido
gradativamente desenhada por Canguilhem
A partir de uma anaacutelise destes escritos notamos que Canguilhem
acompanhando os debates meacutedicos e cientiacuteficos de seu tempo manteacutem uma
coerecircncia teoacuterico-epistemoloacutegica de defesa do vitalismo em oposiccedilatildeo ao
mecanicismo claacutessico e a seus desdobramentos posteriores2 Percebemos
tambeacutem e isso de modo mais fundamental que se ele adere a esta tradiccedilatildeo
meacutedico-filosoacutefica natildeo eacute somente por compartilhar com ela o reconhecimento da
originalidade do fenocircmeno vital Eacute tambeacutem porque ela ao contraacuterio da tradiccedilatildeo
mecanicista se opotildee agrave ideologia3 de controle da natureza sustentada pela ciecircncia
moderna Assim em nosso entender se ele natildeo vecirc problemas em ser chamado
de vitalista eacute sobretudo porque ele encontra no vitalismo uma eacutetica de respeito e
1 Segundo Zaloszyc os Escritos sobre Medicina somados aos trecircs outros textos que figuram sobre
a rubrica ldquoMedicinardquo nos Eacutetudes dacuteHistoire et de Philosophie des Sciences compotildeem a totalidade dos escritos de Canguilhem sobre o tema Seguindo de perto o trabalho bibliograacutefico criacutetico de Limoges ele acredita que eacute neste conjunto de textos que Canguilhem trata da histoacuteria e da filosofia da medicina reservando-se a fronteira sempre incerta com os estudos de fisiologia e a reflexatildeo sobre o sujeito doente Cf ZALOSZYC A Prefaacutecio In CANGUILHEM G Escritos sobre a medicina (trad Vera Avellar Ribeiro rev teacutecnica Manoel Barros da Motta) Rio de Janeiro Forense Universitaacuteria 2005
2 Com efeito Canguilhem critica tanto a concepccedilatildeo mecanicista de vida do seacuteculo XVII derivada
da fisiologia de Descartes que procura explicar o ser vivo a partir do modelo de uma maacutequina quanto agravequela que a partir dos seacuteculos seguintes procuram explicaacute-lo em termos fiacutesico-quiacutemicos como a de Lavoisier e Laplace ambas identificadas ao determinismo ou seja agrave ideia de que os fenocircmenos vitais se produzem segundo uma ordem determinada e que as condiccedilotildees de sua apariccedilatildeo seguem a lei da causalidade Sobre as diferentes formulaccedilotildees histoacutericas do mecanicismo do seacuteculo XVII ao XIX confira FREZZATTI JR W A Haeckel e Nietzsche aspectos da criacutetica ao mecanicismo no seacuteculo XIX Scientia Studia vol 1 n
o 4 2003 p435-61
3 Vale esclarecer que utilizamos a noccedilatildeo de ideologia no sentido marxista que na leitura de
Canguilhem acompanhando a de Althusser eacute um conceito que se aplica aos sistemas de representaccedilotildees que se exprimem na linguagem da poliacutetica da moral da religiatildeo e da metafiacutesica e que se apresentam como se fossem a expressatildeo do que satildeo as proacuteprias coisas enquanto satildeo de fato meios de proteccedilatildeo e defesa de um determinado sistema de relaccedilotildees dos homens entre si e dos homens com as coisas (cfI 1981 p35)
12
defesa da vida que iraacute embasar sua postura eacutetico-poliacutetica de contraposiccedilatildeo a uma
ideologia de domiacutenio da vida que encontrou no nazi-fascismo sua versatildeo mais
acabada
Com efeito para Canguilhem considerando a indissociabilidade entre
logos ethos e praacutexis a medicina ao tomar contato com a formaccedilatildeo e a praacutetica
meacutedicas de seu tempo percebe que a partir de uma orientaccedilatildeo materialista
mecanicista e reducionista a praacutetica cliacutenica ficou aprisionada num esquema de
causa e efeito entre o gesto terapecircutico e seu resultado entre a medicaccedilatildeo
utilizada e a cura obtida atraveacutes dela reduzindo a relaccedilatildeo meacutedico-doente a um
automatismo de ordem meramente instrumental Aleacutem disso nota que o
esquecimento das recomendaccedilotildees hipocraacuteticas que ele lamenta imperar nas
escolas meacutedicas natildeo significou apenas que os meacutedicos deixaram de considerar o
doente como uma totalidade orgacircnica consciente e de invocar a natureza como
providecircncia curativa mas tambeacutem acarretou a perda do sentido da ideia de defesa
eacutetica da vida inerente agrave medicina
ldquoQuer o lamentemos quer natildeo o fato eacute que hoje ningueacutem eacute obrigado para exercer a medicina a ter o menor conhecimento de sua histoacuteria Eacute faacutecil imaginar uma doutrina meacutedica tal como o hipocratismo pode produzir no espiacuterito de quem soacute conhece Hipoacutecrates pelo famoso juramento rito final doravante esvaziado de sentidordquo (EM 2005 p13-14)
Sendo assim no percurso de nossa investigaccedilatildeo para alcanccedilarmos o teor
teoacuterico-epistemoloacutegico e eacutetico-poliacutetico da criacutetica de Canguilhem agrave medicina de seu
tempo o primeiro passo foi elucidar em qual momento se deu seu interesse por
ela4 Ora sabemos atraveacutes dele mesmo como consta no prefaacutecio de seu Ensaio
sobre alguns problemas relativos ao normal e ao patoloacutegico que cursou medicina
4 Roudinesco (2007) esclarece que entre os anos 30 e 40 periacuteodo em que Canguilhem decidiu
cursar medicina em geral os filoacutesofos que optavam por estudar medicina faziam por interesse pela psicopatologia e o tratamento das doenccedilas mentais almejando retirar o saber psiquiaacutetrico do campo meacutedico e devolvecirc-lo ao domiacutenio da psicologia cliacutenica Canguilhem distanciando-se desta tradiccedilatildeo optou por um caminho pouco comum em relaccedilatildeo ao trilhado por seus colegas de formaccedilatildeo filosoacutefica Ele escolheu partir do estudo da fisiopatologia ou nosologia somaacutetica para tratar do problema do normal e do patoloacutegico mas sem deixar de por extensatildeo discutir problemas de psicopatologia ou nosologia psiacutequica Cf ROUDINESCO E Filoacutesofos na tormenta (Canguilhem Sartre Foucault Althusser Deleuze Derrida) Rio de Janeiro Zahar 2007
13
alguns anos apoacutes haver concluiacutedo o curso de filosofia esperando com isso
acercar-se dos problemas humanos concretos
ldquoNatildeo eacute necessariamente para conhecer melhor as doenccedilas mentais que um professor de filosofia pode se interessar pela medicina Natildeo eacute tambeacutem necessariamente para praticar uma disciplina cientiacutefica Esperaacutevamos da medicina justamente uma introduccedilatildeo a problemas humanos concretosrdquo (NP 1990 p16)
Ciente dos limites da pura especulaccedilatildeo filosoacutefica ele acreditava que somente uma
ldquocultura meacutedica diretardquo possibilitaria o esclarecimento dos dois problemas que
mais o interessavam o da relaccedilatildeo entre as ciecircncias e as teacutecnicas e o das normas
e do normal Isso porque a medicina por ser uma arte ou teacutecnica de instauraccedilatildeo
e restauraccedilatildeo do normal ao mesmo tempo em que possibilitaria a
problematizaccedilatildeo da ideia de que a teacutecnica deve ser a mera aplicaccedilatildeo de uma
ciecircncia tambeacutem ela por operar a partir da noccedilatildeo de normalidade permitiria uma
reflexatildeo sobre o que seria este estado normal que a terapecircutica procura instaurar
ou restabelecer
No acircmbito de seu primeiro problema para defender a anterioridade loacutegica e
cronoloacutegica da teacutecnica em relaccedilatildeo agrave ciecircncia ele procurou mostrar a precedecircncia
da teacutecnica meacutedica em relaccedilatildeo agrave ciecircncia da vida a apresentando enraizada nas
normas e valores vitais Acreditando que na vida natildeo haacute ineacutercia ou indiferenccedila
bioloacutegica para ele assim como a ciecircncia entendida como procura do
conhecimento verdadeiro surge das resistecircncias encontradas na accedilatildeo praacutetica a
medicina como arte da vida existe porque o vivente humano considera como
patoloacutegicos certos estados ou comportamentos que em relaccedilatildeo agrave polaridade
dinacircmica da vida satildeo apreendidos sob a forma de valores negativos A doenccedila
de valor vital negativo para a totalidade orgacircnica no homem como totalidade
orgacircnica consciente eacute sentida como um mal sendo que eacute este pathos o que o
leva a praticar intencionalmente teacutecnicas de autocura e autorregeneraccedilatildeo jaacute
exercidas espontaneamente pelo ldquoprimeiro meacutedicordquo que eacute a vida Assim se eacute o
pathos que condiciona o logos a medicina existe porque os homens se sentem
14
doentes e natildeo porque haacute meacutedicos dotados de conhecimento cientiacutefico que os
informam do fato de estarem com tal ou qual enfermidade
Para abordar o segundo problema a estrateacutegia canguilhemiana foi mostrar
o alcance propriamente filosoacutefico do conceito de normal questionando se o
patoloacutegico eacute idecircntico ao anormal se o normal eacute idecircntico ao satildeo e se a anomalia eacute
a mesma coisa que anormalidade Isso porque a terapecircutica retirando sua
autoridade de seu conhecimento de fisiologia como ciecircncia das leis ou das
constantes da vida normal passou a se orientar por uma determinada noccedilatildeo de
normalidade - como estado habitual dos oacutergatildeos e seu estado ideal - sem ver nela
um problema a ser elucidado Criticando uma concepccedilatildeo de normalidade como
meacutedia estatiacutestica e tipo ideal Canguilhem acredita que a fisiologia tem mais a
fazer do que tentar definir objetivamente o estado normal Ela deve reconhecer a
ldquonormatividade original da vidardquo admitir que nela haacute uma plasticidade funcional
ligada a sua capacidade de criar e infringir suas proacuteprias normas
Destarte como forma de reabrir os debates sobre um problema dado por
resolvido Canguilhem optou por fazer o exame criacutetico de uma ideia amplamente
aceita no seacuteculo XIX de que o estado patoloacutegico seria apenas ldquoexageraccedilatildeo ou
atenuaccedilatildeo dos fenocircmenos normaisrdquo isto eacute uma variaccedilatildeo quantitativa para mais
ou para menos do estado normal estado este determinado por meacutetodos
cientiacutefico-experimentais A seu ver tal tese presente nos trabalhos de Comte
(1798-1857) e de Claude Bernard (1813-1878) se encontra vinculada agrave ambiccedilatildeo
de tornar a terapecircutica cientiacutefica o que soacute seria possiacutevel se houvesse uma
definiccedilatildeo puramente objetiva do estado normal a partir da qual o patoloacutegico
pudesse ser inferido (cf NP 1990 p23)
Na contramatildeo do posicionamento do filoacutesofo e do meacutedico e fisiologista
franceses influenciado sobretudo pelos trabalhos do meacutedico Kurt Goldstein5
5 Kurt Goldstein (1878-1965) psiquiatra e neurologista de origem alematilde Eacute o autor de Der Aufbau
des Organismus obra publicada na Alemanha em 1934 e popularizada na Franccedila pelos ciacuterculos filosoacuteficos influenciados pelos trabalhos de Maurice Merleau-Ponty Em seus trabalhos ele apresenta os resultados de sua praacutetica clinica com pacientes com lesatildeo neuroloacutegica adquiridas em combate militar no periacuteodo da primeira grande guerra Sua teoria das relaccedilotildees do vivente com seu meio influenciou obras como La structure du comportement (1942) de Merleau-Ponty e o Ensaio sobre alguns problemas relativos ao normal e ao patoloacutegico (1943) de Canguilhem Cf
15
Canguilhem procurou mostrar que o estado patoloacutegico natildeo eacute uma variaccedilatildeo
quantitativa da dimensatildeo da sauacutede isto eacute simples prolongamento
quantitativamente variado do estado normal mas uma nova dimensatildeo da vida um
novo comportamento orgacircnico qualitativamente diferente do estado normal ainda
que repelido pela vida mesma
Ademais atento agrave dimensatildeo existencial do processo de adoecimento ele
toma de Goldstein a ideia de que para a compreensatildeo do patoloacutegico eacute preciso
considerar a noccedilatildeo de ser doente (Kranksein) visto que a doenccedila mais do que um
acometimento bioloacutegico eacute uma ameaccedila a uma existecircncia individual ldquoa doenccedila eacute
abalo e ameaccedila agrave existecircncia Por conseguinte a definiccedilatildeo de doenccedila exige como
ponto de partida a noccedilatildeo de ser individualrdquo (NP 1990 p148) Assim contestando
a tese do tambeacutem meacutedico Reneacute Leriche6 de que para compreender a doenccedila eacute
preciso ldquodesumanizaacute-lardquo de que no estudo do patoloacutegico o que interessa eacute a
alteraccedilatildeo anatocircmica ou o distuacuterbio fisioloacutegico ele traz para a definiccedilatildeo do
patoloacutegico o ponto de vista do doente do homem concreto consciente de sua dor
e de sua incapacidade funcional e social que vivenciando a doenccedila como um
drama de sua historia7 percebe mudadas suas relaccedilotildees de conjunto com seu meio
(entourage)
Desta forma para Canguilhem malgrado todos os esforccedilos de
racionalizaccedilatildeo cientiacutefica a medicina tem a praacutetica cliacutenica como elemento
essencial que natildeo pode ser reduzida agrave mera aplicaccedilatildeo de um conhecimento
GOLDSTEIN K La structure de lrsquoorganisme Introduction agrave la biologie agrave partir de la pathologie humaine (1951) Paris Gallimard 1983
6 Reneacute Leriche (1879-1955) meacutedico-cirurgiatildeo francecircs que realizou um conjunto de pesquisas e
reflexotildees criacuteticas sobre o fenocircmeno da dor Confira tambeacutem CANGUILHEM G ldquoLa penseacutee de Reneacute Lericherdquo In Revue Philosophique juillet-septembre 1956 p 313-317
7 Enxergamos aqui um diaacutelogo com uma tradiccedilatildeo de pensamento que recorre ao concreto em
oposiccedilatildeo ao abstracionismo filosoacutefico particularmente com o trabalho de Georges Politzer (1903-1942) pensador de origem huacutengara que participou da Resistecircncia agrave ocupaccedilatildeo nazista na Franccedila e que foi preso torturado e executado pela Gestapo em 1942 Em sua obra Criacutetica dos Fundamentos da Psicologia (1928) ele faz uma criacutetica agrave psicologia aniacutemica ou subjetiva vinculada ao mito da vida interior e agrave objetiva baseada no caacutelculo e na experimentaccedilatildeo Adotando o teatro como metaacutefora de sua psicologia concreta defende que a vida propriamente humana eacute dramaacutetica e o eu empiacuterico soacute pode ser o indiviacuteduo particular e concreto Cf POLITZER G Criacutetica dos fundamentos da psicologia a psicologia e a psicanaacutelise (Trad Marcos Marcionilo e Yvone Maria de campos Teixeira da Silva) Piracicaba UNIMEP 1998
16
sendo vista como simples subsidiaacuteria dos resultados de pesquisas nos campos da
anatomia embriologia fisiologia e psicologia Dotada de certa independecircncia ela
tem por objeto a experiecircncia da doenccedila que eacute menos um fato objetivaacutevel nas
matildeos do cientista e mais um valor para aquele que adoece Portanto mais do que
uma ciecircncia propriamente dita a medicina eacute uma arte que encontra natildeo somente
no laboratoacuterio mas na relaccedilatildeo meacutedico-doente os elementos para a compreensatildeo
do comportamento patoloacutegico pois eacute somente a cliacutenica que coloca o meacutedico em
contato com o indiviacuteduo concreto ciente de sua dor e que vivencia a anguacutestia
suscitada pela doenccedila
Vinte anos depois de ter escrito seu Ensaio em suas Novas reflexotildees
referentes ao normal e ao patoloacutegico considerando o normal um conceito
dinacircmico e polecircmico e natildeo estaacutetico e paciacutefico Canguilhem retoma seu estudo
sobre as normas orgacircnicas agora querendo esclarecer sua significaccedilatildeo atraveacutes
da confrontaccedilatildeo com as normas sociais Voltando seu interesse para o problema
da identidade entre normalidade e adaptaccedilatildeo agora ele faz uma anaacutelise criacutetica
deste conceito que em sua acepccedilatildeo original vem da atividade teacutecnica mas que a
partir do seacuteculo XIX foi introduzido natildeo soacute na biologia mas tambeacutem na psicologia
e na sociologia de forma bastante questionaacutevel pela ideia de subordinaccedilatildeo
psicossocial a ela vinculada
Assim eacute atraveacutes de uma incursatildeo no estudo da sociedade da contestaccedilatildeo
da sinoniacutemia entre adaptaccedilatildeo social e normalidade que ele complementa sua
reflexatildeo sobre as normas e o normal dando a sua discussatildeo um caraacuteter
explicitamente sociopoliacutetico com forte acento foucaultiano
Com efeito compartilhando interesses no estudo sobre as normas
Canguilhem e Foucault sofrem influecircncias reciacuteprocas Se natildeo eacute novidade a
importacircncia das reflexotildees canguilhemianas para Foucault tambeacutem sabemos por
Canguilhem mesmo que foi atraveacutes dos escritos foucaultianos que ele se viu
diante da problemaacutetica do saber-poder meacutedico e das praacuteticas de normalizaccedilatildeo
operadas pelas instituiccedilotildees sanitaacuterias Ele admite que foi a partir da leitura de
obras como Histoacuteria da Loucura e O nascimento da cliacutenica que aprendeu a
17
conhecer uma forma de anormalidade diferente da patoloacutegico-orgacircnica e a
reconhecer a existecircncia histoacuterica de um poder meacutedico duvidoso exercido pelas
vias e meios do biopoder8
Desta forma assim como Foucault se empenhou em mostrar atraveacutes de
suas pesquisas arqueogenealoacutegicas que historicamente a medicina se constituiu
como uma estrateacutegia biopoliacutetica de normalizaccedilatildeo Canguilhem natildeo desconsiderou
a relaccedilatildeo existente entre a produccedilatildeo do saber e o exerciacutecio do poder meacutedicos o
liame existente entre medicina e poliacutetica fortalecido pelo componente de natureza
social na construccedilatildeo do conhecimento sobre as doenccedilas bem como na
organizaccedilatildeo e nas praacuteticas de hospitalizaccedilatildeo (cf EM 2005 p28 E 1989 p398)
Por extensatildeo Canguilhem e Foucault entram em concordacircncia quanto agrave
criacutetica aos fundamentos da psicologia cientiacutefica9 Tambeacutem em Canguilhem o alvo
de ataque privilegiado eacute a uma psicologia entendida como o estudo objetivo do
comportamento que utiliza as teacutecnicas de condicionamento com vistas agrave
orientaccedilatildeo ou direcionamento dos indiviacuteduos no meio social (cf CP 1993 p25)
Isto eacute se ele critica a psicologia eacute por ela ter aceitado converter-se em uma
ciecircncia objetiva das atitudes reaccedilotildees e comportamentos separando-se de toda
referecircncia agrave sabedoria isto eacute da especulaccedilatildeo filosoacutefica sobre a ideia de homem
tornando-se uma ldquofilosofia sem rigor uma eacutetica sem exigecircncia e uma medicina
sem controlerdquo (cf E 1989 p 366)
Assim eacute ao se perguntar sobre quais interesses estatildeo por traacutes da
investigaccedilatildeo de nosso poder de pensar que Canguilhem traccedila a histoacuteria da
psicologia buscando o sentido de cada um de seus projetos e identifica na
8 Eacute por ocasiatildeo do evento em comemoraccedilatildeo agrave publicaccedilatildeo de Histoacuteria da Loucura tese defendida
por Foucault em 1961 a uma banca da qual foi relator que Canguilhem admite o impacto que esta obra e O nascimento da cliacutenica tiveram em suas proacuteprias reflexotildees Cf CANGUILHEM G ldquoAberturardquo In CANGUILHEM G DERRIDA J MAJOR R ROUDINESCO E Foucault Leituras da Histoacuteria da Loucura (trad Maria Ignes Duque Estrada) Relume-Dumaraacute 1994
9 Canguilhem por ocasiatildeo da defesa de tese de Foucault comenta ldquoEacute portanto a significaccedilatildeo dos
comeccedilos da psiquiatria positivista - antes da revoluccedilatildeo freudiana - o que estaacute em questatildeo no trabalho do Sr Foucault E atraveacutes da psiquiatria eacute a significaccedilatildeo do evento da psicologia positiva que passa por uma revisatildeo Natildeo seraacute motivo de surpresa que esse estudo provoque a reconsideraccedilatildeo do estatuto de lsquociecircnciarsquo da psicologiardquo (CANGUILHEM 1994 p16) In CANGUILHEM G DERRIDA J MAJOR R ROUDINESCO E Ibid
18
psicologia do comportamento a ambiccedilatildeo de tratar o homem como ldquoinstrumentordquo
por razotildees cientiacuteficas teacutecnicas mas tambeacutem econocircmicas e poliacuteticas Em vista
disso estabelecendo uma relaccedilatildeo entre psicologia do comportamento
normalizaccedilatildeo do pensamento e controle das condutas sociais desviantes
inspirado na atitude de Espinosa ele adota uma postura eacutetico-poliacutetica de
resistecircncia a tudo que impede o exerciacutecio de nossa liberdade de pensar que limita
o aumento da potecircncia do pensamento e cerceia nossos gestos de engajamento
Aleacutem disso apresentando o desenvolvimento do problema da relaccedilatildeo entre
ceacuterebro e pensamento na histoacuteria da cultura de Hipoacutecrates e Galeno ateacute o
nascimento da psicocirurgia passando pela teoria das localizaccedilotildees cerebrais a
ciecircncia do ceacuterebro e a frenologia de Gall ele conclui que a filosofia natildeo pode
deixar de se erguer contra uma psicologia que aliada agrave neurologia cerebral se
quer objetiva e que pretende instruir outras ciecircncias sobre as funccedilotildees intelectuais
para que sejam exploradas pela pedagogia pela economia e pela poliacutetica Isso
porque um modelo de pesquisa cientiacutefica que procura deduzir a consciecircncia de
uma ciecircncia do ceacuterebro e ainda reduzi-lo a um computador nada tem a contribuir
para a reflexatildeo sobre nosso poder de pensar pois apenas serve de justificativa
para as teacutecnicas de normalizaccedilatildeo das condutas e de maacutequina de ldquopropaganda
ideoloacutegicardquo para toda sorte de sistemas autoritaacuterios (cf CP 1993 p21)
Mas eacute importante notar que a criacutetica canguilhemiana a racionalidade
meacutedica cientiacutefico-moderna natildeo resvala na antimedicina ou numa desvalorizaccedilatildeo
da ciecircncia em sua contribuiccedilatildeo para a praacutetica cliacutenica Canguilhem critica o
naturismo e a autogestatildeo radical da sauacutede como se fosse possiacutevel prescindir das
verdades cientiacuteficas Ele acredita que uma coisa eacute aventar outra racionalidade
para a medicina recusando a difusatildeo de uma ideologia meacutedica de especialistas
engenheiros de um corpo decomposto como uma maquinaria a outra eacute acreditar-
se obrigado a liberar-se de sua tutela considerada repressiva e aleacutem disso das
ciecircncias das quais ela costuma se beneficiar ldquonada eacute mais difundido e mais
rentaacutevel nos dias de hoje do que uma proclamaccedilatildeo anti-xrdquo (EM 2005 p 66) Por
isso ele alerta para que natildeo resvalemos em uma banalizaccedilatildeo da criacutetica como se
a medicina fosse a fonte de todos os males modernos como se as morbidades
19
fossem resultado de processos iatrogecircnicos e que por isso devecircssemos retornar a
medicinas preacute-racionais e agrave autogestatildeo em sauacutede
Ainda ao colocar em questatildeo se ante a crise da medicina contemporacircnea a
saiacuteda seria o retorno agrave medicina dos antigos ou a superaccedilatildeo da racionalidade
meacutedica atual vemos que a criacutetica de Canguilhem tambeacutem natildeo significa uma
adesatildeo agrave medicina dos vitalistas10 Como eles critica a tradiccedilatildeo meacutedica
mecanicista por definir o corpo como mateacuteria inerte a doenccedila como uma avaria e
a cura como o retorno a um estado anterior dada a possibilidade de
reversibilidade dos fenocircmenos orgacircnicos concepccedilatildeo atrelada aos princiacutepios de
conservaccedilatildeo ou de invariacircncia sobre os quais se fundamentam a mecacircnica e
cosmologia da eacutepoca claacutessica (cf EM 2005 p 53) No entanto apesar de se
inscrever na tradiccedilatildeo vitalista atraveacutes de seu vitalismo materialista
antimecanicista11 Canguilhem elabora uma racionalidade meacutedica singular que
apesar de tambeacutem apostar numa concepccedilatildeo de corpo dinacircmico e na forccedila curativa
da natureza (vis medicatrix naturae) por ele traduzida pelas noccedilotildees de polaridade
dinacircmica e normatividade vital assume feiccedilotildees proacuteprias
10
Embora Canguilhem teccedila elogios aos fundamentos da tradiccedilatildeo meacutedica vitalista Puttini e Pereira Jr acreditam que ele natildeo foi um ldquoadvogado da medicina vitalistardquo mas procurou antes de tudo realizar uma reflexatildeo epistemoloacutegica sobre a vida quer natildeo se prendesse agraves categorias mecanicistas Para os autores atraveacutes do conceito de normatividade vital Canguilhem procurou em verdade realizar uma ldquosuperaccedilatildeordquo da oposiccedilatildeo entre o mecanicismo e o vitalismo Cf PUTTINI R F PEREIRA JR A Aleacutem do mecanicismo e do vitalismo a ldquonormatividade da vidardquo em Georges Canguilhem Rio de Janeiro Physis vol 17 n
o 03 2007
11 Vale destacar que o fato de Canguilhem ter apontado apenas a insuficiecircncia da biologia
mecanicista para a explicaccedilatildeo dos fenocircmenos vitais isto eacute por ele natildeo tecirc-la falseado de todo levou alguns comentadores a enxergar uma posiccedilatildeo hiacutebrida de vitalismo e mecanicismo em sua concepccedilatildeo de vida Nesta direccedilatildeo Barbara (2008) acredita que Canguilhem adota uma racionalidade sincreacutetica entre vitalismo e mecanicismo optando por preservar uma tensatildeo entre os estudos dos mecanismos e a exigecircncia vitalista de um sentido de organismo em seu meio Mas se entendermos que as principais caracteriacutesticas da mateacuteria viva a polaridade dinacircmica e a normatividade vital ambas orientadas para a autoconservaccedilatildeo do vivente como sua finalidade imanente natildeo encontram lugar no modelo explicativo mecanicista parece possiacutevel dizer que a posiccedilatildeo de Canguilhem eacute antimecanicista por excelecircncia embora materialista Assim tendemos a acompanhar Dagognet (2007) em sua afirmaccedilatildeo de que o meacuterito de Canguilhem eacute ter subtraiacutedo a vida de um vitalismo animista sem precisar com isso professar um mecanicismo Cf BARBARA J-G Lrsquoeacutetude du vivant chez Georges Canguilhem des concepts aux objets biologiques In FAGOT-LARGEAULT DEBRU D MORANGE M (dir) HAN H-J (eacuted) Philosophie et meacutedecine en hommage agrave Georges Canguilhem (LrsquoHistoire des sicences ndash Textes et Egravetudes) Paris Vrin 2008 DAGOGNET F Pourquoi la maladie et le reacuteflexe dans la philosophie biomeacutedicale de Canguilhem In BAUNSTEIN J-F (org) Histoire des sciences et politique du vivant Paris Presses Universitaires de France ndash PUF 2007 p17-25
20
Em resumo em nosso entender o nuacutecleo da criacutetica canguilhemiana agrave
medicina de seu tempo eacute o fato dela ter deixado de ser uma arte da cura para se
tornar uma ciecircncia das doenccedilas orientada pelo valor de controle da natureza
proacuteprio da ciecircncia moderna Segundo Canguilhem a hegemonia desta
racionalidade fez com que a medicina se constituiacutesse como um campo de conflito
de discordacircncia entre valores orgacircnicos lentos e contiacutenuos e os valores teacutecnicos
mecacircnicos acelerados e descontiacutenuos Com a primazia da ordem tecnoloacutegica em
relaccedilatildeo agrave ordem bioloacutegica a terapecircutica moderna perdeu de vista toda norma
natural da vida orgacircnica e o doente passou a ser tratado segundo normas
anocircnimas impostas julgada superiores as suas normas individuais e espontacircneas
O ensino meacutedico passou a privilegiar os aspectos teacutecnico-cientiacuteficos da praacutetica
meacutedica em detrimento da deontologia da consideraccedilatildeo dos aspectos bioafetivos
e psicossocioloacutegicos da doenccedila e da reflexatildeo sobre as condiccedilotildees sociais e legais
de seu exerciacutecio no interior das coletividades (cf E 1989 p383-385)
Com efeito em seu artigo ldquoPuissance et limites de la rationaliteacute em
meacutedecinerdquo Canguilhem mostra que historicamente a ambiccedilatildeo por uma ciecircncia do
curar remonta ao seacuteculo XVII com os trabalhos dos iatromecanicistas que creem
poder fundar racionalmente a medicina a partir dos princiacutepios da mecacircnica
galileana e cartesiana Ao analisar a histoacuteria da medicina a partir da segunda
metade do seacuteculo XIX apresenta o impacto da anatomia patoloacutegica da histologia
da histo-patologia da quiacutemica orgacircnica e principalmente da fisiologia para o
estudo das doenccedilas e esclarece que eacute neste periacuteodo que surge o termo
racionalismo para caracterizar a medicina do futuro Objetivando o tratamento
racional da doenccedila a medicaccedilatildeo absolutamente eficaz e a profilaxia correta por
oposiccedilatildeo aos conceitos de ordem probabiliacutestica e estatiacutestica e agrave multiplicidade de
medicamentos empiricamente ministrados a medicina deixou de ser a arte o
empirismo do curar para ser a ciecircncia o racionalismo do curar o que causou uma
mudanccedila profunda na forma de compreensatildeo do fenocircmeno patoloacutegico e na
relaccedilatildeo meacutedico-doente (cf E 1989 p393-395)
Ademais na Ideologia e racionalidade nas ciecircncias da vida ao traccedilar um
esboccedilo histoacuterico-epistemoloacutegico e ideoloacutegico das teorias meacutedicas ele tambeacutem nota
21
que a medicina moderna ativa e operativa suscitada por Vesaacutelio e Harvey e
celebrada por Bacon e Descartes nasceu por oposiccedilatildeo a uma medicina
contemplativa que se baseando numa correspondecircncia isomoacuterfica entre o
equiliacutebrio do cosmos e o equiliacutebrio orgacircnico apostava no poder da natureza de
corrigir desordens e respeitava uma terapecircutica expectante e defensiva Nesta
mesma via a medicina cientiacutefico-experimental norteada por conhecimentos
fisioloacutegicos baseados em fatos e leis confirmados pela experimentaccedilatildeo laboratorial
e orientada pelo valor de controle da natureza sustentado pela ciecircncia moderna
passou a ditar normas agrave vida ignorando a vis medicatrix naturae atividade
curativa inerente a ela
Por isso ao realizar sua ldquogenealogia ideoloacutegica do princiacutepio de identidade
dos fenocircmenos normais e patoloacutegicosrdquo Canguilhem diz ter procurado colocar em
questatildeo uma ideologia meacutedica liberta de toda fidelidade ao hipocratismo ideologia
esta vinculada ao progressismo da sociedade industrial e fundadora do poder
ilimitado da medicina (cf I 1981 p49) Segundo ele tal princiacutepio que tem sua
origem na obra do meacutedico escocecircs Jonh Brown e foi admitida por Broussais
Comte e Claude Bernard abolindo a distinccedilatildeo entre fisiologia e patologia pocircs a
medicina inteiramente sob os auspiacutecios da atividade cientiacutefica experimental
afastando-a da observaccedilatildeo e da confianccedila na natureza proacuteprias da medicina
expectante e institui uma medicina racional pautada na ideia de ldquoeficaacutecia totalrdquo
que aposta numa supervalorizaccedilatildeo do saber que supera e domina a natureza ou
mais precisamente a vida
Sendo assim para Canguilhem tal ideologia natildeo sendo apenas o efeito da
colonizaccedilatildeo da medicina pelas ciecircncias fundamentais e aplicadas tambeacutem
decorre do interesse da sociedade industrial no controle da sauacutede das populaccedilotildees
operaacuterias necessaacuterio para manter produtiva a forccedila de trabalho fato que
evidencia que a ambiccedilatildeo da medicina em curar os indiviacuteduos prevenir e eliminar
doenccedilas contagiosas prolongar a esperanccedila de vida eacute um fato de natureza
poliacutetica tanto quanto cientiacutefica
22
ldquoA medicina experimental atuante e militante cujo modelo Claude Bernard pensou construir eacute a medicina de uma sociedade industrial Quando Claude Bernard opotildee a sua medicina agrave medicina contemplativa expectante isto eacute agrave medicina das sociedades agriacutecolas ele que eacute filho de um vinhateiro natildeo consegue conceber que a ciecircncia da eacutepoca natildeo soacute exigia do saacutebio o abandono das ideacuteias invalidadas pelos fatos mas que sobretudo exigia a renuacutencia ativa a um estilo pessoal de investigaccedilatildeo das ideacuteias exatamente como na mesma eacutepoca os progressos da economia exigiam o desenraizamento dos homens nascidos no campordquo (I 1981 p 60)
Com efeito eacute sob a influecircncia do industrialismo que a medicina se viu diante
da necessidade de reforma a ser operada atraveacutes de uma racionalizaccedilatildeo de seus
tratamentos preventivos e curativos e da planificaccedilatildeo de suas estrateacutegias visando
abarcar o conjunto da sociedade Neste contexto de reforma das instituiccedilotildees
sanitaacuterias a sauacutede da populaccedilatildeo passou a ser considerada estatisticamente e o
termo normal de origem matemaacutetica a ser usado para designar o protoacutetipo de
sauacutede orgacircnica Eacute portanto neste periacuteodo que a vigilacircncia e as condiccedilotildees de vida
passaram a ser objeto de medidas e de regulamentos decididos pelo poder
poliacutetico e esclarecido pelos higienistas ldquoMedicina e poliacutetica entatildeo se encontraram
em uma nova abordagem das doenccedilas da qual temos uma ilustraccedilatildeo convincente
na organizaccedilatildeo e nas praacuteticas de hospitalizaccedilatildeordquo (EM 2005 p28)
O problema identificado por Canguilhem ao analisar a relaccedilatildeo existente
entre o nascimento do hospital e a ambiccedilatildeo sociopoliacutetica-meacutedica higienista de
regulamentar a vida dos indiviacuteduos eacute que essa forma de abordagem meacutedica em
muito contribuiu para a desindividualizar a doenccedila pois se por um lado o discurso
higienista desindividualiza porque incide sobre uma coletividade tambeacutem o
hospital atraveacutes da ultraespecializaccedilatildeo de seus procedimentos que localizam a
doenccedila no oacutergatildeo no tecido na ceacutelula no gene na enzima perde de vista o
sujeito da doenccedila A seu ver como uma maacutequina de curar o hospital se constituiu
como um lugar de tratamento generalizado no anonimato pois nele o doente natildeo
eacute tratado como sujeito de sua doenccedila mas como objeto (cf EM 2005 p55)
Como mero corpo objetivado seu sofrimento e a reduccedilatildeo de suas atividades
cotidianas habituais natildeo satildeo considerados como constitutivos e agravantes de seu
estado de mal
23
Eacute tambeacutem diante da percepccedilatildeo de que os espaccedilos destinados ao cuidado
em sauacutede se encontram cada vez mais ocupados por equipamentos e
regulamentos sanitaacuterios e de que o meacutedico assumiu o papel de executor das
instruccedilotildees de um aparelho de Estado se esquecendo de que a sauacutede mais do que
uma exigecircncia de ordem econocircmica a ser valorizada no enquadramento de uma
legislaccedilatildeo eacute a unidade espontacircnea das condiccedilotildees de exerciacutecio da vida que
Canguilhem apresenta alguns questionamentos Como se livrar da tecnocracia
dos meacutedicos Seria preciso introduzir na formaccedilatildeo hospitalar-universitaacuteria um
ensino da participaccedilatildeo convival para garantia do melhor contato humano entre
meacutedicos e doentes Devemos resolver esta dificuldade criando equipes de sauacutede
com profissionais fortemente motivados que se empenhariam em recriar as
relaccedilotildees com o corpo o trabalho e a coletividade Mas essas soluccedilotildees que se
dizem de esquerda estatildeo isentas de toda ideologia de direita Seraacute chegado o
tempo de uma ldquocriacutetica da razatildeo meacutedica praacuteticardquo (cf EM 2005 p 69)
Destarte eacute por oposiccedilatildeo aos pressupostos teoacuterico-epistemoloacutegicos e
poliacutetico-ideoloacutegicos da racionalidade meacutedica cientiacutefico-moderna que Canguilhem
define a medicina como uma teacutecnica ou arte situada na confluecircncia de vaacuterias
ciecircncias que deve se colocar a serviccedilo das normas vitais (cf NP 1990 p16)
Mas para tanto o meacutedico precisa estar ciente de que a vida humana tem um
sentido bioloacutegico existencial e social e que todos esses sentidos devem ser
considerados para a compreensatildeo do fenocircmeno patoloacutegico (cf CV 1985 p 155)
Caso contraacuterio a medicina iraacute se transformar em um dispositivo social de
normalizaccedilatildeo e o meacutedico teraacute seu papel limitado ao de reparador de um suposto
estado normal ideal e adequado a um determinado modelo de sociedade este
mesmo incontestaacutevel
Desta forma ampliando a concepccedilatildeo de vida para aleacutem de sua dimensatildeo
bioloacutegica e conjugando a ela as dimensotildees existencial e social Canguilhem
recusa um biologismo um psicologismo ou mesmo um sociologismo limitados na
compreensatildeo do fenocircmeno patoloacutegico Advogando em defesa de uma cliacutenica
centrada no indiviacuteduo concreto norteada pelas noccedilotildees de sentido e valor vitais
ele procura fazer com que o meacutedico deixe de ser um agente de normalizaccedilatildeo de
24
corpos e mentes e passe a ser um incentivador da capacidade reativa e normativa
da vida (cf EM 2005 p45) Em nosso entender eacute a partir destas consideraccedilotildees
que o pensamento canguilhemiano pode contribuir para delinearmos outras
praacuteticas e eacutetica para o cuidado em sauacutede na atualidade pautadas num diferente
modelo de racionalidade que tenha a normatividade da vida por esteio abrindo
terreno para que a cliacutenica - seja ela meacutedica psicoloacutegica ou outra - ao inveacutes de se
aliar ao imperativo da normalidade possa atuar como um dispositivo de
resistecircncia agrave mecanizaccedilatildeo da vida agrave normalizaccedilatildeo dos indiviacuteduos e agrave gestatildeo
soacutecio-poliacutetica meacutedica da vida cotidiana
No Brasil natildeo satildeo muitos os autores que se propotildeem a estudar o
pensamento meacutedico-filosoacutefico de Canguilhem atraveacutes do conjunto de seus
escritos Via de regra as anaacutelises realizadas versam mais sobre a obra O Normal
e o patoloacutegico considerada a mais importante do autor Contudo o nuacutemero de
comentadores de sua filosofia da vida eacute crescente assim como a anaacutelise de seus
textos sobre medicina sendo unacircnime a afirmaccedilatildeo da atualidade de suas
proposiccedilotildees No cenaacuterio internacional na Franccedila em particular a fortuna criacutetica eacute
mais abundante Meacutedicos historiadores psicanalistas e filoacutesofos tecircm destacado a
relevacircncia das reflexotildees de Canguilhem para as praacuteticas de sauacutede na
contemporaneidade Prova disso eacute que recentemente por ocasiatildeo do centenaacuterio
de seu nascimento foi realizada uma publicaccedilatildeo em sua homenagem na qual um
conjunto de pesquisadores avaliam a pertinecircncia de sua filosofia da vida e sua
contribuiccedilatildeo para a medicina hoje12
12
Nesta obra na parte dedicada agrave Medicina por exemplo Giroux coloca o problema da conciliaccedilatildeo da sauacutede como normatividade individual e o ponto de vista epidemioloacutegico da sauacutede da populaccedilatildeo Lechopier amp Lepleacutege trazem a questatildeo do uso de instrumentos de medida de sauacutede (mesure de la santeacute perccedilue) que pretendem quantificar o impacto das doenccedilas ou das diferentes intervenccedilotildees de sauacutede na vida cotidiana sob o ponto de vista dos pacientes Montiel considerando que o pensamento de Canguilhem eacute uma ldquovacina contra o dogmatismo meacutedicordquo reflete sobre as repercussotildees praacuteticas de seu pensamento na formaccedilatildeo meacutedica considerando entre outros aspectos que o triunfo do laboratoacuterio sobre a cliacutenica instaurou uma iatrocracia ou um poder meacutedico ditatorial de especialistas Yeo trata da recepccedilatildeo do pensamento meacutedico canguilhemiano na Coreacuteia do Sul apontando seus limites em relaccedilatildeo a uma tradiccedilatildeo filosoacutefica e meacutedica neo-confucionista que admite o caraacuteter transcendente das normas Cf FAGOT-LARGEAULT DEBRU D
25
Dentre os estudiosos brasileiros Serpa Juacutenior analisando a tendecircncia de
expansatildeo das categorias diagnoacutesticas na atualidade e questionando as forccedilas e
interesses que estatildeo em jogo nesse processo de patologizaccedilatildeo do normal
defende a relevacircncia das argumentaccedilotildees de Canguilhem que se colocam em favor
de uma atividade normativa inerente agrave proacutepria vida em tempos de retomada de
um objetivismo meacutedico de alta performance que pretende definir a verdadeira
configuraccedilatildeo de corpos e mentes considerados normais e patoloacutegicos13 Bezerra
Juacutenior tambeacutem acredita ser a discussatildeo feita por Canguilhem atual pois ela pode
ajudar os profissionais de sauacutede a pensar de forma criacutetica a fronteira entre o
normal e o patoloacutegico evitando que se transformam em agentes de um processo
crescente de medicalizaccedilatildeo da existecircncia e de patologizaccedilatildeo do normal Para ele
as duas principais consequecircncias da adoccedilatildeo da perspectiva canguilhemiana na
cliacutenica satildeo o ato de colocar a ldquoexperiecircncia do sofrimentordquo no centro da terapecircutica
e contra o objetivismo reinante na medicina e na cultura apontar os impasses do
fisicalismo hegemocircnico na psiquiatria atual14
Tambeacutem no Brasil Safatle acredita que ao estudar os fenocircmenos normais e
patoloacutegicos Canguilhem coloca questotildees natildeo soacute para a biologia mas tambeacutem
para a cliacutenica meacutedica e psicoloacutegica Percebendo a relaccedilatildeo de suplementaridade
entre normatividade vital e normatividade social o comentador pergunta se natildeo
poderiacuteamos utilizar os conceitos de normal e de patoloacutegico tal como apresentados
por Canguilhem para refletirmos sobre o sofrimento que as nossas formas sociais
de vida produzem15 Jaacute Caponi analisa o atual conceito de sauacutede preconizado pela
Organizaccedilatildeo Mundial de Sauacutede (OMS) definido como equiliacutebrio e adaptaccedilatildeo ao
MORANGE M (dir) HAN H-J (eacuted) Philosophie et meacutedecine en hommage agrave Georges Canguilhem (LrsquoHistoire des sicences ndash Textes et Egravetudes) Paris Vrin 2008
13 Cf SERPA JUNIOR O D Indiviacuteduo organismo e doenccedila a atualidade de O normal e o
patoloacutegico de Georges Canguilhem Psicologia Cliacutenica Rio de Janeiro v 15 no 01 2006
14 Cf BEZERRA JUNIOR B ldquoO normal e o patoloacutegico uma discussatildeo atualrdquo In SOUZA A N
PITANGUY J (orgs) Sauacutede corpo e sociedade (Seacuterie Didaacuteticos) Rio de janeiro Editora UFRJ 2006
15 ldquoEacute possiacutevel que noccedilotildees como estas desenvolvidas por Canguilhem possam nos auxiliar o que
nos deixa com a questatildeo de saber ateacute que ponto reflexotildees epistemoloacutegicas como estas guardam forte potencial poliacutetico e emancipatoacuteriordquo (SAFATLE 2011 p26) Cf SAFATLE V O que eacute uma normatividade vital Sauacutede e doenccedila a partir de Georges Canguilhem Scientiaelig Studia Revista Latino-Americana de Filosofia e Histoacuteria da Ciecircncia Satildeo Paulo v 9 n 1 p 11-27 2011
26
meio a partir da perspectiva teoacuterica apontada por Canguilhem para mostrar em
que medida ele eacute impraticaacutevel natildeo apenas por ser utoacutepico e subjetivo mas
tambeacutem por ser politicamente conveniente para legitimar estrateacutegias de controle e
de exclusatildeo de todos aqueles que consideramos indesejaacuteveis ou perigosos
Lembrando que a normalizaccedilatildeo das condutas e dos estilos de vida nasceu com a
medicina social e que numa sociedade marcada pelas desigualdades parece mais
simples normalizar condutas do que transformar condiccedilotildees perversas de
existecircncia a autora faz uso das reflexotildees canguilhemianas tambeacutem para
problematizar o que chamamos hoje de sauacutede coletiva16
No cenaacuterio internacional Delaporte procura mostrar que a criacutetica de
Canguilhem agrave medicina cientiacutefica acaba por desvelaacute-la em suas aspiraccedilotildees ao
estabelecimento de um controle sobre a vida jaacute que a concepccedilatildeo positivista de
doenccedila como expressatildeo de uma supervalorizaccedilatildeo do saber foi o que tornou
acolhedora ao espiacuterito dos meacutedicos quiacutemicos e bioacutelogos a ideia tecnicista de
violar a natureza com fins terapecircuticos17 Lecourt vecirc nas reflexotildees
canguilhemianas uma criacutetica agrave medicina moderna em sua inclinaccedilatildeo a se tornar
um instrumento eficaz para soldar uma ordem social sufocante na medida em
que operando com o conceito de norma acaba por colocar o indiviacuteduo sob o
impeacuterio de uma concepccedilatildeo despoacutetica de sauacutede18
16
Cf CAPONI S Georges Canguilhem y el estatuto epistemoloacutegico del concepto de salud Historia Ciencias Sauacutede Manguinhos 42 287-307 1997
17 ldquoSe o vivo humano conhece as relaccedilotildees do mal com o estado normal entatildeo a medicina
comporta um poder de dominaccedilatildeo Eacute que a eficaacutecia da accedilatildeo estaacute fundada na ciecircncia Eis o programa de um positivismo despoacutetico e tatildeo seguro do seu poder que assimila a funccedilatildeo de conhecimento a uma funccedilatildeo de comando Reconhecemos de passagem uma das figuras de um sonho demiuacutergico o tema de uma potecircncia ilimitada do homem que se exerceria sobre a natureza e a vidardquo (DELAPORTE 1994 p37) Cf DELAPORTE F A Histoacuteria das Ciecircncias segundo G Canguilhem In PORTOCARRERO V Filosofia Histoacuteria e Sociologia das Ciecircncias I abordagens contemporacircneas Rio de Janeiro Fiocruz 1994
18 ldquoA sauacutede assume para aqueles a quem domina seja a triste face do regime versatildeo moderna da
servidatildeo voluntaacuteria seja a face mais dinacircmica e sorridente da forma ou mais ainda ou ainda mais estetizante da linha com destinaccedilatildeo preferencialmente feminina ou conjugal E se esgotado por estas exigecircncias o indiviacuteduo deixa lsquoabater-sersquo sempre lhe restaraacute a possibilidade de tomar dois anti-depressivos depois da refeiccedilatildeordquo (LECOURT 2006 p298-299) Cf LECOURT D ldquoNormasrdquo In RUSSO M CAPONI S (Org) Estudos de filosofia e histoacuteria das ciecircncias biomeacutedicas Satildeo Paulo Discurso Editorial 2006
27
Ainda Moullin acredita na importacircncia do pensamento de Canguilhem em
tempos de ldquomorte da cliacutenicardquo e pergunta se a referecircncia ao indiviacuteduo como forma
possiacutevel de vida e fonte de normatividade ainda satildeo aceitaacuteveis pelo meacutedico
contemporacircneo Refletindo tambeacutem sobre a medicina das populaccedilotildees ela destaca
a inquietaccedilatildeo de Canguilhem relativa agrave desconsideraccedilatildeo da sauacutede individual por
parte de uma medicina coletiva de corpos e autocircmatos19 Jaacute Gros faz uso do
pensamento canguilhemiano para refletir sobre os avanccedilos da biologia molecular e
da engenharia geneacutetica em consideraccedilatildeo ao tecircnue limite existente entre
eliminaccedilatildeo de erros geneacuteticos com fins terapecircuticos e a eugenia20
Mas vale dizer que apesar da existecircncia de um consenso entre os
comentadores sobre a relevacircncia do pensamento meacutedico-filosoacutefico de
Canguilhem o fato de ele ter optado por uma dupla formaccedilatildeo tem gerado
controveacutersias A exemplo disso Peacutequinot seu colega no periacuteodo de formaccedilatildeo
meacutedica se atendo agraves motivaccedilotildees pessoais que levaram Canguilhem agrave dupla
formaccedilatildeo recorda que ele nem mesmo gostava de ser chamado de doutor natildeo se
vendo como um ldquoverdadeiro meacutedicordquo e que apenas procurou tomar contato com a
medicina para poder melhor teorizaacute-la filosoficamente21 Moulin partindo da
afirmaccedilatildeo de Peacutequinot de que Canguilhem era um ldquodoutor em medicinardquo e natildeo um
meacutedico diz acreditar que ele ao situar seu lugar de fala (lieu de parole) e seu
projeto filosoacutefico na medicina oferece ao hospital uma legitimidade epistemoloacutegica
nova como local de pesquisas filosoacuteficas e daacute assim um excelente exemplo do
que se chamaria ldquoexerciacutecio teoacuterico da medicinardquo Mas ao mesmo tempo foi
somente sendo meacutedico ateacute o fim e correndo o risco de natildeo ser mais filoacutesofo que
19
Cf MOULIN A M La meacutedicine moderne selon Georges Canguilhem In BADIOU A (et al) Georges Canguilhem Philosophe historien des sciences Actes du colloque (6 7 8 deacutecembre 1990) Paris Albin Michel 1993
20 Cf GROS F Hommage agrave Canguilhem In BADIOU A (et al) Georges Canguilhem Philosophe
historien des sciences Actes du colloque (6 7 8 deacutecembre 1990) Paris Albin Michel 1993
21 Cf PEQUIGNOT H Georges Canguilhem et la medicine Revue de Metaphysique et de Morale
jan-mar 1985 [nuacutemero especial Georges Canguilhem]
28
ele pode provar a insuficiecircncia radical dos conhecimentos fornecidos pelo ensino
filosoacutefico e tambeacutem meacutedico22
Para Lecourt se eacute comum apresentar Canguilhem como ldquomeacutedico e filoacutesofordquo
ou como ldquofiloacutesofo e meacutedicordquo a segunda foacutermula eacute mais proacutexima da realidade pois
seu interesse pela medicina natildeo foi o de um meacutedico ou de um historiador mas o
de um filoacutesofo que viu nesta mateacuteria condiccedilotildees para prolongar seus estudos
teoacutericos Ele lembra que o proacuteprio Canguilhem diz ter exercido a medicina apenas
durante algumas semanas no maquis de Auvergne aleacutem de ter vivido um breve
episoacutedio de praacutetica psiquiaacutetrica no Hospital Saint-Alban23 Recorda ainda que ele
julga que a positividade destas praacuteticas residiu no fato de ter podido unir a seus
conhecimentos teoacutericos alguns conhecimentos de experiecircncia24 Assim se por um
lado seus estudos meacutedicos ganharam sentido no interior de seu projeto
epistemoloacutegico sendo a melhor explicitaccedilatildeo de seus temas de interesse por
outro serviram para aproximaacute-lo da ldquoconcretuderdquo dos problemas humanos
Portanto para ele eacute mais como filoacutesofo que Canguilhem defende natildeo soacute uma
postura epistemoloacutegica antipositivista que inverte a ordem de precedecircncia entre
ciecircncia e teacutecnica mas tambeacutem a partir de uma preocupaccedilatildeo eacutetica concreta
destaca a obrigaccedilatildeo do profissional meacutedico em ldquotomar partidordquo o que significa ter
22
Cf MOULIN A M La meacutedicine moderne selon Georges Canguilhem Op cit
23 Sobre sua breve experiecircncia praacutetica meacutedica Canguilhem resume ldquoNo veratildeo de 44 como
meacutedico do maquis de Auvergne escondi e cuidei dos feridos durante algumas semanas no hospital psiquiaacutetrico de Saint-Alban em Lozegravere e nas suas vizinhanccedilasrdquo (CANGUILHEM 1994 p 34) Cf CANGUILHEM G ldquoAberturardquo In CANGUILHEM G DERRIDA J MAJOR R ROUDINESCO E Foucault Leituras da Histoacuteria da Loucura (trad Maria Ignes Duque Estrada) Relume-Dumaraacute 1994
24 Aqui Lecourt se refere agrave entrevista dada por Canguilhem a Franccedilois Bing e Jean-Franccedilois
Braunstein em 21 de junho de 1995 Nela quando questionado sobre as razotildees que o levaram a estudar medicina ele explica ldquoPor mais pequeno e estreito que possa parecer comecei meus estudos em medicina porque estava decepcionado nos primeiros anos de ensino como professor de filosofia com as condiccedilotildees as quais meu ensino era julgado () Quando cheguei a Toulouse eu disse a mim mesmo que eu faria bem em unir ao que jamais pude ateacute entatildeo adquirir dos conhecimentos de ordem livresca em filosofia alguns conhecimentos de experiecircncia tais quais aqueles que se pode obter do ensino de medicina e talvez um dia de sua praacutetica Aiacute estaacute a razatildeo fundamentalrdquo (CANGUILHEM 1998 p 121) Cf CANGUILHEM G Entretien avec Georges Canguilhem In BING F BRAUNSTEIN J-F ROUDINESCO E (org) Actualiteacute de Georges Canguilhem Le normal et le pathologique Paris Syntheacutelabo 1998
29
consciecircncia da medida de suas responsabilidades e operar atraveacutes disso uma
reforma em sua conduta25
Jaacute Roudinesco a partir de dados biograacuteficos daacute maior destaque agrave faceta
canguilhemiana de resistente de meacutedico de urgecircncia que atuou na guerra e pela
guerra e enfatiza o quanto as duas modalidades de sua ldquofilosofia da accedilatildeordquo o ato
de resistir (soutenir) e o ato de cuidar (soigner) permitiram que Canguilhem
fizesse com que a Resistecircncia e a medicina dessem os braccedilos Aos olhos da
historiadora e tambeacutem psicanalista foi o exerciacutecio da medicina no maquis que
possibilitou a ele se confrontar com uma experiecircncia humana concreta dando
ldquocorpo e vidardquo agrave sua reflexatildeo conceitual sobre a natureza mesma da normalidade
A seu ver ao concluir que a medicina sem ser ela proacutepria uma ciecircncia utiliza o
resultado de todas as ciecircncias a serviccedilo das normas vitais Canguilhem a coloca
no centro de uma nova forma de racionalidade26 Mostrando que a atividade
cientiacutefica-laboratorial natildeo suplanta a observaccedilatildeo cliacutenica ele propotildee uma
revalorizaccedilatildeo da arte meacutedica e nos faz ver que somente uma medicina fundada
na escuta e na observaccedilatildeo do doente eacute capaz de assegurar um verdadeiro status
ao profissional meacutedico evitando que ele se torne lacaio do laboratoacuterio e da
farmacologia
Em nosso trabalho natildeo nos atemos agraves motivaccedilotildees que levaram
Canguilhem agrave dupla formaccedilatildeo nem mesmo nos propomos a apresentar dados
biograacuteficos sobre seu periacuteodo de formaccedilatildeo meacutedica ou sobre sua participaccedilatildeo na
Resistecircncia de modo a responder se ele tinha ou natildeo interesse em dedicar-se
integralmente agrave praacutetica cliacutenica tornando-se com isso um ldquoverdadeiro meacutedicordquo ou
em que medida a experiecircncia no maquis foi determinante para sua reflexatildeo sobre
a normalidade Ou seja natildeo procuramos investigar a relaccedilatildeo existente entre vida
e obra nem mesmo apontar todas as influecircncias teoacutericas que foram importantes
25
Cf LECOURT D Une philosophie de la medicine In Georges Canguilhem Que sais-je Les envies du savoir 1
a ediccedilatildeo Paris Presses Universitaires de France - PUF 2008
26 ldquoAbandonada haacute um seacuteculo pela filosofia fosse porque natildeo fazia parte das lsquociecircncias nobresrsquo
como a matemaacutetica ou a fiacutesica fosse porque se aproximava da biologia ela proacutepria ignorada pela filosofia a medicina podia tornar-se para o jovem filoacutesofo o centro de uma nova forma de racionalidaderdquo (ROUDINESCO 2007 p 23) Cf ROUDINESCO E Filoacutesofos na tormenta (Canguilhem Sartre Foucault Althusser Deleuze Derrida) Rio de Janeiro Zahar 2007
30
para a constituiccedilatildeo de seu pensamento meacutedico-filosoacutefico desde o periacuteodo de
juventude27
Quando estudamos o pensamento canguilhemiano procuramos sobretudo
identificar o ponto de vista de um filoacutesofo e tambeacutem meacutedico que optou por buscar
sua mateacuteria de reflexatildeo junto ao leito do doente resgatando com isso o sentido
primeiro da praacutetica cliacutenica o de ser uma teacutecnica ou arte da cura que se coloca a
serviccedilo da vida Se atraveacutes disso ele operou uma accedilatildeo de resistecircncia assim o
fez principalmente porque revelou a ideologia de controle ou domiacutenio subjacente agrave
medicina cientiacutefica moderna que acabou por transformaacute-la num dispositivo social
de normalizaccedilatildeo
Sendo assim diante da necessidade identificada por Canguilhem de
realizaccedilatildeo de uma ldquocriacutetica da razatildeo meacutedica praacuteticardquo a tarefa que a noacutes se colocou
foi a de recolher em seus escritos fundamentos para a construccedilatildeo de outra
racionalidade em sauacutede que consiga operar resistecircncia agraves praacuteticas de
normalizaccedilatildeo que acreditamos ainda serem correntes Destarte concordamos
com Roudinesco quanto agrave possibilidade de enxergarmos no pensamento de
Canguilhem outra forma de racionalidade meacutedica com raiacutezes na vida
Acompanhamos tambeacutem Debru por ele fazer uma defesa da racionalidade
meacutedica de tipo holista proposta por Canguilhem mas discordamos de Morange
por questionar a pertinecircncia das teses canguilhemianas presentes em sua criacutetica
radical ao projeto de fundar a medicina sobre bases cientiacuteficas
Com efeito segundo Morange o sucesso de O normal e o patoloacutegico se
deu porque esta obra antecipou as dificuldades enfrentadas pela tecnicizaccedilatildeo
crescente da medicina e se inscreveu nos debates comuns desde os anos 60
sobre a desumanizaccedilatildeo dos serviccedilos de sauacutede e a necessidade de reforma da
medicina moderna Mas embora acredite que esta criacutetica seja pertinente ele julga
ser sua base conceitual e filosoacutefica inaceitaacutevel Por exemplo Canguilhem natildeo faz
um retrato fiel da medicina de seu tempo Ele pouco considera os sucessos da
27
Empreitada jaacute realizada por Lecourt diretor honoraacuterio do Centre Georges Canguilhem - Universiteacute Paris Diderot 7 Cf LECOURT D Que sais-je Les envies du savoir 1
a ediccedilatildeo Paris
Presses Universitaires de France - PUF 2008
31
microbiologia Aleacutem disso Morange aponta os riscos de desconsideraccedilatildeo dos
criteacuterios objetivos para o diagnoacutestico da doenccedila e questiona a pertinecircncia da
afirmaccedilatildeo de que eacute o paciente que define a fronteira entre o normal e o patoloacutegico
Ele acredita ser uma ilusatildeo achar mais humana esta medicina holista que
considera a doenccedila como um novo estado e natildeo como uma alteraccedilatildeo localizada
nos oacutergatildeos Na era poacutes-genocircmica eacute a determinaccedilatildeo de caracteriacutesticas geneacuteticas
individuais que permite conhecer os riscos do desenvolvimento de certas
patologias ou a resposta particular a certos tratamentos farmacoloacutegicos Assim a
re-personalizaccedilatildeo do ato meacutedico seraacute bioloacutegica28
Jaacute Debru considerando o engajamento de Canguilhem - filosoacutefico no
campo da medicina e poliacutetico de combate aos nazistas - acredita que sua filosofia
eacute rica em consequecircncias para o plano da eacutetica meacutedica agrave praacutetica do cuidado e
para a concepccedilatildeo mesma de valor da vida Para ele o progresso das tecnologias
que permite realizar o sonho dos meacutedicos de tratamentos individualizados na
perspectiva de terapecircuticas novas e eficazes natildeo invalida a criacutetica ao ciclo
tecnocientiacutefico realizada por Canguilhem pois a biologia a imunologia e a
geneacutetica permitem reencontrar a individualidade do doente mas natildeo apreendem o
indiviacuteduo concreto A medicina contemporacircnea embora baseada em evidecircncias
se apoiando em aparelhos e estatiacutesticas ensaios cliacutenicos standartizados eacute
deficitaacuteria para se aproximar da individualidade do paciente em sua biografia isto
eacute em sua existecircncia sua maneira de ser no mundo e suas relaccedilotildees sociais e
afetivas Mais e mais reduzida ao suporte bioloacutegico da doenccedila ela ignora as
dimensotildees socioafetivas de numerosas doenccedilas e a pluralidade de fatores que
concorrem para o processo patoloacutegico sejam eles geneacuteticos ecoloacutegicos sociais
ou psicoloacutegicos Eacute aiacute que o holismo vitalista de Canguilhem pode sustentar uma
reflexatildeo sobre a praacutetica meacutedica nos servindo como um inspirador ou guia29
28
MORANGE M Retour sur le normal et le pathologique In FAGOT-LARGEAULT DEBRU D MORANGE M (dir) HAN H-J (eacuted) Op cit
29 DEBRU C Lrsquoengagement philosophique dans le champ de la meacutedecine Georges Canguilhem
aujordrsquohui In BRAUNSTEIN J-F (org) Histoire des sciences et politique du vivant Paris Presses Universitaires de France ndash PUF 2007 p45-62
32
Assim foi apostando na pertinecircncia de suas teses ou seja adotando o
ponto de vista de Canguilhem de que a ideia de normalidade como normalizaccedilatildeo
mais se identifica agrave medicina cientiacutefica moderna que opera com a ideia de norma -
como meacutedia estatiacutestica e tipo ideal - do que a uma medicina que considera que na
natureza haacute apenas normalidade como normatividade que procuramos ao fim de
nosso trabalho vislumbrar outra racionalidade para as praacuteticas de cuidado em
sauacutede na atualidade e obter algumas respostas a estas e a outras questotildees que a
nosso ver se impotildeem O que eacute sauacutede afinal Eacute possiacutevel compreendermos de
outra forma o fenocircmeno patoloacutegico O aprimoramento dos meacutetodos de anaacutelise
diagnoacutestica tem contribuiacutedo efetivamente para o tratamento e cura das doenccedilas
Quais os limites do uso da tecnologia meacutedica O tratamento farmacoloacutegico basta
para promover um efetivo bem-estar Ateacute que ponto natildeo patologizamos e
medicalizamos alguns comportamentos humanos apenas por natildeo se enquadrarem
na meacutedia ou natildeo responderem agraves normas sociais O que os profissionais de
sauacutede fazem fazendo o que fazem Produccedilatildeo de sauacutede ou normalizaccedilatildeo dos
corpos e das mentes Haacute como realizar uma politizaccedilatildeo da cliacutenica sem
resvalarmos em um discurso meramente ideoloacutegico
Seguindo a trilha aberta por Canguilhem do estudo sobre a vida o normal
e o patoloacutegico ateacute a apresentaccedilatildeo de problematizaccedilotildees relativas aos aspectos
teacutecnico-cientiacutefico e eacutetico-poliacutetico da cliacutenica meacutedica e psicoloacutegica estruturamos
nossa trajetoacuteria em quatro capiacutetulos O primeiro deles trata da concepccedilatildeo
canguilhemiana de vida procurando mostrar qual o sentido de considerarmos a
medicina uma teacutecnica ou arte que nela se enraiacuteza O segundo capiacutetulo se ateacutem agrave
criacutetica de Canguilhem agrave ideia de medicina como ciecircncia das doenccedilas realizada a
partir da contestaccedilatildeo que faz agrave tese presente nos trabalhos de Comte e Claude
Bernard de que o patoloacutegico seria apenas uma variaccedilatildeo quantitativa do estado
normal O terceiro objetiva mostrar como e porque aos olhos de Canguilhem as
praacuteticas de sauacutede podem se transformar em dispositivos de normalizaccedilatildeo dos
indiviacuteduos e em estrateacutegias de gestatildeo sociopoliacutetica meacutedica da vida cotidiana O
quarto capiacutetulo por fim apresenta os contornos desta outra racionalidade que
escolhemos chamar de medicina filosoacutefica de Georges Canguilhem dando
33
abertura a um debate sobre o ensino a pesquisa a praacutetica e a eacutetica em sauacutede na
atualidade
34
CAPIacuteTULO I
Medicina uma arte enraizada na vida
Se viver eacute lutar contra a morte nosso uacuteltimo suspiro eacute ainda um derradeiro ato de resistecircncia
Para esclarecermos porque Canguilhem define a medicina como uma arte
de enraizamento vital eacute preciso primeiramente identificar qual concepccedilatildeo de vida
ele apresenta no conjunto de seus escritos considerando que ela natildeo se encontra
em um escrito em particular mas aparece de modo disperso e nem sempre direto
no decorrer dos estudos que faz sobre medicina histoacuteria e filosofia das ciecircncias
da vida Apesar disso no curso de nossa investigaccedilatildeo notamos que o fio condutor
que une todas as reflexotildees canguilhemianas sobre a vida eacute a capacidade que ela
tem de accedilatildeo espontacircnea de reaccedilatildeo e de resistecircncia a tudo o que lhe ameaccedila
quando de seu embate com o meio
ldquoA vida natildeo eacute portanto para o ser vivo uma deduccedilatildeo monoacutetona um movimento retiliacuteneo ela ignora a rigidez geomeacutetrica ela eacute debate ou explicaccedilatildeo (o que Goldstein chama de Auseinandersetzung) com um meio em que haacute fugas vazios esquivamentos e resistecircncias inesperadasrdquo (NP 1990 p160)
Daiacute decorre que sendo este precisamente nosso tema de interesse eacute apenas por
natildeo ser a vida indiferente e apaacutetica pois ela reage e resiste agrave degradaccedilatildeo e agrave
morte que a medicina aparece como o prolongamento dela30
30
Canguilhem no verbete laquo Vie raquo da Encyclopaeligdia Universalis parte da questatildeo sobre o que eacute mais precisamente a vida do vivente para aleacutem da coleccedilatildeo de atributos proacuteprios que poderiam resumir a histoacuteria deste ser nascido para morrer Para respondecirc-la ele traccedila uma breve histoacuteria da apariccedilatildeo do conceito nos diversos verbetes de dicionaacuterios e enciclopeacutedias cientiacuteficas e encontra desde o esboccedilo de uma definiccedilatildeo geral de vida em Aristoacuteteles ateacute a perspectiva da ciberneacutetica Ou seja como resultado deste percurso ele encontra diferentes entendimentos de vida como animaccedilatildeo mecanismo organizaccedilatildeo e informaccedilatildeo Sem encontrar uma resposta rematada para a sua questatildeo em nenhuma destas concepccedilotildees por fim conclui que a morte eacute o uacutenico sinal irrefutaacutevel da vida Apoiado nos trabalhos de Freud e de Atlan especificamente no conceito de pulsatildeo de morte instabilidade desequiliacutebrio e inacabamento do vivo nota que o uacutenico projeto verdadeiramente reconhecido da vida eacute a morte ainda que recusado por ela Cf CANGUILHEM G Article Vie (Paris Encyclopaeligdia Universalis) t23 p546-553 1989
35
De modo mais preciso eacute em contraposiccedilatildeo aos fundamentos teoacutericos
ideoloacutegicos da biologia mecanicista em suas diferentes formulaccedilotildees histoacutericas
que a vida eacute definida por Canguilhem como uma atividade de oposiccedilatildeo agrave ineacutercia e
agrave indiferenccedila atividade a partir da qual todas as teacutecnicas humanas se originam
Por isso quando de sua reflexatildeo sobre o surgimento da medicina ele diz ser a vis
medicatrix naturae entendida por ele como uma teacutecnica curativa natildeo intencional
da vida a origem da teacutecnica terapecircutica intencional humana Ou seja para ele eacute
somente pelo fato da vida ser reatividade polarizada de conflito com o meio sendo
capaz de uma atividade normativa de caraacuteter hedocircnico que a teacutecnica meacutedica se
faz possiacutevel
Mas dizer que haacute nos escritos canguilhemianos uma concepccedilatildeo de vida
derivada de suas anaacutelises filosoacuteficas natildeo significa afirmar a existecircncia neles de
uma teoria bioloacutegica rematada Isso porque como Canguilhem mesmo esclarece
no prefaacutecio de La Formation du concept de reacuteflexe aux XVIIe et XVIIIe siegravecles ele
nunca procurou fazer uma teoria bioloacutegica tarefa proacutepria de um bioacutelogo nem uma
biologia de filoacutesofo projeto a seu ver monstruoso mas apenas uma filosofia da
vida tarefa esta sim proacutepria a um filoacutesofo (cf FCR 1955 p01)31 No entanto ao
fazer sua anaacutelise filosoacutefica da vida trazendo as ideias de polaridade dinacircmica e
normatividade vital para ressignificar as noccedilotildees correntes de normal e de
patoloacutegico ele acaba por apresentar um ponto de vista original sobre seus
fenocircmenos
Com efeito em seus estudos sobre a normalidade tomando por criteacuterio de
sauacutede e de doenccedila a normatividade vital ele coloca em questatildeo a ideia corrente
de que o patoloacutegico eacute anormal no sentido estrito da palavra jaacute que pela sua
perspectiva ateacute mesmo o doente pode ser considerado normal embora padeccedila de
uma restriccedilatildeo em sua capacidade normativa Aleacutem disso eacute tambeacutem em
31
Com efeito como esclarece Machado (1981) Canguilhem natildeo teve a pretensatildeo de fazer uma filosofia da vida no sentido de uma biologia de filoacutesofo Sua problemaacutetica de investigaccedilatildeo eacute a filosofia das ciecircncias da vida Assim se ela encerra uma reflexatildeo sobre a vida o que natildeo se pode negar tal reflexatildeo eacute indireta e mediatizada Cf MACHADO R A Histoacuteria Epistemoloacutegica de Georges Canguilhem In Ciecircncia e Saber A Trajetoacuteria da Arqueologia de Foucault 2ordf ed Rio de Janeiro Graal 1981
36
consideraccedilatildeo agrave polaridade e normatividade vitais que no contexto de suas
reflexotildees sobre a relaccedilatildeo do vivente com seu meio consegue contestar a ideia de
que a vida estaacute integralmente submetida a influecircncias externas restando a ela
apenas adaptar-se passivamente ao entorno A seu ver o vivente ao contraacuterio de
uma maacutequina natildeo eacute mateacuteria passiva regrada de fora mas pode transformar o
meio em que se encontra adaptando-se ativamente a ele
ldquoInsistimos que as funccedilotildees bioloacutegicas satildeo ininteligiacuteveis do modo como satildeo reveladas pela observaccedilatildeo quando soacute traduzem os estados de uma mateacuteria passiva diante das transformaccedilotildees do meiordquo (NP 1990 p143)
Com isso ele atribui agrave vida propriedades que soacute a ela podem ser referenciadas a
capacidade de valorar seus comportamentos a liberdade de infringir e criar suas
proacuteprias normas e a de alterar o meio no qual se desenrola
Assim se ele recusa a concepccedilatildeo de meio em sua formulaccedilatildeo mecanicista32
e por conseguinte as teorias para as quais ele domina e comanda a evoluccedilatildeo das
espeacutecies eacute porque acredita que sua primeira consequecircncia eacute conceber o
organismo como passivamente deformaacutevel sobre a pressatildeo do ambiente e com
isso sua espontaneidade proacutepria eacute refutada e ele passa a se identificar ao inerte
(cf E 1989 p 66)
Contrariamente a essa ideia em seus estudos sobre o ser vivo e seu meio
ele recorre agrave Uexkuumlll e agrave Goldstein para mostrar que o vivente natildeo eacute uma maacutequina
32
Como veremos entendendo que o conceito de meio transposto da mecacircnica e da fiacutesica para a biologia favorece as concepccedilotildees deterministas de vida Canguilhem procura dar a este termo uma conotaccedilatildeo estritamente bioloacutegica que natildeo o reduz a um sistema de constantes mecacircnicas fiacutesicas e quiacutemicas Na coletacircnea La connaissance de la vie no artigo ldquoLe vivant et son milieurdquo ele esclarece que a noccedilatildeo e o termo meio foram importados da mecacircnica para a biologia na segunda metade do seacuteculo XVIII A noccedilatildeo mas natildeo o termo aparece em Newton e o termo com sua significaccedilatildeo mecacircnica aparece na Encyclopeacutedie de drsquoAlembert e Diderot Com efeito eacute em Newton no estudo sobre o fenocircmeno fisioloacutegico da visatildeo que encontramos um primeiro exemplo de explicaccedilatildeo de uma reaccedilatildeo orgacircnica por accedilatildeo do meio ou seja de um fluido estritamente definido por suas propriedades fiacutesicas Na biologia eacute Lamarck quem introduz o termo defendendo que o meio domina e comanda a evoluccedilatildeo dos viventes Mas eacute de Taine mais do que Lamarck que os neo-lamarckistas franceses retiram o termo agora identificado como um dos princiacutepios de explicaccedilatildeo analiacutetica da histoacuteria ao lado da raccedila e do momento Assim a seu ver ldquoO benefiacutecio de uma histoacuteria mesmo que sumaacuteria da importaccedilatildeo em biologia do termo meio nos primeiros anos do seacuteculo XIX eacute prestar conta da acepccedilatildeo originalmente e estritamente mecanicista deste termordquo (cf CV 1985 p134)
37
que apenas responde a exitaccedilotildees do meio pois cada organismo tem um meio
proacuteprio (Umwelt) com tempo e espaccedilo ordenado pelo seu ritmo de vida no qual se
move e se orienta segundo seu interesse O meio ambiente humano (Umwelt
humaine) passa a ser entendido entatildeo como o mundo usual da experiecircncia
perspectiva e pragmaacutetica deste sujeito de valores vitais que eacute essencialmente o
ser vivo (cf CV 1985 p 145) Ainda eacute defendendo uma concepccedilatildeo de vivente
como um centro criador de valores e normas e adotando uma relaccedilatildeo do ser vivo
com seu meio de caraacuteter natildeo determinista que ele procura mostrar nos termos de
Goldstein quatildeo catastroacutefica e doentia pode ser uma vida apaacutetica estagnada e
condicionada pelo exterior considerando que ldquoviver para o animal e com mais
razatildeo para o homem natildeo eacute somente se estagnar e se conservar eacute afrontar riscos
e triunfarrdquo (CV 1985 p 146)
Tambeacutem como Nietzsche tomando a vida como potecircncia valorativa que
tende agrave expansatildeo e agrave superaccedilatildeo como movimento incessante de ensaio
experimentaccedilatildeo e criaccedilatildeo de novas formas eacute atraveacutes da afirmaccedilatildeo da reatividade
criatividade e liberdade vitais - jaacute que ela pode transgredir seus proacuteprios haacutebitos
ensaiar experimentar improvisar novos modos de ser e insurgir-se contra as
imposiccedilotildees do meio - que Canguilhem consegue se opor a uma perspectiva
ideoloacutegica de mecanizaccedilatildeo da vida e sua consequente desvalorizaccedilatildeo
perspectiva a seu ver inaugurada pela teoria cartesiana do animal-maacutequina que
inseparaacutevel da proposiccedilatildeo ldquopenso logo existordquo apresentou o corpo como incapaz
de linguagem e de invenccedilatildeo (cf CV 1985 p111) servindo posteriormente de
base para a constituiccedilatildeo de uma ciecircncia bioloacutegica materialista e mecanicista que
procurou eliminar da vida qualquer referecircncia a valores (cf I 1981 p117)
Desse modo eacute apontando as insuficiecircncias das teorias bioloacutegicas que
assimilam o organismo a uma maacutequina bem como o equiacutevoco das teorias
deterministas de meio que ele adota uma concepccedilatildeo de vivente como uma
totalidade orgacircnica autorregulada produtora de normas e valores e uma teoria das
relaccedilotildees do ser vivo com seu meio de teor integrista33 segundo a qual mesmo as
33
Segundo Jacob (1983) o integrismo em biologia por oposiccedilatildeo ao reducionismo defende natildeo soacute que o organismo natildeo eacute dissociaacutevel em seus elementos constituintes mas tambeacutem o vecirc como
38
chamadas anomalias morfoloacutegicas e geneacuteticas - natildeo sendo necessariamente
letais ou patoloacutegicas pois sua normalidade dependeraacute de suas relaccedilotildees com o
meio em que se encontram - seratildeo consideradas necessaacuterias agrave diversificaccedilatildeo
adaptaccedilatildeo e evoluccedilatildeo das espeacutecies
Vale dizer que ao refletir sobre as relaccedilotildees do vivente com seu meio se ele
se filia ao darwinismo natildeo eacute para tomar para si o mecanismo de evoluccedilatildeo
proposto pelo autor de A origem das espeacutecies mas eacute precisamente por ter sido
Darwin quem aleacutem de colocar em xeque as ideias de criaccedilatildeo especial e
imutabilidade das espeacutecies associou a ideia de normalidade do vivente ao
ambiente em que se encontra Tambeacutem para ele as formas vivas estatildeo em
movimento contiacutenuo de transformaccedilatildeo e este processo evolutivo natildeo segue um
plano ou teacutelos preacute-determinado pela mente de um Criador mas se daacute de modo
aleatoacuterio marcado pela aventura e pelo risco (cf E 1989 p364)
De igual modo a importacircncia que daacute agraves mutaccedilotildees natildeo o faz um seguidor do
mutacionismo Ou seja se ele atribui a elas outro estatuto natildeo eacute por considerar
que sejam as uacutenicas causas dos processos evolutivos mas porque as toma como
prova da criatividade e da liberdade vitais34 jaacute que natildeo ocorrem necessariamente
por influecircncia do meio mas de espontacircneo inovador e fortuito
integrado a um sistema de ordem superior isto eacute a um grupo a uma espeacutecie a uma populaccedilatildeo ou famiacutelia ecoloacutegica Isto eacute o bioacutelogo integrista natildeo apenas se recusa a compreender o funcionamento do organismo apenas por suas estruturas fiacutesicas e seu desempenho pelas reaccedilotildees quiacutemicas que nele ocorrem mas tambeacutem se interessa pelas coletividades pelos comportamentos e relaccedilotildees que os organismos manteacutem entre si e com o seu meio Desta vista a atitude integrista pode tambeacutem ser qualificada de evolucionista na medida em que um oacutergatildeo e uma funccedilatildeo soacute tecircm interesse quando considerados no interior de um todo constituiacutedo natildeo somente pelo organismo mas pela espeacutecie em seu cotejo com a sexualidade viacutetimas inimigos comunicaccedilatildeo e ritos Sobre o integrismo em biologia confira JACOB F A loacutegica do vivente uma histoacuteria da hereditariedade (Trad Acircngela Loreiro de Souza) Rio de Janeiro Ediccedilotildees Graaal 1983
34 Dagognet (2007) destaca a vizinhanccedila existente entre a ideia de liberdade e criatividade na
filosofia da vida de Canguilhem A seu ver o destaque dado por ele agrave existecircncia de genes mutantes serve para mostrar que agrave vida eacute sempre possiacutevel atribuir uma parte de novidade e de rearranjo Tambeacutem se verifica uma criatividade de base na relaccedilatildeo do vivente com seu meio jaacute que ele longe de se submeter institui o meio em que vive e natildeo paacutera de se transformar Desta forma eacute atraveacutes de um vitalismo racional ou surracional caracterizado pelo afrouxamento em relaccedilatildeo ao convencional e agraves regras que Canguilhem elabora uma ldquofilosofia heuriacutestica da criatividaderdquo que percebe a presenccedila sempre inventiva da vida laacute onde ela parece estar abolida se abaixar e se perder nos seus domiacutenios aparentemente menos como na patologia e na atividade reflexa Sobre a importacircncia do conceito de criatividade na filosofia da vida de Canguilhem Cf DAGOGNET F Pourquoi la maladie et le reacuteflexe dans la philosophie biomeacutedicale
39
Ademais se em suas reflexotildees sobre a vida ele valoriza as
monstruosidades morfoloacutegicas e funcionais e as micromonstruosidades geneacuteticas
natildeo eacute soacute porque elas atestam que ao contraacuterio de um sistema de leis que natildeo
comporta exceccedilotildees a vida como uma ordem de propriedades admite erros
desvios e infraccedilotildees como uma via para sua superaccedilatildeo Eacute tambeacutem porque
ideologicamente uma teoria do caraacuteter espontacircneo das mutaccedilotildees pode moderar a
ambiccedilatildeo humana de dominaccedilatildeo integral da natureza assim como o
reconhecimento de uma accedilatildeo natildeo determinista do entorno em relaccedilatildeo aos
viventes desautoriza uma accedilatildeo ilimitada do vivente humano sobre os outros
viventes e sobre ele mesmo por intermeacutedio do meio (cf CV 1985 p149) Aleacutem
disso ao recusar a ideia de origem das espeacutecies apenas por seleccedilatildeo natural ele
tambeacutem procura se afastar do que considera ser uma ldquodegradaccedilatildeo ideoloacutegicardquo da
teoria da concorrecircncia vital desastrosamente transposta para as relaccedilotildees dos
indiviacuteduos em sociedade (cf I 1981 p93)35
Em vista disso na trilha dos vitalistas Canguilhem questiona todo projeto
teoacuterico que procura explicar a vida a partir de um modelo mecacircnico ou fiacutesico-
quiacutemico o que faria da biologia um mero sateacutelite de outras ciecircncias Assim como
Barthez e Bichat ele critica a invasatildeo na biologia de ciecircncias estrangeiras a toda
concepccedilatildeo vital resistindo agrave pretensatildeo da fiacutesico-quiacutemica de fornecer agrave biologia
de Canguilhem In BAUNSTEIN J-F (org) Histoire des sciences et politique du vivant Paris Presses Universitaires de France ndash PUF 2007 p17-25
35 A criacutetica de Canguilhem se direciona aqui agrave teoria evolucionista de Herbert Spencer considerado
por alguns o pai do ldquodarwinismo socialrdquo Na Ideologia e racionalidade nas ciecircncias da vida ao examinar a gecircnese do evolucionismo ele diz considerar a obra de Spencer um interessante caso de ideologia cientiacutefica do seacuteculo XIX Isso porque para ele ideologia cientiacutefica eacute certo tipo de discurso que paralelo a uma ciecircncia em constituiccedilatildeo por exigecircncias de ordem praacutetica se vecirc pressionado a antecipar a consumaccedilatildeo da investigaccedilatildeo ou ainda uma construccedilatildeo discursiva presunccedilosa e deslocada por que julga seu fim concretizado desde o iniacutecio e quando se realiza eacute de um modo diferente e em outro domiacutenio que natildeo o prometido (cf I 1981 p57) A teoria de Spencer ao encontrar na biologia de Von Baer e depois na de Darwin um padratildeo de garantia cientiacutefica para um projeto de sociedade baseada no livre empreendimento no individualismo poliacutetico e na concorrecircncia pode exemplarmente ser tomada por uma ideologia cientiacutefica pois haacute nela uma extensatildeo de conclusotildees teoacutericas regionais desligadas de suas premissas originais e libertas de seus contextos realizada em nome de uma finalidade praacutetica ldquoA ideologia evolucionista funciona como autojustificaccedilatildeo dos interesses de um tipo de sociedade A sociedade industrial em conflito por um lado com a sociedade tradicional e por outro com a reivindicaccedilatildeo social Ideologia antiteleoloacutegica por um lado e anti-socialista por outro Reencontramos assim o conceito marxista de ideologia que a considera como a representaccedilatildeo da realidade natural ou social cuja verdade natildeo reside no que esta representaccedilatildeo diz mas no que ela calardquo (I 1981 p40)
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seus princiacutepios de explicaccedilatildeo (cf E 1989 p79) Tambeacutem a seu ver a anexaccedilatildeo
da biologia agraves ciecircncias da mateacuteria representaria a perda da especificidade de seu
objeto o fenocircmeno orgacircnico Assim afastado tanto da crenccedila animista na
existecircncia de uma alma provida de todos os atributos de inteligecircncia da qual
dependeria a vida do corpo animal como de um substancialismo dualista que
admite a existecircncia de uma substancia agindo sobre a outra da qual seria
ontologicamente distinta seu vitalismo ldquoeacute o simples reconhecimento da
originalidade do fato vitalrdquo (CV 1985 p156)
Mas eacute tambeacutem ciente das apropriaccedilotildees ideoloacutegicas do vitalismo que ele
procura destacar a fecundidade e a vitalidade desta tradiccedilatildeo de pensamento de
modo a poder nela se inscrever sem ser acusado de reacionaacuterio Isso porque
admite que historicamente o conceito de totalidade orgacircnica foi transposto para o
terreno poliacutetico como forma de justificar o regime totalitaacuterio a enteleacutequia de
Driesch foi tomada como o Fuumlhrer do organismo assim como a geneacutetica as
teacutecnicas de esterilizaccedilatildeo e de inseminaccedilatildeo artificial foram colocadas a serviccedilo da
eugenia racista e o darwinismo foi usado para justificar o imperialismo e a poliacutetica
do espaccedilo vital (Lebensraum) alematilde Natildeo obstante negando haver uma relaccedilatildeo
direta entre vitalismo e nacional-socialismo ele acredita que a conversatildeo de
certos bioacutelogos vitalistas ao nazismo natildeo deve fazer com que desabonemos o
vitalismo assim como natildeo criticamos a aritmeacutetica e o caacutelculo por sua utilizaccedilatildeo
pelos banqueiros e atuais capitalistas (cf CV 1985 p98)
De todo modo considerando que foi a biologia vitalista impregnada de
animismo a que foi utilizada pela ideologia nazista para justificar seu projeto social
se ele natildeo se importa de ser chamado de vitalista natildeo eacute por aceitar a existecircncia de
uma forccedila vital situada para aleacutem da mateacuteria viva que a animaria de fora como
fizeram os animistas e os vitalistas claacutessicos mas por admitir uma capacidade
inerente proacutepria a ela de reaccedilatildeo e de autoconservaccedilatildeo que natildeo se encontra na
mateacuteria inerte e que atesta a especificidade da ordem vital em relaccedilatildeo agrave
maquinal
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Aleacutem disso se para Canguilhem eacute a perspectiva vitalista a que melhor o
auxilia a operar a diferenciaccedilatildeo entre o vivo e o inerte eacute tambeacutem ela a uacutenica que
consegue explicar o surgimento da atividade teacutecnica a partir da vida mesma
ldquoo vitalismo eacute talvez o sentimento de uma antecipaccedilatildeo ontoloacutegica portanto cronologicamente irrecuperaacutevel da vida sobre a teoria e a teacutecnica sobre a inteligecircncia e a simulaccedilatildeo da vidardquo (FCR 1995 p128)
Transpondo esta ideia para sua reflexatildeo sobre o surgimento da medicina ele nota
que enquanto a maacutequina precisa de algueacutem que a construa que a regule e a
repare o vivente se reproduz se autorrepara se autocura e se autorregenera
sendo precisamente esta capacidade de reaccedilatildeo e de resistecircncia agrave morte inerente
a tudo que vive a origem da teacutecnica meacutedica
Neste capiacutetulo entatildeo a forma como ele define a vida e o que faz com que
ela seja a raiz da atividade meacutedica eacute o que nos propomos apresentar
Quando estudamos o pensamento de Canguilhem em seu conjunto
notamos que se ele tece criacuteticas agrave biologia mecanicista natildeo eacute soacute porque considera
insuficientes os estudos bioloacutegicos que natildeo levam em conta a distinccedilatildeo existente
entre o movimento vital e o movimento fiacutesico este uacuteltimo com tendecircncia agrave ineacutercia
(cf CV 1985 p12) Eacute tambeacutem porque percebe que historicamente ela se
constituiu a partir de um projeto poliacutetico-ideoloacutegico de supressatildeo de toda e
qualquer referecircncia a valores no campo da ciecircncia associado agrave disputa de
autoridade entre os poderes religioso e laico
ldquoMas vem-nos imediatamente ao espiacuterito que desde o princiacutepio do seacuteculo XIX a definiccedilatildeo do objeto especiacutefico da biologia foi purgado de qualquer referecircncia a conceitos de ordem axioloacutegica tais como perfeiccedilatildeo ou imperfeiccedilatildeo normal ou anormal etc () Consequentemente o problema da lsquonormalidadersquo na histoacuteria do pensamento bioloacutegico devia colocar-se entre as consideraccedilotildees natildeo atuais Queremos fazer uma tentativa de demonstrar o contraacuteriordquo (cf I 1981 p109)
Assim se ele se dedica filosoficamente ao problema do normal e do patoloacutegico eacute
sobretudo para resgatar a dimensatildeo ativa e axioloacutegica da vida traduzida por suas
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propriedades de instituir valores e de criar normas isto eacute pela polaridade
dinacircmica e normatividade que lhe satildeo proacuteprias
Com efeito em seus Eacutetudes dacuteHistoire et de Philosophie des Sciences
Canguilhem esclarece que a partir do momento em que a mecacircnica cartesiana e
galileana foi dada como modelo de uma ciecircncia universal em seu objeto e
homogecircnea em seu meacutetodo abolindo toda a diferenccedila ontoloacutegica entre as coisas
do ceacuteu e da terra entre as coisas inertes e os seres vivos os organismos
passaram a ser descritos e explicados em sua estrutura e funccedilotildees como um ponto
de convergecircncia de forccedilas fiacutesicas e como o resultado de um conjunto de
influecircncias externas impostas pelo ambiente natural A biologia passou entatildeo a
utilizar a linguagem da fiacutesica e da quiacutemica e a explicar os seres vivos nos mesmos
termos da mateacuteria inerte reduzindo-os a propriedades puramente extensionais A
consequecircncia disso foi a perda da especificidade das ciecircncias bioloacutegicas em seu
objeto e meacutetodos de investigaccedilatildeo (cf E 1989 p33)
Jaacute na Ideologia e racionalidade nas ciecircncias da vida ao apresentar seu
estudo sobre o problema da normalidade na histoacuteria do pensamento bioloacutegico
Canguilhem inicia sua argumentaccedilatildeo citando a surpresa de Emile Radl autor de
Geschichte der biologischen Theorien in der Neuzeit (1913) com o fato de a
biologia de seu tempo ser colocada em diacutevida com Galileu e Descartes jaacute que a
eles natildeo se pode atribuir nenhuma ideia bioloacutegica digna de nota A seu ver o
historiador jaacute fazendo oposiccedilatildeo agraves pretensotildees do que mais tarde seria chamado
de reducionismo se colocava expressamente contra a filosofia bioloacutegica
materialista do XIX amalgamada num racionalismo de laboratoacuterio isomorfo de um
radicalismo poliacutetico anticlerical ldquose a vida natildeo eacute mais do que mateacuteria que se
acautelem a alma a imortalidade e o poder clericalrdquo (I 1981 p107)
Mas atraveacutes desta explicitaccedilatildeo ideoloacutegica longe de querer criticar o projeto
de constituiccedilatildeo de um pensamento bioloacutegico laico o que agora Canguilhem
procura mostrar eacute que desde o princiacutepio do seacuteculo XIX devido agrave disputa de
autoridade entre os poderes religioso e secular a ciecircncia bioloacutegica vem sendo
purificada de qualquer referecircncia a conceitos de ordem axioloacutegica do estudo das
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funccedilotildees da vida agrave questatildeo da origem das espeacutecies Em decorrecircncia disso
abolindo toda diferenccedila entre o vivo e o natildeo vivo os bioacutelogos e bioquiacutemicos
submeteram completamente seu objeto agrave jurisdiccedilatildeo dos fiacutesicos e dos quiacutemicos
tomando por modelo explicativo das funccedilotildees de autoconservaccedilatildeo autorregulaccedilatildeo
e autorreproduccedilatildeo a ldquooficina quiacutemica completamente automaacuteticardquo (cf I 1981
p109) Os progressos obtidos por eles na anaacutelise e na siacutentese dos compostos
orgacircnicos a reduccedilatildeo dos processos vitais a transformaccedilotildees quiacutemicas e
termodinacircmicas encorajaram tambeacutem os filoacutesofos e bioacutelogos que se dedicavam agrave
explicaccedilatildeo da evoluccedilatildeo das espeacutecies a refutar por oposiccedilatildeo agrave biologia natural ou
revelada toda ideia sobre a natureza da vida que natildeo tivesse um caraacuteter
mecanicista ou materialista de modo a eliminar dela qualquer referecircncia a uma
concepccedilatildeo de valor (cf I 1981 p117)
Assim eacute para demonstrar que natildeo haacute como eliminar da ideia de vida
qualquer referecircncia a uma comparaccedilatildeo de valores pois a vida mesma representa
uma diferenccedila de valor em relaccedilatildeo agrave morte e ainda que a interrogaccedilatildeo sobre o
sentido dos comportamentos e normas de adaptabilidade da vida eacute uma tarefa da
biologia e natildeo da fiacutesica ou da quiacutemica que Canguilhem se empenharaacute em mostrar
que se a vida fosse indiferente agraves suas proacuteprias normas e agraves condiccedilotildees que lhe
satildeo impostas funccedilotildees como a autoconservaccedilatildeo e a autorregulaccedilatildeo sequer seriam
possiacuteveis assim como natildeo haveria como falar em adaptaccedilatildeo comportamento cujo
sentido vital - que mesmo uma explicaccedilatildeo causal da evoluccedilatildeo natildeo consegue abolir
- eacute determinado por referecircncia do ser vivo agrave morte ldquoSeraacute indiferente viver ou
morrer lutar com sucesso ou com sucesso ndash mesmo que o sucesso consista
simplesmente em continuar a viverrdquo (I 1981 p116)
Isso explica porque em suas Novas reflexotildees referentes ao normal e ao
patoloacutegico (1963-1966) ele diz que desde seu Ensaio sobre alguns problemas
relativos ao normal e ao patoloacutegico (1943) baseia sua reflexatildeo sobre o normal
numa anaacutelise filosoacutefica da vida compreendida como uma atividade de oposiccedilatildeo agrave
ineacutercia e agrave indiferenccedila Neste contexto se colocando contra a biologia
fundamentada nos princiacutepios da mecacircnica moderna que considera a vida um
objeto estaacutevel idecircntico a si mesmo uma mateacuteria inerte que precisa ser colocada
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em movimento por uma forccedila exterior a ela afirma que este modelo explicativo
natildeo pode ser transposto para os fenocircmenos vitais porque a vida natildeo eacute indiferente
agraves condiccedilotildees que lhe satildeo impostas
ldquoA mecacircnica moderna baseando a ciecircncia do movimento no princiacutepio da ineacutercia tornava absurda com efeito a distinccedilatildeo [aristoteacutelica] entre os movimentos naturais e os movimentos violentos jaacute que a ineacutercia eacute precisamente a indiferenccedila em relaccedilatildeo agraves direccedilotildees e variaccedilotildees do movimento Ora a vida estaacute bem longe de uma tal indiferenccedila em relaccedilatildeo agraves condiccedilotildees que lhe satildeo impostas a vida eacute polaridaderdquo (NP 1990 p98)
Assim percebendo que a vida natildeo permanece inerte diante do que lhe
ameaccedila Canguilhem diz haver nela uma polaridade dinacircmica entendida como
uma resposta agraves demandas do meio expressa atraveacutes do estabelecimento de
valores vitais opostos positivos e negativos Mesmo o mais simples dos aparelhos
bioloacutegicos de nutriccedilatildeo de assimilaccedilatildeo e de excreccedilatildeo afirma ele atesta esta
polaridade estando certa a linguagem psicanaliacutetica ao qualificar como poacutelos os
orifiacutecios naturais de ingestatildeo e de excreccedilatildeo e em situar os objetos de satisfaccedilatildeo
em relaccedilatildeo a uma propulsatildeo e a uma repulsatildeo ldquoViver eacute mesmo para uma ameba
preferir e excluirrdquo (NP 1990 p105)36
Ademais eacute tambeacutem por natildeo haver indiferenccedila bioloacutegica pelo fato de a vida
ser atividade polarizada de conflito com o meio que podemos falar em
normatividade vital pois eacute apenas a partir do valor atribuiacutedo pela vida a um
determinado comportamento bioloacutegico que podemos chamaacute-lo ou natildeo de normal
Ateacute porque caso admitiacutessemos que a vida natildeo faz diferenccedila entre suas normas
estariacuteamos nos condenando a natildeo poder nem mesmo distinguir um alimento de
um excremento um estado fisioloacutegico de um patoloacutegico
ldquoEacute por referecircncia agrave polaridade dinacircmica da vida que se pode chamar de normais determinados tipos ou funccedilotildees Se existem normas bioloacutegicas eacute porque a vida sendo natildeo apenas submissatildeo ao meio mas tambeacutem instituiccedilatildeo de seu meio proacuteprio
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Nos Eacutetudes dacuteHistoire et de Philosophie des Sciences no toacutepico ldquoLa nouvelle connaissance de la vierdquo Canguilhem nota que Bergson na obra La Penseacutee et le Mouvant ao se referir agrave assimilaccedilatildeo esclarece que ela natildeo aparece somente como a absorccedilatildeo de um alimento mas tambeacutem como a forma como o vivente trata aquilo que se assimila se o reteacutem ou o rejeita de modo que ldquoviver em qualquer escala que seja eacute escolher e negligenciarrdquo (E 1989 p350)
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estabelece por isso mesmo valores natildeo apenas no meio mas tambeacutem no proacuteprio organismo Eacute o que chamamos de normatividade bioloacutegicardquo (NP 1990 p187)
Assim se falamos em normas bioloacutegicas de diferentes naturezas de
distintas qualidades eacute somente porque todo vivente e natildeo apenas o humano
inconscientemente impotildee valores Desta forma contrariando a ideia de que a
atribuiccedilatildeo de valores a determinados comportamentos bioloacutegicos eacute possiacutevel
apenas ao vivente capaz de linguagem verbal isto eacute ao vivente humano
Canguilhem esclarece que natildeo seria possiacutevel ao homem estimar de modo
consciente se a normatividade natildeo estivesse em germe na vida
ldquoO verbete do Vocabulaire philosophique parece supor que o valor soacute pode ser atribuiacutedo a um fato bioloacutegico por lsquoaquele que falarsquo isto eacute evidentemente um homem Achamos ao contraacuterio que para um ser vivo o fato de reagir por uma doenccedila a uma lesatildeo a uma infestaccedilatildeo a uma anarquia funcional traduz o fato fundamental que a vida natildeo eacute indiferente agraves condiccedilotildees nas quais ela eacute possiacutevel que a vida eacute polaridade e por isso mesmo posiccedilatildeo inconsciente de valor em resumo que a vida eacute de fato uma atividade normativardquo (NP 1990 p96)
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Portanto aleacutem da polaridade vital devemos reconhecer uma ldquonormatividade
original da vidardquo (NP 1990 p142) Ou seja a capacidade que todo vivente tem de
instituir normas de funcionamento orgacircnico e tambeacutem de superaacute-las em uma
situaccedilatildeo eventual Isso porque considerando a polaridade dinacircmica dizer que o
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Lecourt (2005) acredita que ao se perguntar sobre as raiacutezes bioloacutegicas dos valores humanos Canguilhem se alinha agrave Werthphilosophie Tambeacutem Debru (2007) acredita que a tese canguilhemiana de vida animada pela ideia de posiccedilatildeo de valor evoca fortemente esta corrente de pensamento na qual o valor eacute aquilo que nasce do embate do vivente com o meio Pela mesma perspectiva Schmidgen (2008) a partir da identificaccedilatildeo do conjunto dos autores alematildees que figuram em seus escritos trata especificamente da influencia da Werthphilosophie ou da filosofia axioloacutegica como chamada na Franccedila em Canguilhem Como Lecourt ele destaca a referecircncia agrave obra do vienense Robert Reininger Werthphilosophie und Ethik (1939) no Ensaio de 43 e dos trabalhos de Rickert Herxheimer Windelband e Muumlsterberg e ainda o elogio em O conhecimento da vida agrave obra Esquisse drsquoune philosophie des valeurs (1939) de Eugeacutene Dupreacuteel Sobre a influecircncia da Werthphilosophie na filosofia de Canguilhem confira LECOURT D Georges Canguilhem Que sais-je Les envies du savoir 1
a ediccedilatildeo Paris Presses Universitaires de France
- PUF 2008 DEBRU C Lrsquoengagement philosophique dans le champ de la medicine Georges Canguilhem aujourdrsquohui In BAUNSTEIN J-F (org) Histoire des sciences et politique du vivant Paris Presses Universitaires de France ndash PUF 2007 SCHMIDGEN H Georges Canguilhem et ldquoles discours allemandsrdquo In FAGOT-LARGEAULT DEBRU D MORANGE M (dir) HAN H-J (eacuted) Philosophie et meacutedecine en hommage agrave Georges Canguilhem (LrsquoHistoire des sicences ndash Textes et Egravetudes) Paris Vrin 2008
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vivente eacute normativo natildeo eacute apenas afirmar que ele institui normas Eacute ainda
constatar que a manutenccedilatildeo de uma uacutenica norma eacute sentida privativamente e natildeo
positivamente por ele jaacute que a conservaccedilatildeo normativa impede a adoccedilatildeo de novos
comportamentos vitais dificultando a atividade proacutepria de todo organismo que eacute a
de operar ajustes normativos
No entanto Canguilhem nota que a normatividade vital natildeo se trata de uma
maleabilidade funcional total e instantacircnea pois natildeo podemos adotar normas a
nosso bel-prazer Ela seria entatildeo mais bem definida como uma plasticidade
funcional que permite a todo vivente alterar dentro de certos limites suas
constantes funcionais interpretadas como normas habituais de vida (cf NP 1990
p 138) Por isso seria mais adequado falar em ritmos estabilizados da vida ou em
modos de ser da vida termos mais condizentes com o dinamismo que lhe eacute
proacuteprio (cf NP 1990 p166)
Destarte natildeo sendo estaacutetica a vida natildeo se traduz por constantes ou
invariantes bioloacutegicas codificadas mas pela possibilidade do vivente adotar
diferentes modos de ser permitindo a ele no momento de ruptura de sua
estabilidade orgacircnica encontrar entre as constantes aquela na qual poderaacute ainda
viver uma nova norma que mesmo sendo patoloacutegica natildeo deixaraacute de ser para ele
ldquonormalrdquo Em resumo a vida opera por normas por comportamentos que se
estabilizam em constantes mas esta estabilizaccedilatildeo natildeo deve constituir um
obstaacuteculo a uma superaccedilatildeo eventual pois isto significaria a morte da
normatividade
ldquoHaacute dois tipos de comportamentos ineacuteditos da vida Haacute os que se estabilizam em novas constantes mas cuja estabilidade natildeo constituiraacute obstaacuteculo a uma nova superaccedilatildeo eventual Satildeo realmente normais por normatividade E haacute os que se estabilizam sob a forma de constantes que o indiviacuteduo se esforccedilaraacute ansiosamente por preservar de qualquer perturbaccedilatildeo eventual Trata-se aqui de constantes normais mas de valor repulsivo exprimindo nelas a morte da normatividaderdquo (NP 1990 p167)
Em vista disso Canguilhem apresenta como criteacuterio de sauacutede e de doenccedila ndash
modos de ser respectivamente valorados positiva e negativamente pela vida ndash a
amplitude ou restriccedilatildeo da normatividade ou seja a maior ou menor possibilidade
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do vivente ultrapassar um estado de normalidade estabilizado e adotar outro38
Atraveacutes deste paracircmetro o doente eacute anormal natildeo por natildeo ter norma mas por soacute
poder admitir uma norma ldquoComo jaacute dissemos muitas vezes o doente natildeo eacute
anormal por ausecircncia de norma e sim por incapacidade de ser normativordquo (NP
1990 p148)
Com efeito como esclarece em La connaissance de la vie a doenccedila ou
estado patoloacutegico natildeo eacute a perda de uma norma mas eacute um ritmo de vida regrado
por normas vitalmente inferiores ou depreciadas pela vida pois impedem o vivente
de uma participaccedilatildeo ativa num dado meio ldquoRigorosamente lsquopatoloacutegicorsquo eacute o
contraacuterio vital de lsquosatildeorsquo e natildeo o contraditoacuterio loacutegico de normalrdquo (CV 1985 p166)
Considerando portanto que o patoloacutegico eacute tambeacutem uma espeacutecie de normal
devemos reconhecer que enquanto o ser vivo doente estaacute normalizado em
condiccedilotildees bem definidas pois perdeu sua capacidade de instituir normas
diferentes em condiccedilotildees adversas o vivente saudaacutevel eacute normativo pois consegue
questionar suas normas usuais por ocasiatildeo de situaccedilotildees criacuteticas e superaacute-las
atraveacutes da instauraccedilatildeo de uma nova ordem vital
ldquoSe reconhecermos que a doenccedila natildeo deixa de ser uma espeacutecie de norma bioloacutegica consequumlentemente o estado patoloacutegico natildeo pode ser chamado de anormal no sentido absoluto mas anormal apenas na relaccedilatildeo com uma situaccedilatildeo determinada Reciprocamente ser sadio e ser normal natildeo satildeo fatos totalmente equivalentes jaacute que o patoloacutegico eacute uma espeacutecie de normal Ser sadio significa natildeo apenas ser normal numa situaccedilatildeo determinada mas ser tambeacutem normativo nessa situaccedilatildeo e em outras situaccedilotildees eventuais O que caracteriza a sauacutede eacute a possibilidade de ultrapassar a norma que define o normal momentacircneo a possibilidade de tolerar infraccedilotildees agrave norma habitual e de instituir normas novas em situaccedilotildees novasrdquo (NP 1990 p158)
Aleacutem disso para Canguilhem acompanhando o pensamento de Goldstein
haacute uma irreversibilidade na normatividade vital pois as normas criadas apoacutes uma
crise orgacircnica natildeo satildeo as mesmas adotadas pelo vivente antes do processo
criacutetico Com efeito Goldstein afirma que as novas normas fisioloacutegicas instituiacutedas
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Por este ponto de vista podemos aproximar o pensamento de Canguilhem ao de Simondon para quem o indiviacuteduo vivente eacute um sistema metaestaacutevel rico em potenciais sendo que o equiliacutebrio estaacutevel deste sistema representa seu mais baixo niacutevel de energia potencial possiacutevel pois o impede de transformar-se em outro Cf SIMONDON G Lrsquoindividuation agrave la lumiegravere des notions de forme et drsquoinformation Paris Millon 2005
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apoacutes a crise orgacircnica natildeo satildeo as mesmas anteriores agrave doenccedila admitindo o fato
bioloacutegico fundamental de que a vida natildeo conhece reversibilidade mas admite
reparaccedilotildees que satildeo realmente inovaccedilotildees fisioloacutegicas ldquocurar eacute criar para si novas
normas de vida agraves vezes superiores agraves antigasrdquo (NP 1990 p 188) Com isso ele
contraria a ideia de cura como possibilidade de retorno a um estado de ordem
preacutevio anterior agrave doenccedila (restitutio ad integrum)
ldquocurar apesar dos deacuteficits sempre eacute acompanhado de perdas essenciais para o organismo e ao mesmo tempo do reaparecimento de uma ordem A isso corresponde uma nova norma individualrdquo (cf NP 1990 p156)
Por este vieacutes a cura natildeo pode ser entendida como um retorno a um estado
anterior de ldquoinocecircncia bioloacutegicardquo Ela eacute a reconquista de um estado de estabilidade
orgacircnica que estaraacute mais proacuteximo da doenccedila ou da sauacutede na medida em que
estiver mais ou menos aberto a eventuais modificaccedilotildees
Assim colocando de outro modo a questatildeo da normalidade Canguilhem
mostra que o que chamamos de vivente normal ou saudaacutevel eacute o normativo e o
anormal ou patoloacutegico eacute aquele que natildeo apresenta capacidade de evitar ou corrigir
comportamentos que lhe ameaccedilam por uma restriccedilatildeo em sua normatividade
traduzida pela incapacidade de uma norma vital transformar-se em outra norma
quando instada pelo meio a isto Jaacute o vivente saudaacutevel eacute aquele que consegue se
ajustar ao meio adaptando-se ativamente a ele39 seja alterando sua norma atual
seja alterando o meio tambeacutem este passiacutevel de ajustes e modificaccedilotildees
ldquoMas o meio coacutesmico o meio do animal de modo geral natildeo seraacute um sistema de constantes mecacircnicas fiacutesicas e quiacutemicas natildeo seraacute feito de invariantes Eacute claro que este meio definido pela ciecircncia eacute feito de leis mas essas leis satildeo abstraccedilotildees teoacutericas O ser vivo natildeo vive entre leis mas entre seres e acontecimentos que diversificam essas leis O que sustenta o paacutessaro eacute o galho da aacutervore e natildeo as leis da elasticidade Se reduzirmos o galho agraves leis da elasticidade tambeacutem natildeo devemos falar em paacutessaro e sim em soluccedilotildees coloidais Em tal niacutevel de abstraccedilatildeo analiacutetica natildeo se
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Na mesma direccedilatildeo Bergson diferencia a adaptaccedilatildeo passiva na qual o organismo eacute uma mateacuteria inerte que sofre influecircncia do meio e a adaptaccedilatildeo ativa que ocorre quando um organismo seletivamente extrai desta influecircncia uma condiccedilatildeo apropriada (cf BERGSON 2005 p76-77) In BERGSON H A evoluccedilatildeo criadora (Trad Bento Prado Neto) Satildeo Paulo Martins Fontes 2005 (Coleccedilatildeo Toacutepicos)
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pode mais falar em meio para um ser vivo nem em sauacutede nem em doenccedila Da mesma forma o que a raposa come eacute o ovo de galinha e natildeo a quiacutemica dos albuminoides ou as leis da embriologiardquo (NP 1990 p159)
Natildeo sendo o meio portanto um sistema de constantes invariaacuteveis tambeacutem ele
estaacute em contiacutenuo processo de estruturaccedilatildeo pelos viventes que com ele se
relacionam ldquoDe fato o meio do ser vivo eacute tambeacutem obra do ser vivo que se furta e
se oferece eletivamente a certas influecircnciasrdquo (NP 1990 p143)
Mas embora Canguilhem defenda que o meio natildeo eacute apenas um fato fiacutesico
mas um fato bioloacutegico isto eacute natildeo eacute um fato constituiacutedo mas um fato a se
constituir acredita que o vivente natildeo o altera em busca de um estado de
estabilizaccedilatildeo permanente nem se adapta mecanicamente a ele Afastando-se de
dois princiacutepios um teleoloacutegico e outro mecanicista sobre a adaptaccedilatildeo ele recusa
tanto a ideia de que o ser vivo se adapta de acordo com a procura de satisfaccedilotildees
funcionais sendo a adaptaccedilatildeo um ideal a ser atingido como aquela que afirma
que o ser vivo eacute adaptado pela accedilatildeo de uma necessidade de ordem mecacircnica
fiacutesico-quiacutemica ou bioloacutegica (outros seres vivos) sendo ela a expressatildeo de um
estado de equiliacutebrio que natildeo deve ser alterado pois isso significaria um risco de
morte
Contestando ambas as perspectivas ele entende que o vivente natildeo eacute um ser
passivo que apenas recebe influecircncias de um meio que lhe eacute adverso40 Em seu
embate com o meio para manter sua integridade mais do que se conservar no
sentido de manter-se como estaacute ele deve continuamente confrontar-se com o
meio transformaacute-lo e tambeacutem se transformar
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Segundo Braunstein (2007) a criacutetica ao conceito mecanicista de meio estaacute presente no coraccedilatildeo das duas principais obras de Canguilhem O normal e o patoloacutegico (1943) e A formaccedilatildeo do conceito de reflexo (1955) aleacutem de figurar no artigo ldquoLe vivant et son milieurdquo (1946-1947) de La connaissance de la vie Ele nota que desde a deacutecada de 30 Canguilhem jaacute se colocava contra uma concepccedilatildeo determinista de meio presente nos trabalhos de Barregraves e antes deste no de Taine Considerando que nem a raccedila nem o meio nem o momento satildeo suficientes para definir o homem ele natildeo aceita falar em influecircncia do meio sobre o vivente como faz a tradiccedilatildeo mecanicista mas em reaccedilatildeo do vivente em relaccedilatildeo ao meio Sobre as implicaccedilotildees da concepccedilatildeo determinista de meio natildeo soacute na biologia como na psicologia assunto que trataremos mais adiante confira BRAUNSTEIN J-F (org) Psychologie et milieu Eacutethique et histoire des sciences chez Georges Canguilhem In BRAUNSTEIN J-F (org) Histoire des sciences et politique du vivant Paris Presses Universitaires de France ndash PUF 2007
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ldquo() se consideramos a relaccedilatildeo organismo-meio como consequecircncia de uma atividade verdadeiramente bioloacutegica como a procura de uma situaccedilatildeo na qual o ser vivo em vez de sofrer influecircncias recolhe as influecircncias e as qualidades que correspondem a suas exigecircncias entatildeo os meios nos quais os seres vivos estatildeo colocados estatildeo delimitados por eles centrados neles Neste sentido o organismo natildeo estaacute jogado num meio ao qual tem que se dobrar mas ao contraacuterio ele estrutura seu meio ao mesmo tempo em que desenvolve suas capacidades de organismordquo (NP 1990 p258)
Por isso em La connaissance de la vie ele novamente concorda com
Goldstein para quem a interaccedilatildeo entre vivente e meio natildeo eacute uma relaccedilatildeo de tipo
fiacutesica mas bioloacutegica Segundo o autor de Der Aufbau des Organismus entre o
vivente e o meio a relaccedilatildeo se estabelece como um debate (Auseinandersetzung)
onde os viventes colocam suas proacuteprias normas de apreciaccedilatildeo das situaccedilotildees
dominam o meio e se acomodam Eacute neste sentido que a atividade do organismo
pode ser definida como criadora pois cada vivente compotildee o ambiente a sua
maneira de modo a poder se realizar isto eacute existir (cf CV 1985 p 24) Mas
para ele esta relaccedilatildeo natildeo consiste essencialmente numa oposiccedilatildeo
ldquouma vida que se afirma contra jaacute eacute uma vida ameaccedilada () Uma vida satilde confiante na sua existecircncia em seus valores eacute uma vida em flexatildeo uma vida flexiacutevel quase em moderaccedilatildeordquo (CV 1985 p146)
Desta forma a situaccedilatildeo de um vivente comandado de fora pelo meio deve ser
considerada catastroacutefica pois traduz uma dominaccedilatildeo do exterior sobre um
organismo que deveria compocirc-lo influenciaacute-lo e organizaacute-lo tendo a si proacuteprio
como centro de referecircncia e como polo doador de sentido vital
Considerada a estreita relaccedilatildeo organismo-meio a normalidade do vivente
natildeo pode ser pensada fora de sua relaccedilatildeo com o meio assim como a normalidade
do meio natildeo pode ser pensada sem o vivente ldquoo ser vivo e o meio considerados
separadamente natildeo satildeo normais poreacutem eacute sua relaccedilatildeo que os torna normais um
para o outrordquo (NP 1990 p96) O vivente eacute normal na medida em que consegue
responder agraves exigecircncias do meio assim como o meio soacute pode ser considerado
normal em relaccedilatildeo agrave norma morfoloacutegica e funcional do vivente que o utiliza em seu
51
proveito Eacute portanto a relaccedilatildeo do vivente com o meio41 que definiraacute a normalidade
natildeo do soacute do vivente mas tambeacutem do proacuteprio meio ldquoo meio eacute normal pelo fato do
ser vivo nele desenvolver melhor sua vida e nele manter melhor sua proacutepria
normardquo (cf NP 1990 p111)
Mesmo quando pensamos num conjunto de viventes como representantes
de uma mesma espeacutecie sua normalidade tambeacutem teraacute estreita relaccedilatildeo com as
condiccedilotildees que o meio pode oferecer a sua manutenccedilatildeo e propagaccedilatildeo Entatildeo o
meio normal para uma espeacutecie eacute aquele que permite a ela natildeo soacute maior
fecundidade mas tambeacutem uma variedade de formas que na hipoacutetese de
ocorrerem modificaccedilotildees externas decirc condiccedilotildees agrave vida de encontrar numa dessas
formas a soluccedilatildeo para o problema de adaptaccedilatildeo que se vecirc forccedilada a resolver Daiacute
o sentido do elogio de Canguilhem ao Darwin por ter definido uma espeacutecie como
o agrupamento de indiviacuteduos todos diferentes em certo grau e cuja unidade
traduziria a normalizaccedilatildeo momentacircnea de suas relaccedilotildees com o meio inclusive
com outras espeacutecies (cf NP 1990 p112)
Atraveacutes deste entendimento de normalidade derivado da relaccedilatildeo do vivente
com seu meio ateacute mesmo os considerados ldquoanormaisrdquo por serem mutantes
poderatildeo ser considerados normais se num dado meio a sua norma for vitalmente
vaacutelida Exemplo disto eacute o fato de que uma espeacutecie animal cega derivada de uma
de boa visatildeo seraacute mais normal que a vidente em uma caverna (cf NP 1990
p237) assim como uma drosoacutefila de asa vestigial derivada por mutaccedilatildeo de uma
drosoacutefila alada seraacute normal agrave beira-mar jaacute que num meio ventilado as drosoacutefilas
aladas tecircm mais oportunidade de serem eliminadas ganhando vantagem das
mutantes apenas num meio protegido de ventos e fechado (cf NP 1990 p111)
Na mesma direccedilatildeo na Ideologia e racionalidade nas ciecircncias da vida ao
escrever sobre o problema da normalidade na histoacuteria do pensamento bioloacutegico
41
Canguilhem assim como Simondon natildeo acredita ser possiacutevel pensar o vivente separado do meio em que se encontra O ponto de vista simondoniano eacute que o meio natildeo estaacute despojado do indiviacuteduo assim como o indiviacuteduo natildeo perde a dimensatildeo do meio e que o vivente resolve seus problemas natildeo somente adaptando-se (como pode fazer uma maacutequina) mas tambeacutem modificando a si mesmo inventando novas estruturas internas cf SIMONDON G Lrsquoindividuation agrave la lumiegravere des notions de forme et drsquoinformation Op cit
52
Canguilhem ressalta que eacute Darwin quem descobre um mecanismo natural de
normalizaccedilatildeo da anomalia menor que eacute a variaccedilatildeo jaacute que para ele os desvios
satildeo possibilidades de incursatildeo dos seres vivos em outros meios ldquosegundo o
espiacuterito do darwinismo a norma natildeo eacute algo fixo mas uma capacidade transitivardquo
(cf I 1981 p116-117) Ou seja para o autor de A origem das espeacutecies a
normalidade dos seres vivos seraacute dada pela qualidade da relaccedilatildeo que tecircm com
seu meio como o que permite a eles e atraveacutes das variaccedilotildees individuais dos seus
descendentes novas formas de relaccedilatildeo com um novo meio e assim
sucessivamente
Com isso Canguilhem quer provar que houve uma confusatildeo na
identificaccedilatildeo dos termos anormal e anomalia Ele explica que etimologicamente
anomalia vem do grego anomalia que significa desigualdade aspereza o a-
nomalos eacute o desigual o rugoso o irregular Assim houve um engano a respeito
do termo anomalia derivando-o natildeo de omalos mas de nomos que significa lei A
seu ver o termo anomalia designa um fato eacute um descritivo enquanto anormal faz
referecircncia a um valor sendo um termo apreciativo Natildeo obstante a confusatildeo
tornou o anormal um conceito descritivo e a anomalia avaliativo (cf NP 1990
p101) Pela sua perspectiva o anocircmalo seria apenas o ldquodesigualrdquo o ldquodiferenterdquo e
o patoloacutegico sim seria o ldquoanormalrdquo natildeo por carecer de norma mas por ser uma
norma valorada negativamente pela vida ldquoo patoloacutegico natildeo eacute a ausecircncia de norma
bioloacutegica eacute uma norma diferente mas comparativamente repelida pela vidardquo (NP
1990 p113-114) Portanto nos equivocamos quando identificamos o patoloacutegico
ao anocircmalo A anomalia como uma variedade bioloacutegica pode transformar-se em
doenccedila mas natildeo eacute por si soacute uma doenccedila ldquoa anomalia pode constituir um objeto
de um capiacutetulo especial da histoacuteria natural mas natildeo da patologiardquo (NP 1990
p105)
Para corroborar seu ponto de vista ele lembra que para I Geoffroy Saint-
Hilaire a anomalia eacute um fato bioloacutegico que a ciecircncia deve explicar e natildeo apreciar
Segundo o autor da Histoire geacutenerale et particuliegravere des anomalies de l
organisation chez lrsquohomme et les animaux eacute incorreto falar a respeito dos animais
que apresentam organizaccedilatildeo e caracteres insoacutelitos em capricho da natureza em
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desordem ou irregularidade Natildeo existem formaccedilotildees orgacircnicas que natildeo estejam
submetidas a leis e se existem exceccedilotildees satildeo exceccedilotildees agraves leis dos naturalistas e
natildeo agraves leis da natureza Ou seja todas as espeacutecies vivas ldquosatildeo o que devem serrdquo
Mas embora todas elas apresentem uma grande variaccedilatildeo nas formas e no
volume proporcional dos oacutergatildeos por outro lado haacute um conjunto de traccedilos comuns
agrave grande maioria dos indiviacuteduos que compotildeem a mesma espeacutecie sendo este
conjunto o que define um tipo especiacutefico A anomalia como variedade bioloacutegica
seria apenas qualquer desvio do tipo especiacutefico ou qualquer particularidade
orgacircnica apresentada por um indiviacuteduo comparado com a grande maioria dos
indiviacuteduos de sua espeacutecie
ldquoPortanto em anatomia o termo anomalia deve conservar estritamente o seu sentido de insoacutelito de inabitual ser anormal consiste em se afastar por sua proacutepria organizaccedilatildeo da grande maioria dos seres com os quais se deve ser comparadordquo (NP 1990 p102)
Assim sendo uma anomalia natildeo eacute patoloacutegica apenas por ser uma
anomalia isto eacute um desvio do tipo especiacutefico Ela seraacute patoloacutegica apenas quando
suas normas forem inferiores quanto agrave estabilidade fecundidade e variabilidade
da vida e forem sentidas privativamente pelo organismo num determinado meio
Isto eacute enquanto a anomalia natildeo tiver uma incidecircncia funcional a ponto de ter
expressatildeo na ordem dos valores vitais ela seraacute uma variaccedilatildeo sobre um tema
especiacutefico uma ilustraccedilatildeo da diversidade de normas presente na ordem bioloacutegica
ldquoA anomalia eacute a consequecircncia de variaccedilatildeo individual que impede dois seres de poderem se substituir um ao outro de modo completo Ilustra na ordem bioloacutegica o princiacutepio leibnitziano dos indiscerniacuteveis No entanto diversidade natildeo eacute doenccedilardquo (NP 1990 p106)
Por isso Canguilhem concorda tambeacutem com John A Ryle autor de The
meaning of normal que procura demonstrar que certos desvios individuais em
relaccedilatildeo agraves normas fisioloacutegicas natildeo satildeo por isso patoloacutegicos Eacute normal que exista a
variabilidade pois ela eacute necessaacuteria agrave adaptaccedilatildeo e portanto agrave sobrevivecircncia das
espeacutecies (cf NP 1990 p242) Eacute atraveacutes da variabilidade que a vida obteacutem ldquosem
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procurar fazecirc-lordquo uma espeacutecie de seguro contra a especializaccedilatildeo excessiva sem
reversibilidade ou flexibilidade o que no fundo eacute uma adaptaccedilatildeo bem sucedida (cf
NP 1990 p111) Daiacute a importacircncia das mutaccedilotildees para a preservaccedilatildeo das
espeacutecies ldquoem mateacuteria de adaptaccedilatildeo o perfeito ou acabado significa o comeccedilo do
fim das espeacuteciesrdquo (NP 1990 p237)
Destarte refutando a ideia de que as modificaccedilotildees do coacutedigo geneacutetico
contradizem a ldquosabedoria dos organismosrdquo Canguilhem lembra que nem todas as
alteraccedilotildees bioquiacutemicas satildeo patoloacutegicas pois pode acontecer que em certos
meios elas possam conferir uma certa superioridade agravequeles que satildeo seus
beneficiaacuterios como eacute o caso da resistecircncia agrave malaacuteria por portadores de um deacuteficit
em glicose-6-fosfato-desidrogenase De fato se a adaptabilidade depende da
variabilidade a diferenccedila bioquiacutemica individual ocorrida no interior de uma dada
espeacutecie pode tornaacute-la mais apta agrave sobrevivecircncia
ldquoao contraacuterio da humanidade que segundo Marx soacute levanta os problemas que pode resolver a vida multiplica de antematildeo soluccedilotildees para os problemas de adaptaccedilatildeo que poderatildeo surgirrdquo (NP 1990 p240)
Acompanhando tambeacutem G Teissier para quem as mutaccedilotildees podem ser
vantajosas se o meio variar em seu favor Canguilhem diz que embora possam ser
contestaacuteveis as noccedilotildees de seleccedilatildeo natural e de luta pela sobrevivecircncia natildeo soacute
pela ideia de finalidade e superioridade a elas subjacentes42 mas tambeacutem porque
a maior parte dos seres vivos satildeo mortos pelo meio muito antes que suas
42
Em seus Eacutetudes dacuteHistoire et de Philosophie des Sciences no artigo ldquoLes concepts de lsquolutte pour lrsquoexistencersquo et de lsquoselection naturellersquo em 1858 Charles Darwin et Alfred Russel Wallacerdquo Canguilhem daacute a entender que se natildeo recusa de todo o mecanismo de seleccedilatildeo natural proposto por Darwin eacute porque ele natildeo eacute um poder de escolha que recobre uma representaccedilatildeo antropomoacuterfica de um poder natural divinizado mas designa somente uma lei que exprime os efeitos de composiccedilatildeo entre variaccedilatildeo acidental hereditariedade e concorrecircncia vital (cf E 1989 p108) Aleacutem disso na Ideologia e racionalidade nas ciecircncias da vida deixa entrever que se acompanha o ponto de vista darwinista eacute porque ateacute Darwin os seres vivos se multiplicavam num quadro em que encontravam exclusivamente o seu bem sendo radical a mudanccedila de referecircncia quando ele propocircs que os seres vivos se multiplicam sem obrigaccedilatildeo de identidade especiacutefica e que atraveacutes do jogo composto pelo seu nuacutemero e pelas suas diferenccedilas se encontram coagidos a viver como podem o menos mal possiacutevel sem lugar reservado sem garantias de futuro (cf I 1981 p92) Como veremos tambeacutem pela sua perspectiva na ausecircncia de orientaccedilatildeo teleoloacutegica a evoluccedilatildeo aparece como um ensaio de formas sem plano ou fim preacute-determinado traduzido como uma aventura com um percurso imprevisiacutevel
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desigualdades possam lhe ser uacuteteis isso natildeo quer dizer que apresentar
desigualdades seja biologicamente indiferente (cf NP 1990 p99)
Em La connaissance de la vie acompanhando o mesmo autor em Le
Meacutecanisme de LrsquoEvolution nota que para toda espeacutecie eacute necessaacuterio admitir uma
certa flutuaccedilatildeo dos genes da qual depende a plasticidade da adaptaccedilatildeo e
portanto seu poder evolutivo A seleccedilatildeo natural ou seja o crivo pelo meio eacute tanto
conservador em circunstacircncias estaacuteveis quanto inovador em circunstacircncias
criacuteticas de modo que ldquoos ensaios mais arriscados satildeo possiacuteveis e liacutecitosrdquo (CV
1985 p 161)
Em resumo nem toda anomalia como variaccedilatildeo morfoloacutegica ou funcional
seraacute patoloacutegica pelo simples fato de ser anomalia ldquonatildeo existe fato que seja
normal ou patoloacutegico em si A anomalia e a mutaccedilatildeo natildeo satildeo em si mesmas
patoloacutegicas Elas exprimem outras normas de vida possiacuteveisrdquo (NP 1990 p113)
Como simples diferenccedila de fato ela pode vir a ser patoloacutegica somente se o
indiviacuteduo considerado anocircmalo natildeo conseguir responder agraves exigecircncias do meio
natildeo tolerando qualquer desvio das condiccedilotildees nas quais suas normas satildeo vaacutelidas
por natildeo ser capaz de instituir novas normas vitais Portanto a condiccedilatildeo de
normalidade de um vivente natildeo adviraacute de sua fidelidade a um tipo especiacutefico do
qual seria uma coacutepia fiel mas dependeraacute de sua normatividade ou seja de sua
capacidade de instituir novas normas vitais quando da necessidade de superar as
dificuldades que resultam de uma alteraccedilatildeo do meio em que se encontra
Assim do ponto de vista canguilhemiano o normal em biologia natildeo eacute tanto
a forma antiga mas a nova se ela conseguir no seu meio manter-se normativa
ldquoCompreende-se finalmente porque uma anomalia ndash e especialmente uma mutaccedilatildeo isto eacute uma anomalia jaacute de iniacutecio hereditaacuteria ndash natildeo eacute patoloacutegica pelo simples fato de ser anomalia isto eacute um desvio a partir de um tipo especiacutefico definido por um grupo de caracteres mais frequumlentes em sua dimensatildeo meacutedia Caso contraacuterio seria preciso dizer que um indiviacuteduo mutante ponto de partida de uma nova espeacutecie eacute ao mesmo tempo patoloacutegico porque se desvia e normal porque se conserva e se reproduz O normal em biologia natildeo eacute tanto a forma antiga mas a nova se ela encontrar condiccedilotildees de existecircncia nas quais pareceraacute normativa isto eacute superando todas as formas passadas ultrapassadas e talvez dentro em breve mortasrdquo (NP 1990 p113)
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Ademais ao dizer que as anomalias podem ser o ponto de partida de uma
nova espeacutecie Canguilhem atribui a elas outro estatuto para aleacutem do sentido
bioloacutegico de diversificaccedilatildeo dos indiviacuteduos no interior de uma mesma espeacutecie Ele
aposta na ideia de que as mutaccedilotildees possam dar origem a novas espeacutecies e com
isso questiona em que medida os seres vivos que se afastam do tipo especiacutefico
satildeo anormais que estatildeo colocando em perigo a forma especiacutefica ou seratildeo
inventores a caminho de novas formas ldquoA vida natildeo eacute justamente evoluccedilatildeo
variaccedilatildeo de formas invenccedilatildeo de comportamentosrdquo (NP 1990 p164)
Com efeito tambeacutem nos Eacutetudes dacuteHistoire et de Philosophie des Sciences
no toacutepico La nouvelle connaissance de la vie ele diz que as formas vivas estatildeo
em movimento contiacutenuo de transformaccedilatildeo e defende que eacute realmente possiacutevel
explicar a evoluccedilatildeo das espeacutecies a partir da geneacutetica pela ocorrecircncia das
mutaccedilotildees sendo este o teor de sua objeccedilatildeo agraves teorias que afirmam ser elas
subpatoloacutegicas frequentemente letais e que o mutante vale biologicamente
menos do que o ser a partir do qual ele constitui uma mutaccedilatildeo ldquoDe fato isso eacute
verdadeiro as mutaccedilotildees satildeo frequentemente monstruosidades Mas ao olhar da
vida haacute monstruosidadesrdquo (E 1989 p363-364) A seu ver a vida eacute feita de
conservaccedilatildeo e de novidade comportando o risco das aberraccedilotildees ldquoa vida supera
seus erros por outros ensaios sendo um erro da vida simplesmente um impasserdquo
(E 1989 p364)
Mas vale notar que o fato de Canguilhem defender a ideia de que uma
mutaccedilatildeo possa dar origem a uma nova espeacutecie natildeo o faz um adepto do
mutacionismo corrente de pensamento para a qual as mutaccedilotildees satildeo o principal
mecanismo de evoluccedilatildeo das espeacutecies em detrimento da accedilatildeo do meio
ldquoo mutacionismo se apresentou em primeiro lugar como uma forma de explicaccedilatildeo dos fatos da evoluccedilatildeo cuja adoccedilatildeo pelos geneticistas reforccedilou ainda o caraacuteter de hostilidade a qualquer atitude de levar em consideraccedilatildeo a influecircncia do meiordquo (cf NP 1990 p112)
Com efeito em La connaissance de la vie no artigo ldquoLe vivant et son
milieurdquo quando reflete sobre o caraacuteter espontacircneo das mutaccedilotildees geneacuteticas como
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explicaccedilatildeo para a evoluccedilatildeo das espeacutecies ele faz uma criacutetica agraves teorias sobre a
geneacutetica da hereditariedade que advogam a autonomia total do vivente em relaccedilatildeo
ao meio isto eacute agravequelas que defendem que a aquisiccedilatildeo pelo vivente de sua forma
e suas funccedilotildees depende integralmente de seu potencial hereditaacuterio e que a accedilatildeo
do meio sobre o fenoacutetipo deixaria intacto o genoacutetipo A seu ver essas posiccedilotildees
natildeo estatildeo livres de criacuteticas pois algumas modificaccedilotildees hereditaacuterias podem ser
obtidas e consolidadas por condiccedilotildees externas sejam elas alimentares climaacuteticas
ou outras muito embora tambeacutem natildeo haja um domiacutenio integral do meio em
relaccedilatildeo a estas modificaccedilotildees
Assim entendendo que tanto a accedilatildeo do meio quanto as mutaccedilotildees
ocorridas espontaneamente e ao acaso isto eacute natildeo dirigidas adaptativamente
concorrem para o processo evolutivo em O normal e o patoloacutegico ele conjuga as
duas perspectivas
ldquoParece atualmente que se deve situar o aparecimento de espeacutecies novas na interferecircncia das inovaccedilotildees por mutaccedilatildeo e das oscilaccedilotildees do meio parece tambeacutem que um darwinismo modernizado pelo mutacionismo eacute a explicaccedilatildeo mais flexiacutevel e mais abrangente do fato da evoluccedilatildeo que apesar de tudo eacute incontestaacutevelrdquo (NP 1990 p112)
Aleacutem disso ainda na mesma obra esclarece que conforme sejamos fixistas
ou transformistas consideraremos de modo diferente o indiviacuteduo mutante Sem se
propor a tratar detidamente desta querela43 apenas diz que apesar das
diferenccedilas teoacutericas tanto os bioacutelogos que contestam ateacute mesmo o fato da
evoluccedilatildeo como os que natildeo admitem que as mutaccedilotildees sejam suficientes para
explicar os fatos da adaptaccedilatildeo e da evoluccedilatildeo - jaacute que os mutantes apesar das
diferenccedilas morfoloacutegicas natildeo saem do quadro da mesma espeacutecie - insistem sobre 43
Ramos (2005) ao tratar do embate dos fixistas e dos transformistas na histoacuteria do pensamento bioloacutegico nota foi somente a partir do seacuteculo XIX que a ideia da substituiccedilatildeo gradativa das espeacutecies por outras atraveacutes de processos adaptativos foi ganhando adeptos Ao contraacuterio do que propunham os fixistas ou criacionistas que acreditavam que as espeacutecies eram imutaacuteveis para os transformistas a adaptaccedilatildeo das espeacutecies somente poderia ser obtida atraveacutes de mudanccedilas Aleacutem disso segundo o autor os termos fixismo e transformismo podem ser aplicados com precisatildeo apenas agraves suas versotildees mais extremas a visatildeo cristatilde ortodoxa eacute claramente fixista enquanto a teoria da evoluccedilatildeo orgacircnica contemporacircnea eacute claramente transformista Cf RAMOS M C A Vecircnus fiacutesica de Maupertuis antigas ideias sobre a geraccedilatildeo reformadas pelo mecanicismo newtoniano Revista Latino-Americana de Filosofia e Histoacuteria da Ciecircncia Satildeo Paulo v 3 n 1 p 79-101 2005
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o caraacuteter subpatoloacutegico patoloacutegico ou mesmo letal da maioria delas Pensando de
outro modo ele acredita que considerando o caraacuteter de novidade que a mutaccedilatildeo
comporta o desvio em relaccedilatildeo ao normal que ela representa se normativo seraacute
conservado pela accedilatildeo da seleccedilatildeo natural44 natildeo tendo necessariamente por
destino a morte
ldquoCom efeito na medida em que no mundo animal ou vegetal uma mutaccedilatildeo pode constituir a origem de uma nova espeacutecie vemos uma norma nascer de um desvio em relaccedilatildeo a uma outra A norma eacute a forma de desvio que a seleccedilatildeo natural conserva Eacute a concessatildeo que a destruiccedilatildeo e a morte fazem ao acasordquo (NP 1990 p237)
E mesmo se considerarmos que as anomalias satildeo frequentemente restritivas
menos duraacuteveis e menos resistentes natildeo podendo explicar a gecircnese das
espeacutecies elas natildeo deixaratildeo de ter o poder de diversificaacute-las De todo modo tendo
em vista a importacircncia das anomalias para a diversificaccedilatildeo adaptaccedilatildeo e ateacute
mesmo para a evoluccedilatildeo das espeacutecies eacute um equivoco consideraacute-la um erro a ser
extirpado
Com efeito nas Novas reflexotildees referentes ao normal e ao patoloacutegico no
capiacutetulo intitulado ldquoUm novo conceito em patologia o errordquo ao problematizar a
ideia de que as alteraccedilotildees bioquiacutemicas hereditaacuterias estudadas pela patologia
molecular como erros de informaccedilatildeo satildeo necessariamente patoloacutegicas
Canguilhem defende a importacircncia destas microanomalias ou
micromonstruosidades para a adaptabilidade dos organismos e ainda contesta a
tese de que o valor vital de um erro geneacutetico provenha das proacuteprias raiacutezes da
organizaccedilatildeo ao niacutevel em que ela eacute apenas estrutura linear e natildeo se estabeleccedila
ao niacutevel do organismo considerado como um todo em conflito com um meio
44
Segundo Giroux (2008) a originalidade de Canguilhem em relaccedilatildeo agrave Goldstein reside na inserccedilatildeo da noccedilatildeo de norma individual na teoria darwiniana da evoluccedilatildeo Singularmente Canguilhem encontra na teoria da seleccedilatildeo natural um fundamento bioloacutegico objetivo agrave normatividade vital pois longe de rejeitar a noccedilatildeo de norma em biologia ela estabelece uma ligaccedilatildeo intriacutenseca entre variabilidade individual e valor vital Agora se a teoria da evoluccedilatildeo reafirma o conceito de normatividade bioloacutegica individual como ele sustenta esta eacute uma tese que tem sido hoje o centro de vivos debates em filosofia da biologia Cf GIROUX E Ny a-t-il de santeacute que de lrsquoindividu Um point de vue eacutepideacutemiologique sur les thegraveses de Canguilhem In FAGOT-LARGEAULT DEBRU D MORANGE M (dir) HAN H-J (eacuted) Philosophie et meacutedecine en hommage agrave Georges Canguilhem (LrsquoHistoire des sicences ndash Textes et Egravetudes) Paris Vrin 2008
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ambiente ldquoAssim como nem todos os germes patogecircnicos determinam uma
infecccedilatildeo em qualquer hospedeiro em qualquer circunstacircncia assim tambeacutem nem
todas as lesotildees bioquiacutemicas constituem a doenccedila de algueacutemrdquo (NP 1990 p256)
Ademais ele diz entender que a noccedilatildeo de erro na composiccedilatildeo bioquiacutemica
dos constituintes do organismo eacute de certo modo aristoteacutelica pois para Aristoacuteteles o
monstro era um erro da natureza que havia se enganado quanto agrave mateacuteria45 Na
mesma trilha a patologia molecular atual ao introduzir em suas teorias o conceito
de erro de informaccedilatildeo pode ser vista como um ldquonovo tipo de aristotelismo com a
condiccedilatildeo eacute claro de natildeo confundir a psicobiologia aristoteacutelica com a tecnologia
moderna das transmissotildeesrdquo (NP 1990 p252) Em vista disso problematizando o
uso da noccedilatildeo de erro em biologia como Simondon e Ruyer46 ele coloca em
questatildeo a importaccedilatildeo da linguagem da teoria da informaccedilatildeo para a bioquiacutemica dos
aminoaacutecidos como coacutedigo e mensagem e a consequente atribuiccedilatildeo aos
elementos do patrimocircnio hereditaacuterio o saber do quiacutemico e do geneticista como se
as enzimas conhecessem as reaccedilotildees tal como a quiacutemica as analisa e pudessem
ignoraacute-las ou ler errado seus enunciados (cf NP 1990 p251)
Tambeacutem em seus Eacutetudes dacuteHistoire et de Philosophie des Sciences
Canguilhem comenta que com a revoluccedilatildeo na geneacutetica ocorrida apoacutes a
descoberta da estrutura do DNA e com a constituiccedilatildeo da biologia molecular foi
operada uma mudanccedila no conhecimento da vida e seus fenocircmenos passaram a 45
Na Ideologia e racionalidade nas ciecircncias da vida Canguilhem esclarece que embora Aristoacuteteles fale em erro da natureza em sua filosofia tal noccedilatildeo servia para dizer que a vida tolerava a imperfeiccedilotildees que o processo teleoloacutegico da vida natildeo era absolutamente eficaz e infaliacutevel Para ele a existecircncia dos monstros atesta que haacute erros da natureza explicaacuteveis pela resistecircncia da mateacuteria agrave informaccedilatildeo pela forma ldquoA forma ou o fim natildeo satildeo necessaacuteria e universalmente exemplares reinam com uma certa toleracircncia de imperfeiccedilatildeordquo (I 1981 p110)
46 Nesta passagem das Novas Reflexotildees eacute agraves obras La cyberneacutetique et lrsquoorigine delrsquoinformation de
Ruyer e Lrsquoindividu et as geneacutese physico-biologique de Simondon que Canguilhem faz referecircncia Com efeito como eles Canguilhem critica a transposiccedilatildeo da loacutegica Ciberneacutetica e da Teoria da Informaccedilatildeo para a Biologia entendendo que se ao tratar da hereditariedade podemos falar em erro de informaccedilatildeo natildeo eacute como falha na reproduccedilatildeo das instruccedilotildees determinadas por um riacutegido programa geneacutetico aos moldes de um computador mas como uma nova orientaccedilatildeo dada por um a priori morfogeneacutetico aberto e flexiacutevel o suficiente para comportar variaccedilotildees quando da necessidade de resoluccedilotildees de problemaacuteticas que se vecirc obrigado a enfrentar quando de seu conflito com o meio Daiacute sua concordacircncia com Ruyer para quem somente o organismo e natildeo a maacutequina produz interpreta e altera informaccedilotildees e com Simondon que considera ser a informaccedilatildeo um modo de resoluccedilatildeo de uma problemaacutetica concreta no interior de um sistema metaestaacutevel inscrito em um meio especiacutefico que eacute o ser vivo
60
ser estudados em outra escala A biologia deixou de usar a linguagem da
mecacircnica da fiacutesica e da quiacutemica claacutessicas para utilizar a linguagem da teoria da
informaccedilatildeo e da comunicaccedilatildeo Agora para compreender a vida faz-se necessaacuterio
saber ler e decifrar suas mensagens ldquomensagem informaccedilatildeo programa coacutedigo
instruccedilatildeo decodificaccedilatildeo tais satildeo os novos conceitos do conhecimento da vidardquo (E
1989 p360)47 Novamente nota que considerar a hereditariedade bioloacutegica como
uma comunicaccedilatildeo de informaccedilatildeo eacute num certo sentido retomar um aristotelismo
admitir que haacute no vivente um logos inscrito conservado e transmitido Para
conhecer a vida natildeo eacute mais preciso recorrer agrave arquitetura e agrave mecacircnica mas agrave
gramaacutetica agrave semacircntica e agrave sintaxe ldquoPara compreender a vida eacute necessaacuterio antes
de ler decriptar a mensagem da vidardquo (E 1989 p362)
Mas eacute na Ideologia e racionalidade nas ciecircncias da vida quando retoma a
discussatildeo realizada nas Novas Reflexotildees tendo em vista que na atualidade satildeo
as modalidades de transmissatildeo da mensagem hereditaacuteria e de reproduccedilatildeo do
programa geneacutetico que determinam a norma ou o desvio complementa sua
argumentaccedilatildeo dizendo que o termo erro soacute natildeo eacute um retorno agrave concepccedilatildeo
aristoteacutelica e medieval que considerava os monstros como erros da natureza pois
agora natildeo lidamos mais com uma imperiacutecia de artesatildeo ou de arquiteto mas com
um lapso de um copista pois de erro da natureza o erro geneacutetico passou ser um
erro de leitura de uma mensagem um erro de reproduccedilatildeo de um texto um erro de
coacutepia (cf I 1981 p104-105) Aqui apesar de natildeo contestar que se deva localizar
na macromoleacutecula do aacutecido desoxirribonucleacuteico a funccedilatildeo conservadora e
inovadora da hereditariedade defende que a normalidade da alteraccedilatildeo bioquiacutemica
natildeo seraacute dada sem a consideraccedilatildeo da relaccedilatildeo que o organismo estabelece com
seu meio
47
Segundo Jacob (1983) a biologia moderna ambicionando interpretar as propriedades dos organismos pela estrutura das moleacuteculas que o constituem inaugura uma ldquonova era do mecanicismordquo na qual o modelo do programa geneacutetico eacute retirado das calculadoras eletrocircnicas e o material geneacutetico do ovo passa a ser comparado agrave fita magneacutetica de um computador Agora ldquoa hereditariedade passa a ser a transferecircncia de uma mensagem repetida de geraccedilatildeo em geraccedilatildeordquo (JACOB 1983 p 257) Cf JACOB F A loacutegica do vivente uma histoacuteria da hereditariedade Op cit
61
ldquoO coacutedigo geneacutetico eacute a conservaccedilatildeo de uma informaccedilatildeo retida apoacutes a eliminaccedilatildeo de erros Mas esses erros natildeo eram erros de combinaccedilatildeo eram erros de tentativa ou de ensaio isto eacute insucessos de alguma combinaccedilatildeo Estes ensaios criavam uma interaccedilatildeo entre organismos e meios As mutaccedilotildees dos genoacutetipos mesmo quando natildeo se revelavam natildeo pertinentes natildeo eram simplesmente desvios a partir de uma regra interna eram tambeacutem uma resposta uma reaccedilatildeo ao meiordquo (I 1981 p104-105)
Malgrado isso de modo equiacutevoco os geneticistas e bioquiacutemicos desconsideram
que os chamados erros do coacutedigo geneacutetico satildeo tentativas ou ensaios da vida
criados em resposta em reaccedilatildeo ao meio e realizam o estudo da estrutura
macromolecular da mateacuteria viva no que haacute de mais proacuteximo da natildeo-vida no
estado maacuteximo de privaccedilatildeo dos seus atributos tradicionais procurando encontrar
a normalidade e a anormalidade a norma e seu desvio nas profundezas do
organismo (cf I 1981 p119)
Destarte apostando na importacircncia do estudo das formaccedilotildees monstruosas
para o conhecimento das normas da vida no prefaacutecio da segunda ediccedilatildeo de O
normal e o patoloacutegico (1950) ao fazer uma anaacutelise criacutetica do seu Ensaio de 43
Canguilhem admite que deveria ter insistido com maior convicccedilatildeo que natildeo haacute a
priori diferenccedila ontoloacutegica entre uma forma viva perfeita e uma malograda e
questiona se seria liacutecito falar em formas vivas malogradas ldquoQue erro pode-se
detectar num ser vivo enquanto natildeo se tiver fixado a natureza de suas obrigaccedilotildees
como ser vivordquo (NP 1990 p13) Tambeacutem neste contexto ele lamenta natildeo ter
tirado maior partido das obras de Etienne Wolff em particular Les changements de
Sexe e La science des Monstres para fortalecer sua tese de que as
monstruosidades como singularidades morfoloacutegicas e funcionais natildeo estando
fora da normalidade mostram que a vida pode se organizar de diferentes formas
traduzindo uma multiplicidade de modos de ser possiacuteveis
Jaacute em La connaissance de la vie no artigo ldquoLe normal et le pathologiquerdquo
ele faz referecircncia aos trabalhos de teratogecircnese experimental48 de Etienne Wolff
48
Em La connaissance de la vie no artigo ldquoLa monstruositeacute et le monstrueuxrdquo Canguilhem esclarece as tentativas de elaboraccedilatildeo cientiacutefica da monstruosidade nascem no seacuteculo XIX do encontro da anatomia comparada e da embriologia reformada pela adoccedilatildeo da teoria da epigecircnese oposta ao preformismo Com efeito eacute no fim deste seacuteculo que Camile Dareste (1822-1899) encorajado por Darwin funda a teratogenia o estudo experimental das condiccedilotildees de produccedilatildeo artificial das monstruosidades visando agrave elucidaccedilatildeo da origem das espeacutecies Seguindo a
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para em seguida se colocar como um antiacutepoda da teoria aristoteacutelica fixista e
ontoloacutegica Por outro prisma ele afirma natildeo ver o mundo dos seres vivos como
uma hierarquia de formas eternas mas como uma tentativa de hierarquizaccedilatildeo de
formas possiacuteveis Em sua concepccedilatildeo natildeo haacute a priori diferenccedila entre uma forma
acabada e uma forma falha natildeo sendo nem mesmo possiacutevel falar em formas
falhas
ldquoNada pode faltar a um ser vivo caso se admita que haacute mil e uma formas de viver Do mesmo modo que na guerra e na poliacutetica natildeo haacute uma vitoacuteria definitiva mas uma superioridade e um equiliacutebrio relativos e precaacuterios na ordem da vida natildeo haacute resultados que desvalorizem radicalmente outros ensaios fazendo-os parecer faltosos de algo () Eacute o futuro das formas que decide seu valor Todas as formas viventes satildeo para tomar a expressatildeo de Louis Role em sua grande obra Les Poissons lsquomonstros normalizadosrsquordquo (CV 1985 p160)
Assim se Canguilhem atribui novo estatuto aos monstros eacute tambeacutem porque
satildeo eles que nos fazem questionar se devemos falar em leis da vida ou em ordens
da vida isto eacute se em se tratando de vivente temos que consideraacute-lo um sistema
de leis ou uma organizaccedilatildeo de propriedades Com efeito no artigo ldquoLa
monstruositeacute et le monstrueuxrdquo ele explica que eacute a existecircncia dos monstros o que
coloca em questatildeo a vida quanto a seu poder de nos ensinar a ordem porque
estamos acostumados a ver o mesmo engendrar o mesmo Eacute somente porque nos
consideramos efeitos reais das leis da vida que uma diferenccedila morfoloacutegica
aparece a nossos olhos como uma monstruosidade Mas se olharmos por outra
perspectiva ldquoo monstro seria apenas o outro que o mesmo uma ordem outra que
a mais provaacutevelrdquo (CV 1985 p171)49 Portanto eacute o surgimento dos monstros o que
nos faz atribuir agrave vida certa excentricidade pois nos permite dissociar os conceitos
classificaccedilatildeo de Isidore Geoffroy Saint-Hilaire Dareste passa a criar monstruosidades simples a partir de um embriatildeo de galinha procurando estabelecer uma relaccedilatildeo entre as anomalias e as variedades hereditaacuterias no contexto das teorias da evoluccedilatildeo (cf CV 1985 p180)
49 Le Blanc (2010) nota que Canguilhem por natildeo considerar o vivente um sistema de leis mas
uma ordem de propriedades troca a crenccedila na legalidade fundamental da vida pelo valor singular dos indiviacuteduos isto eacute troca a figura uniacutevoca da normalidade pela normatividade plural dos particulares Ou seja ele substitui o conceito fixo de tipo que pressupotildee uma normalidade primeira pelo dinacircmico de ordem associado agrave multiplicidade de modos de vida ldquoa ordem vital natildeo eacute outra que o surgimento pluriforme e pluriacutevoco de modos vitaisrdquo (LE BLANC 2010 p152) Cf LE BLANC G Canguilhem et la vie humaine Paris QuadrigePUF 2010
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de reproduccedilatildeo e de repeticcedilatildeo provando ser a vida capaz de maior liberdade de
exerciacutecio e de transgressatildeo espontacircnea a seus proacuteprios haacutebitos (cf CV 1985
p173)
Ou seja se considerarmos a vida como um sistema de leis adotando para
os fenocircmenos vitais a mesma legalidade dos fenocircmenos fiacutesicos apenas
poderemos esperar dela regularidades e repeticcedilotildees Isto porque se as leis satildeo
invariantes essenciais das quais os fenocircmenos singulares satildeo exemplares
aproximados poreacutem falhos na reproduccedilatildeo integral de sua realidade legal o
singular ou seja o desvio a variaccedilatildeo aparece como um fracasso uma
imperfeiccedilatildeo ou uma impureza (cf CV 1985 p156) Mas de outro modo se
tomarmos a vida como uma ordem de propriedades podemos desenhaacute-la a partir
de uma organizaccedilatildeo de potenciais e uma hierarquia de funccedilotildees na qual a
estabilidade seraacute sempre precaacuteria (cf CV 1985 p 83)50 Por esta perspectiva a
irregularidade a anomalia natildeo seratildeo concebidas como acidentes afetando o
indiviacuteduo mas como sua existecircncia mesma e a singularidade individual natildeo seraacute
interpretada como um erro mas como um ensaio natildeo como uma falta mas como
uma aventura vital (cf CV 1985 p159)
Tambeacutem nos Eacutetudes dacuteHistoire et de Philosophie des Sciences no artigo
ldquoDu singulier et de la singulariteacute em epistemologie biologiquerdquo Canguilhem diz ser
a natureza rica em encruzilhadas e em planos de organizaccedilatildeo Nela a
singularidade morfoloacutegica representada pelo indiviacuteduo mutante joga seu papel
epistemoloacutegico questionando a generalidade anterior em relaccedilatildeo a qual ele se
singularizou Deste ponto de vista a vantagem da singularidade reside em seu
poder de deslocar o sistema que natildeo a comporta certificando a resistecircncia da
50
Segundo Barbara (2008) Canguilhem opotildee o conceito de lei ao de organizaccedilatildeo bioloacutegica Contra a dimensatildeo linear da legalidade dos fenocircmenos fiacutesico-quiacutemicos ele defende a ideia de uma ordem de propriedades organizada de maneira hieraacuterquica e em potecircncia que faz do vivente um sistema dinacircmico no qual o estado de estabilidade assume uma existecircncia muacuteltipla que natildeo pode ser referida a uma normalidade estatiacutestica Cf BARBARA J-G Lrsquoeacutetude du vivant chez Georges Canguilhem des concepts aux objets biologiques In FAGOT-LARGEAULT DEBRU D MORANGE M (dir) HAN H-J (eacuted) Philosophie et meacutedecine en hommage agrave Georges Canguilhem (LrsquoHistoire des sicences ndash Textes et Egravetudes) Paris Vrin 2008
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natureza de se enquadrar em uma camisa de forccedila de leis ou de regras ldquopor suas
singularidades a vida proclama sua barbaacuterierdquo (cf E 1989 p213)
Jaacute na Ideologia e racionalidade nas ciecircncias da vida novamente diz que a
anomalia como uma diferente forma de organizaccedilatildeo ou uma nova ordem vital
pode receber da vida mesma uma valoraccedilatildeo positiva indicativa de sua
normalidade num dado meio Sendo apenas uma ordem da vida menos provaacutevel
ela pode representar uma vantagem para a sobrevivecircncia em condiccedilotildees
ambientais novas (cf I 1981 p116) Aleacutem disso nota que quando falamos em
ordens da vida ou em formas de organizaccedilatildeo de diferentes valores
necessariamente nos referimos a qualidades de certas quantidades fiacutesicas o que
para ele eacute suficiente para colocar a biologia em um quadro especiacutefico de
referecircncia epistemoloacutegica ldquoIsto basta para distinguir a biologia da fiacutesica ainda que
a primeira pareccedila ter ligado o seu proacuteprio destino ao da segundardquo (I 1981 p120)
Com efeito agora seguindo L Lwoff autor de Lrsquoordre biologique para
quem ldquoa uacutenica fonte da ordem bioloacutegica eacute a proacutepria ordem bioloacutegicardquo Canguilhem
procura mostrar que o conceito de normalidade proacuteprio agrave biologia eacute estranho agrave
epistemologia da fiacutesica e da quiacutemica A seu ver mesmo para uma epistemologia
unitaacuteria ainda que materialista haacute uma diferenccedila radical entre estas ciecircncias pois
as anomalias as doenccedilas e a morte natildeo satildeo problemas fiacutesico-quiacutemicos mas
bioloacutegicos ldquoA doenccedila e a morte dos seres vivos que produziram a fiacutesica tantas
vezes com risco das suas vidas natildeo satildeo problemas de fiacutesica A doenccedila e a morte
dos fiacutesicos e bioacutelogos vivos satildeo problemas de biologiardquo (I 1981 p122) Exemplo
disso eacute que uma base nucleacuteica do material geneacutetico pode ser acidentalmente
substituiacuteda por outra e para o fiacutesico mesmo que tal mutaccedilatildeo seja letal nada
mudou pois a carga de entropia negativa natildeo variou Jaacute para o bioacutelogo a
mudanccedila de qualidade de uma certa quantidade fiacutesica pode fazer com que o
organismo se torne incapaz de funcionar normalmente cabendo a ele portanto e
natildeo ao fiacutesico mostrar qual o sentido vital desta alteraccedilatildeo (cf I 1981 p120)
Tambeacutem em La connaissance de la vie ao tratar da importacircncia dos
monstros para a ldquoapreciaccedilatildeo concreta e completa dos valores da vidardquo ele
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apresenta a monstruosidade como uma forma de insurreiccedilatildeo contra a legalidade
da natureza imposta pela fiacutesica e filosofia mecanicistas e afirma que eacute por natildeo
haver o conceito de normalidade em fiacutesica e em mecacircnica que somente aos
organismos pode ser atribuiacuteda a qualificaccedilatildeo de monstros ldquoEacute necessaacuterio reservar
somente aos seres orgacircnicos a qualificaccedilatildeo de monstros Natildeo haacute monstro mineral
Natildeo haacute monstro mecacircnicordquo (CV 1985 p171)
Na mesma direccedilatildeo em O normal e o patoloacutegico considerando que natildeo haacute
uma ciecircncia especial das anomalias fiacutesicas ou quiacutemicas como haacute na biologia uma
ciecircncia dos tipos normativos de vida em suas diferentes formas e
comportamentos vitais Canguilhem nota que a histoacuteria das anomalias e a
teratologia constituem um capiacutetulo obrigatoacuterio que traduz a originalidade das
ciecircncias bioloacutegicas (cf NP 1990 p105)
Assim apostando na especificidade das ciecircncias da vida Canguilhem
acaba por se filiar agrave tradiccedilatildeo vitalista que em sua genealogia vai de Hipoacutecrates e
Aristoacuteteles agrave Driesch agrave von Monakow agrave Goldstein passando por van Helmont
Barthez Blumenbach Bichat Lamarck51 e J Muumlller sem excluir Claude
Bernard52 Isto porque na histoacuteria das ciecircncias da vida foram os vitalistas que ao
se recusarem a aliar seu objeto de estudo aos dos fiacutesicos e dos quiacutemicos
colocando um freio agrave ambiccedilatildeo anexionista das ciecircncias da mateacuteria possibilitaram
51
Ainda na coletacircnea La connaissance de la vie no artigo ldquoLe vivant et son milieurdquo Canguilhem diz considerar o lamarckismo um vitalismo porque em sua teoria diferentemente da de Darwin haacute uma originalidade na vida que o meio ignora (cf CV 1985 p136)
52 De acordo com Canguilhem saber se Claude Bernard era ou natildeo materialista ou vitalista eacute uma
questatildeo que gera polecircmica (cf NP 1990 p50) A seu ver Claude Bernard para refutar o vitalismo de Bichat que considera ser um indeterminismo se empenha em afirmar a legalidade dos fenocircmenos vitais sua constacircncia rigorosa em condiccedilotildees definidas que pode ser aquela dos fenocircmenos fiacutesicos (cf CV 1985 p 157) Natildeo obstante nas suas Leccedilons sur les phenoacutemegravenes de la vie (1878) refutando o materialismo mecanicista ele afirma a originalidade da forma viva e de suas atividades funcionais Para Claude Bernard apesar das manifestaccedilotildees vitais estarem sob a ldquoinfluecircncia direta da fiacutesico-quiacutemicardquo essas condiccedilotildees natildeo poderiam agrupar harmonizar os fenocircmenos na ordem e na sucessatildeo em que se apresentam nos seres vivos (cf NP 1990 p51) Segundo Dutra (2001) Claude Bernard se declarou estar fora tanto do vitalismo quanto do materialismo Foi sua insistecircncia na investigaccedilatildeo do determinismo fiacutesico-quiacutemico dos fenocircmenos da vida que levou muitos comentadores a vecirc-lo como materialista assim como suas criacuteticas ao materialismo que julgava insuficiente levou alguns a consideraacute-lo vitalista (cf DUTRA 2001 p149) Para saber mais sobre Claude Bernard o vitalismo e o materialismo Cf DUTRA LHA A epistemologia de Claude Bernard (Coleccedilatildeo CLE v33) Campinas UNICAMP Centro de Loacutegica Epistemologia e Histoacuteria da Ciecircncia 2001
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a constituiccedilatildeo da biologia como ciecircncia independente atraveacutes da constituiccedilatildeo de
um objeto e consequentemente de um campo de conhecimento e meacutetodos de
investigaccedilatildeo proacuteprios (cf CV 1985 p84)
Com efeito trabalhando para que a biologia natildeo se tornasse um braccedilo
menor da fiacutesica ou da quiacutemica Canguilhem lembra que foi Bichat quem defendeu
haver uma distinccedilatildeo entre as forccedilas vitais que regem os corpos organizados e as
leis fiacutesico-quiacutemicas e que foi sob sua influecircncia que Comte e Claude Bernard
afirmaram que a experimentaccedilatildeo bioloacutegica natildeo deve ser uma coacutepia dos princiacutepios
e praacuteticas da experimentaccedilatildeo fiacutesico-quiacutemica devendo o bioacutelogo inventar uma
teacutecnica experimental proacutepria (cf CV 1985 p 25-26) Isso porque para o autor
das Recherches sur la Vie et la Mort (1800) a fiacutesica e a quiacutemica satildeo
complementares porque as mesmas leis presidem os seus fenocircmenos ldquoMas um
imenso intervalo as separa da ciecircncia dos corpos organizados porque existe uma
enorme diferenccedila entre suas leis e as da vidardquo (CV 1985 p95)
Na trilha bichatiana tambeacutem para Canguilhem natildeo eacute possiacutevel explicar os
fenocircmenos orgacircnicos ou vitais atraveacutes das leis da fiacutesico-quiacutemica pois no
organismo sob a vigecircncia das mesmas leis podem ocorrer variaccedilotildees normativas
de diferentes qualidades ou sentidos vitais ldquoocorre com os estados do organismo
o mesmo que com a muacutesica as leis da acuacutestica natildeo satildeo violadas numa cacofonia
mas natildeo se pode concluir daiacute que qualquer combinaccedilatildeo de sons seja agradaacutevelrdquo
(NP 1990 p35) Isto eacute enquanto as leis satildeo imposiccedilotildees as normas satildeo
proposiccedilotildees enquanto as leis satildeo invariaacuteveis e indiferentes as normas bioloacutegicas
satildeo variaacuteveis e flutuantes podendo receber diferentes valoraccedilotildees bioloacutegicas
ldquoQuando os dejetos da assimilaccedilatildeo deixam de ser excretados por um organismo e obstruem ou envenenam o meio interno tudo isso com efeito esta de acordo com a lei (fiacutesica quiacutemica etc) mas nada disso estaacute de acordo com a norma que eacute a atividade do proacuteprio organismordquo (NP 1990 p98)
Daiacute sua concordacircncia com Goldstein para quem a anaacutelise fiacutesico-quiacutemica do
vivente pode e deve ser feita pois tem um interesse teoacuterico e praacutetico Mas ela
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constitui um capiacutetulo da fiacutesica tendo a biologia todo o resto a fazer (cf CV 1985
p147)
Assim como os vitalistas Canguilhem recusa o mecanicismo cartesiano e o
reducionismo fiacutesico-quiacutemico mas apesar de simpaacutetico agrave tradiccedilatildeo vitalista natildeo iraacute
se identificar plenamente a ela Criacutetico do vitalismo claacutessico por sua aproximaccedilatildeo
ao animismo sthaliniano ele natildeo vai advogar em favor da existecircncia de uma ldquoforccedila
vitalrdquo irredutiacutevel agraves forccedilas da mateacuteria de uma ldquoalmardquo como essecircncia abstrata
metafiacutesica Ele natildeo fala em princiacutepio vital como fez Barthez em forccedila vital como
Bichat em enteleacutequia como Driesch ou em hormegrave como von Monakow Embora
acredite que as propriedades da mateacuteria viva natildeo se reduzem agraves leis da fiacutesico-
quiacutemica53 ele procura natildeo cometer a falta indesculpaacutevel de alguns vitalistas de
inserir o vivente em um meio fiacutesico do qual ele constituiria uma exceccedilatildeo (cf CV
1895 p95)54
Malgrado isso apostando na vitalidade e na fecundidade do vitalismo55
Canguilhem se coloca em concordacircncia com todos aqueles que consideram
53
Prochiantz (1993) observa que embora materialista Canguilhem recusa o reducionismo fiacutesico-quiacutemico abusivamente qualificado de materialismo Com efeito ao avaliar a influecircncia de Claude Bernard em seu pensamento nota que ele se coloca contrariamente agraves teorias mecanicistas e termodinamicistas de tradiccedilatildeo fisicalista adotando uma concepccedilatildeo de vida que apesar de materialista daacute agraves ciecircncias bioloacutegicas a sua especificidade como estudo da criaccedilatildeo do desenvolvimento da manutenccedilatildeo e da evoluccedilatildeo das formas vivas Sobre o assunto confira PROCHIANTZ A Le mateacuterialisme de Georges Canguilhem In BADIOU A (et al) Georges Canguilhem Philosophe historien des sciences Actes du colloque (6 7 8 deacutecembre 1990) Paris Albin Michel 1993
54 Han (2008) acredita que com esta afirmaccedilatildeo Canguilhem foi injusto com os vitalistas sobretudo
com Bichat para quem as leis da vida se unem agraves leis da fiacutesico-quiacutemica e interagem com elas Segundo ele Canguilhem negligencia o aspecto positivo do vitalismo francecircs tendo dele uma imagem preacute-concebida Segundo o comentador Canguilhem natildeo tematizou a heuriacutestica positiva do vitalismo talvez porque a maior parte das foacutermulas vitalistas da Escola de Montpellier ele tenha retirado de fontes indiretas como da obra historiograacutefica da medicina de Charles Daremberg Apesar disso ele admite que Canguilhem procurou fazer justiccedila ao vitalismo ao apresentar sua vitalidade e fecundidade ainda que de modo imperfeito Cf HAN H-J Georges Canguilhem et le vitalisme franccedilais remarques sur les ldquoaspects du vitalismerdquo In FAGOT-LARGEAULT DEBRU D MORANGE M (dir) HAN H-J (eacuted) Philosophie et meacutedecine en hommage agrave Georges Canguilhem (LrsquoHistoire des sicences ndash Textes et Egravetudes) Paris Vrin 2008
55 Para Canguilhem no artigo ldquoAspects du Vitalismerdquo testemunho da fecundidade do vitalismo eacute o
fato de que C F Wolff (1733-1794) adepto das concepccedilotildees vitalistas foi considerado o fundador da embriologia moderna graccedilas agraves observaccedilotildees microscoacutepicas que realizou dos momentos sucessivos do desenvolvimento do ovo Outro vitalista von Baer depois de ter descoberto em 1827 o ovo dos mamiacuteferos desenvolveu a teoria dos folhetos (ectoderma mesoderma e endoderma) a partir das observaccedilotildees que realizou das primeiras formaccedilotildees embrionaacuterias A
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estreito e insuficiente o antigo dogma da teoria mecanicista do organismo56 pois
percebe que ao tempo em que a maacutequina eacute heteropoeacutetica dependente de uma
orientaccedilatildeo normativa externa o organismo como uma totalidade autorregulada eacute
autopoeacutetico capaz de propor a si mesmo suas proacuteprias normas (cf CV 1985
p24) Daiacute a seu ver a insuficiecircncia de uma biologia que se submete
completamente ao espiacuterito das ciecircncias exatas dissolvendo no anonimato de um
meio mecacircnico fiacutesico e quiacutemico esses centros de organizaccedilatildeo adaptaccedilatildeo e
invenccedilatildeo que satildeo os seres vivos (cf CV 1985 p153)
Defendendo assim como os vitalistas ser o organismo irredutiacutevel a uma
composiccedilatildeo mecacircnica57 Canguilhem considera ser o meacutetodo analiacutetico proacuteprio agraves
ciecircncias da mateacuteria insuficiente para dar conta dos fenocircmenos bioloacutegicos jaacute que o
ser vivo natildeo eacute um segmento ou uma parte mas um todo ldquoa vida de um ser vivo eacute
para cada um de seus elementos a accedilatildeo imediata da copresenccedila de todosrdquo (NP
1990 p226)58 Como um conjunto integrado ou um todo organizado o organismo
natildeo vive de modo segmentado como eacute percebido pelo anatomista Sua proacutepria
histoacuteria da teoria celular tambeacutem mostra entre seus precursores e fundadores mais vitalistas que mecanicistas Schwann considerado como aquele que estabeleceu as leis gerais da formaccedilatildeo celular (1838) tambeacutem poderia ter sido favoraacutevel a certas concepccedilotildees antimecanicistas em razatildeo de sua crenccedila na existecircncia de um blastocircmero formador o que indica que o vivente natildeo eacute um mosaico ou uma colisatildeo de ceacutelulas Mesmo Virchow hostil agrave teoria do blastocircmero formador e considerado um ldquomecanicista convictordquo pensava que as ceacutelulas apareciam por precipitaccedilatildeo de uma substacircncia fundamental A afirmaccedilatildeo de que toda ceacutelula proveacutem de uma ceacutelula preacute-existente natildeo deixa de ter caraacuteter vitalista (cf CV 1985 p92-93) Outro domiacutenio que os vitalistas podem reivindicar descobertas autecircnticas eacute o da neurologia A teoria do reflexo por exemplo deve mais a vitalistas como Willis (1621-1675) e Pfluumlger (1829-1910) que aos mecanicistas ldquoa mecanizaccedilatildeo ulterior da teoria do reflexo em nada modifica suas origensrdquo (CV 1990 p93)
56 Aqui Canguilhem entra em concordacircncia com os bioacutelogos marxistas atraveacutes de um elogio agrave
interpretaccedilatildeo dialeacutetica dos fenocircmenos bioloacutegicos Segundo ele se a dialeacutetica em biologia eacute justificaacutevel eacute porque reconhece na vida sua espontaneidade proacutepria sua rebeldia agrave mecanizaccedilatildeo caracteriacutesticas que suscitaram o renascimento do vitalismo Assim ldquoAtentos ao que a vida apresenta de invenccedilatildeo e irredutibilidade os bioacutelogos marxistas deveriam louvar no vitalismo sua objetividade diante de certas caracteriacutesticas da vidardquo (CV 1985 p99)
57 Segundo Canguilhem Lapassade Piquemal e Ulmann (2003) em Du deacuteveloppement agrave
leacutevolution au XIXe siegravecle o fio condutor da totalidade eacute a afirmaccedilatildeo da estrutura orgacircnica
essencialmente irredutiacutevel a uma composiccedilatildeo mecacircnica (cf D 2003 p16) Cf CANGUILHEM G LAPASSADE G PIQUEMAL J ULMANN J Du deacuteveloppement agrave leacutevolution au XIX
e siegravecle Paris
QuadrigePUF 2003
58 Com efeito de acordo com Canguilhem eacute a escola vitalista francesa que propotildee uma imagem
de vida transcendente ao entendimento analiacutetico o organismo natildeo pode ser compreendido como um mecanismo pois a vida eacute irredutiacutevel a uma composiccedilatildeo de partes materiais (cf CV 1985 p63)
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necessidade de alimentos energia movimento repouso entre outras tem como
sede o organismo em sua totalidade Mesmo seus dispositivos de regulaccedilatildeo59 e
homeostase60 se exercendo por meio de um sistema nervoso e endoacutecrino
exprimem a integraccedilatildeo das partes ao todo ldquoEacute esta a razatildeo pela qual no interior do
organismo natildeo haacute propriamente distacircncia entre os oacutergatildeos natildeo haacute exterioridade
das partesrdquo (NP 1990 p225) Portanto o organismo como totalidade integrada
somente poderaacute ser percebido a partir de uma siacutentese e natildeo de uma anaacutelise isto
eacute apenas poderaacute ser apreendido atraveacutes de uma visatildeo de conjunto e natildeo pela
divisatildeo de seus componentes
Em La connaissance de la vie no artigo ldquoLa theacuteorie cellulairerdquo Canguilhem
nota que o advento da teoria celular fortaleceu o meacutetodo de investigaccedilatildeo analiacutetico
59
Na Ideologia e racionalidade nas ciecircncias da vida em ldquoA formaccedilatildeo do conceito de regulaccedilatildeo bioloacutegica nos seacuteculos XVIII e XIXrdquo Canguilhem mostra que foi Hans Driesch (1867-1941) autor da obra Die Organischen Regulationen (1901) quem ao reconhecer nos primeiros blastocircmeros uma capacidade de impor ou transformar de uma parte uma regra de conformidade com a estrutura de um todo fez com que os embriologistas pudessem confirmar o reconhecimento jaacute realizado pelos fisiologistas da existecircncia de funccedilotildees controladoras de outras funccedilotildees que pela manutenccedilatildeo de certas constantes permitiam ao organismo comportar-se como um todo A estas funccedilotildees no ultimo terccedilo do seacuteculo XIX foi dado o nome de ldquoregulaccedilatildeordquo Segundo Canguilhem este termo inicialmente um conceito de ordem mecacircnica e poliacutetica foi introduzido metaforicamente na fisiologia numa eacutepoca em que as funccedilotildees por ele designadas estavam longe de serem compreendidas a partir de uma teoria geral das regulaccedilotildees e da homeostasia orgacircnica Apenas depois de Claude Bernard o termo ldquoregulaccedilatildeordquo entrou para o vocabulaacuterio da fisiologia natildeo como metaacutefora mas com reconhecimento cientiacutefico ldquoa regulaccedilatildeo bernardiana que se fundamenta na estabilidade interna das condiccedilotildees necessaacuterias da vida dos elementos celulares permite ao organismo enfrentar os acasos do meio ambiente pois esta regulaccedilatildeo consiste num mecanismo de compensaccedilatildeo de desequiliacutebriosrdquo (I 1981 p88)
60 Canguilhem esclarece que foi W B Cannnon bioacutelogo contemporacircneo quem expocircs em La
sagesse du Corps a teoria da homeostase teoria segundo a qual o organismo estaacute em estado permanente de equiliacutebrio controlado mantido contra as influecircncias perturbadoras de origem externa sendo a vida orgacircnica uma ordem de funccedilotildees precaacuterias e ameaccediladas mas constantemente restabelecidas por um sistema de regulaccedilotildees ldquoas regulaccedilotildees para as quais Cannon inventou o termo geral de homeostasia satildeo do tipo das que Claude Bernard havia reunido sob a denominaccedilatildeo de constantes do meio interno Satildeo normas de funcionamento orgacircnico como a regulaccedilatildeo dos movimentos respiratoacuterios sob a accedilatildeo da taxa de aacutecido carbocircnico dissolvido no sangue a termorregulaccedilatildeo no animal de temperatura constante etcrdquo (NP 1990 p235) Ele esclarece ainda que hoje aleacutem destas outras formas de regulaccedilatildeo devem ser levadas em consideraccedilatildeo no estudo das estruturas orgacircnicas e na gecircnese destas estruturas pois a embriologia experimental contemporacircnea descobriu que existem regulaccedilotildees morfoloacutegicas que durante o desenvolvimento embrionaacuterio conservam ou estabelecem a integridade da forma especiacutefica e prolongam sua accedilatildeo organizadora na reparaccedilatildeo de certas mutilaccedilotildees ldquoDe modo que se pode classificar em trecircs tipos o conjunto de normas graccedilas agraves quais os seres vivos se apresentam como um mundo distinto normas de constituiccedilatildeo normas de reconstituiccedilatildeo e normas de funcionamentordquo (NP 1990 p235)
70
e recolocou a questatildeo do todo e da parte em biologia61 Aqui o teor de sua criacutetica
eacute que epistemologicamente a teoria das moleacuteculas orgacircnicas ilustra bem como
uma teoria bioloacutegica pode nascer do prestiacutegio de uma ciecircncia fiacutesica
ldquoA teoria das moleacuteculas orgacircnicas ilustra um meacutetodo de explicaccedilatildeo o meacutetodo analiacutetico e privilegia um tipo de imaginaccedilatildeo a imaginaccedilatildeo do descontiacutenuo () Um organismo eacute um mecanismo no qual o efeito global resulta necessariamente da conjunccedilatildeo de partes A verdadeira individualidade vivente eacute molecular monaacutedicardquo (CV 1985 p 56)
Tambeacutem nos Eacutetudes dacuteHistoire et de Philosophie des Sciences no artigo
ldquoLe tout et la partie dans la penseacutee biologiquerdquo ele opotildee a ideia de corpo como
agregado de ceacutelulas independentes a de totalidade orgacircnica Nota tambeacutem que
ateacute mesmo a atividade reflexa aparentemente segmentar e localizada deve ser
considerada como uma resposta do organismo como um todo a um estiacutemulo
externo pois o reflexo natildeo eacute um mecanismo elementar e riacutegido traduzido por uma
resposta muscular isolada a um estiacutemulo pontal Ele eacute uma reaccedilatildeo do organismo
como um todo a uma modificaccedilatildeo de sua relaccedilatildeo com o meio (cf E 1989 p303)
Por isso assim como Goldstein ele acredita que apesar de ser possiacutevel isolar as
partes de um todo natildeo eacute possiacutevel compor o todo a partir das partes sendo o
reflexo um fenocircmeno desta totalidade (cf E 1989 p328)
Ainda na mesma obra realizando um paralelo entre a forma como
Aristoacuteteles e Descartes conceberam o todo e a parte nos organismos Canguilhem
lembra que se no pensamento aristoteacutelico o vivente eacute visto como uma totalidade
natildeo entendida como a simples soma de partes havendo uma subordinaccedilatildeo das
partes ao todo jaacute no cartesiano o uso do modelo mecacircnico daacute ideia de que as
61
Segundo Jacob (1983) a teoria celular fez uma primeira grande objeccedilatildeo ao vitalismo que havia presidido agrave fundaccedilatildeo da biologia rejeitando uma de suas exigecircncias fundamentais a ideia de totalidade indivisiacutevel ldquoSatildeo precisamente estas ideacuteias de totalidade e de continuidade que Schwann contesta considerando natildeo mais a composiccedilatildeo elementar dos seres vivos mas as causas que regem duas de suas principais propriedades a nutriccedilatildeo e o crescimento Adotando-se o ponto de vista vitalista eacute preciso situar as causas destes dois fenocircmenos no conjunto do organismo () Mas pode-se tambeacutem considerar que em cada ceacutelula as moleacuteculas satildeo articuladas de forma a permitir que a ceacutelula atraia outras moleacuteculas e cresccedila por si mesma As propriedades do vivo natildeo podem mais ser atribuiacutedas ao todo mas a cada parte a cada ceacutelula que de certa forma possui uma lsquovida independentersquordquo (JACOB p124-125) Cf JACOB F A loacutegica do vivente uma histoacuteria da hereditariedade (Trad Acircngela Loreiro de Souza) Op cit
71
partes do organismo se compotildeem segundo uma ordem necessaacuteria e invariaacutevel e
que o todo como estrutura estaacutetica eacute o produto da composiccedilatildeo destas partes (cf
E 1989 p325) Considerando que uma lesatildeo no organismo natildeo abole
necessariamente sua plasticidade por exemplo que a destruiccedilatildeo parcial das
ceacutelulas nervosas natildeo acarreta necessariamente a perda da funccedilatildeo global do
ceacuterebro - o que mostra certa independecircncia de suas funccedilotildees em relaccedilatildeo agrave
integridade de sua estrutura ndash ele se recusa a reduzir a totalidade orgacircnica a um
conjunto de mecanismos no qual toda funccedilatildeo estaria na dependecircncia da estrutura
estaacutetica a qual estaacute referenciada (cf E 1989 p315)
Na mesma direccedilatildeo em La connaissance de la vie ao procurar diferenciar a
maacutequina de um organismo ele define um mecanismo como uma junccedilatildeo de soacutelidos
em movimento reunidos de forma tal que o movimento natildeo pode abolir a
configuraccedilatildeo do conjunto ldquoportanto em toda maacutequina o movimento eacute funccedilatildeo da
junccedilatildeo e o mecanismo da configuraccedilatildeordquo (CV 1985 p103) Os movimentos
produzidos mas natildeo criados pela maacutequina satildeo deslocamentos geomeacutetricos e
mensuraacuteveis e a configuraccedilatildeo consiste apenas em um sistema de ligaccedilotildees
comportando graus de liberdade determinados que dependem do movimento dos
soacutelidos em contato O mecanismo eacute ainda um conjunto de partes deformaacuteveis
que necessita de restauraccedilatildeo perioacutedica das relaccedilotildees estabelecidas entre estas
mesmas partes Uma maacutequina assim definida natildeo se basta a si mesma pois
depende natildeo soacute da engenhosidade de um construtor mas tambeacutem da vigilacircncia
de um maquinista
ldquoNo caso da maacutequina a construccedilatildeo lhe eacute estrangeira e supotildee a engenhosidade de um mecacircnico a conservaccedilatildeo exige a observaccedilatildeo e a vigilacircncia constantes de um maquinista e sabemos a que ponto certas maacutequinas complicadas podem ser irremediavelmente perdidas por falta de atenccedilatildeo ou de vigilacircncia Quanto a sua regulaccedilatildeo e a sua reparaccedilatildeo elas supotildeem igualmente a intervenccedilatildeo perioacutedica da accedilatildeo humanardquo (CV 1985 p116)
Desta forma embora pareccedila que Descartes ao identificar o organismo a um
mecanismo fez desaparecer toda a teleologia da vida a construccedilatildeo de uma
maacutequina natildeo se compreende sem um construtor nem sem uma finalidade ldquoUma
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maacutequina eacute feita pelo homem e para o homem em vista de alguns fins a obter sob
a forma de efeitos a produzirrdquo (cf CV 1985 p114)62 Jaacute o organismo natildeo possui
como a maacutequina um teacutelos predeterminado definido por uma razatildeo exterior a ele
Ensejando finalidades possiacuteveis a vida age segundo um empirismo ldquoA vida eacute
experiecircncia quer dizer improvisaccedilatildeo utilizaccedilatildeo de ocorrecircncias ela eacute tentativa em
todos os sentidosrdquo (CV 1985 p118)
Com efeito segundo Canguilhem enquanto a maacutequina apresenta uma
finalidade determinada realizando um programa previamente traccedilado no
organismo haacute a possibilidade de numa situaccedilatildeo acidental um oacutergatildeo adequar-se a
novas condiccedilotildees servindo a funccedilotildees imprevistas Exemplo disso eacute o caso da
hemiplegia direita na infacircncia que jamais eacute acompanhada de afasia pois outras
aacutereas natildeo lesadas do ceacuterebro acabam por assumir a funccedilatildeo da linguagem A seu
ver tal polivalecircncia dos oacutergatildeos eacute o que mostra ser a finalidade mais conveniente a
uma maacutequina que ao organismo ldquoUm organismo tem portanto mais liberdade de
accedilatildeo que uma maacutequina Ele eacute menos finalidade e mais potencialidaderdquo (CV 1985
p118)
Aleacutem disso se na maacutequina todo o efeito eacute dependente da ordem das
causas o organismo nem sempre segue o princiacutepio de causalidade para o qual
todo efeito tem uma causa e as mesmas causas produzem nas mesmas
condiccedilotildees os mesmos efeitos Experiecircncias de alguns neovitalistas como as
realizadas por Driesch sobre a totipotencialidade dos primeiros blastocircmeros
provam que o embriatildeo natildeo encerra uma ldquomaquinaria especiacuteficardquo como pensava
62
Acreditamos que neste aspecto Canguilhem concordaria com Bergson para quem o mecanicismo e finalismo natildeo seriam mais do que faces de uma mesma moeda Com efeito em A evoluccedilatildeo criadora ele explica porque recusa tanto a hipoacutetese mecanicista quanto a finalista para a compreensatildeo da evoluccedilatildeo dos viventes ldquouma teoria mecanicista seraacute aquela que nos faraacute assistir agrave construccedilatildeo gradual da maacutequina sob a influecircncia de circunstacircncias exteriores intervindo diretamente por uma accedilatildeo sobre os tecidos ou indiretamente pela accedilatildeo dos mais adaptados () O mecanicismo entatildeo censuraraacute com razatildeo o finalismo por seu caraacuteter antropomoacuterfico Mas natildeo percebe que ele proacuteprio procede segundo esse meacutetodo simplesmente mutilando-o Sem duacutevida faz taacutebula rasa do fim perseguido ou do modelo ideal Mas quer ele tambeacutem que a natureza tenha trabalhado como o operaacuterio humano juntando partesrdquo (BERGSON 2005 p97) Cf BERGSON H A evoluccedilatildeo criadora (Trad Bento Prado Neto) Op cit
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Descartes63 Isso porque em seu processo de formaccedilatildeo pode haver indiferenccedila
do efeito em relaccedilatildeo agrave ordem das causas e tambeacutem a reduccedilatildeo quantitativa da
causa pode natildeo trazer uma alteraccedilatildeo qualitativa no efeito o que mostra que o
desenvolvimento embrionaacuterio dificilmente pode ser reduzido a um esquema
mecacircnico (cf CV 1985 p92)
Na mesma direccedilatildeo em O normal e o patoloacutegico Canguilhem esclarece que
enquanto a maacutequina apresenta uma rigidez funcional por seguir uma finalidade
riacutegida e univalente ditada pela razatildeo de seu construtor no organismo natildeo haacute uma
finalidade predeterminada pois eacute improvisando que ele descobre seus fins
possiacuteveis64 Desta forma se eacute possiacutevel atribuir uma finalidade agrave vida ela somente
pode ser pensada num sentido organiacutesmico65 Ela somente poderaacute ser
operacional e natildeo real ontoloacutegica
ldquoSe existisse uma finalidade perfeita consumada um sistema completo de relaccedilotildees de conveniecircncia orgacircnica o proacuteprio conceito de finalidade natildeo teria nenhum sentido como conceito como projeto ou modelo para pensar a vida pela simples razatildeo de
63
Com efeito de acordo com Jacob (1983) para falar do desenvolvimento embrionaacuterio Descartes em Formation de lrsquoanimal utiliza termos semelhantes aos que mais tarde Laplace empregaraacute para descrever os movimentos do universo ldquoSe se conhecesse bem todas as partes da semente de uma espeacutecie de animal em particular por exemplo do homem seria possiacutevel deduzir por razotildees certas e matemaacuteticas a forma e a conformaccedilatildeo de cada um de seus membrosrdquo (DESCARTES In JACOB 1983 p60) In JACOB F A loacutegica da vida uma histoacuteria da hereditariedade (Trad Acircngela Loreiro de Souza) 2ordf ed Rio de Janeiro Ediccedilotildees Graal 1983
64 Para Puttini e Pereira Jr (2007) Canguilhem adota uma posiccedilatildeo antimecanicista mas sem
precisar com isto aceitar uma concepccedilatildeo teleoloacutegica sobre a vida como fizeram os vitalistas A respeito disto comentam que o sucesso da fiacutesica de Galileu e Newton fez com que ela servisse de modelo para as demais ciecircncias Utilizando apenas trecircs esquemas causais para a explicaccedilatildeo do movimento dos corpos (material formal e eficiente) a fiacutesica moderna excluiu a causa final proposta por Aristoacuteteles frequentemente evocada para explicar os fenocircmenos da vida e da sauacutede Os vitalistas insatisfeitos com o modelo mecanicista do universo se empenharam em provar a partir dos mesmos meacutetodos experimentais a existecircncia de uma teleologia vital para diferenciar as forccedilas fiacutesicas das forccedilas vitais O ponto de vista dos comentadores eacute o de que Canguilhem teve como os vitalistas o interesse em propor uma metodologia apropriada agraves ciecircncias da vida mas isso natildeo o fez afirmar a existecircncia de um princiacutepio vital teleoloacutegico Cf PUTTINI R F PEREIRA JR A Aleacutem do mecanicismo e do vitalismo a ldquonormatividade da vidardquo em Georges Canguilhem Op cit
65 Hacking (2007) alinha Canguilhem agrave tradiccedilatildeo aristoteacutelica por ele associar intimamente uma
teleologia agrave vida mas natildeo por procurar compreender a existecircncia dos organismos por seus fins mas por tentar compreender um aspecto do organismo por exemplo um oacutergatildeo considerando somente a razatildeo pela qual ele serve agrave preservaccedilatildeo do organismo ou de sua espeacutecie (cf HACKING 2007 p116) Cf HACKING I Canguilhem parmi les cyborgs In BAUNSTEIN J-F (org) Histoire des sciences et politique du vivant Paris Presses Universitaires de France ndash PUF 2007
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que natildeo haveria motivo para pensar nem razatildeo para o pensamento natildeo havendo nenhuma defasagem entre a organizaccedilatildeo possiacutevel e a organizaccedilatildeo real O pensamento da finalidade exprime a limitaccedilatildeo da finalidade da vida Se esse conceito tem um sentido eacute porque ele eacute o conceito de um sentido o conceito de uma organizaccedilatildeo possiacutevel e portanto natildeo garantidordquo (NP 1990 p256)
Ademais na mesma medida em que Canguilhem recusa a ideia de que os
fenocircmenos orgacircnicos seguem uma causalidade mecacircnica e apresentam uma
finalidade invariaacutevel como num mecanismo no qual haacute uma sequecircncia necessaacuteria
de operaccedilotildees que visa a um fim dado definido por uma razatildeo exterior a ela ele
tambeacutem nega a possibilidade dele ser comparado a uma sociedade na qual as
regras satildeo sempre exteriores ao conjunto de indiviacuteduos que a compotildeem Por isso
ao comparar as normas orgacircnicas agraves normas sociais conclui que eacute devido ao fato
das normas vitais serem internas e atuarem sem deliberaccedilatildeo ou caacutelculo que o
organismo natildeo pode ser comparado a uma sociedade na qual como na maacutequina
as normas satildeo exteriores devendo ser sempre representadas aprendidas
rememoradas aplicadas
ldquoA ordem social eacute um conjunto de regras com as quais seus servidores ou seus beneficiaacuterios de qualquer modo seus dirigentes tecircm que se preocupar A ordem vital eacute constituiacuteda por um conjunto de regras vividas sem problemasrdquo (NP 1990 p211)
Jaacute nos Escritos sobre medicina refletindo sobre o problema das regulaccedilotildees
no organismo e na sociedade esclarece que o fato de uma sociedade ser
organizada natildeo quer dizer que ela seja orgacircnica A seu ver ela eacute mais da ordem
de uma maacutequina que de um organismo
ldquoNatildeo haacute sociedade sem regulaccedilatildeo natildeo haacute sociedade sem regra mas natildeo haacute na sociedade auto-regulaccedilatildeo Nela a regulaccedilatildeo eacute sempre acrescentada se assim posso dizer e sempre precaacuteriardquo (EM 2005 p85)
Diferentemente de uma sociedade na qual a finalidade eacute exterior ao complexo
ajustado a finalidade do organismo lhe eacute inerente de modo que se haacute um modelo
para o organismo este modelo eacute ele mesmo (cf EM 2005 p76 E 1989 p333)
75
Destarte nos seus Eacutetudes dacuteHistoire et de Philosophie des Sciences
Canguilhem procura colocar em xeque o uso de modelos emprestados dos
domiacutenios da fiacutesica e da experiecircncia tecnoloacutegica do animal-maacutequina aos
autocircmatos ciberneacuteticos para a explicaccedilatildeo dos fenocircmenos vitais Isso porque os
organismos por serem autoconstitutivos e autocontrolados diferentemente das
estruturas mecacircnicas que precisam de um construtor de um operador e de um
reparador satildeo capazes de realizar processos de autorregulaccedilatildeo autorreparaccedilatildeo
autoconservaccedilatildeo (cf E 1989 p 319) Como uma totalidade integrada e
autorregulada que se autoconserva o organismo goza de uma plasticidade
funcional e de uma potencialidade de base de modo que o modelo explicativo
seja mecacircnico seja loacutegico das propriedades estruturais e funcionais do objeto
bioloacutegico pode muito bem ser relegado agrave categoria de mito (cf E 1989 p 318)
Com efeito concordando com as objeccedilotildees de Barthez quanto ao uso de
modelos mecacircnicos para a explicaccedilatildeo dos fenocircmenos bioloacutegicos Canguilhem
critica a reduccedilatildeo das estruturas e das funccedilotildees orgacircnicas a modelos emprestados
dos domiacutenios da tecnologia da mecacircnica ou fiacutesica de inspiraccedilatildeo cartesiana e
galileana Tambeacutem ele questionando o uso de modelos de feedback para explicar
a homeostase e a adaptaccedilatildeo ativa orgacircnicas bem como a construccedilatildeo de modelos
eleacutetricos (fiacutesico-quiacutemicos) em fisiologia nervosa natildeo acredita que os feedback
orgacircnicos faccedilam parte da mesma classe dos mecacircnicos embora possa haver
caracteres operacionais comuns entre os oacutergatildeos de regulaccedilatildeo e os dispositivos
mecacircnicos de regulagem ldquoNa era da Ciberneacutetica podemos crer na inadequaccedilatildeo
de modelos mecacircnicos aos sistemas bioloacutegicos caracterizados por sua totalidade
e auto-regulaccedilatildeo internardquo (E 1989 p311)
Tambeacutem na Ideologia e racionalidade nas ciecircncias da vida ele esclarece
que somente um organismo tem um metabolismo orientado para a
autorreproduccedilatildeo e autoconservaccedilatildeo por autorregulaccedilatildeo dados da vida verificaacuteveis
jaacute mesmo nos microrganismos (cf I 1981 p110) Por isso um fato que julga ser
singular e interessante eacute a multiplicaccedilatildeo de termos formados com o prefixo auto
usados pelos bioquiacutemicos e biofiacutesicos para descrever as funccedilotildees e o
comportamento dos sistemas organizados como auto-organizaccedilatildeo
76
autorreproduccedilatildeo autorregulaccedilatildeo e autoimunizaccedilatildeo e o esforccedilo realizado por eles
para esclarecer os determinismos dessas propriedades e construir modelos
ciberneacuteticos de autocircmatos autorreprodutores
ldquoMas esses modelos natildeo passam afinal de modelos loacutegicos e os uacutenicos autocircmatos que de fato satildeo auto-reprodutores satildeo precisamente os sistemas orgacircnicos naturais isto eacute vivosrdquo (I 1981 p120)
Nos Escritos sobre medicina ao tratar do problema da autorregulaccedilatildeo nos
seres vivos Canguilhem defende que o organismo eacute caracterizado pela presenccedila
constante e pela influecircncia permanente de todas as suas partes em cada uma
delas ldquoEacute proacuteprio do organismo viver como um todo e ele soacute pode viver como um
todordquo (EM 2005 p 77) Isso somente eacute possiacutevel por existir nele um conjunto de
dispositivos de regulaccedilatildeo orgacircnica cuja funccedilatildeo eacute manter a integridade e a
persistecircncia do organismo como um todo o que tambeacutem confirma a velha intuiccedilatildeo
da medicina hipocraacutetica confirmada pela fisiologia moderna de que existe no
organismo uma forccedila curativa da natureza (vis medicatrix naturae) uma espeacutecie
de medicaccedilatildeo natural ou de compensaccedilatildeo natural de lesotildees e distuacuterbios aos quais
o organismo estaacute exposto66
Como prova da ideia de organismo como totalidade autorregulada que se
autoconserva ele nota que mesmo no desenvolvimento embrionaacuterio existe uma
espeacutecie de controle do todo sobre as partes o que faz com que mesmo no caso
de ocorrerem variaccedilotildees no embriatildeo por fatores externos seja mantida a
integridade de sua forma especiacutefica Por extensatildeo a regeneraccedilatildeo do organismo
66
Segundo Canguilhem na Ideologia e racionalidade nas ciecircncias da vida a maioria das teorias meacutedicas do seacuteculo XVIII sejam elas mecanicistas ou vitalistas reconhecem que o organismo tem um poder de restituiccedilatildeo e de reintegraccedilatildeo e admitem que foi Hipoacutecrates quem apresentou sob o nome de Natureza esta vis medicatrix naturae como o poder de conservaccedilatildeo de si que eacute proacuteprio do corpo vivo E apesar de todas as teses aristoteacutelicas terem sido alteradas por Descartes ponto por ponto sendo a natureza identificada agraves leis do movimento e da conservaccedilatildeo e toda arte inclusive a medicina tenha se tornado de certa forma uma construccedilatildeo de maacutequinas mesmo ele teve que integrar a sua definiccedilatildeo de ser vivo que reivindicava como objeto da mecacircnica atributos rebeldes a sua jurisdiccedilatildeo e a autoconservaccedilatildeo continuou a ser o principal caraacuteter distintivo do corpo vivo (cf I 1981 p112)
77
adulto apenas eacute possiacutevel devido agrave presenccedila destes organizadores especiacuteficos
que fazem com que a forma orgacircnica seja constantemente preservada e mantida
ldquoDo mesmo modo e isto eacute apenas uma consequecircncia a regeneraccedilatildeo que acontece em alguns animais e que faz com que esses animais reencontrem depois de uma mutilaccedilatildeo e salvo algumas diferenccedilas quantitativas sua proacutepria forma mostra bem que haacute uma espeacutecie de dominaccedilatildeo da forma sobre a mateacuteria uma espeacutecie de comando do todo sobre as partesrdquo (EM 2005 p80)
Portanto na oacuteptica canguilhemiana autoconservaccedilatildeo por autorregulaccedilatildeo eacute
caracteriacutestica proacutepria aos sistemas vivos Somente neles observamos a existecircncia
de um sistema especializado de aparelhos de regulaccedilatildeo intimamente atrelado agraves
funccedilotildees de adaptaccedilatildeo ao meio (cf EM 2005 p54) Desta forma seria um
absurdo considerar o organismo uma maacutequina agrave regulaccedilatildeo e ainda esperar dele
qualquer reaccedilatildeo a uma avaria Ateacute porque adoecimento e morte tambeacutem satildeo
caracteriacutesticas exclusivas dos viventes ldquoNatildeo haver doenccedila na maacutequina coaduna-
se perfeitamente com o fato de que natildeo haacute morte na maacutequinardquo (EM 2005 p 41)
Assim para Canguilhem apenas os organismos satildeo capazes de perceber
quando sua existecircncia se encontra ameaccedilada e de fazer uso de sua potecircncia de
criaccedilatildeo de normas e valores como estrateacutegia de resistecircncia agrave degradaccedilatildeo67 Jaacute as
maacutequinas por natildeo adoecerem nem perceberem as ameaccedilas agrave integridade de sua
estrutura nada criam consistindo nisso sua apatia e sua ineacutercia Portanto como
caracteriacutesticas proacuteprias ao vivo normatividade e polaridade dinacircmica satildeo taacuteticas
vitais de luta contra a inadaptaccedilatildeo e consequentemente extinccedilatildeo da vida
67
Por Canguilhem apresentar a vida como potecircncia de criaccedilatildeo de normas e valores Czeresnia (2010) propotildee uma aproximaccedilatildeo do conceito de normatividade vital agrave noccedilatildeo nietzschiana de vontade de potecircncia ldquoO conceito de normatividade vital encontra o de vontade de poder como uma potecircncia que realiza a proacutepria vida orgacircnicardquo (CZERESNIA 2010 p709) A seu ver a ideia de Nietzsche de que a vida se produz a partir de uma condiccedilatildeo irredutiacutevel de valor e que dele depende o incremento da potecircncia e a expansatildeo da vida mesma se aproxima do conceito de normatividade vital canguilhemiana que constata que natildeo eacute possiacutevel pensar o vivo prescindindo da noccedilatildeo de valor e que a vida tem a propriedade de criar normas para perseverar condiccedilatildeo baacutesica da possibilidade do vivente manter-se na vida agrave revelia do principio da entropia Cf CZERESNIA D Canguilhem e o caraacuteter filosoacutefico das ciecircncias da vida Physis Revista de Sauacutede Coletiva Rio de Janeiro 20 [3] 709-727 2010
78
ldquoa vida procura ganhar da morte em todos os sentidos da palavra ganhar e em primeiro lugar no sentido em que o ganho eacute aquilo que eacute adquirido por meio do jogo A vida joga contra a entropia crescenterdquo (NP 1990 p208)
Isto esclarece porque ele concorda com Bichat para quem a vida eacute um
conjunto de funccedilotildees que resiste agrave morte e porque elogia Guyenot ao ter
compreendido que as flutuaccedilotildees do meio satildeo quase sempre uma ameaccedila agrave
existecircncia do ser vivo e que ele natildeo poderia subsistir se natildeo possuiacutesse certas
propriedades essenciais Para o autor de La vie comme invention o organismo
goza de um conjunto de propriedades graccedilas agraves quais ele resiste agraves muacuteltiplas
causas de sua destruiccedilatildeo e sem essas defesas a vida se extinguiria rapidamente
ldquoQualquer ferida seria mortal se os tecidos natildeo fossem capazes de cicatrizaccedilatildeo e
o sangue de coagulaccedilatildeordquo (NP 1990 p100)
Com efeito se existissem normas determinadas para o organismo como haacute
na maacutequina natildeo haveria possibilidade de restauraccedilatildeo orgacircnica em casos de
malformaccedilatildeo ou acidente (cf NP 1990 p236) Eacute portanto a capacidade de
estabelecimento de valores e de criaccedilatildeo de normas inerente agrave vida o que explica a
existecircncia em todo vivente de reaccedilotildees de caraacuteter hedocircnico e terapecircutico
ldquomesmo os seres vivos bem inferiores aos vertebrados quanto agrave organizaccedilatildeo
apresentam reaccedilotildees de valor hedocircnico ou comportamentos de auto-cura e de
auto-regeneraccedilatildeordquo (NP 1990 p97) De modo mais preciso eacute somente pelo fato
da vida ser reatividade polarizada de conflito com o meio e atividade normativa
que todas as teacutecnicas curativas se fazem possiacuteveis
ldquoNenhum ser vivo jamais teria desenvolvido uma teacutecnica meacutedica se nele assim como em qualquer outro ser vivo a vida fosse indiferente agraves condiccedilotildees que encontra se ela natildeo fosse reatividade polarizada agraves variaccedilotildees do meio no qual se desenrolardquo (NP 1990 p100)
Natildeo obstante Canguilhem entende que natildeo podemos falar de uma
ldquomedicina naturalrdquo sem cairmos no inconveniente de inscrever a teacutecnica vital no
quadro das teacutecnicas humanas quando o inverso eacute verdadeiro Toda teacutecnica
humana eacute que estaacute inscrita na vida
79
ldquoNatildeo eacute apenas porque a teacutecnica humana eacute normativa que a teacutecnica vital eacute considerada como tal por analogia E por ser atividade de informaccedilatildeo e assimilaccedilatildeo que a vida eacute a raiz de toda atividade teacutecnicardquo (NP 1990 p 100)
Assim natildeo devemos resvalar na ldquoilusatildeo de retroatividaderdquo de que fala Bergson a
considerar que a atividade vital persegue fins e utiliza meios comparaacuteveis aos dos
homens Do mesmo modo que a seleccedilatildeo natural natildeo utiliza algo semelhante a
pedigrees a vis medicatrix naturae natildeo faz uso de ventosas (cf NP 1990 p99)
Na mesma direccedilatildeo em La connaissance de la vie ele diz que se para todo
vivente a vida eacute experiecircncia somente o vivente humano diferentemente dos
demais constroacutei teorias e instrumentos para resolver direta ou indiretamente suas
tensotildees com o meio Por esse prisma nada mais humano que uma maacutequina
porque eacute pela construccedilatildeo de utensiacutelios e maacutequinas que o vivente humano se
distingue dos animais ldquomas isso natildeo quer dizer que o homem seja uma maacutequina
pois a construccedilatildeo da maacutequina natildeo eacute uma funccedilatildeo da maacutequinardquo (CV 1895 p 22)
Ou seja somente o vivente humano inventa teorias utensiacutelios e linguagem para
organizar a experiecircncia de modo a garantir a liberdade da vida (cf CV 1985
p11) Apenas ele faz uso da atividade teacutecnica intencional68 como uma forma de
superaccedilatildeo de obstaacuteculos que encontra em sua aprendizagem (learning) isto eacute em
suas tentativas de se ajustar ao mundo exterior (cf CV 1985 p24)
Por isso ainda na mesma obra no artigo ldquoMachine et Organismerdquo
objetivando compreender a construccedilatildeo das maacutequinas a partir da estrutura e do
funcionamento dos organismos ao passar em revista o pensamento dos principais
representantes da filosofia bioloacutegica da teacutecnica destaca aqueles que datildeo margem
agrave percepccedilatildeo de sua origem irracional e faz um elogio a Bergson por ter se tornado
um dos raros filoacutesofos franceses que consideram a invenccedilatildeo mecacircnica uma
funccedilatildeo bioloacutegica um aspecto da organizaccedilatildeo da mateacuteria pela vida (cf CV 1985
p125) Para ele assim como para o autor de A evoluccedilatildeo criadora a atividade
teacutecnica eacute autenticamente orgacircnica e portanto estaacute intimamente ligada agrave vida 68
Aqui Canguilhem toma de Kant os termos teacutecnica intencional do homem e teacutecnica natildeo intencional da vida utilizadas pelo filoacutesofo alematildeo em sua Critique du Jugement (cf CV 1985 p122)
80
Como um fenocircmeno bioloacutegico universal ela natildeo eacute somente uma operaccedilatildeo
intelectual do homem mas uma atividade que o coloca em continuidade com a
vida (cf CV 1985 p 126)69
Todavia somente o vivente humano ao sofrer com a ameaccedila da doenccedila e
da morte como estrateacutegia para a manutenccedilatildeo de sua integridade desenvolve
teacutecnicas intencionais como extensatildeo da atividade curativa da vida Ou seja se a
polaridade dinacircmica pode ser atribuiacuteda a todo vivente no vivente humano como
totalidade orgacircnica consciente a valoraccedilatildeo negativa se transforma em pathos e
este em teacutecnica meacutedica Isto eacute se tudo que vive tem uma capacidade espontacircnea
de conservaccedilatildeo de sua estrutura e de regulaccedilatildeo de suas funccedilotildees o vivente
humano atraveacutes de teorias e instrumentos meacutedicos reproduz de forma consciente
a atitude de todo vivente de manutenccedilatildeo de sua integridade orgacircnica Assim se eacute
dos obstaacuteculos que o meio impotildee ao vivente da doenccedila das anomalias de valor
vital negativo da ameaccedila da morte que adveacutem a teacutecnica curativa natildeo intencional
da vida eacute tambeacutem daiacute que nasce a teacutecnica terapecircutica intencional humana que eacute
a medicina
69
Sebestik (1993) ao investigar o papel da teacutecnica na obra de Canguilhem percebe que fora a comunicaccedilatildeo ldquoDescartes et la techniquerdquo ministrada por ele no IX
e Congregraves international de
Philosophie (1937) e o ceacutelebre artigo ldquoMachine et organismerdquo a concepccedilatildeo canguilhemiana de teacutecnica se encontra dispersa em seus escritos Apesar disso acredita ser possiacutevel apresentar uma ideia precisa dela visto que assentada em dois princiacutepios o primeiro deles eacute que a teacutecnica eacute uma atividade originaacuteria irredutiacutevel agrave ciecircncia e a segundo que ela estaacute inscrita na histoacuteria humana e atraveacutes dela na histoacuteria da vida Na mesma direccedilatildeo Lecourt (2008) comenta que Canguilhem em ldquoDescartes et la techniquerdquo se empenha em mostrar que a iniciativa da teacutecnica estaacute nas exigecircncias do vivente e deve ser pensada como criaccedilatildeo Na comunicaccedilatildeo apresentada na Socieacuteteacute toulousaine de philosophie em 1938 intitulada ldquoActiviteacute technique et creacuteationrdquo Canguilhem trata da proximidade e da distacircncia de suas teses das de Bergson e novamente defende que teacutecnica produccedilatildeo e criaccedilatildeo designam atitudes proacuteprias ao vivente humano que emergem de seu debate incessante com o meio Jaacute Hacking (2007) nota que na filosofia bioloacutegica da teacutecnica apresentada por Canguilhem os utensiacutelios e as maacutequinas satildeo apresentados como projeccedilotildees do corpo ou como produccedilotildees da vida ldquoelas satildeo uma extensatildeo da vida da vitalidade da forccedila vitalrdquo (HACKING 2007 p123-4) Atraveacutes de um anticartesianismo radical seu pensamento rompe as barreiras entre o espiacuterito e o corpo e por natildeo estabelecer uma oposiccedilatildeo fundamental entre maacutequina e organismo daacute abertura para que pensemos em formas artificiais de vida como os Cyborgs Sobre a filosofia da teacutecnica em Canguilhem Cf LECOURT D Georges Canguilhem Que sais-je Les envies du savoir 1
a ediccedilatildeo Paris Presses Universitaires de France - PUF 2008 SEBESTIK J Le rocircle de la
technique dans lœuvre de Georges Canguilhem In BADIOU A (et al) Georges Canguilhem Philosophe historien des sciences Actes du colloque (6 7 8 deacutecembre 1990) Paris Albin Michel 1993 HACKING I Canguilhem parmi les cyborgs In BAUNSTEIN J-F (org) Histoire des sciences et politique du vivant Paris Presses Universitaires de France ndash PUF 2007 p113-41
81
ldquoGostariacuteamos de saber como eacute que uma necessidade humana de terapecircutica teria dado origem a uma medicina cada vez mais clarividente em relaccedilatildeo agraves condiccedilotildees de doenccedila se a luta da vida contra os inuacutemeros perigos que a ameaccedilam natildeo fosse uma necessidade vital permanece e essencialrdquo (NP 1990 p97)
Portanto em consonacircncia aos princiacutepios hipocraacuteticos e tambeacutem
aristoteacutelicos70 segundo os quais a teacutecnica meacutedica imita a accedilatildeo meacutedica natural (vis
medicatrix naturae) para Canguilhem a medicina pode ser vista como uma
extensatildeo dos impulsos curativos da vida visto que eacute neles que ela se enraiacuteza
Como teacutecnica intencional do vivente humano ela eacute o prolongamento do esforccedilo
espontacircneo de defesa e de luta de todo vivente contra tudo o que lhe ameaccedila
ldquoOcorre com a medicina o mesmo que com todas as teacutecnicas Eacute uma atividade
que tem raiacutezes no esforccedilo espontacircneo do vivo para dominar o meio e organizaacute-lo
segundo seus valores de ser vivordquo (NP 1990 p188)
Entretanto singularmente na perspectiva canguilhemiana a medicina existe
como arte da vida porque o vivente humano considera como patoloacutegicos
determinados comportamentos que em relaccedilatildeo agrave polaridade dinacircmica da vida
satildeo apreendidos sob a forma de valores negativos A partir disto como taacutetica de
defesa ele prolonga de modo consciente um efeito espontacircneo proacuteprio da vida
de lutar contra tudo aquilo que constitui um obstaacuteculo agrave sua manutenccedilatildeo e
desenvolvimento tomados como normas (cf NP 1990 p96) Ou seja eacute somente
pelo fato da vida ser atividade polarizada e normativa que ela eacute a raiz da medicina
considerada uma teacutecnica de autocura e autorregeneraccedilao realizada
conscientemente pelo vivente humano que apenas prolonga as tentativas de cura
exercidas espontaneamente pelo ldquoprimeiro meacutedicordquo que eacute a vida 70
Com efeito nos Eacutetudes dacuteHistoire et de Philosophie des Sciences Canguilhem esclarece que assim como no pensamento hipocraacutetico no pensamento aristoteacutelico a arte meacutedica eacute a finalidade natildeo deliberada de um logos natural (Cf E 1989 p337) Na mesma direccedilatildeo na Ideologia e racionalidade nas ciecircncias da vida ele afirma que o naturalismo bioloacutegico de Aristoacuteteles que era filho de meacutedico assemelha-se ao naturalismo hipocraacutetico porque Aristoacuteteles estabelece uma analogia entre natureza e arte entre vida e teacutecnica Para ele a arte do meacutedico como a aplicaccedilatildeo de regras inspiradas pela ideia da sauacutede finalidade e forma do organismo vivo eacute a que mais se assemelha agrave arte das artes que eacute a natureza e a vida ldquoEgrave por demais conhecido que Aristoacuteteles concebe a natureza e a vida como a arte das artes entendida como um processo teleoloacutegico em si imanente sem premeditaccedilatildeo sem deliberaccedilatildeo processo que toda teacutecnica tende a imitar cuja maacutexima aproximaccedilatildeo eacute a que eacute conseguida pela arte do meacutedico quando este cura a si proacuteprio por auto-aplicaccedilatildeo das regras que lhe satildeo inspiradas pela ideacuteia da sauacutede finalidade e forma do organismo vivordquo (I 1981 p110)
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CAPIacuteTULO II
Arte da cura ou ciecircncia das doenccedilas
Se o conhecimento eacute filho da razatildeo a sabedoria eacute filha da vida
O problema de a medicina ser uma arte da cura ou uma ciecircncia das doenccedilas
se inscreve no pensamento canguilhemiano no contexto de uma discussatildeo
epistemoloacutegica mais ampla que procura elucidar a anterioridade loacutegica e
cronoloacutegica das teacutecnicas em relaccedilatildeo agraves ciecircncias Como vimos no capiacutetulo anterior
Canguilhem define a medicina com uma teacutecnica de enraizamento vital isto eacute um
prolongamento consciente de uma forccedila curativa natural (vis medicatrix naturae)
disparada por valoraccedilotildees negativas que a vida mesma atribui a determinados
comportamentos orgacircnicos Ao enraizar a teacutecnica meacutedica na vida sua intenccedilatildeo eacute
colocar em questatildeo a ideia de que a ciecircncia deve comandar a teacutecnica o que
significaria afirmar uma subserviecircncia da segunda em relaccedilatildeo agrave primeira ideia que
ele enfaticamente recusa71
Afirmando que apesar dos esforccedilos de racionalizaccedilatildeo cientiacutefica a medicina
tem por essecircncia a cliacutenica e a terapecircutica como teacutecnica de instauraccedilatildeo e
restauraccedilatildeo do normal que natildeo pode ser reduzida agrave mera aplicaccedilatildeo de um
conhecimento ele nega a ideia de que ela pode ser caracterizada como uma
ciecircncia das doenccedilas devendo ser orientada por uma ciecircncia bioloacutegica do normal
a fisiologia da qual a patologia objetiva seria derivada Por outro vieacutes a medicina
considerada por ele como uma arte da cura deve menos se orientar por uma
ciecircncia bioloacutegica do normal da qual ele questiona ateacute mesmo a existecircncia mas se
colocar a serviccedilo das normas da vida
71
Para Delaporte (1994) revela-se aqui a funccedilatildeo heuriacutestica do interesse de Canguilhem pela patologia pela cliacutenica e pela terapecircutica Ao encontrar na praacutetica meacutedica a atividade de uma teacutecnica vital eacute possiacutevel negar a dependecircncia da teacutecnica para com a ciecircncia ramificando-a na vida ldquoa teacutecnica deriva da vida prolonga atos naturais e instintivosrdquo (DELAPORTE 1994 p 39) Cf DELAPORTE F ldquoA Histoacuteria das Ciecircncias segundo G Canguilhemrdquo In PORTOCARRERO V Filosofia Histoacuteria e Sociologia das Ciecircncias I abordagens contemporacircneas Rio de Janeiro Fiocruz 1994
83
Ora se concordarmos com a perspectiva canguilhemiana de que eacute o pathos
que condiciona o logos de que satildeo as valoraccedilotildees negativas que disparam a
atividade meacutedica consciente entatildeo temos que admitir que eacute tambeacutem um valor que
mostra qual objeto deve ser estudado racional e cientificamente pelo homem ou
seja que eacute a doenccedila como valoraccedilatildeo vital negativa que estaacute na origem da
atenccedilatildeo especulativa que a vida dedica agrave vida por intermeacutedio do homem (cf NP
1990 p76)
No entanto a ciecircncia moderna ao separar os fatos da esfera dos valores ao
operar uma cesura entre o objetivo e o subjetivo dando privileacutegio a um meacutetodo
baseado na experimentaccedilatildeo e na matemaacutetica para a compreensatildeo e domiacutenio dos
fenocircmenos naturais72 acabou por fazer a ciecircncia da vida perder de vista suas
origens Ela deixou de reconhecer a polaridade dinacircmica e a normatividade vitais
e passou a definir o que eacute o normal e o que eacute o patoloacutegico experimentalmente O
normal passou a ser um conceito objetivamente determinaacutevel por meacutetodos
cientiacutefico-experimentais e o estado patoloacutegico apenas uma modificaccedilatildeo
quantitativa deste
Eacute portanto com o intuito de inverter uma loacutegica que defende a anterioridade
da ciecircncia da vida em relaccedilatildeo aos valores vitais que Canguilhem afirma que se o
normal eacute objeto da atividade cientiacutefica eacute porque primeiramente recebeu da vida um
valor preacutevio identificado posteriormente pela medicina como estado de sauacutede ldquoeacute
72
Como esclarece Mariconda (2006) a distinccedilatildeo entre fato e valor elaborada na primeira metade do seacuteculo XVII e presente nos trabalhos de Bacon Galileu Descartes e Pascal estaacute na raiz da concepccedilatildeo moderna de domiacutenio (controle da natureza) que direciona o conhecimento cientiacutefico e o desenvolvimento teacutecnico e tecnoloacutegico atuais A seu ver eacute em torno da dicotomia entre fato e valor ndash ou entre objetivo e subjetivo ndash que se constituiu o proacuteprio campo da ciecircncia natural no interior da ampla modificaccedilatildeo que conduziu ao nascimento da ciecircncia moderna de Copeacuternico a Newton de Bacon a Hume Eacute tambeacutem ela que estaacute na origem da separaccedilatildeo entre as disciplinas naturais e morais e da ideia de que as ciecircncias naturais possuem um meacutetodo baseado na experiecircncia e na matemaacutetica divorciado da esfera dos valores Esta consideraccedilatildeo negativa da esfera valorativa na ciecircncia acarretou posteriormente ndash sobretudo atraveacutes dos trabalhos dos positivistas loacutegicos - em sua total desqualificaccedilatildeo jaacute que considerada despojada de significado cognitivo Por isso o meacutetodo da ciecircncia natural natildeo por acaso combina uma parte hipoteacutetica e uma experimental conjugando matemaacutetica experiecircncia observaccedilatildeo sistemaacutetica e intervenccedilatildeo controlada da natureza visto natildeo estar direcionado somente ao entendimento dos fenocircmenos naturais mas tambeacutem ao aumento do controle das condiccedilotildees naturais Cf MARICONDA P R O controle da natureza e as origens da dicotomia entre fato e valor Scientiaelig Studia Revista Latino-Americana de Filosofia e Histoacuteria da Ciecircncia Satildeo Paulo v 4 n 3 p 453-72 2006
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a vida em si mesma e natildeo a apreciaccedilatildeo meacutedica que faz do normal bioloacutegico um
conceito de valor e natildeo um conceito de realidade estatiacutesticardquo (NP 1990 p100)
Mas antes mesmo disso foi o desvio o negativo o anormal que despertou o
interesse teoacuterico pelo normal
ldquoAs normas soacute satildeo reconhecidas como tal nas infraccedilotildees As funccedilotildees soacute satildeo reveladas por suas falhas A vida soacute se eleva agrave consciecircncia e agrave ciecircncia de si mesma pela inadaptaccedilatildeo pelo fracasso e pela dorrdquo (NP 1990 p169)
Ou seja eacute somente por haver uma diferenccedila qualitativa entre os estados normal e
patoloacutegico por ter a doenccedila um valor vital negativo traduzido em mal-estar
consciente no vivente humano que a teacutecnica meacutedica se faz possiacutevel e necessaacuteria
para o desenvolvimento de um atividade cientiacutefica que tenha por objeto de estudo
a vida
Sendo assim Canguilhem atribui agrave teacutecnica meacutedica uma importacircncia proacutepria
natildeo condicionada pelo conhecimento cientiacutefico que ela consegue incorporar
conferindo a ela uma certa independecircncia em relaccedilatildeo agraves ciecircncias das quais ela se
utiliza (cf NP 1990 p189) Mas isso natildeo significa dizer que ele desconsidera a
importacircncia da atividade cientiacutefica para a praacutetica meacutedica Isto eacute ao negar a
existecircncia de uma ciecircncia bioloacutegica do normal ele natildeo quer afirmar a
impossibilidade de haver uma ciecircncia da vida O que ele propotildee eacute colocaacute-la em
relaccedilatildeo com a atividade normativa da vida e por conseguinte com a teacutecnica
meacutedica tornando-a agora uma ciecircncia das situaccedilotildees bioloacutegicas consideradas
normais
ldquoa atribuiccedilatildeo de um valor de lsquonormalrsquo agraves constantes ndash cujo conteuacutedo eacute determinado cientificamente pela fisiologia reflete a relaccedilatildeo da ciecircncia da vida com a atividade normativa da vida e no que se refere agrave ciecircncia da vida humana com as teacutecnicas bioloacutegicas de produccedilatildeo e de instauraccedilatildeo do normal mais especificamente com a medicinardquo (NP 1990 p188)
Atraveacutes de sua criacutetica ele tambeacutem natildeo quer negar a possibilidade de haver
uma patologia cientiacutefica metoacutedica armada de meacutetodos objetivos de observaccedilatildeo e
de anaacutelise O que ele quer mostrar precisamente eacute que o objeto de estudo do
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patologista ainda que possa ser estudado metoacutedica e objetivamente natildeo eacute
desprovido de subjetividade
ldquoPode-se praticar objetivamente isto eacute imparcialmente uma pesquisa cujo objeto natildeo pode ser concebido e construiacutedo sem referecircncia a uma qualificaccedilatildeo positiva ou negativa cujo objeto portanto natildeo eacute tanto um fato mas sobretudo um valorrdquo (NP 1990 p189)
Entatildeo o que ele critica na atividade cientiacutefica eacute o esquecimento da dimensatildeo
axioloacutegica original do normal e do patoloacutegico da diferenccedila qualitativa existente
entre esses estados a desconsideraccedilatildeo por parte da ciecircncia de que antes de uma
patologia objetiva metoacutedica cientiacutefica ou experimental existiu uma patologia
subjetiva que qualificou como patoloacutegico o fenocircmeno bioloacutegico no qual agora o
patologista se debruccedila A seu ver qualquer conceito empiacuterico de doenccedila sempre
conserva uma relaccedilatildeo com o conceito axioloacutegico de doenccedila porque natildeo eacute um
meacutetodo objetivo que qualifica como patoloacutegico determinado comportamento
orgacircnico mas o doente por intermeacutedio da cliacutenica que diz qual comportamento eacute
ou natildeo normal ldquoo conceito de normal natildeo eacute um conceito de existecircncia suscetiacutevel
em si mesmo de ser medido objetivamenterdquo (NP 1990 p164)
Destarte o recurso agrave medicina foi a saiacuteda encontrada por Canguilhem para
defender a precedecircncia da teacutecnica em relaccedilatildeo agrave ciecircncia dos valores em relaccedilatildeo
aos fatos do qualitativo em relaccedilatildeo ao quantitativo do subjetivo em relaccedilatildeo ao
objetivo e da experiecircncia vivida em relaccedilatildeo agrave experimentaccedilatildeo laboratorial Mas eacute
tambeacutem para fazer frente agrave ideologia de controle da natureza que orienta a ciecircncia
moderna que ele denuncia que a medicina ao se transformar numa ciecircncia das
doenccedilas adotando uma ideia de normalidade definida por meacutetodos cientiacutefico-
experimentais passou a ditar normas agrave vida ficando surda a seus apelos
Portanto eacute somente tendo em vista a criacutetica que faz aos fundamentos teoacutericos e
tambeacutem ideoloacutegicos da ciecircncia moderna que podemos compreender o pleno
sentido de sua contestaccedilatildeo agrave teoria da identidade real dos fenocircmenos normais e
patoloacutegicos eleita como objetivo do seu Ensaio de 43 e brevemente retomada na
coletacircnea La connaissance de la vie no artigo ldquoLe normal et le pathologiquerdquo
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Em La connaissance de la vie Canguilhem identifica no seacuteculo XVIII a
origem histoacuterica da tese segundo a qual o estado patoloacutegico eacute homogecircneo ao
estado normal do qual constitui uma variaccedilatildeo quantitativa para mais ou para
menos A seu ver esta ideia remonta ao pensamento do meacutedico escocecircs Brown
ateacute Glisson e aos primeiros esboccedilos da teoria da irritabilidade popularizada por
Broussais e Comte antes mesmo de ganhar prestiacutegio atraveacutes de Claude Bernard
(cf CV 1985 p 165-166) Antes disso no Ensaio ele afirma natildeo ter sido por
acaso que ele decidiu procurar na obra de Comte e de Claude Bernard a
significaccedilatildeo essencial da teoria que escolheu criticar Ele os elegeu como base
para sua criacutetica devido agrave influecircncia desses autores na filosofia na ciecircncia e
mesmo na literatura do seacuteculo XIX
ldquoDecidimos centrar nossa exposiccedilatildeo em torno dos nomes de Comte e Claude Bernard porque estes autores desempenharam semivoluntariamente o papel de lsquoporta-bandeirarsquo esta eacute a razatildeo da preferecircncia que lhes foi dada em detrimento de tantos outros igualmente citados e que poderiam ser melhor explicados sob outras perspectivasrdquo (NP 1990 p26)
Partindo da recomendaccedilatildeo de Brown de que natildeo devemos confiar nas
forccedilas da natureza (cf I 1981 p49) ideologicamente tal teoria ao defender a
ideia de que o patoloacutegico seria apenas uma modificaccedilatildeo quantitativa do estado
normal fazendo da patologia uma mera extensatildeo da fisiologia carrega a ideia de
que eacute possiacutevel controlar a natureza dominaacute-la atraveacutes da atividade cientiacutefica Por
conseguinte se a medicina como ciecircncia das doenccedilas adveacutem do desejo humano
de dominar a vida para controlar o mal localizando-o para melhor agir sobre ele
como arte enraizada na vida ela expressa a confianccedila do homem na natureza em
suas tentativas de cura
Desta forma eacute em duas relaccedilotildees opostas em relaccedilatildeo agrave natureza de
domiacutenio e respeito que Canguilhem encontra a origem da oposiccedilatildeo entre uma
medicina que como ciecircncia das doenccedilas eacute orientada por uma patologia cientiacutefica
ligada agrave fisiologia que dita normas agrave vida e outra que como teacutecnica ou arte
considera sua normatividade e faz uso do resultado de todas as ciecircncias a serviccedilo
de suas normas Assim o que pretendemos nesse capiacutetulo provar eacute que se ele se
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empenha em colocar em xeque tal teoria da qual Comte e Claude Bernard
serviram de ldquoporta-bandeirardquo eacute porque ela se tornou a base da ideia de medicina
como ciecircncia das doenccedilas concepccedilatildeo diametralmente oposta agravequela que ele quer
defender uma medicina como teacutecnica ou arte da cura assentada no respeito agraves
normas da vida
Tendo em vista que eacute o pathos que condiciona o logos para fundar uma
medicina como arte da cura teriacuteamos que considerar que em primeiro lugar
estariam os valores positivo e negativo da vida em seguida viria o ponto de vista
doente que traduz estes valores em normal e patoloacutegico para daiacute surgir a teacutecnica
meacutedica e por fim a ciecircncia da vida Diferentemente disso Canguilhem percebe
nos fundamentos da medicina como ciecircncia das doenccedilas que eacute a ciecircncia da vida
que define o que patoloacutegico a teacutecnica meacutedica incorpora este saber e o repassa ao
doente em forma de diagnoacutestico ignorando que eacute ele quem traduz os valores
positivo e negativo da vida em sauacutede e doenccedila Assim eacute para inverter a loacutegica que
faz o patoloacutegico derivar da ciecircncia fisioloacutegica e natildeo da experiecircncia negativa vivida
pelo doente que ele procura colocar em xeque a teoria segundo a qual a patologia
seria apenas uma fisiologia mais extensa e mais ampla
Em O normal e o patoloacutegico ao tratar do momento histoacuterico-cultural de
emergecircncia da tese segundo a qual o patoloacutegico seria apenas uma variaccedilatildeo
quantitativa do estado normal previamente determinado pela fisiologia
Canguilhem explica que no seacuteculo XIX era a fiacutesico-quiacutemica fisioloacutegica que
respondia agraves exigecircncias do conhecimento cientiacutefico porque apenas ela
comportava leis quantitativas verificadas pela experimentaccedilatildeo enquanto a
patologia ainda estava sobrecarregada de conceitos preacute-cientiacuteficos Por isso os
meacutedicos do seacuteculo XIX ansiosos por uma patologia racional e eficaz viram na
fisiologia um modelo a ser adotado
ldquoDentre a fisiologia e patologia da eacutepoca apenas a primeira comportava leis e postulava o determinismo de seu objeto mas isso natildeo eacute motivo suficiente para concluirmos que as leis e o determinismo dos fatos patoloacutegicos sejam as proacuteprias leis
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e o proacuteprio determinismo dos fatos fisioloacutegicos apesar da legiacutetima aspiraccedilatildeo que temos de uma patologia racionalrdquo (NP 1990 p82)
Entendendo que a ambiccedilatildeo de tornar a patologia e consequentemente a
terapecircutica integralmente cientiacuteficas procedentes de uma fisiologia previamente
instituiacuteda soacute teria sentido se fosse possiacutevel uma definiccedilatildeo puramente objetiva do
normal como de um fato dada atraveacutes de meacutetodos cientiacutefico-experimentais e
uma traduccedilatildeo da diferenccedila entre os estados normal e patoloacutegico em termos
quantitativos - jaacute que apenas a quantidade pode dar conta da homogeneidade e
da variaccedilatildeo ndash Canguilhem procura a partir de um conjunto de estrateacutegias e
filiaccedilotildees teoacutericas evidenciar que o normal dificilmente pode ser apreendido por
criteacuterios matemaacuteticos e a fisiologia ao tentar mensuraacute-lo e a partir dele definir o
patoloacutegico no limite acabaria por perder de vista a proacutepria doenccedila fazendo dela
um conceito teoacuterico abstrato e esvaziado de sentido
ldquoa convicccedilatildeo de poder restaurar cientificamente o normal eacute tal que acaba por anular o patoloacutegico A doenccedila deixa de ser objeto de anguacutestia para o homem satildeo e torna-se objeto de estudo para o teoacuterico da sauacutederdquo (NP 1990 p22-23)
Uma das estrateacutegias utilizadas por Canguilhem para invalidar a possibilidade
da traduccedilatildeo das diferenccedilas entre os estados normal e patoloacutegico em termos
quantitativos eacute mostrar que se a intenccedilatildeo do cientista ao alegar a continuidade
meacutetrica entre os estados normal e patoloacutegico eacute anular a diferenccedila qualitativa
existente entre eles ela fracassa pois da continuidade natildeo eacute possiacutevel deduzir a
homogeneidade e mesmo se isso fosse possiacutevel uma homogeneizaccedilatildeo
acarretaria a perda do proacuteprio objeto de estudo cientiacutefico De fato para
Canguilhem e tese de que a sauacutede e a doenccedila seriam homogecircneas variando
apenas em grau levada agraves uacuteltimas consequecircncias acabaria por desvanecer o
conceito mesmo de doenccedila pois no momento em que a suposta continuidade
teoacuterica e meacutetrica identificada entre os estados fosse transformada em
homogeneidade o contraste qualitativo entre eles estaria supostamente anulado
Natildeo obstante ele esclarece que a substituiccedilatildeo do contraste qualitativo entre
os estados normal e patoloacutegico por uma progressatildeo quantitativa natildeo anula a
89
oposiccedilatildeo entre eles Isso porque a afirmaccedilatildeo da continuidade entre os estados
normal e patoloacutegico natildeo implica reduzi-los um ao outro subentendendo sua
homogeneidade ou identidade mas apenas apresentaacute-los como extremos de um
conjunto de intermediaacuterios
ldquoquando se converte essa continuidade em homogeneidade esquecemos que a diferenccedila continua a saltar aos olhos nos extremos sem os quais os intermediaacuterios natildeo teriam que desempenhar seu papel mediadorrdquo (NP 1990 p85)
A seu ver a existecircncia de estados que operam uma mediaccedilatildeo entre os extremos
denuncia que natildeo haacute como anular completamente o valor qualitativo dos termos
normal e patoloacutegico apesar de alguns cientistas alegando a continuidade entre a
sauacutede e a doenccedila deduzirem daiacute tambeacutem sua homogeneidade ldquoMas isso tambeacutem
poderia significar que natildeo existem doentes o que natildeo eacute menos absurdordquo (NP
1990 p53)
Embora Canguilhem compreenda o anseio da medicina de se orientar por
uma patologia objetiva ele natildeo deixa de ironizar o fato de que uma ciecircncia que faz
desaparecer seu objeto natildeo pode ser objetiva (cf NP 1990 p64) Ou seja para
ele eacute a proposta mesma de derivar a patologia de uma ciecircncia do normal o que
leva paradoxalmente ao desaparecimento de seu objeto fazendo com que seja
absolutamente ilegiacutetimo sustentar a tese de que o estado patoloacutegico eacute real e
simplesmente a variaccedilatildeo para mais ou para menos do estado fisioloacutegico Ateacute
porque os termos mais e menos que entram na definiccedilatildeo do patoloacutegico natildeo tecircm
uma significaccedilatildeo puramente quantitativa pois eacute sempre em relaccedilatildeo a uma norma
considerada vaacutelida e desejaacutevel que se pode falar em excesso ou falta Isso porque
o estado fisioloacutegico para o ser vivo eacute uma qualidade e um valor pois se ele fosse
apenas um simples resumo de quantidades sem valor bioloacutegico simples fato ou
sistema de fatos fiacutesicos e quiacutemicos ele natildeo poderia ser chamado nem de
fisioloacutegico nem de satildeo nem mesmo de normal
ldquoNormal e patoloacutegico natildeo tecircm sentido ao niacutevel em que o objeto bioloacutegico eacute decomposto em equiliacutebrios coloidais e soluccedilotildees ionizadas O fisiologista estudando um estado que ele chama de fisioloacutegico o estaacute qualificando por esse fato mesmo
90
inconscientemente ele considera esse estado como qualificado positivamente pelo ser vivo e para o ser vivo Ora natildeo eacute esse estado fisioloacutegico como tal que se prolonga ndash idecircntico a si mesmo ndash ateacute um outro estado capaz de adotar entatildeo inexplicavelmente a qualidade de moacuterbidordquo (NP 1990 p84)
Destarte apesar de negada a oposiccedilatildeo entre o normal e o patoloacutegico se
manteacutem no fundo da consciecircncia de quem decidiu adotar o ponto de vista teoacuterico
e meacutetrico ldquoa quantidade eacute a qualidade negada mas natildeo a qualidade suprimidardquo
(NP 1990 p83) Haacute uma heterogeneidade entre o normal e o patoloacutegico
malgrado os esforccedilos teoacutericos para provar sua homogeneizaccedilatildeo A doenccedila difere
da sauacutede como uma qualidade difere de outra o que faz com que a diferenccedila de
valor que o ser vivo estabelece entre sua vida normal e sua vida patoloacutegica natildeo
seja apenas uma aparecircncia ilusoacuteria que o cientista deva negar (cf NP 1990
p53) Assim ainda que a ciecircncia dos contraacuterios seja una como afirma Aristoacuteteles
natildeo podemos concluir daiacute que a vida seja idecircntica a si mesma na sauacutede e na
doenccedila simplificando de modo temeraacuterio a ciecircncia da vida
rdquoEacute urgente mais ainda que legiacutetimo que a ciecircncia da vida tome como objetos de mesma importacircncia teoacuterica e capazes de se explicar mutuamente os fenocircmenos ditos normais e os fenocircmenos ditos patoloacutegicos a fim de se tornar adequada agrave totalidade das vicissitudes da vida e agrave variedade de suas manifestaccedilotildeesrdquo (NP 1990 p63)
Natildeo havendo em sua leitura a contestaccedilatildeo da legitimidade da tarefa de
procurar explicaccedilotildees relativas aos fenocircmenos normais e patoloacutegicos Canguilhem
natildeo intenciona solapar a existecircncia de uma ciecircncia da vida mas sim assentaacute-la
sobre outras bases que contemplem as variaccedilotildees normativas da vida e suas
manifestaccedilotildees opostas de valor Eacute por este prisma que ele defende que o papel da
fisiologia eacute menos tentar definir objetivamente o estado normal mas determinar
exatamente o conteuacutedo das normas dentro das quais a vida conseguiu se
estabilizar admitindo a eventual correccedilatildeo destas normas de acordo com uma
variaccedilatildeo do meio no qual elas se desenrolam ldquoParece-nos que a fisiologia tem
mais a fazer que definir objetivamente o normal deve reconhecer a normatividade
original da vidardquo (NP 1990 p142) Portanto considerando o caraacuteter flutuante dos
fenocircmenos vitais a fisiologia entatildeo pode ser melhor definida como a ciecircncia dos
91
ritmos estabilizados da vida e natildeo como a ciecircncia das funccedilotildees normais da vida da
qual uma patologia objetiva seria derivada
ldquoOra se parece impossiacutevel manter a definiccedilatildeo da fisiologia como ciecircncia do normal parece difiacutecil admitir que pudesse haver uma ciecircncia da doenccedila e que possa haver uma patologia puramente cientiacuteficardquo (NP 1990 p173)
Outra estrateacutegia utilizada por Canguilhem para criticar validade da tese de
que o patoloacutegico seria apenas uma modificaccedilatildeo quantitativa do estado normal eacute
operar seu desvelamento ideoloacutegico evidenciando a relaccedilatildeo mutuamente
reforccediladora73 presente na ciecircncia moderna entre experimentaccedilatildeo quantificaccedilatildeo e
domiacutenio Para tanto ele nota que desde Bacon investe-se na ideia de que soacute se
pode domar a natureza fazendo com que ela nos obedeccedila Por este ponto de
vista dominar a natureza eacute tambeacutem conhecer as relaccedilotildees do estado normal com o
patoloacutegico atraveacutes do uso de meacutetodos experimentais e da matematizaccedilatildeo de seus
resultados a exemplo das ciecircncias fiacutesico-quiacutemicas Por isso ele acredita que a
ideia de heterogeneidade entre os estados melhor se alia agrave concepccedilatildeo meacutedica
naturista que espera pouco da intervenccedilatildeo humana para a restauraccedilatildeo do normal
pois segundo ela eacute a natureza e natildeo o homem que encontra os meios para a
cura enquanto que numa concepccedilatildeo cientiacutefica que admite e espera que o homem
deva forccedilar a natureza e dobraacute-la a seus desejos normativos a diferenccedila
qualitativa que separa o normal e o patoloacutegico dificilmente pode ser sustentada (cf
NP 1990 p21)
73
Tomamos aqui de Lacey (1998) a expressatildeo ldquorelaccedilatildeo mutuamente reforccediladorardquo para quem na ciecircncia moderna existe como que uma afinidade eletiva entre as estrateacutegias materialistas e a perspectiva moderna do controle da natureza inaugurada pelo pensamento de Francis Bacon Com efeito o teoacuterico da epistemologia engajada ao estudar a relaccedilatildeo entre entendimento cientiacutefico e controle da natureza nota que as estrateacutegias materialistas bastante conhecidas desde Galileu e Descartes aumentam a capacidade de controle da natureza respondendo assim aos interesses da utilidade baconiana Num sentido importante eacute caracteriacutestica do homem controlar a natureza mas esta postura deve ser valorizada apenas na medida em que contribui para o ideal de florescimento humano pois o controle contrasta com posturas de reciprocidade mutualidade e respeito em relaccedilatildeo agrave natureza representado por noccedilotildees como harmonizaccedilatildeo adaptaccedilatildeo participaccedilatildeo e unidade dialeacutetica ldquoexplorar as possibilidades de controle aleacutem desses limites natildeo possui nenhuma inteligibilidade moral (ou racional)rdquo (LACEY 1998 p120) Cf LACEY H Valores e atividade cientiacutefica Satildeo Paulo Discurso Editorial 1998
92
Nesta mesma direccedilatildeo argumentativa na coletacircnea La connaissance de la
vie no artigo ldquoAspects du vitalismerdquo Canguilhem opotildee duas posturas do homem
em relaccedilatildeo agrave natureza associando-as ao vitalismo e ao mecanicismo Segundo
ele o homem pode se sentir filho da natureza tendo por ela um sentimento de
uniatildeo e pertencimento ou sentir em face dela como que diante de um objeto
estranho Aquele que tem pela natureza um sentimento de filiaccedilatildeo e simpatia natildeo
considerando os fenocircmenos naturais como estrangeiros eacute fundamentalmente um
vitalista Desta forma em contraposiccedilatildeo agrave postura do mecanicista que se sente
separado da vida e se potildee diante dela de posse de um meacutetodo estrito e
imperioso eacute a confianccedila do vitalista na espontaneidade da vida o que faz com que
ele tenha horror a decompocirc-la em mecanismos a reduzi-la a uma soma de partes
e a lutar contar ela como se fosse um obstaacuteculo Essa diferenccedila de posturas eacute o
que faz com que o vitalismo apareccedila menos como um meacutetodo e mais como uma
exigecircncia mais como uma moral do que como uma teoria (cf CV 1985 p87-88)
Eacute portanto por ter em vista que eacute o desejo de domiacutenio da vida pelo
conhecimento cientiacutefico74 que subjaz agrave ideia de reduccedilatildeo da qualidade agrave
quantidade implicada na identidade essencial do fisioloacutegico e do patoloacutegico que
Canguilhem se propotildee a fazer uma genealogia ideoloacutegica da tese segundo o qual
o patoloacutegico natildeo passaria de um aumento ou reduccedilatildeo do estado normal Com
efeito perscrutando as bases histoacutericas e ideoloacutegicas de tal ideia ele encontra
nela a convicccedilatildeo otimista e racionalista de que natildeo haacute realidade no mal expressa
na recusa de duas representaccedilotildees da doenccedila tanto a ontoloacutegica quanto a
dinamista75 bases do dualismo meacutedico76
74
Em La connaissance de la vie no artigo ldquoLa penseacutee et le vivantrdquo ao refletir sobre a relaccedilatildeo do pensamento com a vida Canguilhem afirma que o conhecimento eacute o que permite o descolamento do homem do mundo o afastamento necessaacuterio agrave interrogaccedilatildeo e agrave duacutevida diante dos obstaacuteculos surgidos Ele eacute portanto um meio de resoluccedilatildeo direta ou indireta das tensotildees do homem com o meio Mas para que ele possibilite ao homem um novo equiliacutebrio com o mundo uma nova forma e uma nova organizaccedilatildeo de sua vida a inteligecircncia deve reconhecer seus limites e a originalidade dos fenocircmenos da natureza de modo que jaacute que a vida natildeo se opotildee ao pensamento o conhecimento natildeo destrua a vida
75 Segundo Canguilhem de acordo com a histoacuteria da medicina moderna Thomas Sydenham
(1624-1689) acreditava que para ajudar o doente era preciso delimitar e determinar o seu mal Com o mesmo espiacuterito I Saint-Hilaire e Pinel elaboraram classificaccedilotildees nosoloacutegicas na tentativa de impor um certo ordenamento agraves doenccedilas como jaacute faziam os naturalistas com as espeacutecies
93
ldquoa recusa de uma concepccedilatildeo ontoloacutegica da doenccedila corolaacuterio negativo da afirmaccedilatildeo de identidade quantitativa entre o normal e o patoloacutegico eacute em primeiro lugar talvez a recusa mais profunda de admitir a existecircncia do malrdquo (NP 1990 p78)
Segundo Canguilhem a histoacuteria do pensamento meacutedico oscila entre duas
representaccedilotildees da doenccedila A primeira delas remontada agraves antigas concepccedilotildees de
doenccedila como sortileacutegio encantamento ou possessatildeo demoniacuteaca adviria de uma
teoria ontoloacutegica do mal na qual a doenccedila entraria e sairia do homem como que
por uma porta A segunda explicitada nos escritos e praacuteticas hipocraacuteticas natildeo
apresenta uma concepccedilatildeo ontoloacutegica e localizante da doenccedila mas sim dinacircmica e
totalizante ldquoNesse caso a doenccedila natildeo estaacute em alguma parte do homem Estaacute em
todo homem e eacute toda delerdquo (NP 1990 p20) Nela a natureza (physis) tanto no
homem como fora dele eacute harmonia e equiliacutebrio e a doenccedila natildeo sendo somente
desequiliacutebrio ou desarmonia dos humores eacute sobretudo o esforccedilo que a natureza
exerce no homem para obter um novo equiliacutebrio ldquoa doenccedila eacute uma reaccedilatildeo
generalizada com intenccedilatildeo de cura O organismo fabrica uma doenccedila para curar a
si proacutepriordquo (NP 1990 p21)
vegetais e animais Tais classificaccedilotildees nosograacuteficas acabaram por encontrar substrato na anatomia patoloacutegica de Morgagni que permitiu a associaccedilatildeo entre as lesotildees definidas nos oacutergatildeos e um grupo de sintomas estaacuteveis Como com Harvey e Haller a anatomia havia sido ldquoanimadardquo para tornar-se fisiologia a patologia veio naturalmente prolongaacute-la Semanticamente diz Canguilhem foi a influecircncia desta teoria que fez com que o patoloacutegico passasse a ser definido a partir do normal natildeo tanto como a ou dis mas hiper ou hipo (cf NP 1990 p 19-23) A seu ver uma parte do sucesso que a teoria microbiana das doenccedilas contagiosas de Pasteur deve ao fato dela guardar ainda uma representaccedilatildeo ontoloacutegica do mal Com efeito na nosologia atual satildeo as doenccedilas de carecircncia e as infecciosas ou parasitaacuterias que expressam a representaccedilatildeo ontoloacutegica da doenccedila enquanto as perturbaccedilotildees endoacutecrinas e as doenccedilas marcadas pelo prefixo dis satildeo as que reafirmam a teoria dinamista ou funcional
76 Canguilhem esclarece que apesar dos esforccedilos dos iatroquimistas e dos iatromecanicistas a
medicina do seacuteculo XVIII tinha permanecido por influecircncia dos animistas e dos vitalistas uma medicina dualista um maniqueiacutesmo meacutedico (cf NP 1990 p77) Eacute em contraposiccedilatildeo a este maniqueiacutesmo que as demonstraccedilotildees criacuteticas de Claude Bernard se dirigiam a tese que admitia a diferenccedila qualitativa nos mecanismos e nos produtos das funccedilotildees vitais no estado patoloacutegico e no estado normal Considerando que a sauacutede e a doenccedila natildeo satildeo dois modos de ser que diferem essencialmente ele considera ser uma ldquovelharia meacutedicardquo a ideia de que sauacutede e doenccedila satildeo princiacutepios distintos entidades que disputam o organismo vivo e dele fazem o teatro de suas lutas A seu ver a ideia de luta entre dois agentes opostos jaacute estaacute ultrapassada havendo portanto a necessidade de reconhecer em tudo a continuidade dos fenocircmenos sua gradaccedilatildeo insensiacutevel e sua harmonia (Cf NP 1990 p48-9)
94
Na perspectiva canguilhemiana a formulaccedilatildeo da teoria segundo a qual os
fenocircmenos patoloacutegicos nos organismos vivos nada mais satildeo do que variaccedilotildees
para mais ou para menos dos fenocircmenos fisioloacutegicos correspondentes apesar de
negaacute-la tem sua origem na primeira representaccedilatildeo do patoloacutegico por guardar
dela o caraacuteter localizante da doenccedila Ademais ele vecirc nesta tese a exigecircncia de
uma eacutepoca que acreditava na onipotecircncia de uma teacutecnica baseada na ciecircncia
ldquoUma arte de viver ndash e a medicina o eacute no sentido pleno da palavra - implica numa
ciecircncia da vidardquo (NP 1990 p63) Ou seja ele encontra nela tambeacutem a convicccedilatildeo
humanista de que a accedilatildeo do homem sobre o meio e sobre ele mesmo deve ser
apenas a aplicaccedilatildeo de uma ciecircncia previamente instituiacuteda atrelada agrave ideia
determinista de que a atividade cientiacutefica deve se identificar agrave descoberta das leis
dos fenocircmenos77
Em vista disso ele critica Claude Bernard por ter transposto em sua
Introduction agrave leacutetude de la meacutedecine expeacuterimentale (1865) esta ideia agrave teacutecnica
meacutedica defendendo que a accedilatildeo eficaz se confunde com a ciecircncia que a ciecircncia
se confunde com a descoberta das leis dos fenocircmenos e que a medicina deve se
ancorar numa ciecircncia da vida ldquoClaude Bernard considera a medicina como a
ciecircncia das doenccedilas e a fisiologia como a ciecircncia da vida Nas ciecircncias eacute a teoria
que ilumina e domina a praacuteticardquo (NP 1990 p45) Tal concepccedilatildeo faz com que a
medicina seja integralmente identificada agrave aplicaccedilatildeo de uma ciecircncia fisioloacutegica
que teria por tarefa descortinar as leis que presidem os fenocircmenos vitais normais
dos quais os fenocircmenos patoloacutegicos seriam apenas uma variaccedilatildeo quantitativa
Igualmente Canguilhem coloca em questatildeo a maacutexima positivista de que
para agir eacute preciso primeiramente saber ideia que coloca a terapecircutica
77
Canguilhem encontra em Laplace a origem do determinismo de Claude Bernard Laplace foi colaborador de Lovoisier nas pesquisas sobre a respiraccedilatildeo e o calor animal primeiro ecircxito espetacular nas investigaccedilotildees sobre as leis dos fenocircmenos bioloacutegicos segundo os meacutetodos de experimentaccedilatildeo e de medidas usados em fiacutesica e quiacutemica Desses estudos Laplace conservou o grande interesse pela fisiologia e apesar de natildeo utilizar o termo determinismo ele eacute um dos pais espirituais da doutrina que este termo designa Adotando um determinismo fechado para o qual natildeo eacute possiacutevel realizar correccedilotildees das foacutermulas de leis e dos conceitos que a elas se ligam para ele ldquoo determinismo natildeo eacute uma exigecircncia de meacutetodo um postulado normativo da pesquisa bastante flexiacutevel para natildeo prejulgar nada sobre a forma dos resultados aos quais vai conduzirrdquo (cf NP 1990 p82) Ele eacute a proacutepria realidade acabada moldada ne varietur nos quadros da mecacircnica de Newton
95
integralmente sob o jugo da atividade cientiacutefica Natildeo obstante ele diz natildeo
desqualificar o valor da filosofia das luzes e do positivismo para a medicina
acreditando que uma terapecircutica positiva ou cientiacutefica eacute superior a uma
terapecircutica maacutegica ou miacutestica jaacute que a ciecircncia natildeo confunde a doenccedila com algo
pecaminoso ou demoniacuteaco ldquoNatildeo se trata absolutamente de dispensar os meacutedicos
de estudar a fisiologia e a farmacodinacircmica Eacute muito importante natildeo confundir a
doenccedila com o pecado nem com o democircniordquo (NP 1990 p78) Mas apesar de
concordar com a visatildeo cientiacutefica de que natildeo haacute realidade no mal como entidade
demoniacuteaca ele acredita que este conceito natildeo eacute desprovido de sentido jaacute que
existem valores negativos entre os valores vitais o que faz do patoloacutegico um
estado normativa e qualitativamente diferente do estado normal Apesar disso a
doenccedila ainda eacute vista pela ciecircncia como um fenocircmeno que nada cria em termos
normativos ldquoeacute por natildeo admitir na doenccedila nenhuma norma bioloacutegica proacutepria que
dela nada se espera para as ciecircncias das normas da vidardquo (NP 1990 p171)
Ora Canguilhem natildeo nega agrave ciecircncia o seu papel de produtora de
conhecimentos verdadeiros nem mesmo desconsidera os benefiacutecios dos
conhecimentos obtidos em laboratoacuterio para as praacuteticas meacutedicas78 O que ele
defende fundamentalmente eacute que a renovaccedilatildeo do progresso teoacuterico pode se dar
atraveacutes da atividade natildeo teoacuterica pragmaacutetica e teacutecnica Sem a temeridade da
teacutecnica diz os problemas cientiacuteficos seriam poucos
ldquoEis o que haacute de verdade no empirismo filosofia da aventura intelectual menosprezada por um meacutetodo experimental que por reaccedilatildeo se sente um pouco tentado demais a se racionalizarrdquo (NP 1990 p 79)
Assim atraveacutes da valorizaccedilatildeo empirismo o que ele quer criticar eacute o que chama de
cientificismo exacerbado daqueles que acreditam que a teacutecnica deva ser sempre a
78
Quando Lecourt (2008) trata das relaccedilotildees entre a teacutecnica e a ciecircncia no pensamento canguilhemiano observa que Canguilhem natildeo nega que a teacutecnica em geral pode incorporar conhecimentos cientiacuteficos a fim de aumentar sua eficaacutecia Segundo ele a medicina pode tirar benefiacutecios dos conhecimentos fisioloacutegicos mas natildeo podemos esquecer que sem os problemas surgidos na cliacutenica a fisiologia perderia o essencial de sua razatildeo de ser e o motor do seu progresso (cf LECOURT 2008 p42) Cf LECOURT D Que sais-je Les envies du savoir 1
a ediccedilatildeo Paris
Presses Universitaires de France - PUF 2008
96
aplicaccedilatildeo de uma ciecircncia jaacute que dela nada pode se esperar para os progressos
do conhecimento79
Isso explica porque para fazer uma contraposiccedilatildeo aos pensamentos de
Comte e Claude Bernard Canguilhem faz uma breve exposiccedilatildeo das ideias de
Reneacute Leriche meacutedico que acredita que se deve partir da teacutecnica meacutedica e
ciruacutergica suscitada pelo estado patoloacutegico para somente entatildeo se chegar ao
conhecimento do fisioloacutegico pois este deve ser obtido por abstraccedilatildeo retrospectiva
da experiecircncia cliacutenica e terapecircutica Acreditando que o estudo do homem normal
natildeo eacute suficiente para nos dar informaccedilotildees completas sobre os fenocircmenos vitais
para Leriche eacute a anaacutelise do homem doente que deve servir para o conhecimento
do homem normal pois conseguimos descobrir nele deacuteficits que nem a mais sutil
experiecircncia em animais conseguiria realizar e graccedilas aos quais eacute possiacutevel chegar
agraves caracteriacutesticas da vida normal (cf NP 1990 p75) Portanto eacute por afirmar que
as doenccedilas nos mostram mais possibilidades fisioloacutegicas do que a ciecircncia do
normal nos faz crer que existam e defender que o papel da fisiologia eacute pesquisar e
solucionar os problemas levantados pelas doenccedilas dos doentes que Canguilhem
daacute importacircncia a sua teoria
ldquoMesmo correndo o risco de melindrar certas pessoas que acham que o intelecto soacute se realiza no intelectualismo queremos repetir mais uma vez que o valor da teoria de Leriche em si independente de qualquer criacutetica dirigida a algum detalhe de conteuacutedo eacute o fato de ser a teoria de uma teacutecnica uma teoria para qual a teacutecnica existe natildeo como uma serva doacutecil aplicando ordens intangiacuteveis mas como conselheira e incentivadora chamando a atenccedilatildeo para os problemas concretos e orientando a pesquisa na direccedilatildeo dos obstaacuteculos sem presumir antecipadamente nada acerca das soluccedilotildees teoacutericas que lhes seratildeo dadasrdquo (NP 1990 p76)
79
Ainda segundo Lecourt (2008) eacute contra o cientificismo radical do seacuteculo XIX que Canguilhem se coloca ao afirmar que a accedilatildeo eacute primeira em relaccedilatildeo ao conhecimento Contrapondo-se agraves maacuteximas de Comte de que eacute preciso saber para agir ou ainda que eacute preciso saber para prever e prever para poder que implicam numa relaccedilatildeo de aplicaccedilatildeo entre ciecircncia e teacutecnica ele acredita que elas satildeo mais enganadoras do que ceacutelebres Para ele eacute uma ilusatildeo tentar subordinar a teacutecnica agrave ciecircncia como se a primeira fosse a aplicaccedilatildeo da segunda apenas porque certas teacutecnicas em determinado momento podem ser melhoradas pela aplicaccedilatildeo de uma teoria Eacute a ciecircncia que precede da teacutecnica porque satildeo as resistecircncias encontradas na arte humana que incitam a pesquisa do conhecimento verdadeiro Assim para o comentador Canguilhem faz uma criacutetica profunda ao cientificismo afirmando que o problema da ciecircncia natildeo pode ser resolvido sobre o terreno da ciecircncia Inspirado em Nietzsche ele diz ser necessaacuterio considerar a ciecircncia sob a oacuteptica da arte e a arte sob a oacuteptica da vida (cf LECOURT 2008 p71) Op cit
97
De outro modo Comte e Claude Bernard apostando na ciecircncia para a
orientaccedilatildeo da atividade teacutecnica concordando com a tese da identidade dos
fenocircmenos normais e patoloacutegicos reduzem a teacutecnica meacutedica agrave mera aplicaccedilatildeo de
conhecimentos cientiacuteficos A diferenccedila existente entre eles eacute que Comte
intenciona determinar especulativamente as leis do normal com vistas agrave
construccedilatildeo de um sistema de poliacutetica positiva e em Claude Bernard a afirmaccedilatildeo
da tese tem por finalidade uma accedilatildeo racional sobre a doenccedila a partir de uma
terapecircutica natildeo-empirista Nele portanto eacute a recusa do empirismo que daacute sentido
agrave tentativa de precisar experimentalmente a identidade do normal e do patoloacutegico
numa interpretaccedilatildeo de caraacuteter quantitativo e numeacuterico Desse modo enquanto
Comte afirma a tese da identidade real do normal e do patoloacutegico de modo
puramente conceitual Claude Bernard a sustenta a partir de uma vida inteira de
experimentaccedilotildees bioloacutegicas inclusive com animais para a definiccedilatildeo do patoloacutegico
no homem de modo a dar agrave ciecircncia fisioloacutegica uma base para que ela pudesse
reger a atividade terapecircutica por intermeacutedio da patologia (cf NP 1990 p78)
Assim no Ensaio estrategicamente ao expor os pensamentos de Comte e
Claude Bernard para defender a independecircncia da teacutecnica em relaccedilatildeo agrave ciecircncia a
partir da consideraccedilatildeo da dimensatildeo axioloacutegica do normal e do patoloacutegico
Canguilhem natildeo quer mostrar apenas em que medida ambos resvalaram em
problemas ao recorrerem a noccedilotildees de caraacuteter qualitativo quando da defesa da
distinccedilatildeo quantitativa dos fenocircmenos normais e patoloacutegicos mas tambeacutem apontar
os limites das experimentaccedilotildees realizadas em laboratoacuterio e com animais para a
compreensatildeo da doenccedila no homem Isso porque acredita que o laboratoacuterio eacute
apenas um meio dentre outros nos quais o ser vivo molda seus modos de vida e
a doenccedila natildeo sendo um estado forccedilado experimentalmente eacute uma experiecircncia
vivida por um indiviacuteduo concreto num meio natildeo controlado no qual variaccedilotildees e
toda sorte de acontecimentos satildeo possiacuteveis
ldquoO meio de laboratoacuterio eacute para o animal ou para o homem um meio possiacutevel entre outros Eacute claro que o cientista tem razatildeo em ver nos seus aparelhos apenas as teorias que eles materializam nos produtos empregados apenas as reaccedilotildees que eles permitem e de postular a validade universal dessas teorias e dessas reaccedilotildees para o ser vivo poreacutem aparelhos e produtos satildeo objetos entre os quais ele se move como
98
num mundo insoacutelito Natildeo eacute possiacutevel que os modos de vida no laboratoacuterio natildeo conservem alguma especificidade em relaccedilatildeo com o local e com o momento da experiecircnciardquo (NP 1990 p117)
Destarte na primeira parte do Ensaio dedicada ao problema de se o
estado patoloacutegico seria apenas uma variaccedilatildeo quantitativa do estado normal
Canguilhem nota que apesar de suas experimentaccedilotildees bioloacutegicas estarem
apresentadas metodicamente na Introduction agrave leacutetude de la meacutedecine
expeacuterimentale (1865) Leccedilons sur le diabegravete et la glycogenegravese animale (1877) eacute o
texto em que Claude Bernard procura melhor demonstrar a teoria sobre a
identidade do normal e do patoloacutegico atraveacutes da exposiccedilatildeo dos mecanismos de
uma doenccedila em particular que na sua perspectiva consiste uacutenica e inteiramente no
distuacuterbio de uma funccedilatildeo normal Jaacute Comte afirma a identidade real dos fenocircmenos
patoloacutegicos e fisioloacutegicos correspondentes durante os trecircs estaacutegios de sua
evoluccedilatildeo intelectual80 embora a 40a Liccedilatildeo do Cours de philosophie positive
contenha o texto mais completo sobre o tema
Do ponto de vista comteano eacute de Broussais a ideia de que todas as
doenccedilas consistem basicamente no excesso ou na falta de excitaccedilatildeo dos diversos
tecidos abaixo ou acima do grau que constitui o estado normal81 o que faz com
que os fenocircmenos da doenccedila coincidam essencialmente com os fenocircmenos da
sauacutede dos quais soacute difeririam pela intensidade
80
Quando Canguilhem fala de trecircs estaacutegios de evoluccedilatildeo intelectual de Comte ele considera como primeiro periacuteodo o preparatoacuterio ao Cours de philosophie positive como segundo o periacuteodo propriamente dito de Filosofia Positiva e como uacuteltimo o do Systeacuteme de politique positive (cf NP 1990 p27)
81 Para Canguilhem Comte erroneamente atribui a Broussais o meacuterito que cabe verdadeiramente a
Bichat e a Pinel de ter concluiacutedo que todas as doenccedilas satildeo sintomas de perturbaccedilotildees nas funccedilotildees vitais decorrentes de lesotildees histoloacutegicas Com efeito a teoria de Broussais combina os ensinamentos do meacutedico escocecircs Brown e de Bichat Para Brown a doenccedila depende de variaccedilotildees de intensidade da incitaccedilatildeo propriedade peculiar que permite aos seres vivos serem afetados e reagirem Mas se Brown faz uma ldquomatematizaccedilatildeordquo dos fenocircmenos patoloacutegicos Bichat em Recherches sur la Vie et la Mort (1800) prefere opor o objeto e os meacutetodos da fisiologia ao objeto e meacutetodo da fiacutesica entendendo que encaixar agrave forccedila os fenocircmenos vitais no quadro riacutegido das relaccedilotildees meacutetricas significaria desnaturaacute-los Natildeo obstante a hostilidade de Bichat em relaccedilatildeo a qualquer intenccedilatildeo meacutetrica em biologia paradoxalmente alia-se agrave afirmaccedilatildeo de que no niacutevel nos tecidos as doenccedilas devem ser explicadas por variaccedilotildees de suas propriedades variaccedilotildees estas que temos que admitir serem quantitativas (cf NP 1990 p40)
99
ldquoSegundo o princiacutepio eminentemente filosoacutefico que serve doravante de base geral e direta agrave patologia positiva princiacutepio este que foi definitivamente estabelecido pelo gecircnio ousado e perseverante de nosso ilustre concidadatildeo Broussais o estado patoloacutegico em absoluto natildeo difere radicalmente do estado fisioloacutegico em relaccedilatildeo ao qual ele soacute poderia constituir sob um aspecto qualquer um simples prolongamento mais ou menos extenso dos limites de variaccedilotildees quer superiores quer inferiores peculiares a cada fenocircmeno do organismo normal se jamais poder produzir fenocircmenos realmente novos que natildeo tivessem de modo nenhum ateacute certo ponto seus anaacutelogos puramente fisioloacutegicosrdquo (NP 1990 p 31)
No capiacutetulo intitulado ldquoAugust Comte e o lsquoPrinciacutepio de Broussaisrsquordquo
Canguilhem diz que dentre as obras de Broussais Comte conhecia melhor o
trabalho De lrsquoirritation et la folie (1828) Nele Broussais identifica os termos
anormal patoloacutegico ou moacuterbido empregando-os indiferentemente e defende que
a distinccedilatildeo entre o normal ou fisioloacutegico e o anormal ou patoloacutegico eacute simplesmente
quantitativa explicada em termos de excesso ou falta Ainda afirma que tal
distinccedilatildeo tambeacutem deve ser vaacutelida para os fenocircmenos mentais assim como eacute para
os fenocircmenos orgacircnicos uma vez que admitia a teoria fisioloacutegica das faculdades
intelectuais Comte acredita que jamais se concebeu de maneira tatildeo direta e tatildeo
satisfatoacuteria a relaccedilatildeo fundamental entre patologia e fisiologia e por isso atribui ao
princiacutepio de Broussais um alcance universal na ordem dos fenocircmenos bioloacutegicos
psicoloacutegicos e socioloacutegicos inclusive no campo da poliacutetica
Destarte para Canguilhem eacute somente remontando agraves fontes longiacutenquas
das ideias de Comte atraveacutes da patologia de Broussais de Brown82 e de Bichat
82
Na Ideologia e racionalidade nas ciecircncias da vida na seccedilatildeo intitulada ldquoUma ideologia meacutedica exemplar o sistema de Brownrdquo Canguilhem estuda os motivos do sucesso alcanccedilado pela teoria meacutedica de John Brown (1735-1788) exposta nos Elementos de Medicina (1780) Para Cuvier destaca a principal razatildeo da aceitaccedilatildeo do brownismo na Itaacutelia e na Alemanha foi a distribuiccedilatildeo das doenccedilas e dos medicamentos em duas classes opostas conforme a accedilatildeo vital se encontrasse excitada ou diminuiacuteda o que reduzia a arte meacutedica a um pequeno nuacutemero de foacutermulas guias seguros para seu exerciacutecio Outros historiadores tambeacutem encontraram a explicaccedilatildeo para o sucesso da teoria de Brown na simplificaccedilatildeo que oferecia agrave praacutetica meacutedica agora reduzida a dois atos terapecircuticos inversos estimular e debilitar Outros explicaram sua larga aceitaccedilatildeo na Alemanha por ela ao apresentar o conflito entre estimulaccedilatildeo e desfalecimento dar respaldo meacutedico aos ldquosuspiros de enlanguescimentordquo dos romacircnticos Jaacute a Franccedila foi o paiacutes em que a doutrina de Brown teve menos sucesso entre os meacutedicos A recusa de sua teoria pelas escolas meacutedicas tanto a de Paris quanto a de Montpellier ocorreu porque sua concepccedilatildeo geral sobre os fenocircmenos da vida se contrapunha a de Bichat ldquoBrown eacute anti-Bichat por antecipaccedilatildeordquo (I 1981 p48) Enquanto Brown afirmava que a vida eacute um estado forccedilado e que os seres vivos tendem para a destruiccedilatildeo sucumbindo agraves potecircncias externas Bichat defendia que a vida eacute um conjunto de funccedilotildees que resiste agrave morte De acordo com Canguilhem na Franccedila Brown foi eclipsado por Broussais para quem ao contraacuterio do que pregava o brownismo a irritabilidade era um mal Mas
100
que compreendemos melhor o alcance e o limite de suas ideias Mas natildeo
devemos nos esquecer que as intenccedilotildees e os objetivos de Comte satildeo bastante
diferentes dos de seus predecessores Comte pretende com suas investigaccedilotildees
instituir cientificamente uma doutrina poliacutetica83 Afirmando de maneira geral que
as doenccedilas natildeo alteram essencialmente os processos vitais ele quer mostrar que
as crises poliacuteticas podem ser sanadas e a sociedade passada a turbulecircncia
retornaraacute a sua estrutura permanente e essencial tolerando o progresso dentro
dos limites de variaccedilatildeo da ordem natural definida pela estaacutetica social
Com efeito do mesmo modo que Broussais afirma que qualquer
modificaccedilatildeo artificial ou natural na ordem real de um fenocircmeno diz respeito
somente agrave alteraccedilatildeo na intensidade dos fenocircmenos a ele correspondentes e que
apesar das variaccedilotildees de grau os fenocircmenos conservam sempre a mesma
disposiccedilatildeo natildeo havendo mudanccedila de natureza propriamente dita Comte defendia
que uma perturbaccedilatildeo do organismo coletivo isto eacute as revoluccedilotildees natildeo alteram
essencialmente a natureza da sociedade sua tendecircncia agrave cessaccedilatildeo da
perturbaccedilatildeo e retorno da ordem ideia base de seu princiacutepio socioloacutegico
fundamental de que o progresso natildeo seria nada mais que o desenvolvimento da
ordem (cf NP 1990 p28)
Natildeo obstante Broussais ao tentar reduzir toda patogenia a um fenocircmeno
de aumento ou diminuiccedilatildeo procurando fazer uso de conceitos de valor
quantitativo ao falar em alteraccedilatildeo ou perturbaccedilatildeo orgacircnica acaba por resvalar em
conceitos qualitativos (cf NP 1990 p40) Comte na mesma esteira fracassou na
tentativa de traduzir a diferenccedila existente entre o normal e o patoloacutegico em termos
de quantidade Ao refletir sobre os limites da variaccedilatildeo do estado normal e do
apesar da discordacircncia Broussais conserva dele a ideia de que a natureza natildeo dispocircs para a vida e para a sauacutede potecircncias diferentes daquelas que presidem as doenccedilas e a morte Este princiacutepio de identidade dos fenocircmenos normais e patoloacutegicos admitido por Magendie Comte e Claude Bernard fundou uma ideologia meacutedica liberta de toda fidelidade ao hipocratismo Para Brown ao contraacuterio do que propunha Bichat eacute preciso estimular ou debilitar pois natildeo podemos ficar na inaccedilatildeo confiando nas forccedilas da natureza (Cf I 1981 p49)
83 Vale dizer que segundo Canguilhem Comte ao adotar a mesma concepccedilatildeo de patologia de
Broussais pretendia instituir uma teoria poliacutetica por isso a subordina a um sistema de poliacutetica positiva sendo que sua difusatildeo como concepccedilatildeo independente ocorreu atraveacutes de meacutedicos psicoacutelogos e literatos de inspiraccedilatildeo e tradiccedilatildeo positivista (cf NP 1990 p42)
101
patoloacutegico em sua compatibilidade com a existecircncia dos organismos Comte fala
em harmonia de influecircncias distintas tanto internas quanto internas conceito de
caraacuteter evidentemente qualitativo ldquoEsclarecido por este conceito de harmonia o
conceito de normal ou de fisioloacutegico eacute reduzido a um conceito qualitativo e
polivalente esteacutetico e moral mais ainda que cientiacuteficordquo (NP 1990 p33)
Jaacute Claude Bernard ao explicar o que seria o diabetes utiliza
indiferentemente as expressotildees variaccedilotildees quantitativas e diferenccedilas de grau
fazendo uso das ideias de continuidade e homogeneidade indistintamente como
se a primeira subentendesse a segunda (cf NP 1990 p53) Sendo assim se ele
se equivocou ao deduzir da continuidade a homogeneidade correndo o risco de
deixar a doenccedila escorregar-lhe por entre os dedos Comte ao recorrer a
Broussais acabou por tropeccedilar em conceitos notadamente qualitativos Isto eacute se
Comte recorre ao princiacutepio de Broussais com intenccedilatildeo de conhecer objetivamente
o estado normal do qual o patoloacutegico seria apenas a expressatildeo exacerbada ele
natildeo consegue excluir deste conceito seu caraacuteter normativo Isso porque ao tomar
uma certa concepccedilatildeo de normalidade como ideal de funcionamento orgacircnico ele
natildeo percebe que por traacutes de sua definiccedilatildeo objetiva do conceito de normal em sua
explicaccedilatildeo deste estado como um fato reside uma atribuiccedilatildeo preacutevia de valor
ldquoDefinir o normal por meio do que eacute de mais ou de menos eacute reconhecer o caraacuteter normativo do estado dito lsquonormalrsquo Este estado normal ou fisioloacutegico deixa de ser apenas uma disposiccedilatildeo detectaacutevel e explicaacutevel como um fato para ser a manifestaccedilatildeo do apego a algum valorrdquo (NP 1990 p36)
Igualmente Claude Bernard ao que parece natildeo conseguiu escapar da
mesma ambiguidade ao defender que eacute a exageraccedilatildeo a desproporccedilatildeo ou
desarmonia dos fenocircmenos normais o que constitui o estado doentio Sua ideia de
que toda ldquodoenccedila tem uma funccedilatildeo normal correspondente da qual ela eacute a
expressatildeo perturbada exagerada diminuiacuteda ou anuladardquo (NP 1990 p45) ao
manter o termo ldquoexageraccedilatildeordquo dos fenocircmenos normais para definir o estado
patoloacutegico ainda guarda um sentido claramente qualitativo Sendo assim apesar
de trazer para sustentar seu princiacutepio geral de patologia argumentos controlaacuteveis
102
protocolos de experiecircncia e principalmente meacutetodos de quantificaccedilatildeo dos
conceitos fisioloacutegicos haacute em suas teorias assim como nas de Broussais e Comte
uma convergecircncia de conceitos qualitativos e quantitativos na definiccedilatildeo dos
fenocircmenos patoloacutegicos
Desta forma para Canguilhem o problema da atribuiccedilatildeo de realidade
objetiva acessiacutevel ao conhecimento cientiacutefico quantitativo ao conceito de doenccedila
permanece em aberto Para ele o argumento de Claude Bernard de que a sauacutede
e a doenccedila natildeo satildeo dois modos de vida que diferem essencialmente havendo
entre estes estados apenas uma diferenccedila de grau - natildeo existindo assim um uacutenico
caso em que a doenccedila tenha feito surgir condiccedilotildees novas uma mudanccedila completa
da cena produtos novos e especiais - parece natildeo ter validade universal (cf NP
1990 p49)
Haacute um conjunto de doenccedilas que colocam em questatildeo este esquema
explicativo pois natildeo se enquadram no modelo hipohiper No caso da uacutelcera
gaacutestrica por exemplo o essencial da doenccedila natildeo consiste na hipercloridria mas
sim na autodigestatildeo do estocircmago fenocircmeno que difere profundamente do estado
normal De igual modo a hipertensatildeo natildeo pode ser considerada o simples
aumento da pressatildeo arterial fisioloacutegica como se ela natildeo modificasse
profundamente a estrutura e as funccedilotildees dos oacutergatildeos essenciais como o coraccedilatildeo e
o pulmatildeo Ateacute o argumento claacutessico de Claude Bernard de que o principal sintoma
do diabetes eacute o ultrapassamento do limiar de glicose normal na urina natildeo invalida
a tese de que a presenccedila de accediluacutecar na urina diabeacutetica a torna qualitativamente
diferente de uma urina normal pois ldquoo estado patoloacutegico identificado como seu
principal sintoma eacute uma qualidade nova em relaccedilatildeo ao estado fisioloacutegicordquo (NP
1990 p 55)
Mesmo a ideia de substituiccedilatildeo da ideia de sintoma por mecanismos de
funcionamento normais e patoloacutegicos como estrateacutegia para imprimir maior
objetividade agrave explicaccedilatildeo do estado doentio natildeo elimina a diferenccedila de qualidade
existente entre o comportamento de um mesmo oacutergatildeo em estado considerado
103
normal e em outro tomado por patoloacutegico84 Pela perspectiva canguilhemiana
considerar as funccedilotildees fisioloacutegicas como mecanismos os limiares como barragens
as regulaccedilotildees como vaacutelvulas de seguranccedila servofreios ou termostatos significaria
cair no que chama de ldquoarmadilhas e ciladasrdquo das concepccedilotildees iatromecanicistas
(cf NP 1990 p56) No caso do diabetes por exemplo ainda que considerado um
certo ldquocomportamento renalrdquo para a explicaccedilatildeo das variaccedilotildees do limiar normal de
glicose na urina o uso do termo comportamento normal jaacute introduz na explicaccedilatildeo
do fenocircmeno patoloacutegico uma noccedilatildeo que natildeo pode ser inteiramente transposta em
termos analiacuteticos e quantitativos
Tambeacutem as doenccedilas nervosas resistem agraves explicaccedilotildees baseadas nos
princiacutepios de Claude Bernard A exemplo disso Goldstein atraveacutes da observaccedilatildeo
cliacutenica de pacientes com ferimentos no ceacuterebro concluiu que natildeo se deve
absolutamente crer que as diversas atitudes de um doente com lesatildeo cerebral
representam apenas uma espeacutecie de resiacuteduo do comportamento normal aquilo
que sobreviveu agrave destruiccedilatildeo As atitudes que sobreviveram no doente jamais se
apresentam da mesma forma no homem normal nem mesmo nos estaacutegios
inferiores de sua ontogecircnese ou filogecircnese A doenccedila daacute ao comportamento do
doente formas peculiares que soacute podem ser bem compreendidas se levada em
conta a novidade instaurada pelo estado moacuterbido
ldquoPortanto eacute preciso comeccedilar por compreender que o fenocircmeno patoloacutegico revela uma estrutura individual modificada Eacute preciso ter sempre em mente a transformaccedilatildeo da personalidade do doente Caso contraacuterio arriscamo-nos a ignorar que o doente mesmo quando eacute capaz de reaccedilotildees normais semelhantes agraves que antes podia ter pode chegar a essas reaccedilotildees por caminhos completamente diferentes Essas reaccedilotildees aparentemente equivalentes agraves reaccedilotildees normais natildeo satildeo resiacuteduos do comportamento normal anterior natildeo satildeo o resultado de uma reduccedilatildeo ou diminuiccedilatildeo natildeo satildeo o aspecto normal da vida menos alguma coisa que foi destruiacuteda satildeo reaccedilotildees que jamais se apresentam no indiviacuteduo normal sob a mesma forma e nas mesmas condiccedilotildeesrdquo (NP 1990 p147)
84
Em realidade o que Canguilhem critica nas conclusotildees bernardianas natildeo eacute tanto o fato de serem errocircneas jaacute que de fato alguns sintomas satildeo o produto quantitativamente variado de mecanismos constantes no estado fisioloacutegico mas sua extrapolaccedilatildeo ilegiacutetima Sua teoria eacute vaacutelida somente em certos casos nos quais se restringe o fenocircmeno patoloacutegico a algum sintoma natildeo levando em conta o contexto cliacutenico ou quando se busca a causa dos efeitos sintomaacuteticos em mecanismos funcionais parciais desconsiderando que o comportamento de um oacutergatildeo natildeo pode ser abstraiacutedo do comportamento do organismo funcionando como um todo (cf NP 1990 p60-1)
104
Igualmente o princiacutepio bernardiano parece natildeo se aplicar em casos de
doenccedilas infecciosas sendo difiacutecil afirmar que o estado infeccioso natildeo traz
nenhuma descontinuidade na histoacuteria do ser vivo No caso das doenccedilas mentais
vale a mesma criacutetica Acompanhando psiquiatras como Blondel Lagache e
Minkowski Canguilhem natildeo acredita ser possiacutevel comparar os sintomas
patoloacutegicos com elementos da consciecircncia normal Com efeito Blondel em seu
livro La conscience morbide descreve casos de alienaccedilatildeo nos quais o meacutedico tem
a impressatildeo de lidar com uma estrutura de mentalidade diferente Tambeacutem para
Lagache a desorganizaccedilatildeo moacuterbida natildeo eacute o simeacutetrico inverso da organizaccedilatildeo
mental normal Haacute uma originalidade no patoloacutegico pois na consciecircncia patoloacutegica
podem existir formas que natildeo encontram equivalentes no estado normal Jaacute
Minkowski apresenta o fenocircmeno da alienaccedilatildeo sob o acircngulo do ldquoser de modo
diferenterdquo no sentido qualitativo da palavra acreditando que ela natildeo pode ser
reduzida a um fato de doenccedila determinado por referecircncia a uma imagem ou ideia
precisa do homem meacutedio ou normal (cf NP 1990 p89)85
Canguilhem de igual modo questiona a ideia de que as constantes
classificadas como normais designam caracteriacutesticas meacutedias e mais frequentes
nos casos observaacuteveis num sentido descritivo Para ele a tentativa de reduzir a
norma agrave meacutedia apresenta dificuldades que satildeo atualmente e provavelmente
insuperaacuteveis Norma e meacutedia satildeo conceitos diferentes e que eacute inuacutetil tentar reduzi-
los a uma unidade agraves custas da originalidade do primeiro (cf NP 1990 p142)
85
Eacute importante notar que Canguilhem ao fazer referecircncia agrave psicologia e agrave psiquiatria fenomenoloacutegica quer compreender de modo idecircntico a doenccedila somaacutetica e a psiacutequica Acreditando na contribuiccedilatildeo reciacuteproca entre a fisiopatologia e a psicopatologia no Ensaio diz que os meacutedicos e fisiologistas poderiam tirar proveito da retificaccedilatildeo e atualizaccedilatildeo dos conceitos de normal e de patoloacutegico realizadas pelos estudiosos das doenccedilas mentais (cf NP 1990 p90) Em La connaissance de la vie no artigo ldquoLe normal et le pathologiquerdquo fazendo novamente referecircncia agrave Lagache Minkowski e agora tambeacutem agrave Lacan ele novamente fala da diferenccedila qualitativa entre os estados normal e patoloacutegico e realiza um diaacutelogo entre a medicina das doenccedilas orgacircnicas e a das psiacutequicas mas agora para apresentar em que medida o estudo da anomalia somaacutetica pode contribuir para o entendimento da anomalia psiacutequica ldquoOra como nos pareceu reconhecer na sauacutede um poder normativo de colocar em questatildeo as normas fisioloacutegicas usuais atraveacutes da busca do debate do vivente e o meio ndash debate que implica a aceitaccedilatildeo normal do risco da doenccedila ndash de igual modo nos parece que a norma em mateacuteria de psiquismo humano eacute a reivindicaccedilatildeo e o uso da liberdade como poder de revisatildeo e de instituiccedilatildeo de normas reivindicaccedilatildeo que implica normalmente o risco da loucurardquo (CV 1995 p168)
105
No entanto o fisiologista encontra no conceito de meacutedia um equivalente objetivo e
cientificamente vaacutelido do conceito de normal natildeo compartilhando sabiamente com
Claude Bernard a correta aversatildeo herdada de Bichat por resultados de anaacutelise
de experiecircncias bioloacutegicas expressos em meacutedias cujos valores fariam
desaparecer o caraacuteter oscilatoacuterio e riacutetmico do fenocircmeno bioloacutegico fundamental
visto que nunca representariam um fato verdadeiro
ldquose procurarmos o verdadeiro nuacutemero das pulsaccedilotildees cardiacuteacas pela meacutedia das medidas tomadas durante vaacuterias vezes durante um mesmo dia num determinado indiviacuteduo lsquoteremos precisamente um nuacutemero falsorsquordquo (NP 1990 p118)
Por isso do ponto de vista bernardiano o normal seraacute muito melhor definido como
tipo ideal em condiccedilotildees experimentais determinadas do que como meacutedia
aritmeacutetica ou frequecircncia estatiacutestica
No entanto Canguilhem diante da impossibilidade de se fornecer o
equivalente integral do normal anatocircmico ou fisioloacutegico sob a forma de meacutedia
objetivamente calculada natildeo tenta resolver este problema como tentou fazer
Claude Bernard definindo o normal como tipo ideal em condiccedilotildees experimentais
Ou seja apesar de se filiar agrave criacutetica bernardiana agravequeles que reduzem o normal agrave
meacutedia ele discorda da possibilidade de sua determinaccedilatildeo por vias experimentais
Isso porque muitas satildeo as dificuldades enfrentadas pelo fisiologista no curso de
suas pesquisas ao tentar comparar as condiccedilotildees experimentais agraves condiccedilotildees
normais primeiro natildeo haacute como ter certeza quanto ao fato do indiviacuteduo dito
normal em situaccedilatildeo experimental ser idecircntico a outro da mesma espeacutecie em
situaccedilatildeo natildeo artificial segundo os meios artificiais de induccedilatildeo de uma doenccedila
podem provocar alteraccedilotildees fenomenologicamente diferentes das presentes em
estados patoloacutegicos natildeo artificialmente induzidos o que faz com que o fisiologista
nunca possa assegurar que o estado patoloacutegico forjado experimentalmente seja
idecircntico ao estado patoloacutegico espontaneamente instaurado e por fim haveria a
impossibilidade de realizar estudos comparativos entre indiviacuteduos de diferentes
espeacutecies acometidos pela mesma doenccedila jaacute que as comparaccedilotildees estabelecidas
entre estados patoloacutegicos de indiviacuteduos diferentes abrem uma grande margem de
106
incerteza ldquonatildeo se pode sem grandes preocupaccedilotildees tirar conclusotildees que se
apliquem ao homem diabeacutetico a partir do catildeo de Von Mering e Minkowski ou do
catildeo de Youngrdquo (NP 1990 p116)
Assim colocando em questatildeo a concepccedilatildeo comum de que os fisiologistas
devem ter por fenocircmenos normais aqueles cuja exploraccedilatildeo eacute possiacutevel graccedilas aos
instrumentos de laboratoacuterio ele contesta a ideia de que o aferimento e a
mensuraccedilatildeo laboratoriais satildeo suficientes para servir de norma agrave atividade
funcional do ser vivo fora do espaccedilo experimental
ldquoAs normas funcionais do ser vivo examinado no laboratoacuterio soacute adquirem sentido dentro das normas operacionais do cientista Neste sentido nenhum fisiologista contestaraacute que apenas fornece um conteuacutedo ao conceito de norma bioloacutegica mas que de modo algum elabora o que tal conceito tem de normativordquo (NP 1990 p114)
Isso ocorre porque o proacuteprio laboratoacuterio jaacute eacute um meio novo que impotildee ao indiviacuteduo
uma reaccedilatildeo normativa de ajustamento o que provoca uma alteraccedilatildeo em seu
modo de vida usual aleacutem de que a determinaccedilatildeo de constantes fisioloacutegicas
atraveacutes de meacutedias obtidas experimentalmente sempre corre o risco de apresentar
o homem normal como um homem mediacuteocre bem abaixo das possibilidades
fisioloacutegicas que os homens em condiccedilatildeo de influir sobre si mesmos e sobre o meio
satildeo capazes (cf NP 1990 p129)
Por outra via para demonstrar o que o conceito de norma tem de normativo
Canguilhem opta por fazer uma breve exposiccedilatildeo e um exame da ldquoteoria do
homem meacutediordquo de Quecirctelet e das criacuteticas a ela feitas por Halbawachs Mayer e
Laugier86 de modo a apresentar as dificuldades encontradas por ele ao tentar
definir a norma como meacutedia ou frequecircncia estatiacutestica Para se contrapor agrave
perspectiva metafiacutesica de Quetelecirct estrategicamente agora ele recorre a um
conjunto de estudos situados na interface das ciecircncias bioloacutegicas com as ciecircncias
humanas que procura relacionar as caracteriacutesticas fisioloacutegicas e patoloacutegicas do
homem com o meio geograacutefico e histoacuterico em que ele se encontra Almejando
86
Autores respectivamente das obras La theacuteorie de lrsquohomme moyen essai sur Quecirctelet et la statistique morale Lrsquoorganisme normal et la mesure du fonctionnement e Lrsquohomme normal
107
realizar uma inversatildeo loacutegica Canguilhem faz uso deste referencial para defender
que natildeo eacute norma que se submete agrave meacutedia mas eacute a meacutedia que traduz uma norma
bioloacutegica e socialmente aceita por um determinado grupo geograacutefica e
historicamente situado
Ao expor a teoria de Quecirctelet Canguilhem destaca que na obra
Anthropomeacutetrie ou mesure des diffeacuterentes facultes de lhomme (1870) ele estudou
sistematicamente as variaccedilotildees da estatura do homem estabelecendo para
determinados caracteres meacutedios em indiviacuteduos de uma populaccedilatildeo homogecircnea um
poliacutegono de frequecircncia expresso em uma ldquocurva em sinordquo denominada curva
binomial ou curva de Gauss Do ponto de vista graacutefico dentre o grande nuacutemero de
homens cuja estatura varia dentro de limites determinados aqueles que se
aproximam mais da estatura meacutedia satildeo os mais numerosos e aqueles que mais se
afastam satildeo em menor nuacutemero O tipo humano a partir do qual os demais satildeo
desvios tanto mais raros quanto maior for a distacircncia em relaccedilatildeo a ele
caracterizaria o homem meacutedio
Ademais distinguindo dois tipos de meacutedia a aritmeacutetica ou mediana e a
meacutedia verdadeira Quecirctelet ainda acreditava que a existecircncia desta uacuteltima seria
um sinal incontestaacutevel da existecircncia de uma regularidade na natureza
interpretada num sentido ontoloacutegico ldquoOra essa possibilidade de interpretar as
flutuaccedilotildees bioloacutegicas pelo caacutelculo de probabilidades parecia a Quecirctelet da mais
alta importacircncia metafiacutesicardquo (NP 1990 p123) Para ele o homem estaria sujeito
agraves leis divinas e as cumpriria com regularidade assim como os animais e as
plantas As variaccedilotildees ou flutuaccedilotildees encontradas em determinado caraacuteter seriam
consequecircncias da lei do acaso ou da lei das causas acidentais cujos efeitos
tenderiam a se anular por compensaccedilatildeo progressiva fazendo aparecer com mais
nitidez o tipo humano meacutedio
Segundo Canguilhem Halbwachs contesta a ideia de que a distribuiccedilatildeo da
altura humana em torno de uma meacutedia seja um fenocircmeno ao qual possa de
aplicar a lei do acaso pois se apenas ela vigorasse natildeo se poderia identificar
efeitos orgacircnicos constantes Ademais ele acredita que Quecirctelet natildeo tem razatildeo
108
ao considerar a estatura um fato puramente bioloacutegico pois eacute impossiacutevel
desconsiderar a influecircncia do meio geograacutefico e da histoacuteria em sua variaccedilatildeo jaacute
que na espeacutecie humana ela eacute um fenocircmeno inseparavelmente bioloacutegico e social A
estatura soacute seria um fato puramente bioloacutegico se fosse estudada num conjunto de
indiviacuteduos pertencentes a uma linhagem pura animal ou vegetal
ldquoEm resumo hereditariedade e tradiccedilatildeo haacutebito ou costume satildeo outras tantas formas de dependecircncia e de ligaccedilatildeo interindividual portanto outros tantos obstaacuteculos a uma utilizaccedilatildeo adequada do caacutelculo de probabilidadesrdquo (NP 1990 p125)
Tomando como exemplo a longevidade Halbwachs mostra sua estreita relaccedilatildeo
com as condiccedilotildees de trabalho e higiene a fadiga e as doenccedilas mais comuns em
determinado grupo social A seu ver o que se expressa no nuacutemero abstrato que eacute
a duraccedilatildeo meacutedia da vida humana natildeo eacute a duraccedilatildeo biologicamente normal mas a
duraccedilatildeo de uma vida socialmente normativa (cf NP 1990 p127)
Outro problema da teoria de Quecirctelet apontado por Canguilhem eacute que
mesmo que fosse possiacutevel encontrar uma meacutedia que caracterizasse o estado
normal o problema agora consistiria em saber dentro de que oscilaccedilotildees em torno
deste valor meacutedio puramente teoacuterico os indiviacuteduos ainda seriam considerados
normais De acordo com Mayer e Laugier os fenocircmenos biomeacutetricos admitem
uma margem de variaccedilatildeo de modo que natildeo eacute possiacutevel determinar em que medida
o desvio passaria a ser anormal Com efeito se o normal eacute o resultado de caacutelculo
de meacutedias ou se o modelo eacute o resultado de um produto de estatiacutestica e se eacute
precisamente o afastamento maior ou menor desta meacutedia o que constitui a
individualidade o problema eacute como saber em que ponto ocorre a passagem do
normal para o anormal
ldquoEstabelecer uma curva de Quecirctelet natildeo significa resolver o problema do normal em relaccedilatildeo a um determinado caraacuteter por exemplo em relaccedilatildeo agrave estatura Satildeo necessaacuterias hipoacuteteses diretrizes e convenccedilotildees praacuteticas que permitam decidir em que niacutevel das estaturas seja em direccedilatildeo agraves grandes seja em direccedilatildeo agraves pequenas ocorre a passagem do normal para o anormal O mesmo problema persiste se substituirmos um conjunto de meacutedias aritmeacuteticas por um esquema estatiacutestico a partir do qual determinado indiviacuteduo se afasta mais ou menos pois a estatiacutestica natildeo fornece nenhum meio para decidir se o desvio eacute normal ao anormalrdquo (NP 1990 p121)
109
Na leitura canguilhemiana se Quecirctelet errou ao atribuir agrave meacutedia de um
caraacuteter anatocircmico humano um valor de norma divina foi ao especificar a norma e
natildeo ao interpretar a meacutedia como signo de uma norma pois se uma norma
transparece atraveacutes de uma meacutedia natildeo eacute por haver uma regularidade imposta por
uma lei divina mas sim por haver normas e valores vitais privilegiados postos a
partir das relaccedilotildees que os indiviacuteduos estabelecem com seu meio Concordando
com Halbwachs para quem ldquoo homem eacute um fator geograacutefico e a geografia estaacute
profundamente impregnada de histoacuteria sob a forma de teacutecnicas coletivasrdquo (NP
1990 p125) Canguilhem acredita que as meacutedias anatomofisioloacutegicas estatildeo em
conformidade aos gecircneros e niacuteveis de vida agraves tomadas de posiccedilatildeo eacuteticas e
religiosas ou seja em consonacircncia agraves formas coletivas de vida embora natildeo
sejam completamente determinadas por ela
Assim pelo seu vieacutes um traccedilo humano natildeo seria normal por ser frequente
mas seria frequente por ser normal num determinado gecircnero de vida
ldquoNo entanto na nossa opiniatildeo se Quecirctelet se enganou ao atribuir agrave meacutedia de um caraacuteter anatocircmico humano um valor de norma divina ele errou apenas ao especificar a norma mas natildeo ao interpretar a meacutedia como signo de uma norma Se eacute verdade que o corpo humano eacute em certo sentido produto da atividade social natildeo eacute absurdo supor que a constacircncias de certos traccedilos revelados por uma meacutedia dependa da fidelidade consciente ou inconsciente a certas normas da vida Por conseguinte na espeacutecie humana a frequecircncia estatiacutestica natildeo traduz apenas uma normatividade vital mas tambeacutem uma normatividade socialrdquo (NP 1990 p125-126)
Aqui Canguilhem tambeacutem daacute destaque aos trabalhos do geoacutegrafo francecircs
Maximilien Sorre autor da obra Les fondements biologiques de la geogroacutegraphie
humaine por compartilhar com ele a mesma ideia concernente agrave variaccedilatildeo das
constantes fisioloacutegicas em conformidade ao meio Para Sorre as constantes
fisioloacutegicas numa determinada zona de povoamento natildeo traduzem a ineacutercia de um
determinismo mas um esforccedilo para manter uma estabilidade funcional ideal
naquele meio de modo que as constantes fisioloacutegicas natildeo satildeo constantes no
sentido absoluto do termo pois para cada funccedilatildeo ou funccedilotildees haacute uma margem de
110
variaccedilatildeo que entra em jogo de acordo com a capacidade de adaptaccedilatildeo funcional
de cada grupo a seu ambiente
ldquoEm conclusatildeo Sorre se obstina em mostrar que o homem considerado coletivamente estaacute aacute procura de seus lsquoideais funcionaisrsquo isto eacute dos valores de cada um dos elementos do ambiente para os quais uma funccedilatildeo determinada se realiza melhor () Eacute desnecessaacuterio dizer que nos agrada ver um geoacutegrafo apoiar coma seriedade dos resultados de suas anaacutelises a interpretaccedilatildeo das constantes bioloacutegicas por noacutes propostardquo (NP 1990 p135)
Mas eacute importante dizer que Canguilhem esclarece que sua tese de que as
constantes funcionais podem ser interpretadas como normas habituais de vida natildeo
deve nos levar a crer que as normas fisioloacutegicas sejam o resultado de haacutebitos
individuais e momentacircneos
ldquoAfirmar com a devida reserva que o homem tem caracteriacutesticas fiacutesicas em relaccedilatildeo com sua atividade natildeo significa deixar qualquer pessoa acreditar que poderaacute alterar sua glicemia ou seu metabolismo basal pelo meacutetodo Coueacute ou mesmo pela mudanccedila de ambiente Natildeo se muda em alguns dias aquilo que a espeacutecie elabora durante milecircniosrdquo (NP 1990 p139)
No entanto haacute casos em que se evidencia a influecircncia de uma escolha
expliacutecita sobre um modo de ser fisioloacutegico por exemplo a inversatildeo das condiccedilotildees
de repouso e sono pode levar a uma inversatildeo completa do ritmo nictemeral de
temperatura (cf NP 1990 p141) Mas em resumo o que ele quer dizer eacute que
considerar os valores meacutedios das constantes fisioloacutegicas como expressatildeo de
normas coletivas de vida natildeo significa afirmar uma fatalidade geograacutefica como
bem mostrou os trabalhos da escola francesa de geografia humana inaugurada
por Vidal de la Blanche87 Significa apenas dizer que inventando gecircneros de vida
o homem tambeacutem inventa ao longo do tempo modos de ser fisioloacutegicos (cf NP
1990 p139)
87
Vidal de la Blache (1845-1918) geoacutegrafo francecircs autor da obra Tableau de la Geacuteographie de la France (1903) foi influenciado pela corrente filosoacutefica historicista e pioneiro da corrente geograacutefica que defende o possibilismo em oposiccedilatildeo ao determinismo ambiental germacircnico de Friedrich Ratzel (criador do termo Lebensraum) Com sua teoria ele se contrapocircs agrave concepccedilatildeo fatalista e mecanicista da relaccedilatildeo entre os homens e a natureza afirmando que o homem eacute um ser ativo e natildeo passivo com condiccedilotildees de modificar o meio natural e adaptaacute-lo segundo suas necessidades
111
Destarte afirmando haver uma estreita relaccedilatildeo entre normatividade bioloacutegica
e normatividade social Canguilhem quer mostrar que o meio humano geograacutefico
e histoacuterico eacute ao mesmo tempo causa e efeito das estruturas e comportamentos
dos indiviacuteduos Isso quer dizer que eacute o enfrentamento constante das normas vitais
com as formas coletivas de vida o que explica a variabilidade dos traccedilos humanos
fazendo com que caracteriacutesticas como a longevidade e a estatura sejam ao
mesmo tempo fenocircmenos bioloacutegicos e sociais Desta forma se considerarmos
que haacute variaccedilotildees normativas em conformidade agraves formas coletivas de vida natildeo
apenas nos espaccedilos geograacuteficos mas tambeacutem nos diferentes tempos histoacutericos88
as constantes que se apresentariam com maior frequecircncia e valor meacutedio num
determinado grupo seriam em realidade a expressatildeo de uma normatividade natildeo
apenas bioloacutegica mas tambeacutem social
ldquoConsequumlentemente poder-se-ia atribuir agrave existecircncia de uma meacutedia dos caracteres mais frequentes um sentido bastante diferente daquele que Quecirctelet lhe atribuiacutea A existecircncia dessa meacutedia natildeo traduziria um equiliacutebrio especiacutefico estaacutevel e si o equiliacutebrio instaacutevel de normas e formas de vida mais ou menos equivalentes e que se enfrentam momentaneamenterdquo (NP 1990 p128)
Assim recusando a interpretaccedilatildeo metafiacutesica do conceito de norma
apresentado por Quecirctelet Canguilhem conclui que se determinada caracteriacutestica
bioloacutegica tem maior frequecircncia eacute porque ela eacute normativa num determinado gecircnero
de vida geograacutefico e historicamente situado ldquoSeraacute que natildeo conviria inverter o
problema e refletir se a ligaccedilatildeo dos dois conceitos natildeo poderia ser explicada pela
subordinaccedilatildeo da meacutedia agrave normardquo (NP 1990 p 122) Ou seja se consideramos
que haacute uma relaccedilatildeo entre as normas bioloacutegicas e os haacutebitos humanos
relacionados aos gecircneros niacuteveis e ritmos de vida coletiva veremos que a meacutedia
88
Ancorado nos estudos paleopatoloacutegicos de Pales e Vallois autores de respectivamente Etat actuel de la paleacuteopathologie contribution agrave lrsquoegravetude de la pathologie comparative e Les maladies de lrsquohomme preacutehistorique Canguilhem nota que a relatividade de certos distuacuterbios patoloacutegicos em sua relaccedilatildeo com os gecircneros de vida natildeo se observa apenas atraveacutes da comparaccedilatildeo de grupos eacutetnicos e culturais de um mesmo periacuteodo histoacuterico mas tambeacutem pela comparaccedilatildeo com grupos anteriores desaparecidos Exemplo disso eacute que algumas afecccedilotildees comuns nos homens preacute-histoacutericos se apresentavam em proporccedilotildees bem diferentes das encontradas atualmente como a inexistecircncia de caacuteries dentaacuterias e o elevado nuacutemero de osteoartrite por conta da frequente exposiccedilatildeo ao clima frio e uacutemido
112
apenas expressa a viabilidade de uma norma num determinado grupo humano
Por esta perspectiva na qual eacute a meacutedia que se submete agrave norma ldquoa norma natildeo se
deduz da meacutedia mas se traduz pela meacutediardquo (NP 1990 p127)
Respondendo antecipadamente agravequeles que objetariam sua tese
apontando que subordinando a meacutedia agrave norma o normal deixaria de ter a rigidez
de um determinativo para todos os indiviacuteduos da mesma espeacutecie tornando
impreciso o limite entre o normal e o patoloacutegico Canguilhem explica que como
poderia parecer agrave primeira vista as variaccedilotildees normativas concernentes agraves
diferentes formas coletivas de vida natildeo implicariam a relatividade do normal e do
patoloacutegico de modo que natildeo fosse mais possiacutevel determinar onde termina a
sauacutede e onde comeccedila a doenccedila Isso porque considerado o ser individual eacute
perfeitamente possiacutevel avaliar quando ele passa a ser incapaz de realizar as
tarefas que uma nova situaccedilatildeo lhe impotildee pois se a fronteira entre o normal e o
patoloacutegico pode ser imprecisa para diversos indiviacuteduos considerados
simultaneamente para um uacutenico e mesmo indiviacuteduo considerado
sucessivamente natildeo eacute (cf NP 1990 p145)
Assim natildeo eacute uma meacutedia estatiacutestica que vai determinar em que ponto ocorre
a passagem do normal para o anormal Com efeito para Goldstein assim como
para Laugier uma meacutedia obtida estatisticamente natildeo permite dizer se estamos
diante de um indiviacuteduo normal ou natildeo
ldquoTratando-se de uma norma supra-individual eacute impossiacutevel determinar o lsquoser doentersquo (Kraksein) quanto ao conteuacutedo No entanto isto eacute perfeitamente possiacutevel quando se trata de uma norma individualrdquo (NP 1990 p144)
Tambeacutem para Canguilhem eacute sempre o indiviacuteduo que devemos tomar como
ponto de referecircncia para determinar em qual momento termina a sauacutede e em qual
momento comeccedila a doenccedila pois mesmo que desconheccedila a localizaccedilatildeo e a data
exata do iniacutecio do fenocircmeno patoloacutegico ele certamente natildeo se engana quanto ao
fato de se sentir doente
113
ldquoEm uacuteltima anaacutelise satildeo os doentes que geralmente julgam ndash de ponto de vista muito variados ndashse natildeo satildeo mais normais ou se voltaram a secirc-lo Para um homem que imagina seu futuro quase sempre a partir de sua experiecircncia passada voltar a ser normal significa retornar uma atividade interrompida ou pelo menos uma atividade considerada equivalente segundo os gostos individuais ou os valores sociais do meio Mesmo que essa atividade seja uma atividade reduzida mesmo que os comportamentos possiacuteveis sejam menos variaacuteveis menos flexiacuteveis do que eram antes o indiviacuteduo natildeo daacute tanta importacircncia assim a esses detalhes O essencial para eles eacute sair de um abismo de impotecircncia ou de sofrimento em que quase ficou definitivamente o essencial eacute lsquoter escapado de boarsquordquo (NP 1990 p91)
Daiacute para ele o papel da cliacutenica e natildeo do laboratoacuterio para a identificaccedilatildeo do
normal e do patoloacutegico Afirmando que natildeo eacute a patologia objetiva que procede da
fisiologia mas a fisiologia que procede de uma patologia que pode ser chamada
de subjetiva jaacute que derivada do ponto de vista do doente ele quer mostrar que soacute
sabemos estar diante de um fenocircmeno dito patoloacutegico devido a uma informaccedilatildeo
cliacutenica preacutevia Disso decorre que eacute a medicina cliacutenica que oferece a categoria de
patoloacutegico a todas as ciecircncias que ela que utiliza em benefiacutecio da vida Isto eacute
quando falamos em anatomia patoloacutegica fisiologia patoloacutegica histologia
patoloacutegica embriologia patoloacutegica a qualificaccedilatildeo de patoloacutegico que utilizamos eacute
uma noccedilatildeo de origem teacutecnica e por isso mesmo de origem subjetiva
ldquoPode-se descrever objetivamente estruturas ou comportamentos mas natildeo se pode chamaacute-los de lsquopatoloacutegicosrsquo com base em nenhum criteacuterio puramente objetivo Objetivamente soacute se pode definir variedades ou diferenccedilas sem valor vital positivo ou negativordquo (NP 1990 p186)
Desta forma eacute o valor cliacutenico de um comportamento individual que vai ou
natildeo defini-lo como patoloacutegico Ou seja a fisiologia soacute sabe que estaacute diante de um
fato patoloacutegico porque recebe da cliacutenica uma noccedilatildeo de doenccedila originada da
experiecircncia que os homens tecircm de suas relaccedilotildees de conjunto com o meio (cf NP
1990 p 65) Se as doenccedilas natildeo renovassem incessantemente o terreno a ser
explorado pelo cientista a fisiologia marcaria passo num terreno jaacute repisado ldquoSe
natildeo houvesse obstaacuteculos patoloacutegicos natildeo haveria tambeacutem fisiologia pois natildeo
haveria problemas fisioloacutegicos a resolverrdquo (NP 1990 p169) No entanto o
fisiologista se esquece que sua ciecircncia foi precedida por uma medicina cliacutenica e
114
por uma terapecircutica nem sempre tatildeo absurda como se costuma considerar (cf
NP 1990 p75)
Assim pelo vieacutes canguilhemiano se a medicina existe eacute porque os homens
se sentem doentes e natildeo porque haacute meacutedicos que dizem a eles que estatildeo com tal
ou qual enfermidade Ou seja a doenccedila se apresenta primeiro ao doente como
sensaccedilatildeo subjetiva de uma restriccedilatildeo normativa para somente entatildeo depois
apresentar-se ao meacutedico e depois dele ao patologista O patoloacutegico natildeo se define
por meio de uma ciecircncia das doenccedilas mas atraveacutes de uma experiecircncia concreta
qualificada como negativa por aquele que a vivencia Eacute portanto no plano da vida
concreta que a polaridade bioloacutegica estabelece a diferenccedila entre a sauacutede e a
doenccedila e natildeo no plano da ciecircncia abstrata o que faz com que natildeo seja possiacutevel
falarmos com absoluta correccedilatildeo loacutegica de uma patologia objetiva (cf NP 1990
p189)89
Neste contexto se Canguilhem traz o pensamento de Leriche eacute porque
apesar dele afirmar tal como Comte e Claude Bernard a continuidade dos
estados fisioloacutegico e patoloacutegico quando trata do problema da dor ele natildeo a
apresenta como uma modificaccedilatildeo quantitativa do fenocircmeno normal mas como um
estado autenticamente anormal Para ele a dor-doenccedila estaria em noacutes como um
acidente que evoluiria ao contraacuterio das leis da sensaccedilatildeo normal Tudo nela seria
anormal rebelde agrave lei (cf NP 1990 p71) Desta forma o que interessa a
89
Na perspectiva de Gayon (2006) aqui podem ser levantadas algumas problematizaccedilotildees A primeira delas eacute relativa ao estatuto epistemoloacutegico da medicina dependente da definiccedilatildeo do conceito de doenccedila e a segunda eacute atinente ao sentido que tem hoje considerar a medicina uma arte tendo em vista sua cientifizaccedilatildeo abertamente proclamada Isso porque segundo o comentador o esforccedilo canguilhemiano se direciona para mostrar primeiramente a independecircncia da biologia em relaccedilatildeo agraves ciecircncias da mateacuteria (fiacutesico-quiacutemica) valorizando com isso o pensamento vitalista Mas mais do que isso Canguilhem procura mostrar a independecircncia da medicina em relaccedilatildeo agrave biologia considerando a dimensatildeo axioloacutegica da doenccedila seu valor vital negativo para aquele que adoece No entanto fundar o normal e o patoloacutegico sobre a normatividade proacutepria da vida implica dizer que a qualificaccedilatildeo da doenccedila implica somente um julgamento de valor Ou seja na medida em que Canguilhem realiza uma abordagem axioloacutegica da doenccedila isto eacute apresenta a insuficiecircncia da anatomofisiologia para a definiccedilatildeo do patoloacutegico ele pode com isso ser acusado de um certo ldquosubjetivismordquo jaacute que por este criteacuterio a diagnose da doenccedila dependeria apenas do ponto de vista da pessoa doente Segundo Gayon este eacute tambeacutem precisamente o teor da criacutetica de Fagot-Largeault e Engelhardt ao enfoque qualitativo da doenccedila apresentado por Canguilhem Cf GAYON J ldquoEpistemologia da medicinardquo In RUSSO M CAPONI S (Org) Estudos de filosofia e histoacuteria das ciecircncias biomeacutedicas Satildeo Paulo Discurso Editorial 2006
115
Canguilhem nesta teoria que considera original e profunda eacute que a dor como
sensaccedilatildeo de anormalidade nos faz sair do plano da ciecircncia abstrata para entrar
na esfera da consciecircncia concreta Atraveacutes dela obtemos a coincidecircncia total da
doenccedila e do doente jaacute a dor necessariamente pede algueacutem que sofre
Por isso Canguilhem apesar de concordar com Leriche quanto agrave
coincidecircncia total do doente e da doenccedila no fenocircmeno da dor discorda dele por
propor a desconsideraccedilatildeo da opiniatildeo do doente em relaccedilatildeo agrave proacutepria doenccedila
Com efeito tendo em vista a insidiosidade de algumas delas Leriche para quem
ldquoa sauacutede e o silecircncio na vida dos oacutergatildeosrdquo entende que nem sempre este silecircncio
equivale agrave ausecircncia de lesotildees ou perturbaccedilotildees funcionais Ele acredita que se
uma autoacutepsia revelasse um cacircncer de rim ignorado pelo seu portador
identificariacuteamos uma doenccedila apesar de natildeo podermos atribuiacute-la agrave pessoa alguma
De outro modo Canguilhem acredita que para haver doenccedila ela deve aparecer
na consciecircncia do indiviacuteduo concreto
ldquoOra achamos que natildeo haacute nada na ciecircncia que antes natildeo tenha aparecido na consciecircncia e que especialmente no caso que nos interessa eacute o ponto de vista do doente que no fundo eacute verdadeirordquo (NP 1990 p68)
Apostando numa patologia subjetiva na qual se conjugam doenccedila e
consciecircncia da doenccedila90 Canguilhem acredita que mesmo no caso de doenccedilas
insidiosas como eacute o caso de algumas degenerescecircncias infecccedilotildees e infestaccedilotildees
ainda que o doente se engane quanto agrave localizaccedilatildeo e ao iniacutecio da enfermidade eacute
apenas ele quem informa ao meacutedico o momento em que uma norma passou a ser
restritiva pois eacute ele que sofre o impacto da doenccedila no exerciacutecio de suas
atividades cotidianas que sente a diferenccedila existente entre sua vida atual e a sua
vida passada Portanto natildeo eacute o fisiologista em laboratoacuterio quem vai definir o que
eacute normal e o que eacute patoloacutegico mas o meacutedico cliacutenico em acordo com seus
90
De fato Canguilhem entra em algumas aporias quando de sua discussatildeo sobre a necessidade da coincidecircncia do doente e da doenccedila para a caracterizaccedilatildeo do patoloacutegico Percebemos isso quando ao identificar a doenccedila ao apelo pateacutetico do doente em nota de rodapeacute exclui o caso das doenccedilas mentais pois nelas o desconhecimento da doenccedila por parte do doente constitui um aspecto essencial da proacutepria doenccedila (cf NP 1990 p186)
116
clientes quem vai dizer onde termina a sauacutede e onde comeccedila a doenccedila segundo
normas e valores individuais
Apesar disso de modo equiacutevoco o meacutedico toma da fisiologia um
determinado conceito de patoloacutegico derivado de uma concepccedilatildeo de normal de
caraacuteter teoacuterico e meacutetrico se esquecendo que quem ofereceu ao fisiologista a
qualificaccedilatildeo de sauacutede e doenccedila a determinados comportamentos foi ele mesmo a
partir da consideraccedilatildeo do ponto de vista do doente
ldquoo meacutedico geralmente tira a norma de seu conhecimento da fisiologia dita ciecircncia do homem normal de sua experiecircncia vivida das funccedilotildees orgacircnicas e da representaccedilatildeo comum da norma num meio social em dado momento Das trecircs autoridades a que predomina eacute de longe a fisiologiardquo (NP 1990 p94)
De igual modo o fisiologista se esquece que foi a experiecircncia negativa da
doenccedila a anguacutestia vivida por um indiviacuteduo concreto que recorreu agrave medicina o
que suscitou o estudo do patoloacutegico Na mesma esteira o meacutedico
desconsiderando a qualificaccedilatildeo negativa que o doente atribui agraves experiecircncias
vividas opta por orientar sua praacuteticas por uma concepccedilatildeo de doenccedila previamente
determinada pela fisiologia A consequecircncia disso eacute que ele orientado por uma
ciecircncia do homem normal passa a tomar para si o conceito cientiacutefico-experimental
e natildeo o axioloacutegico ou experiencial da sauacutede e da doenccedila separando a doenccedila do
doente e considerando normais as constantes que designam uma caracteriacutestica
meacutedia e mais frequente julgadas ideais num sentido descritivo e puramente
teoacuterico e natildeo no sentido terapecircutico que eacute um sentido normativo
O meacutedico ignorando a ideia de que o que daacute sentido agrave sua arte eacute a indicaccedilatildeo
de uma terapecircutica que leve agrave cura entendida como a restauraccedilatildeo da capacidade
da vida de criar novas normas e de resistir aos valores vitais negativos pondo
termo agrave anguacutestia de um indiviacuteduo concreto ele passa a acreditar que ela eacute um
retorno a uma norma da qual o organismo havia se afastado norma esta
considerada positiva natildeo pelo doente mas pela ciecircncia Com isso se esquece
que mais do que a fisiologia eacute o doente quem tem maior autoridade para indicar o
117
momento no qual uma norma passa a ser restritiva e volta a ser propulsiva (cf NP
1990 p94)
Por isso Canguilhem natildeo acredita que a medicina deva se moldar
completamente agrave fisiologia e se orientar por uma ciecircncia do patoloacutegico A cliacutenica
natildeo eacute uma ciecircncia e jamais o seraacute mesmo que ela faccedila uso de meios com eficaacutecia
cientiacutefica garantida Isso porque ela eacute inseparaacutevel da terapecircutica que tem por fim
algo que escapa agrave jurisdiccedilatildeo do saber objetivo que eacute a satisfaccedilatildeo subjetiva de que
uma norma foi instaurada Daiacute sua ideia de que realizar um diagnoacutestico apenas
atraveacutes de meacutetodos experimentais sem nenhum interrogatoacuterio ou investigaccedilatildeo
cliacutenica eacute fazer do indiviacuteduo uma viacutetima de uma grave confusatildeo do ponto de vista
filosoacutefico e perigosa do ponto de vista terapecircutico (cf NP 1990 p185)
Com efeito se a teacutecnica meacutedica eacute originada de um pathos consciente se eacute a
proacutepria vida ao estabelecer uma diferenccedila entre seus comportamentos
propulsivos e repulsivos que daacute origem agrave medicina entatildeo natildeo eacute a ciecircncia que
introduz na consciecircncia humana as categorias de sauacutede e de doenccedila isto eacute natildeo eacute
a atividade cientiacutefica do fisiologista que determina o que eacute normal ou patoloacutegico no
homem mas o doente por intermeacutedio da cliacutenica que fala em que ponto termina a
sauacutede e comeccedila a doenccedila que indica o momento em que deixou de se sentir em
posiccedilatildeo normativa jaacute que a doenccedila natildeo eacute originalmente um fato cientiacutefico e
objetivo definido em laboratoacuterio mas uma categoria biologicamente teacutecnica e
subjetiva por ser um comportamento de valor negativo para um ser vivo individual
concreto em atividade polarizada com seu meio (cf NP 1990 p182)
Em uacuteltima anaacutelise para o meacutedico deixar de escutar o doente eacute estar surdo
aos apelos da vida
ldquoNatildeo se ditam normas agrave vida cientificamente Mas a vida eacute essa atividade polarizada de conflito com o meio e que se sente ou natildeo normal conforme se sinta ou natildeo em posiccedilatildeo normativa O meacutedico optou pela vida A ciecircncia lhe eacute uacutetil no cumprimento dos deveres decorrentes dessa escolhardquo (NP 1990 p186)
Considerando que a atividade cientiacutefica moderna eacute ideologicamente
orientada pelo anseio de domiacutenio da natureza notamos que Canguilhem acredita
118
que a medicina a partir da adoccedilatildeo de paracircmetros que impotildeem agrave vida atraveacutes dos
indiviacuteduos uma norma considerada ideal definida por meios cientiacutefico-
experimentais acaba por perder de vista seu sentido original que eacute o de se
colocar a serviccedilo das normas da vida Sendo assim se partimos da hipoacutetese de
que ao criticar a tese de que o patoloacutegico seria apenas uma modificaccedilatildeo
quantitativa do estado normal sustentaacuteculo de uma medicina como ciecircncia das
doenccedilas ele queria contestar a subserviecircncia da teacutecnica em relaccedilatildeo agrave ciecircncia
vemos por fim que sua defesa de uma medicina como arte da cura enraizada na
vida acaba por culminar num questionamento sobre a funccedilatildeo social da medicina
tendo em vista a ideologia de domiacutenio ou controle que a orienta importada da
atividade cientiacutefica
Em vista disso eacute do problema da normalizaccedilatildeo operada pelas praacuteticas
meacutedica e psicoloacutegica do que em seguida iremos tratar
119
CAPIacuteTULO III
Medicina psicologia e normalizaccedilatildeo
Nada pode impedir a primavera do pensamento
pois a vida sempre reclama liberdade
Nos capiacutetulos anteriores vimos que para Canguilhem a medicina eacute uma
arte enraizada na vida e a normalidade e a patologia satildeo comportamentos vitais
qualitativamente diferentes associados agrave capacidade de o vivente criar e superar
suas proacuteprias normas isto eacute de realizar ajustes normativos Dada a multiplicidade
normativa da ordem vital atestada pela existecircncia das monstruosidades natildeo
haveria como identificar um tipo bioloacutegico saudaacutevel ideal mas diferentes formas
de vida saudaacuteveis se capazes de se adaptar ativamente a seu meio ou seja
transformaacute-lo a partir de seu proacuteprio centro de referecircncia
Vimos tambeacutem que de acordo com a perspectiva canguilhemiana o sentido
original da medicina se perdeu quando ela deixou de ser uma arte da cura para se
transformar em uma ciecircncia das doenccedilas pautada nas ideias de vida como um
sistema de leis e na definiccedilatildeo cientiacutefico-experimental e natildeo axioloacutegico-experiencial
do normal e do patoloacutegico Orientada pela ideologia de controle da natureza
proacutepria da ciecircncia moderna a medicina perdeu o respeito pela vida e passou a
ditar normas a ela ficando surda a seus apelos
O que pretendemos neste capiacutetulo mostrar eacute que Canguilhem ainda
procurou deixar claro que a uacuteltima consequecircncia deste processo foi que a
medicina ao deixar de ser uma extensatildeo da atividade vital se transformou em um
dispositivo social91 de normalizaccedilatildeo dos indiviacuteduos na medida em que o tipo
91
Destacamos que Canguilhem ao tratar das instituiccedilotildees de sauacutede seus discursos e praacuteticas manteacutem o sentido da noccedilatildeo de dispositivo tal como apresentada por Foucault como uma integraccedilatildeo das relaccedilotildees de poder e de ordens discursivas materializada em instituiccedilotildees em suas decisotildees juriacutedicas sanitaacuterias etc Em entrevista a Alain Grosrichard ao ser questionado sobre o sentido primeiro e funccedilatildeo metodoloacutegica deste termo Foucault responde ldquoAtraveacutes deste termo tento demarcar em primeiro lugar um conjunto decididamente heterogecircneo que engloba discursos instituiccedilotildees organizaccedilotildees arquitetocircnicas decisotildees regulamentares leis medidas administrativas enunciados cientiacuteficos proposiccedilotildees filosoacuteficas morais filantroacutepicas Em suma o dito e o natildeo dito satildeo os elementos do dispositivo O dispositivo eacute a rede que se pode tecer entre estes elementosrdquo
120
anormal assim considerado pela ciecircncia bioloacutegica por sua alteraccedilatildeo
anatomofisioloacutegica ou geneacutetica e sua inadaptaccedilatildeo ao meio atraveacutes do discurso
meacutedico psiquiaacutetrico psicoloacutegico e psicossocioloacutegico orientado pela ideologia de
controle social passou a encontrar um anaacutelogo no tipo social anormal igualmente
inadaptado ao meio que precisa ter seu comportamento corrigido para garantia
da manutenccedilatildeo da ordem sociopoliacutetica instituiacuteda
Tal como Foucault ele acredita que assim como o monstro fiacutesico
caracterizado por uma alteraccedilatildeo anatomofisioloacutegica ou geneacutetica coloca em
questatildeo o legalismo da natureza o monstro mental ou comportamental coloca em
questatildeo o legalismo social92 Ou melhor da mesma forma que o desviante ou
anocircmalo bioloacutegico mostra que haacute outras ordens vitais possiacuteveis o desviante ou
inadaptado social mostra que haacute outros comportamentos sociais possiacuteveis e no
limite outras ordens poliacuteticas desejaacuteveis Daiacute sua periculosidade e a necessidade
de sua identificaccedilatildeo enquadramento na categoria de doente mental de seu
sequestro e encarceramento institucional e de sua normalizaccedilatildeo a ser obtida
atraveacutes das praacuteticas meacutedico-psiquiaacutetricas e psicoloacutegicas93
(FOUCAULT 2000 p 244) Cf FOUCAULT M Microfiacutesica do poder 19ordf ed Rio de janeiro Graal 2000
92 Sobre este duplo registro de infraccedilatildeo normativa representado pela monstruosidade em Os
anormais Foucault trata dos monstros e sua contribuiccedilatildeo para a construccedilatildeo da figura do anormal no seacuteculo XIX periacuteodo de criaccedilatildeo de inuacutemeras instituiccedilotildees especiacuteficas de cura e correccedilatildeo das anormalidades Ao realizar sua arqueologia da anomalia ele identifica como figuras constitutivas do anormal os monstros naturais violadores das leis da natureza e os morais violadores das leis da sociedade ou infratores do pacto social como os monstros poliacuteticos Aleacutem disso esclarece que seraacute a relaccedilatildeo direta da monstruosidade com a criminalidade o que iraacute justificar a emergecircncia e atuaccedilatildeo de um poder meacutedico-juriacutedico soacute se puniraacute em nome da lei os que seratildeo julgados criminosos poreacutem avaliados apreciados medidos em termos de normal e patoloacutegico (cf Foucault 2001 p114) Assim a psiquiatria nasce como um ramo especializado da higiene puacuteblica se configurando como uma ciecircncia e teacutecnica de correccedilatildeo dos que colocam em perigo a seguranccedila da sociedade ldquoFoi como precauccedilatildeo social foi como higiene do corpo social inteiro que a psiquiatria se institucionalizou (nunca esquecer que a primeira revista de certo modo especializada em psiquiatria na Franccedila foram os Annales drsquohygiegravene publique)rdquo (Foucault 2001 p148) A partir de entatildeo nota inuacutemeros monstrinhos passaram a povoar a psiquiatria e a psiquiatra legal do seacuteculo XIX e o perigo social a ser codificado em seu interior como doenccedila Cf FOUCAULT M Os Anormais [curso no Collegravege de France (1974-1975)] (trad Eduardo Brandatildeo) Satildeo Paulo Martins Fontes 2001 (Coleccedilatildeo Toacutepicos)
93 Macherey (2009) esclarece que Foucault em seus estudos sobre a loucura a penalidade e a
sexualidade se empenha em mostrar como a monstruosidade dos seres reputados como infames se integra agrave dinacircmica do que ele nomeia de biopoder Para Canguilhem esta questatildeo se remete agrave constituiccedilatildeo de um poder histoacuterico-social normativo que transforma as diferentes formas de
121
Destarte se em seu Ensaio de 43 Canguilhem se propocircs a pensar o
conceito de normal e de patoloacutegico fundamentalmente a partir da relaccedilatildeo do
organismo com seu meio bioloacutegico em suas Novas Reflexotildees referentes ao
normal e ao patoloacutegico ele procura investigar o sentido dos conceitos de norma e
de normal nas ciecircncias humanas a partir de uma investigaccedilatildeo sobre a relaccedilatildeo dos
indiviacuteduos em seu meio social94 Agora a partir do estudo das normas sociais ele
coloca em cena o problema da normalizaccedilatildeo e sua associaccedilatildeo aos processos de
racionalizaccedilatildeo e planificaccedilatildeo explicitando sua relaccedilatildeo com os interesses poliacuteticos
e econocircmicos da sociedade capitalista industrial
Ao trazer a problemaacutetica da identificaccedilatildeo de tipos sociais normais e
anormais e da realizaccedilatildeo do diagnoacutestico da sauacutede e da doenccedila a partir dos
criteacuterios de adaptaccedilatildeo e inadaptaccedilatildeo social utilizados pela psicologia do
comportamento para realizar sua criacutetica Canguilhem se aproxima dos filoacutesofos da
potecircncia Espinosa e Nietzsche e da perspectiva socioloacutegica marxista de Georges
Friedmann Tal aproximaccedilatildeo se evidencia nos escritos Meio e normas do homem
no trabalho Qursquoest que la Psychologie e Le cerveau et la penseacutee nos quais ele
mostra como a psicologia behaviorista a partir de uma concepccedilatildeo de indiviacuteduo
condicionaacutevel num meio mecanizado e de suas teacutecnicas de identificaccedilatildeo dos
desviantes e de readaptaccedilatildeo por correccedilatildeo comportamental acabou por se
transformar numa poliacutecia dos anormais dos inadaptados sociais sobretudo para
o trabalho
Na trilha de Foucault tanto em suas Novas Reflexotildees quanto em seus
Escritos sobre a medicina Canguilhem apresenta o momento do nascimento da
medicina moderna e de quando ela se transformou em dispositivo de gestatildeo
sociopoliacutetica da vida cotidiana estruturado a partir do discurso higienista e das
existecircncia em objeto de anaacutelise classificaccedilatildeo e institucionalizaccedilatildeo a partir de criteacuterios exteriores a elas no contexto dos processos de normalizaccedilatildeo Cf MACHEREY P De Canguilhem agrave Foucault la force des normes Paris La Fabrique Eacuteditions 2009
94 Corroborando nossa anaacutelise Lecourt mostra que quando considera o indiviacuteduo inscrito no seu
meio bioloacutegico Canguilhem tem por referecircncia os pensamentos de Nietzsche Simondon Goldstein Uexkuumlll e Darwin mas ao tomaacute-lo como indiviacuteduo inscrito em um meio especificamente humano as referecircncias passam a ser Vidal de la Blanche e Foucault Cf LECOURT D La question de lrsquoindividu drsquoapregraves Georges Canguilhem In BADIOU A (et al) Georges Canguilhem Philosophe historien des sciences Actes du colloque (6 7 8 deacutecembre 1990) Op cit
122
praacuteticas preventivistas realizadas pelas instituiccedilotildees de sauacutede puacuteblica Com isso
alude agraves duas formas de biopoder e seus campos de exerciacutecio o corpo-maacutequina e
o corpo-espeacutecie isto eacute ao poder disciplinar baseado na chamada anatomopoliacutetica
do corpo humano e agrave biopoliacutetica entendida como a gestatildeo cientiacutefica da vida ao
niacutevel das populaccedilotildees com vistas a mostrar sua importacircncia para o
desenvolvimento e consolidaccedilatildeo da sociedade capitalista95
Diante deste cenaacuterio de exerciacutecio poliacutetico do biopoder pela classe
dominante da sociedade capitalista ele encontra a saiacuteda na liberaccedilatildeo da potecircncia
poliacutetica do corpo de reagir e transformar as regras opressivas do meio social que
querem se impor com a forccedila e a inquestionabilidade de uma lei natural Por fim
mostrando a relaccedilatildeo entre psicologia do comportamento normalizaccedilatildeo do
pensamento e controle das condutas sociais desviantes Canguilhem por uma via
explicitamente espinosana associa pensamento inventividade e potecircncia reativa
e normativa do corpo para mostrar que a maior prova de sauacutede eacute a reaccedilatildeo e a
resistecircncia agraves opressotildees sociais a reivindicaccedilatildeo do direito ao exerciacutecio da
liberdade de pensar e de agir no mundo
Sendo assim eacute a partir de outra concepccedilatildeo de indiviacuteduo como totalidade
corpomente e de sauacutede como exerciacutecio da potecircncia vital reativa e normativa que
Canguilhem acredita ser possiacutevel fazer frente agraves praacuteticas normalizadoras e
gestoras da vida individual e coletiva Ou seja eacute tendo em vista que o movimento
da vida natildeo tende agrave apatia agrave ineacutercia e agrave indiferenccedila que ele acredita que se a
cliacutenica natildeo quer normalizar mas produzir sauacutede ela deve se orientar pela
liberdade e resistecircncia proacuteprias agrave vida respeitando sua normatividade e abrindo
matildeo da ideologia de controle caracteriacutestica da ciecircncia moderna e das praacuteticas
dela derivadas
95
No curso Em defesa da sociedade ao tratar do biopoder Foucault esclarece que esses dois conjuntos de mecanismos o disciplinar dos corpos e o regulamentador das populaccedilotildees natildeo estatildeo no mesmo niacutevel mas se articulam um com o outro Isso porque a norma eacute o que pode tanto se aplicar a um corpo que se quer disciplinar quanto a uma populaccedilatildeo que se quer regulamentar E embora conclua que o recurso ao poder soberano de matar e ao biopoder chegou ao extremo na sociedade nazista a gestatildeo por parte do Estado da vida e da morte pode ser associada a todos os regimes marcados pelo racismo mesmo os de esquerda (cf FOUCAULT 2010 p213) Cf FOUCAULT M Em defesa da sociedade curso no Collegravege de France [1975-1976] (Trad Maria Ermantina Galvatildeo) Satildeo Paulo Editora WMF Martins Fontes 2010 (Coleccedilatildeo Michel Foucault)
123
Em suas Novas Reflexotildees referentes ao normal e ao patoloacutegico em
interlocuccedilatildeo com o pensamento de Foucault Canguilhem apresenta um estudo
sobre os conceitos de norma e de normal pela perspectiva das ciecircncias
humanas96 Agora procurando compreender o sentido das normas vitais a partir
do estudo das normas sociais ele trata do problema da normalizaccedilatildeo fenocircmeno
exclusivamente antropoloacutegico ou cultural em sua relaccedilatildeo com os processos de
racionalizaccedilatildeo e planificaccedilatildeo sociopoliacuteticas e econocircmicas97 Por uma perspectiva
96
Roudinesco (2007) nota que Canguilhem ao escrever suas Novas reflexotildees abordando o problema das normas sociais assim o fez em resposta a uma leitura que fizera do livro de Michel Foucault O Nascimento da cliacutenica Neste Foucault atribuiacutea uma origem histoacuterica agrave constituiccedilatildeo da medicina moderna e substituiacutea a concepccedilatildeo canguilhemiana de norma produzida pela vida por outra constituiacuteda pela ordem social e portadora de normalizaccedilatildeo Para a autora Canguilhem nas Novas reflexotildees retoma a noccedilatildeo foucaultiana de normatividade social natildeo para invalidar sua tese inicial mas para imprimir-lhe um rigor que provavelmente ela jamais teria alcanccedilado sem o desafio lanccedilado por Foucault Tambeacutem Macherey (2009) acredita ser possiacutevel aproximar as deacutemarches teoacutericas de Canguilhem Foucault porque ambos tecircm uma reflexatildeo filosoacutefica consagrada ao problema das normas realizada a partir de materiais tomados de empreacutestimo das ciecircncias bioloacutegicas e humanas O espiacuterito fundamental de suas pesquisas eacute a compreensatildeo do que eacute viver e viver em sociedade sob as normas A diferenccedila entre eles eacute a de que Canguilhem realiza sua criacutetica se engajando do lado da experiecircncia concreta do vivente abrindo uma perspectiva que pode ser chamada de fenomenoloacutegica jaacute que ancorada na capacidade do ser vivo em criar normas como expressatildeo de sua polaridade constitutiva enquanto o segundo substitui a normatividade essencial da vida por um nascimento histoacuterico das normas situado no desenvolvimento de um processo social e poliacutetico realizando assim uma arqueologia das normas meacutedicas Em vista disso se a experiecircncia da qual trata Canguilhem eacute a do vivente em Foucault a significaccedilatildeo da experiecircncia cliacutenica passa a ser dada atraveacutes de uma leitura histoacuterica da constituiccedilatildeo do olhar meacutedico Para Macherey eacute esta posiccedilatildeo de Foucault de alargar consideravelmente o terreno de funcionamento das normas o que faz com que Canguilhem se desloque nas Novas reflexotildees do vital ao social sem contudo abandonar sua perspectiva fenomenoloacutegica que eacute a de se engajar ao lado da ldquoexperiecircncia concreta do viventerdquo Cf ROUDINESCO E In Filoacutesofos na tormenta (Canguilhem Sartre Foucault Althusser Deleuze Derrida) Op cit MACHEREY P De Canguilhem agrave Foucault la force des normes Op cit
97 Le Blanc (2010a) esclarece que nas Novas reflexotildees aparece uma nova figura da norma a
normalizaccedilatildeo Seu objeto agora eacute visto sob um novo ponto de vista Enquanto que no Ensaio Canguilhem se volta ao estudo do indiviacuteduo bioloacutegico e apresenta a normatividade enraizada na vida agora seu interesse se volta agrave invenccedilatildeo do sujeito entre as normas vitais e sociais e agrave gecircnese social dos processos de normalizaccedilatildeo Ele mostra que diferentemente da normatividade que nasce espontaneamente da vida a normalizaccedilatildeo emerge do conflito e do arbitraacuterio social e estaacute ligada aos processos de racionalizaccedilatildeo da sociedade sendo possiacutevel distinguir os trecircs momentos de sua gecircnese intenccedilatildeo normativa decisatildeo normativa instituidora de regras regulamentos padrotildees e modelos e seu uso normalizador manifesto na correccedilatildeo e na vigilacircncia Portanto a normalizaccedilatildeo aparece como tentativa de racionalizaccedilatildeo do social como prova reguladora axioloacutegica e disciplinar Ela vale por sua exterioridade arbitrariedade e transcendecircncia enquanto a normatividade vital se caracteriza pelo contraacuterio pela interiorizaccedilatildeo dos valores sua necessidade e sua imanecircncia agrave vida (cf LE BLANC 2010a p 86) Cf LE BLANC G Canguilhem et les normes Op cit
124
histoacuterica ele procura mostrar quando devido aos interesses de determinada
sociedade a burguesa ou cientiacutefico-industrial o processo de normalizaccedilatildeo iniciado
na definiccedilatildeo das normas gramaticais acaba por se estender agraves normas
morfoloacutegicas dos homens para fins de defesa nacional passando pela imposiccedilatildeo
de normas industriais e higiecircnicas de modo a modificar o modo de produccedilatildeo no
trabalho e as formas de conduccedilatildeo da vida cotidiana das populaccedilotildees operaacuterias
Partindo de um estudo etimoloacutegico da palavra norma Canguilhem lembra
que ela eacute uma palavra latina de origem matemaacutetica que quer dizer esquadro e que
normalis significa perpendicular Tambeacutem nota que ela suporta o sentido inicial do
termo ortos presente em palavras como ortografia e ortopedia (cf NP 1990
p216) Isso faz com que uma norma sirva para retificar pocircr de peacute endireitar Por
essa perspectiva o que caracteriza um objeto ou um fato dito normal eacute poder ser
tomado como ponto de referecircncia em relaccedilatildeo a objetos ou fatos ainda agrave espera de
serem classificados como tal Portanto uma norma tira seu sentido sua funccedilatildeo e
seu valor do fato de existir fora dela algo que natildeo corresponde agrave exigecircncia que
ela impotildee
ldquolsquoNormarrsquo normalizar eacute impor uma exigecircncia a uma existecircncia a um dado cuja variedade e disparidade se apresentam em relaccedilatildeo agrave exigecircncia como um indeterminado hostil mais ainda do que estranhordquo (NP 1990 p211)
Assim o sentido da normalizaccedilatildeo eacute partir de uma norma externa para
regular os demais objetos que fora dela se encontram Como exemplo a
normalizaccedilatildeo teacutecnica consiste na escolha e na determinaccedilatildeo da mateacuteria da forma
e das dimensotildees de um objeto cujas caracteriacutesticas passam a ser referencial
obrigatoacuterio para a fabricaccedilatildeo dos demais como forma de manter a singularidade
das proporccedilotildees e como uma soluccedilatildeo para evitar a confusatildeo de esforccedilos a
dificuldade e a demora da substituiccedilatildeo de peccedilas e a despesa inuacutetil (cf NP 1990
p 217)
Apoacutes apresentar o terreno de origem do sentido dos termos norma e normal
posteriormente trazidos para uma grande variedade de outros campos
Canguilhem afirma que a gramaacutetica oferece uma mateacuteria inestimaacutevel para o
125
estudo das normas pois ela foi o primeiro alvo dos processos de normalizaccedilatildeo
Identificando o nascimento da gramaacutetica no seacuteculo XVII ele diz que neste periacuteodo
a norma gramatical regulava a liacutengua usada pelos burgueses parisienses cultos e
se remetia a uma norma poliacutetica a centralizaccedilatildeo administrativa em proveito do
poder real Ainda esclarece que segundo o linguista Pierre Guiraud a burguesia
como classe ascendente apenas tomou posse da liacutengua quando se apoderou dos
meios de produccedilatildeo e conquistou definitivamente o poder poliacutetico no processo
iniciado com a Revoluccedilatildeo Francesa
ldquoEntre 1759 data do aparecimento da palavra normal e 1834 data de aparecimento da palavra normalizado uma classe normativa conquistou o poder de identificar a funccedilatildeo das normas sociais com o uso que ela proacutepria fazia das normas cujo conteuacutedo determinava Bom exemplo de ilusatildeo ideoloacutegicardquo (NP 1990 p218)
Sendo fato que a liacutengua ofereceu agrave experiecircncia de normalizaccedilatildeo seu primeiro
campo de atuaccedilatildeo mais tarde a exigecircncia de normalizaccedilatildeo iniciada na
gramaacutetica passou a dizer respeito agrave sauacutede da populaccedilatildeo considerada
estatisticamente Normal seraacute o termo pelo qual os teoacutericos reformistas do seacuteculo
XIX vatildeo designar o protoacutetipo escolar e o estado de sauacutede orgacircnica no contexto de
reforma das instituiccedilotildees pedagoacutegica e sanitaacuteria efetivadas como expressatildeo de
exigecircncias de ordem mecacircnica energeacutetica comercial militar e poliacutetica proacuteprias a
este periacuteodo
ldquoTanto a reforma hospitalar como a reforma pedagoacutegica exprimem uma exigecircncia de racionalizaccedilatildeo que se manifesta tambeacutem na poliacutetica como se manifesta na economia sob a influecircncia de um maquinismo industrial nascente que levaraacute enfim ao que se chamou desde entatildeo normalizaccedilatildeordquo (NP 1990 p 209-210)
Tambeacutem na Ideologia e racionalidade nas ciecircncias da vida ao traccedilar um
esboccedilo histoacuterico-epistemoloacutegico da medicina no seacuteculo XIX Canguilhem diz que
uma nova situaccedilatildeo se estabeleceu na Europa neste periacuteodo e que um dos
motivos que deflagrou tal mudanccedila foi um acontecimento simultaneamente
126
institucional e cultural chamado por Foucault de nascimento da cliacutenica98 que
instituiu uma reforma hospitalar em Viena e em Paris e generalizou praacuteticas de
percussatildeo e auscultaccedilatildeo mediata com referecircncia sistemaacutetica da observaccedilatildeo dos
sintomas aos dados da anatomopatologia (cf I 1981 p53-54) Aleacutem disso no
acircmbito da sauacutede preventiva ele nota que a efetividade das praacuteticas de vacinaccedilatildeo
alimentou ainda mais o desejo de invenccedilatildeo de novos tratamentos capazes de
transformar massivamente as condiccedilotildees fiacutesicas e morais da vida humana (cf I
1981 p43)
Assim como Foucault a partir de uma investigaccedilatildeo histoacuterica e da
consideraccedilatildeo do liame entre poliacutetica e medicina Canguilhem procura esclarecer
que neste periacuteodo a definiccedilatildeo de normas higiecircnicas supotildee o interesse que se
dava do ponto de vista poliacutetico agrave sauacutede da populaccedilatildeo agrave salubridade das
condiccedilotildees de vida e agrave extensatildeo uniforme dos tratamentos preventivos e curativos
com vistas agrave produccedilatildeo econocircmica e agrave seguranccedila do Estado Ou seja foi a partir
de um interesse sociopoliacutetico e econocircmico na sauacutede das populaccedilotildees que a
medicina se viu diante de uma necessidade de reforma a ser operada atraveacutes de
uma racionalizaccedilatildeo de seus tratamentos preventivos e curativos e de planificaccedilatildeo
de suas estrateacutegias visando abarcar o conjunto da sociedade
Nos Escritos sobre a medicina ainda na trilha foucaultiana Canguilhem se
propotildee a pensar a sauacutede a partir de sua apropriaccedilatildeo pelos poderes sociomeacutedicos
explicitando o componente de natureza social e portanto poliacutetico nas teorias e
praacuteticas meacutedicas Assim como em suas Novas reflexotildees ele faz referecircncia agrave obra
O nascimento da cliacutenica para novamente apontar quando a medicina se tornou
um dispositivo de gestatildeo sociopoliacutetica meacutedica da vida cotidiana Ele nota que foi a
partir do seacuteculo XIX que as sociedades de tipo industrial passaram a gerir a sauacutede
98
Segundo Foucault a medicina moderna fixa sua proacutepria data de nascimento nos uacuteltimos anos do seacuteculo XVIII Neste periacuteodo houve natildeo apenas uma mudanccedila na experiecircncia meacutedica mas a adoccedilatildeo de uma nova linguagem a da ciecircncia positiva permitindo que finalmente fosse possiacutevel pronunciar sobre o indiviacuteduo um discurso de estrutura cientiacutefica Daiacute decorre que a medicina como arte entra pouco a pouco em regressatildeo diante da medicina dos oacutergatildeos da cliacutenica inteiramente ordenada pela anatomia patoloacutegica Ou seja para ele o grande corte da histoacuteria da medicina ocidental data precisamente do momento em que a experiecircncia cliacutenica torna-se o olhar anatomocliacutenico Cf FOUCAULT M O nascimento da cliacutenica Rio de Janeiro Forense Universitaacuteria 1977
127
das populaccedilotildees operaacuterias por serem o componente humano das forccedilas
produtivas A vigilacircncia e a melhoria das condiccedilotildees de vida passaram a ser objeto
de regulamentaccedilatildeo e medidas decididas pelo poder poliacutetico e operacionalizadas
pelos higienistas Surgem neste periacuteodo na Inglaterra e tambeacutem na Franccedila
numerosos tratados de higiene industrial e enquetes sobre a sauacutede dos operaacuterios
nos diferentes ramos da induacutestria como o Tableau de lrsquoeacutetat physique et moral des
ouvriers employeacutes dans les fabriques de coton de laine et de soie de Villermeacute
(1840)
Canguilhem diz ainda que neste mesmo momento histoacuterico havendo natildeo
soacute uma preocupaccedilatildeo por parte dos higienistas com a incidecircncia patogecircnica nas
aglomeraccedilotildees urbanas eacute proposta uma expansatildeo da gestatildeo sociopoliacutetica meacutedica
do meio urbano ao rural Tomando o exemplo da Franccedila de modo a mostrar a
extensatildeo do controle administrativo da sauacutede das populaccedilotildees ele cita a existecircncia
de um corpo de oficiais de sauacutede vigias e conselheiros em mateacuteria de sauacutede isto
eacute de submeacutedicos dos quais se exigia um conhecimento menos elaborado que o
dos doutores capacitados para atuar nos campos onde a vida era considerada
menos sofisticada do que nas cidades (cf EM 2005 p47)
Aleacutem disso esclarece que ao lado progressos da higiene puacuteblica e da
medicina preventiva estabelecida a partir da substituiccedilatildeo do ideal pessoal de cura
das doenccedilas por um ideal social de prevenccedilatildeo das doenccedilas e concretizada pelas
praacuteticas de vacinaccedilatildeo surge uma nova forma de gestatildeo da sauacutede da populaccedilatildeo jaacute
adoecida a organizaccedilatildeo hospitalar O hospital passa a ser natildeo mais o locus de
amparo para invaacutelidos e moribundos mas o local de exerciacutecio de praacuteticas
curativas dotadas de cientificidade Exemplo desta transiccedilatildeo foi a substituiccedilatildeo
gradativa do hospiacutecio como asilo de acolhimento de doentes abandonados pelo
hospital psiquiaacutetrico espaccedilo de anaacutelise e vigilacircncia de doentes catalogados
construiacutedo e governado como uma ldquomaacutequina de curarrdquo (cf EM 2005 p28)99
99
Na Histoacuteria da Loucura Foucault apresenta o momento histoacuterico de apropriaccedilatildeo meacutedico-juriacutedica da experiecircncia da loucura e sua transformaccedilatildeo em doenccedila mental associada agrave ideia de periculosidade social e a transformaccedilatildeo do Hospital em asilo cientiacutefico espaccedilo de vigilacircncia e puniccedilatildeo locus de exerciacutecio do poder psiquiaacutetrico Ao tratar da praacutetica do internamento ele explica que no interior do asilo era essencial que a razatildeo fosse significada por tipos sociais cristalizados e
128
Com efeito Canguilhem apresenta as sociedades industriais como
sociedades de populaccedilatildeo predominantemente urbana nas quais a concentraccedilatildeo
demograacutefica e as condiccedilotildees de trabalho dos operaacuterios contribuiacuteram largamente
para o desenvolvimento de doenccedilas infecciosas e nas quais o hospital se
consolidou como lugar de tratamento generalizado no anonimato Ainda ele
esclarece que as descobertas cientiacuteficas de Koch Pasteur e seus alunos sobre as
formas de contaacutegio microbiano ou viral o desenvolvimento das teacutecnicas de
assepsia dos soros e das vacinas forneceram agrave higiene puacuteblica seus meios de
eficaacutecia100 Sobre a medicina curativa menciona que foram os resultados das
pesquisas sobre os antibioacuteticos desenvolvidas por Paul Ehrlich nos primeiros
anos do seacuteculo XX que revolucionaram a terapecircutica transformando o conceito
de cura em esperanccedila de vida (cf EM 2005 p55-56)
Aqui ao traccedilar um breve panorama da histoacuteria da medicina no XIX
Canguilhem intenciona criticar a Higiene em sua ambiccedilatildeo sociopoliacutetica-meacutedica de
regulamentar a vida dos indiviacuteduos e em seu discurso de que o corpo eacute mero
produto do seu meio caracteriacutestico
ldquoO corpo eacute um dado uma vez que eacute genoacutetipo efeito a um soacute tempo necessaacuterio e singular dos componentes de um patrimocircnio geneacutetico () O corpo eacute um produto visto
que a cura do louco significava sua estabilizaccedilatildeo num tipo moralmente reconhecido e aprovado Dado isso o que chama de praacutetica psiquiaacutetrica natildeo eacute mais do que ldquouma certa taacutetica moral contemporacircnea do fim do seacuteculo XVIII conservada nos mitos da vida asilar e recoberta pelos mitos do positivismordquo (FOUCAULT 2004 p501) Em Mort de lrsquohomme ou eacutepuisement du cogito Canguilhem esclarece que foi Descartes quem Foucault escolheu para representar a ideia de loucura na idade claacutessica por ser ele um dos artesatildeos da particcedilatildeo das normas que teve por efeito confinar a loucura no espaccedilo asilar onde os psicopatologistas do seacuteculo XIX a encontraram como objeto de saber Cf FOUCAULT M Histoacuteria da Loucura na Idade Claacutessica (Trad Joseacute Teixeira Coelho Netto) Satildeo Paulo Perspectiva 7ordf ediccedilatildeo 2004 CANGUILHEM G Mort de lrsquohomme ou eacutepuisement du cogito Critique Tome XXIV n
o 242 juillet 1967
100 Em seus Estudos de Histoacuteria e de Filosofia das Ciecircncias quando trata do estatuto
epistemoloacutegico da medicina Canguilhem diz que uma renovaccedilatildeo epistemoloacutegica profunda na medicina se deu pelos resultados das pesquisas de Pasteur Koch e seus alunos Quiacutemico sem formaccedilatildeo meacutedica Pasteur inaugura uma medicina livre do antropocentrismo tradicional da cliacutenica humana Expondo o papel das bacteacuterias e dos viacuterus na produccedilatildeo das doenccedilas ele tambeacutem impocircs agrave medicina uma mudanccedila em seus lugares de exerciacutecio Se tratar com vistas agrave curar se fazia em casa ou no hospital agora vacinar para prevenir iraacute se fazer no dispensaacuterio no quartel na escola ldquoO objeto da revoluccedilatildeo meacutedica eacute doravante menos a doenccedila do que a sauacutede Donde o desenvolvimento de uma disciplina meacutedica apreciada desde o fim do seacuteculo XVIII na Inglaterra assim como na Franccedila a higienerdquo (E 2012 p463)
129
que sua atividade de inserccedilatildeo em um meio caracteriacutestico seu modo de vida escolhido ou imposto esporte ou trabalho contribui para dar forma seu fenoacutetipo ou seja para modificar sua estrutura morfoloacutegica e por conseguinte para singularizar suas capacidades Eacute neste ponto que um certo discurso [o da Higiene] encontra ocasiatildeo e justificativardquo (EM 2005 p42)
Mas tambeacutem mostrar que foi no uacuteltimo quarto deste seacuteculo que a concepccedilatildeo de
sauacutede passou a ser atrelada agraves funccedilotildees de adaptaccedilatildeo ao meio ambiente atraveacutes
do entendimento do organismo como um sistema aberto
Ao tratar desta questatildeo ele cita a teoria dos meios esboccedilada por Comte e
desenvolvida pelos meacutedicos positivistas da Sociedade de Biologia contemporacircnea
da constituiccedilatildeo da fisiologia como ciecircncia (cf EM 2005 p54) Alertando sobre o
quanto a associaccedilatildeo adaptaccedilatildeo e sauacutede pode ser problemaacutetica se natildeo for bem
esclarecida ele questiona primeiro sobre que tipo de relaccedilatildeo o organismo
estabelece com seu meio se eacute possiacutevel afirmar que eacute determiniacutestica e de sujeiccedilatildeo
e segundo se eacute possiacutevel transpor esta mesma ideia para a relaccedilatildeo dos indiviacuteduos
no meio social como sinocircnimo de normalidade
Em suas Novas reflexotildees sobre a ideia de adaptaccedilatildeo como sinocircnimo de
sauacutede Canguilhem diz que este conceito foi estendido a seu ver de modo
descabido da biologia mecanicista para a psicologia e a sociologia101 o que faz
com que deva ser utilizado do ponto de vista o mais criacutetico possiacutevel Isso porque a
101
Tambeacutem a sociologia tomando a ideia de doenccedila ou patologia social como sinal de uma adaptaccedilatildeo fracassada faz com que o normal social se traduza necessariamente como aderecircncia do grupo social agraves normas instituiacutedas garantidora de uma ordem ou estrutura social estaacutetica livre das crises revoluccedilotildees e conflitos de classe Le Blanc (2010b) esclarece que a genealogia do normal natildeo se limita para Canguilhem agrave medicina e agrave psicologia mas tambeacutem agrave sociologia Com efeito Canguilhem faz uma anaacutelise do pensamento de Durkheim em seu curso sobre as Regras do meacutetodo socioloacutegico e o reprova por transpor para a sociologia a tese da variaccedilatildeo quantitativa dos fenocircmenos normais e patoloacutegicos presente em Comte e Claude Bernard da ciecircncia fisioloacutegica para as ciecircncias humanas A seu ver Durkheim para elaborar uma ciecircncia do social capaz de identificar as ordens sociais normais e patoloacutegicas tambeacutem recorre a uma concepccedilatildeo de normalidade quantitativa a partir da qual o normal eacute o equivalente agrave meacutedia e o tipo social meacutedio o frequente Aleacutem da ideia abstrata de tipo meacutedio Canguilhem coloca em questatildeo a ideia de conservaccedilatildeo das estruturas sociais normais como um ideal Para ele natildeo haacute estaacutetica social que natildeo sob o fundo de uma dinacircmica social Isto eacute natildeo haacute na sociedade uma tendecircncia agrave conservaccedilatildeo de uma normalidade social pois esta concepccedilatildeo conservadora transforma as normas sociais em estruturas do social e apresenta uma noccedilatildeo de normal social como algo jaacute constituiacutedo um dado como se fosse possiacutevel definir uma noccedilatildeo de normalidade preacutevia agraves decisotildees normativas da proacutepria sociedade Sobre uma anaacutelise detalhada da criacutetica de Canguilhem ao pensamento socioloacutegico de Durkheim confira LE BLANC G Canguilhem et la vie humaine Op Cit
130
definiccedilatildeo psicossocial do normal a partir do adaptado implica uma concepccedilatildeo de
sociedade mecanizada na qual os indiviacuteduos estatildeo submetidos a seus
determinismos Por outro vieacutes sem precisar com isso ser considerado anarquista
ele acredita que definir a anormalidade a partir da inadaptaccedilatildeo social significa
tentar naturalizar uma atitude de subordinaccedilatildeo do indiviacuteduo em relaccedilatildeo a seu meio
social identificando como anormal qualquer atitude contestatoacuteria
ldquoDefinir a anormalidade a partir da inadaptaccedilatildeo social eacute aceitar mais ou menos a ideacuteia de que o indiviacuteduo deve aderir agrave maneira de ser de determinada sociedade e portanto adaptar-se a ela como a uma realidade que seria ao mesmo tempo um bemrdquo (NP 1990 p257)
Ora se a partir de sua biologia vitalista o organismo natildeo estaacute jogado em um meio
ao qual ele deve se dobrar analogamente quando nos referimos agrave condiccedilatildeo dos
indiviacuteduos no meio social esta tambeacutem natildeo deve ser de sujeiccedilatildeo ou passividade
Nesta mesma direccedilatildeo reflexiva interessado sobretudo nas apropriaccedilotildees
sociopoliacuteticas e econocircmicas desta teoria no artigo ldquoLe vivant et son milieurdquo da
coletacircnea La connaissance de la vie Canguilhem esclarece que a teoria
cartesiana da formaccedilatildeo das estruturas orgacircnicas antecede agrave explicaccedilatildeo
mecanicista dos movimentos do organismo no meio segundo a qual o meio do
comportamento coincide com o meio geograacutefico e este com o meio fiacutesico (cf CV
1985 p141) Como exemplo deste tratamento determinista ou mais precisamente
mecanicista das relaccedilotildees entre vivente e meio ele cita Jacques Loeb que
generalizando as conclusotildees de suas pesquisas sobre o fototropismo animal
considera que todo movimento dos organismos eacute forccedilado pelo meio e a atividade
reflexa como resposta a um estiacutemulo fiacutesico elementar eacute o modelo explicativo de
todas as condutas do vivente ldquoeste cartesianismo exorbitante eacute
incontestavelmente ao mesmo tempo que o darwinismo a origem dos postulados
da psicologia behavioristardquo (CV 1985 p140)
Com efeito Watson apresenta o objetivo programaacutetico da psicologia como a
pesquisa analiacutetica das condiccedilotildees de adaptaccedilatildeo do vivente ao meio pela produccedilatildeo
experimental das relaccedilotildees entre excitaccedilatildeo e resposta Considerando que o
131
determinismo das relaccedilotildees entre estiacutemulo e resposta eacute fiacutesico em sua teoria a
consciecircncia eacute simplesmente anulada ou abolida como ilusoacuteria O meio se encontra
investido de todos os poderes sua potecircncia domina e ateacute mesmo abole a
hereditariedade e a constituiccedilatildeo geneacutetica Sendo o meio um dado natildeo se espera
do organismo mais do que dele foi recebido ldquoa situaccedilatildeo do vivente seu ser no
mundo eacute uma condiccedilatildeo ou mais exatamente um condicionamentordquo (CV 1985
p140)
Acompanhando o trabalho de Friedmann102 sobre o maquinismo industrial
Canguilhem lembra que Albert Weiss tomando a biologia como uma fiacutesica
dedutiva propotildee uma teoria eletrocircnica do comportamento humano aperfeiccediloando
as teses da psicologia behaviorista em sua aplicaccedilatildeo na induacutestria Afirmando a
tese do condicionamento do vivente ao meio fiacutesico geral de acordo com Weiss
restaria apenas aos psicoteacutecnicos prolongar os estudos analiacuteticos das reaccedilotildees
humanas agraves teacutecnicas tayloristas de cronometragem dos movimentos tomando o
homem como uma maacutequina reagindo a outras maacutequinas neste caso num ldquonovo
meiordquo o do trabalho
No artigo ldquoMachine et organismerdquo Canguilhem novamente tambeacutem traz o
problema da apropriaccedilatildeo da filosofia mecanicista pelas teorias econocircmicas e
sociais capitalistas A questatildeo agora posta eacute se a teoria do animal-maacutequina ao
justificar a exploraccedilatildeo da natureza pelo homem e a utilizaccedilatildeo teacutecnica do animal
tambeacutem nos obriga a justificar a exploraccedilatildeo do homem pelo homem e seu uso
como instrumento de trabalho Neste contexto ele traz a concepccedilatildeo mecanicista
de universo da vida como uma Weltanschaung bourgeoise e novamente cita a
obra de Friedmann na qual mostra que eacute com Taylor e com os primeiros teacutecnicos
102
Georges Philippe Friedmann (1902-1977) eacute considerado um dos fundadores da sociologia do trabalho Em suas obras se destacam a criacutetica agrave organizaccedilatildeo cientiacutefica do trabalho (OCT) a consideraccedilatildeo do fator humano no processo produtivo a partir da anaacutelise da situaccedilatildeo dos trabalhadores submetidos ao trabalho fragmentado e repetitivo na sociedade industrial Foi um intelectual marxista proacuteximo do partido comunista e partiacutecipe da resistecircncia francesa Leitor de Leibniz Espinosa e Marx suas principais obras satildeo La Crise du Progregraves (1936) Problegravemes Humains du Machinisme Industriel (1946) Villes et Campagne Civilisation Urbaine et Civilisation Rurale en France (1953) Ougrave va le Travail Humain (1954) Problegravemes de lAmeacuterique Latine - Traiteacute de sociologie du travail (1962) Le Travail en Miettes Speacutecialisation et loisirs (1964) Fin du Peuple Juif (1966) Sept Eacutetudes sur lHommes et la Technique (1966) La Puissance et la Sagesse (1970) Villes et Campagnes (1971)
132
da racionalizaccedilatildeo dos movimentos que o organismo humano eacute alinhado ao
funcionamento das maacutequinas A racionalizaccedilatildeo no trabalho se traduziria entatildeo
por uma mecanizaccedilatildeo do organismo visando agrave eliminaccedilatildeo dos movimentos inuacuteteis
do ponto de vista do rendimento considerado como funccedilatildeo matemaacutetica de certo
nuacutemero de fatores (cf CV 1985 p126)
Em seu artigo Meio e normas do homem no trabalho Canguilhem elogia
Friedmann por pensar as questotildees da racionalizaccedilatildeo teacutecnica e do maquinismo por
diferentes pontos de vista mecacircnico bioloacutegico psicoloacutegico e socioloacutegico e por
fazecirc-lo com uma preocupaccedilatildeo eacutetica inscrita numa filosofia humanista Ele nota que
na obra Problegravemes humains du machinisme industriel (1946) sua intenccedilatildeo eacute
denunciar a ilusatildeo cientificista de deduzir todo progresso humano a partir do
conhecimento cientifico e a tecnicista de comandaacute-lo a partir do industrialismo Por
fim seu pensamento acaba por se configurar como uma etnografia social ou uma
etologia do homo faber nas sociedades modernas tecnicamente caracterizadas
pelo uso da eletricidade como forccedila motriz e economicamente pela tendecircncia
imperialista do capitalismo bancaacuterio
Segundo Canguilhem nesta obra Friedmann ultrapassa a atitude analiacutetica
e mecanicista no estudo do homem no trabalho e reconhecendo a originalidade
dos valores humanos - mas sem empunhar a bandeira espiritualista - deixa clara
sua preocupaccedilatildeo eacutetica de transformar efetivamente a condiccedilatildeo humana Por uma
perspectiva revolucionaacuteria entatildeo natildeo negando sua posiccedilatildeo poliacutetica de criacutetica agrave
estrutura econocircmica das sociedades capitalistas ele se empenha em mostrar as
insuficiecircncias metoacutedicas e doutrinaacuterias da racionalizaccedilatildeo em seu intento de tratar
o homem como seu objeto e da organizaccedilatildeo cientiacutefica do trabalho por concebecirc-lo
como uma maacutequina
Com efeito Friedmann parte do pressuposto de que o racionalismo
entendido como o privileacutegio de um meacutetodo de matematizaccedilatildeo da experiecircncia e
que a racionalizaccedilatildeo tal como a concebeu Taylor acabou por significar a
submissatildeo do homem agrave razatildeo e natildeo o reino da razatildeo no homem
133
ldquoE de fato deve se ao mesmo tempo para justificar o empreendimento do taylorismo conceber o homem como uma maacutequina a engatar corretamente com outras maacutequinas e como o ser vivo simplificado nos seus interesses e reaccedilotildees em consideraccedilatildeo com o meio ateacute natildeo conhecer outros estimulantes atrativos e repulsivos senatildeo lsquoo afago e o chicotersquo Aqui como acolaacute estaacute o absurdo do pleno poder da loacutegicardquo (MNHT 2001 p111)
De modo extensivo entendendo que eacute necessaacuterio pensar o trabalho em sua
forma contemporacircnea tanto nas sociedades capitalistas quanto nas socialistas
ele apresenta o sentido da racionalizaccedilatildeo para aleacutem da preocupaccedilatildeo teacutecnica
mostrando que ela natildeo pode ser vista apenas como um meio para o alcance de
determinados fins de uma empresa na medida em que fundamentalmente se
remete aos fins de uma sociedade econocircmica ldquoA racionalizaccedilatildeo cessa entatildeo de
aparecer como um absoluto teacutecnico Eacute preciso recolocaacute-la para dela compreender
o sentido no seu meio histoacuterico sua estrutura socialrdquo (MNHT 2001 p113)
Assim acreditando que a psicoteacutecnica e a organizaccedilatildeo cientiacutefica do
trabalho natildeo satildeo neutras e que natildeo haacute uma racionalizaccedilatildeo mas vaacuterias
racionalizaccedilotildees Friedman desloca sua discussatildeo sobre o estudo do homem no
trabalho para uma reflexatildeo sobre os fins de uma sociedade econocircmica e as
mudanccedilas que opera na natureza das coisas e do proacuteprio homem - mudanccedilas que
a seu ver pedem uma decisatildeo sobre princiacutepios e conduta poliacutetica a adotar pois
entre o maacuteximo de rendimento e de lucro e o optimum de desabrochamento das
potencialidades humanas eacute necessaacuterio escolher (cf MNHT 2001 p113)
Em resumo Friedmann procura desfazer a ilusatildeo tecnicista que consiste
em atrelar o homem agrave maacutequina e tratar um e outro sob um mesmo ponto de vista
estritamente meacutetrico e quantitativo Ainda apontar os limites de certa visatildeo
psicoteacutecnica que apesar de reconhecer no trabalho humano um fenocircmeno
orgacircnico e natildeo mecacircnico o reduz ao aspecto bioloacutegico e psicoloacutegico do fator
humano individual Ainda denunciar a estreiteza de visatildeo da psicossociologia da
empresa que substitui a consideraccedilatildeo das reaccedilotildees mentais do operaacuterio isolado
pela pesquisa das reaccedilotildees mentais do grupo operaacuterio nas relaccedilotildees industriais
mas que isola a empresa da estrutura social Com isso para Canguilhem ele toca
e nos faz tocar no acircmago socioloacutegico do problema das relaccedilotildees do homem no
134
trabalho a anaacutelise psicoteacutecnica do trabalho na linha de montagem mais do que um
fato teacutecnico eacute um fato psicoloacutegico e mais do que ambos um fato social (cf
MNHT 2001 p113)
Mas o que interessa aqui destacar eacute que a intenccedilatildeo de Canguilhem ao
estudar a obra de Friedmann expondo a criacutetica que faz agrave Taylor e agrave psicoteacutecnica
de C S Myers e E Mayo eacute pensar a relaccedilatildeo do homem com o meio e a questatildeo
das normas humanas
ldquoQueriacuteamos mais especialmente centrar o conjunto de outras consideraccedilotildees sobre a fisiologia do trabalho o ambiente do trabalho a adaptaccedilatildeo das maacutequinas ao homem as relaccedilotildees industriais em torno de duas questotildees mais amplas e segundo noacutes fundamentais a das relaccedilotildees do homem e do meio e a questatildeo da determinaccedilatildeo e da significaccedilatildeo das normas humanasrdquo (MNHT 2001 p114)
Abordando o problema das relaccedilotildees do homem com o meio social atraveacutes
da questatildeo da adaptaccedilatildeo do trabalhador a seu meio de trabalho ele contesta o
ponto de vista da psicologia da reaccedilatildeo ou do comportamento pela reduccedilatildeo que faz
do meio do trabalho ao meio fiacutesico e da condiccedilatildeo do trabalhador ao
condicionamento de um ser vivo no meio geograacutefico
ldquoDo ponto de vista do biologista ou do psicoacutelogo behaviorista este novo meio como o meio natural se decompotildee em uma soma de excitantes de natureza fiacutesica aos quais o ser vivo reage segundo mecanismos analiticamente desmontaacuteveis que a estrutura do organismo daacute a chaverdquo (MNHT 2001 p114)
Seguindo uma concepccedilatildeo mecanicista de fisiologia Taylor acreditava ser
possiacutevel assimilar o trabalho humano a um jogo de mecanismos inanimados fazer
com que os movimentos dos operaacuterios dependessem inteiramente e unicamente
do movimento da maacutequina regulada segundo as exigecircncias do maior rendimento
econocircmico Aleacutem disso da mesma forma que behavioristas como Watson e Albert
Weiss defendiam o poder determinante do meio ele tambeacutem julgava que o
operaacuterio em suas relaccedilotildees com o meio fiacutesico e social no interior da empresa
deveria reagir sem iniciativa pessoal a uma soma de estimulaccedilotildees movimentos
135
mecacircnicos e ordens hieraacuterquicas dos quais ele natildeo poderia escolher nem a
qualidade nem a intensidade nem a frequecircncia
Para contestar os exageros mecanicistas de Jacques Loeb e Watson
Canguilhem cita autores que mostram que o animal natildeo reage por uma soma de
reaccedilotildees moleculares a um meio que pode ser decomposto em elementos
excitantes mas reage a ele como um todo a um ambiente apreendido como um
complexo no qual os movimentos satildeo tomados como regulaccedilotildees para as
necessidades que os comandam e para as quais o uso dos sentidos eacute essencial
ldquoO meio soacute pode impor algum movimento a um organismo quando este organismo se propotildee primeiro ao meio conforme certas orientaccedilotildees proacuteprias Uma reaccedilatildeo imposta eacute uma reaccedilatildeo patoloacutegica Os psicoacutelogos da escola Gestalt (principalmente Koffka) dissociaram dois aspectos do meio o meio de comportamento eacute uma escolha operada pelo ser vivo no interior do meio fiacutesico ou geograacutefico Com Von Uexkuumlll e Goldstein os biologistas acabam de compreender que o proacuteprio do ser vivo eacute de criar o seu meiordquo (MNHT 2001 p116)
Ademais ao tratar tambeacutem do tema da significaccedilatildeo das normas humanas
Canguilhem nota que se a razatildeo eacute considerada a norma das normas eacute natural
que o conceito de normalizaccedilatildeo seja apresentado como sinocircnimo de
racionalizaccedilatildeo Eacute tambeacutem esperado que uma racionalizaccedilatildeo de inspiraccedilatildeo
cientificista procure determinar objetivamente atraveacutes de procedimentos
experimentais as normas de rendimento teacutecnico de modo a indicar para certo
trabalho o uacutenico e melhor meacutetodo a seguir the one best way (cf MNHT 2001
p117) Por este crivo os motivos da resistecircncia operaacuteria agrave racionalizaccedilatildeo satildeo
qualificados de irracionais isto eacute de anormais a questatildeo das aptidotildees individuais
e coletivas satildeo negligenciadas e todo operaacuterio que natildeo se dobra a norma
empresarial deve ser demitido
ldquoCertamente na condiccedilatildeo de mecanizar o homem e de mecanizar o tempo negligenciando sistematicamente o caraacuteter riacutetmico de atividade de um ser vivo qualquer pode-se estabelecer a norma de rendimento de um determinado operaacuterio pela medida do tempo miacutenimo praticado por diferentes operaacuterios para cada elemento de uma tarefa decomposta O inconveniente eacute esta norma natildeo ter nenhuma significaccedilatildeo concreta para um indiviacuteduo tomado em sua totalidade bio-psicoloacutegica de sua existecircnciardquo (MNHT 2001 p118)
136
Todavia Canguilhem mostra que o primeiro problema que aparece ao
tentarmos racionalizar o trabalho eacute o de escolher a norma que seraacute imposta como
norma geral ou meacutedia a todos os operaacuterios empregados em uma mesma tarefa
Pois assim como natildeo existe uma racionalizaccedilatildeo mas racionalizaccedilotildees natildeo haacute
uma norma mas normas referenciadas a pluralidade de valores dos quais nos
termos de Friedmann irrompe uma onda de realidades psiacutequicas morais e sociais
(cf MNHT 2001 p118)
Ele tambeacutem percebe que eacute a falta de significaccedilatildeo das normas no trabalho
que ao fim das contas gera as patologias relacionadas a ele As normas
capitalistas suplantando as normatividades individuais e tolhendo as
potencialidades humanas levam o operaacuterio agrave insatisfaccedilatildeo pelo esvaziamento do
sentido atribuiacutedo a seu trabalho Isso somado agrave monotonia da tarefa e ao incentivo
das relaccedilotildees competitivas entre os trabalhadores acaba por se transformar em
fonte de sofrimento Ou seja eacute o conjunto de fatores alienantes relacionados agrave
proacutepria estrutura organizacional da empresa a bem dizer associada ao modo de
produccedilatildeo capitalista o que torna o ambiente de trabalho adoecedor
Por isso na esteira de Friedmann Canguilhem considera as reaccedilotildees de
resistecircncia operaacuteria agrave mecanizaccedilatildeo taylorista como reaccedilotildees de defesa bioloacutegica e
tambeacutem social e ambas como sinocircnimo de sauacutede Atraveacutes delas o operaacuterio deixa
de se sentir objeto para se perceber sujeito em seu meio de trabalho o qual
modela a partir de suas proacuteprias normas O meio normal de trabalho enfim eacute
aquele que os operaacuterios instituem a partir de seus proacuteprios valores103 Destarte se
103
Nesta mesma direccedilatildeo Le Blanc (2010b) argumenta que eacute tendo em vista as dificuldades produzidas por uma compreensatildeo das alienaccedilotildees sociais que Canguilhem recorre a Friedmann para formular sua perspectiva social Para o autor de Problegravemes humains du machinisme industriel a loacutegica industriosa do capitalismo realizada no taylorismo submete os homens agraves normas e ao ritmo de trabalho Portanto a adaptaccedilatildeo do vivente ao trabalho exige sua adaptaccedilatildeo agraves maacutequinas e impotildee a ele uma forma econocircmica maior o liberalismo da sociedade industrial (cf LE BLANC 2010b p248) A importacircncia da anaacutelise de Friedmann para Canguilhem eacute apresentar a relaccedilatildeo do homem com o meio do trabalho natildeo em termos de determinaccedilatildeo mas de resistecircncia sobretudo de resistecircncia da subjetividade aos efeitos do trabalho e de sua dissoluccedilatildeo no meio socioeconocircmico Assim o termo resistecircncia assume uma significaccedilatildeo essencial na experiecircncia da subjetividade Ela natildeo se submete agraves normas teacutecnicas impostas pela racionalizaccedilatildeo econocircmica o que pode conduzir a uma nova revoluccedilatildeo nas relaccedilotildees do homem com a maacutequina Pois eacute a maacutequina agora que deve
137
Canguilhem se diferencia de Friedmann por defender o primado do vital sobre o
mecacircnico e dos valores sobre a vida e natildeo o primado do humano sobre o
mecacircnico e do social sobre o humano de modo mais fundamental uma mesma
ideia os une
ldquoA ilusatildeo capitalista estaacute em acreditar que as normas capitalistas satildeo definitivas e universais sem pensar que a normatividade natildeo pode ser um privileacutegio O que Friedmann chama de lsquoliberaccedilatildeo do potencial do indiviacuteduorsquo natildeo eacute outra coisa que esta normatividade que faz para o homem o sentido de sua vidardquo (MNHT 2001 p117)
Vemos assim que em seu artigo Meio e normas do homem no trabalho
atraveacutes da anaacutelise da obra de Friedmann Canguilhem faz uma criacutetica agrave
mecanizaccedilatildeo do trabalhador realizada pelo taylorismo agrave psicoteacutecnica e agrave
psicossociologia do trabalho em seu compromisso com o rendimento e lucro e natildeo
com o desenvolvimento do potencial dos trabalhadores Todavia na base de sua
criacutetica estaacute a reduccedilatildeo que a psicologia do comportamento faz do meio do trabalho
ao meio fiacutesico a qual o trabalhador deve necessariamente se adaptar meio este
supostamente separado do contexto social mais amplo mas que em verdade o
espelha e o sustenta Ou seja estaacute o seu embate com o behaviorismo visto por
ele como uma teacutecnica de submissatildeo e de adaptaccedilatildeo passiva dos indiviacuteduos ao
meio social
De modo mais incisivo em Qursquoest que la Psychologie e Le cerveau et la
penseacutee ele critica o behaviorismo seus pressupostos e apropriaccedilotildees pela
educaccedilatildeo economia e principalmente pela poliacutetica revelando seu uso para
identificaccedilatildeo de comportamentos opositivos normalizaccedilatildeo e controle do
pensamento e manutenccedilatildeo de toda sorte de sistemas poliacuteticos com destaque aos
conservadores e repressivos Se aproximando dos pensamentos de Espinosa e
Nietzsche e tambeacutem da perspectiva socialista libertaacuteria de Noam Chomsky ele
coloca em questatildeo a suposta unidade da psicologia e mostra como ela acabou
por se configurar como uma tecnologia do poder uma teacutecnica utilizada para
se adaptar agraves normas bioloacutegicas e psicoloacutegicas do homem e natildeo o contrario (cf LE BLANC 2010b p248) Op cit
138
normalizaccedilatildeo do pensamento e instrumentalizaccedilatildeo do homem isto eacute para sua
brutalizaccedilatildeo104
Com efeito nos seus Eacutetudes dacuteHistoire et de Philosophie des Sciences
Canguilhem diz o quatildeo embaraccedilosa aos psicoacutelogos eacute a pergunta Qursquoest que la
Psychologie porque ela remete agrave questatildeo sobre o que fazem e aonde querem
chegar fazendo o que fazem Ainda de saiacuteda questiona se a eficaacutecia da
psicologia se deve agrave aplicaccedilatildeo de uma ciecircncia como querem alguns ou ela eacute tatildeo
mal fundamentada que natildeo passaria de uma filosofia sem rigor uma eacutetica sem
exigecircncia e uma medicina sem controle por conjugar saberes advindos de
diferentes matrizes teoacutericas referenciais eacuteticos diversos sem a devida criacutetica (do
padre do educador do chefe do juiz etc) e por se voltar as trecircs classes de
doenccedilas mais ininteligiacuteveis e menos curaacuteveis as nervosas mentais e
dermatoloacutegicas
Entendendo que este questionamento natildeo eacute impertinente nem inuacutetil
Canguilhem pergunta se teria razatildeo Daniel Lagache ao afirmar que a unidade da
psicologia seria encontrada numa definiccedilatildeo possiacutevel de uma teoria geral da
conduta siacutentese da psicologia experimental da psicoacuteloga cliacutenica da psicanaacutelise
da psicologia social e da etnologia105 Contestando este ponto de vista ele vecirc
104
Braunstein (2004) esclarece que se nos escritos canguilhemianos a introspecccedilatildeo eacute criticada como filosofia da inaccedilatildeo o behaviorismo eacute criticado como filosofia da brutalizaccedilatildeo Esta hostilidade de Canguilhem em relaccedilatildeo agrave brutalizaccedilatildeo proacutepria agrave psicologia do comportamento pode ser atribuiacuteda agrave influecircncia de seus dois mestres Alain e Bergson Para Alain o psicoacutelogo eacute o ldquomestre da submissatildeordquo que imobiliza o espiacuterito e o impossibilita de agir Jaacute Bergson defende que a ciecircncia natildeo deve tratar o vivente como inerte sendo necessaacuterio evitar uma ldquofiacutesica do espiacuteritordquo Como a filosofia da vida mostra que o vivente cria suas proacuteprias normas e pode se opor ao meio a filosofia da accedilatildeo humana afirma que o vivente humano pode recusar o dado e impor suas proacuteprias normas no meio social No uacuteltimo periacuteodo de sua obra inspirado na terminologia de Foucault ele reformula sua criacutetica agrave brutalizaccedilatildeo e fala em serviccedilo dos saberes pelos poderes Os poderes estatildeo interessados em nosso poder de pensar eles visam agrave normalizaccedilatildeo do pensamento Daiacute a importacircncia central da criacutetica canguilhemiana agrave psicologia posto que ela assimilada ao behaviorismo define o vivente como o resultado necessaacuterio de um estiacutemulo vindo do meio ideia utilizada pelos poderes para realizar o controle social Por isso a psicologia eacute para ele a anti-filosofia por excelecircncia Cf BRAUNSTEIN J-F La critique canguilhemienne de la psychologie Estudos e Pesquisas em Psicologia UERJ RJ vol 4 ndeg 2 2004
105 De modo mais preciso Canguilhem acredita que Lagache se embaraccedila ao tentar unificar o
naturalismo da psicologia experimental e o humanismo da psicologia cliacutenica ateacute porque a primeira eacute caracterizada por seu meacutetodo e a segunda por seu objeto A seu ver esta fusatildeo mais parece um ldquopacto de coexistecircncia paciacuteficardquo no interior da psicologia do que uma real unificaccedilatildeo de seu domiacutenio ldquoA unidade da psicologia eacute aqui procurada em sua definiccedilatildeo possiacutevel como teoria geral da
139
nesta definiccedilatildeo mais um pacto de coexistecircncia paciacutefica que uma unidade Isso
porque se o estatuto de ciecircncia estaacute relacionado agrave clareza de seu objeto mas
ainda mais ao rigor de seu meacutetodo considerando que o objeto da psicologia eacute o
homem o problema estaria em saber se eacute possiacutevel encontrar uma unidade em
seu domiacutenio apesar de tal disparidade metodoloacutegica
Diante disso para saber se haveria de fato uma unidade de projeto na
psicologia ele se potildee a esboccedilar a histoacuteria de sua constituiccedilatildeo em sua relaccedilatildeo
com a histoacuteria das ciecircncias e da filosofia empreitada que a miscelacircnea atual de
disciplinas psicoloacutegicas justificaria No final desta tarefa o que ele encontra satildeo
trecircs diferentes entendimentos sobre a psicologia a saber como ciecircncia natural
como ciecircncia da subjetividade esta subdividida em fiacutesica do sentido externo
ciecircncia do sentido interno e ciecircncia do sentido iacutentimo e por fim como ciecircncia das
reaccedilotildees e do comportamento106 Ao analisar cada uma destas vertentes nota que
conduta siacutentese da psicologia experimental da psicologia cliacutenica da psicanaacutelise da psicologia social e da etnologia Mas quando se olha de perto podemos dizer que esta unidade parece mais um pacto de coexistecircncia paciacutefica acordado entre profissionais do que a uma essecircncia loacutegica obtida pela descoberta de uma constante numa variedade de casosrdquo (E 1989 p366) De acordo com Carol amp Plats (2008) Lagache defende uma psicologia que ele denomina de humanista baseada no modelo cliacutenico e que estuda o homem total e concreto na situaccedilatildeo Em nome da unidade da psicologia ele apresenta o meacutetodo cliacutenico e experimental como complementares poreacutem como bem expocircs Canguilhem havia bons motivos para pensar que sua intenccedilatildeo era meramente conciliatoacuteria motivada por questotildees poliacuteticas Como seu meacutetodo sofria oposiccedilatildeo por parte dos psiquiatras ele natildeo queria perder o apoio dos psicoacutelogos experimentalistas O exemplo da tentativa de unificaccedilatildeo das diferentes culturas da psicologia mostra o quanto questotildees poliacuteticas subjazem e interferem na escolha e elaboraccedilatildeo das teorias cientiacuteficas embora seus defensores aleguem autonomia imparcialidade e neutralidade Cf CARROY J PLAS R Reflexotildees histoacutericas sobre as culturas da psicologia [Trad Dener Luiacutes da Silva] Pesquisas e Praacuteticas psicossociais 3(1) Satildeo Joatildeo del-Rei ag 2008
106 Para traccedilar este percurso Canguilhem vai de Aristoacuteteles a Freud passando por Galeno
Descartes Wundt Woflf Maine de Biran Kant Pinel Royer-Collard Esquirol Ribot Janet e outros Ao estudar a psicologia como ciecircncia natural ele lembra que em seu Tratado Da alma Aristoacuteteles coloca o corpo natural e organizado que possui uma vida em potecircncia como objeto da fiacutesica e a alma como forma do corpo vivente e natildeo como substacircncia separada da mateacuteria Ao estudaacute-la como ciecircncia da subjetividade ele nota que a psicologia continua sendo uma fiacutesica mas natildeo no sentido dos antigos mas uma fiacutesica matemaacutetica de responsabilidade dos fiacutesicos mecanicistas do XVII Se a nova fiacutesica eacute um caacutelculo a psicologia tende a imitaacute-la Isto eacute se Descartes em suas Regras para a direccedilatildeo do espiacuterito propotildee a reduccedilatildeo das diferenccedilas qualitativas entre os dados sensoriais a uma diferenccedila geomeacutetrica a psicologia passa a ser uma fiacutesica matemaacutetica do sentido externo Jaacute como ciecircncia do sentido interno originada nas Meditaccedilotildees cartesianas identificada a uma ciecircncia da consciecircncia de si ela acabou por se constituir como uma psicologia racional fundada sobre a intuiccedilatildeo de um eu substancial Jaacute como ciecircncia do sentido iacutentimo ela se ancora no fato de que se ateacute aquele momento a relaccedilatildeo entre o psiacutequico e o fiacutesico havia sido formulada como somato-psiacutequica agora se converte em psico-somaacutetica dada a inversatildeo operada pela noccedilatildeo de inconsciente Assim se se identifica psiquismo e
140
enquanto nas duas primeiras eacute possiacutevel identificar certa ideia de homem como
alma ou sujeito forma natural ou consciecircncia de interioridade quando se estuda
os fundamentos da psicologia do comportamento a ideia que se extrai eacute a de
ferramenta Entatildeo pergunta
ldquoMas enfim qual o sentido deste instrumentalismo agrave segunda potecircncia O que empurra ou inclina os psicoacutelogos a converter-se entre os homens em instrumentos de uma ambiccedilatildeo de tratar o homem como instrumentordquo (E 1989 p378)
Com efeito ao relatar a histoacuteria da psicologia como ciecircncia das reaccedilotildees e
do comportamento Canguilhem apresenta as razotildees cientiacutefica teacutecnica e
econocircmica e poliacutetica de seu advento A primeira estaria relacionada agrave constituiccedilatildeo
de uma biologia como ciecircncia das relaccedilotildees entre organismos e meios e a
derrocada da ideia de existecircncia de um reino humano separado a segunda ao
desenvolvimento da sociedade industrial agrave atenccedilatildeo ao caraacuteter industrioso da
espeacutecie humana e ao fim da dignidade do pensamento especulativo e a terceira
estaria vinculada ao fim da crenccedila nos valores de privileacutegio social e na difusatildeo do
igualitarismo o que acarretou uma mudanccedila no papel do Estado frente agrave
sociedade e nas prerrogativas civis e militares A partir disso ele encontra a
origem da psicologia do comportamento ligada a um fenocircmeno proacuteprio das
sociedades modernas a peritagem entendida em um sentido amplo enquanto
determinaccedilatildeo das competecircncias e rastreio das simulaccedilotildees
Ainda ao investigar seus fundamentos teoacutericos percebe que dentre os
diferentes tipos de estudos psicoloacutegicos a psicologia do comportamento eacute a mais
incapaz de exibir com clareza seu projeto instaurador
consciecircncia recorrendo agrave autoridade de Descartes o inconsciente eacute de ordem fiacutesica Se se pensa que o psiacutequico pode ser inconsciente que ele natildeo eacute apenas o que estaacute escondido mas o que se esconde o que escondemos a psicologia passa a ser a natildeo apenas a ciecircncia da intimidade mas das ldquoprofundezas da almardquo Por fim no seacuteculo XIX ao lado da psicologia como patologia nervosa e mental como fiacutesica do sentido externo como ciecircncia do sentido interno e do sentido iacutentimo nasce uma psicologia que se quer uma ciecircncia objetiva das atitudes reaccedilotildees e comportamentos Eacute precisamente a esta que Canguilhem direciona sua maior criacutetica por estar desvinculada de qualquer filosofia ou ideia de homem isto eacute de uma antropologia (cf E 1989 p380)
141
ldquoSe entre os projetos instauradores de certos tipos anteriores de psicologia alguns podem passar por contrassensos filosoacuteficos aqui ao contraacuterio como toda relaccedilatildeo com uma teoria filosoacutefica estaacute refutada a questatildeo eacute a de saber de onde tal investigaccedilatildeo psicoloacutegica pode retirar seu sentidordquo (E 1989 p376-377)
Assim partindo da criacutetica nietzschiana agrave psicologia inglesa presente na
Genealogia da moral Canguilhem explica que se o utilitarismo implica a ideia de
utilidade para o homem o instrumentalismo traz a ideia de homem como meio de
utilidade Assim Nietzsche tem razatildeo ao dizer que os psicoacutelogos querem ser os
ldquoinstrumentos ingecircnuos e precisosrdquo do estudo do homem se esforccedilando para
chegar a um conhecimento objetivo e determiniacutestico dos seus comportamentos ndash
se natildeo mais o determinismo proacuteprio agrave fiacutesica newtoniana um determinismo
estatiacutestico assentado sobre os resultados da biometria
ldquoAs investigaccedilotildees sobre as leis de adaptaccedilatildeo e da aprendizagem sobre a relaccedilatildeo entre aprendizagem e aptidotildees sobre a detecccedilatildeo e a medida de aptidotildees sobre as condiccedilotildees de rendimento e da produtividade (quer se trate de indiviacuteduos ou de grupos) ndash pesquisas inseparaacuteveis de suas aplicaccedilotildees em seleccedilatildeo ou orientaccedilatildeo ndash admitem todas um postulado impliacutecito comum a natureza do homem eacute ser um instrumento sua vocaccedilatildeo eacute ser posto em seu lugar em sua tarefardquo (E 1989 p378)
Em resumo para Canguilhem o problema eacute que a psicologia da reaccedilatildeo e
do comportamento dos seacuteculos XIX e XX acreditou ser independente da filosofia
separando-se de toda especulaccedilatildeo sobre uma ideia de homem Os psicoacutelogos se
transformaram em uma elite coorporativa de especialistas investidos por eles
mesmos de sua proacutepria missatildeo de serem os managers das relaccedilotildees do homem
com o homem Alheios agraves condiccedilotildees histoacutericas e sociais em que satildeo chamados a
aplicar suas teacutecnicas a eles natildeo interessa saber qual seraacute a utilizaccedilatildeo de seus
relatoacuterios ou diagnoacutesticos natildeo sendo este assunto de psicoacutelogo
Sendo assim restaria ao homem submetido a uma prova de teste mostrar
repugnacircncia ao ser ldquotratado como insetordquo por algueacutem que se julga superior a ele
acreditando ter autoridade para lhe dizer quem ou o que eacute e o que deve fazer (cf
E 1989 p378) Mas ao filoacutesofo com certo cinismo caberia perguntar ao
psicoacutelogo a que tende a psicologia para saber o que ela eacute e como um conselho de
orientaccedilatildeo dizer a ele que quando se sai da Sorbonne pela rua Saint Jacques eacute
142
possiacutevel pegar dois caminhos um que leva ao Panteatildeo e outro agrave delegacia de
poliacutecia (cf E 1989 p381)
Em Le cerveau et la penseacutee ainda refletindo sobre os caminhos e
descaminhos trilhados pela psicologia Canguilhem destaca suas apropriaccedilotildees
poliacuteticas seu uso como teacutecnica de controle do pensamento Com efeito ele inicia
sua conferecircncia dizendo que haacute um nuacutemero cada vez maior de poderes
interessados em nossa faculdade de pensar e que este interesse natildeo eacute
puramente teoacuterico mas poliacutetico porque nele reside a intenccedilatildeo de fazer com que
pensemos como querem que pensemos Agora ao lado da referecircncia ao conluio
de certas empresas de informaacutetica como a IBM107 com o Terceiro Reich a
psicologia comportamental aparece como uma teacutecnica que objetiva em uacuteltima
anaacutelise a normalizaccedilatildeo do pensamento
Querendo evidenciar as apropriaccedilotildees sociais e poliacuteticas das teorias
cientiacuteficas ao inveacutes de situar a questatildeo ceacuterebro e pensamento na histoacuteria dos
seres vivos ele opta por inscrevecirc-la na histoacuteria da cultura iniciando seu exame
pelo seacuteculo XIX contexto do embate do positivismo com o espiritualismo atraveacutes
da teoria das localizaccedilotildees cerebrais Isto eacute ele escolhe iniciar sua reflexatildeo pela
anaacutelise da obra Anatomie et physiologie du systegraveme nerveux em geacuteneacuteral et du
cerveau em particulier (1810) na qual Gall em oposiccedilatildeo agrave teoria dos metafiacutesicos
espiritualistas da substancialidade ontoloacutegica da alma apresenta a ideia da
inerecircncia das qualidades morais e dos poderes intelectuais ao ceacuterebro isto eacute a
teoria dos hemisfeacuterios cerebrais como a sede da faculdades de pensar
Destacando tambeacutem a frenologia de Spurzheim e a de seus disciacutepulos nota
que antes dela acreditava-se que Descartes era pensador um autor responsaacutevel
por seu sistema filosoacutefico Agora ele eacute portador de um ceacuterebro pensante que
explica por sua configuraccedilatildeo tudo o que fez e pensou Na visatildeo frenoloacutegica
Descartes eacute portador de um ceacuterebro que pensa sob o nome de Reneacute Descartes e
107
Certamente Canguihem se refere ao apoio teconoloacutegico da IBM agrave Hitler no decorrer de boa parte da Segunda Guerra Atraveacutes de seus programas de identificaccedilatildeo catalogaccedilatildeo e seleccedilatildeo especialmente da tecnologia Hollerith de cartotildees perfurados a Alemanha nazista foi capaz de automatizar a perseguiccedilatildeo aos judeus e organizar o trabalho forccedilado nos campos de concentraccedilatildeo
143
o cogito natildeo eacute mais o efeito das faculdades intelectuais reflexivas mas da
faculdade que percebe as accedilotildees que estatildeo em noacutes
ldquoEm suma a partir da imagem do cracircnio de Descartes o saacutebio frenologista conclui que todo Descartes biografia e filosofia estaacute num ceacuterebro que eacute preciso dizer seu ceacuterebro o ceacuterebro de Descartes jaacute que conteacutem a faculdade de perceber as accedilotildees que estatildeo nelerdquo (CP 1993 p17)
Mas se o Ego pensante eacute uma ilusatildeo e se as expressotildees eu penso eu sinto natildeo
satildeo formas corretas de se expressar e que seria preciso dizer isso pensa em mim
isso sente em mim cabe perguntar como do eu penso pode advir o isso pensa
que o fisiologista indica e descreve como o ceacuterebro
Ele ainda lembra que a frenologia como uma cranioscopia baseada na
correspondecircncia entre o conteuacutedo e o continente entre a configuraccedilatildeo dos
hemisfeacuterios e a forma do cracircnio foi aplicada como instrumento para orientaccedilatildeo e
seleccedilatildeo profissional e ateacute mesmo para fins de escolha matrimonial Ela serviu
posteriormente como base para a elaboraccedilatildeo do primeiro mapa topograacutefico
cerebral convertido depois em teacutecnicas de psicocirurgia como a lobotomia
Destarte se ele escolhe iniciar sua anaacutelise pela teoria das localizaccedilotildees cerebrais e
da frenologia eacute porque Gall e Spurzheim natildeo deixaram de afirmar o alcance
praacutetico de suas teorias na aacuterea da pedagogia do rastreamento de atitudes na
identificaccedilatildeo de aptidotildees ndash chamada mais tarde de orientaccedilatildeo ndash da medicina e da
esfera da seguranccedila na prevenccedilatildeo da delinquecircncia
ldquoDestacamos novamente a rapidez com a qual o conhecimento suposto das funccedilotildees do ceacuterebro eacute investido em teacutecnicas de intervenccedilatildeo como si a teoria fosse congenitalmente suscitada por um interesse praacuteticordquo (CP 1993 p14)
Fazendo referecircncia agrave obra De lrsquointelligence de Hypollite Taine ele nota
tambeacutem que paralelamente ao desenvolvimento das pesquisas em neurologia
cerebral a psicologia animada por elas tornou-se natildeo mais do que uma sombra
da fisiologia ao tentar elucidar a partir das localizaccedilotildees cerebrais os processos
psiacutequicos como se as representaccedilotildees estivessem armazenadas nas ceacutelulas
144
nervosas108 Para contestar tal associaccedilatildeo Canguilhem cita Pierre Janet para
quem eacute um exagero vincular a psicologia ao estudo do ceacuterebro Isso porque o
pensamento natildeo eacute funccedilatildeo de nenhum oacutergatildeo em particular mas um processo de
conjunto do indiviacuteduo tomado como um todo
ldquoO que noacutes chamamos ideia de fenocircmenos da psicologia eacute um comportamento de conjunto de todo indiviacuteduo tomado em seu conjunto Noacutes pensamos com nossas matildeos assim como com nosso ceacuterebro noacutes pensamos com nosso estocircmago noacutes pensamos como um todo Natildeo eacute necessaacuterio separar um do outro A psicologia eacute a ciecircncia do homem inteiro natildeo uma ciecircncia do ceacuterebro Esse eacute um erro psicoloacutegico que tem feito muito mal durante muito tempordquo (CP 1993 p15-16)
Tambeacutem porque o autor de La penseacutee inteacuterieure et ses troubles esclarece que o
conceito de alienaccedilatildeo mental natildeo eacute primeiramente um termo psicoloacutegico mas
antes de tudo uma categoria utilizada pela poliacutecia ldquoA palavra louco eacute portanto um
termo policialrdquo (CP 1993 p16) Por isso para ele a posiccedilatildeo de Janet em mateacuteria
de patogenia e terapecircutica eacute tatildeo contestadora quanto a de um adepto da
antipsiquiatria pois quando deixamos de acreditar no reducionismo do psiacutequico ao
aparelho neurocerebral nos tornamos tatildeo ceacuteticos quanto eles em relaccedilatildeo agrave
eficiecircncia de um internamento quase carceraacuterio daqueles categorizados
socialmente como loucos
A partir do questionamento sobre o que eacute pensar entatildeo Canguilhem reflete
sobre a possibilidade de que ele seja identificado agrave funccedilatildeo de ceacuterebro anaacutelogo a
um computador Ele explica que a metaacutefora do ceacuterebro computador se justificaria
na medida em que se entende como pensamento as operaccedilotildees da loacutegica o
caacutelculo o raciociacutenio ldquoRazatildeo ratio deriva etimologicamente de reor calcularrdquo (CP
1993 p18) No entanto isso natildeo excluiria a necessidade de uma motivaccedilatildeo
preacutevia para o pensar e natildeo explicaria a capacidade reflexiva do pensamento de
108
Ironicamente sobre os primoacuterdios da psicologia cientiacutefica Politzer comenta que eacute na tentativa de criaccedilatildeo de uma psicologia ldquosem almardquo que comeccedila a migraccedilatildeo dos aparelhos dos laboratoacuterios de fisiologia para os de psicologia ldquoQuanto orgulho Quanta alegria Os psicoacutelogos tecircm laboratoacuterios e publicam monografias Acabam-se as disputas verbais calculemos Puxam-se os logaritmos pelo cabelo e Ribot calcula o nuacutemero de ceacutelulas cerebrais para saber se podem abrigar todas as ideacuteias Nasce a psicologia cientiacuteficardquo (POLITZER 1998 p38) Cf POLITZER G Criacutetica dos fundamentos da psicologia a psicologia e a psicanaacutelise Op cit
145
voltar-se para si mesmo Assim natildeo sem ironia ele problematiza Considerando
que o homem eacute um inventor de maacutequinas de onde viria sua motivaccedilatildeo para
construir outra maacutequina Seria o computador cerebral capaz de entender a si
proacuteprio de refletir sobre sua proacutepria natureza Poderia ele escrever sua
autobiografia na falta de sua autocriacutetica
Acreditando que a analogia entre o ceacuterebro e uma maacutequina
computadorizada eacute enganosa Canguilhem contesta o uso do modelo maquinal
para explicaacute-lo e o uso da linguagem da informaacutetica para elucidar seu
funcionamento (recepccedilatildeo de estiacutemulos transmissatildeo e desvio de sinais
elaboraccedilatildeo de respostas e registro de operaccedilotildees) Ainda recusando a associaccedilatildeo
do ceacuterebro ao pensamento ele elogia bioacutelogos como Franccedilois Jacob e Michel
Jouvet reticentes em deduzir a consciecircncia de uma ciecircncia do ceacuterebro isto eacute de
uma neurociecircncia
Mas mais do que defender a impossibilidade de traduccedilatildeo dos processos da
consciecircncia em termos neurobioloacutegicos de modo fundamental o que Canguilhem
quer desvendar eacute o interesse que estaacute por traacutes da metaacutefora da assimilaccedilatildeo do
ceacuterebro a um computador o porquecirc a ideia de maquinaria eletrocircnica do
pensamento tem sido habilmente transformada em lugar comum publicitaacuterio no
estaacutegio industrial da informaacutetica
ldquoComo poderiacuteamos estar contra um computador se nosso ceacuterebro eacute ele mesmo um computador O computador em sua proacutepria casa Por que natildeo se jaacute temos um computador em cada um de noacutes Um modelo de pesquisa cientiacutefica foi convertido em maacutequina de propaganda ideoloacutegica com dois fins prevenir ou desarmar a oposiccedilatildeo a um meio de regulaccedilatildeo automatizada das relaccedilotildees sociais dissimular a presenccedila de tomadores de decisatildeo que estatildeo por traacutes do anonimato de uma maacutequinardquo (CP 1993 p21)
Para desconstruir entatildeo a ideia de assimilaccedilatildeo possiacutevel do ceacuterebro a uma
maacutequina em uacuteltima anaacutelise para fazer frente aos fins relacionados a seu uso
ideoloacutegico ele recorre agrave capacidade criadora inventiva do pensamento Afirma
que pensar envolve criaccedilatildeo e a maquinaria cerebral estaacute limitada a relacionar
146
dados sob a limitaccedilatildeo de um programa ldquoInventar eacute criar informaccedilatildeo Perturbar
haacutebitos do pensamento o estado estacionaacuterio de um saberrdquo (CP 1993 p21)
Ele argumenta que se fosse possiacutevel assimilar o ceacuterebro a uma maacutequina
eletrocircnica seria tambeacutem possiacutevel entender atraveacutes de uma explicaccedilatildeo fiacutesico-
quiacutemica como o ceacuterebro eacute capaz de inventar o que natildeo ocorre Embora natildeo
negue o benefiacutecio real que certas drogas psicotroacutepicas tecircm oferecido a indiviacuteduos
com certas doenccedilas mentais como a esquizofrenia ou nervosas como a doenccedila
de Parkinson julga que apesar da existecircncia de efeitos felizes dos mediadores
quiacutemicos das perspectivas abertas por certas descobertas da
neuroendocrinologia natildeo parece ter chegado o tempo de acreditar do mesmo
modo que Cabanis que o ceacuterebro vai secretar pensamento assim como o fiacutegado
secreta a biacutelis (cf CP 1993 p23)109
Eacute precisamente no contexto desta discussatildeo que Canguilhem coloca em
questatildeo a psicologia entendida como estudo do comportamento se eacute que ainda
ela pode ser chamada de psicologia Isso porque ela exclui qualquer referecircncia ao
pensamento e agrave consciecircncia interessando-se pelo ceacuterebro apenas como uma
ldquocaixa pretardquo onde apenas as entradas e saiacutedas satildeo levadas em conta Mais do
que isso porque em suas teacutecnicas de condicionamento ela se utiliza de
dispositivos de aprendizagem baseados no estiacutemulo-resposta erro-castigo
correccedilatildeo-recompensa O problema eacute que seja no condicionamento pavloviano
109
Varela (1993) focando o problema da relaccedilatildeo entre a neurociecircncia e a psicologia apresenta brevemente como se deu o desenvolvimento das pesquisas sobre o ceacuterebro dos anos 70 ateacute as mais recentes e como hoje se pensa o mental como uma propriedade emergente das propriedades cognitivas Acreditando que a aproximaccedilatildeo entre o pensamento e as propriedades cognitivas mais gerais natildeo eacute quimeacuterica mas a origem de um programa construtivo ele coloca entatildeo a questatildeo se as ideias de Canguilhem natildeo estariam hoje caducas diante do programa cognitivista computacional Agora o problema do paradoxo da reflexividade colocado por Canguilhem ndash como pode o ceacuterebro escrever sua proacutepria teoria ndash este quebra-cabeccedilas da relaccedilatildeo entre a emergecircncia do pensamento a partir de agentes cognitivos mais simples e a experiecircncia do ponto de vista do sujeito ele mesmo seu mundo vivido isto eacute da exterioridade do mecanismo com a interioridade da experiecircncia vivida eacute ainda uma questatildeo controversa que vai alimentar os debates da proacutexima deacutecada Ele concorda com a atitude de Canguilhem de natildeo cair na tentaccedilatildeo do reducionismo mecanicista dos fisicalistas fisicalizantes mas tambeacutem natildeo quer resvalar na completa inacessibilidade do ponto de vista dos psicanalistas psicanalizantes A seu ver os filoacutesofos deveriam dialogar com os cientistas para natildeo caiacuterem nem no reducionismo nem na inefabilidade achando outra via entendida por ele como um caminho meacutedio mais satisfatoacuterio Cf VARELA FJ ldquoLe cerveau et la penseacuteerdquo In BADIOU A (et al) Georges Canguilhem Philosophe historien des sciences Actes du colloque (6 7 8 deacutecembre 1990) Paris Albin Michel 1993
147
seja no skinneriano ou instrumental em ambos os casos haacute uma confusatildeo entre
aprendizagem e condicionamento e uma extrapolaccedilatildeo indevida dos resultados
obtidos por experimentaccedilatildeo com outros animais para o homem aleacutem da
identificaccedilatildeo do meio controlado ao meio social
Segundo Canguilhem o uso destas teacutecnicas de orientaccedilatildeo ou
direcionamento dos indiviacuteduos no meio social o condicionamento de seu
comportamento atraveacutes de uma distribuiccedilatildeo manifesta ou velada de recompensas
tem servido como meio de conservaccedilatildeo de diferentes tipos de estruturas
sociopoliacuteticas110 estando certos aqueles que notando seu uso generalizado
dizem que condicionamento e descondicionamento lavagem cerebral e camisa-
de-forccedila quiacutemica natildeo satildeo privileacutegio de paiacutes nenhum (cf CP 1993 p25)
Acreditando que numa sociedade repressora ou conservadora a equaccedilatildeo
pensamento = ceacuterebro tem servido de base para as teacutecnicas de normalizaccedilatildeo de
conduta ele concorda com Chomsky111 quando afirma que a crenccedila de que o
espiacuterito humano eacute vazio fornece uma justificativa para toda sorte de sistemas
110
Com efeito como mostra Le Blanc (2010b) para Canguilhem a psicologia constituiacuteda a partir da biologia do comportamento longe de aceder a um valor cientiacutefico real eacute investida de dispositivos econocircmicos e poliacuteticos ocupando um lugar especial na estrateacutegia liberal Ela faz a instrumentalizaccedilatildeo do homem adaptando-o a uma nova sociedade na qual o valor maior eacute o rendimento a utilidade e a eficaacutecia Como praacutetica de medida da capacidade adaptativa do homem ela natildeo eacute mais um conhecimento do homem mas uma praacutetica destinada a fazecirc-lo instrumento utensiacutelio de um corpo poliacutetico que luta por sua manutenccedilatildeo Ela eacute entatildeo uma disciplina do homem uma praacutetica de controle com vistas a uma melhor integraccedilatildeo social ldquoa normalidade eacute o efeito da praacutetica disciplinar a serviccedilo das normas sociaisrdquo (LE BLANC 2010b p162-163) Ou seja a psicologia instrumental de orientaccedilatildeo adaptativa eacute uma praacutetica disciplinar voltada para a melhor inserccedilatildeo possiacutevel do homem na sociedade moderna o que a faz uma teacutecnica normalizadora uma praacutetica de seleccedilatildeo social uma poliacutecia do espiacuterito (cf LE BLANC 2010b p166-168) Cf LE BLANC G Canguilhem et la vie humaine Op Cit
111 Canguilhem acompanha Chomsky em sua criacutetica ao behaviorismo mas natildeo deixa de
apresentar as implicaccedilotildees do inatismo linguiacutestico Chomsky acredita que a competecircncia linguumliacutestica estaacute relacionada com a determinaccedilatildeo geneacutetica das capacidades cerebrais Por isso ele concorda com Descartes e Leibniz filoacutesofos que defenderam o inatismo dos princiacutepios racionais Atraveacutes disso Chomsky quer fazer oposiccedilatildeo agrave Skinner natildeo soacute agrave teoria exposta na obra Verbal Behavior mas as suas teses poliacuteticas expostas em Beyond Freedom and Dignity No entanto como salientam seus opositores o inatismo do poder intelectual defendido por Chomsky pode se transformar num argumento em favor do elitismo servindo de justificativa das relaccedilotildees sociais desiguais De acordo com Canguilhem a questatildeo colocada no contexto de embate entre o empirismo e o inatismo eacute que se a teoria da disposiccedilatildeo inicial para aprender deve ser associada a uma programaccedilatildeo geneacutetica deveriam ser tambeacutem os fundamentos da poliacutetica procurados nos ceacuterebros Ou seja o problema aqui posto eacute o da possibilidade de escaparmos ao determinismo das capacidades e disposiccedilotildees humanas tanto do a priori da determinaccedilatildeo geneacutetica quanto do a posteriori da determinaccedilatildeo pelo meio social
148
autoritaacuterios e que isso desenvolvido ao extremo ndash como foi em Skinner - acabaria
numa espeacutecie de esquema fascista
Fazendo oposiccedilatildeo agrave ideia de meio social mecanizado ele entende que o
essencial do meio social eacute ser um sistema de significaccedilotildees e que natildeo podemos
admitir que a aprendizagem e o sentido atribuiacutedo pelos homens agraves coisas e aos
outros seja o resultado de um simples adestramento por condicionamento
Refletindo sobre a relaccedilatildeo ceacuterebro-pensamento-linguagem diz que a
aprendizagem da linguagem natildeo se daacute por um condicionamento que desemboca
num viacutenculo duraacutevel entre um significante um significado e um referente A
linguagem humana eacute essencialmente uma funccedilatildeo semacircntica cujas explicaccedilotildees do
tipo fisicalista nunca chegaram a dar conta Pois o sentido natildeo eacute uma relaccedilatildeo
entre mas uma relaccedilatildeo com ldquoEis porque ele escapa a qualquer reduccedilatildeo que tente
aprisionaacute-lo numa configuraccedilatildeo orgacircnica ou mecacircnicardquo (CP 1993 p27)
Em suma a linguagem remete a um pensar e na experiecircncia do
pensamento cada palavra ou discurso tem uma cor simboacutelica diferente Eacute o
homem que atribui sentido a seu proacuteprio mundo e a relaccedilatildeo de sentido na
linguagem natildeo se reduz a uma relaccedilatildeo fiacutesica ou a sistemas de elementos no
ceacuterebro do locutor e de seu interlocutor Eacute preciso levar em conta os desvios e
entorses de sentido nesta relaccedilatildeo O homem pode brincar com o sentido desviaacute-
lo simulaacute-lo mentir criar armadilhas Como disse Michel Jouvet ldquouma maacutequina
natildeo pode enganar nem tampouco se enganar Em outras palavras uma maacutequina
natildeo eacute capaz de maquinaccedilotildeesrdquo (CP 1993 p33)
Assim o Eu aparece na filosofia em decorrecircncia do fato de que o mundo eacute
nosso proacuteprio mundo Mas este Eu natildeo eacute o psicoloacutegico correlato agrave ilusatildeo de uma
interioridade psiacutequica ndash jaacute que do ponto de vista filosoacutefico natildeo haacute contradiccedilatildeo em
reconhecer uma subjetividade sem interioridade Eacute um Eu que podemos chamar
de concreto que estaacute no mundo numa situaccedilatildeo de presenccedila-observaccedilatildeo
reivindicada pelo seu pensamento
149
ldquoPensar eacute o exerciacutecio do homem que exige a consciecircncia de si na presenccedila ao mundo natildeo como representaccedilatildeo do sujeito Eu mas como sua reivindicaccedilatildeo pois essa presenccedila eacute vigilacircncia e mais exatamente observaccedilatildeordquo (CP 1993 p29)
Segundo Canguilhem eacute na filosofia de Espinosa que a funccedilatildeo subjetiva da
presenccedila-observaccedilatildeo eacute mais manifesta assim como a defesa da liberdade de
pensar Porque o Eu espinosano eacute um Eu que reivindica diante do poder do
soberano de regular tudo o que diz respeito aos cidadatildeos o direito de cada um
pensar o que quer e dizer o que pensa Se Descartes se defendeu da acusaccedilatildeo
de criacutetico poliacutetico dizendo apenas querer reformar seus proacuteprios pensamentos e
procurou se afastar de indiviacuteduos com ldquohumor confuso e inquietordquo e com tendecircncia
agrave oposiccedilatildeo Espinosa natildeo hesitou em tomar posiccedilatildeo e insurgir-se contra o que
chama de uacuteltimos baacuterbaros
ldquoEm suma esta filosofia que refuta e recusa os fundamentos da filosofia cartesiana o cogito a liberdade em Deus e no homem esta filosofia sem sujeito muitas vezes assimilada a um sistema materialista esta filosofia vivida por um filoacutesofo que pensou e imprimiu em seu autor a forccedila necessaacuteria para se insurgir contra o fato consumado A filosofia deve dar conta de tal forccedilardquo (CP 1993 p30-31)
Destarte se a atitude de Espinosa de sair de sua casa apoacutes o assassinato de seu
amigo republicano por orangistas e de pregar cartazes com as palavras ultimi
barbarorum nas paredes da cidade estaacute em conformidade com sua filosofia da natildeo
submissatildeo a de Descartes de se afastar dos espiacuteritos que tendem agrave oposiccedilatildeo
tambeacutem estaacute
A seu ver a filosofia de Espinosa nos convida a sair de nossa reserva e a
se opor a toda intervenccedilatildeo em nosso ceacuterebro ndash entendido como o regulador vivo
de nossas accedilotildees no mundo e na sociedade - que tenha por objetivo nos privar de
nossos gestos de engajamento A partir dela sentimos a necessidade de sairmos
de uma posiccedilatildeo de conformismo ante uma realidade determinada que se coloca
como fato consumado e transformaacute-la
Assim na vereda espinosana Canguilhem acredita que a filosofia natildeo pode
deixar de erguer-se contra uma psicologia que se quer objetiva instruindo outras
150
ciecircncias sobre nossas funccedilotildees intelectuais e dispondo suas aquisiccedilotildees teoacutericas
para serem exploradas pela pedagogia pela economia e finalmente pela
poliacutetica112 Quanto agrave filosofia sua funccedilatildeo natildeo eacute aumentar o rendimento do
pensamento mas lembrar-lhe do sentido de seu poder
ldquoAtribuir agrave filosofia a tarefa especiacutefica de defender o Eu como reivindicaccedilatildeo inalienaacutevel da presenccedila-observaccedilatildeo eacute reconhecer que ela natildeo tem outro papel senatildeo o da criacutetica Aleacutem disso esta tarefa de negaccedilatildeo natildeo eacute negativa pois a defesa de uma reserva eacute a preservaccedilatildeo das condiccedilotildees de possibilidade de saiacutedardquo (CP 1993 p31)
Portanto como Politzer apostando numa subjetividade sem interioridade113
Canguilhem apresenta uma psicologia filosoacutefica que defende a ideia de um Eu
concreto material que valora e cria suas proacuteprias normas mas que natildeo se
identifica nem a uma substacircncia pensante nem ao ceacuterebro114 Sobre este embora
112
Segundo Braunstein (2004) Canguilhem quer elaborar uma teoria da subjetividade sem cogito e para ele Espinosa eacute a prova viva de que uma filosofia com este caraacuteter natildeo conduz agrave inaccedilatildeo ou ao fatalismo Enquanto Descartes filoacutesofo do cogito pede prudecircncia em poliacutetica Espinosa se coloca publicamente em defesa da liberdade do pensamento Assim o que Canguilhem chama de psicologismo eacute um uso exorbitante do cogito que pode conduzir agrave aceitaccedilatildeo e agrave submissatildeo Por isso Canguilhem insiste na inspiraccedilatildeo espinosista de Cavaillegraves e persiste em compreender seu ldquoestilo singular de accedilatildeo de resistecircnciardquo Ele eacute um filoacutesofo da accedilatildeo sem cogito Canguilhem ainda denuncia o sociologismo dos socioacutelogos puros (Comte Marx e Durkheim) que pretendem se mover no mundo dos fatos se esquecendo da significaccedilatildeo dos valores e que caem na tentaccedilatildeo de tratar o homem como um mecanismo que pode ser dominado do exterior no momento em que se conhece suas leis Mas se Canguilhem salva alguns socioacutelogos como Baugleacute e Halbwachs eacute difiacutecil citar um psicoacutelogo que para ele natildeo caia em um psicologismo Cf BRAUNSTEIN J-F La critique canguilhemienne de la psychologie Estudos e Pesquisas em Psicologia UERJ RJ vol 4 ndeg 2 2004
113 Ainda segundo Braunstein (2007) por ser a teoria da subjetividade de Canguilhem baseada
numa filosofia sem sujeito e sem cogito ele aplaude a criacutetica severa que Politzer desenvolve agrave tese da vida interior Ele destaca a influecircncia da psicologia concreta de Politzer para o pensamento canguilhemiano embora note que Canguilhem natildeo foi tatildeo generoso com Watson como foram Politzer e mesmo Foucault por ter ele colocado em questatildeo a ldquoilusatildeo da subjetividaderdquo (cf Braunstein 2007 p71) Cf BRAUNSTEIN J-F Psychologie et milieu Eacutethique et histoire des sciences chez Georges Canguilhem In BRAUNSTEIN J-F (org) Histoire des sciences et politique du vivant Paris Presses Universitaires de France ndash PUF 2007
114 Como mostra Le Blanc (2010b) Canguilhem entende que uma psicologia somente eacute possiacutevel
na medida em que integrada a uma antropologia quer dizer a uma filosofia Uma psicologia antropoloacutegica ou filosoacutefica se opotildee a uma psicologia instrumental entendida como ficccedilatildeo filosoacutefica falsificaccedilatildeo eacutetica e uma perversatildeo da medicina Ele entende que a psicologia eacute um exerciacutecio de compreensatildeo dos valores humanos Assim ao inveacutes de se desligar da filosofia ela deveria se colocar ao lado dos valores espontacircneos e muacuteltiplos do vivente humano da pluralidade das normas elaboradas pelas diferentes subjetividades Por isso no capiacutetulo ldquoLogique et psychologierdquo do curso Les normes et le normal (1942-1943) ele defende uma psicologia compreensiva da toleracircncia Afirma que toda psicologia eacute no fundo compreensatildeo das normas mas compreensatildeo
151
possa tecirc-lo como um regulador da atividade pensante corpoacuterea acredita que ele
natildeo seja a sede do pensamento como querem os neurofisiologistas nem anaacutelogo
ao computador como desejam alguns neurocientistas
Sua psicologia parte de uma concepccedilatildeo de pensar como atividade natildeo
controlaacutevel porque espontacircnea e inventiva capaz de realizar subversotildees
normativas Subversotildees das quais a loucura eacute o melhor testemunho pois
evidencia a possibilidade da desordem Daiacute o temor da desrazatildeo por parte dos
poderes sociopoliacuteticos instituiacutedos e a necessidade de confinamento do louco no
Hospital psiquiaacutetrico e sua normalizaccedilatildeo isso eacute sua reidentificaccedilatildeo ao tipo social
normal a ser obtida atraveacutes das praacuteticas meacutedico-psicoloacutegicas
Natildeo obstante malgrado os dispositivos meacutedico-psiquiaacutetricos e psicoloacutegicos
o poder natildeo tem total gerecircncia sobre o pensamento porque a ele eacute sempre
possiacutevel subverter a ordem mental instituiacuteda pois haacute uma potecircncia poliacutetica
revolucionaacuteria interna imanente proacutepria agrave vida Isso quer dizer que a potecircncia
(potentia) nunca se submete integralmente ao poder (potestas) Revoluccedilotildees satildeo
possiacuteveis bioloacutegicas psicoloacutegicas e sociais entendidas como uma subversatildeo
uma transformaccedilatildeo radical da ordem instituiacuteda Agraves vezes para garantirmos a
sauacutede bioloacutegica existencial e social eacute preciso operar revoluccedilotildees em noacutes e nos
meios em que vivemos
Assim entendemos que atraveacutes de seu pensamento meacutedico-filosoacutefico
Canguilhem quer se opor agraves tentativas de transformaccedilatildeo do meio social em meio
controlado de identificaccedilatildeo da sauacutede agrave adaptaccedilatildeo passiva agraves normas sociais
preestabelecidas e agraves praacuteticas meacutedico-psicoloacutegicas que buscam transformar os
indiviacuteduos no homem meacutedio normal mediocrizado muito aqueacutem de suas
potencialidades reativas e normativas Por isso de Friedmann ele elogia a recusa
da identificaccedilatildeo do meio social ao meio fiacutesico e dele extrai um entendimento de
sauacutede como liberaccedilatildeo da potecircncia de resistecircncia e de reaccedilatildeo dos trabalhadores
tolerante e concreta do conflito espontacircneo das normas Ela eacute entatildeo descritiva pois daacute conta dos conflitos no jogo das normas produzidas pelo homem e natildeo prescritiva reduzindo o jogo das normas a uma uacutenica norma (cf LE BLANC 2010b p154) Op cit
152
agraves condiccedilotildees opressivas do meio do trabalho reprodutor das relaccedilotildees do meio
social mais amplo
Com Foucault ele compartilha a criacutetica agrave psicologia do comportamento
como poliacutecia dos anormais e agrave medicina social higienista como dispositivo de
controle da sauacutede das populaccedilotildees e de normalizaccedilatildeo da vida cotidiana115 Dele
ainda toma a criacutetica ao Hospital psiquiaacutetrico como dispositivo de normalizaccedilatildeo dos
loucos de adaptaccedilatildeo por correccedilatildeo comportamental quando possiacutevel e quando
natildeo de exclusatildeo definitiva dos desviantes do meio social com vistas agrave defesa da
ordem social instituiacuteda
Jaacute para se opor agrave psicologia do comportamento aliada agrave neurociecircncia e agrave
psiquiatria bioloacutegica pautadas na ideia de identificaccedilatildeo do pensamento ao ceacuterebro
e deste a um computador mero receptor e organizador de dados eacute agrave Espinosa
que ele recorre pois nele encontra uma criacutetica ao cogito cartesiano e uma
115
Satildeo tantas as interlocuccedilotildees entre Canguilhem e Foucault que as aproximaccedilotildees entre seus pensamentos tecircm sido foco de estudo de vaacuterios autores Interessado nos pontos de convergecircncia mas tambeacutem de divergecircncia existentes entre eles Le Blanc (2010b) nota que Foucault natildeo acredita ser mais possiacutevel se reportar agrave vida sem considerar a sua apropriaccedilatildeo epistemoloacutegica e poliacutetica Isso porque estamos sempre submetidos aos dispositivos de poder e agraves ordens de discurso particulares configurados por uma episteme subjacente As normas sociais assim compreendidas mecanizam o sistema social impossibilitando o indiviacuteduo de escapar dos processos normalizadores Jaacute Canguilhem atribui a todas atividades humanas uma vivacidade proacutepria que natildeo pode ser integralmente capturada pelos dispositivos sociais existindo sempre uma possibilidade de resistecircncia e de sublevaccedilatildeo de escape agraves normas sociais impostas e aos efeitos do poder ldquoA invenccedilatildeo natildeo eacute para Foucault um dado da vida ordinaacuteria A renovaccedilatildeo das normas a capacidade de todo homem lsquodestruir normas e instituir novasrsquo natildeo se vecirc em Foucault salvo em raras experiecircncias histoacutericas de elevaccedilatildeo () A filosofia da vida ordinaacuteria de Canguilhem culmina numa normatividade de erracircncia absoluta A vida por sua erracircncia conquista a possibilidade de fazer acontecer outras normas A vida social natildeo estaacute definitivamente fechadardquo (LE BLANC 2010b p283-284) Em outro escrito Le Blanc (2010a) afirma que a sociedade disciplinar moderna eacute definida por Foucault como uma sociedade das normas Elas passam pelos corpos e pelos espiacuteritos natildeo havendo como escapar deste jogo normativo O indiviacuteduo jamais se libera das normas Jaacute para Canguilhem a mecanizaccedilatildeo da vida social cria e fixa margens mas haacute zonas de vida na qual o sujeito cria suas proacuteprias normas Existe entatildeo ao lado da normatividade vital uma normatividade que consiste na livre confrontaccedilatildeo entre as normas sociais jaacute existentes e as normas valorizadas individualizadas do sujeito social Haacute portanto no sujeito simultaneamente o assujeitamento agraves normas jaacute sedimentadas e a subjetivaccedilatildeo destas mesmas normas (cf LE BLANC 2010a p 86) Ou seja as normas sociais natildeo escapam agrave loacutegica criadora do vivente Vemos entatildeo que o problema eacute que nas sociedades totalitaacuterias haacute um estreitamento destas margens e a diminuiccedilatildeo das possibilidades de criaccedilatildeo de contra-normas e micro-normas o que faz com que os indiviacuteduos se pareccedilam cada vez mais dada a diminuiccedilatildeo dos processos de singularizaccedilatildeo e a imposiccedilatildeo de uma identidade coletiva Cf LE BLANC G Canguilhem et les normes 2
a ed Paris Presses Universitaires de France - PUF 2010a LE BLANC G Canguilhem
et la vie humaine Paris QuadrigePUF 2010b
153
associaccedilatildeo do pensamento ao aumento da potecircncia do corpo ideia coerente com
sua filosofia da natildeo submissatildeo agrave exterioridade da resistecircncia agrave servidatildeo e agrave
impotecircncia e que pressupotildee uma tomada de posiccedilatildeo eacutetico-poliacutetica por parte do
filoacutesofo em defesa da liberdade de pensar e de agir no mundo
Com isso Canguilhem quer mostrar que para que a cliacutenica seja meacutedica ou
psicoloacutegica deixe de ser uma teacutecnica de controle e normalizaccedilatildeo dos indiviacuteduos
ela precisa abandonar o modelo maquinal de corpo que o apresenta como
matematizaacutevel e passiacutevel de ser dominado em seus processos atraveacutes de normas
externas e se nortear pela noccedilatildeo de totalidade corpomente e por outra
concepccedilatildeo de sauacutede associada agrave capacidade de reaccedilatildeo e de resistecircncia da vida
e a sua liberdade de valorar e criar suas proacuteprias normas Aleacutem disso ela precisa
de outra orientaccedilatildeo eacutetico-poliacutetica por parte dos profissionais que a realizam em
recusa ao papel de agentes de controle social a eles atribuiacutedo Ateacute porque como
entende a ampliaccedilatildeo histoacuterica do espaccedilo no qual se exerce o controle
administrativo da sauacutede dos indiviacuteduos desembocou na atualidade numa
Organizaccedilatildeo Mundial da Sauacutede (cf EM 2005 p43)
Em resumo pela perspectiva canguilhemiana para que a cliacutenica deixe de
ser um dispositivo de normalizaccedilatildeo ela precisa acompanhar o movimento
espontacircneo da vida respeitando suas normas imanentes Para tanto seria
necessaacuteria uma mudanccedila na racionalidade meacutedica o que exigiria do profissional
uma reflexatildeo filosoacutefica sobre as teorias que fundamentam suas praacuteticas o que
inclui necessariamente o desvelamento de seu caraacuteter eacutetico-poliacutetico-ideoloacutegico
Sendo assim a forma pela qual a cliacutenica pode ser revitalizada na
atualidade segundo a racionalidade meacutedico-filosoacutefica vitalista de Canguilhem eacute o
que em seguida iremos apresentar
154
CAPIacuteTULO IV
A revitalizaccedilatildeo da cliacutenica
Eacute quando lutamos pela vida que ela nos dota de maior forccedila
Partindo do pressuposto de que a criacutetica que Canguilhem faz aos
fundamentos teoacutericos e ideoloacutegicos da medicina cientiacutefica moderna eacute profiacutecua natildeo
soacute para a filosofia mas tambeacutem para a medicina a proposta deste capiacutetulo eacute o
resgatar os elementos conceituais apresentados nos capiacutetulos anteriores para
apresentar a medicina-filosoacutefica canguilhemiana como uma nova racionalidade em
sauacutede capaz de operar uma revitalizaccedilatildeo da cliacutenica transformando-a em
dispositivo de resistecircncia agraves praacuteticas de normalizaccedilatildeo neste campo
Em nosso entender apresentando uma concepccedilatildeo de medicina que natildeo
assentada numa ciecircncia bioloacutegica do normal mas numa ciecircncia das situaccedilotildees
bioloacutegicas consideradas normais Canguilhem opera uma subversatildeo no
pensamento meacutedico na medida em que coloca o doente como indiviacuteduo
concreto e natildeo a doenccedila como entidade nosoloacutegica abstrata no centro das
praacuteticas de cuidado em sauacutede E se defendemos a originalidade de seu
pensamento e a relevacircncia de suas proposiccedilotildees natildeo eacute somente porque contribui
para o renascimento da arte da cura em tempos de tecnociecircncia mas tambeacutem
porque ele consegue abrir novos horizontes teoacutericos e eacuteticos para a formaccedilatildeo e
pesquisa em sauacutede na atualidade
Tendo em vista que ainda nos encontramos no mesmo registro de
pensamento da modernidade ou seja ainda natildeo nos livramos de uma leitura
mecanicista da vida e de um racionalismo de laboratoacuterio na definiccedilatildeo do normal e
do patoloacutegico o vitalismo canguilhemiano pode contribuir para uma nova viragem
paradigmaacutetica no pensamento meacutedico natildeo apenas por colocar em questatildeo seus
fundamentos teoacutericos a insuficiecircncia dos modelos mecacircnicos para a
compreensatildeo dos fenocircmenos vitais mas tambeacutem por desvelar seu substrato
ideoloacutegico de controle da vida em seus sentidos bioloacutegico existencial e social
155
De modo mais preciso a proposta canguilhemiana de realizaccedilatildeo de uma
criacutetica da razatildeo meacutedica praacutetica apontando para a necessidade de superaccedilatildeo da
racionalidade fisiopatoloacutegica que ocasionou uma desvitalizaccedilatildeo ou quase morte
da cliacutenica e seu apelo agrave necessidade de resgatar seu sentido primeiro o de
inclinar-se ou voltar-se ao leito do doente pode a nosso ver contribuir para a
proposiccedilatildeo de outro logos outro ethos e outra praacutexis para a cliacutenica seja ela
meacutedica psicoloacutegica ou outra livrando-a de injunccedilotildees ideoloacutegicas de controle sobre
a vida
Com efeito nos Eacutetudes dacuteHistoire et de Philosophie des Sciences ao tratar
do poder e dos limites da racionalidade em medicina Canguilhem fala da
necessidade de uma renovaccedilatildeo no pensamento meacutedico e coloca a criacutetica agrave
medicina racional como primeiro passo a ser dado para a invenccedilatildeo de novos
modelos de racionalidade neste campo ao mesmo tempo teoacuterico e praacutetico eacutetico e
poliacutetico Natildeo obstante alerta que a criacutetica natildeo deve resvalar nem na adesatildeo agrave
antimedicina nem na retomada da teoria hipocraacutetica da natura medicatrix
advogadas por charlatatildees e propagandistas da autocura mas sim culminar na
invenccedilatildeo de uma nova racionalidade meacutedica que ciente dos limites da atual
tambeacutem seja capaz de superar as limitaccedilotildees da antiga
ldquonatildeo haveria portanto no amaacutelgama ideoloacutegico em questatildeo algum nuacutecleo de positividade digno de ser retido e reconhecido como apelo a uma renovaccedilatildeo da racionalidade capaz de superar a limitaccedilatildeo da antigardquo (E 1989 p404)
Assim eacute procurando deixar claro que sua criacutetica aos fundamentos da medicina de
seu tempo natildeo resvala no irracionalismo por querer se afastar da ideologia dos
partidaacuterios da nostalgia naturista e da utopia libertaacuteria que toma por oportunista e
perigosa que Canguilhem faz questatildeo de reiterar que seu resultado natildeo deve
significar a defesa da autogestatildeo em sauacutede ou o renascimento de magias
terapecircuticas (cf E 1989 p401)
Destarte apesar de acreditar na necessidade de invenccedilatildeo de novos
modelos de cuidado em sauacutede Canguilhem natildeo deprecia o valor de uma
racionalidade meacutedica jaacute que a renovaccedilatildeo que deseja que ocorra natildeo se
156
caracteriza nem como uma satanizaccedilatildeo da medicina cientiacutefica nem como um
recuo um retorno a medicinas preacute-racionais Portanto eacute evitando realizar uma
criacutetica banal agrave medicina que percebe estar muito em voga no seu tempo que ele
apresenta outra proposta de racionalidade meacutedica que natildeo a da medicina
cientiacutefica moderna filha ou herdeira da medicina racional ativa e operativa
A criacutetica de Canguilhem se direciona entatildeo a uma determinada forma de
racionalidade que orienta a praacutetica meacutedica a biomeacutedica moderna - mecanicista
logo reducionista normalizadora e portanto controladora ou gestora da vida
cotidiana Em contraposiccedilatildeo a ela sua filosofia desenha outra racionalidade em
medicina de orientaccedilatildeo vitalista e inspiraccedilatildeo hipocraacutetica que coloca em questatildeo a
ideia de medicina como ciecircncia das doenccedilas e resgata a noccedilatildeo de medicina como
arte da cura como teacutecnica que prolonga a atividade hedocircnica proacutepria agrave vida
Tendo por pressuposto outra concepccedilatildeo de vivente que natildeo a maquinal e
de normalidade e de patologia que natildeo a cientiacutefico-experimental o fundamento da
arte meacutedica que propotildee eacute a ancoragem numa determinada concepccedilatildeo de vida
inscrita num pensamento vitalista materialista poreacutem antimecanicista e
antiteleoloacutegico que se coloca sob o signo da potecircncia e da resistecircncia da
liberdade criatividade e espontaneidade de seus fenocircmenos e que possibilita
uma compreensatildeo do normal e do patoloacutegico associada a sua capacidade
valorativa e normativa proacutepria Eacute portanto distinguindo normatividade de
normalizaccedilatildeo ndash entendida como imposiccedilatildeo de normas externas - que ele
consegue propor uma praacutetica meacutedica orientada pelo respeito agraves diversas formas
de vida a seus ritmos e normas e aos diferentes modos sociais de exerciacutecio da
vida cotidiana
Assim como jaacute apresentado se em sua anaacutelise filosoacutefica da vida
Canguilhem apresenta o vivente identificado a uma totalidade orgacircnica com
tendecircncia agrave autoconservaccedilatildeo por auto-organizaccedilatildeo e com sentido vital singular na
qual a qualidade de seus processos se saudaacuteveis ou patoloacutegicos somente podem
ser pensados a partir da relaccedilatildeo que estabelece com seu meio bioloacutegico (milieu) o
vivente humano em sua especificidade nela figura como uma totalidade orgacircnica
157
consciente dotada de sentido existencial produto e produtora do meio
sociocultural (entourage) no qual se encontra e que pode ter sua potecircncia elevada
ou diminuiacuteda de acordo com a qualidade das relaccedilotildees que nele tece
Tambeacutem como vimos no contexto de sua discussatildeo sobre as relaccedilotildees
entre as normas vitais e sociais Canguilhem apresenta uma reflexatildeo sobre as
ligaccedilotildees existentes entre a poliacutetica e a forma de organizaccedilatildeo das praacuteticas de
hospitalizaccedilatildeo fazendo referecircncia a um poder sociomeacutedico Aqui esclarece que a
imposiccedilatildeo de uma norma ideal pelas praacuteticas institucionais de sauacutede tem por
resultado a normalizaccedilatildeo de corpos e mentes por ser condiccedilatildeo necessaacuteria agrave
manutenccedilatildeo de determinado status quo social Por isso a medicina social de
tradiccedilatildeo higienista eacute definida por ele como um dispositivo estatal de controle da
sauacutede dos coletivos e a psiquiatria bioloacutegica e a psicologia comportamental como
instrumentos de diminuiccedilatildeo da potecircncia do pensamento e de normalizaccedilatildeo das
condutas sociais desviantes dado o objetivo de adaptabilidade passiva presente
nos procedimentos e nas abordagens meacutedicas psicoloacutegicas e psicossocioloacutegicas
Portanto se em biologia Canguilhem assume uma postura integrista ao
inscrever o vivente humano como individualidade concreta num meio
sociocultural (entourage) a partir de uma orientaccedilatildeo possibilista ele nos coloca a
questatildeo de em que medida a mecanizaccedilatildeo da vida social pode favorecer o
aparecimento de diversas patologias associadas agraves formas como se datildeo as
relaccedilotildees em sociedade e quais seriam as formas possiacuteveis de enfrentaacute-las Aleacutem
disso ele tambeacutem nos coloca o problema de quanto haacute de ideologia de domiacutenio
em nossas teorias e praacuteticas de sauacutede e do efeito inverso que as praacuteticas
operadas pelo conjunto das instituiccedilotildees sanitaacuterias podem causar acarretando natildeo
a potencializaccedilatildeo mas a minimizaccedilatildeo da potecircncia de resistecircncia dos indiviacuteduos
Agora neste capiacutetulo mostraremos que a racionalidade meacutedica vitalista
desenhada a partir do pensamento de Canguilhem pode trazer contribuiccedilotildees agrave
formaccedilatildeo teoacuterica agrave praacutetica assistencial e pesquisa em sauacutede abrindo outros
horizontes teoacuterico-metodoloacutegicos e eacutetico-poliacuteticos para cliacutenica menos estreitos do
que os colocados pela racionalidade biomeacutedica moderna
158
Sem querer atribuir a Canguilhem mais do que realmente quis realizar se
falamos na possibilidade de delineamento de outra racionalidade em sauacutede a
partir de uma anaacutelise do conjunto dos seus escritos eacute porque a reflexatildeo que faz
sobre os conceitos de vida normal e patoloacutegico bem como sobre a produccedilatildeo do
saber e exerciacutecio do poder meacutedicos na atualidade mais do que uma contribuiccedilatildeo
aos estudos sobre histoacuteria e filosofia das ciecircncias da vida oferece agrave medicina
elementos para o redimensionamento de suas accedilotildees num campo onde logos
ethos e praacutexis satildeo indissociaacuteveis Mas antes de apresentarmos os contornos da
racionalidade meacutedica proposta por ele eacute necessaacuterio compreendermos o que ele
considera criticaacutevel na racionalidade cientiacutefico-moderna em seus campos teoacuterico-
praacutetico e eacutetico-poliacutetico criacutetica que daacute sentido ao resgate que faz da tradiccedilatildeo
meacutedico-filosoacutefica vitalista
Nos Eacutetudes dacuteHistoire et de Philosophie des Sciences Canguilhem
esclarece que a medicina como atividade teacutecnica eacute um fenocircmeno das sociedades
industriais e tem a ver com uma escolha de caraacuteter poliacutetico na medida em que
comporta uma tomada de posiccedilatildeo impliacutecita ou expliacutecita sobre o futuro da
humanidade a estrutura da sociedade as instituiccedilotildees de higiene e seguridade
social o ensino da medicina e a profissatildeo meacutedica (cf E 1989 p383-384) Com
isso ele mostra que uma revisatildeo da razatildeo meacutedica praacutetica natildeo eacute soacute uma questatildeo
de ordem teoacuterico-epistemoloacutegica ou teacutecnico-cientiacutefica mas tambeacutem eacutetico-poliacutetica
ou ideoloacutegica na medida em que as praacuteticas de sauacutede sejam elas individuais ou
coletivas natildeo satildeo neutras tendo uma estreita relaccedilatildeo com os poderes econocircmico
e militar de uma naccedilatildeo
Assim ao realizar uma oposiccedilatildeo agrave desvalorizaccedilatildeo da vida encontrada na
teoria mecanicista de corpo e agrave desindividualizaccedilatildeo do vivente singular que ocorre
no meio mecanizado e consequentemente agraves praacuteticas meacutedicas que daiacute
decorrem ele natildeo somente estaacute fazendo uma escolha teoacuterico-epistemoloacutegica
mas ao mesmo tempo estaacute tomando uma posiccedilatildeo de caraacuteter eacutetico-poliacutetico Ou
seja ao colocar em questatildeo o poder da racionalidade da medicina cientiacutefica
159
moderna isto eacute o modelo biomeacutedico moderno e seus campos de exerciacutecio teoacuterico
e praacutetico que ele identifica como o laboratoacuterio e o hospital Canguilhem estaacute
tambeacutem colocando em questatildeo a ideologia subjacente a ele ou seja o valor
moderno de controle ou domiacutenio da vida que o orienta e que encontrou por
exemplo na psiquiatria bioloacutegica nas pesquisas ou experimentaccedilotildees cientiacuteficas
com humanos nas medidas profilaacuteticas e eugecircnicas do nazismo sua mais
completa efetivaccedilatildeo116
Em nossa leitura entatildeo ao desvelar a ideologia de controle subjacente agraves
praacuteticas de sauacutede da atualidade toda sua obra passa a ter tambeacutem um caraacuteter ou
uma dimensatildeo poliacutetica Com efeito em seu Ensaio sobre alguns problemas 116
Sendo assim acompanhamos Ferraz (1994) quando a partir de uma chave de leitura neopragmaacutetica entende que Canguilhem construiu uma epistemologia regional para medicina na qual ficam claras as particularidades dos fundamentos e das regras de accedilatildeo deste campo de saber e que ao colocar valor da vida como motor da terapecircutica realizou uma virada de 180 graus na tradiccedilatildeo meacutedica cientificista No entanto discordamos dele quando ao investigar as teses principais de O Normal e o Patoloacutegico atribui agrave Canguilhem a ideia de que o valor da vida deriva da normatividade vital como capacidade que a vida possui em si de determinar na consciecircncia os valores e juiacutezos fundamentais agrave sobrevivecircncia do ser humano porque as normas jaacute existiriam previamente numa espeacutecie de protolinguagem agrave espera de chegarem agrave consciecircncia humana Aos olhos do autor ao apresentar a normatividade vital como uma instacircncia preacute-linguiacutestica que expressa a intencionalidade da vida ele atribui agrave racionalidade universal humana uma espeacutecie de racionalidade preacutevia que informaria quais os criteacuterios de julgamento da vida qual a natureza dos mesmos e quais os fundamentos que temos para afirmar o valor da vida Fazendo do valor da vida um fato Canguilhem delegaria a responsabilidade de defesa da vida a uma razatildeo vital a uma espeacutecie de juiacutezo superior da vida segundo o qual nossos valores humanos deveriam coincidir porque seriacuteamos apenas representantes desta forccedila transcendental Segundo o comentador a entrega da defesa da vida a uma racionalidade preacute-humana poderia ganhar ldquocontornos moacuterbidosrdquo O pensamento canguilhemiano poderia representar uma ldquoreediccedilatildeo do nazismordquo pois alguns setores da sociedade poderiam tentar decifrar com fidelidade quais seriam os objetivos ou intenccedilotildees da vida e definir a partir disso qual raccedila grupo ou naccedilatildeo seria a mais fiel expressatildeo da normatividade vital justificando o direito sobre a vida dos menos capacitados Ao retirar a definiccedilatildeo dos valores da tradiccedilatildeo e colocar na vida ele justificaria crenccedilas e praacuteticas racistas ldquocolocar tal responsabilidade para a lsquolinguagem das reaccedilotildees vitaisrsquo eacute despolitizar o valor da vidardquo (FERRAZ 1994 p22) Em nossa leitura antagocircnica a do autor Canguilhem natildeo afirma que as normas estatildeo latentes a espera de manifestaccedilatildeo Tambeacutem para ele natildeo haacute como definir a normatividade vital pois ela natildeo se identifica a uma norma orgacircnica ideal mas agrave capacidade de o vivente instituir normas Na perspectiva canguilhemiana natildeo haacute uma norma orgacircnica que possa se transformar em diretriz para a teacutecnica terapecircutica visando o estabelecimento de um comportamento normativo pois cada vivente tem a sua medida Ou seja uma norma saudaacutevel somente pode ser referenciada a um indiviacuteduo concreto singular portanto natildeo pode ser universalizada O mesmo vale para a norma patoloacutegica Ao contraacuterio do comentador acreditamos que todo esforccedilo canguilhemiano estaacute voltado para afirmar a singularidade das normas e para mostrar como eacute natildeo somente doentio mas politicamente perigoso definir qual seria a normatividade ideal e impocirc-la como regra No entanto trocando a afirmaccedilatildeo da normatividade por justificaccedilatildeo da normalizaccedilatildeo o autor eacute quem deu ao pensamento de Canguilhem contornos moacuterbidos Cf FERRAZ C H O valor da vida como fato uma critica neopragmatica agrave epistemologia da vida de Georges Canguilhem Rio de Janeiro Seacuterie Estudos em Sauacutede Coletiva UERJIMS 1994
160
relativos ao normal e ao patoloacutegico ele jaacute criticava a concepccedilatildeo de sauacutede como
norma ideal e adaptaccedilatildeo passiva ao meio pela ideia de submissatildeo a ela
associada e apresentava outra na qual inscrevia a capacidade de resistecircncia na
vida mesma mostrando que todo vivente humano tem a capacidade de subverter
uma ordem instituiacuteda e criar outra mais saudaacutevel para si nos acircmbitos bioloacutegico
existencial e tambeacutem social A partir disso redesenhando a cliacutenica meacutedica ele daacute
o primeiro passo para o que mais tarde se colocaria de modo mais expliacutecito como
sua criacutetica ao modelo biomeacutedico moderno e agraves praacuteticas de normalizaccedilatildeo dele
derivadas pela funccedilatildeo social a qual se prestam
Destarte eacute por entender que a medicina traduzida por seu discurso
instituiccedilotildees e suas praacuteticas pode se transformar num dispositivo social de
normalizaccedilatildeo conveniente a um regime de Estado totalitaacuterio que precisa realizar o
controle dos indiviacuteduos propagando normas de vida nos acircmbitos bioloacutegico
existencial e social que ele propotildee outra racionalidade meacutedica assentada no
respeito agrave liberdade dos indiviacuteduos de criar suas proacuteprias normas sejam elas
vitais ou sociais
De fato como vimos em suas Novas Reflexotildees referentes ao normal e ao
patoloacutegico Canguilhem apresenta os meios teacutecnicos de sauacutede ao lado dos da
educaccedilatildeo como um dos braccedilos normalizadores do Estado Isto eacute associando as
ideias de mecanizaccedilatildeo da vida social e normalizaccedilatildeo ele mostra que a
racionalizaccedilatildeo e a planificaccedilatildeo dos meios teacutecnicos de sauacutede estatildeo em estreita
relaccedilatildeo com os interesses beacutelicos e econocircmicos dos regimes totalitaacuterios tanto de
esquerda quanto de direita Tambeacutem em seus Escritos sobre a medicina ele fala
em vida social normalizada e sua relaccedilatildeo com os interesses sociopoliacuteticos na
regulaccedilatildeo das condiccedilotildees do exerciacutecio da vida a ser realizado por um tipo
especiacutefico de organizaccedilatildeo sanitaacuteria (cf EM 2005 p62-63)
Portanto eacute sobretudo em vista da funccedilatildeo social que as praacuteticas de sauacutede
assumiram na atualidade que a racionalidade meacutedica que propotildee inclui outro
logos outro ethos e outra praacutexis isto eacute outro pensamento sobre a vida que natildeo o
mecanicista outra eacutetica que natildeo elaborada a partir de princiacutepios abstratos
161
consegue fazer uma defesa laica da vida na medida em que sustenta valores que
a vida mesma coloca como positivos para si e um diferente procedimento
metodoloacutegico pautado na observaccedilatildeo e na escuta da vida no respeito a seu
tempo de reaccedilatildeo espontacircnea e no incentivo a sua capacidade de resistecircncia
advinda de sua potecircncia normativa proacutepria
De modo mais preciso eacute por se opor aos processos de mecanizaccedilatildeo da
vida de normalizaccedilatildeo dos indiviacuteduos e agrave gestatildeo soacutecio-poliacutetica meacutedica da vida
cotidiana que Canguilhem desenha uma racionalidade meacutedica que apesar de
dialogar com a perspectiva naturista da tradiccedilatildeo meacutedica hipocraacutetica por tambeacutem
apostar na capacidade de autodefesa da vida e na idiossincrasia do doente
apresenta uma loacutegica proacutepria norteada pela noccedilatildeo de resistecircncia vital nos acircmbitos
bioloacutegico existencial e social
Com efeito em nosso trabalho de leitura sistematizaccedilatildeo e anaacutelise do
conjunto de seus escritos notamos que desde seu Essai sur quelques problegravemes
concernant le normal et le pathologique ao colocar em questatildeo a tese da
diferenccedila quantitativa entre o normal e o patoloacutegico ele jaacute apresentava as
principais diretrizes de outra loacutegica para a praacutetica e eacutetica meacutedicas com vistas agrave
configuraccedilatildeo de uma cliacutenica centrada no indiviacuteduo concreto norteada pelas
noccedilotildees de valor e sentido vitais117 Mas eacute em seus Escritos sobre a Medicina e
nos seus Eacutetudes dacuteHistoire et de Philosophie des Sciences na seccedilatildeo Meacutedecine
que de modo mais aprofundado ele opera sua criacutetica ao caraacuteter antinaturalista das
praacuteticas de sauacutede derivadas do modelo biomeacutedico moderno traduzido por ele
como desconsideraccedilatildeo da singularidade normativa individual e remata os
117
Por isso concordamos com Le Blanc (2010a) para quem a liccedilatildeo eacutetica de Canguilhem eacute a seguinte ldquoage de tal forma que multiplique a vida em si e ao redor de sirdquo A eacutetica se encontra em correspondecircncia com a vida porque o valor se inscreve no cerne mesmo dela Da vida ao valor natildeo se opera uma separaccedilatildeo porque a vida mesma eacute valor Natildeo obstante enquanto a vida eacute posiccedilatildeo inconsciente de valor o sujeito eacutetico pode colocar conscientemente seus valores seguindo os valores imanentes da vida Isso daacute agrave eacutetica todo seu peso como valorizaccedilatildeo da vida-valor Em sua especificidade o modo de ser eacutetico do meacutedico eacute uma resposta agraves possibilidades negativas que a vida pode afirmar a dor a doenccedila e a morte Quer dizer o ser eacutetico do meacutedico se realiza em seu constante confronto com os sofrimentos individuais Sendo assim o meacutedico se comporta de maneira eacutetica porque ele tenta reagir agraves diminuiccedilotildees locais de vida ldquoum ato eacutetico eacute sempre a resposta que a vida inventa no sujeito contra sua destruiccedilatildeo possiacutevelrdquo (LE BLANC 2010a p102) Op cit
162
contornos de sua racionalidade meacutedico-filosoacutefica vitalista fazendo uso dela para
debater temas atuais sobre o ensino a eacutetica e a praacutetica meacutedicas118
Sobre a intenccedilatildeo canguilhemiana eacute certo que como ele mesmo afirma no
prefaacutecio de seu Ensaio nesta obra ele natildeo se imbuiu da tarefa de apresentar uma
nova racionalidade em medicina a ponto de ocasionar uma renovaccedilatildeo
metodoloacutegica neste campo
ldquose a medicina dever renovada cabe aos meacutedicos a honra e o risco de fazecirc-lo Tivemos poreacutem a ambiccedilatildeo de contribuir para a renovaccedilatildeo de certos conceitos metodoloacutegicos retificando sua compreensatildeo pela influecircncia de uma certa concepccedilatildeo meacutedica Que natildeo se espere portanto desta obra mais do que quisemos dar A medicina eacute frequentemente a presa e a viacutetima de uma certa literatura pseudo-filosoacutefica cujos autores cumpre dizer muitas vezes satildeo os proacuteprios meacutedicos e da qual a medicina e a filosofia raramente tiram algum proveitordquo (NP 1990 p16)
Mas se em seu Ensaio sua intenccedilatildeo ao especular filosoficamente alguns
dos meacutetodos e conquistas da medicina natildeo foi dar alguma liccedilatildeo ou fazer um
julgamento de valor sobre a atividade meacutedica tendecircncia que nota ser comum na
literatura meacutedico-filosoacutefica de seu tempo em seus Escritos sobre a medicina ele
diz ter chegado o tempo de uma criacutetica que possa dar agrave medicina cientiacutefica a
consciecircncia de seus poderes e limites e que com isso consiga diminuir a
presunccedilatildeo do poder meacutedico fruto de um saber experimental que negligencia o
118
Cammelli (2006) nota que Canguilhem quer pensar a atualidade a partir do que podemos chamar de loacutegica da resistecircncia e lembra que para ele um conjunto de escritos se torna obra quanto assume uma funccedilatildeo operatoacuteria de desestabilizaccedilatildeo de um saber instituiacutedo ganhando assim relevacircncia teoacuterico-praacutetica ldquoJogando com a palavra podemos dizer que no seu caso obra vale mais como verbo do que como substantivo O escrito filosoacutefico natildeo deve ser uma lsquoobrarsquo mas alguma coisa que lsquooperarsquo algo que opera deslocamentos e efeitos de verdade no interior de um saber atualrdquo (CAMMELLI 2006 p19) Assim atraveacutes de seus estudos de epistemologia da biologia e da medicina Canguilhem quer mostrar que ao tempo em que a biologia fascista reduz o vivente a uma simples maacutequina sujeita a leis cientiacuteficas a poliacutetica fascista reduz o corpo social a um objeto bioloacutegico controlaacutevel mediante teacutecnicas guiadas pela ciecircncia como a medicina e a nova ciecircncia geneacutetica Estendendo o controle para todos os aspectos da vida da populaccedilatildeo o fascismo transforma o meacutedico numa figura-chave da biopoliacutetica pois operando a partir das noccedilotildees de meacutedia e meio eacute ele que normaliza a populaccedilatildeo levando-a agrave indiferenccedila agrave impotecircncia e agrave obediecircncia automaacutetica transformando o indiviacuteduo num sujeito doacutecil que se conforma passivamente agraves condiccedilotildees externas Sua obra entatildeo operando como um dispositivo teoacuterico-praacutetico que coloca em questatildeo os conceitos de meacutedia e meio ndash noccedilotildees a partir das quais se estrutura o poder biopoliacutetico do nazi-fascismo - denota natildeo soacute um engajamento epistemoloacutegico-poliacutetico mas provoca tambeacutem um impacto no acircmbito teacutecnico-cientiacutefico neste caso na biologia e na medicina fazendo-as rever seus objetivos e meacutetodos Cf CAMMELLI M ldquoLogiche della resistenzardquo In CANGUILHEM G Il fascismo e i contadini Bologna Il Mulino 2006
163
que chama de a priori orgacircnico de oposiccedilatildeo agrave lei da degradaccedilatildeo (cf EM 2005
p69) Isto eacute acredita ser o momento em que os meacutedicos devem reconhecer os
limites da racionalidade meacutedico-cientiacutefica moderna assumindo que no acircmbito do
exerciacutecio praacutetico de sua arte eacute necessaacuterio considerar que para a obtenccedilatildeo da cura
deve haver uma colaboraccedilatildeo entre o saber experimental e o natildeo-saber propulsivo
da vida (cf EM 2005 p69)
Na contramatildeo do pensamento meacutedico hegemocircnico da atualidade vendo
sentido em falar de natureza mesmo na era da farmacodinacircmica industrial do
imperialismo laboratorial e do tratamento eletrocircnico da informaccedilatildeo diagnoacutestica ele
resgata da medicina vitalista a confianccedila no poder de cura espontacircneo da vida
Natildeo obstante de modo a deixar clara a exata medida de sua adesatildeo agrave tradiccedilatildeo
meacutedica vitalista ele critica a proliferaccedilatildeo de uma literatura meacutedico-filosoacutefica de
inspiraccedilatildeo naturista que por falta de lucidez teoacuterica ou mesmo por maacute-feacute defende
a tese da confianccedila praacutetica no poder curativo da natureza apenas por descreacutedito agrave
medicina cientiacutefica
ldquoFoi a antipsiquiatria quem deu a partida e a antimedicalizaccedilatildeo a seguiu Muito antes das exortaccedilotildees de Ivan Illich agrave recuperaccedilatildeo pelos indiviacuteduos pela regularidade de sua sauacutede agrave autogestatildeo de sua cura e agrave reivindicaccedilatildeo de sua morte as repercussotildees da psicanaacutelise e da psicossomaacutetica no niacutevel de vulgarizaccedilatildeo proacuteprio agrave miacutedia popularizaram a ideia de uma conversatildeo do doente almejaacutevel e possiacutevel em seu proacuteprio meacutedico Acreditou-se inventar quando na realidade se retomava o tema milenar do meacutedico de si mesmordquo (EM 2005 p66)
Entendendo que a trivialidade conceitual deste tipo de literatura eacute bem pior
que o pensamento meacutedico fundamentado unicamente em conhecimentos proacuteprio
aos das ciecircncias fiacutesicas diz que este tipo de oferta terapecircutica serve sobretudo
para exploraccedilatildeo financeira de doentes insatisfeitos ou decepcionados com o que
consideram negligecircncia ou falta por parte dos meacutedicos No entanto tambeacutem
percebe que natildeo eacute por acaso que a tese do meacutedico de si mesmo e a ideia de
sauacutede retornada agraves suas fontes permanecem presentes nos manuais de sauacutede e
nas obras de medicina domeacutestica Ele acredita que se por um lado este tipo de
literatura alimenta uma arte meacutedica mal fundamentada ou interessada em
164
enganar por outro representa tambeacutem uma reaccedilatildeo sincera de compensaccedilatildeo
diante das crises da terapecircutica
ldquona realidade a literatura medica de inspiraccedilatildeo naturista permaneceu permanece e permaneceraacute sem duacutevida por muito tempo ainda dividida entre duas intenccedilotildees ou duas motivaccedilotildees reaccedilatildeo sincera de compensaccedilatildeo quando das crises da terapecircutica utilizaccedilatildeo astuciosa do desarvoramento dos doentes para a venda de qualquer electuaacuterio de Orvieto mesmo que sob a forma de impressordquo (EM 2005 p19)
Entretanto malgrado o crescimento da oferta e da adesatildeo dos doentes a
terapecircuticas natildeo cientiacuteficas ele vecirc apenas um esboccedilo de revisatildeo de ordem
profissional ainda tiacutemido e confuso em resposta aos protestos naturistas Nota
haver ateacute mesmo uma indiferenccedila ou hostilidade da grande maioria dos meacutedicos
para com os movimentos de contestaccedilatildeo da racionalidade meacutedica vigente no
interior mesmo da profissatildeo
Pela mesma perspectiva nos Eacutetudes dacuteHistoire et de Philosophie des
Sciences eacute procurando deixar claro que sua intenccedilatildeo natildeo eacute atribuir agrave medicina
cientiacutefica a culpa por todas as morbidades modernas que ele faz questatildeo de
rechaccedilar trabalhos que ao propagarem teses como a da expropriaccedilatildeo da sauacutede e
da iatrogenia em nada contribuem para a renovaccedilatildeo da racionalidade meacutedica
atual A seu ver contestar a racionalidade meacutedica em seu campo de exerciacutecio natildeo
significa aderir agrave tendecircncia radical de proposiccedilatildeo de uma desmedicalizaccedilatildeo da
sociedade nem inscrever seus argumentos num amaacutelgama de banalidades que
aglutina o discurso da qualidade de vida o naturismo agroalimentar e alguns
subprodutos da psicanaacutelise Isto eacute para ele afirmar que a racionalidade meacutedica
deve reconhecer seus limites natildeo significa colocar em questatildeo a legitimidade da
medicina mas apenas expor sua obrigaccedilatildeo de mudar de registro (cf E 1989
p401)
Ainda na mesma obra ao tratar do poder e dos limites da racionalidade em
medicina Canguilhem explica que a ambiccedilatildeo de uma medicina racional remonta
ao seacuteculo XVII como projeto e ao XVIII como programa nascendo quando os
meacutedicos franceses e italianos acreditaram poder fundar sob os princiacutepios da
165
mecacircnica cartesiana e galileana uma medicina praacutetica na qual a eficaacutecia seria
dada pela aplicaccedilatildeo de um conhecimento tido por certeiro No seacuteculo XIX
identificada a uma medicina experimental a medicina racional toma
definitivamente a precedecircncia procurando suplantar definitivamente o empirismo
meacutedico Eacute Claude Bernard quem diante dos problemas postos ao exerciacutecio praacutetico
da medicina afirma que o empirismo como o oposto do racionalismo difere
essencialmente da ciecircncia Para ele a ciecircncia estaria fundada sobre o
racionalismo dos fatos e a ciecircncia meacutedica seria aquela que explicaria racional e
experimentalmente as doenccedilas para prever seu curso e modificaacute-lo De acordo
com sua racionalidade cientiacutefico-experimental eacute necessaacuterio fazer a ciecircncia do
curar em oposiccedilatildeo agrave arte ou empirismo de curar (cf E 1989 p394)
Na seccedilatildeo dedicada agrave ideia de medicina experimental segundo Claude
Bernard Canguilhem nota que ela aparece como uma declaraccedilatildeo de guerra agrave
medicina hipocraacutetica empiacuterica expectante e observacional ao partir da ideia de
que dominar cientificamente a natureza conquistaacute-la em proveito do homem deve
ser a atitude fundamental do meacutedico experimentador ldquoa ideia de medicina
experimental a dominaccedilatildeo cientiacutefica da natureza viva eacute o hipocratismo invertidordquo
(E 1989 p132) Na perspectiva bernardiana a experimentaccedilatildeo meacutedica deve ser
fundada no conhecimento preacutevio das leis fisioloacutegicas de modo a melhor conhecer
a natureza e a partir disso agir para dominar os fenocircmenos patoloacutegicos em clara
oposiccedilatildeo agrave atitude passiva contemplativa e meramente descritiva dos
hipocraacuteticos ldquopara sair do empirismo e merecer o nome de ciecircncia essa
experimentaccedilatildeo meacutedica deve ser fundada no conhecimento das leis vitais
fisioloacutegicas ou patoloacutegicasrdquo (E 1989 p133)
Com efeito conseguindo responder a todas as exigecircncias do programa
racionalista por comportar leis e postular o determinismo de seu objeto de todas
as disciplinas a fisiologia experimental eacute a que mais tende a contestar o paradigma
naturista hipocraacutetico pois eacute ela que defende a ideia de identidade dos estados
normal e patoloacutegico e a possibilidade de dela deduzir uma teacutecnica de restauraccedilatildeo
do organismo a partir de uma norma fundada em razotildees Seguindo este princiacutepio
para a obtenccedilatildeo da cura bastaria ao meacutedico conhecer as doenccedilas identificar
166
seus sintomas e etiologia para a partir daiacute prescrever a medicaccedilatildeo absolutamente
eficaz e a profilaxia certeira
ldquoo adveacuterbio lsquoabsolutamentersquo e o adjetivo lsquocerteirorsquo satildeo aqui prova desta racionalidade bernardiana que por exaltaccedilatildeo do determinismo refuta e ridiculariza a introduccedilatildeo em medicina de conceitos e de procedimentos de ordem probabiliacutestica e estatiacutesticardquo (E 1989 p396)
Assim ao deduzir uma conduta terapecircutica do conhecimento fisioloacutegico Claude
Bernard une efetivamente a cliacutenica e o laboratoacuterio Mas mais do que isso
consegue atribuir agrave medicina um poder social ateacute entatildeo desconhecido por ela
advindo da importacircncia atribuiacuteda agrave ciecircncia e suas aplicaccedilotildees nas sociedades
industriais do XIX (cf E 1989 p140)
Tambeacutem na Ideologia e racionalidade nas ciecircncias da vida Canguilhem
avalia que a histoacuteria da medicina dos uacuteltimos seacuteculos se apresenta como uma
sucessatildeo de revisotildees conceituais e de tratamento dos fenocircmenos patoloacutegicos
notando que as racionalidades meacutedicas foram construiacutedas por processo de
rupturas e invenccedilotildees ldquoNatildeo eacute preciso ser hegeliano para admitir que tambeacutem na
medicina os caminhos da histoacuteria raramente satildeo direitosrdquo (I 1981 p52) Aqui ao
tratar do processo de constituiccedilatildeo da racionalidade biomeacutedica moderna ele
apresenta os deslocamentos que foram necessaacuterios a sua constituiccedilatildeo A
mudanccedila de locus de intervenccedilatildeo meacutedica do leito do doente situado em seu lugar
de vida cotidiana ao leito do hospital implicou numa alteraccedilatildeo na forma de
investigaccedilatildeo do fenocircmeno patoloacutegico do meio humano como campo dos
acontecimentos ao meio controlado isto eacute da experiecircncia vivida ao experimento
laboratorial e por conseguinte do homem doente agrave doenccedila do animal cobaia
Este novo modelo meacutedico fundamentado no conhecimento baseado na
coleccedilatildeo de fatos e na elaboraccedilatildeo de leis confirmadas pela experiecircncia ocasionou
uma mudanccedila na maneira de ver a relaccedilatildeo entre patologia e fisiologia e a
elucidaccedilatildeo experimental desta relaccedilatildeo acabou por acarretar numa nova maneira
de agir na cliacutenica Agora o conhecimento cientiacutefico deve ser convertido em
terapecircuticas efetivas (cf I 1981 p57) Assim em recusa aos antigos meacutetodos
167
terapecircuticos hipocraacuteticos os meacutedicos passaram a seguir entatildeo a recomendaccedilatildeo
de Brown de natildeo confiar nas forccedilas da natureza ldquoEacute preciso estimular ou debilitar
Natildeo podemos permanecer na inaccedilatildeo Natildeo devemos confiar nas forccedilas da
naturezardquo (I 1981 p49)
Aleacutem disso inscrevendo esta discussatildeo na problemaacutetica da histoacuteria das
ciecircncias e recorrendo aos conceitos de corte epistemoloacutegico de Bachelard e de
revoluccedilotildees cientiacuteficas de Kuhn ele nota que o discurso metodoloacutegico bernardiano
aliando teoria e progresso crescimento cientiacutefico sem sobressaltos e revoluccedilotildees
determinismo e accedilatildeo eficaz como seu resultado apresenta todos os componentes
de uma ideologia meacutedica que se encontra em relaccedilatildeo manifesta com a ideologia
progressista da sociedade industrial europeia em meados do seacuteculo XIX que ao
mesmo tempo em que negava o progresso social sem ordem devido ao caraacuteter
antirrevolucionaacuterio do periacuteodo tambeacutem reivindicava a dependecircncia da teacutecnica em
relaccedilatildeo agrave ciecircncia (cf I 1981 p60)
Foi com este espiacuterito que Claude Bernard empreendeu a defesa da
fisiologia como ciecircncia fundadora de uma medicina verdadeiramente cientiacutefica e
progressiva ateacute porque as teorias cientiacuteficas das quais ela seria a aplicaccedilatildeo
seriam em si mesmas progressivas ou abertas Daiacute suas duas foacutermulas a fixar ldquoO
experimentador nunca sobrevive a si proacuteprio ele estaacute sempre ao niacutevel do
progressordquo e ldquoCom teoria natildeo haacute revoluccedilotildees A ciecircncia cresce gradualmente e sem
sobressaltosrdquo O problema identificado por Canguilhem eacute que a reivindicaccedilatildeo
permanente que Claude Bernard faz do uso do meacutetodo experimental acabou por
significar a limitaccedilatildeo interna de sua proacutepria teoria meacutedica Isso porque se a praacutetica
natildeo ultrapassa a teoria sendo apenas a aplicaccedilatildeo de um conhecimento cientiacutefico
preacute-estabelecido torna-se impossiacutevel qualquer revoluccedilatildeo na teacutecnica e por
conseguinte a obtenccedilatildeo de qualquer conhecimento advindo dela
ldquoEm resumo o conceito de teoria sem revoluccedilatildeo que Claude Bernard tomou como fundamento soacutelido de sua metodologia natildeo eacute mais do que um indiacutecio da limitaccedilatildeo interna de sua proacutepria teoria meacutedicardquo (I 1981 p60)
168
Em seus Escritos sobre a medicina novamente tratando da diferenccedila entre
as medicinas expectante e cientiacutefica Canguilhem esclarece que Brown acreditava
poder resumir em duas palavras o imperativo da atividade meacutedica ldquoEacute preciso
estimular ou debilitar Inaccedilatildeo nunca Natildeo confiem na forccedila da naturezardquo A seu ver
esta era a consequecircncia necessaacuteria de certa concepccedilatildeo de corpo na qual a vida
era considerada um estado forccedilado e o corpo inteiramente subordinados agraves
potecircncias externas Isto eacute para uma medicina ativa que tem por fundamento a
ideia de corpo inerte doacutecil manipulaacutevel e inteiramente submetido ao entorno a
praacutetica meacutedica deve se dar atraveacutes de intervenccedilotildees eficazes propiciando uma
melhora ou restituiccedilatildeo de um estado de sauacutede que o doente natildeo conseguiria obter
por seus proacuteprios meios ldquoPara o corpo inerte medicina ativa () Para o corpo
dinacircmico medicina expectanterdquo (EM 2005 p12) Para uma medicina expectante
pautada na ideia de corpo dinacircmico dotado de uma capacidade espontacircnea de
conservaccedilatildeo de sua estrutura e de regulaccedilatildeo de suas funccedilotildees a arte meacutedica deve
fazer a medida do poder da natureza uma avaliaccedilatildeo de suas forccedilas e a partir
disso laisser faire a natureza ou intervir para sustentaacute-la ou ajudaacute-la ou ainda
renunciar agrave intervenccedilatildeo quando a doenccedila eacute mais forte do que a natureza (cf EM
2005 p15)
Em resumo o fundamento da medicina hipocraacutetica eacute o de que a natureza eacute
a primeira conservadora da sauacutede por ser a primeira formadora do organismo (cf
EM 2005 p13) Sendo assim o primeiro meacutedico eacute uma atividade interior a ele de
compensaccedilatildeo dos deacuteficits e de estabelecimento do equiliacutebrio rompido Por
extensatildeo em sua praacutetica o meacutedico deve fazer uma observaccedilatildeo atenta e fiel das
reaccedilotildees e performances do organismo em estado de doenccedila de modo a
compreender seus dispositivos de seguranccedila contra os riscos e sua relaccedilatildeo com o
meio119 A partir disso contar com a autofarmacopeacuteia orgacircnica com as
substacircncias liberadas pelo organismo com funccedilatildeo de remeacutedio confiando que a
119
Na coletacircnea La connaissance de la vie no artigo ldquoAspects du vitalismerdquo Canguilhem esclarece que a teoria hipocraacutetica da natura medicatrix daacute mais importacircncia agrave reaccedilatildeo do organismo e sua defesa do que agrave identificaccedilatildeo da causa moacuterbida Segundo ela importa mais prever o curso da doenccedila do que determinar sua causa A terapecircutica eacute feita mais de prudecircncia que de audaacutecia porque a natureza eacute o primeiro dos meacutedicos O vitalismo meacutedico portanto eacute a traduccedilatildeo de uma confianccedila do vivente na vida ldquoAssim vitalismo e naturismo satildeo indissociaacuteveisrdquo (CV 1985 p86)
169
natureza tambeacutem colaboraraacute com os remeacutedios que prescreveu Natildeo obstante
nenhum texto hipocraacutetico chega a descrever a natureza como infaliacutevel ou
onipotente O hipocratismo constatava que as forccedilas da natureza satildeo limitadas
pois haacute momentos em que elas cedem e o meacutedico em respeito a elas tambeacutem
deve ceder (cf EM 2005 p17)
Tambeacutem defendendo a introduccedilatildeo da ideia de natureza no pensamento e
na praacutetica meacutedicas Canguilhem coloca em questatildeo tanto a ideia de corpo inerte
quanto a de poder ilimitado da medicina fundadoras de uma terapecircutica que por
excesso de ativismo acaba por colaborar inclusive com o proacuteprio mal na medida
em que procurando entravar as iniciativas espontacircneas da natureza enfraquece
as reaccedilotildees de autodefesa do organismo (cf EM 2005 p14) Ou seja a seu ver a
ideia de que a natureza soacute fala se for bem interrogada e que quando age
responde com um paroxismo de que natildeo se deve aceitar da natureza tudo o que
ela diz da maneira como ela diz e tambeacutem o que ela faz se por um lado estaacute
certa ao identificar os limites de um hipocratismo de estrita obediecircncia - verificado
no caso das doenccedilas autoimunes em que a autodefesa se transforma em ataque -
por outro ao instaurar a desconfianccedila nos poderes curativos da vida natildeo faz mais
do que perturbar a relaccedilatildeo entre meacutedico e natureza fazendo com que entre eles
natildeo mais haja cooperaccedilatildeo mas um embate (cf EM 2005 p20)
Desta forma afirmar que a arte meacutedica deve se pautar na escuta e na
observaccedilatildeo da natureza natildeo quer dizer que ela aja sempre na exata medida do
necessaacuterio Todavia tal fato natildeo nos leva a uma medicina anti-hipocraacutetica porque
mesmo nos casos de reaccedilatildeo orgacircnica de defesa desmedida haacute a afirmaccedilatildeo do
poder curativo da natureza embora compreendido em seus limites (cf EM 2005
p 16) Por isso eacute importante esclarecer que mesmo filiado agrave tradiccedilatildeo meacutedica dos
antigos no que tange agrave consideraccedilatildeo da ideia de natureza na praacutetica meacutedica120
120
Eacute importante notar que Canguilhem embora resgate a ideia de natureza ele procura se afastar dos mais diferentes discursos ideoloacutegicos sobre ela como o dos naturistas arcaizantes que pregam em resposta aos problemas ecoloacutegicos decorrentes do desenvolvimento da sociedade industrial o retorno a uma ordem anterior mais harmocircnica entre o homem e o mundo natural Em ldquoLa question de lrsquoeacutecologie la technique ou la vierdquo ele critica as reivindicaccedilotildees anti-tecnoloacutegicas dos naturistas as quais associa agrave propaganda de produtos ldquobioloacutegicosrdquo e do turismo em regiotildees rurais Ainda esclarece que a ideia de natureza tem sido usada no contexto sociopoliacutetico para moderar a
170
Canguilhem procura deixar claro que a racionalidade meacutedica vitalista que propotildee
natildeo significa nem a retomada do naturismo hipocraacutetico embora dele tome a
confianccedila no poder de cura da vida nem o abandono do sentido de verdade da
ciecircncia malgrado a tendecircncia ao cientificismo ou racionalismo exacerbado da
atividade cientiacutefica transposto para o campo meacutedico Isto eacute ela natildeo se traduz nem
pelo ceticismo epistemoloacutegico ou niilismo terapecircutico da antimedicina nem pela
confianccedila desmedida no saber-poder meacutedico proacutepria da medicina cientiacutefica
moderna
Para contestar a racionalidade meacutedica cientiacutefico-experimental os meacutedicos
natildeo precisam fazer uma apologia da teacutecnica ou arte da cura identificada a um
hipocratismo ao gosto do dia com base numa moral humanista ou personalista
difusa nem assumir uma atitude radical de desconsiderar as contribuiccedilotildees das
pesquisas de base cientiacutefico-experimental para o exerciacutecio praacutetico da medicina
como as da imunologia da geneacutetica e da biologia molecular sobre o patrimocircnio
geneacutetico e a idiotipia que comprovam a ideia de individualidade bioloacutegica (cf EM
2005 p31)121 Ciente dos poderes e limites da racionalidade biomeacutedica moderna
eles natildeo precisam deixar de incorporar em suas praacuteticas o que a ciecircncia trouxe de
avanccedilos para a terapecircutica sobretudo no que tange ao conhecimento objetivo das
doenccedilas seu diagnoacutestico e medicaccedilotildees mas devem considerar que a eficaacutecia da
intervenccedilatildeo iraacute advir do exerciacutecio mesmo da teacutecnica meacutedica do saber que o
exerciacutecio praacutetico da medicina proporciona sobretudo no que concerne agrave
identificaccedilatildeo do normal e do patoloacutegico para um indiviacuteduo concreto entendendo
dominaccedilatildeo e a degradaccedilatildeo proacuteprias ao desenvolvimento das sociedades industriais em qualquer regime poliacutetico Ao investigar as diferentes ideologias e a finalidade poliacutetica dos discursos sobre a natureza como o eco-fascismo o eco-marxismo e o eco-capitalismo das sociedades liberais ele nota a estreita relaccedilatildeo existente entre eles e os interesses de planificaccedilatildeo e crescimento econocircmico de uma naccedilatildeo Ao expor entatildeo os diferentes discursos ideoloacutegicos sobre a natureza o que ele percebe eacute um amaacutelgama ideoloacutegico que vai do mea culpa liberal ao anticapitalismo marxista-maoiacutesta do naturismo arcaizante agrave contestaccedilatildeo hippie do romantismo ao regionalismo Cf CANGUILHEM G ldquoLa question de lrsquoeacutecologie la technique ou la vierdquo In DAGOGNET F Consideacuterations sur lrsquoideacutee de nature Paris Vrin 2000
121 Tambeacutem nos Eacutetudes ele fala da importacircncia da chamada patologia molecular para a
identificaccedilatildeo de predisposiccedilotildees geneacuteticas agrave rejeiccedilatildeo de hetero-enxertos e a certas afecccedilotildees por corroborar a ideia de individualidade bioloacutegica (cf E 1989 p405)
171
que a desindividualizaccedilatildeo da doenccedila eacute um meacutetodo de pesquisa cientiacutefica e natildeo de
intervenccedilatildeo cliacutenica
De modo mais preciso tal como apresenta nos seus Eacutetudes dacuteHistoire et de
Philosophie des Sciences para realizar a criacutetica ao cientificismo meacutedico ele natildeo
quer nem retomar o hipocratismo tradicional nem defender o naturismo
antirracionalista ou selvagem defendido pelos teoacutericos da antimedicina Segundo
ele uma coisa eacute considerar a forccedila da natureza no processo de cura outra eacute
deixar o doente a proacutepria sorte postura vinculada agrave ideologia do liberalismo
poliacutetico Isto eacute uma coisa eacute respeitar o tempo de resposta orgacircnica ao mal agindo
tecnicamente em conformidade a ela outra eacute deixar a natureza agir em livre curso
como se a teacutecnica natildeo intencional da vida prescindisse da teacutecnica meacutedica
intencional humana ldquoSe a humanidade se deu uma medicina eacute porque natildeo podia
dispensaacute-lardquo (E 1989 p385) Outra ainda eacute desconsiderar a importacircncia dos
conhecimentos cientiacuteficos para as praacuteticas meacutedicas embora elas natildeo se resumam
a mera aplicaccedilatildeo das ciecircncias puras ou fundamentais das quais se beneficia
Assim se a questatildeo natildeo eacute dispensar a teacutecnica meacutedica intencional humana
e nem os conhecimentos advindos da pesquisa cientiacutefico-experimental o
problema apresentado por Canguilhem desde seu Ensaio eacute que partir do momento
que a medicina como teacutecnica ou arte da cura se tornou uma ciecircncia das doenccedilas
houve uma mudanccedila no entendimento do patoloacutegico agora definido por meacutetodos
cientiacutefico-experimentais e por conseguinte nas praacuteticas meacutedicas A partir de uma
concepccedilatildeo de corpo maquiacutenico inerte e indiferente ou passivo e apaacutetico a sauacutede
passou a partir definiccedilotildees positivas a se identificar a um estado orgacircnico ideal
definido em condiccedilotildees experimentais determinadas a doenccedila foi tomada como
uma variaccedilatildeo quantitativa para menos deste e a cura como uma restituiccedilatildeo da
norma vital anterior da qual o organismo tinha se afastado As consequecircncias
disso foram a desconsideraccedilatildeo da heterogeneidade ou da diferenccedila qualitativa
existente entre os fenocircmenos normais e patoloacutegicos associada agrave tendecircncia agrave
mensuraccedilatildeo desses estados segundo um padratildeo de normalidade - seja
aritmeacutetico seja estatiacutestico ndash base de uma terapecircutica pensada pela perspectiva do
reparo (cf NP 1990 p217)
172
Como mostra em seus Escritos sobre a medicina tal racionalidade meacutedica
levou agrave reduccedilatildeo anatomofisioloacutegica do patoloacutegico traduzida pela
desindividualizaccedilatildeo da doenccedila e agrave identificaccedilatildeo da cliacutenica a praacuteticas de
normalizaccedilatildeo dos processos vitais dado o enquadramento da normalidade em
criteacuterios matemaacuteticos e sua imposiccedilatildeo como regra de sauacutede Transposta a mesma
loacutegica para o acircmbito populacional a desconsideraccedilatildeo da individualidade da
doenccedila se acentuou ainda mais quando da extensatildeo dos procedimentos meacutedicos
preventivos e curativos para o conjunto da sociedade a partir das medidas
higienistas com vistas agrave normalizaccedilatildeo coletiva ldquoO higienista se esmera em gerir
uma populaccedilatildeo Ele natildeo tem de se haver com indiviacuteduos Sauacutede puacuteblica eacute uma
denominaccedilatildeo contestaacutevel Salubridade conviria melhorrdquo (EM 2005 p44) Isto eacute
com o higienismo e o advento da hospitalizaccedilatildeo a noccedilatildeo de individualidade se
dissolveu no coletivo e as doenccedilas passaram a se remeter mais agrave medicina que
ao mal experienciado pelo paciente
ldquoO tratamento hospitalar das doenccedilas em uma estrutura social regulamentada contribuiu para desindividualizaacute-las ao mesmo tempo em que a anaacutelise cada vez mais artificial de suas condiccedilotildees de aparecimento extraiu sua realidade da representaccedilatildeo cliacutenica inicialrdquo (EM 2005 p 28)
Desde entatildeo o meacutedico terapeuta que exercia diversas partes da medicina
atualmente chamado cliacutenico geral perdeu seu prestiacutegio e autoridade em benefiacutecio
dos meacutedicos engenheiros especialistas nas diversas partes de um corpo-maacutequina
(cf EM 2005 p28) Mudado o local de investigaccedilatildeo da doenccedila do leito do doente
para o laboratoacuterio o doente passou a ser caracterizado pela doenccedila e a doenccedila
deixou de ser o feixe de sintomas apresentado de modo espontacircneo por ele Os
sintomas da doenccedila o diagnoacutestico etioloacutegico o prognoacutestico e a decisatildeo
terapecircutica passaram a ser sustentados natildeo mais pelo interrogatoacuterio ou
investigaccedilatildeo cliacutenica mas por pesquisas experimentais e exames laboratoriais e o
doente deixou de ser o sujeito de sua doenccedila para ser objeto
O meacutedico passou a realizar seu diagnoacutestico natildeo mais a partir da
observaccedilatildeo dos sintomas espontacircneos mas atraveacutes do exame de sinais
173
provocados A consulta passou a consistir na interrogaccedilatildeo de um banco de dados
de ordem semioloacutegica e etioloacutegica de um computador e a formulaccedilatildeo de um
diagnoacutestico a depender de uma avaliaccedilatildeo de informaccedilotildees estatiacutesticas Com o
deslocamento do local de observaccedilatildeo e anaacutelise das estruturas orgacircnicas suspeitas
para o laboratoacuterio de exames fiacutesicos e quiacutemicos a doenccedila passou a ser localizada
no oacutergatildeo no tecido na ceacutelula no gene na enzina e identificada na sala de
autoacutepsia (cf EM 2005 p24-26)
Pelo mesmo vieacutes em O normal e o patoloacutegico Canguilhem critica o uso do
modelo maquinal e o meacutetodo analiacutetico para a compreensatildeo do vivente e tambeacutem
os meacutedicos que consideram o organismo como uma maacutequina cujo rendimento
deve ser medido (cf NP 1990 p92) A seu ver de modo errocircneo a anaacutelise
anatocircmica e fisioloacutegica dissocia o organismo em oacutergatildeos e funccedilotildees elementares
tentando situar a doenccedila ao niacutevel das condiccedilotildees parciais da estrutura total ou do
comportamento de conjunto Conforme progride a anaacutelise a doenccedila eacute colocada ao
niacutevel do oacutergatildeo tecido ou ceacutelula ou seja procura-se numa parte um problema
levantado pelo organismo inteiro
ldquoEacute por essa razatildeo que achamos contrariamente a todos os haacutebitos meacutedicos atuais que eacute medicamente incorreto falar em oacutergatildeos doentes tecidos doentes ceacutelulas doentesrdquo (NP 1990 p188)
Assim recusando a ideia de que o corpo eacute um conjunto de partes como eacute
uma maacutequina ele resgata da tradiccedilatildeo hipocraacutetica a concepccedilatildeo totalizante e natildeo
localizante do patoloacutegico segundo a qual a doenccedila natildeo estaacute em alguma parte do
homem mas em todo ele e eacute toda dele ldquoa doenccedila existe natildeo somente para o
homem mas para qualquer ser vivo soacute existe doenccedila do todo orgacircnicordquo (NP
1990 p182-183) Natildeo sendo uma mera somatoacuteria de ceacutelulas e oacutergatildeos o indiviacuteduo
eacute um todo e somente como um todo pode ou natildeo ser considerado doente
ldquoProcurar a doenccedila ao niacutevel da ceacutelula eacute confundir o plano da vida concreta ndash em que a polaridade bioloacutegica estabelece a diferenccedila entre a sauacutede e a doenccedila ndash e o plano da ciecircncia abstrata em que o problema recebe uma soluccedilatildeordquo (NP 1990 p183)
174
Acreditando que sauacutede e doenccedila satildeo conceitos vulgares e natildeo cientiacuteficos
para ele a atividade meacutedica tem como centro o doente e seus julgamentos de
valor Portanto para elaborar um diagnoacutestico o meacutedico natildeo pode prescindir da
escuta e da observaccedilatildeo cliacutenicas Por isso ele julga haver um equiacutevoco quando
algueacutem fala em patologia objetiva ou em meacutetodos objetivos de investigaccedilatildeo
diagnoacutestica achando que apenas a observaccedilatildeo anatocircmica e histoloacutegica o teste
fisioloacutegico ou o exame bacterioloacutegico satildeo suficientes para realizar o diagnoacutestico da
doenccedila sem nenhum interrogatoacuterio ou exploraccedilatildeo cliacutenica
ldquoum microscoacutepio um termocircmetro um caldo de cultura natildeo podem conhecer uma medicina que o meacutedico porventura ignore Fornecem apenas um resultado Este resultado natildeo tem por si nenhum valor diagnoacutestico Para fazer um diagnoacutestico eacute preciso observar o comportamento do doenterdquo (NP 1990 p185)
Assim questionando a ideia de que eacute necessaacuterio desindividualizar a doenccedila
para compreender o fenocircmeno patoloacutegico ele apresenta outra racionalidade que
recusa este princiacutepio principal caracteriacutestica da racionalidade biomeacutedica moderna
pautada na elucidaccedilatildeo cientiacutefico-experimental do patoloacutegico isto eacute numa
patologia objetiva e propotildee outra forma de pensar na qual a doenccedila eacute antes de
tudo um pathos subjetivo e mais do que um acometimento bioloacutegico eacute uma
ameaccedila a uma existecircncia individual um drama na histoacuteria de um indiviacuteduo
concreto que vecirc mudadas suas relaccedilotildees de conjunto com seu meio (entourage)
Por esta perspectiva para individualizar a doenccedila natildeo haacute como prescindir da
relaccedilatildeo meacutedico-doente estabelecida na cliacutenica pois eacute neste momento que o
meacutedico entra em contato com o indiviacuteduo completo e concreto que sente um mal-
estar e que vivencia a anguacutestia suscitada pela doenccedila (cf NP 1990 p65)
Por outra via entatildeo guardando de Hipoacutecrates sua confianccedila na capacidade
de autodefesa da vida (vis medicatrix naturae) sua concepccedilatildeo totalizante da
doenccedila e o caraacuteter empiacuterico-observacional e relacional de sua arte meacutedica
Canguilhem apresenta uma racionalidade meacutedica vitalista proacutepria que considera a
dimensatildeo axioloacutegica da vida quer dizer que tem por base a ideia de que o
entendimento do normal e do patoloacutegico deve ser buscado na experiecircncia que os
175
homens tecircm de suas relaccedilotildees de conjunto com o meio (cf NP 1990 p65) Por
esta perspectiva individualizar a doenccedila eacute tomaacute-la como pathos de um indiviacuteduo
concreto em seu meio consciente de sua situaccedilatildeo favoraacutevel ou desfavoraacutevel na
existecircncia122
Com efeito em seu Ensaio sobre alguns problemas relativos ao normal e
ao patoloacutegico acompanhando Goldstein para quem para a compreensatildeo do ser
doente (Kranksein) eacute preciso considerar que a doenccedila eacute um abalo e uma ameaccedila
agrave existecircncia e que por isso sua definiccedilatildeo exige como ponto de partida a noccedilatildeo de
ser individual Canguilhem afirma que a sauacutede aleacutem de um comportamento
bioloacutegico eacute um sentimento de seguranccedila na vida uma maneira de abordar a
existecircncia com uma sensaccedilatildeo natildeo apenas de possuidor mas tambeacutem de criador
de novas normas vitais ldquoa palavra valere que deu origem a valor significa em
latim passar bemrdquo (NP 1990 p163) Jaacute a doenccedila eacute um comportamento de valor
negativo que para o vivente humano concreto em atividade polarizada com seu
meio chega agrave consciecircncia como um passar mal (cf NP 1990 p163)
Na mesma direccedilatildeo em La connnaissance de la vie no artigo ldquoLe normal et
le pathologiquerdquo ao tratar da singularidade individual ele novamente esclarece
que ela natildeo se refere a um tipo preestabelecido mas se remete a diferentes
organizaccedilotildees para as quais a validade ou seja seu valor se identifica a seu ecircxito
de permanecer na vida ldquoAqui estaacute o sentido profundo de identidade atestado
pela linguagem entre valor e sauacutede valere em latim eacute passar bem [bien porter]rdquo
(CV 1985 p159) Ainda mais uma vez citando o pensamento de Goldstein
122
Em vista disso Scofano amp Luz (2008) veem uma aproximaccedilatildeo possiacutevel entre os pensamentos de Canguilhem e Samuel Hahnemann (1755-1843) fundador da homeopatia Segundo as autoras Hahnemann descreveu a doenccedila como um desequiliacutebrio do organismo como um todo carregando a marca da afecccedilatildeo individual Da mesma forma Canguilhem afirma que os sintomas soacute tecircm sentido dentro de seu contexto especiacutefico e expressa um distuacuterbio global Hahnemann daacute agrave sauacutede uma definiccedilatildeo positiva como o estado de equiliacutebrio da forccedila vital entendida como uma qualidade essencial da mateacuteria que compotildee os seres vivos e que corresponde a uma concepccedilatildeo de vitalismo que entende o vivo como totalidade auto-organizada Canguilhem definiu seu vitalismo como o simples reconhecimento da originalidade da vida sobre a mateacuteria inanimada e descreveu a vida como uma polaridade dinacircmica Neste contexto a doenccedila eacute vista como uma forma de obrigar o organismo a buscar um novo equiliacutebrio para manter a homeostase Por esta perspectiva sauacutede e cura satildeo partes integrantes da auto-organizaccedilatildeo dos seres vivos e a dicotomia do processo sauacutededoenccedila eacute mero artefato linguiacutestico Cf SCOFANO D LUZ MT Vitalism and vital normativeness Hahnemann and Canguilhem Int J High Dilution Res 7(24)140-146 2008
176
corrobora sua afirmaccedilatildeo do Ensaio de que a adaptaccedilatildeo a um meio pessoal eacute um
dos pressupostos fundamentais da sauacutede e como evento subjetivamente
experimentado pelo paciente eacute mais uma apreciaccedilatildeo de valor do que algo a ser
medido ou exposto objetivamente (cf CV 1985 p164)
Assim eacute se apropriando de teorias como a de Espinosa Nietzsche
Simondon Politzer e Goldstein que Canguilhem compotildee sua concepccedilatildeo de vida
como potecircncia123 e de vivente humano como indiviacuteduo concreto que natildeo se
resume ao sujeito da modernidade124 pois se define como uma totalidade
orgacircnica consciente para a qual a doenccedila comportamento bioloacutegico de valor vital
negativo adquire tambeacutem sentido existencial negativo125 Recorrendo agrave ideia
espinosana de esforccedilo do vivente para manter-se na vida e nietzschiana de vida
como potecircncia criadora de valores que busca superaccedilatildeo ou expansatildeo e natildeo
123 Na construccedilatildeo da concepccedilatildeo canguilhemiana de vida Macherey (2009) destaca as contribuiccedilotildees de Bachelard Bergson e Espinosa A noccedilatildeo de erro e o conceito de valor vital negativo satildeo trabalhados a partir de Bachelard a ideia de esforccedilo espontacircneo de todo vivente para manter-se na vida o movimento polarizado da vida que permite ao vivente desenvolver ao maacuteximo isso que nele eacute ser ou existir tecircm inspiraccedilatildeo bergsoniana mas tambeacutem se aproxima da noccedilatildeo espinosana de conatus (cf MACHEREY 2009 p100)
124 Atraveacutes de sua criacutetica ao sujeito moderno transparente a si mesmo que pretende o domiacutenio de
tudo o que eacute de si mesmo e do mundo Canguilhem antecipa o que Ferry amp Renaut (1988) definem como o anti-humanismo hiperboacutelico da filosofia francesa contemporacircnea dos anos 6070 representada entre outros por Foucault Lacan Derrida Deleuze e Althusser e caracterizada pela proclamaccedilatildeo da morte do homem como sujeito metafiacutesico abstrato atemporal e autocircnomo pela recorrecircncia agrave histoacuteria por ldquooacutedio ao universalrdquo e pela identificaccedilatildeo do humanismo moderno a uma ideologia burguesa Com efeito ao trocar a noccedilatildeo de homem pela de vivente humano como totalidade orgacircnica consciente singular dotada de potecircncia normativa e depois pela de indiviacuteduo concreto historicizado produtor de valores e normas sociais Canguilhem compartilha com esta geraccedilatildeo a afirmaccedilatildeo das diferenccedilas individuais ou idiossincrasias a criacutetica agraves normalizaccedilotildees e a defesa de uma eacutetica libertaacuteria que recusa uma concepccedilatildeo universalista de ethos baseado na lei e nos valores universais Mas com isso ele tambeacutem teraacute de se a ver com o fato de que a criacutetica ao sujeito e a promoccedilatildeo do indiviacuteduo a defesa do direito absoluto agrave heterogeneidade colocam no horizonte o individualismo exacerbado da sociedade de consumo e que uma concepccedilatildeo individualista de ethos exclui a possibilidade de se falar em direitos humanos Cf FERRY L RENAUT A Pensamento 68 ensaio sobre o anti-humanismo contemporacircneo [trad Roberto Markeson amp Nelci do Nascimento Gonccedilalves] Satildeo Paulo Ensaio 1988
125 Para Badiou (1993) nem substancial nem transcendental nem psicoloacutegico o sujeito para
Canguilhem eacute o vivente singular centro a partir do qual emergem norma e sentido ldquorsquoHumanidadersquo eacute entatildeo o nome geneacuterico de todo sujeito vivente singularrdquo (BADIOU 1993 p302) Entatildeo se por vezes Canguilhem fala em Sujeito este soacute pode ser o sujeito vivente singular insatisfeito com seu sentido que vive em constantes deslocamentos (deacuteplacement) em relaccedilatildeo a si mesmo isto eacute um sujeito livre para se deslocar um sujeito historicizado no verdadeiro sentido do termo (cf BADIOU 1993 p304) Cf BADIOU A Y a-t-il une theacuteorie du sujet chez Georges Canguilhem In BADIOU A (et al) Georges Canguilhem Philosophe historien des sciences Actes du colloque (6 7 8 deacutecembre 1990) Op cit
177
conservaccedilatildeo de seu estado de forccedilas e ainda tomando de Simondon a noccedilatildeo de
indiviacuteduo vivente como sistema metaestaacutevel rico em potenciais e de processo de
individuaccedilatildeo como devir de potencialidades do ser ele remata sua ideia de
indiviacuteduo concreto como um todo potencial em processo contiacutenuo de auto-
organizaccedilatildeo fiacutesica e psiacutequica constituiacutedo e constituinte de seu meio capaz de
reagir a o que lhe ameaccedila atraveacutes do exerciacutecio de sua liberdade de valorar e criar
normas
De modo mais preciso como vimos a partir de seu pensamento bioloacutegico
vitalista materialista antimecanicista e antiteleoloacutegico ele define os organismos
como sistemas autorreguladores vivos com tendecircncia agrave autoconservaccedilatildeo por
superaccedilatildeo caracterizados pela espontaneidade e pela liberdade de valorar seus
comportamentos criar e infringir suas proacuteprias normas O vivente humano como
potecircncia normativa e valorativa na sua especificidade aparece dotado de sentido
bioloacutegico e existencial singular apresentando a capacidade de transformar o meio
ao mesmo tempo vital e social em que vive e de adaptar-se ativamente a ele
Portanto ele natildeo se resume a uma individualidade bioloacutegica ou fiacutesico-quiacutemica
estaacutetica mas aparece como uma totalidade individual concreta em contiacutenuo
processo de auto-organizaccedilatildeo somaacutetica e psiacutequica produto e produtora do meio
ecoloacutegico geograacutefico histoacuterico e sociocultural em que se encontra
Com efeito em O normal e o patoloacutegico Canguilhem adota uma concepccedilatildeo
de vida como potecircncia dinacircmica de superaccedilatildeo no campo somaacutetico e psiacutequico (cf
NP 1990 p90) Isso explica porque ao definir a medicina como uma arte da cura
enraizada na vida ele diz ser o meacutedico natildeo um cientista mas um artiacutefice que tem
por mateacuteria a vida humana concreta natildeo inerte e apaacutetica da tradiccedilatildeo mecanicista
submetida agrave orientaccedilatildeo normativa externa mas dinacircmica e criadora em constante
devir e portanto natildeo determinada e matematizaacutevel mas sim dotada de uma
estrutura histoacuterica tanto quanto histoloacutegica (cf NP 1990 p164) Caracterizada
pela processualidade e pela indeterminaccedilatildeo de seus acontecimentos a ela eacute
possiacutevel subverter uma ordem instituiacuteda e criar novas ordens para si mesma Eacute
por esta mesma perspectiva que ele afirma ser tambeacutem o meio bioloacutegico infiel
ldquonada acontece por acaso mas tudo ocorre sob a forma de acontecimento Eacute
178
nisso que o meio eacute infiel Sua infidelidade eacute exatamente seu devir sua histoacuteriardquo
(NP 1990 p159)
O fato de a vida ser atividade polarizada e criadora esclarece tambeacutem
porque Canguilhem diz ser a sauacutede uma maior normatividade isto eacute uma maior
capacidade de reaccedilatildeo e de instituiccedilatildeo de normas o que daacute ao vivente uma maior
possibilidade de enfrentamento agraves infidelidades do meio (milieu) Ainda que ela eacute
a indeterminaccedilatildeo inicial da capacidade do indiviacuteduo de instituir novas normas
bioloacutegicas Assim considerando que a vida estaacute habitualmente aqueacutem de suas
possibilidades ele considera ser a sauacutede em casos de necessidade de reaccedilatildeo e
de defesa por parte do vivente o poder de ir aleacutem de sua capacidade presumida
ldquoAssim como haacute um seguro psicoloacutegico que natildeo representa presunccedilatildeo haacute um
seguro bioloacutegico que natildeo representa excesso e que eacute a sauacutederdquo (NP 1990 p160)
Assim a sauacutede natildeo eacute a adoccedilatildeo e conservaccedilatildeo de uma norma orgacircnica tida
por ideal mas um guia regulador das possibilidades de reaccedilatildeo do vivente ao que
lhe ameaccedila Aleacutem disso a possibilidade de abusar da sauacutede faz parte da sauacutede o
que mostra que a ameaccedila da doenccedila eacute um dos elementos constitutivos dela
ldquoestar em boa sauacutede eacute poder cair doente e se recuperar eacute um luxo bioloacutegicordquo (NP
1990 p160) Como capacidade de superar crises a sauacutede mais do que natildeo
adoecer eacute conseguir se recuperar Daiacute o sentido da doenccedila paradoxal do homem
normal que se origina da permanecircncia do estado satildeo que nasce da existecircncia
quase incompatiacutevel com a doenccedila Como uma inquietaccedilatildeo por ter permanecido
normal o homem pode sentir uma necessidade de testar sua sauacutede jaacute que ele soacute
se sente satildeo quando sua sauacutede o abandona quando consegue frear um processo
de adoecimento que os outros levariam ateacute o fim quando potildee agrave prova sua
confianccedila bioloacutegica em si mesmo e se certifica de seu poder de recuperaccedilatildeo ldquoO
homem dito satildeo natildeo eacute portanto satildeo Sua sauacutede eacute o equiliacutebrio conquistado agrave custa
de rupturas incoativasrdquo (NP 1990 p 261)
Assim notando que a noccedilatildeo de sauacutede absoluta estaacute associada a de tipo
ideal e esta articulada ao desejo de existecircncia de um ser divino perfeito
Canguilhem adverte que a sauacutede contiacutenua sim eacute um fato anormal pois a doenccedila
179
eacute prevista para o organismo embora seja um estado contra o qual eacute preciso lutar
jaacute que para o vivente a persistecircncia na vida eacute a norma (cf NP 1990 p107)
Entendendo tambeacutem que o vivente natildeo se limita a seu organismo pois ele estaacute
inserido em um meio e que sua sauacutede estaacute estreitamente relacionada com a
qualidade das trocas que estabelece com ele na oacuteptica canguilhemiana
normalidade natildeo eacute sinocircnimo de adaptaccedilatildeo passiva mas o poder se realizar
melhor num ambiente o que demanda reatividade e criatividade vitais
indispensaacuteveis a uma atividade transformadora reciacuteproca (cf NP 1990 p73)
Tendo em vista a dimensatildeo axioloacutegica da sauacutede e da doenccedila ele diz que o
homem soacute se sente em boa sauacutede e destaca o que eacute precisamente a sauacutede
quando se sente mais do que adaptado ao meio e agraves suas exigecircncias isto eacute
quando se sente normativo ou seja capaz de seguir novas normas de vida (cf
NP 1990 p 161) Sendo assim para o vivente humano como um julgamento de
valor a sauacutede eacute traduzida por bem-estar vida longa capacidade de reproduccedilatildeo
de trabalho fiacutesico resistecircncia agrave fadiga ausecircncia de dor sentir o corpo o menos
possiacutevel uma agradaacutevel sensaccedilatildeo de existir126 Jaacute a doenccedila eacute algo nocivo
indesejaacutevel porque tambeacutem desvalorizado num dado meio social ldquomais do que a
opiniatildeo dos meacutedicos eacute a apreciaccedilatildeo dos pacientes e das ideias dominantes do
meio social que determina o que se chama lsquodoenccedilarsquordquo (cf NP 1990 p93) Isso
porque a representaccedilatildeo social da doenccedila eacute tambeacutem fator constitutivo do
patoloacutegico considerando que o estado de mal pode ser agravado pela ausecircncia
de uma atividade possiacutevel e de um papel social condigno ao enfermo (cf NP
1990 p108)
Por isso Canguilhem diz acreditar ser aleacutem do corpo entendido como
conjunto de oacutergatildeos e suas funccedilotildees que se deve olhar para julgar o que eacute normal e
patoloacutegico jaacute que a normalidade apenas poderaacute ser definida a partir da relaccedilatildeo do
indiviacuteduo com seu meio Assim considerando que sauacutede tem a ver com esta
relaccedilatildeo para saber se houve cura eacute necessaacuterio considerar como o indiviacuteduo vive 126
Canguilhem aqui entra em concordacircncia com Karl Jaspers quando em sua Psychopathologie geacuteneacuterale expotildee as dificuldades se para chegar a uma determinaccedilatildeo meacutedica do normal e da sauacutede por serem antes de tudo conceitos vulgares ou julgamentos de valor relativos agrave existecircncia (cf NP 1990 p93)
180
e se relaciona pois mesmo que sua atividade residual tenha ficado reduzida apoacutes
o episoacutedio da doenccedila o que importa eacute a satisfaccedilatildeo que ele demonstra com a
possibilidade de retorno a suas atividades cotidianas habituais Isso porque
quando se trata de normas humanas essas normas satildeo determinadas como
possibilidades de agir de um indiviacuteduo num situaccedilatildeo social e natildeo como funccedilatildeo de
um organismo encarado como um mecanismo vinculado a um meio bioloacutegico ou
fiacutesico-quiacutemico (milieu) Se o meio humano eacute um campo de experiecircncias e
empreendimentos a sauacutede passa a ser a quantidade de energia que o indiviacuteduo
dispotildee para delimitaacute-lo e estruturaacute-lo (cf NP 1990 p259) Desta forma a soacute cura
pode ser traduzida pelo aumento das possibilidades de accedilatildeo ou como diria
Espinosa como aumento da potecircncia de agir dos indiviacuteduos em seu meio
(entourage) o que pede natildeo soacute mudanccedilas normativas individuais mas tambeacutem da
normatividade social
Tambeacutem em seus Escritos sobre a Medicina em recusa a ideia de corpo
estaacutetico e objetivado tal como apresentado pela perspectiva mecanicista
Canguilhem apresenta uma concepccedilatildeo de corpo dinacircmico e subjetivo jaacute que
rechaccedila a distinccedilatildeo substancial entre res cogitans e res extensa127 Novamente
ele defende a ideia de que de que as funccedilotildees orgacircnicas de autorregulaccedilatildeo estatildeo
intimamente ligadas agraves funccedilotildees de adaptaccedilatildeo ao meio ambiente e que esta
relaccedilatildeo natildeo eacute de sujeiccedilatildeo passiva (cf EM 2005 p54-55) A maacute sauacutede eacute a
restriccedilatildeo das margens de seguranccedila orgacircnica a limitaccedilatildeo do poder de toleracircncia e
de compensaccedilatildeo agraves agressotildees do meio ambiente (cf EM 2005 p43) Aqui
considerando as noccedilotildees de patrimocircnio geneacutetico e resistecircncia orgacircnica apresenta
todo vivente humano como um organismo individual dotado de um sistema proacuteprio
de autodefesa
127
Eacute importante notar que com a noccedilatildeo de corpo subjetivo atraveacutes de uma adjetivaccedilatildeo Canguilhem escapa da mera justaposiccedilatildeo de termos como vemos nas palavras psicossomaacutetico somatopsiacutequico ou biopsicoloacutegico Em seus Eacutetudes dacuteHistoire et de Philosophie des Sciences no artigo ldquoPuissance et limites de la rationaliteacute em meacutedecinerdquo ao tratar da questatildeo mentecorpo ele diz que mesmo os adeptos da medicina psicossomaacutetica se contentam com a justaposiccedilatildeo de termos mantendo implicitamente nesta construccedilatildeo semacircntica o problema da relaccedilatildeo entre o somaacutetico e o psiacutequico (cf E 1989 p408)
181
ldquoo conceito de homem recobre com uma falsa aparecircncia de identidade especiacutefica organismos individuais providos de diferentes poderes de resistecircncia agraves agressotildees por sua ascendecircnciardquo (EM 2005 p27)
Por esta perspectiva o vivente humano como individualidade bioloacutegica natildeo pode
ser pensado como um universal mas somente como um singular128 que
consegue resistir ao que lhe ameaccedila adaptando-se ativamente ao meio devido a
sua capacidade de resistecircncia proacutepria
Mas mais do que considerar que os viventes humanos satildeo singulares
quanto agraves capacidades de resistecircncia orgacircnica individualizar a doenccedila eacute inscrevecirc-
la na histoacuteria de um indiviacuteduo concreto para o qual a doenccedila natildeo eacute apenas uma
alteraccedilatildeo anatomofisioloacutegica mas uma provaccedilatildeo no sentido afetivo do termo pois
ela o coloca diante da finitude e da impotecircncia para fazer frente agraves exigecircncias de
seu meio de vida (entourage) Isto eacute se todo ser vivo eacute um organismo singular
cuja sauacutede exprime a qualidade dos poderes que o constituem o vivente humano
em sua especificidade como indiviacuteduo concreto consciente eacute o uacutenico que tem a
capacidade de avaliar e de representar a si mesmo estes poderes de exerciacutecio e
seus limites Para este sauacutede eacute o sentimento de uma capacidade de ultrapassar
capacidades iniciais de fazer com que o corpo faccedila o que parecia natildeo prometer
inicialmente (cf EM 2005 p43)
Jaacute a doenccedila como fato bioloacutegico universal e no vivente humano como
prova existencial eacute o que desperta questionamentos sobre a precariedade de
suas estruturas orgacircnicas ldquoas doenccedilas satildeo instrumentos da vida por meio dos
quais o ser vivo quando se trata do homem se vecirc obrigado a se reconhecer
mortalrdquo (EM 2005 p33) Em resumo a doenccedila eacute um drama inevitaacutevel a ser vivido
pelo homem em algum momento de sua existecircncia inclusive por tornaacute-lo
consciente de sua finitude
128
Eacute o que faz Cammelli (2006) dizer que para Canguilhem a humanidade soacute pode ser as diferentes formas de vida cada qual com sua singularidade Logo ele questiona a noccedilatildeo de Humanidade defendida pelos marxistas pois haacute somente a existecircncia singular (cf CAMMELLI 2006 p43) Op cit
182
ldquoAs doenccedilas do homem natildeo satildeo somente limitaccedilotildees de seu poder fiacutesico satildeo dramas de sua histoacuteria A vida humana eacute uma existecircncia um ser-aiacute para um devir natildeo preordenado na obsessatildeo de seu fim Portanto o homem eacute aberto agrave doenccedila natildeo por sua condenaccedilatildeo ou sina mas por sua simples presenccedila no mundordquo (EM 2005 p62)
Como a doenccedila nunca seraacute excluiacuteda da experiecircncia humana Canguilhem
concorda com a ideia de Cornillot de que a sauacutede absoluta estaacute em contradiccedilatildeo
com a dinacircmica proacutepria dos sistemas bioloacutegicos (cf EM 2005 p 64) Aqui ao
dizer que a doenccedila eacute um episoacutedio inevitaacutevel e que o risco da doenccedila eacute inerente ao
gozo da sauacutede ele aproxima sua concepccedilatildeo de sauacutede a de Nietzsche pra quem a
grande sauacutede eacute o poder absorver e de vencer as tendecircncias moacuterbidas o poder pocircr
agrave prova todos os valores e todos os desejos (cf EM 2005 p64) Ainda reafirma
sua ideia de que estar saudaacutevel natildeo significa estar fixado em uma uacutenica norma129
e que cura natildeo eacute o retorno a um estado de normalidade preacutevio
ldquoA vida do indiviacuteduo eacute desde a origem reduccedilatildeo dos poderes da vida Porque a sauacutede natildeo eacute uma constante satisfaccedilatildeo mas o a priori do poder de dominar situaccedilotildees perigosas esse poder eacute usado para dominar perigos sucessivos A sauacutede depois da cura natildeo eacute a sauacutede anterior A consciecircncia luacutecida do fato de que curar natildeo eacute retornar ajuda o doente em sua busca de um estado de menor renuacutencia possiacutevel liberando-o da fixaccedilatildeo ao estado anteriorrdquo (EM 2005 p70)
Lembrando tambeacutem que Nietzsche por recusar a distinccedilatildeo substancial
cartesiana considerava o corpo uma grande razatildeo da qual proviria toda verdade
Canguilhem afirma que a sauacutede como verdade do corpo natildeo pode ser referida a
uma explicaccedilatildeo por teoremas Aleacutem disso a cura natildeo pode ser assimilada a um
efeito necessaacuterio de uma relaccedilatildeo meacutedico-doente de tipo mecacircnico concebida
como a de um teacutecnico competente com um mecanismo perturbado (cf EM 2005
p60) A definiccedilatildeo de sauacutede inclui a referecircncia da vida orgacircnica ao prazer e agrave dor
experimentados pelo indiviacuteduo que o discurso meacutedico acredita poder descrever
na terceira pessoa Mas a dor e o prazer satildeo sempre de algueacutem (cf EM 2005
p45) Ela eacute condiccedilatildeo a priori latente vivida em um sentido propulsivo de
129
Em La connaissance de la vie no artigo ldquoLe normal et le pathologiquerdquo ao tratar das doenccedilas mentais Canguilhem define a fixaccedilatildeo normativa como o proacuteprio estado patoloacutegico ldquoQuem quereria sustentar em mateacuteria de psiquismo humano que o anormal natildeo obedece as normas Ele talvez seja anormal porque obedece demaisrdquo (CV 1985 p 168)
183
realizaccedilatildeo de toda atividade escolhida ou imposta (cf EM 2005 p58) Por
oposiccedilatildeo as doenccedilas satildeo crises orgacircnicas das funccedilotildees de autoconservaccedilatildeo e
tambeacutem crises no esforccedilo para defender valores e razotildees de viver (cf EM 2005
p32) Por isso ele acredita que seja qual for o interesse do estudo das doenccedilas
suas variedades e histoacuteria ele natildeo pode eclipsar o interesse pelas tentativas de
compreensatildeo do papel e do sentido da doenccedila na experiecircncia humana
Todavia percebe que a partir do momento em que a sauacutede passou a dizer
respeito a um homem participante de uma comunidade social ou profissional o
sentido existencial da doenccedila desapareceu Seu sentido foi ocultado pelas
exigecircncias de uma contabilidade na medida em que passou a dizer mais respeito
ao deacuteficit orccedilamentaacuterio de uma instituiccedilatildeo do que o viver a doenccedila para o doente
Tambeacutem a sauacutede passou a ser objeto de um caacutelculo ldquoDesde entatildeo conhecemos o
checkuprdquo (EM 2005 p42) Com a multiplicaccedilatildeo dos hospitais organizados para
funcionar como maacutequinas de curar a atenccedilatildeo concedida por um meacutedico particular
a um doente particular se perdeu num espaccedilo cada vez mais preenchido por
equipamentos e regulamentos sanitaacuterios (cf EM 2005 p61) A imagem do
meacutedico haacutebil e atento de quem os doentes esperam a cura foi pouco a pouco
ocultada pela de agentes executando instruccedilotildees de um aparelho de Estado
encarregado de velar pelo direito agrave sauacutede de cada cidadatildeo em reacuteplica aos
deveres que a coletividade assume para o bem de todos (cf EM 2005 p56) Por
isso hoje ainda estamos longe de uma sauacutede medida por meio de aparelhos de
uma sauacutede livre natildeo condicionada natildeo contabilizada que natildeo eacute objeto para
aquele que se diz ou crecirc especialista da sauacutede (cf EM 2005 p44)
Natildeo sendo a cura o retorno a uma norma orgacircnica anterior Canguilhem
tambeacutem acredita que ela natildeo eacute mero efeito da terapecircutica prescrita como em
geral se ensina nas escolas meacutedicas Primeiro porque a vis medicatrix naturae
age como intermediaacuteria no processo de cura na medida em que a vida mesma
quando ameaccedilada reage criando novas normas para si Como jaacute mostrava
Hipoacutecrates nem todos os doentes tratados se curam e alguns doentes se curam
sem meacutedico (cf EM 2005 p12) Segundo porque a relaccedilatildeo intersubjetiva
meacutedico-doente interfere no processo de cura fato atestado pelo uso do meacutetodo
184
placebo e pelo poder de presenccedila do meacutedico assimilado ao do medicamento
ldquoDoravante em se tratando de remeacutedios a maneira de os dar vale mais por
vezes do que o que eacute dadordquo (EM 2005 p50) Natildeo obstante ele percebe que as
faculdades preparam mal os alunos pois fazem com que acreditem que a cura se
determina exclusivamente por intervenccedilotildees de ordem fiacutesica ou fisioloacutegica
desconsiderando a importacircncia da relaccedilatildeo ativa positiva ou negativa da relaccedilatildeo
meacutedico-doente considerada resiacuteduo arcaico de magia ou de fetichismo
A seu ver a cura eacute um acontecimento que se daacute na relaccedilatildeo entre meacutedico e
doente que nem sempre se daacute sem desentendimentos ou descompassos Ou
seja para o meacutedico do ponto de vista objetivo a cura eacute o resultado de um
tratamento validado pela enquete estatiacutestica de seus resultados mas haacute nela um
elemento subjetividade em referecircncia agrave avaliaccedilatildeo que o doente faz de seu proacuteprio
estado Haacute indiviacuteduos que apesar de objetivamente curados ainda se sentem
doentes e outros que embora ainda doentes sentem-se e comportam-se como
se estivessem curados (cf EM 2005 p60) Sendo assim o meacutedico deveria
compreender que a demanda de seus clientes pode ser apenas a de conservar
sua disposiccedilatildeo de viver sem se preocupar se os testes objetivos satildeo positivos ou
concordantes Por isso tambeacutem do ponto de vista da praacutetica meacutedica deveria valer
mais o vivido pelo sujeito vivo do que o que diz a ciecircncia do fisiologista
ldquoEacute que a sauacutede e a cura resultam de um gecircnero de discurso diferente daquele por meio do qual se aprende o vocabulaacuterio e a sintaxe nos tratados de medicina e nas conferecircncias de cliacutenicardquo (EM 2005 p59)
Em vista disso Canguilhem recorre agrave Goldstein para quem a relaccedilatildeo
meacutedico-doente natildeo eacute uma situaccedilatildeo baseada unicamente num conhecimento do
tipo da causalidade mas um debate entre duas pessoas no qual uma quer ajudar
a outra a adquirir uma estruturaccedilatildeo tatildeo conforme possiacutevel a sua essecircncia e que
portanto a tarefa do meacutedico se aproxima a do pedagogo na medida em que ele
age como um conselheiro ou guia do doente no difiacutecil caminho da cura (cf EM
2005 p64-66) Tambeacutem entendendo que a relaccedilatildeo meacutedico-doente natildeo eacute de
simples ordem instrumental de causalidade entre o gesto terapecircutico e seu
185
resultado ele contesta a ideia de que eacute possiacutevel realizar um diagnoacutestico sem a
observaccedilatildeo e a escuta do doente Aproximando a atividade meacutedica a do exegeta
propotildee entatildeo um procedimento metodoloacutegico que por influecircncia do pensamento
freudiano130 aposta na relaccedilatildeo meacutedico-paciente como integrante do processo de
cura e na interpretaccedilatildeo do sentido do sintoma para cada doente em particular
ldquoMeu meacutedico eacute aquele que aceita de modo geral que eu o instrua sobre aquilo que soacute eu estou fundamentado para lhe dizer ou seja o que meu corpo anuncia como sintoma e cujo sentido natildeo me claro Meu meacutedico eacute aquele que aceita que eu veja nele um exegeta antes de vecirc-lo como um reparadorrdquo (EM 2005 p45)
Tendo em vista tambeacutem que o entendimento sobre o patoloacutegico direciona a
terapecircutica Canguilhem destaca a importacircncia do conhecimento de seus tipos e
causas Segundo ele as doenccedilas podem ser hereditaacuterias congecircnitas ocasionais
causadas pela relaccedilatildeo do indiviacuteduo com seu meio ecoloacutegico e a seu grupo social
de vida Elas tecircm uma distribuiccedilatildeo geograacutefica e se datildeo segundo a forma das
relaccedilotildees sociais proacuteprias agraves populaccedilotildees afetadas Desta forma para compreender
sua gecircnese eacute necessaacuterio ir aleacutem de seus aspectos anatomofisioloacutegicos Todavia
embora concorde com a criacutetica ao extremismo das teorias meacutedicas enfeudadas
pelo pasteurismo e pela bioquiacutemica molecular que atribuem agraves doenccedilas
unicamente uma etiologia anatomofisioloacutegica ele tambeacutem potildee em questatildeo o que
chama de psicologismo e sociologismo na explicaccedilatildeo da gecircnese do patoloacutegico
bem como as taumaturgias de inspiraccedilatildeo psicoloacutegica e psicossocioloacutegica (cf EM
2005 p30-31)
130
Entendendo que a importacircncia da relaccedilatildeo meacutedico-paciente jaacute estava presente na medicina hipocraacutetico-galecircnica na Ideologia e racionalidade nas ciecircncias da vida Canguilhem lembra o que Freud disse sobre a medicina antiga de que o tratamento psicoloacutegico era praticamente o uacutenico de que se dispunha pois a pessoa do meacutedico era o remeacutedio principal para os doentes cuja doenccedila era em muitos casos uma intensa anguacutestia (cf I 1981 p53) Em seus Escritos sobre a medicina ele nota que a reatualizaccedilatildeo da importacircncia da relaccedilatildeo meacutedico-paciente no processo de cura deve ser creditada agrave psicanaacutelise ldquoPortanto natildeo haacute razatildeo em nos surpreender ao constatar que os meacutedicos os primeiros a considerar a cura como problema e assunto de interesse satildeo em sua maioria psicanalistas ou homens para quem a psicanaacutelise existe como instacircncia de questionamento sobre sua praacutetica e seus pressupostos ()rdquo (EM 2005 p51) Vemos assim que Canguilhem elogia Freud natildeo apenas porque seu pensamento mais se aproximou do caraacuteter axioloacutegico valorativo dos fenocircmenos vitais por incluir as noccedilotildees de conflito e polaridade na anaacutelise dos fenocircmenos psiacutequicos inconscientes mas tambeacutem por questotildees de meacutetodo por colocar a relaccedilatildeo analista-analisando como procedimento central da cliacutenica psicanaliacutetica
186
Com efeito ele questiona se devemos reconhecer apenas causalidades de
ordem socioloacutegica no aparecimento e no curso das doenccedilas ou se eacute o caso de
atribuir agrave doenccedila e agrave cura um caraacuteter psicoloacutegico como se elas fossem
exclusivamente obras do inconsciente131 No primeiro caso se as doenccedilas
derivassem apenas do bloqueio das estruturas sociais de comunicaccedilatildeo os
remeacutedios decorreriam apenas de disciplinas socioloacutegicas No segundo
dependeriam apenas de uma iniciativa de ordem psiacutequica jaacute que a apariccedilatildeo da
doenccedila neste caso decorreria de um fracasso de conduta ou de uma conduta de
fracasso (cf EM 2005 p 51-52) Acreditando na complexidade dos fatores que
concorrem para a emergecircncia do patoloacutegico ele questiona a validade de qualquer
reducionismo quando da determinaccedilatildeo da causa das doenccedilas e tambeacutem da
terapecircutica a ser indicada ldquoEm mateacuteria de reducionismo em terapecircutica o
psicologismo valeria mais do que o fisiologismordquo (EM 2005 p68)
Natildeo obstante embora acredite que eacute abusivo atribuir a todas as doenccedilas
uma gecircnese social Canguilhem afirma que devemos reconhecer a relaccedilatildeo entre
os modos de vida e a multiplicaccedilatildeo das situaccedilotildees patoloacutegicas Haacute sim doenccedilas
nas quais se deve levar em conta o status social do doente e a representaccedilatildeo que
o indiviacuteduo tem dele Por exemplo as que adveacutem da percepccedilatildeo que o indiviacuteduo
tem de seu niacutevel de inserccedilatildeo numa hierarquia de ordem profissional e cultural do
pouco reconhecimento social de suas potencialidades Assim o fato de o doente
viver a doenccedila como uma degradaccedilatildeo uma desvalorizaccedilatildeo social e natildeo apenas
como sofrimento ou reduccedilatildeo de comportamento deve ser considerado como um
dos componentes da proacutepria doenccedila O abandono de origem psicossocial pode
causar esgotamento orgacircnico propiciar a eclosatildeo de doenccedilas infecciosas e mais
ainda de afecccedilotildees relacionadas ao sistema neuroendoacutecrino como fadiga crocircnica 131
Sobre o aspecto psicoloacutegico na gecircnese e cura das doenccedilas nos Eacutetudes dacuteHistoire et de Philosophie des Sciences Canguilhem diz concordar que a consciecircncia do doente tem o poder de potencializar ou reprimir a eficaacutecia de um medicamento mas natildeo eacute o caso de atribuir ao Ccedila o poder de provocar e curar doenccedilas como defendia o meacutedico austriacuteaco Georg Groddeck pioneiro da medicina psicossomaacutetica Aqui ele novamente elogia Freud por ser mais racional e natildeo querer tratar doenccedilas como o cacircncer unicamente atraveacutes de tratamentos psicoloacutegicos e concorda com Paul Schilder autor que tem sua obra situada na intersecccedilatildeo de duas linhas de pensamento a de Freud e a de Goldstein esclarecida pela psicologia da Gestalt e pela fenomenologia para quem o aspecto psicoloacutegico da medicina eacute importante mas eacute necessaacuterio natildeo exagerar (cf E 1989 p406-408)
187
uacutelcera gastrointestinal e doenccedilas de adaptaccedilatildeo como o stress (cf EM 2005
p62)
Destarte embora ele critique a psicologia meacutedica que considera a doenccedila
como uma complacecircncia do doente ou uma situaccedilatildeo-refuacutegio ele natildeo nega o seu
fator psicoloacutegico Ele nota tambeacutem que nomear a doenccedila agrava os sintomas pelo
risco da exclusatildeo social que daiacute adveacutem tanto quanto pelo receio da consumaccedilatildeo
orgacircnica Ou seja a reaccedilatildeo de anguacutestia diante da ideia que o meio (entourage) da
pessoa doente faraacute da doenccedila tambeacutem pode ser fator agravante do seu estado de
mal
ldquoEncontramo-nos aqui na fronteira nebulosa entre a medicina somaacutetica e a medicina psicossomaacutetica ela proacutepria assediada pela psicanaacutelise Aqui o inconsciente estaacute em questatildeo tal como as teacutecnicas proacuteprias para fazecirc-lo falar a fim de saber lhe responderrdquo (EM 2005 p30)
Sobre a terapecircutica desde seu Ensaio sobre alguns problemas relativos ao
normal e ao patoloacutegico ele jaacute advertia que na ausecircncia de um modelo ideal eacute o
vivente singular que deve fornecer a norma de sua atividade restauradora quando
se trata da sauacutede humana a medida ou o criteacuterio de normalidade e anormalidade
deve ser procurado na histoacuteria de cada um (cf NP 1990 p259) Com isso a
terapecircutica deve ser definida como uma atividade normativa que visa agrave cura de
um indiviacuteduo concreto consciente quer dizer como uma accedilatildeo voltada agrave
emergecircncia de uma nova ordem vital traduzida por ele como um voltar a passar
bem Aleacutem disso jaacute alertava os meacutedicos sobre a artificialidade da identificaccedilatildeo da
doenccedila a um conjunto de sintomas e da busca da causa dos efeitos sintomaacuteticos
nos mecanismos funcionais parciais somadas agrave ignoracircncia de suas complicaccedilotildees
e ao esquecimento de aquilo que os torna patoloacutegicos eacute sua relaccedilatildeo de inserccedilatildeo
na totalidade indivisiacutevel de um comportamento individual (cf NP 1990 p65)
Tambeacutem jaacute considerava que para a compreensatildeo do patoloacutegico eacute
necessaacuterio ir aleacutem de sua base anatomofisoloacutegica ateacute porque em alguns casos
pode nem haver uma lesatildeo orgacircnica identificada como causa da doenccedila Exemplo
disso o fenocircmeno da dor-doenccedila mostra que eacute necessaacuterio admitir que a dor
188
possa ter um sentido vital sem que tenha um oacutergatildeo especiacutefico de referecircncia que
tenha um valor enciclopeacutedico de informaccedilatildeo do tipo topograacutefico ou funcional Mais
do que um impulso nervoso percorrendo um feixe de nervos sendo resultante de
um conflito do indiviacuteduo com seu meio ela eacute um fenocircmeno global que soacute tem
sentido ao niacutevel da individualidade humana concreta
ldquoParece-nos de importacircncia capital que o meacutedico proclame que o homem faz sua dor ndash como faz uma doenccedila ou como faz seu luto ndash em vez de dizer que ele recebe ou sofre essa dor Inversamente considerar a dor como uma impressatildeo recolhida num ponto do corpo e transmitida ao ceacuterebro eacute supor que ela seja toda constituiacuteda como tal sem qualquer relaccedilatildeo com a atividade do paciente que a senterdquo (NP 1990 p72-73)
Tambeacutem jaacute criticava a superficialidade das prescriccedilotildees meacutedicas pautadas
no desconhecimento das condiccedilotildees socioeconocircmicas de vida do doente
ldquoAs prescriccedilotildees do bom senso meacutedico satildeo tatildeo familiares que nelas natildeo se procura nenhum sentido profundo E no entanto eacute aflitivo e difiacutecil obedecer ao meacutedico que diz ldquoPoupe-serdquo ldquoEacute faacutecil dizer para me cuidar mas tenho minha casa para cuidarrdquo dizia por ocasiatildeo de uma consulta no hospital uma dona-de-casa que natildeo tinha nenhuma intenccedilatildeo irocircnica ou semacircntica de dizer esta frase Uma famiacutelia significa a eventualidade de um marido ou de um filho doente da calccedila rasgada que eacute preciso remendar agrave noite quando o menino estaacute na cama jaacute que ele soacute tem uma calccedila de ir longe comprar o patildeo se a padaria proacutexima estiver fechada por infraccedilatildeo aos dispositivos regulamentares etc Cuidar-se como eacute difiacutecil quando se vivia sem saber a que horas se comia sem saber se a escada era iacutengreme ou natildeo sem saber o horaacuterio do uacuteltimo bonde porque se a hora tivesse passado voltava-se a peacute para casa mesmo que fosse longerdquo (NP 1990 p158-159)
Ainda aconselhava o meacutedico a recorrer a uma terapecircutica judiciosa natildeo
agindo intempestivamente sobre um comportamento orgacircnico por exemplo a
febre hipertensatildeo ou mesmo algumas alteraccedilotildees no psiquismo entendendo que
elas podem inclusive ser necessaacuterias ao processo de cura (cf NP 1990 p157)
Recomendava ter em vista quando de suas indicaccedilotildees terapecircuticas higiecircnicas e
dieteacuteticas os haacutebitos humanos relacionados aos gecircneros niacuteveis e ritmos de vida
Natildeo havendo como universalizar procedimentos a adotar um relativismo
terapecircutico considerando que cada indiviacuteduo singular vive a seu modo no seu
meio que tambeacutem expressa haacutebitos de vida coletiva
189
ldquoJaacute que as normas fisioloacutegicas definem natildeo tanto uma natureza humana mas sobretudo haacutebitos humanos relacionados com os gecircneros de vida os niacuteveis de vida e os ritmos de vida qualquer regra dieteacutetica deve levar em conta esses haacutebitosrdquo (NP 1990 p133)
Novamente em suas Novas Reflexotildees referentes ao normal e ao
patoloacutegico ele volta a afirmar que para o meacutedico fazer um diagnoacutestico natildeo basta
realizar teses de laboratoacuterio e medidas eacute preciso estudar tambeacutem o meio fiacutesico e
social a nutriccedilatildeo o modo e as condiccedilotildees de trabalho a situaccedilatildeo econocircmica e a
educaccedilatildeo das diferentes classes sociais (cf NP 1990 p243)
Portanto desde seu Ensaio colocando em questatildeo a tese de que o estado
patoloacutegico seria apenas uma variaccedilatildeo quantitativa do estado normal Canguilhem
jaacute mostrava os principais contornos de sua racionalidade meacutedico-filosoacutefica vitalista
norteadora de uma praacutetica cliacutenica centrada no indiviacuteduo concreto atravessada
pelas noccedilotildees de sentido e valor vitais Tambeacutem jaacute ensejava sua criacutetica ao modelo
biomeacutedico moderno de orientaccedilatildeo materialista mecanicista e reducionista e aos
meacutetodos diagnoacutesticos e praacuteticas terapecircuticas dele derivadas Ou seja desde este
escrito ele jaacute apontava os limites de uma racionalidade meacutedica que troca a
experiecircncia vivida pelo experimento e que considera o doente natildeo como sujeito
de sua dor-doenccedila mas como objeto de anaacutelise e reparaccedilatildeo incapaz de se
pronunciar sobre seu mal
Mas eacute nos seus Escritos sobre a medicina que ele deixa mais claro o que
significa adotar uma racionalidade meacutedica vitalista ancorada numa patologia
subjetiva referenciada a um indiviacuteduo concreto De modo a natildeo ser acusado de
irracionalista em ldquoAs doenccedilasrdquo ele mostra estar ciente de que haacute doenccedilas que natildeo
se acessa passando pelo doente e que satildeo desconhecidas pelo cliacutenico observador
de sinais espontacircneos ou fabricados (cf EM 2005 p27) Ou seja ele natildeo quer
que o meacutedico abra matildeo do uso dos meacutetodos objetivos de investigaccedilatildeo diagnoacutestica
e se oriente exclusivamente pelo ponto de vista do doente O que ele critica eacute que
os exames que deveriam servir para o meacutedico se certificar do diagnoacutestico agora
satildeo o uacutenico meio de realizaacute-lo e seus resultados o uacutenico referencial de conduccedilatildeo
190
do tratamento em desconsideraccedilatildeo da forma como o indiviacuteduo identifica o que o
faz sofrer e como qualifica sua existecircncia
Todavia eacute principalmente em seus Eacutetudes dacuteHistoire et de Philosophie des
Sciences na seccedilatildeo Meacutedecine que Canguilhem faz uma apresentaccedilatildeo da
racionalidade meacutedico-cientiacutefica moderna pautada numa patologia objetiva base
de uma nosologia abstrata Sem desconsiderar as contribuiccedilotildees desta
racionalidade para a eliminaccedilatildeo das doenccedilas e para o aumento da expectativa de
vida ele procura apontar suas limitaccedilotildees e os problemas por ela gerados como o
excesso de ativismo meacutedico a medicalizaccedilatildeo crescente da populaccedilatildeo e os
dilemas eacuteticos relacionados agrave audaacutecia terapecircutica que as novas teacutecnicas meacutedicas
e ciruacutergicas incitam
Aleacutem disso ele tenta responder agraves provaacuteveis objeccedilotildees a sua racionalidade
como o subjetivismo na definiccedilatildeo do patoloacutegico e mostrar que seu pensamento
meacutedico-filosoacutefico apesar de estar centrado no indiviacuteduo natildeo inviabiliza praacuteticas de
sauacutede puacuteblica ou de modo mais preciso de salubridade puacuteblica mas apenas
aponta o problema da manutenccedilatildeo nelas da ideologia higienista de controle da
sauacutede das populaccedilotildees ao tempo em que natildeo deixaram de monitorar
comportamentos coletivos e de querer normalizaacute-los impondo regras higiecircnicas
dieteacuteticas e modos padronizados de vida saudaacutevel
Com efeito em ldquoO estatuto epistemoloacutegico da medicinardquo ele procura
responder agrave objeccedilatildeo de que sua criacutetica agrave medicina cientiacutefica resvalaria num
irracionalismo e tenta esclarecer o que significa exatamente dizer que em sua
praacutetica o meacutedico deve jogar o jogo da vida Aqui apoacutes apresentar o processo de
desindividualizaccedilatildeo da doenccedila como a principal caracteriacutestica da pesquisa
cientiacutefica do patoloacutegico e fazer uma distinccedilatildeo entre medicina como aplicaccedilatildeo de
uma ciecircncia e como ciecircncia aplicada conclui que ancorada numa ciecircncia da vida
a medicina natildeo perderia seu estatuto epistemoloacutegico ainda que natildeo identificada agrave
aplicaccedilatildeo das ciecircncias puras ou fundamentais das quais se beneficia No terreno
da indeterminaccedilatildeo e da contingecircncia trabalhando com a vida ela se colocaria
mais no campo da probabilidade do que da certeza Assim conservando o rigor
191
teoacuterico dos conhecimentos que empresta para a realizaccedilatildeo de seu projeto
terapecircutico sem deles ser escrava a medicina nada perderia de sua dignidade ao
transgredir eventualmente o saber advindo da pesquisa cientiacutefica-experimental (cf
E 2012 p 468)
No artigo ldquoPuissance et limites de la rationaliteacute em meacutedecinerdquo como que
respondendo agrave objeccedilatildeo de que sua criacutetica agrave noccedilatildeo de patologia objetiva eacute
irracional esclarece que se defende uma patologia subjetiva eacute na medida em que
o meacutedico natildeo pode ignorar a queixa do doente e a representaccedilatildeo subjetiva das
causas de seu mal
ldquoEacute necessaacuterio admitir que o doente eacute mais do que um terreno singular no qual a doenccedila se enraiacuteza ele eacute mais que um sujeito gramatical qualificado por um atributo emprestado da nosologia do momento O doente eacute um Sujeito capaz de expressatildeo que se reconhece como Sujeito em tudo que apenas se pode designar por possesivos sua dor e a representaccedilatildeo que ele faz dela sua anguacutestia sua esperanccedila e seus sonhosrdquo (E 1989 p408-409)
Ou seja Canguilhem apenas acredita que o meacutedico natildeo pode ignorar o ponto de
vista do sujeito assistido mesmo quando este diz estar com uma doenccedila e ele natildeo
encontra objetivamente doenccedila alguma Mesmo que ela lhe pareccedila uma ilusatildeo
ela deve ser reconhecida em sua autenticidade Ele deve sempre levar em conta a
opiniatildeo do doente sobre seu mal mesmo que por vezes tenha que substituir a
representaccedilatildeo que faz dele pelo que a ciecircncia reconhece como a verdade de sua
doenccedila Aleacutem disso Canguilhem ressalta que do mesmo modo que natildeo eacute possiacutevel
anular a dimensatildeo subjetiva da experiecircncia vivida pelo doente tambeacutem natildeo haacute
como homogeneizar e uniformizar a atenccedilatildeo e a atitude do meacutedico para com ele
dada sua singularidade constitucional
Em ldquoTherapeutique Experimentation Responsabiliteacuterdquo considerando o
caraacuteter empiacuterico da cliacutenica meacutedica ele fala do espiacuterito antifiacutesico que anima as
praacuteticas meacutedicas na atualidade no sentido de negaccedilatildeo da natureza (physis) ou
de modo mais preciso das normas singulares de sauacutede e tal ou tal doente A seu
ver em decorrecircncia da desnaturaccedilatildeo (deacute-naturation) do corpo humano a
medicina chega ateacute mesmo a despossuir o doente de sua existecircncia orgacircnica
192
proacutepria impondo normas anocircnimas julgadas superiores agraves individuais e
espontacircneas (cf E 1989 p384) Assim tendo em vista que eacute sempre na urgecircncia
que o meacutedico costuma tomar suas decisotildees e a individualizaccedilatildeo proacutepria agrave mateacuteria
da qual tratam que se presta mal ao conhecimento more geomeacutetrico ele defende
a necessidade de uma praacutetica meacutedica responsaacutevel que aceite experimentar de
modo a dar conta da singularidade de cada doente ldquouma medicina preocupada
com o homem em sua singularidade soacute pode ser uma medicina que experimentardquo
(E 1989 p389)
Acreditando entatildeo que tratar eacute em algum grau realizar uma experiecircncia
Canguilhem salienta que deve haver no meacutedico um senso de responsabilidade
moral e profissional rigorosamente sancionada ldquoReivindicar o dever da
experimentaccedilatildeo cliacutenica eacute aceitar todas as exigecircncias intelectuais e morais Ora
segundo nossa opiniatildeo elas satildeo esmagadorasrdquo (E 1989 p390) Para isso seria
necessaacuterio que as escolas meacutedicas ensinassem aos estudantes antes de
qualquer coisa suas atribuiccedilotildees e o sentido de sua tarefa futura Assim uma
verdadeira pedagogia deveria incluir obrigatoriamente uma propedecircutica meacutedica
especiacutefica na qual a psicologia e a deontologia meacutedicas se justificariam diante do
fato de que cuidar eacute sempre decidir em proveito da vida alguma experiecircncia (cf
E 1989 p391)
Contudo ele diz notar que com a hegemonia da racionalidade biomeacutedica
moderna o ensino meacutedico passou a privilegiar os aspectos teacutecnico-cientiacuteficos da
profissatildeo em detrimento da deontologia da consideraccedilatildeo dos aspectos
bioafetivos e psicossocioloacutegicos da doenccedila e da reflexatildeo sobre as condiccedilotildees
sociais e legais do exerciacutecio da praacutetica meacutedica na sociedade Ele diz ficar
estupefato com o fato de os cursos de medicina privilegiarem o ensino da
composiccedilatildeo quiacutemica da saliva e o ciclo vital das amebas intestinais das baratas de
cozinha e tratarem tatildeo pouco ou mesmo nem tratarem da psicossociologia da
doenccedila da psicologia do doente da significaccedilatildeo vital da doenccedila dos deveres do
meacutedico em relaccedilatildeo ao doente ndash e natildeo somente em relaccedilatildeo a seus colegas de
profissatildeo (E 1989 p390) Ele chega a ficar ateacute mesmo escandalizado com a
aplicaccedilatildeo de exames de seleccedilatildeo de alunos aptos para continuarem os estudos
193
meacutedicos nos quais os criteacuterios se resumem ao conhecimento de ciecircncias
fundamentais (fiacutesica quiacutemica biologia) e natildeo o sentido de responsabilidades de
sua tarefa futura e a essecircncia da atividade meacutedica - que eacute a defesa da vida (cf E
1989 p391)
Aleacutem disso ainda no mesmo escrito ao tratar da aceleraccedilatildeo das invenccedilotildees
teacutecnicas e da raacutepida incorporaccedilatildeo destas novidades na praacutetica meacutedica ele nota
primeiro que a crise mais aguda da medicina se daria hoje por conta da
diversidade de opiniotildees relativas agrave atitude e deveres do meacutedico diante das
possibilidades terapecircuticas abertas pelos resultados das pesquisas laboratoriais
pela produccedilatildeo de antibioacuteticos e vacinas intervenccedilotildees ciruacutergicas de restauraccedilatildeo
enxerto e proacutetese e aplicaccedilatildeo no organismo de corpos radioativos Colocando em
questatildeo os problemas da audaacutecia terapecircutica que as novas teacutecnicas meacutedicas e
ciruacutergicas possibilitam e a tecnocracia meacutedica expliacutecita de usar a experimentaccedilatildeo
terapecircutica em nome do direito que todo indiviacuteduo tem sobre seu organismo
Canguilhem sem querer adotar uma postura reacionaacuteria diz acreditar que a
medicina natildeo deve rejeitar em defesa da vida os benefiacutecios que estas inovaccedilotildees
trazem mas nos alerta sobre perigos de privilegiar as novidades em relaccedilatildeo ao
uso e sobretudo sobre os interesses coorporativos e econocircmicos que estatildeo por
traacutes da incorporaccedilatildeo delas ldquoNatildeo eacute somente a razatildeo que tem suas astuacutecias os
interesses tambeacutem tecircm as suasrdquo (E 1989 p384)
Na mesma direccedilatildeo em ldquoPuissance et limites de la rationaliteacute em meacutedecinerdquo
diz que a medicina eacute campo teoacuterico-praacutetico de produccedilatildeo de saber e de exerciacutecio
de poder no qual deveres e benefiacutecios estatildeo em jogo Com vaacuterias facetas para
os acadecircmicos ela eacute uma ciecircncia para os meacutedicos praacuteticos que atuam no hospital
uma teacutecnica para a sociedade um direito a ser reivindicado para o Estado e para
o laboratoacuterio farmacecircutico a aacuterea de escoamento de seus novos produtos
Aqui ele nota que a revoluccedilatildeo terapecircutica dada pela invenccedilatildeo da
farmacoterapia cientiacutefica e pela vulgarizaccedilatildeo das novidades organizada por
aqueles que a exploram gerou na sociedade um comportamento cultural de
impaciecircncia de cura e frenesi por inovaccedilotildees farmacoloacutegicas A crenccedila no
194
progresso da racionalidade meacutedica fez com que houvesse uma confusatildeo entre
valor de uso e uacuteltimo grito e uma cobranccedila cada vez maior da sociedade de
resolutividade por parte os serviccedilos de sauacutede puacuteblica com pouca toleracircncia em
relaccedilatildeo agrave impotecircncia meacutedica diante de certas doenccedilas O resultado disso foi a
conversatildeo do apelo pateacutetico em reivindicaccedilatildeo ou direito de ter sua sauacutede
garantida pelo Estado numa maior obstinaccedilatildeo terapecircutica e numa medicalizaccedilatildeo
crescente da populaccedilatildeo ldquoEacute incontestaacutevel que os imperativos da farmacovigilacircncia
em meacutedio e longo prazos podem ceder diante do entusiasmo e do interesserdquo (E
1989 p402-403)
Apontando o quanto a medicalizaccedilatildeo excessiva eacute nociva para a sauacutede por
fragilizar a resistecircncia orgacircnica natural sem contar a possibilidade da iatrogenia
Canguilhem diz acreditar que a questatildeo natildeo eacute desmedicalizar radicalmente a
sociedade mas agir com cautela dosando os riscos e benefiacutecios do uso dos
medicamentos e da realizaccedilatildeo dos atos ciruacutergicos Por exemplo ele natildeo nega que
o antibioacutetico seja a invenccedilatildeo mais revolucionaacuteria da histoacuteria da terapecircutica mas
aponta os riscos de natildeo eliminaccedilatildeo do agressor pelo medicamento e a
consequente ocorrecircncia de mutaccedilotildees que o tornaria mais resistente132
Vemos entatildeo como desde seu Ensaio Canguilhem faz uso de sua
racionalidade vitalista para operar sua criacutetica agrave medicina moderna e se inscrever
nos debates meacutedico-cientiacuteficos sobre a formaccedilatildeo pesquisa e praacuteticas em sauacutede
Colocando em cena problemas que ainda estatildeo longe de serem resolvidos seu
pensamento meacutedico-filosoacutefico por seu caraacuteter propositivo aponta algumas saiacutedas
e nos instiga a novas reflexotildees Sua discussatildeo sobre patologia objetiva e
subjetiva por exemplo antecipa as recentes discussotildees sobre a medicina
baseada em evidecircncias e a medicina baseada em narrativas assim como as
criacuteticas que faz ao hospital como lugar de objetivaccedilatildeo ou desindividualizaccedilatildeo do
132
Tambeacutem em seus Escritos sobre a medicina criticando o que chama de doenccedila obsessiva pela sauacutede ele igualmente trata do problema natildeo soacute do uso excessivo de antibioacuteticos que pode ter por consequecircncia o aparecimento de microacutebios ainda mais resistentes mas tambeacutem da praacutetica generalizada de vacinaccedilotildees Ainda fala que a multiplicaccedilatildeo de atos meacutedicos e ciruacutergicos nas sociedades industriais de alta tecnologia de proteccedilatildeo sanitaacuteria tambeacutem pode aumentar os riscos de fragilizaccedilatildeo dos mecanismos bioloacutegicos de resistecircncia agraves doenccedilas (cf EM 2005 p26-27)
195
doente e de tratamento no anonimato satildeo problemas que as poliacuteticas de
humanizaccedilatildeo dos serviccedilos de sauacutede ainda hoje procuram solucionar133 Mesmo
suas anaacutelises sobre o ambiente e as relaccedilotildees no trabalho tambeacutem nos parecem
atuais quando realizamos reflexotildees relativas agrave sauacutede fiacutesica e mental dos
trabalhadores
Aleacutem disso a questatildeo que coloca sobre os malefiacutecios do consumo abusivo
de medicamentos e do excesso de atos ciruacutergicos sem a devida consideraccedilatildeo dos
seus riscos de imediato nos remete ao elevado nuacutemero de cirurgias bariaacutetricas
realizadas no Brasil e ao uso exorbitante de medicamentos por mulheres
sobretudo os anorexiacutegenos e os ansioliacuteticos benzodiazepiacutenicos sem contar o
nuacutemero de crianccedilas que fazem uso de medicamentos para o controle do
comportamento devido a transtorno de deacuteficit de atenccedilatildeo com hiperatividade
(TDAH)134
133
Segundo Benevides amp Passos (2005) considerando que o Homem como imagem transcendental que paira como realidade separada tem sido a garantia da normalizaccedilatildeo da classificaccedilatildeo e da definiccedilatildeo de praacuteticas modeladoras e corretivas de tudo que se afasta ou se desvia dessa figura identificatoacuteria ideal o que se quer hoje entatildeo quando se fala em humanizaccedilatildeo dos serviccedilos de sauacutede soacute pode ser um novo humanismo que sirva de base para accedilotildees natildeo mais orientadas por uma noccedilatildeo idealizada do Homem mas comprometidas com a experiecircncia singular de qualquer homem em processo contiacutenuo de humanizaccedilatildeo Neste contexto Canguilhem pode contribuir com seu pensamento sobre a sauacutede como experiecircncia de criaccedilatildeo de si e de modos de viver tomando a vida em seu movimento de produccedilatildeo de normas e natildeo de assujeitamento a elas ldquoA contribuiccedilatildeo de Canguilhem (1978) para o debate acerca da normatividade da vida eacute indispensaacutevel Este autor nos indicou como a vida se define natildeo por uma assujeitamento a normas e sim por uma produccedilatildeo delas A distinccedilatildeo proposta entre normalidade e normatividade daacute a direccedilatildeo para este debate acerca do tema da humanizaccedilatildeo como experiecircncia concreta de um homem em processo de produccedilatildeo de si e de sua sauacutede Por humanizaccedilatildeo entendemos portanto menos a retomada ou revalorizaccedilatildeo da imagem idealizada do Homem e mais a incitaccedilatildeo a um processo de produccedilatildeo de novos territoacuterios existenciaisrdquo (Benevides amp Passos 2005 p570) Cf BENEVIDES R PASSOS E A humanizaccedilatildeo como dimensatildeo puacuteblica das poliacuteticas de sauacutede Ciecircnc sauacutede coletiva [online] 2005 vol10 n3 pp 561-571
134 Cada vez mais os diagnoacutesticos incidem sobre a infacircncia e a adolescecircncia patologizando
comportamentos proacuteprios a estas fases da vida sem a devida identificaccedilatildeo dos fatores contextuais familiares e culturais que os geram Como exemplo de acordo com o Manual Diagnoacutestico e Estatiacutestico de Transtornos Mentais ndash DSM IV (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders IV) no TDAH a hiperatividade pode manifestar-se por inquietaccedilatildeo ou remexer-se na cadeira por natildeo permanecer sentado quando deveria por correr ou subir excessivamente em coisas quando isto eacute inapropriado por dificuldade em brincar ou ficar em silecircncio em atividades de lazer por frequentemente parecer estar a todo vapor ou cheio de gaacutes ou por falar em excesso Os bebecircs e preacute-escolares com este transtorno diferem de crianccedilas ativas por estarem constantemente irrequietos e envolvidos com tudo agrave sua volta eles andam para laacute e para caacute movem-se mais raacutepido que a sombra sobem ou escalam moacuteveis correm pela casa e tecircm dificuldades em participar de atividades sedentaacuterias em grupo durante a preacute-escola As crianccedilas
196
Aleacutem disso atraveacutes da reflexatildeo que faz nos seus Eacutetudes sobre os jogos de
interesse que estatildeo por traacutes da proliferaccedilatildeo de diagnoacutesticos e suas medicaccedilotildees
dado o atrelamento da cliacutenica meacutedica agrave induacutestria farmacecircutica ele nos faz pensar
se hoje o profissional meacutedico natildeo se tornou um garoto-propaganda dos novos
produtos disponiacuteveis no mercado Chegamos a tal ponto de natildeo sabermos mais se
o remeacutedio prescrito eacute o mais apropriado para o doente ou para o par meacutedico-
induacutestria farmacecircutica ou mesmo se a doenccedila diagnosticada apareceu nas
classificaccedilotildees meacutedicas depois da invenccedilatildeo do medicamento ou seja se primeiro
ocorreu a descoberta da droga e somente depois a invenccedilatildeo cientiacutefica da
doenccedila135
Ainda a partir de suas reflexotildees sobre as pesquisas de ponta no campo
biomeacutedico sobre a rejeiccedilatildeo nos transplantes de oacutergatildeos e a possibilidade de
constituiccedilatildeo de um banco de viacutesceras disponiacuteveis agrave demanda noacutes nos
perguntamos se algumas pesquisas de fato visam o futuro da humanidade se
em idade escolar exibem comportamentos similares mas em geral com menor frequecircncia ou intensidade do que bebecircs e preacute-escolares Elas tecircm dificuldade para permanecer sentadas levantam-se com frequecircncia e se remexem ou sentam-se na beira da cadeira como que prontas para se levantarem Elas manuseiam objetos inquietamente batem com as matildeos e balanccedilam pernas e braccedilos excessivamente Com frequecircncia se levantam da mesa durante as refeiccedilotildees enquanto assistem televisatildeo ou enquanto fazem os deveres de casa falam em excesso e podem fazer ruiacutedos demasiados durante atividades tranquilas Em adolescentes e adultos os sintomas de hiperatividade assumem a forma de sensaccedilotildees de inquietaccedilatildeo e dificuldade para envolver-se em atividades tranquilas e sedentaacuterias Os indiviacuteduos com este transtorno tipicamente fazem comentaacuterios inoportunos interrompem demais os outros metem-se em assuntos alheios agarram objetos de outros pegam coisas que natildeo deveriam tocar e fazem palhaccediladas A impulsividade pode levar a acidentes (por ex derrubar objetos colidir com pessoas segurar inadvertidamente uma panela quente) e ao envolvimento em atividades potencialmente perigosas sem consideraccedilatildeo quanto agraves possiacuteveis consequecircncias (por ex andar de skate em um terreno extremamente irregular)
135 Segundo Caponi (2010) os recentes estudos sobre fisiologia do ceacuterebro base da atual neurociecircncia e da psiquiatria tecircm contribuiacutedo para a expansatildeo do uso de drogas psicotroacutepicas para um nuacutemero crescente de transtornos de humor e ansiedade Ela entende que o sonho de encontrar foacutermulas maacutegicas para resolver os problemas comportamentais ou cognitivos e para maximizar nosso potencial aumentou nos uacuteltimos anos acarretando em algo que Canguilhem natildeo podia prever o surgimento de novas patologias a partir da descoberta de novos psicotroacutepicos Acredita que poderiacuteamos repetir a mesma criacutetica de Canguilhem em O ceacuterebro e o pensamento sobre o valor das imagens de tomografia por emissatildeo ou ressonacircncia magneacutetica funcional para a compreensatildeo da sauacutede e da doenccedila mental Tambeacutem questionar a multiplicaccedilatildeo diagnoacutestica e uso abusivo de medicamentos para tratamento da depressatildeo TDAH (Transtorno de Deacuteficit de Atenccedilatildeo com Hiperatividade) e os chamados transtornos de ansiedade ofuscando ou ignorando as referecircncias necessaacuterias ao corpo subjetivo Cf CAPONI S Georges Canguilhem del cuerpo subjetivo a la localizacioacuten cerebral Salud Colectiva Buenos Aires 6(2)149-161 MayoAgosto 2010
197
querem responder agrave realizaccedilatildeo do velho sonho da medicina de conservaccedilatildeo e
bom uso da sauacutede como lembra Canguilhem ou se o interesse que estaacute por traacutes
delas natildeo eacute a possibilidade de mercantilizaccedilatildeo de seus resultados136
Sobre o ensino tanto em seus Escritos sobre a medicina quanto nos
Eacutetudes dacuteHistoire et de Philosophie des Sciences Canguilhem critica as escolas
meacutedicas que costumam desconsiderar a importacircncia da relaccedilatildeo meacutedico-doente e
dar privileacutegio aos estudos anatomofisioloacutegicos em detrimento de disciplinas que
abordam os aspectos filosoacuteficos psicoloacutegicos e socioantropoloacutegicos do processo
sauacutededoenccedila A seu ver a ultraespecializaccedilatildeo na formaccedilatildeo meacutedica natildeo apenas
fez com que o corpo fosse decomposto em partes e que fosse perdida a noccedilatildeo de
totalidade orgacircnica Tambeacutem a reduccedilatildeo anatomofisioloacutegica fez com que o doente
fosse descontextualizado de seu meio sociocultural de vida e que o meacutedico
perdesse de vista os fatores psicoloacutegicos sociais e ecoloacutegicos envolvidos na
gecircnese do patoloacutegico ignorando sua complexidade etioloacutegica Isso nos faz
questionar em que medida uma formaccedilatildeo centrada no laboratoacuterio e na sala de
anatomia habilita o profissional meacutedico a trabalhar com o vivente humano em sua
136 Tambeacutem Giroux (2010) entende que na atualidade o estatuto de doente estaacute cada vez mais ligado agraves possibilidades de tratamento e agraves descobertas e inovaccedilotildees da induacutestria farmacecircutica Daiacute sua questatildeo Se encontraacutessemos um tratamento para prolongar a vida e retardar o envelhecimento a velhice poderia ser considerada doenccedila A seu ver caracterizar um estado como patoloacutegico tem importantes consequecircncias sociais eacuteticas poliacuteticas e juriacutedicas pois tal categorizaccedilatildeo repercute no plano de investimentos e sobre a orientaccedilatildeo das pesquisas biomeacutedicas decide e justifica a adoccedilatildeo de terapecircuticas a concessatildeo de beneacuteficos e direitos especiacuteficos e no acircmbito judiciaacuterio tambeacutem decide a responsabilidade criminal Partindo da criacutetica ao conceito biomeacutedico de doenccedila realizada por Canguilhem ele tambeacutem pergunta se a definiccedilatildeo objetiva de doenccedila e da sauacutede natildeo teria alargado o campo da medicina e possibilitado o uso ideoloacutegico da noccedilatildeo de doente Ainda se haveria uma demarcaccedilatildeo natural entre o normal e o patoloacutegico tal como entende a biomedicina ou uma relatividade histoacuterica e social presidindo a categorizaccedilatildeo de um estado considerado normal ou patoloacutegico como querem os socioacutelogos historiadores antropoacutelogos filoacutesofos e mesmo alguns psiquiatras Ele acredita que haacute uma natureza construiacuteda ideoloacutegica e sociopoliacutetica pretensamente cientiacutefica e naturalista que seria usada para justificar de maneira disfarccedilada as exclusotildees sociais poliacuteticas ou morais ou ainda promover uma medicalizaccedilatildeo excessiva do domiacutenio da vida ndash na linguagem de Ivan Illich uma expropriaccedilatildeo da sauacutede e na de Foucault um biopoder Como Canguilhem ele acredita que a extensatildeo indefinida do domiacutenio da medicina e do campo do patoloacutegico eacute fortalecida pela definiccedilatildeo de sauacutede da Organizaccedilatildeo Mundial de Sauacutede (OMS) como completo estado de bem-estar fiacutesico mental e social Mas o que entender por completo bem-estar Natildeo residiria aiacute o sentido da proliferaccedilatildeo diagnoacutestica e da crescente medicalizaccedilatildeo da vida na atualidade Cf GIROUX E Apregraves Canguilhem deacutefinir la santeacute et la maladie Paris Presses Universitaires de France PUF 2010
198
integralidade e ainda ter um olhar criacutetico em relaccedilatildeo aos jogos de interesse
poliacuteticos e econocircmicos presentes no que chamamos de campo da sauacutede
Ademais seu pensamento levanta algumas questotildees sobre os dilemas
eacuteticos e a conduccedilatildeo das pesquisas envolvendo viventes humanos e natildeo humanos
pela perspectiva da chamada bioeacutetica137 Fazendo menccedilatildeo agrave cacotanaacutesia derivada
do excesso de ativismo terapecircutico por exemplo caracteriacutestica da obstinaccedilatildeo
terapecircutica em casos de terminalidade da vida138 ele daacute a entender que a
eutanaacutesia voluntaacuteria ou ateacute mesmo involuntaacuteria seria eticamente admissiacutevel
quando a vida natildeo mostrasse mais potecircncia ou forccedila de reaccedilatildeo e insistir em sua
manutenccedilatildeo apenas traria mais desgastes bioloacutegicos psicoloacutegicos e sociais do
que qualidade de vida ao doente Segundo Canguilhem isso evitaria o tormento
do doente em seus uacuteltimos momentos o que tornaria a morte ainda mais penosa
(cf E 1989 p402) Todavia eacute possiacutevel inferir a interdiccedilatildeo eacutetica da eutanaacutesia natildeo
voluntaacuteria visto que para a efetivaccedilatildeo da morte haveria a necessidade de aceite
natildeo coagido por parte do doente ou de seus familiares caso contraacuterio a accedilatildeo de
assemelharia agraves praacuteticas de extermiacutenio nazista
Pelo mesmo raciociacutenio o de consideraccedilatildeo do movimento da vida se
tomada em seu sentido exclusivamente bioloacutegico o argumento da potencialidade
valeria como justificativa para a interdiccedilatildeo da praacutetica do aborto ou mesmo do uso
de ceacutelulas-tronco embrionaacuterias em pesquisa e de descarte de embriotildees
congelados Ou seja seria possiacutevel inscrever esta questatildeo no contexto de uma
eacutetica laica de defesa da vida que para valorizaacute-la natildeo precisa sacralizaacute-la
137
Na entrevista a Franccedilois Bing e Jean-Franccedilois Braunstein no ano de 1996 quando questionado sobre sua posiccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave bioeacutetica em sua intenccedilatildeo de colocar freios na atividade cientiacutefica Canguilhem diz se surpreender ao ver seus trabalhos associados a este tema pois natildeo escreveu nada a este respeito Mas responde que natildeo eacute sistematicamente hostil a certas orientaccedilotildees de ordem bioeacutetica Ela o interessa quando eacute feita seriamente para evitar alguns excessos agrave confianccedila atribuiacuteda agrave biologia e agrave medicina para resolver algumas questotildees que satildeo mais de ordem eacutetica e poliacutetica do que de praacutetica meacutedica Cf CANGUILHEM G Entretien avec Georges Canguilhem In BING F BRAUNSTEIN J-F ROUDINESCO E (org) Actualiteacute de Georges Canguilhem Le normal et le pathologique Op cit
138 No vocabulaacuterio da bioeacutetica atual a cacotanaacutesia ou maacute morte eacute identificada agrave obstinaccedilatildeo
terapecircutica Portanto ela se opotildee agrave eutanaacutesia ou boa morte que se daria por provocaccedilatildeo (eutanaacutesia ativa) aceleraccedilatildeo (eutanaacutesia de duplo efeito) ou por omissatildeo proposital de cuidados meacutedicos (eutanaacutesia passiva ou ortotanaacutesia que significa a morte no tempo certo associada agrave filosofia dos cuidados paliativos)
199
recorrendo agrave eacutetica hipocraacutetica ou agrave moral cristatilde impliacutecita no princiacutepio primum non
nocere isto eacute que natildeo precisa lanccedilar matildeo das noccedilotildees metafiacutesico-religiosas de
Bem e de Mal para afirmar a existecircncia de valores negativos e positivos
apontados pela vida mesma Mas consideradas as dimensotildees existenciais e
sociais da vida humana a praacutetica do aborto poderia ser eticamente possiacutevel caso
a mulher consentisse mas jamais deveria ser praticado sem seu aceite como as
interrupccedilotildees eugecircnicas da gravidez por valores racistas sexistas e eacutetnicos a
exemplo das que foram realizadas durante o III Reich ou mesmo as feitas para
controle estatal da natalidade na China comunista
Ainda ao mudar o estatuto do animal apresentado por ele como vivente
natildeo humano mas como igualmente produtor de valores e normas portanto capaz
de qualificar sua existecircncia em algum acircmbito mesmo que ainda por noacutes
indefinido Canguilhem coloca em cena a problemaacutetica da experimentaccedilatildeo com
outros vivos sua eticidade e a questatildeo do especismo139 Como vimos na sua
perspectiva embora o vivente natildeo humano natildeo seja provido de linguagem ele
natildeo deixa de ser produtor de valor e de ter uma existecircncia dotada de sentido vital
ainda que a ciecircncia ignore sua dimensatildeo Aleacutem disso assim como em O normal e
o patoloacutegico em La connaissance de la vie no artigo ldquoLrsquoexperimentationrdquo ele potildee
em questatildeo a validade das pesquisas realizadas com animais visto que a
transposiccedilatildeo dos resultados obtidos com este tipo de experimentaccedilatildeo para o
homem natildeo eacute direta Desta forma conduzir pesquisas com animais exigiria
igualmente uma baliza eacutetica e ainda uma reflexatildeo criteriosa de sua necessidade
Aleacutem disso neste mesmo escrito ele aborda o problema da
experimentaccedilatildeo com humanos e as questotildees eacuteticas que ao redor desta questatildeo
gravitam ldquoo problema da experimentaccedilatildeo com humanos natildeo eacute mais um simples
problema de teacutecnica eacute um problema de valorrdquo (CV 1985 p38) Aqui aponta o
problema de delimitar a extensatildeo do conceito de experimentaccedilatildeo humana situado
no limite das intervenccedilotildees terapecircuticas e as teacutecnicas de prevenccedilatildeo higiecircnica e
139
A exemplo de outras posturas discriminatoacuterias como o sexismo e o racismo o especismo eacute entendido como a discriminaccedilatildeo por espeacutecie animal decorrente da maior importacircncia dada agrave vida humana em relaccedilatildeo agraves demais vidas
200
penal como a lobotomia e a esterilizaccedilatildeo legal Ao refletir sobre o criteacuterio de
legitimidade da experimentaccedilatildeo bioloacutegica com humanos sua transformaccedilatildeo em
cobaias experimentais lembra que historicamente indiviacuteduos desvalorizados como
socialmente desclassificados e fisiologicamente comprometidos foram utilizados
como material experimental a exemplo do que ocorrido no decorrer da II Guerra
Mundial com a retomada da antiga praacutetica de vivissecccedilatildeo de humanos
condenados agrave morte mas agora no contexto de deliacuterios racistas
Em vista disso Canguilhem diz acreditar que o problema de o homem
consentir ser objeto de seu proacuteprio saber se inscreve no debate sempre aberto
relativo ao homem como meio ou fim objeto ou pessoa e nos alerta sobre a
importacircncia do pesquisador respeitar a especificidade de seu objeto e conduzir
suas pesquisas experimentais a partir do valor de certo sentido de natureza
bioloacutegica (cf CV 1985 p38) Entendendo por natureza humana a vida concreta
em seus sentidos bioloacutegico existencial e social vemos que para ele a
consideraccedilatildeo por parte do pesquisador de que eacute necessaacuterio um consentimento por
parte daquele que seraacute sujeito de uma experimentaccedilatildeo deve passar a ser a
principal baliza eacutetica da pesquisa jaacute que assentada no valor ditado pela vida
mesma de liberdade de escolha e de resistecircncia do vivente humano ao que toma
como uma ameaccedila a sua existecircncia
Assim se mesmo o tratar eacute realizar uma experiecircncia tambeacutem na cliacutenica o
indiviacuteduo deve poder se expressar quanto agrave definiccedilatildeo de seu projeto terapecircutico e
agrave conduccedilatildeo de seu tratamento tendo a liberdade de recusar o que se contrapotildee a
seu desejo ou interesse Ademais se cada corpo subjetivo historicizado tem sua
verdade a experiecircncia do adoecimento vivida por um indiviacuteduo singular tambeacutem
pode ser fonte de conhecimentos verdadeiros dada a nova relaccedilatildeo entre physis
techneacute e episteme Quer dizer na cliacutenica o que a ciecircncia apresenta como verdade
do corpo natildeo pode sobrepujar o que o indiviacuteduo concreto traz como sua verdade
sua dor seu sofrimento seu mal Dado isso a partir de uma abordagem
qualitativa do adoecer humano centrada na escuta da fala do doente para a
realizaccedilatildeo do diagnoacutestico o meacutedico natildeo pode prescindir quando da realizaccedilatildeo da
anamnese de um meacutetodo de investigaccedilatildeo natildeo soacute da histoacuteria da doenccedila atual e
201
das pregressas mas de dados da histoacuteria de vida do indiviacuteduo que adoeceu natildeo
para patologizaacute-la desde seus primoacuterdios mas para contextualizar e compreender
as causas de seu processo de adoecimento
A partir deste mesmo ponto de vista no acircmbito da pesquisa em sauacutede
ganham destaque as metodologias de investigaccedilatildeo cliacutenico-qualitativas ndash tambeacutem
chamadas de meacutetodos compreensivo-interpretativos - que privilegiam as
narrativas pessoais ou histoacuterias de vida os sentidos e significaccedilotildees do adoecer
humano bem como os trabalhos de campo que aproximam o pesquisador da
realidade concreta de vida dos sujeitos pesquisados a fim de compreender a
multiplicidade de aspectos envolvidos em seu processo de adoecimento bem
como para identificar os recursos e suportes psicossociais com os quais podem
contar para enfrentaacute-los
Interessante notar que quando reflete sobre a complexidade etioloacutegica das
doenccedilas e dos motivos de seu agravamento embora Canguilhem diga que nem
todas as doenccedilas tem uma gecircnese social sabemos que assim como haacute doenccedilas
relacionadas ao ambiente natural ecoloacutegico haacute doenccedilas relacionadas agraves
condiccedilotildees precaacuterias de vida decorrentes da forma como uma dada sociedade se
organiza por exemplo haacute patologias especiacuteficas geradas por uma estratificaccedilatildeo
econocircmica perversa causadora de modos insalubres de vida e tambeacutem as
causadas pela maneira como se datildeo as relaccedilotildees entre os indiviacuteduos neste
contexto140 Ou seja as doenccedilas apresentam um panorama do que historicamente
faz os indiviacuteduos sofrerem e tambeacutem satildeo um retrato dos niacuteveis e dos modos de
vida da sociedade da qual faziam ou fazem parte
De fato as sociedades capitalistas liberais fixam padrotildees esteacuteticos e
socioeconocircmicos de vida que inalcanccedilaacuteveis para alguns acabam por se tornar
geradores de anguacutestia Por isso haacute inuacutemeras doenccedilas decorrentes da frustraccedilatildeo
das expectativas do indiviacuteduo quanto a sua inserccedilatildeo profissional e reconhecimento
140
O que daria certa razatildeo a Marx quando partindo da percepccedilatildeo da reproduccedilatildeo das relaccedilotildees de classe na vida familiar privada em sua anaacutelise sobre o suiciacutedio o apresenta como um entre os mil e um sintomas da luta social geral Cf MARX K Sobre o suiciacutedio (Trad Rubens Enderle e Francisco Fontanella) Satildeo Paulo Boitempo 2006
202
social exclusivamente causadas pela impossibilidade de sua identificaccedilatildeo a um
tipo social bem-sucedido Isso mostra que pode haver doenccedilas inclusive
fisioloacutegicas derivadas de um sofrimento psiacutequico deflagrado por questotildees de
ordem social atestando que pode haver tanto uma sociogecircnese das doenccedilas
psicoloacutegicas como nos quadros de ansiedade e nos transtornos de humor
(maniacuteacos depressivos e bipolares) como uma psicossociogecircnese das doenccedilas
fisioloacutegicas como exemplo nas doenccedilas derivadas do stress prolongado como as
gaacutestricas e cardiovasculares ou ateacute mesmo nos cacircnceres
Eacute certo que Canguilhem natildeo acredita que exista uma organizaccedilatildeo social
capaz de evitar o adoecimento jaacute que eacute normal ficar doente uma vez que se estaacute
vivo Tambeacutem que uma sociedade possa ser identificada a um organismo pois
nesta assimilaccedilatildeo o que domina eacute a ideia de diagnoacutestico de seus distuacuterbios
terapecircutica e medicaccedilatildeo para os males sociais mormente identificados aos
indiviacuteduos desviantes da norma (cf EM 2005 p74) No entanto se
reconhecermos a associaccedilatildeo entre os modos sociais de vida e a multiplicaccedilatildeo das
situaccedilotildees patoloacutegicas a questatildeo que se coloca eacute como a sociedade pode ser
organizada pelos seus membros de modo que favoreccedila maior qualidade de vida e
relaccedilotildees mais salutares sem que isso signifique a justificaccedilatildeo de praacuteticas sociais
de identificaccedilatildeo e patologizaccedilatildeo dos culpados de suas crises e dos abalos de sua
suposta harmonia e equiliacutebrio espontacircneos
Em suas Novas Reflexotildees e nos seus Escritos sobre a medicina ele
esclarece que apesar de uma sociedade ser organizada ela natildeo eacute orgacircnica no
sentido de uma ser caracterizada por uma auto-organizaccedilatildeo espontacircnea isto eacute
ela natildeo se estrutura sem nenhuma deliberaccedilatildeo por parte do conjunto de seus
membros Neste sentido nenhuma organizaccedilatildeo social pode ser naturalizada como
se sua finalidade fosse determinada riacutegida como a de uma maacutequina e suas leis
fossem inquestionaacuteveis como as fiacutesicas No entanto acredita que os fenocircmenos
da organizaccedilatildeo social podem imitar os da organizaccedilatildeo vital assim como
Aristoacuteteles dizia que a arte imitava a natureza ldquoA regulaccedilatildeo social tende para a
regulaccedilatildeo orgacircnica e a imitardquo (NP 1990 p226) Assim podemos ousar dizer que
pela perspectiva vitalista canguilhemiana uma sociedade pode metaforicamente
203
imitar um organismo saudaacutevel ao comportar uma diversidade de normas
socioculturais cambiantes e ensejar constantemente finalidades possiacuteveis141
Com efeito ainda no mesmo escrito associando os regimes totalitaacuterios agrave
mecanizaccedilatildeo da vida social e notando que a submissatildeo das partes ao todo a
massificaccedilatildeo e o determinismo das relaccedilotildees sociais - proacuteprios a uma sociedade na
qual os fins da coletividade satildeo rigorosamente planificados executados em
conformidade a um riacutegido programa sociopoliacutetico e que pede uma adaptaccedilatildeo
passiva dos indiviacuteduos a suas leis - afetam a sauacutede dos indiviacuteduos a exemplo da
alteraccedilatildeo da pressatildeo sanguiacutenea dos chineses sob o regime maoiacutesta ele
indiretamente aventa outras formas de organizaccedilatildeo sociopoliacutetica (cf NP 1990
p245)
Entendendo que uma organizaccedilatildeo social que tem por base a noccedilatildeo de
independecircncia ou autonomia das partes em relaccedilatildeo ao todo correlata ao
individualismo proacuteprio das sociedades democraacuteticas adeptas do modelo
sociopoliacutetico e econocircmico liberal de defesa dos interesses das liberdades civis
individuais por engendrar relaccedilotildees competitivas entre seus membros transformar
o corpo em propriedade e a sauacutede em mercadoria tambeacutem natildeo tem sido salutar
esta natildeo parece ser para ele a melhor resposta agrave desindividualizaccedilatildeo proacutepria aos
regimes totalitaacuterios142
141
Com efeito em ldquoLa question de lrsquoeacutecologie la technique ou la vierdquo Canguilhem critica a identificaccedilatildeo do meio propriamente humano conceito socioloacutegico e histoacuterico ao meio biofiacutesico pois ela procura dissimular a crise do sistema de relaccedilotildees econocircmicas de produccedilatildeo explicando-a atraveacutes de uma suposta ruptura no equiliacutebrio bioloacutegico (QE 2000 p187) O problema aqui exposto eacute o de que a naturalizaccedilatildeo do meio social acaba por justificar sistemas poliacuteticos e determinados modos de produccedilatildeo neste caso o capitalista Diante disso haacute duas saiacutedas possiacuteveis ou a incomensurabilidade entre natureza e cultura dada a legalidade natural e o indeterminismo das relaccedilotildees sociais ou a aproximaccedilatildeo entre elas possiacutevel pela existecircncia de uma normatividade vital que escapa ao determinismo da lei natural e que pode oferecer agrave vida social como sua extensatildeo maior liberdade e consequentemente maior dinamismo e flexibilidade em suas normas Assim trocando o conceito de natureza pelo de vida Canguilhem impede a naturalizaccedilatildeo do modo de produccedilatildeo capitalista de suas leis e das relaccedilotildees sociais que ele engendra abrindo a possibilidade de pensarmos outras formas de organizaccedilatildeo social de produccedilatildeo e de relaccedilotildees sociais mais condizentes com o movimento dinacircmico da vida logo mais saudaacuteveis Cf ldquoLa question de lrsquoeacutecologie la technique ou la vierdquo In DAGOGNET F Consideacuterations sur lrsquoideacutee de nature Op cit
142 Segundo Cammelli (2006) atraveacutes de sua gaya ciecircncia marxista-nietzschiana Canguilhem vecirc o
corpo social como composiccedilatildeo dinacircmica de potecircncias concretas e heterogecircneas por vezes contraditoacuterias em oposiccedilatildeo ao corpo social abstrato estaacutetico e indiferenciado do fascismo construiacutedo como uma maacutequina que apenas obedece a comandos Em oposiccedilatildeo a esta loacutegica e seu
204
Sendo assim podemos dizer que considerando a relaccedilatildeo existente entre
modelo sociopoliacutetico e econocircmico e o entendimento do que seja sauacutede e a
organizaccedilatildeo poliacutetico-administrativa das instituiccedilotildees que estatildeo encarregadas de
promovecirc-la pela oacuteptica canguilhemiana uma sociedade identificada a um
conjunto integrado de indiviacuteduos inter-relacionados e interdependentes menos
estratificada socioeconomicamente e que se modulasse menos por padrotildees ideais
e estereotipados esteacuteticos e de comportamento isto eacute que fosse mais flexiacutevel
quanto a suas formas e modos de vida mais aberta agrave autocriacutetica e agrave mudanccedila de
sua normatividade tenderia a ser menos adoecedora Nesse sentido eacute possiacutevel
falar em sociedades mais saudaacuteveis porque mais abertas agrave liberdade e agrave
criatividade normativas e orientadas pelo respeito agrave singularidade e agrave diversidade
das formas individuais e aos diferentes modos de vida cotidiana
Atraveacutes de sua perspectiva numa sociedade com este caraacuteter a medicina
abriria matildeo de ser um dos braccedilos normalizadores do Estado pois o meacutedico
resgataria sua vocaccedilatildeo para curar se recusando a assumir tarefas
regulamentadas de descoberta das pistas tratamento e de controle (cf EM 2005
p66) As instituiccedilotildees de sauacutede almejando normatividade e natildeo normalidade
deixariam de ser dispositivos sociais de imposiccedilatildeo de padrotildees e normas de vida e
se transformariam em dispositivos de resistecircncia agrave normalizaccedilatildeo e portanto
promotoras da potencializaccedilatildeo de indiviacuteduos e coletividades Para tanto os
diferentes profissionais que nelas desenvolveriam suas praacuteticas fariam suas
escolhas teoacuterico-metodoloacutegicas de modo reflexivo e criacutetico evitando os meacutetodos
normalizadores e conduziriam suas accedilotildees a partir de uma diretriz eacutetico-poliacutetica
pautada no respeito agrave vida
Assim explorando o caraacuteter propositivo de seu pensamento eacute possiacutevel
contestar a ideia de que Canguilhem privilegiaria um modelo assistencial
esquema biopoliacutetico e normalizante ele propotildee uma teoria do agir poliacutetico proacutepria diferente da do corpo social homogecircneo no qual eacute impensaacutevel e concretamente impraticaacutevel qualquer possibilidade de oposiccedilatildeo ao poder instituiacutedo Ou seja atraveacutes de sua loacutegica da resistecircncia ele sugere outras formas de resoluccedilatildeo dos conflitos que atravessam o corpo social pela via da liberaccedilatildeo da potecircncia de vida e natildeo da pulsatildeo de morte ou de indiferenciaccedilatildeo do fascismo Cf CAMMELLI M ldquoLogiche della resistenzardquo Op cit
205
individualista com ecircnfase na dimensatildeo curativa da doenccedila Segundo ele accedilotildees
de sauacutede puacuteblica de caraacuteter preventivo devem existir a exemplo das praacuteticas de
vacinaccedilatildeo e coexistir com as praacuteticas direcionadas agrave promoccedilatildeo da sauacutede
individual (cf E 1989 p411) No entanto ele alerta que as accedilotildees generalizadas
de promoccedilatildeo agrave sauacutede prevenccedilatildeo e tratamento de doenccedilas no acircmbito coletivo natildeo
resultaratildeo necessariamente um benefiacutecio a todos os indiviacuteduos considerando a
multiplicidade dos modos de vida e as diferentes idisossincrasias a exemplo das
reaccedilotildees adversas que alguns indiviacuteduos tecircm com as vacinas
Mas de modo mais fundamental eacute tendo em vista que o Estado tem poder
por meio dos serviccedilos de sauacutede puacuteblica sobre a sauacutede dos cidadatildeos que
Canguilhem salienta que os profissionais que neles trabalham devem ficar atentos
quanto agrave manutenccedilatildeo da ideologia de controle das populaccedilotildees em suas praacuteticas a
exemplo das accedilotildees sanitaacuterias higienistas herdadas da medicina social Pois a seu
ver assim como as praacuteticas de sauacutede voltadas para o indiviacuteduo as coletivas
tambeacutem natildeo devem se traduzir por accedilotildees de normalizaccedilatildeo daqueles grupos que
em sua diferenccedila ao transgredirem uma norma de comportamento social tido por
saudaacutevel natildeo satildeo vantajosos para o Estado (cf E 1989 p410)
Daiacute podemos inferir que as accedilotildees de sauacutede coletiva podem e devem
existir mas para que deixem de ser praacuteticas de controle da condiccedilatildeo fiacutesica e moral
da populaccedilatildeo elas precisam natildeo mais impor normas anocircnimas higiecircnicas e
dieteacuteticas ou inculcar padrotildees e modelos de vida saudaacutevel atraveacutes de campanhas
contra ou de conscientizaccedilatildeo pela chamada educaccedilatildeo popular em sauacutede
Seguindo outra diretriz teoacuterico-metodoloacutegica e eacutetico-poliacutetica se elas almejam
efetivamente promover ou produzir sauacutede puacuteblica devem respeitar os valores e as
diferentes formas de cuidado proacuteprias aos diferentes grupos de uma mesma
coletividade que natildeo eacute uma massa homogecircnea desprovida de saberes
tradicionais
Em termos praacuteticos se os profissionais que atuam nos serviccedilos de sauacutede
puacuteblica natildeo querem normalizar populaccedilotildees eles natildeo devem se orientar apenas
por estudos epidemioloacutegicos quantitativos e se basear na noccedilatildeo de evitaccedilatildeo dos
206
riscos agraves doenccedilas e na culpabilizaccedilatildeo dos indiviacuteduos acometidos por elas como
se eles atentassem contra a ordem social instituiacuteda Considerando as dimensotildees
socioeconocircmicas poliacuteticas e culturais relativas agraves condiccedilotildees de sauacutede da
populaccedilatildeo eles natildeo devem negligenciar os determinantes e os condicionantes
sociais da sauacutede e os aspectos ecoloacutegicos que impactam negativamente a vida
dos indiviacuteduos bem como respeitar o contexto sociocultural em que desenvolve
suas praacuteticas isto eacute os valores e normas a partir dos quais um dado grupo social
estrutura seus modos de vida cotidiana agindo em conjunto com ele com vistas agrave
criaccedilatildeo de meios mais saudaacuteveis propiciadores de qualidade de vida coletiva
Portanto para que o profissional de sauacutede natildeo mais assuma o papel de
normalizador tanto no acircmbito individual quanto coletivo eacute necessaacuterio que ele
atraveacutes de uma tomada de posiccedilatildeo natildeo somente teacutecnico-cientiacutefica mas eacutetico-
poliacutetica se recuse a fazer uso de meacutetodos de controle avaliativo do
comportamento e do estilo de vida dos indiviacuteduos e de procedimentos que
meramente corrigem e apassivam os indiviacuteduos assistidos
Resistir a assumir este papel de normalizador eacute natildeo cair no que
Canguilhem chama em Qursquoest que la Psychologie de automatismo da execuccedilatildeo
que ocorre quando o profissional de sauacutede aplica um meacutetodo sem se ter clareza
do que se faz fazendo o que se faz Isto eacute quando faz uso de procedimentos
teacutecnicos de modo acriacutetico sem levar em conta as circunstacircncias histoacutericas e os
meios sociais em que satildeo aplicados e mesmo suas implicaccedilotildees na vida dos
indiviacuteduos assistidos Por exemplo quando ele faz uso de teacutecnicas de mediccedilatildeo de
quociente de inteligecircncia (QI) que costumam ser usados para justificar processos
de estigmatizaccedilatildeo e exclusatildeo de indiviacuteduos com diferenccedilas cognitivas ou ainda
oferta tratamentos meramente corretivos para pessoas com restriccedilotildees
neuromotoras ou ainda recorre a meacutetodos coercivos nos casos de sofrimento
psiacutequico quase sempre aplicados em espaccedilos institucionais fechados
Parece entatildeo que a saiacuteda entatildeo que ele nos aponta eacute o questionamento
por parte dos profissionais de sauacutede sobre a funccedilatildeo social das instituiccedilotildees de
sauacutede para as quais trabalham se potencializaccedilatildeo ou normalizaccedilatildeo do corpo
207
subjetivo se promoccedilatildeo de sauacutede puacuteblica ou imposiccedilatildeo de haacutebitos e modos de vida
coletiva saudaacuteveis e tambeacutem sobre a validade dos meacutetodos que utilizam suas
finalidades e implicaccedilotildees uacuteltimas sobre os riscos do uso social do diagnoacutestico
para aleacutem dos fins de orientaccedilatildeo da terapecircutica e sobre a utilidade dos testes e
avaliaccedilotildees que com seus resultados quantitativos dizem pouco ou quase nada do
valor e do sentido do patoloacutegico na experiecircncia humana Ou seja uma reflexatildeo
sobre em que medida suas accedilotildees natildeo se traduzem por estrateacutegias sociais de
controle dos desviantes da norma servindo apenas para patologizar as
diferenccedilas
Com efeito em suas Novas reflexotildees referentes ao normal e ao patoloacutegico
ao tratar da questatildeo da correccedilatildeo dos erros geneacuteticos e da ciecircncia dos
geneticistas Canguilhem identifica a caccedila aos genes heterodoxos a uma
inquisiccedilatildeo geneacutetica e pergunta se a identificaccedilatildeo deles natildeo culminaria na privaccedilatildeo
da liberdade dos genitores suspeitos de os portarem de sua liberdade de gerar
Fazendo referecircncia ao Admiraacutevel mundo novo de Aldous Huxley ele jaacute
apresentava o problema do limite tecircnue existente entre a identificaccedilatildeo de
predisposiccedilotildees geneacuteticas a doenccedilas (medicina preditiva) o uso de tecnologias de
correccedilatildeo de doenccedilas de base genocircmica (terapias gecircnicas) e os meacutetodos nazistas
de discriminaccedilatildeo geneacutetica e extermiacutenio definidos hoje como neoeugenia143 Ou
143
Em sua conferencia em homenagem a Canguilhem Gros (1993) diz que com o desenvolvimento da engenharia geneacutetica foram desenvolvidas novas teacutecnicas de diagnoacutestico preacute-natal genotiacutepico tornando o feto um paciente do mesmo modo que uma crianccedila ou um adulto Hoje a dificuldade eacutetica deste trabalho reside natildeo apenas no fato de que na maior parte dos casos o tratamento para a doenccedila encontrada ainda natildeo existe mas sobretudo porque assistimos a um processo de deslizamento ou derrapagem na qual a intenccedilatildeo de cuidado pouco a pouco acaba por se transformar em eugenia Ele argumenta que a este niacutevel de precisatildeo na anaacutelise molecular do genoma a proporccedilatildeo de fetos com um traccedilo hereditaacuterio desfavoraacutevel pode vir a ser consideraacutevel A medicina preditiva iraacute inclusive tornar possiacutevel identificar fatores de risco a doenccedilas que costumam se manifestar tardiamente como Alzheimer esclerose diabetes cacircncer ou reumatismo O maior problema entatildeo seraacute decidir o que fazer com o indiviacuteduo que ainda natildeo estaacute doente mas corre o risco de vir a ser Assim a medicina preditiva se vecirc colocada entre o desejo de ver curadas as doenccedilas geneacuteticas e o eugenismo positivo que aspira agrave procriaccedilatildeo do indiviacuteduo ideal Jaacute apresentados por Canguilhem estes satildeo problemas gerados pelo fato de se examinar a doenccedila pelo prisma do reducionismo molecular e celular Qual disciplina vai fixar as fronteiras entre o normal e o patoloacutegico Como saber qual seria a boa ou a maacute mutaccedilatildeo Que atitude a moral social iraacute adotar diante de um mal gene Qual embriatildeo seria geneticamente conveniente O que fazer com o feto que natildeo estaacute em conformidade com os desejos expressos do casal Estes satildeo algumas das questotildees que a medicina geneacutetica preditiva teraacute de se a ver para que seu objetivo de diagnosticar tratar e curar as doenccedilas geneacuteticas natildeo resvale numa eugenismo de conveniecircncia Cf
208
seja ele jaacute colocava o problema da manipulaccedilatildeo geneacutetica e dos excessos em seu
uso para aleacutem das finalidades terapecircuticas144
ldquoImagina-se a vida de uma populaccedilatildeo natural como um saquinho de loto e cabe aos funcionaacuterios designados pela ciecircncia da vida verificar a regularidade dos nuacutemeros que ele conteacutem antes de se permitir aos jogadores tiraacute-los para coloca-los nos cartotildees Na origem deste sonho haacute a intenccedilatildeo generosa de poupar seres vivos inocentes e impotentes do peso atroz de representar os erros da vida Na meta de chegada deste sonho encontra-se a poliacutecia dos genes encoberta pela ciecircncia dos geneticistas No entanto natildeo se deve deduzir daiacute a obrigaccedilatildeo de adotar uma permissividade geneacutetica mas apenas a obrigaccedilatildeo de relembrar agrave consciecircncia meacutedica que sonhar com remeacutedios absolutos eacute muitas vezes sonhar com remeacutedios piores que o malrdquo (NP 1990 p255)
A questatildeo da manipulaccedilatildeo geneacutetica pede entatildeo natildeo somente um agudo
senso de responsabilidade eacutetica por parte daqueles que trabalham com medicina
preditiva e terapias gecircnicas mas tambeacutem uma reflexatildeo sobre o que significa tratar
indiviacuteduos morfogeneticamente diferentes Lembrando do elogio agrave diversidade que
faz quando de sua reflexatildeo sobre as diferentes formas de vida podemos concluir
que assistir a indiviacuteduos com alteraccedilotildees morfogeneacuteticas e restriccedilotildees neuromotoras
natildeo significa meramente corrigir e impor uma esteacutetica uma forma ideal mas sim
possibilitar o aumento de sua potecircncia de agir no seu grupo social de vida atraveacutes
de praacuteticas propiciadoras de desenvolvimento autocircnomo de atividades cotidianas -
voltadas natildeo apenas para a funccedilatildeo mas para a funcionalidade - e do uso de
GROS F Hommage agrave Canguilhem In BADIOU A (et al) Georges Canguilhem Philosophe historien des sciences Actes du colloque (6 7 8 deacutecembre 1990) Op cit
144 Para exemplificar isso Canguilhem diz que a geneacutetica passou a oferecer aos bioacutelogos a
possibilidade de conceber e de aplicar uma biologia formal e de superar as formas empiacutericas de vida criando seres experimentais segundo normas diferentes fazendo com que a norma do organismo coincida com a do caacutelculo do geneticista eugenista Segundo ele datam de 1910 as primeiras conferecircncias de HJ Muumlller geneticista ceacutelebre por suas mutaccedilotildees provocadas Muumlller advogava a obrigaccedilatildeo moral e social do homem de intervir sobre si mesmo para se elevar ao niacutevel intelectual mais alto isto eacute defendia a vulgarizaccedilatildeo do gecircnio por eugenia Tratava-se de um programa social que propunha como ideal a ser realizado uma coletividade sem classes sem desigualdades sociais em que as teacutecnicas de conservaccedilatildeo do material seminal e de inseminaccedilatildeo artificial permitiriam agraves mulheres educadas para se sentirem honradas com tal dignidade carregar em seu ventre os filhos de homens geniais como Lecircnin e Darwin Todavia o escrito do geneticista russo foi mal visto ateacute mesmo na URSS pois ele desconsiderou que a ideia de uma sociedade sem classes natildeo se harmoniza com a teoria da hereditariedade que confirma a desigualdade humana (cf NP 1990 p232-233)
209
recursos e tecnologias especiacuteficas por exemplo de comunicaccedilatildeo e mobilidade
colocadas a serviccedilo de processos inclusivos
Aleacutem de suas Novas Reflexotildees escritos como Le cerveau et la penseacutee e
Qursquoest que la Psychologie nos fazem pensar sobre a atual proliferaccedilatildeo de
diagnoacutesticos das chamadas doenccedilas mentais e sua identificaccedilatildeo cada vez mais
precoce bem como sobre sua identificaccedilatildeo a desordens neuroloacutegicas ou
geneacuteticas atraveacutes de uma leitura meramente orgacircnica dos fatores geradores de
sofrimento psiacutequico Isto eacute nos fazem questionar sobre quais os limites da
reduccedilatildeo anatomofisioloacutegica das doenccedilas mentais realizada pela psiquiatria
bioloacutegica ou biopsiquiatria e pela psicologia cognitivo-comportamental aliada agrave
neurociecircncia e sobre a eficaacutecia da resposta meramente medicamentosa quando
natildeo eletroconvulsiva (ECT) ao sofrimento psiacutequico Eles nos fazem pensar
tambeacutem sobre a existecircncia ainda hoje de praacuteticas de normalizaccedilatildeo travestidas do
cuidado em sauacutede validadas pelo poder sociopoliacutetico e meacutedico-cientiacutefico a
exemplo das accedilotildees higienistas policialescas como as internaccedilotildees involuntaacuterias e
compulsoacuterias de usuaacuterios de substacircncias psicoativas e a psiquiatrizaccedilatildeo das
problemaacuteticas sociais operada atraveacutes de diagnoacutesticos como de transtorno
desafiador opositivo145 e o uso da farmacologia comportamental em adolescentes
que cometeram atos infracionais em acordo aos pressupostos teoacutericos e
ideoloacutegicos do behaviorismo radical
Em outra trilha entatildeo defendendo a necessidade de escuta cliacutenica
interpretaccedilatildeo do sentido do sintoma e uma definiccedilatildeo de cura como satisfaccedilatildeo
subjetiva Canguilhem tambeacutem oferece outros paracircmetros metodoloacutegicos para a
assistecircncia em sauacutede mental Com efeito ao realizar sua criacutetica agrave psiquiatria
145
Segundo o Manual Diagnoacutestico e Estatiacutestico de Transtornos Mentais ndash DSM IV (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders IV) - que lista 297 patologias mentais - e a Classificaccedilatildeo Internacional de Doenccedilas - CID-10 a caracteriacutestica essencial do Transtorno Desafiador Opositivo eacute um padratildeo recorrente de comportamento negativista desafiador desobediente e hostil para com figuras de autoridade que persiste por pelo menos 6 meses e se caracteriza pela ocorrecircncia frequente de pelo menos quatro dos seguintes comportamentos perder a paciecircncia discutir com adultos desafiar ativamente ou recusar-se a obedecer a solicitaccedilotildees ou regras dos adultos deliberadamente fazer coisas que aborrecem outras pessoas responsabilizar outras pessoas por seus proacuteprios erros ou mau comportamento ser suscetiacutevel ou facilmente aborrecido pelos outros mostrar-se enraivecido e ressentido ou ser rancoroso ou vingativo
210
bioloacutegica e agrave psicologia do comportamento e sua concepccedilatildeo de sauacutede como
adaptaccedilatildeo passiva e submissatildeo ao meio ele apresenta outra concepccedilatildeo de sauacutede
psiacutequica e de cura associadas ao aumento da potecircncia do pensamento e agrave
superaccedilatildeo das determinaccedilotildees identitaacuterias impostas pelo meio social
Pela sua perspectiva neste campo a cura seria obtida atraveacutes do exerciacutecio
da capacidade de superaccedilatildeo de um processo criacutetico e pela emergecircncia de uma
nova normatividade com diferente sentido existencial positivamente qualificada
pelo indiviacuteduo e traduzida por uma satisfaccedilatildeo que soacute eacute acessada por aquele que a
vivencia natildeo podendo ser quantificada atraveacutes de instrumentos e meacutetodos
objetivos de anaacutelise Ainda se o sofrimento psiacutequico eacute o resultado de um embate
do indiviacuteduo com seu meio sociocultural (entourage) a cura como resoluccedilatildeo
saudaacutevel deste conflito tambeacutem se daria pela criaccedilatildeo de novas normas sociais
mais flexiacuteveis quanto ao acolhimento das diversas formas de organizaccedilatildeo
psiacutequica tomadas como expressatildeo das diferenccedilas subjetivas individuais146
Tambeacutem se considerarmos sua criacutetica agrave medicalizaccedilatildeo excessiva no
conjunto das praacuteticas de cuidado em sauacutede mental a medicaccedilatildeo passa a ser
entendida como um dos recursos terapecircuticos natildeo precisando ser prescrito
necessariamente em todos os casos e devendo ser utilizado com prudecircncia em
respeito ao tempo de resposta psiacutequica Caso contraacuterio o processo de reaccedilatildeo e
criaccedilatildeo de uma nova norma existencial pode ser obliterado pela remissatildeo imediata
do sintoma atraveacutes de recursos medicamentosos sem nenhum tipo de
interpretaccedilatildeo de seu sentido para o indiviacuteduo singular Com isso o medicamento
que deveria ser coadjuvante no processo de cura acaba por se transformar num
fixador normativo que ao inveacutes de promover sauacutede mental acaba favorecendo a
doenccedila do homem normalizado
146 Entendemos entatildeo que se Canguilhem elogia Foucault eacute porque ao ter proclamado a morte do homem moderno seu pensamento daacute abertura para se pensar em outras formas de humanidade Isto eacute ao afirmar o esgotamento do cogito ele abre outras possibilidades de se pensar a subjetividade a partir de diferentes modos de subjetivaccedilatildeo e de outras possibilidades de construccedilatildeo ou estetizaccedilatildeo do sujeito Cf CANGUILHEM G Mort de lrsquohomme ou eacutepuisement du cogito Op Cit
211
O indiviacuteduo inclusive poderia estar sofrendo com fato de estar fixado em
uma uacutenica norma e a experiecircncia da crise como momento de exacerbaccedilatildeo dos
sintomas poderia ser a oportunidade de constituiccedilatildeo de uma nova normatividade
psiacutequica e por conseguinte de um novo sentido existencial Ou seja com a
medicalizaccedilatildeo excessiva agindo como um normalizador psiacutequico o indiviacuteduo
acabaria por perder a oportunidade de se tornar mais normativo e portanto mais
saudaacutevel
Aleacutem disso lembrando que Canguilhem tambeacutem recusa o papel social do
hospital como espaccedilo de anaacutelise e vigilacircncia trazendo o hospiacutecio como caso
exemplar de controle seu pensamento tambeacutem acena para a necessidade de uma
mudanccedila nos modos de atenccedilatildeo em sauacutede mental natildeo somente praacutetica ou
metodoloacutegica mas tambeacutem eacutetico-poliacutetica orientada para a liberdade Isso porque
seguindo sua racionalidade nenhum indiviacuteduo pode ser prognosticado como
incapaz ou portador de uma doenccedila mental que justifique sua hospitalizaccedilatildeo
forccedilada e a privaccedilatildeo de sua liberdade de inserccedilatildeo no seu meio social de vida
ficando agrave mercecirc de uma alforria meacutedica a ser obtida pelo atestado de retorno de
sua sanidade Se como vimos a vida mesma natildeo se enquadra em uma camisa-
de-forccedila de leis ou de regras porque haveriacuteamos de tentar produzir sauacutede atraveacutes
deste tipo de procedimento
A nosso ver entatildeo seu pensamento sugere a valorizaccedilatildeo de meacutetodos ou
teacutecnicas em sauacutede mental que possibilitem a realizaccedilatildeo de uma escuta
qualificada visando o acolhimento do sofrimento da anguacutestia vivida por um
indiviacuteduo concreto com vistas agrave superaccedilatildeo do processo criacutetico instaurado pela
doenccedila e agrave emergecircncia de uma nova normatividade nos campos psiacutequico e
tambeacutem social Isso exige novas formas de organizaccedilatildeo da rede de serviccedilos de
atenccedilatildeo em sauacutede mental que garantam uma atenccedilatildeo de portas abertas e
tambeacutem uma tomada de posiccedilatildeo eacutetico-poliacutetica do profissional em relaccedilatildeo ao locus
onde suas praacuteticas seratildeo desenvolvidas como a recusa em atuar em instituiccedilotildees
nas quais o desejo e a liberdade dos indiviacuteduos natildeo sejam respeitados
212
De modo geral podemos afirmar que sua racionalidade vitalista melhor
condiz com formas de organizaccedilatildeo soacutecio-poliacutetica sanitaacuteria menos
hospitalocecircntricas constituiacutedas por uma rede de instituiccedilotildees de sauacutede abertas e
acessiacuteveis estrategicamente proacuteximas ao meio em que os indiviacuteduos vivem com
vistas ao aumento da pertinecircncia e consequentemente da eficaacutecia de suas accedilotildees
porque agora estariam socioculturalmente contextualizadas Isto eacute estaacute em
consonacircncia com a estruturaccedilatildeo de um conjunto inter-relacionado de serviccedilos
norteados pelo princiacutepio da integralidade em sauacutede que sejam multiprofissionais
possibilitando diaacutelogos inter e transdisciplinares organizados de modo que
consigam dar conta da emergecircncia das situaccedilotildees sem deixar de acolher o
sofrimento de modo individualizado e de construir projetos terapecircuticos singulares
direcionados para cada caso em particular Ou seja com um sistema de sauacutede
que mesmo em suas instituiccedilotildees hospitalares guarde o sentido primeiro da cliacutenica
de voltar-se ao leito do paciente de modo a romper o tratamento no anonimato
Eacute neste sentido entatildeo que defendemos que eacute por realizar uma oposiccedilatildeo agraves
praacuteticas de normalizaccedilatildeo em sauacutede nos acircmbitos individual e coletivo derivadas da
ainda hegemocircnica tradiccedilatildeo biomeacutedica moderna que a racionalidade vitalista
proposta por Canguilhem consegue contribuir com a medicina atual em seu
objetivo de produccedilatildeo de sauacutede Na medida em que deixa claro que a funccedilatildeo da
terapecircutica natildeo eacute o retorno agrave normalidade mas o incentivo agrave normatividade ela
traz outras orientaccedilotildees agrave formaccedilatildeo teoacuterica agrave praacutetica assistencial e mesmo para a
pesquisa em sauacutede conseguindo abrir outros horizontes teoacuterico-metodoloacutegicos e
eacutetico-poliacuteticos para a cliacutenica seja ela meacutedica psicoloacutegica ou outra transformando-
a num dispositivo de resistecircncia agrave mecanizaccedilatildeo da vida agrave normalizaccedilatildeo dos
indiviacuteduos e agrave gestatildeo sociopoliacutetica meacutedica da vida cotidiana
Em resumo na contramatildeo da racionalidade biomeacutedica mecanicista sua
racionalidade vitalista consegue subsidiar o desenvolvimento de praacuteticas
terapecircuticas natildeo orientadas pela ideia de sauacutede perfeita e tipo ideal que natildeo
tenham por objetivo a normalizaccedilatildeo de corpos e mentes mas o aumento da
normatividade e por conseguinte da potecircncia de resistecircncia vital dos indiviacuteduos
Ou seja eacute somente tendo como eixo de suas praacuteticas a vida como posiccedilatildeo de
213
valor e criaccedilatildeo de normas em suas dimensotildees bioloacutegica existencial e social e
uma ideia de sauacutede como potecircncia de superaccedilatildeo no acircmbito somaacutetico e psiacutequico e
tambeacutem como capacidade de transformar o meio em que se vive de modo que ele
engendre relaccedilotildees socioafetivas mais salutares que a cliacutenica pode ser
revitalizada natildeo mais se orientando pela ideologia de controle ou domiacutenio e se
desenredando assim das malhas da normalizaccedilatildeo das quais ainda hoje
acreditamos ela natildeo conseguiu se desvencilhar
214
CONCLUSAtildeO
Partimos da hipoacutetese de que era possiacutevel apresentar o que chamamos de
medicina filosoacutefica canguilhemiana como base para a formulaccedilatildeo de uma nova
racionalidade em sauacutede capaz de operar uma revitalizaccedilatildeo da cliacutenica
transformando-a em dispositivo de resistecircncia agraves praacuteticas de normalizaccedilatildeo Mas
considerando que Canguilhem natildeo se pocircs a tarefa de apresentaacute-la em um uacutenico
escrito nem de modo rematado para desenhaacute-la foi preciso realizar uma leitura
do conjunto de seus textos sobre medicina histoacuteria e filosofia das ciecircncias da vida
nos quais ele reflete sobre os principais conceitos que datildeo inteligibilidade agraves
praacuteticas de sauacutede - vida normal e patoloacutegico ndash e sobre a produccedilatildeo do saber e
exerciacutecio do poder meacutedicos de modo a extrair seus principais contornos
Com efeito no curso de nossa investigaccedilatildeo notamos que o pensamento
meacutedico-filosoacutefico canguilhemiano se encontra disperso no conjunto de seus
escritos e que para desenhaacute-lo seria necessaacuterio identificar as concordacircncias
conceituais e filiaccedilotildees teoacutericas impliacutecitas e expliacutecitas dentre as quais
destacamos entre outras Aristoacuteteles Hipoacutecrates Bichat Barthez Darwin
Espinosa Nietzsche Bergson Uexkuumlll Goldstein Simondon Politzer Vidal de la
Blanche Friedmann e Foucault Ainda vimos que apesar dele ter sido elaborado
no decorrer de mais de quatro deacutecadas Canguilhem manteacutem uma coerecircncia
teoacuterico-epistemoloacutegica de defesa do vitalismo em oposiccedilatildeo ao mecanicismo
claacutessico e ao reducionismo fiacutesico-quiacutemico
Mas tambeacutem e isso de modo mais fundamental percebemos que se ele
adere a esta tradiccedilatildeo meacutedico-filosoacutefica natildeo eacute somente por compartilhar com ela o
reconhecimento da originalidade do fenocircmeno vital mas eacute principalmente porque
ela se opotildee agrave ideologia de controle da natureza sustentada pela ciecircncia moderna
Ou seja se Canguilhem aposta numa racionalidade meacutedica vitalista ancorada na
capacidade de resistecircncia proacutepria agrave vida para a proposiccedilatildeo de outro logos outro
ethos e outra praacutexis para a cliacutenica natildeo eacute somente porque ela lhe parece
conceitualmente mais bem sucedida na explicaccedilatildeo da forma como se processam
215
os fenocircmenos vitais mas eacute principalmente porque ela pode nos livrar das
injunccedilotildees ideoloacutegicas de esquerda e direita de controle sobre a vida
Sendo assim eacute para fazer frente a um pensamento meacutedico de orientaccedilatildeo
materialista mecanicista e reducionista que fez com que a praacutetica cliacutenica ficasse
aprisionada num esquema de causa e efeito reduzindo a relaccedilatildeo meacutedico-paciente
a um automatismo de ordem instrumental que ele se inscreve na tradiccedilatildeo meacutedico-
vitalista Natildeo obstante apesar de se inscrever nesta tradiccedilatildeo atraveacutes de seu
vitalismo materialista antimecanicista Canguilhem elabora uma racionalidade
meacutedica singular que a despeito de tambeacutem apostar numa concepccedilatildeo de corpo
dinacircmico e na forccedila curativa da natureza (vis medicatrix naturae) por ele traduzida
pelas noccedilotildees de polaridade dinacircmica e normatividade vital possui caracteriacutesticas
proacuteprias
Atraveacutes de sua perspectiva vitalista materialista antimecanicista e
antiteleoloacutegica Canguilhem entende que ao contraacuterio de uma maacutequina o vivente
natildeo eacute uma soma de partes mas um todo natildeo apresenta uma finalidade
ontoloacutegica mas organiacutesmica ou operacional e apresenta um metabolismo
orientado para a autorreproduccedilatildeo e autoconservaccedilatildeo por autorregulaccedilatildeo
Tambeacutem julga que seus fenocircmenos natildeo podem ser reduzidos agraves leis da fiacutesico-
quiacutemica pois enquanto as leis satildeo invariaacuteveis e indiferentes as normas bioloacutegicas
satildeo variaacuteveis e flutuantes podendo receber valoraccedilotildees bioloacutegicas qualitativamente
opostas positivas ou negativas
Assim tomando a vida como mateacuteria capaz de valorar positiva e
negativamente seus proacuteprios comportamentos ele denuncia a desvalorizaccedilatildeo da
mateacuteria viva operada pela distinccedilatildeo substancial cartesiana que fez do corpo
incapaz de produccedilatildeo de linguagem e de valor e o apresenta como um todo
criador de normas e valores Com isso recusa a ideia de ineacutercia vital jaacute que o
vivente eacute capaz de reagir a tudo o que lhe ameaccedila sendo esta atividade reativa
polarizada e normativa a raiz da teacutecnica meacutedica que eacute primeiramente vital e
somente depois por extensatildeo humana
216
Tambeacutem pela mesma perspectiva aleacutem da ideia de ineacutercia vital
Canguilhem coloca em questatildeo a ideia de submissatildeo do vivente ao meio tambeacutem
de origem mecanicista Defendendo as noccedilotildees de reatividade vital e uma teoria de
constituiccedilatildeo reciacuteproca do vivente e seu meio obtida por adaptaccedilatildeo ativa para ele o
organismo natildeo estaacute jogado no meio ao qual tem que se dobrar Ao contraacuterio ele
estrutura seu meio tendo a si mesmo como centro de referecircncia A partir desta
teoria ateacute mesmo uma forma considerada anocircmala por apresentar uma diferenccedila
morfoloacutegica ou funcional pode ser considerada normal se num dado meio ela for
vitalmente vaacutelida isto eacute se conseguir ser normativa capaz de instituir novas
normas vitais quando da necessidade de superar as dificuldades que resultam de
uma alteraccedilatildeo de seu meio de vida
Desta forma sauacutede e doenccedila natildeo podem ser definidas como um estado
orgacircnico ideal e seu desvio mas como a capacidade ou natildeo de o vivente instituir
novas normas vitais quando de seu embate com seu meio de modo que o que
chamamos de vivente normal ou saudaacutevel natildeo eacute o que se manteacutem num estado
ideal de normalidade mas eacute o normativo aquele que consegue se ajustar ao
meio adaptando-se ativamente a ele seja alterando sua norma atual seja
alterando o meio tambeacutem este capaz de sofrer ajustes e modificaccedilotildees Por
oposiccedilatildeo o vivente anormal ou patoloacutegico eacute aquele que natildeo apresenta esta
capacidade de evitar ou corrigir comportamentos que lhe ameaccedilam pela
incapacidade criar novas normas vitais seja espontaneamente seja quando
instado a isso
Ademais se em sua anaacutelise filosoacutefica da vida Canguilhem apresenta o
vivente humano identificado a uma totalidade orgacircnica consciente com tendecircncia
agrave autoconservaccedilatildeo por auto-organizaccedilatildeo e com sentido vital e existencial singular
na qual a qualidade de seus processos se saudaacuteveis ou patoloacutegicos somente
podem ser pensados a partir da relaccedilatildeo que estabelece com seu meio
(entourage) ao estudar a relaccedilatildeo dos indiviacuteduos com seu meio social ele tambeacutem
daacute a sua reflexatildeo sobre a vida um tom explicitamente sociopoliacutetico Ele mostra que
quando falamos no vivente humano precisamos considerar tambeacutem sua potecircncia
imanente de criar normas sociais e de tambeacutem alteraacute-las quando isso se fizer
217
necessaacuterio Tambeacutem que haacute formas de organizaccedilatildeo sociopoliacutetica mais
adoecedoras do que outras por serem menos flexiacuteveis e normalizadoras fazendo
do corpo social uma massa alienada e apaacutetica
Sendo assim afirmamos que eacute com uma intenccedilatildeo de criacutetica filosoacutefica e
tambeacutem poliacutetica que desde seu Ensaio ele recusa o princiacutepio de
desindividualizaccedilatildeo da doenccedila principal caracteriacutestica da racionalidade biomeacutedica
moderna pautada na elucidaccedilatildeo cientiacutefico-experimental do patoloacutegico isto eacute
numa patologia objetiva que desconsidera que a doenccedila eacute antes de tudo um
pathos subjetivo que mais do que um acometimento bioloacutegico eacute uma ameaccedila a
uma existecircncia individual Isso porque entendemos que mais do que por seu
caraacuteter cientificamente equiacutevoco se ele objeta este princiacutepio eacute por ser a
homogeneizaccedilatildeo a indiferenciaccedilatildeo e a dissoluccedilatildeo das individualidades no meio
social uma caracteriacutestica dos regimes poliacuteticos repressivos e conservadores que
se sustentam atraveacutes da despotencializaccedilatildeo dos indiviacuteduos
Eacute portanto por oposiccedilatildeo aos pressupostos teoacuterico-epistemoloacutegicos mas
tambeacutem poliacutetico-ideoloacutegicos da racionalidade cientiacutefico-moderna que faz da
medicina uma ciecircncia das doenccedilas que reduz a vida a uma perspectiva
anatomofisioloacutegica desindividualiza o doente e o torna mero objeto de
intervenccedilatildeo que Canguilhem define a medicina como uma teacutecnica ou arte da cura
situada na confluecircncia de vaacuterias ciecircncias que deve se colocar a serviccedilo das
normas vitais individuais positivamente valoradas pelo sujeito doente e tomadas
por ele como sinocircnimo de sauacutede
De modo mais preciso eacute a partir de uma tomada de posiccedilatildeo teoacuterico-
epistemoloacutegica e tambeacutem eacutetico-poliacutetica que em seus Escritos sobre a medicina
ele diz ter chegado o tempo de uma criacutetica da razatildeo meacutedica praacutetica como
estrateacutegia para invenccedilatildeo de uma nova racionalidade em sauacutede que consiga fazer
frente ao modelo biomeacutedico moderno de base racionalista e cientiacutefico-
experimental associado agrave ideologia de domiacutenio e controle da natureza
caracteriacutestica da ciecircncia moderna e que encontrou na ideologia poliacutetica do nazi-
fascismo sua mais acabada expressatildeo
218
Segundo Canguilhem para furtar-se de tal orientaccedilatildeo ideoloacutegica o meacutedico
deve ter em vista que cada doente eacute uma totalidade individual consciente singular
e que portanto sua terapecircutica deve respeitar as diversas formas de vida seus
valores e normas e os diferentes modos sociais de vida cotidiana Caso contraacuterio
a medicina iraacute se transformar em um dispositivo social de normalizaccedilatildeo e o
meacutedico teraacute seu papel limitado ao de reparador de um suposto estado normal
ideal e adequado a um determinado tipo de sociedade
Assim eacute tecendo criacuteticas agrave medicina cientiacutefica moderna filha da medicina
racional e tambeacutem agrave psicologia cientiacutefica do comportamento como caso exemplar
de tecnologia poliacutetica de controle e normalizaccedilatildeo do pensamento por operar a
partir da ideia de indiviacuteduo condicionaacutevel e de sauacutede como adaptabilidade passiva
ao meio social que Canguilhem constroacutei sua racionalidade meacutedica assentada em
sua concepccedilatildeo de vida como mateacuteria dotada de potecircncia reativa e normativa
base para uma cliacutenica atravessada pelas noccedilotildees de sentido e valor que procura
fazer com que o profissional de sauacutede deixe de ser um agente de normalizaccedilatildeo de
corpos e mentes e passe a ser um incentivador da capacidade de resistecircncia da
vida
A partir destas consideraccedilotildees identificando textualmente os elementos
propositivos de seu pensamento meacutedico-filosoacutefico mostramos que sua
contribuiccedilatildeo para o ensino se daacute por exemplo a partir de sua proposta de
inclusatildeo de disciplinas nos curriacuteculos dos cursos da aacuterea meacutedica que abordem os
aspectos filosoacuteficos psicoloacutegicos e socioantropoloacutegicos do processo
sauacutededoenccedila e que mostrem a importacircncia da relaccedilatildeo meacutedico-doente no
processo de cura Aleacutem disso que a racionalidade meacutedica que propotildee fundamenta
um raciociacutenio cliacutenico que consegue abarcar a complexidade etioloacutegica das
doenccedilas e os jogos de forccedila ou poder presentes na produccedilatildeo de conhecimento
meacutedico-cientiacutefico e suas aplicaccedilotildees Ainda que ela daacute base para diferentes
praacuteticas assistenciais que natildeo visando agrave sauacutede perfeita e um modo de vida
supostamente ideal podem melhor obter o aumento da capacidade de resistecircncia
e a liberaccedilatildeo de potencialidades individuais e coletivas
219
Tambeacutem mostramos que seu pensamento meacutedico-filosoacutefico sugere tanto
na pesquisa cientiacutefica quanto na assistecircncia ao doente o uso de meacutetodos de
investigaccedilatildeo cliacutenico-qualitativos que somados agraves exigecircncias eacuteticas para o
desenvolvimento de pesquisas com viventes humanos e natildeo humanos impedem
o investigador de tratar o vivo como coisa brutalizando-o Aleacutem disso que ele daacute
abertura para refletirmos sobre outras formas de organizaccedilatildeo dos serviccedilos de
sauacutede que sejam estruturadas de modo a possibilitar o desenvolvimento de accedilotildees
individuais e coletivas natildeo orientadas pela ideologia do controle mas pela
confianccedila e respeito agrave vida o que exigiria tambeacutem outras formas de organizaccedilatildeo
social menos estratificadas e socioeconomicamente desiguais mais flexiacuteveis e
baseadas em relaccedilotildees mais solidaacuterias e por conseguinte menos competitivas e
adoecedoras
Concluiacutemos entatildeo que a racionalidade meacutedica vitalista desenhada a partir
do pensamento de Canguilhem pode trazer outras orientaccedilotildees agrave formaccedilatildeo teoacuterica
praacutetica assistencial e mesmo em pesquisa em sauacutede podendo abrir outros
horizontes teoacuterico-metodoloacutegicos e eacutetico-poliacuteticos para cliacutenica de modo a se
transformar em um dispositivo de resistecircncia agrave mecanizaccedilatildeo da vida e agrave
normalizaccedilatildeo dos indiviacuteduos e agrave gestatildeo sociopoliacutetica meacutedica da vida cotidiana Por
isso defendemos que eacute a partir de sua criacutetica agrave cliacutenica como dispositivo de
normalizaccedilatildeo que de forma construtiva o logos o ethos e a praacutexis que propotildee
pode contribuir para pocircr fim agraves praacuteticas de sauacutede tecnicamente normalizadoras
eticamente condenaacuteveis e politicamente conservadoras que julgamos ainda em
muito presentes na atualidade tanto no campo da sauacutede individual quanto na
coletiva
220
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2
ADRIANA BELMONTE MOREIRA
Cliacutenica e Resistecircncia
a medicina filosoacutefica de Georges Canguilhem
(versatildeo corrigida)
Tese apresentada ao programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas da Universidade de Satildeo Paulo para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutor em Filosofia sob a orientaccedilatildeo do Prof Dr Pablo Ruben Mariconda
Satildeo Paulo
2013
3
Para Eduardo e Marinalva
exemplos de luta e resistecircncia
4
AGRADECIMENTOS
Ao Prof Pablo Mariconda pelo apoio constante confianccedila e sobretudo por
compreender que somente eacute possiacutevel pensar em liberdade
Aos professores Vladimir Safatle Rodolfo Franco Puttini Mauriacutecio de Carvalho
Ramos Ivan Domingues e Joseacute Luis Garcia pelas contribuiccedilotildees dadas a meu
trabalho por ocasiatildeo do Exame de Qualificaccedilatildeo e Defesa
Aos membros do Grupo de Estudos de Filosofia Histoacuteria e Sociologia da Ciecircncia e
da Tecnologia (USP) em especial a Max Vicentini
Aos colegas do Departamento de Terapia Ocupacional da Universidade Federal
do Paranaacute (UFPR) pelo incentivo
Aos funcionaacuterios da Secretaria do Departamento de Filosofia em particular agrave
Geni pelo suporte operacional de uacuteltima hora
Agrave Mocircnica Gama e Christiane Siegmann pela forccedila da amizade
5
ldquoAinda estou agrave espera de que um meacutedico filosoacutefico
no sentido excepcional da palavra - um meacutedico que tenha o problema da sauacutede geral do
povo tempo raccedila humanidade para cuidar -
teraacute uma vez o acircnimo de levar minha suspeita ao aacutepice e aventurar a proposiccedilatildeo em todo
filosofar ateacute agora nunca se tratou de lsquoverdadersquo mas de algo outro digamos sauacutede
futuro crescimento potecircncia vidardquo
(Nietzsche)
6
RESUMO
MOREIRA A B Clinica e resistecircncia a medicina filosoacutefica de Georges
Canguilhem 2013 227 f Tese (Doutorado) - Faculdade de Filosofia Letras e
Ciecircncias Humanas Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 2013
Este trabalho procura apresentar atraveacutes de uma anaacutelise do conjunto das obras de
Canguilhem uma ldquocriacutetica da razatildeo meacutedica praacuteticardquo tal como sugere num de seus
escritos Vale dizer que embora ele tenha afirmado natildeo pretender renovar a
medicina procurando apenas ajudaacute-la a pensar sobre seus pressupostos e
conceitos fundamentais em nosso entender ao realizar uma criacutetica agrave hegemonia
do modelo meacutedico cientiacutefico-moderno e ao operar o desvelamento de sua
ideologia de controle da vida acabou por delinear os contornos de uma nova
racionalidade meacutedica que por se ancorar numa definiccedilatildeo de medicina como arte
que se coloca a serviccedilo da capacidade de resistecircncia vital pode vir a fazer frente
agrave mecanizaccedilatildeo da vida agrave normalizaccedilatildeo dos indiviacuteduos e agrave gestatildeo sociopoliacutetica
meacutedica da vida cotidiana Assim eacute adotando o ponto de vista canguilhemiano de
que a ideia de normalidade como normalizaccedilatildeo mais se identifica agrave medicina
cientiacutefica moderna que opera com a ideia de norma como meacutedia estatiacutestica e tipo
ideal do que a uma medicina que considera que na natureza haacute apenas
normalidade como normatividade que procuramos ao fim de nosso trabalho
vislumbrar outro horizonte para as praacuteticas e a eacutetica do cuidado em sauacutede na
atualidade
Palavras-chave medicina ndash cliacutenica ndash normalidade ndash patologia - vitalismo
7
ABSTRACT
MOREIRA A B Clinic and Resistance Georges Canguilhemrsquos philosophical
medicine 2013 227 f Thesis (Doctoral) - Faculdade de Filosofia Letras e
Ciecircncias Humanas Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 2013
This work seeks to present through the analysis of Canguilhemrsquos complete work a
ldquocritique of the practical reasoning in medicinerdquo as suggested by the author
himself Although he has not intended to renovate medicine his intention was to
help thinking about its assumptions and fundamental concepts It is believed that
by criticizing the hegemony of the modern scientific-medical model and operating
the unveiling of its ideology of control over life he ended up outlining the contours
of a new medical rationale This approach is based on the definition of medicine as
a type of art which is at the service of a vital resistance capacity This way it can
cope with the mechanization of life the normalization of individuals and
sociopolitical medical management of everyday life Thus by adopting
Canguilhemrsquos perspective the idea of normality as normalization is more related to
the modern scientific medicine that works with the idea of statistical average and
the ideal type than the medicine which considers that in nature there is only
normality as normativity At the end of this work the aim is to glimpse another
horizon for the practices and the ethics of current health care
Keywords medicine ndash clinic ndash normality ndash pathology ndash ethics ndash vitalism
8
LISTA DE ABREVIACcedilOtildeES
NP ndash Le normal et le pathologique
FCR- La Formation du concept de reacuteflexe aux XVIIe et XVIIIe siegravecles
CV - La connaissance de la vie
D - Du deacuteveloppement agrave leacutevolution au XIXe siegravecle
E - Eacutetudes dacuteHistoire et de Philosophie des Sciences
I - Ideacuteologie et rationaliteacute dans lacutehistoire des sciences de la vie
EM ndash Eacutecrits sur la meacutedecine
CP - Le cerveau et la penseacutee
MNHT - Milieu et normes de Ihomme au travail
QE- La question de lrsquoeacutecologie la technique ou la vie
9
SUMAacuteRIO
INTRODUCcedilAtildeO 10
CAPIacuteTULO I Medicina uma arte enraizada na vida 34
CAPIacuteTULO II Arte da cura ou ciecircncia das doenccedilas 82
CAPIacuteTULO III Medicina psicologia e normalizaccedilatildeo 119
CAPIacuteTULO IV A revitalizaccedilatildeo da cliacutenica 154
CONCLUSAtildeO 214
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 220
10
INTRODUCcedilAtildeO
Bem-estar eacute a simples consciecircncia de viver
e soacute seu impedimento suscita a forccedila de resistecircncia (Kant)
Nosso trabalho objetiva mostrar que Canguilhem no conjunto de seus
escritos sobre medicina histoacuteria e filosofia das ciecircncias da vida ao refletir sobre
os principais conceitos que datildeo inteligibilidade agrave praacutetica meacutedica - vida normal e
patoloacutegico ndash e sobre a produccedilatildeo do saber e exerciacutecio do poder meacutedicos acaba por
apresentar outra deacutemarche para a cliacutenica que a transforma em dispositivo de
resistecircncia agraves praacuteticas de normalizaccedilatildeo em sauacutede Com efeito como filoacutesofo e
meacutedico ele defende que a filosofia pode ajudar a medicina a pensar sobre seus
pressupostos natildeo somente pela problematizaccedilatildeo de seus conceitos
fundamentais mas tambeacutem atraveacutes do esclarecimento de que o cuidado em
sauacutede eacute um fato de natureza poliacutetica tanto quanto cientiacutefica concernindo natildeo
apenas a intervenccedilotildees de ordem teacutecnico-cientiacutefica mas tambeacutem a uma tomada de
posiccedilatildeo de caraacuteter eacutetico-poliacutetico Assim considerando a ideologia de controle que
subjaz agrave ciecircncia moderna e dada a alianccedila da terapecircutica ao imperativo da
normalidade ele acredita que eacute chegado o tempo de uma criacutetica da razatildeo meacutedica
praacutetica como estrateacutegia para invenccedilatildeo de uma nova racionalidade em sauacutede que
consiga fazer frente ao modelo biomeacutedico moderno
Em nossa trajetoacuteria de investigaccedilatildeo utilizamos como textos de referecircncia
sua tese de doutorado em medicina intitulada Essai sur quelques problegravemes
concernant le normal et le pathologique (1943) que somada a suas Nouvelles
Reacuteflexions concernant le normal et le pathologique (1963-1966) compotildeem a obra
Le normal et le pathologique sua tese em filosofia La Formation du concept de
reacuteflexe aux XVIIe et XVIIIe siegravecles (1955) as coletacircneas La connaissance de la vie
(1952) Eacutetudes dacuteHistoire et de Philosophie des Sciences (1968) Ideacuteologie et
rationaliteacute dans lacutehistoire des sciences de la vie (1977) Aleacutem destas obras
recorremos ao artigo Milieu et normes de Ihomme au travail (1947) agrave conferecircncia
11
Le cerveau et la penseacutee (1980) e agrave publicaccedilatildeo poacutestuma intitulada Eacutecrits sur la
meacutedecine (2002) que agrega artigos e conferecircncias publicados entre os anos de
1972 a 19901 A opccedilatildeo pela anaacutelise deste conjunto de obras apesar dele ter sido
elaborado ao longo de mais de quatro deacutecadas se fez necessaacuteria para que
pudeacutessemos recolher um maior nuacutemero de elementos a fim de apresentarmos os
contornos desta outra racionalidade em sauacutede que acreditamos ter sido
gradativamente desenhada por Canguilhem
A partir de uma anaacutelise destes escritos notamos que Canguilhem
acompanhando os debates meacutedicos e cientiacuteficos de seu tempo manteacutem uma
coerecircncia teoacuterico-epistemoloacutegica de defesa do vitalismo em oposiccedilatildeo ao
mecanicismo claacutessico e a seus desdobramentos posteriores2 Percebemos
tambeacutem e isso de modo mais fundamental que se ele adere a esta tradiccedilatildeo
meacutedico-filosoacutefica natildeo eacute somente por compartilhar com ela o reconhecimento da
originalidade do fenocircmeno vital Eacute tambeacutem porque ela ao contraacuterio da tradiccedilatildeo
mecanicista se opotildee agrave ideologia3 de controle da natureza sustentada pela ciecircncia
moderna Assim em nosso entender se ele natildeo vecirc problemas em ser chamado
de vitalista eacute sobretudo porque ele encontra no vitalismo uma eacutetica de respeito e
1 Segundo Zaloszyc os Escritos sobre Medicina somados aos trecircs outros textos que figuram sobre
a rubrica ldquoMedicinardquo nos Eacutetudes dacuteHistoire et de Philosophie des Sciences compotildeem a totalidade dos escritos de Canguilhem sobre o tema Seguindo de perto o trabalho bibliograacutefico criacutetico de Limoges ele acredita que eacute neste conjunto de textos que Canguilhem trata da histoacuteria e da filosofia da medicina reservando-se a fronteira sempre incerta com os estudos de fisiologia e a reflexatildeo sobre o sujeito doente Cf ZALOSZYC A Prefaacutecio In CANGUILHEM G Escritos sobre a medicina (trad Vera Avellar Ribeiro rev teacutecnica Manoel Barros da Motta) Rio de Janeiro Forense Universitaacuteria 2005
2 Com efeito Canguilhem critica tanto a concepccedilatildeo mecanicista de vida do seacuteculo XVII derivada
da fisiologia de Descartes que procura explicar o ser vivo a partir do modelo de uma maacutequina quanto agravequela que a partir dos seacuteculos seguintes procuram explicaacute-lo em termos fiacutesico-quiacutemicos como a de Lavoisier e Laplace ambas identificadas ao determinismo ou seja agrave ideia de que os fenocircmenos vitais se produzem segundo uma ordem determinada e que as condiccedilotildees de sua apariccedilatildeo seguem a lei da causalidade Sobre as diferentes formulaccedilotildees histoacutericas do mecanicismo do seacuteculo XVII ao XIX confira FREZZATTI JR W A Haeckel e Nietzsche aspectos da criacutetica ao mecanicismo no seacuteculo XIX Scientia Studia vol 1 n
o 4 2003 p435-61
3 Vale esclarecer que utilizamos a noccedilatildeo de ideologia no sentido marxista que na leitura de
Canguilhem acompanhando a de Althusser eacute um conceito que se aplica aos sistemas de representaccedilotildees que se exprimem na linguagem da poliacutetica da moral da religiatildeo e da metafiacutesica e que se apresentam como se fossem a expressatildeo do que satildeo as proacuteprias coisas enquanto satildeo de fato meios de proteccedilatildeo e defesa de um determinado sistema de relaccedilotildees dos homens entre si e dos homens com as coisas (cfI 1981 p35)
12
defesa da vida que iraacute embasar sua postura eacutetico-poliacutetica de contraposiccedilatildeo a uma
ideologia de domiacutenio da vida que encontrou no nazi-fascismo sua versatildeo mais
acabada
Com efeito para Canguilhem considerando a indissociabilidade entre
logos ethos e praacutexis a medicina ao tomar contato com a formaccedilatildeo e a praacutetica
meacutedicas de seu tempo percebe que a partir de uma orientaccedilatildeo materialista
mecanicista e reducionista a praacutetica cliacutenica ficou aprisionada num esquema de
causa e efeito entre o gesto terapecircutico e seu resultado entre a medicaccedilatildeo
utilizada e a cura obtida atraveacutes dela reduzindo a relaccedilatildeo meacutedico-doente a um
automatismo de ordem meramente instrumental Aleacutem disso nota que o
esquecimento das recomendaccedilotildees hipocraacuteticas que ele lamenta imperar nas
escolas meacutedicas natildeo significou apenas que os meacutedicos deixaram de considerar o
doente como uma totalidade orgacircnica consciente e de invocar a natureza como
providecircncia curativa mas tambeacutem acarretou a perda do sentido da ideia de defesa
eacutetica da vida inerente agrave medicina
ldquoQuer o lamentemos quer natildeo o fato eacute que hoje ningueacutem eacute obrigado para exercer a medicina a ter o menor conhecimento de sua histoacuteria Eacute faacutecil imaginar uma doutrina meacutedica tal como o hipocratismo pode produzir no espiacuterito de quem soacute conhece Hipoacutecrates pelo famoso juramento rito final doravante esvaziado de sentidordquo (EM 2005 p13-14)
Sendo assim no percurso de nossa investigaccedilatildeo para alcanccedilarmos o teor
teoacuterico-epistemoloacutegico e eacutetico-poliacutetico da criacutetica de Canguilhem agrave medicina de seu
tempo o primeiro passo foi elucidar em qual momento se deu seu interesse por
ela4 Ora sabemos atraveacutes dele mesmo como consta no prefaacutecio de seu Ensaio
sobre alguns problemas relativos ao normal e ao patoloacutegico que cursou medicina
4 Roudinesco (2007) esclarece que entre os anos 30 e 40 periacuteodo em que Canguilhem decidiu
cursar medicina em geral os filoacutesofos que optavam por estudar medicina faziam por interesse pela psicopatologia e o tratamento das doenccedilas mentais almejando retirar o saber psiquiaacutetrico do campo meacutedico e devolvecirc-lo ao domiacutenio da psicologia cliacutenica Canguilhem distanciando-se desta tradiccedilatildeo optou por um caminho pouco comum em relaccedilatildeo ao trilhado por seus colegas de formaccedilatildeo filosoacutefica Ele escolheu partir do estudo da fisiopatologia ou nosologia somaacutetica para tratar do problema do normal e do patoloacutegico mas sem deixar de por extensatildeo discutir problemas de psicopatologia ou nosologia psiacutequica Cf ROUDINESCO E Filoacutesofos na tormenta (Canguilhem Sartre Foucault Althusser Deleuze Derrida) Rio de Janeiro Zahar 2007
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alguns anos apoacutes haver concluiacutedo o curso de filosofia esperando com isso
acercar-se dos problemas humanos concretos
ldquoNatildeo eacute necessariamente para conhecer melhor as doenccedilas mentais que um professor de filosofia pode se interessar pela medicina Natildeo eacute tambeacutem necessariamente para praticar uma disciplina cientiacutefica Esperaacutevamos da medicina justamente uma introduccedilatildeo a problemas humanos concretosrdquo (NP 1990 p16)
Ciente dos limites da pura especulaccedilatildeo filosoacutefica ele acreditava que somente uma
ldquocultura meacutedica diretardquo possibilitaria o esclarecimento dos dois problemas que
mais o interessavam o da relaccedilatildeo entre as ciecircncias e as teacutecnicas e o das normas
e do normal Isso porque a medicina por ser uma arte ou teacutecnica de instauraccedilatildeo
e restauraccedilatildeo do normal ao mesmo tempo em que possibilitaria a
problematizaccedilatildeo da ideia de que a teacutecnica deve ser a mera aplicaccedilatildeo de uma
ciecircncia tambeacutem ela por operar a partir da noccedilatildeo de normalidade permitiria uma
reflexatildeo sobre o que seria este estado normal que a terapecircutica procura instaurar
ou restabelecer
No acircmbito de seu primeiro problema para defender a anterioridade loacutegica e
cronoloacutegica da teacutecnica em relaccedilatildeo agrave ciecircncia ele procurou mostrar a precedecircncia
da teacutecnica meacutedica em relaccedilatildeo agrave ciecircncia da vida a apresentando enraizada nas
normas e valores vitais Acreditando que na vida natildeo haacute ineacutercia ou indiferenccedila
bioloacutegica para ele assim como a ciecircncia entendida como procura do
conhecimento verdadeiro surge das resistecircncias encontradas na accedilatildeo praacutetica a
medicina como arte da vida existe porque o vivente humano considera como
patoloacutegicos certos estados ou comportamentos que em relaccedilatildeo agrave polaridade
dinacircmica da vida satildeo apreendidos sob a forma de valores negativos A doenccedila
de valor vital negativo para a totalidade orgacircnica no homem como totalidade
orgacircnica consciente eacute sentida como um mal sendo que eacute este pathos o que o
leva a praticar intencionalmente teacutecnicas de autocura e autorregeneraccedilatildeo jaacute
exercidas espontaneamente pelo ldquoprimeiro meacutedicordquo que eacute a vida Assim se eacute o
pathos que condiciona o logos a medicina existe porque os homens se sentem
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doentes e natildeo porque haacute meacutedicos dotados de conhecimento cientiacutefico que os
informam do fato de estarem com tal ou qual enfermidade
Para abordar o segundo problema a estrateacutegia canguilhemiana foi mostrar
o alcance propriamente filosoacutefico do conceito de normal questionando se o
patoloacutegico eacute idecircntico ao anormal se o normal eacute idecircntico ao satildeo e se a anomalia eacute
a mesma coisa que anormalidade Isso porque a terapecircutica retirando sua
autoridade de seu conhecimento de fisiologia como ciecircncia das leis ou das
constantes da vida normal passou a se orientar por uma determinada noccedilatildeo de
normalidade - como estado habitual dos oacutergatildeos e seu estado ideal - sem ver nela
um problema a ser elucidado Criticando uma concepccedilatildeo de normalidade como
meacutedia estatiacutestica e tipo ideal Canguilhem acredita que a fisiologia tem mais a
fazer do que tentar definir objetivamente o estado normal Ela deve reconhecer a
ldquonormatividade original da vidardquo admitir que nela haacute uma plasticidade funcional
ligada a sua capacidade de criar e infringir suas proacuteprias normas
Destarte como forma de reabrir os debates sobre um problema dado por
resolvido Canguilhem optou por fazer o exame criacutetico de uma ideia amplamente
aceita no seacuteculo XIX de que o estado patoloacutegico seria apenas ldquoexageraccedilatildeo ou
atenuaccedilatildeo dos fenocircmenos normaisrdquo isto eacute uma variaccedilatildeo quantitativa para mais
ou para menos do estado normal estado este determinado por meacutetodos
cientiacutefico-experimentais A seu ver tal tese presente nos trabalhos de Comte
(1798-1857) e de Claude Bernard (1813-1878) se encontra vinculada agrave ambiccedilatildeo
de tornar a terapecircutica cientiacutefica o que soacute seria possiacutevel se houvesse uma
definiccedilatildeo puramente objetiva do estado normal a partir da qual o patoloacutegico
pudesse ser inferido (cf NP 1990 p23)
Na contramatildeo do posicionamento do filoacutesofo e do meacutedico e fisiologista
franceses influenciado sobretudo pelos trabalhos do meacutedico Kurt Goldstein5
5 Kurt Goldstein (1878-1965) psiquiatra e neurologista de origem alematilde Eacute o autor de Der Aufbau
des Organismus obra publicada na Alemanha em 1934 e popularizada na Franccedila pelos ciacuterculos filosoacuteficos influenciados pelos trabalhos de Maurice Merleau-Ponty Em seus trabalhos ele apresenta os resultados de sua praacutetica clinica com pacientes com lesatildeo neuroloacutegica adquiridas em combate militar no periacuteodo da primeira grande guerra Sua teoria das relaccedilotildees do vivente com seu meio influenciou obras como La structure du comportement (1942) de Merleau-Ponty e o Ensaio sobre alguns problemas relativos ao normal e ao patoloacutegico (1943) de Canguilhem Cf
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Canguilhem procurou mostrar que o estado patoloacutegico natildeo eacute uma variaccedilatildeo
quantitativa da dimensatildeo da sauacutede isto eacute simples prolongamento
quantitativamente variado do estado normal mas uma nova dimensatildeo da vida um
novo comportamento orgacircnico qualitativamente diferente do estado normal ainda
que repelido pela vida mesma
Ademais atento agrave dimensatildeo existencial do processo de adoecimento ele
toma de Goldstein a ideia de que para a compreensatildeo do patoloacutegico eacute preciso
considerar a noccedilatildeo de ser doente (Kranksein) visto que a doenccedila mais do que um
acometimento bioloacutegico eacute uma ameaccedila a uma existecircncia individual ldquoa doenccedila eacute
abalo e ameaccedila agrave existecircncia Por conseguinte a definiccedilatildeo de doenccedila exige como
ponto de partida a noccedilatildeo de ser individualrdquo (NP 1990 p148) Assim contestando
a tese do tambeacutem meacutedico Reneacute Leriche6 de que para compreender a doenccedila eacute
preciso ldquodesumanizaacute-lardquo de que no estudo do patoloacutegico o que interessa eacute a
alteraccedilatildeo anatocircmica ou o distuacuterbio fisioloacutegico ele traz para a definiccedilatildeo do
patoloacutegico o ponto de vista do doente do homem concreto consciente de sua dor
e de sua incapacidade funcional e social que vivenciando a doenccedila como um
drama de sua historia7 percebe mudadas suas relaccedilotildees de conjunto com seu meio
(entourage)
Desta forma para Canguilhem malgrado todos os esforccedilos de
racionalizaccedilatildeo cientiacutefica a medicina tem a praacutetica cliacutenica como elemento
essencial que natildeo pode ser reduzida agrave mera aplicaccedilatildeo de um conhecimento
GOLDSTEIN K La structure de lrsquoorganisme Introduction agrave la biologie agrave partir de la pathologie humaine (1951) Paris Gallimard 1983
6 Reneacute Leriche (1879-1955) meacutedico-cirurgiatildeo francecircs que realizou um conjunto de pesquisas e
reflexotildees criacuteticas sobre o fenocircmeno da dor Confira tambeacutem CANGUILHEM G ldquoLa penseacutee de Reneacute Lericherdquo In Revue Philosophique juillet-septembre 1956 p 313-317
7 Enxergamos aqui um diaacutelogo com uma tradiccedilatildeo de pensamento que recorre ao concreto em
oposiccedilatildeo ao abstracionismo filosoacutefico particularmente com o trabalho de Georges Politzer (1903-1942) pensador de origem huacutengara que participou da Resistecircncia agrave ocupaccedilatildeo nazista na Franccedila e que foi preso torturado e executado pela Gestapo em 1942 Em sua obra Criacutetica dos Fundamentos da Psicologia (1928) ele faz uma criacutetica agrave psicologia aniacutemica ou subjetiva vinculada ao mito da vida interior e agrave objetiva baseada no caacutelculo e na experimentaccedilatildeo Adotando o teatro como metaacutefora de sua psicologia concreta defende que a vida propriamente humana eacute dramaacutetica e o eu empiacuterico soacute pode ser o indiviacuteduo particular e concreto Cf POLITZER G Criacutetica dos fundamentos da psicologia a psicologia e a psicanaacutelise (Trad Marcos Marcionilo e Yvone Maria de campos Teixeira da Silva) Piracicaba UNIMEP 1998
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sendo vista como simples subsidiaacuteria dos resultados de pesquisas nos campos da
anatomia embriologia fisiologia e psicologia Dotada de certa independecircncia ela
tem por objeto a experiecircncia da doenccedila que eacute menos um fato objetivaacutevel nas
matildeos do cientista e mais um valor para aquele que adoece Portanto mais do que
uma ciecircncia propriamente dita a medicina eacute uma arte que encontra natildeo somente
no laboratoacuterio mas na relaccedilatildeo meacutedico-doente os elementos para a compreensatildeo
do comportamento patoloacutegico pois eacute somente a cliacutenica que coloca o meacutedico em
contato com o indiviacuteduo concreto ciente de sua dor e que vivencia a anguacutestia
suscitada pela doenccedila
Vinte anos depois de ter escrito seu Ensaio em suas Novas reflexotildees
referentes ao normal e ao patoloacutegico considerando o normal um conceito
dinacircmico e polecircmico e natildeo estaacutetico e paciacutefico Canguilhem retoma seu estudo
sobre as normas orgacircnicas agora querendo esclarecer sua significaccedilatildeo atraveacutes
da confrontaccedilatildeo com as normas sociais Voltando seu interesse para o problema
da identidade entre normalidade e adaptaccedilatildeo agora ele faz uma anaacutelise criacutetica
deste conceito que em sua acepccedilatildeo original vem da atividade teacutecnica mas que a
partir do seacuteculo XIX foi introduzido natildeo soacute na biologia mas tambeacutem na psicologia
e na sociologia de forma bastante questionaacutevel pela ideia de subordinaccedilatildeo
psicossocial a ela vinculada
Assim eacute atraveacutes de uma incursatildeo no estudo da sociedade da contestaccedilatildeo
da sinoniacutemia entre adaptaccedilatildeo social e normalidade que ele complementa sua
reflexatildeo sobre as normas e o normal dando a sua discussatildeo um caraacuteter
explicitamente sociopoliacutetico com forte acento foucaultiano
Com efeito compartilhando interesses no estudo sobre as normas
Canguilhem e Foucault sofrem influecircncias reciacuteprocas Se natildeo eacute novidade a
importacircncia das reflexotildees canguilhemianas para Foucault tambeacutem sabemos por
Canguilhem mesmo que foi atraveacutes dos escritos foucaultianos que ele se viu
diante da problemaacutetica do saber-poder meacutedico e das praacuteticas de normalizaccedilatildeo
operadas pelas instituiccedilotildees sanitaacuterias Ele admite que foi a partir da leitura de
obras como Histoacuteria da Loucura e O nascimento da cliacutenica que aprendeu a
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conhecer uma forma de anormalidade diferente da patoloacutegico-orgacircnica e a
reconhecer a existecircncia histoacuterica de um poder meacutedico duvidoso exercido pelas
vias e meios do biopoder8
Desta forma assim como Foucault se empenhou em mostrar atraveacutes de
suas pesquisas arqueogenealoacutegicas que historicamente a medicina se constituiu
como uma estrateacutegia biopoliacutetica de normalizaccedilatildeo Canguilhem natildeo desconsiderou
a relaccedilatildeo existente entre a produccedilatildeo do saber e o exerciacutecio do poder meacutedicos o
liame existente entre medicina e poliacutetica fortalecido pelo componente de natureza
social na construccedilatildeo do conhecimento sobre as doenccedilas bem como na
organizaccedilatildeo e nas praacuteticas de hospitalizaccedilatildeo (cf EM 2005 p28 E 1989 p398)
Por extensatildeo Canguilhem e Foucault entram em concordacircncia quanto agrave
criacutetica aos fundamentos da psicologia cientiacutefica9 Tambeacutem em Canguilhem o alvo
de ataque privilegiado eacute a uma psicologia entendida como o estudo objetivo do
comportamento que utiliza as teacutecnicas de condicionamento com vistas agrave
orientaccedilatildeo ou direcionamento dos indiviacuteduos no meio social (cf CP 1993 p25)
Isto eacute se ele critica a psicologia eacute por ela ter aceitado converter-se em uma
ciecircncia objetiva das atitudes reaccedilotildees e comportamentos separando-se de toda
referecircncia agrave sabedoria isto eacute da especulaccedilatildeo filosoacutefica sobre a ideia de homem
tornando-se uma ldquofilosofia sem rigor uma eacutetica sem exigecircncia e uma medicina
sem controlerdquo (cf E 1989 p 366)
Assim eacute ao se perguntar sobre quais interesses estatildeo por traacutes da
investigaccedilatildeo de nosso poder de pensar que Canguilhem traccedila a histoacuteria da
psicologia buscando o sentido de cada um de seus projetos e identifica na
8 Eacute por ocasiatildeo do evento em comemoraccedilatildeo agrave publicaccedilatildeo de Histoacuteria da Loucura tese defendida
por Foucault em 1961 a uma banca da qual foi relator que Canguilhem admite o impacto que esta obra e O nascimento da cliacutenica tiveram em suas proacuteprias reflexotildees Cf CANGUILHEM G ldquoAberturardquo In CANGUILHEM G DERRIDA J MAJOR R ROUDINESCO E Foucault Leituras da Histoacuteria da Loucura (trad Maria Ignes Duque Estrada) Relume-Dumaraacute 1994
9 Canguilhem por ocasiatildeo da defesa de tese de Foucault comenta ldquoEacute portanto a significaccedilatildeo dos
comeccedilos da psiquiatria positivista - antes da revoluccedilatildeo freudiana - o que estaacute em questatildeo no trabalho do Sr Foucault E atraveacutes da psiquiatria eacute a significaccedilatildeo do evento da psicologia positiva que passa por uma revisatildeo Natildeo seraacute motivo de surpresa que esse estudo provoque a reconsideraccedilatildeo do estatuto de lsquociecircnciarsquo da psicologiardquo (CANGUILHEM 1994 p16) In CANGUILHEM G DERRIDA J MAJOR R ROUDINESCO E Ibid
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psicologia do comportamento a ambiccedilatildeo de tratar o homem como ldquoinstrumentordquo
por razotildees cientiacuteficas teacutecnicas mas tambeacutem econocircmicas e poliacuteticas Em vista
disso estabelecendo uma relaccedilatildeo entre psicologia do comportamento
normalizaccedilatildeo do pensamento e controle das condutas sociais desviantes
inspirado na atitude de Espinosa ele adota uma postura eacutetico-poliacutetica de
resistecircncia a tudo que impede o exerciacutecio de nossa liberdade de pensar que limita
o aumento da potecircncia do pensamento e cerceia nossos gestos de engajamento
Aleacutem disso apresentando o desenvolvimento do problema da relaccedilatildeo entre
ceacuterebro e pensamento na histoacuteria da cultura de Hipoacutecrates e Galeno ateacute o
nascimento da psicocirurgia passando pela teoria das localizaccedilotildees cerebrais a
ciecircncia do ceacuterebro e a frenologia de Gall ele conclui que a filosofia natildeo pode
deixar de se erguer contra uma psicologia que aliada agrave neurologia cerebral se
quer objetiva e que pretende instruir outras ciecircncias sobre as funccedilotildees intelectuais
para que sejam exploradas pela pedagogia pela economia e pela poliacutetica Isso
porque um modelo de pesquisa cientiacutefica que procura deduzir a consciecircncia de
uma ciecircncia do ceacuterebro e ainda reduzi-lo a um computador nada tem a contribuir
para a reflexatildeo sobre nosso poder de pensar pois apenas serve de justificativa
para as teacutecnicas de normalizaccedilatildeo das condutas e de maacutequina de ldquopropaganda
ideoloacutegicardquo para toda sorte de sistemas autoritaacuterios (cf CP 1993 p21)
Mas eacute importante notar que a criacutetica canguilhemiana a racionalidade
meacutedica cientiacutefico-moderna natildeo resvala na antimedicina ou numa desvalorizaccedilatildeo
da ciecircncia em sua contribuiccedilatildeo para a praacutetica cliacutenica Canguilhem critica o
naturismo e a autogestatildeo radical da sauacutede como se fosse possiacutevel prescindir das
verdades cientiacuteficas Ele acredita que uma coisa eacute aventar outra racionalidade
para a medicina recusando a difusatildeo de uma ideologia meacutedica de especialistas
engenheiros de um corpo decomposto como uma maquinaria a outra eacute acreditar-
se obrigado a liberar-se de sua tutela considerada repressiva e aleacutem disso das
ciecircncias das quais ela costuma se beneficiar ldquonada eacute mais difundido e mais
rentaacutevel nos dias de hoje do que uma proclamaccedilatildeo anti-xrdquo (EM 2005 p 66) Por
isso ele alerta para que natildeo resvalemos em uma banalizaccedilatildeo da criacutetica como se
a medicina fosse a fonte de todos os males modernos como se as morbidades
19
fossem resultado de processos iatrogecircnicos e que por isso devecircssemos retornar a
medicinas preacute-racionais e agrave autogestatildeo em sauacutede
Ainda ao colocar em questatildeo se ante a crise da medicina contemporacircnea a
saiacuteda seria o retorno agrave medicina dos antigos ou a superaccedilatildeo da racionalidade
meacutedica atual vemos que a criacutetica de Canguilhem tambeacutem natildeo significa uma
adesatildeo agrave medicina dos vitalistas10 Como eles critica a tradiccedilatildeo meacutedica
mecanicista por definir o corpo como mateacuteria inerte a doenccedila como uma avaria e
a cura como o retorno a um estado anterior dada a possibilidade de
reversibilidade dos fenocircmenos orgacircnicos concepccedilatildeo atrelada aos princiacutepios de
conservaccedilatildeo ou de invariacircncia sobre os quais se fundamentam a mecacircnica e
cosmologia da eacutepoca claacutessica (cf EM 2005 p 53) No entanto apesar de se
inscrever na tradiccedilatildeo vitalista atraveacutes de seu vitalismo materialista
antimecanicista11 Canguilhem elabora uma racionalidade meacutedica singular que
apesar de tambeacutem apostar numa concepccedilatildeo de corpo dinacircmico e na forccedila curativa
da natureza (vis medicatrix naturae) por ele traduzida pelas noccedilotildees de polaridade
dinacircmica e normatividade vital assume feiccedilotildees proacuteprias
10
Embora Canguilhem teccedila elogios aos fundamentos da tradiccedilatildeo meacutedica vitalista Puttini e Pereira Jr acreditam que ele natildeo foi um ldquoadvogado da medicina vitalistardquo mas procurou antes de tudo realizar uma reflexatildeo epistemoloacutegica sobre a vida quer natildeo se prendesse agraves categorias mecanicistas Para os autores atraveacutes do conceito de normatividade vital Canguilhem procurou em verdade realizar uma ldquosuperaccedilatildeordquo da oposiccedilatildeo entre o mecanicismo e o vitalismo Cf PUTTINI R F PEREIRA JR A Aleacutem do mecanicismo e do vitalismo a ldquonormatividade da vidardquo em Georges Canguilhem Rio de Janeiro Physis vol 17 n
o 03 2007
11 Vale destacar que o fato de Canguilhem ter apontado apenas a insuficiecircncia da biologia
mecanicista para a explicaccedilatildeo dos fenocircmenos vitais isto eacute por ele natildeo tecirc-la falseado de todo levou alguns comentadores a enxergar uma posiccedilatildeo hiacutebrida de vitalismo e mecanicismo em sua concepccedilatildeo de vida Nesta direccedilatildeo Barbara (2008) acredita que Canguilhem adota uma racionalidade sincreacutetica entre vitalismo e mecanicismo optando por preservar uma tensatildeo entre os estudos dos mecanismos e a exigecircncia vitalista de um sentido de organismo em seu meio Mas se entendermos que as principais caracteriacutesticas da mateacuteria viva a polaridade dinacircmica e a normatividade vital ambas orientadas para a autoconservaccedilatildeo do vivente como sua finalidade imanente natildeo encontram lugar no modelo explicativo mecanicista parece possiacutevel dizer que a posiccedilatildeo de Canguilhem eacute antimecanicista por excelecircncia embora materialista Assim tendemos a acompanhar Dagognet (2007) em sua afirmaccedilatildeo de que o meacuterito de Canguilhem eacute ter subtraiacutedo a vida de um vitalismo animista sem precisar com isso professar um mecanicismo Cf BARBARA J-G Lrsquoeacutetude du vivant chez Georges Canguilhem des concepts aux objets biologiques In FAGOT-LARGEAULT DEBRU D MORANGE M (dir) HAN H-J (eacuted) Philosophie et meacutedecine en hommage agrave Georges Canguilhem (LrsquoHistoire des sicences ndash Textes et Egravetudes) Paris Vrin 2008 DAGOGNET F Pourquoi la maladie et le reacuteflexe dans la philosophie biomeacutedicale de Canguilhem In BAUNSTEIN J-F (org) Histoire des sciences et politique du vivant Paris Presses Universitaires de France ndash PUF 2007 p17-25
20
Em resumo em nosso entender o nuacutecleo da criacutetica canguilhemiana agrave
medicina de seu tempo eacute o fato dela ter deixado de ser uma arte da cura para se
tornar uma ciecircncia das doenccedilas orientada pelo valor de controle da natureza
proacuteprio da ciecircncia moderna Segundo Canguilhem a hegemonia desta
racionalidade fez com que a medicina se constituiacutesse como um campo de conflito
de discordacircncia entre valores orgacircnicos lentos e contiacutenuos e os valores teacutecnicos
mecacircnicos acelerados e descontiacutenuos Com a primazia da ordem tecnoloacutegica em
relaccedilatildeo agrave ordem bioloacutegica a terapecircutica moderna perdeu de vista toda norma
natural da vida orgacircnica e o doente passou a ser tratado segundo normas
anocircnimas impostas julgada superiores as suas normas individuais e espontacircneas
O ensino meacutedico passou a privilegiar os aspectos teacutecnico-cientiacuteficos da praacutetica
meacutedica em detrimento da deontologia da consideraccedilatildeo dos aspectos bioafetivos
e psicossocioloacutegicos da doenccedila e da reflexatildeo sobre as condiccedilotildees sociais e legais
de seu exerciacutecio no interior das coletividades (cf E 1989 p383-385)
Com efeito em seu artigo ldquoPuissance et limites de la rationaliteacute em
meacutedecinerdquo Canguilhem mostra que historicamente a ambiccedilatildeo por uma ciecircncia do
curar remonta ao seacuteculo XVII com os trabalhos dos iatromecanicistas que creem
poder fundar racionalmente a medicina a partir dos princiacutepios da mecacircnica
galileana e cartesiana Ao analisar a histoacuteria da medicina a partir da segunda
metade do seacuteculo XIX apresenta o impacto da anatomia patoloacutegica da histologia
da histo-patologia da quiacutemica orgacircnica e principalmente da fisiologia para o
estudo das doenccedilas e esclarece que eacute neste periacuteodo que surge o termo
racionalismo para caracterizar a medicina do futuro Objetivando o tratamento
racional da doenccedila a medicaccedilatildeo absolutamente eficaz e a profilaxia correta por
oposiccedilatildeo aos conceitos de ordem probabiliacutestica e estatiacutestica e agrave multiplicidade de
medicamentos empiricamente ministrados a medicina deixou de ser a arte o
empirismo do curar para ser a ciecircncia o racionalismo do curar o que causou uma
mudanccedila profunda na forma de compreensatildeo do fenocircmeno patoloacutegico e na
relaccedilatildeo meacutedico-doente (cf E 1989 p393-395)
Ademais na Ideologia e racionalidade nas ciecircncias da vida ao traccedilar um
esboccedilo histoacuterico-epistemoloacutegico e ideoloacutegico das teorias meacutedicas ele tambeacutem nota
21
que a medicina moderna ativa e operativa suscitada por Vesaacutelio e Harvey e
celebrada por Bacon e Descartes nasceu por oposiccedilatildeo a uma medicina
contemplativa que se baseando numa correspondecircncia isomoacuterfica entre o
equiliacutebrio do cosmos e o equiliacutebrio orgacircnico apostava no poder da natureza de
corrigir desordens e respeitava uma terapecircutica expectante e defensiva Nesta
mesma via a medicina cientiacutefico-experimental norteada por conhecimentos
fisioloacutegicos baseados em fatos e leis confirmados pela experimentaccedilatildeo laboratorial
e orientada pelo valor de controle da natureza sustentado pela ciecircncia moderna
passou a ditar normas agrave vida ignorando a vis medicatrix naturae atividade
curativa inerente a ela
Por isso ao realizar sua ldquogenealogia ideoloacutegica do princiacutepio de identidade
dos fenocircmenos normais e patoloacutegicosrdquo Canguilhem diz ter procurado colocar em
questatildeo uma ideologia meacutedica liberta de toda fidelidade ao hipocratismo ideologia
esta vinculada ao progressismo da sociedade industrial e fundadora do poder
ilimitado da medicina (cf I 1981 p49) Segundo ele tal princiacutepio que tem sua
origem na obra do meacutedico escocecircs Jonh Brown e foi admitida por Broussais
Comte e Claude Bernard abolindo a distinccedilatildeo entre fisiologia e patologia pocircs a
medicina inteiramente sob os auspiacutecios da atividade cientiacutefica experimental
afastando-a da observaccedilatildeo e da confianccedila na natureza proacuteprias da medicina
expectante e institui uma medicina racional pautada na ideia de ldquoeficaacutecia totalrdquo
que aposta numa supervalorizaccedilatildeo do saber que supera e domina a natureza ou
mais precisamente a vida
Sendo assim para Canguilhem tal ideologia natildeo sendo apenas o efeito da
colonizaccedilatildeo da medicina pelas ciecircncias fundamentais e aplicadas tambeacutem
decorre do interesse da sociedade industrial no controle da sauacutede das populaccedilotildees
operaacuterias necessaacuterio para manter produtiva a forccedila de trabalho fato que
evidencia que a ambiccedilatildeo da medicina em curar os indiviacuteduos prevenir e eliminar
doenccedilas contagiosas prolongar a esperanccedila de vida eacute um fato de natureza
poliacutetica tanto quanto cientiacutefica
22
ldquoA medicina experimental atuante e militante cujo modelo Claude Bernard pensou construir eacute a medicina de uma sociedade industrial Quando Claude Bernard opotildee a sua medicina agrave medicina contemplativa expectante isto eacute agrave medicina das sociedades agriacutecolas ele que eacute filho de um vinhateiro natildeo consegue conceber que a ciecircncia da eacutepoca natildeo soacute exigia do saacutebio o abandono das ideacuteias invalidadas pelos fatos mas que sobretudo exigia a renuacutencia ativa a um estilo pessoal de investigaccedilatildeo das ideacuteias exatamente como na mesma eacutepoca os progressos da economia exigiam o desenraizamento dos homens nascidos no campordquo (I 1981 p 60)
Com efeito eacute sob a influecircncia do industrialismo que a medicina se viu diante
da necessidade de reforma a ser operada atraveacutes de uma racionalizaccedilatildeo de seus
tratamentos preventivos e curativos e da planificaccedilatildeo de suas estrateacutegias visando
abarcar o conjunto da sociedade Neste contexto de reforma das instituiccedilotildees
sanitaacuterias a sauacutede da populaccedilatildeo passou a ser considerada estatisticamente e o
termo normal de origem matemaacutetica a ser usado para designar o protoacutetipo de
sauacutede orgacircnica Eacute portanto neste periacuteodo que a vigilacircncia e as condiccedilotildees de vida
passaram a ser objeto de medidas e de regulamentos decididos pelo poder
poliacutetico e esclarecido pelos higienistas ldquoMedicina e poliacutetica entatildeo se encontraram
em uma nova abordagem das doenccedilas da qual temos uma ilustraccedilatildeo convincente
na organizaccedilatildeo e nas praacuteticas de hospitalizaccedilatildeordquo (EM 2005 p28)
O problema identificado por Canguilhem ao analisar a relaccedilatildeo existente
entre o nascimento do hospital e a ambiccedilatildeo sociopoliacutetica-meacutedica higienista de
regulamentar a vida dos indiviacuteduos eacute que essa forma de abordagem meacutedica em
muito contribuiu para a desindividualizar a doenccedila pois se por um lado o discurso
higienista desindividualiza porque incide sobre uma coletividade tambeacutem o
hospital atraveacutes da ultraespecializaccedilatildeo de seus procedimentos que localizam a
doenccedila no oacutergatildeo no tecido na ceacutelula no gene na enzima perde de vista o
sujeito da doenccedila A seu ver como uma maacutequina de curar o hospital se constituiu
como um lugar de tratamento generalizado no anonimato pois nele o doente natildeo
eacute tratado como sujeito de sua doenccedila mas como objeto (cf EM 2005 p55)
Como mero corpo objetivado seu sofrimento e a reduccedilatildeo de suas atividades
cotidianas habituais natildeo satildeo considerados como constitutivos e agravantes de seu
estado de mal
23
Eacute tambeacutem diante da percepccedilatildeo de que os espaccedilos destinados ao cuidado
em sauacutede se encontram cada vez mais ocupados por equipamentos e
regulamentos sanitaacuterios e de que o meacutedico assumiu o papel de executor das
instruccedilotildees de um aparelho de Estado se esquecendo de que a sauacutede mais do que
uma exigecircncia de ordem econocircmica a ser valorizada no enquadramento de uma
legislaccedilatildeo eacute a unidade espontacircnea das condiccedilotildees de exerciacutecio da vida que
Canguilhem apresenta alguns questionamentos Como se livrar da tecnocracia
dos meacutedicos Seria preciso introduzir na formaccedilatildeo hospitalar-universitaacuteria um
ensino da participaccedilatildeo convival para garantia do melhor contato humano entre
meacutedicos e doentes Devemos resolver esta dificuldade criando equipes de sauacutede
com profissionais fortemente motivados que se empenhariam em recriar as
relaccedilotildees com o corpo o trabalho e a coletividade Mas essas soluccedilotildees que se
dizem de esquerda estatildeo isentas de toda ideologia de direita Seraacute chegado o
tempo de uma ldquocriacutetica da razatildeo meacutedica praacuteticardquo (cf EM 2005 p 69)
Destarte eacute por oposiccedilatildeo aos pressupostos teoacuterico-epistemoloacutegicos e
poliacutetico-ideoloacutegicos da racionalidade meacutedica cientiacutefico-moderna que Canguilhem
define a medicina como uma teacutecnica ou arte situada na confluecircncia de vaacuterias
ciecircncias que deve se colocar a serviccedilo das normas vitais (cf NP 1990 p16)
Mas para tanto o meacutedico precisa estar ciente de que a vida humana tem um
sentido bioloacutegico existencial e social e que todos esses sentidos devem ser
considerados para a compreensatildeo do fenocircmeno patoloacutegico (cf CV 1985 p 155)
Caso contraacuterio a medicina iraacute se transformar em um dispositivo social de
normalizaccedilatildeo e o meacutedico teraacute seu papel limitado ao de reparador de um suposto
estado normal ideal e adequado a um determinado modelo de sociedade este
mesmo incontestaacutevel
Desta forma ampliando a concepccedilatildeo de vida para aleacutem de sua dimensatildeo
bioloacutegica e conjugando a ela as dimensotildees existencial e social Canguilhem
recusa um biologismo um psicologismo ou mesmo um sociologismo limitados na
compreensatildeo do fenocircmeno patoloacutegico Advogando em defesa de uma cliacutenica
centrada no indiviacuteduo concreto norteada pelas noccedilotildees de sentido e valor vitais
ele procura fazer com que o meacutedico deixe de ser um agente de normalizaccedilatildeo de
24
corpos e mentes e passe a ser um incentivador da capacidade reativa e normativa
da vida (cf EM 2005 p45) Em nosso entender eacute a partir destas consideraccedilotildees
que o pensamento canguilhemiano pode contribuir para delinearmos outras
praacuteticas e eacutetica para o cuidado em sauacutede na atualidade pautadas num diferente
modelo de racionalidade que tenha a normatividade da vida por esteio abrindo
terreno para que a cliacutenica - seja ela meacutedica psicoloacutegica ou outra - ao inveacutes de se
aliar ao imperativo da normalidade possa atuar como um dispositivo de
resistecircncia agrave mecanizaccedilatildeo da vida agrave normalizaccedilatildeo dos indiviacuteduos e agrave gestatildeo
soacutecio-poliacutetica meacutedica da vida cotidiana
No Brasil natildeo satildeo muitos os autores que se propotildeem a estudar o
pensamento meacutedico-filosoacutefico de Canguilhem atraveacutes do conjunto de seus
escritos Via de regra as anaacutelises realizadas versam mais sobre a obra O Normal
e o patoloacutegico considerada a mais importante do autor Contudo o nuacutemero de
comentadores de sua filosofia da vida eacute crescente assim como a anaacutelise de seus
textos sobre medicina sendo unacircnime a afirmaccedilatildeo da atualidade de suas
proposiccedilotildees No cenaacuterio internacional na Franccedila em particular a fortuna criacutetica eacute
mais abundante Meacutedicos historiadores psicanalistas e filoacutesofos tecircm destacado a
relevacircncia das reflexotildees de Canguilhem para as praacuteticas de sauacutede na
contemporaneidade Prova disso eacute que recentemente por ocasiatildeo do centenaacuterio
de seu nascimento foi realizada uma publicaccedilatildeo em sua homenagem na qual um
conjunto de pesquisadores avaliam a pertinecircncia de sua filosofia da vida e sua
contribuiccedilatildeo para a medicina hoje12
12
Nesta obra na parte dedicada agrave Medicina por exemplo Giroux coloca o problema da conciliaccedilatildeo da sauacutede como normatividade individual e o ponto de vista epidemioloacutegico da sauacutede da populaccedilatildeo Lechopier amp Lepleacutege trazem a questatildeo do uso de instrumentos de medida de sauacutede (mesure de la santeacute perccedilue) que pretendem quantificar o impacto das doenccedilas ou das diferentes intervenccedilotildees de sauacutede na vida cotidiana sob o ponto de vista dos pacientes Montiel considerando que o pensamento de Canguilhem eacute uma ldquovacina contra o dogmatismo meacutedicordquo reflete sobre as repercussotildees praacuteticas de seu pensamento na formaccedilatildeo meacutedica considerando entre outros aspectos que o triunfo do laboratoacuterio sobre a cliacutenica instaurou uma iatrocracia ou um poder meacutedico ditatorial de especialistas Yeo trata da recepccedilatildeo do pensamento meacutedico canguilhemiano na Coreacuteia do Sul apontando seus limites em relaccedilatildeo a uma tradiccedilatildeo filosoacutefica e meacutedica neo-confucionista que admite o caraacuteter transcendente das normas Cf FAGOT-LARGEAULT DEBRU D
25
Dentre os estudiosos brasileiros Serpa Juacutenior analisando a tendecircncia de
expansatildeo das categorias diagnoacutesticas na atualidade e questionando as forccedilas e
interesses que estatildeo em jogo nesse processo de patologizaccedilatildeo do normal
defende a relevacircncia das argumentaccedilotildees de Canguilhem que se colocam em favor
de uma atividade normativa inerente agrave proacutepria vida em tempos de retomada de
um objetivismo meacutedico de alta performance que pretende definir a verdadeira
configuraccedilatildeo de corpos e mentes considerados normais e patoloacutegicos13 Bezerra
Juacutenior tambeacutem acredita ser a discussatildeo feita por Canguilhem atual pois ela pode
ajudar os profissionais de sauacutede a pensar de forma criacutetica a fronteira entre o
normal e o patoloacutegico evitando que se transformam em agentes de um processo
crescente de medicalizaccedilatildeo da existecircncia e de patologizaccedilatildeo do normal Para ele
as duas principais consequecircncias da adoccedilatildeo da perspectiva canguilhemiana na
cliacutenica satildeo o ato de colocar a ldquoexperiecircncia do sofrimentordquo no centro da terapecircutica
e contra o objetivismo reinante na medicina e na cultura apontar os impasses do
fisicalismo hegemocircnico na psiquiatria atual14
Tambeacutem no Brasil Safatle acredita que ao estudar os fenocircmenos normais e
patoloacutegicos Canguilhem coloca questotildees natildeo soacute para a biologia mas tambeacutem
para a cliacutenica meacutedica e psicoloacutegica Percebendo a relaccedilatildeo de suplementaridade
entre normatividade vital e normatividade social o comentador pergunta se natildeo
poderiacuteamos utilizar os conceitos de normal e de patoloacutegico tal como apresentados
por Canguilhem para refletirmos sobre o sofrimento que as nossas formas sociais
de vida produzem15 Jaacute Caponi analisa o atual conceito de sauacutede preconizado pela
Organizaccedilatildeo Mundial de Sauacutede (OMS) definido como equiliacutebrio e adaptaccedilatildeo ao
MORANGE M (dir) HAN H-J (eacuted) Philosophie et meacutedecine en hommage agrave Georges Canguilhem (LrsquoHistoire des sicences ndash Textes et Egravetudes) Paris Vrin 2008
13 Cf SERPA JUNIOR O D Indiviacuteduo organismo e doenccedila a atualidade de O normal e o
patoloacutegico de Georges Canguilhem Psicologia Cliacutenica Rio de Janeiro v 15 no 01 2006
14 Cf BEZERRA JUNIOR B ldquoO normal e o patoloacutegico uma discussatildeo atualrdquo In SOUZA A N
PITANGUY J (orgs) Sauacutede corpo e sociedade (Seacuterie Didaacuteticos) Rio de janeiro Editora UFRJ 2006
15 ldquoEacute possiacutevel que noccedilotildees como estas desenvolvidas por Canguilhem possam nos auxiliar o que
nos deixa com a questatildeo de saber ateacute que ponto reflexotildees epistemoloacutegicas como estas guardam forte potencial poliacutetico e emancipatoacuteriordquo (SAFATLE 2011 p26) Cf SAFATLE V O que eacute uma normatividade vital Sauacutede e doenccedila a partir de Georges Canguilhem Scientiaelig Studia Revista Latino-Americana de Filosofia e Histoacuteria da Ciecircncia Satildeo Paulo v 9 n 1 p 11-27 2011
26
meio a partir da perspectiva teoacuterica apontada por Canguilhem para mostrar em
que medida ele eacute impraticaacutevel natildeo apenas por ser utoacutepico e subjetivo mas
tambeacutem por ser politicamente conveniente para legitimar estrateacutegias de controle e
de exclusatildeo de todos aqueles que consideramos indesejaacuteveis ou perigosos
Lembrando que a normalizaccedilatildeo das condutas e dos estilos de vida nasceu com a
medicina social e que numa sociedade marcada pelas desigualdades parece mais
simples normalizar condutas do que transformar condiccedilotildees perversas de
existecircncia a autora faz uso das reflexotildees canguilhemianas tambeacutem para
problematizar o que chamamos hoje de sauacutede coletiva16
No cenaacuterio internacional Delaporte procura mostrar que a criacutetica de
Canguilhem agrave medicina cientiacutefica acaba por desvelaacute-la em suas aspiraccedilotildees ao
estabelecimento de um controle sobre a vida jaacute que a concepccedilatildeo positivista de
doenccedila como expressatildeo de uma supervalorizaccedilatildeo do saber foi o que tornou
acolhedora ao espiacuterito dos meacutedicos quiacutemicos e bioacutelogos a ideia tecnicista de
violar a natureza com fins terapecircuticos17 Lecourt vecirc nas reflexotildees
canguilhemianas uma criacutetica agrave medicina moderna em sua inclinaccedilatildeo a se tornar
um instrumento eficaz para soldar uma ordem social sufocante na medida em
que operando com o conceito de norma acaba por colocar o indiviacuteduo sob o
impeacuterio de uma concepccedilatildeo despoacutetica de sauacutede18
16
Cf CAPONI S Georges Canguilhem y el estatuto epistemoloacutegico del concepto de salud Historia Ciencias Sauacutede Manguinhos 42 287-307 1997
17 ldquoSe o vivo humano conhece as relaccedilotildees do mal com o estado normal entatildeo a medicina
comporta um poder de dominaccedilatildeo Eacute que a eficaacutecia da accedilatildeo estaacute fundada na ciecircncia Eis o programa de um positivismo despoacutetico e tatildeo seguro do seu poder que assimila a funccedilatildeo de conhecimento a uma funccedilatildeo de comando Reconhecemos de passagem uma das figuras de um sonho demiuacutergico o tema de uma potecircncia ilimitada do homem que se exerceria sobre a natureza e a vidardquo (DELAPORTE 1994 p37) Cf DELAPORTE F A Histoacuteria das Ciecircncias segundo G Canguilhem In PORTOCARRERO V Filosofia Histoacuteria e Sociologia das Ciecircncias I abordagens contemporacircneas Rio de Janeiro Fiocruz 1994
18 ldquoA sauacutede assume para aqueles a quem domina seja a triste face do regime versatildeo moderna da
servidatildeo voluntaacuteria seja a face mais dinacircmica e sorridente da forma ou mais ainda ou ainda mais estetizante da linha com destinaccedilatildeo preferencialmente feminina ou conjugal E se esgotado por estas exigecircncias o indiviacuteduo deixa lsquoabater-sersquo sempre lhe restaraacute a possibilidade de tomar dois anti-depressivos depois da refeiccedilatildeordquo (LECOURT 2006 p298-299) Cf LECOURT D ldquoNormasrdquo In RUSSO M CAPONI S (Org) Estudos de filosofia e histoacuteria das ciecircncias biomeacutedicas Satildeo Paulo Discurso Editorial 2006
27
Ainda Moullin acredita na importacircncia do pensamento de Canguilhem em
tempos de ldquomorte da cliacutenicardquo e pergunta se a referecircncia ao indiviacuteduo como forma
possiacutevel de vida e fonte de normatividade ainda satildeo aceitaacuteveis pelo meacutedico
contemporacircneo Refletindo tambeacutem sobre a medicina das populaccedilotildees ela destaca
a inquietaccedilatildeo de Canguilhem relativa agrave desconsideraccedilatildeo da sauacutede individual por
parte de uma medicina coletiva de corpos e autocircmatos19 Jaacute Gros faz uso do
pensamento canguilhemiano para refletir sobre os avanccedilos da biologia molecular e
da engenharia geneacutetica em consideraccedilatildeo ao tecircnue limite existente entre
eliminaccedilatildeo de erros geneacuteticos com fins terapecircuticos e a eugenia20
Mas vale dizer que apesar da existecircncia de um consenso entre os
comentadores sobre a relevacircncia do pensamento meacutedico-filosoacutefico de
Canguilhem o fato de ele ter optado por uma dupla formaccedilatildeo tem gerado
controveacutersias A exemplo disso Peacutequinot seu colega no periacuteodo de formaccedilatildeo
meacutedica se atendo agraves motivaccedilotildees pessoais que levaram Canguilhem agrave dupla
formaccedilatildeo recorda que ele nem mesmo gostava de ser chamado de doutor natildeo se
vendo como um ldquoverdadeiro meacutedicordquo e que apenas procurou tomar contato com a
medicina para poder melhor teorizaacute-la filosoficamente21 Moulin partindo da
afirmaccedilatildeo de Peacutequinot de que Canguilhem era um ldquodoutor em medicinardquo e natildeo um
meacutedico diz acreditar que ele ao situar seu lugar de fala (lieu de parole) e seu
projeto filosoacutefico na medicina oferece ao hospital uma legitimidade epistemoloacutegica
nova como local de pesquisas filosoacuteficas e daacute assim um excelente exemplo do
que se chamaria ldquoexerciacutecio teoacuterico da medicinardquo Mas ao mesmo tempo foi
somente sendo meacutedico ateacute o fim e correndo o risco de natildeo ser mais filoacutesofo que
19
Cf MOULIN A M La meacutedicine moderne selon Georges Canguilhem In BADIOU A (et al) Georges Canguilhem Philosophe historien des sciences Actes du colloque (6 7 8 deacutecembre 1990) Paris Albin Michel 1993
20 Cf GROS F Hommage agrave Canguilhem In BADIOU A (et al) Georges Canguilhem Philosophe
historien des sciences Actes du colloque (6 7 8 deacutecembre 1990) Paris Albin Michel 1993
21 Cf PEQUIGNOT H Georges Canguilhem et la medicine Revue de Metaphysique et de Morale
jan-mar 1985 [nuacutemero especial Georges Canguilhem]
28
ele pode provar a insuficiecircncia radical dos conhecimentos fornecidos pelo ensino
filosoacutefico e tambeacutem meacutedico22
Para Lecourt se eacute comum apresentar Canguilhem como ldquomeacutedico e filoacutesofordquo
ou como ldquofiloacutesofo e meacutedicordquo a segunda foacutermula eacute mais proacutexima da realidade pois
seu interesse pela medicina natildeo foi o de um meacutedico ou de um historiador mas o
de um filoacutesofo que viu nesta mateacuteria condiccedilotildees para prolongar seus estudos
teoacutericos Ele lembra que o proacuteprio Canguilhem diz ter exercido a medicina apenas
durante algumas semanas no maquis de Auvergne aleacutem de ter vivido um breve
episoacutedio de praacutetica psiquiaacutetrica no Hospital Saint-Alban23 Recorda ainda que ele
julga que a positividade destas praacuteticas residiu no fato de ter podido unir a seus
conhecimentos teoacutericos alguns conhecimentos de experiecircncia24 Assim se por um
lado seus estudos meacutedicos ganharam sentido no interior de seu projeto
epistemoloacutegico sendo a melhor explicitaccedilatildeo de seus temas de interesse por
outro serviram para aproximaacute-lo da ldquoconcretuderdquo dos problemas humanos
Portanto para ele eacute mais como filoacutesofo que Canguilhem defende natildeo soacute uma
postura epistemoloacutegica antipositivista que inverte a ordem de precedecircncia entre
ciecircncia e teacutecnica mas tambeacutem a partir de uma preocupaccedilatildeo eacutetica concreta
destaca a obrigaccedilatildeo do profissional meacutedico em ldquotomar partidordquo o que significa ter
22
Cf MOULIN A M La meacutedicine moderne selon Georges Canguilhem Op cit
23 Sobre sua breve experiecircncia praacutetica meacutedica Canguilhem resume ldquoNo veratildeo de 44 como
meacutedico do maquis de Auvergne escondi e cuidei dos feridos durante algumas semanas no hospital psiquiaacutetrico de Saint-Alban em Lozegravere e nas suas vizinhanccedilasrdquo (CANGUILHEM 1994 p 34) Cf CANGUILHEM G ldquoAberturardquo In CANGUILHEM G DERRIDA J MAJOR R ROUDINESCO E Foucault Leituras da Histoacuteria da Loucura (trad Maria Ignes Duque Estrada) Relume-Dumaraacute 1994
24 Aqui Lecourt se refere agrave entrevista dada por Canguilhem a Franccedilois Bing e Jean-Franccedilois
Braunstein em 21 de junho de 1995 Nela quando questionado sobre as razotildees que o levaram a estudar medicina ele explica ldquoPor mais pequeno e estreito que possa parecer comecei meus estudos em medicina porque estava decepcionado nos primeiros anos de ensino como professor de filosofia com as condiccedilotildees as quais meu ensino era julgado () Quando cheguei a Toulouse eu disse a mim mesmo que eu faria bem em unir ao que jamais pude ateacute entatildeo adquirir dos conhecimentos de ordem livresca em filosofia alguns conhecimentos de experiecircncia tais quais aqueles que se pode obter do ensino de medicina e talvez um dia de sua praacutetica Aiacute estaacute a razatildeo fundamentalrdquo (CANGUILHEM 1998 p 121) Cf CANGUILHEM G Entretien avec Georges Canguilhem In BING F BRAUNSTEIN J-F ROUDINESCO E (org) Actualiteacute de Georges Canguilhem Le normal et le pathologique Paris Syntheacutelabo 1998
29
consciecircncia da medida de suas responsabilidades e operar atraveacutes disso uma
reforma em sua conduta25
Jaacute Roudinesco a partir de dados biograacuteficos daacute maior destaque agrave faceta
canguilhemiana de resistente de meacutedico de urgecircncia que atuou na guerra e pela
guerra e enfatiza o quanto as duas modalidades de sua ldquofilosofia da accedilatildeordquo o ato
de resistir (soutenir) e o ato de cuidar (soigner) permitiram que Canguilhem
fizesse com que a Resistecircncia e a medicina dessem os braccedilos Aos olhos da
historiadora e tambeacutem psicanalista foi o exerciacutecio da medicina no maquis que
possibilitou a ele se confrontar com uma experiecircncia humana concreta dando
ldquocorpo e vidardquo agrave sua reflexatildeo conceitual sobre a natureza mesma da normalidade
A seu ver ao concluir que a medicina sem ser ela proacutepria uma ciecircncia utiliza o
resultado de todas as ciecircncias a serviccedilo das normas vitais Canguilhem a coloca
no centro de uma nova forma de racionalidade26 Mostrando que a atividade
cientiacutefica-laboratorial natildeo suplanta a observaccedilatildeo cliacutenica ele propotildee uma
revalorizaccedilatildeo da arte meacutedica e nos faz ver que somente uma medicina fundada
na escuta e na observaccedilatildeo do doente eacute capaz de assegurar um verdadeiro status
ao profissional meacutedico evitando que ele se torne lacaio do laboratoacuterio e da
farmacologia
Em nosso trabalho natildeo nos atemos agraves motivaccedilotildees que levaram
Canguilhem agrave dupla formaccedilatildeo nem mesmo nos propomos a apresentar dados
biograacuteficos sobre seu periacuteodo de formaccedilatildeo meacutedica ou sobre sua participaccedilatildeo na
Resistecircncia de modo a responder se ele tinha ou natildeo interesse em dedicar-se
integralmente agrave praacutetica cliacutenica tornando-se com isso um ldquoverdadeiro meacutedicordquo ou
em que medida a experiecircncia no maquis foi determinante para sua reflexatildeo sobre
a normalidade Ou seja natildeo procuramos investigar a relaccedilatildeo existente entre vida
e obra nem mesmo apontar todas as influecircncias teoacutericas que foram importantes
25
Cf LECOURT D Une philosophie de la medicine In Georges Canguilhem Que sais-je Les envies du savoir 1
a ediccedilatildeo Paris Presses Universitaires de France - PUF 2008
26 ldquoAbandonada haacute um seacuteculo pela filosofia fosse porque natildeo fazia parte das lsquociecircncias nobresrsquo
como a matemaacutetica ou a fiacutesica fosse porque se aproximava da biologia ela proacutepria ignorada pela filosofia a medicina podia tornar-se para o jovem filoacutesofo o centro de uma nova forma de racionalidaderdquo (ROUDINESCO 2007 p 23) Cf ROUDINESCO E Filoacutesofos na tormenta (Canguilhem Sartre Foucault Althusser Deleuze Derrida) Rio de Janeiro Zahar 2007
30
para a constituiccedilatildeo de seu pensamento meacutedico-filosoacutefico desde o periacuteodo de
juventude27
Quando estudamos o pensamento canguilhemiano procuramos sobretudo
identificar o ponto de vista de um filoacutesofo e tambeacutem meacutedico que optou por buscar
sua mateacuteria de reflexatildeo junto ao leito do doente resgatando com isso o sentido
primeiro da praacutetica cliacutenica o de ser uma teacutecnica ou arte da cura que se coloca a
serviccedilo da vida Se atraveacutes disso ele operou uma accedilatildeo de resistecircncia assim o
fez principalmente porque revelou a ideologia de controle ou domiacutenio subjacente agrave
medicina cientiacutefica moderna que acabou por transformaacute-la num dispositivo social
de normalizaccedilatildeo
Sendo assim diante da necessidade identificada por Canguilhem de
realizaccedilatildeo de uma ldquocriacutetica da razatildeo meacutedica praacuteticardquo a tarefa que a noacutes se colocou
foi a de recolher em seus escritos fundamentos para a construccedilatildeo de outra
racionalidade em sauacutede que consiga operar resistecircncia agraves praacuteticas de
normalizaccedilatildeo que acreditamos ainda serem correntes Destarte concordamos
com Roudinesco quanto agrave possibilidade de enxergarmos no pensamento de
Canguilhem outra forma de racionalidade meacutedica com raiacutezes na vida
Acompanhamos tambeacutem Debru por ele fazer uma defesa da racionalidade
meacutedica de tipo holista proposta por Canguilhem mas discordamos de Morange
por questionar a pertinecircncia das teses canguilhemianas presentes em sua criacutetica
radical ao projeto de fundar a medicina sobre bases cientiacuteficas
Com efeito segundo Morange o sucesso de O normal e o patoloacutegico se
deu porque esta obra antecipou as dificuldades enfrentadas pela tecnicizaccedilatildeo
crescente da medicina e se inscreveu nos debates comuns desde os anos 60
sobre a desumanizaccedilatildeo dos serviccedilos de sauacutede e a necessidade de reforma da
medicina moderna Mas embora acredite que esta criacutetica seja pertinente ele julga
ser sua base conceitual e filosoacutefica inaceitaacutevel Por exemplo Canguilhem natildeo faz
um retrato fiel da medicina de seu tempo Ele pouco considera os sucessos da
27
Empreitada jaacute realizada por Lecourt diretor honoraacuterio do Centre Georges Canguilhem - Universiteacute Paris Diderot 7 Cf LECOURT D Que sais-je Les envies du savoir 1
a ediccedilatildeo Paris
Presses Universitaires de France - PUF 2008
31
microbiologia Aleacutem disso Morange aponta os riscos de desconsideraccedilatildeo dos
criteacuterios objetivos para o diagnoacutestico da doenccedila e questiona a pertinecircncia da
afirmaccedilatildeo de que eacute o paciente que define a fronteira entre o normal e o patoloacutegico
Ele acredita ser uma ilusatildeo achar mais humana esta medicina holista que
considera a doenccedila como um novo estado e natildeo como uma alteraccedilatildeo localizada
nos oacutergatildeos Na era poacutes-genocircmica eacute a determinaccedilatildeo de caracteriacutesticas geneacuteticas
individuais que permite conhecer os riscos do desenvolvimento de certas
patologias ou a resposta particular a certos tratamentos farmacoloacutegicos Assim a
re-personalizaccedilatildeo do ato meacutedico seraacute bioloacutegica28
Jaacute Debru considerando o engajamento de Canguilhem - filosoacutefico no
campo da medicina e poliacutetico de combate aos nazistas - acredita que sua filosofia
eacute rica em consequecircncias para o plano da eacutetica meacutedica agrave praacutetica do cuidado e
para a concepccedilatildeo mesma de valor da vida Para ele o progresso das tecnologias
que permite realizar o sonho dos meacutedicos de tratamentos individualizados na
perspectiva de terapecircuticas novas e eficazes natildeo invalida a criacutetica ao ciclo
tecnocientiacutefico realizada por Canguilhem pois a biologia a imunologia e a
geneacutetica permitem reencontrar a individualidade do doente mas natildeo apreendem o
indiviacuteduo concreto A medicina contemporacircnea embora baseada em evidecircncias
se apoiando em aparelhos e estatiacutesticas ensaios cliacutenicos standartizados eacute
deficitaacuteria para se aproximar da individualidade do paciente em sua biografia isto
eacute em sua existecircncia sua maneira de ser no mundo e suas relaccedilotildees sociais e
afetivas Mais e mais reduzida ao suporte bioloacutegico da doenccedila ela ignora as
dimensotildees socioafetivas de numerosas doenccedilas e a pluralidade de fatores que
concorrem para o processo patoloacutegico sejam eles geneacuteticos ecoloacutegicos sociais
ou psicoloacutegicos Eacute aiacute que o holismo vitalista de Canguilhem pode sustentar uma
reflexatildeo sobre a praacutetica meacutedica nos servindo como um inspirador ou guia29
28
MORANGE M Retour sur le normal et le pathologique In FAGOT-LARGEAULT DEBRU D MORANGE M (dir) HAN H-J (eacuted) Op cit
29 DEBRU C Lrsquoengagement philosophique dans le champ de la meacutedecine Georges Canguilhem
aujordrsquohui In BRAUNSTEIN J-F (org) Histoire des sciences et politique du vivant Paris Presses Universitaires de France ndash PUF 2007 p45-62
32
Assim foi apostando na pertinecircncia de suas teses ou seja adotando o
ponto de vista de Canguilhem de que a ideia de normalidade como normalizaccedilatildeo
mais se identifica agrave medicina cientiacutefica moderna que opera com a ideia de norma -
como meacutedia estatiacutestica e tipo ideal - do que a uma medicina que considera que na
natureza haacute apenas normalidade como normatividade que procuramos ao fim de
nosso trabalho vislumbrar outra racionalidade para as praacuteticas de cuidado em
sauacutede na atualidade e obter algumas respostas a estas e a outras questotildees que a
nosso ver se impotildeem O que eacute sauacutede afinal Eacute possiacutevel compreendermos de
outra forma o fenocircmeno patoloacutegico O aprimoramento dos meacutetodos de anaacutelise
diagnoacutestica tem contribuiacutedo efetivamente para o tratamento e cura das doenccedilas
Quais os limites do uso da tecnologia meacutedica O tratamento farmacoloacutegico basta
para promover um efetivo bem-estar Ateacute que ponto natildeo patologizamos e
medicalizamos alguns comportamentos humanos apenas por natildeo se enquadrarem
na meacutedia ou natildeo responderem agraves normas sociais O que os profissionais de
sauacutede fazem fazendo o que fazem Produccedilatildeo de sauacutede ou normalizaccedilatildeo dos
corpos e das mentes Haacute como realizar uma politizaccedilatildeo da cliacutenica sem
resvalarmos em um discurso meramente ideoloacutegico
Seguindo a trilha aberta por Canguilhem do estudo sobre a vida o normal
e o patoloacutegico ateacute a apresentaccedilatildeo de problematizaccedilotildees relativas aos aspectos
teacutecnico-cientiacutefico e eacutetico-poliacutetico da cliacutenica meacutedica e psicoloacutegica estruturamos
nossa trajetoacuteria em quatro capiacutetulos O primeiro deles trata da concepccedilatildeo
canguilhemiana de vida procurando mostrar qual o sentido de considerarmos a
medicina uma teacutecnica ou arte que nela se enraiacuteza O segundo capiacutetulo se ateacutem agrave
criacutetica de Canguilhem agrave ideia de medicina como ciecircncia das doenccedilas realizada a
partir da contestaccedilatildeo que faz agrave tese presente nos trabalhos de Comte e Claude
Bernard de que o patoloacutegico seria apenas uma variaccedilatildeo quantitativa do estado
normal O terceiro objetiva mostrar como e porque aos olhos de Canguilhem as
praacuteticas de sauacutede podem se transformar em dispositivos de normalizaccedilatildeo dos
indiviacuteduos e em estrateacutegias de gestatildeo sociopoliacutetica meacutedica da vida cotidiana O
quarto capiacutetulo por fim apresenta os contornos desta outra racionalidade que
escolhemos chamar de medicina filosoacutefica de Georges Canguilhem dando
33
abertura a um debate sobre o ensino a pesquisa a praacutetica e a eacutetica em sauacutede na
atualidade
34
CAPIacuteTULO I
Medicina uma arte enraizada na vida
Se viver eacute lutar contra a morte nosso uacuteltimo suspiro eacute ainda um derradeiro ato de resistecircncia
Para esclarecermos porque Canguilhem define a medicina como uma arte
de enraizamento vital eacute preciso primeiramente identificar qual concepccedilatildeo de vida
ele apresenta no conjunto de seus escritos considerando que ela natildeo se encontra
em um escrito em particular mas aparece de modo disperso e nem sempre direto
no decorrer dos estudos que faz sobre medicina histoacuteria e filosofia das ciecircncias
da vida Apesar disso no curso de nossa investigaccedilatildeo notamos que o fio condutor
que une todas as reflexotildees canguilhemianas sobre a vida eacute a capacidade que ela
tem de accedilatildeo espontacircnea de reaccedilatildeo e de resistecircncia a tudo o que lhe ameaccedila
quando de seu embate com o meio
ldquoA vida natildeo eacute portanto para o ser vivo uma deduccedilatildeo monoacutetona um movimento retiliacuteneo ela ignora a rigidez geomeacutetrica ela eacute debate ou explicaccedilatildeo (o que Goldstein chama de Auseinandersetzung) com um meio em que haacute fugas vazios esquivamentos e resistecircncias inesperadasrdquo (NP 1990 p160)
Daiacute decorre que sendo este precisamente nosso tema de interesse eacute apenas por
natildeo ser a vida indiferente e apaacutetica pois ela reage e resiste agrave degradaccedilatildeo e agrave
morte que a medicina aparece como o prolongamento dela30
30
Canguilhem no verbete laquo Vie raquo da Encyclopaeligdia Universalis parte da questatildeo sobre o que eacute mais precisamente a vida do vivente para aleacutem da coleccedilatildeo de atributos proacuteprios que poderiam resumir a histoacuteria deste ser nascido para morrer Para respondecirc-la ele traccedila uma breve histoacuteria da apariccedilatildeo do conceito nos diversos verbetes de dicionaacuterios e enciclopeacutedias cientiacuteficas e encontra desde o esboccedilo de uma definiccedilatildeo geral de vida em Aristoacuteteles ateacute a perspectiva da ciberneacutetica Ou seja como resultado deste percurso ele encontra diferentes entendimentos de vida como animaccedilatildeo mecanismo organizaccedilatildeo e informaccedilatildeo Sem encontrar uma resposta rematada para a sua questatildeo em nenhuma destas concepccedilotildees por fim conclui que a morte eacute o uacutenico sinal irrefutaacutevel da vida Apoiado nos trabalhos de Freud e de Atlan especificamente no conceito de pulsatildeo de morte instabilidade desequiliacutebrio e inacabamento do vivo nota que o uacutenico projeto verdadeiramente reconhecido da vida eacute a morte ainda que recusado por ela Cf CANGUILHEM G Article Vie (Paris Encyclopaeligdia Universalis) t23 p546-553 1989
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De modo mais preciso eacute em contraposiccedilatildeo aos fundamentos teoacutericos
ideoloacutegicos da biologia mecanicista em suas diferentes formulaccedilotildees histoacutericas
que a vida eacute definida por Canguilhem como uma atividade de oposiccedilatildeo agrave ineacutercia e
agrave indiferenccedila atividade a partir da qual todas as teacutecnicas humanas se originam
Por isso quando de sua reflexatildeo sobre o surgimento da medicina ele diz ser a vis
medicatrix naturae entendida por ele como uma teacutecnica curativa natildeo intencional
da vida a origem da teacutecnica terapecircutica intencional humana Ou seja para ele eacute
somente pelo fato da vida ser reatividade polarizada de conflito com o meio sendo
capaz de uma atividade normativa de caraacuteter hedocircnico que a teacutecnica meacutedica se
faz possiacutevel
Mas dizer que haacute nos escritos canguilhemianos uma concepccedilatildeo de vida
derivada de suas anaacutelises filosoacuteficas natildeo significa afirmar a existecircncia neles de
uma teoria bioloacutegica rematada Isso porque como Canguilhem mesmo esclarece
no prefaacutecio de La Formation du concept de reacuteflexe aux XVIIe et XVIIIe siegravecles ele
nunca procurou fazer uma teoria bioloacutegica tarefa proacutepria de um bioacutelogo nem uma
biologia de filoacutesofo projeto a seu ver monstruoso mas apenas uma filosofia da
vida tarefa esta sim proacutepria a um filoacutesofo (cf FCR 1955 p01)31 No entanto ao
fazer sua anaacutelise filosoacutefica da vida trazendo as ideias de polaridade dinacircmica e
normatividade vital para ressignificar as noccedilotildees correntes de normal e de
patoloacutegico ele acaba por apresentar um ponto de vista original sobre seus
fenocircmenos
Com efeito em seus estudos sobre a normalidade tomando por criteacuterio de
sauacutede e de doenccedila a normatividade vital ele coloca em questatildeo a ideia corrente
de que o patoloacutegico eacute anormal no sentido estrito da palavra jaacute que pela sua
perspectiva ateacute mesmo o doente pode ser considerado normal embora padeccedila de
uma restriccedilatildeo em sua capacidade normativa Aleacutem disso eacute tambeacutem em
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Com efeito como esclarece Machado (1981) Canguilhem natildeo teve a pretensatildeo de fazer uma filosofia da vida no sentido de uma biologia de filoacutesofo Sua problemaacutetica de investigaccedilatildeo eacute a filosofia das ciecircncias da vida Assim se ela encerra uma reflexatildeo sobre a vida o que natildeo se pode negar tal reflexatildeo eacute indireta e mediatizada Cf MACHADO R A Histoacuteria Epistemoloacutegica de Georges Canguilhem In Ciecircncia e Saber A Trajetoacuteria da Arqueologia de Foucault 2ordf ed Rio de Janeiro Graal 1981
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consideraccedilatildeo agrave polaridade e normatividade vitais que no contexto de suas
reflexotildees sobre a relaccedilatildeo do vivente com seu meio consegue contestar a ideia de
que a vida estaacute integralmente submetida a influecircncias externas restando a ela
apenas adaptar-se passivamente ao entorno A seu ver o vivente ao contraacuterio de
uma maacutequina natildeo eacute mateacuteria passiva regrada de fora mas pode transformar o
meio em que se encontra adaptando-se ativamente a ele
ldquoInsistimos que as funccedilotildees bioloacutegicas satildeo ininteligiacuteveis do modo como satildeo reveladas pela observaccedilatildeo quando soacute traduzem os estados de uma mateacuteria passiva diante das transformaccedilotildees do meiordquo (NP 1990 p143)
Com isso ele atribui agrave vida propriedades que soacute a ela podem ser referenciadas a
capacidade de valorar seus comportamentos a liberdade de infringir e criar suas
proacuteprias normas e a de alterar o meio no qual se desenrola
Assim se ele recusa a concepccedilatildeo de meio em sua formulaccedilatildeo mecanicista32
e por conseguinte as teorias para as quais ele domina e comanda a evoluccedilatildeo das
espeacutecies eacute porque acredita que sua primeira consequecircncia eacute conceber o
organismo como passivamente deformaacutevel sobre a pressatildeo do ambiente e com
isso sua espontaneidade proacutepria eacute refutada e ele passa a se identificar ao inerte
(cf E 1989 p 66)
Contrariamente a essa ideia em seus estudos sobre o ser vivo e seu meio
ele recorre agrave Uexkuumlll e agrave Goldstein para mostrar que o vivente natildeo eacute uma maacutequina
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Como veremos entendendo que o conceito de meio transposto da mecacircnica e da fiacutesica para a biologia favorece as concepccedilotildees deterministas de vida Canguilhem procura dar a este termo uma conotaccedilatildeo estritamente bioloacutegica que natildeo o reduz a um sistema de constantes mecacircnicas fiacutesicas e quiacutemicas Na coletacircnea La connaissance de la vie no artigo ldquoLe vivant et son milieurdquo ele esclarece que a noccedilatildeo e o termo meio foram importados da mecacircnica para a biologia na segunda metade do seacuteculo XVIII A noccedilatildeo mas natildeo o termo aparece em Newton e o termo com sua significaccedilatildeo mecacircnica aparece na Encyclopeacutedie de drsquoAlembert e Diderot Com efeito eacute em Newton no estudo sobre o fenocircmeno fisioloacutegico da visatildeo que encontramos um primeiro exemplo de explicaccedilatildeo de uma reaccedilatildeo orgacircnica por accedilatildeo do meio ou seja de um fluido estritamente definido por suas propriedades fiacutesicas Na biologia eacute Lamarck quem introduz o termo defendendo que o meio domina e comanda a evoluccedilatildeo dos viventes Mas eacute de Taine mais do que Lamarck que os neo-lamarckistas franceses retiram o termo agora identificado como um dos princiacutepios de explicaccedilatildeo analiacutetica da histoacuteria ao lado da raccedila e do momento Assim a seu ver ldquoO benefiacutecio de uma histoacuteria mesmo que sumaacuteria da importaccedilatildeo em biologia do termo meio nos primeiros anos do seacuteculo XIX eacute prestar conta da acepccedilatildeo originalmente e estritamente mecanicista deste termordquo (cf CV 1985 p134)
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que apenas responde a exitaccedilotildees do meio pois cada organismo tem um meio
proacuteprio (Umwelt) com tempo e espaccedilo ordenado pelo seu ritmo de vida no qual se
move e se orienta segundo seu interesse O meio ambiente humano (Umwelt
humaine) passa a ser entendido entatildeo como o mundo usual da experiecircncia
perspectiva e pragmaacutetica deste sujeito de valores vitais que eacute essencialmente o
ser vivo (cf CV 1985 p 145) Ainda eacute defendendo uma concepccedilatildeo de vivente
como um centro criador de valores e normas e adotando uma relaccedilatildeo do ser vivo
com seu meio de caraacuteter natildeo determinista que ele procura mostrar nos termos de
Goldstein quatildeo catastroacutefica e doentia pode ser uma vida apaacutetica estagnada e
condicionada pelo exterior considerando que ldquoviver para o animal e com mais
razatildeo para o homem natildeo eacute somente se estagnar e se conservar eacute afrontar riscos
e triunfarrdquo (CV 1985 p 146)
Tambeacutem como Nietzsche tomando a vida como potecircncia valorativa que
tende agrave expansatildeo e agrave superaccedilatildeo como movimento incessante de ensaio
experimentaccedilatildeo e criaccedilatildeo de novas formas eacute atraveacutes da afirmaccedilatildeo da reatividade
criatividade e liberdade vitais - jaacute que ela pode transgredir seus proacuteprios haacutebitos
ensaiar experimentar improvisar novos modos de ser e insurgir-se contra as
imposiccedilotildees do meio - que Canguilhem consegue se opor a uma perspectiva
ideoloacutegica de mecanizaccedilatildeo da vida e sua consequente desvalorizaccedilatildeo
perspectiva a seu ver inaugurada pela teoria cartesiana do animal-maacutequina que
inseparaacutevel da proposiccedilatildeo ldquopenso logo existordquo apresentou o corpo como incapaz
de linguagem e de invenccedilatildeo (cf CV 1985 p111) servindo posteriormente de
base para a constituiccedilatildeo de uma ciecircncia bioloacutegica materialista e mecanicista que
procurou eliminar da vida qualquer referecircncia a valores (cf I 1981 p117)
Desse modo eacute apontando as insuficiecircncias das teorias bioloacutegicas que
assimilam o organismo a uma maacutequina bem como o equiacutevoco das teorias
deterministas de meio que ele adota uma concepccedilatildeo de vivente como uma
totalidade orgacircnica autorregulada produtora de normas e valores e uma teoria das
relaccedilotildees do ser vivo com seu meio de teor integrista33 segundo a qual mesmo as
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Segundo Jacob (1983) o integrismo em biologia por oposiccedilatildeo ao reducionismo defende natildeo soacute que o organismo natildeo eacute dissociaacutevel em seus elementos constituintes mas tambeacutem o vecirc como
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chamadas anomalias morfoloacutegicas e geneacuteticas - natildeo sendo necessariamente
letais ou patoloacutegicas pois sua normalidade dependeraacute de suas relaccedilotildees com o
meio em que se encontram - seratildeo consideradas necessaacuterias agrave diversificaccedilatildeo
adaptaccedilatildeo e evoluccedilatildeo das espeacutecies
Vale dizer que ao refletir sobre as relaccedilotildees do vivente com seu meio se ele
se filia ao darwinismo natildeo eacute para tomar para si o mecanismo de evoluccedilatildeo
proposto pelo autor de A origem das espeacutecies mas eacute precisamente por ter sido
Darwin quem aleacutem de colocar em xeque as ideias de criaccedilatildeo especial e
imutabilidade das espeacutecies associou a ideia de normalidade do vivente ao
ambiente em que se encontra Tambeacutem para ele as formas vivas estatildeo em
movimento contiacutenuo de transformaccedilatildeo e este processo evolutivo natildeo segue um
plano ou teacutelos preacute-determinado pela mente de um Criador mas se daacute de modo
aleatoacuterio marcado pela aventura e pelo risco (cf E 1989 p364)
De igual modo a importacircncia que daacute agraves mutaccedilotildees natildeo o faz um seguidor do
mutacionismo Ou seja se ele atribui a elas outro estatuto natildeo eacute por considerar
que sejam as uacutenicas causas dos processos evolutivos mas porque as toma como
prova da criatividade e da liberdade vitais34 jaacute que natildeo ocorrem necessariamente
por influecircncia do meio mas de espontacircneo inovador e fortuito
integrado a um sistema de ordem superior isto eacute a um grupo a uma espeacutecie a uma populaccedilatildeo ou famiacutelia ecoloacutegica Isto eacute o bioacutelogo integrista natildeo apenas se recusa a compreender o funcionamento do organismo apenas por suas estruturas fiacutesicas e seu desempenho pelas reaccedilotildees quiacutemicas que nele ocorrem mas tambeacutem se interessa pelas coletividades pelos comportamentos e relaccedilotildees que os organismos manteacutem entre si e com o seu meio Desta vista a atitude integrista pode tambeacutem ser qualificada de evolucionista na medida em que um oacutergatildeo e uma funccedilatildeo soacute tecircm interesse quando considerados no interior de um todo constituiacutedo natildeo somente pelo organismo mas pela espeacutecie em seu cotejo com a sexualidade viacutetimas inimigos comunicaccedilatildeo e ritos Sobre o integrismo em biologia confira JACOB F A loacutegica do vivente uma histoacuteria da hereditariedade (Trad Acircngela Loreiro de Souza) Rio de Janeiro Ediccedilotildees Graaal 1983
34 Dagognet (2007) destaca a vizinhanccedila existente entre a ideia de liberdade e criatividade na
filosofia da vida de Canguilhem A seu ver o destaque dado por ele agrave existecircncia de genes mutantes serve para mostrar que agrave vida eacute sempre possiacutevel atribuir uma parte de novidade e de rearranjo Tambeacutem se verifica uma criatividade de base na relaccedilatildeo do vivente com seu meio jaacute que ele longe de se submeter institui o meio em que vive e natildeo paacutera de se transformar Desta forma eacute atraveacutes de um vitalismo racional ou surracional caracterizado pelo afrouxamento em relaccedilatildeo ao convencional e agraves regras que Canguilhem elabora uma ldquofilosofia heuriacutestica da criatividaderdquo que percebe a presenccedila sempre inventiva da vida laacute onde ela parece estar abolida se abaixar e se perder nos seus domiacutenios aparentemente menos como na patologia e na atividade reflexa Sobre a importacircncia do conceito de criatividade na filosofia da vida de Canguilhem Cf DAGOGNET F Pourquoi la maladie et le reacuteflexe dans la philosophie biomeacutedicale
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Ademais se em suas reflexotildees sobre a vida ele valoriza as
monstruosidades morfoloacutegicas e funcionais e as micromonstruosidades geneacuteticas
natildeo eacute soacute porque elas atestam que ao contraacuterio de um sistema de leis que natildeo
comporta exceccedilotildees a vida como uma ordem de propriedades admite erros
desvios e infraccedilotildees como uma via para sua superaccedilatildeo Eacute tambeacutem porque
ideologicamente uma teoria do caraacuteter espontacircneo das mutaccedilotildees pode moderar a
ambiccedilatildeo humana de dominaccedilatildeo integral da natureza assim como o
reconhecimento de uma accedilatildeo natildeo determinista do entorno em relaccedilatildeo aos
viventes desautoriza uma accedilatildeo ilimitada do vivente humano sobre os outros
viventes e sobre ele mesmo por intermeacutedio do meio (cf CV 1985 p149) Aleacutem
disso ao recusar a ideia de origem das espeacutecies apenas por seleccedilatildeo natural ele
tambeacutem procura se afastar do que considera ser uma ldquodegradaccedilatildeo ideoloacutegicardquo da
teoria da concorrecircncia vital desastrosamente transposta para as relaccedilotildees dos
indiviacuteduos em sociedade (cf I 1981 p93)35
Em vista disso na trilha dos vitalistas Canguilhem questiona todo projeto
teoacuterico que procura explicar a vida a partir de um modelo mecacircnico ou fiacutesico-
quiacutemico o que faria da biologia um mero sateacutelite de outras ciecircncias Assim como
Barthez e Bichat ele critica a invasatildeo na biologia de ciecircncias estrangeiras a toda
concepccedilatildeo vital resistindo agrave pretensatildeo da fiacutesico-quiacutemica de fornecer agrave biologia
de Canguilhem In BAUNSTEIN J-F (org) Histoire des sciences et politique du vivant Paris Presses Universitaires de France ndash PUF 2007 p17-25
35 A criacutetica de Canguilhem se direciona aqui agrave teoria evolucionista de Herbert Spencer considerado
por alguns o pai do ldquodarwinismo socialrdquo Na Ideologia e racionalidade nas ciecircncias da vida ao examinar a gecircnese do evolucionismo ele diz considerar a obra de Spencer um interessante caso de ideologia cientiacutefica do seacuteculo XIX Isso porque para ele ideologia cientiacutefica eacute certo tipo de discurso que paralelo a uma ciecircncia em constituiccedilatildeo por exigecircncias de ordem praacutetica se vecirc pressionado a antecipar a consumaccedilatildeo da investigaccedilatildeo ou ainda uma construccedilatildeo discursiva presunccedilosa e deslocada por que julga seu fim concretizado desde o iniacutecio e quando se realiza eacute de um modo diferente e em outro domiacutenio que natildeo o prometido (cf I 1981 p57) A teoria de Spencer ao encontrar na biologia de Von Baer e depois na de Darwin um padratildeo de garantia cientiacutefica para um projeto de sociedade baseada no livre empreendimento no individualismo poliacutetico e na concorrecircncia pode exemplarmente ser tomada por uma ideologia cientiacutefica pois haacute nela uma extensatildeo de conclusotildees teoacutericas regionais desligadas de suas premissas originais e libertas de seus contextos realizada em nome de uma finalidade praacutetica ldquoA ideologia evolucionista funciona como autojustificaccedilatildeo dos interesses de um tipo de sociedade A sociedade industrial em conflito por um lado com a sociedade tradicional e por outro com a reivindicaccedilatildeo social Ideologia antiteleoloacutegica por um lado e anti-socialista por outro Reencontramos assim o conceito marxista de ideologia que a considera como a representaccedilatildeo da realidade natural ou social cuja verdade natildeo reside no que esta representaccedilatildeo diz mas no que ela calardquo (I 1981 p40)
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seus princiacutepios de explicaccedilatildeo (cf E 1989 p79) Tambeacutem a seu ver a anexaccedilatildeo
da biologia agraves ciecircncias da mateacuteria representaria a perda da especificidade de seu
objeto o fenocircmeno orgacircnico Assim afastado tanto da crenccedila animista na
existecircncia de uma alma provida de todos os atributos de inteligecircncia da qual
dependeria a vida do corpo animal como de um substancialismo dualista que
admite a existecircncia de uma substancia agindo sobre a outra da qual seria
ontologicamente distinta seu vitalismo ldquoeacute o simples reconhecimento da
originalidade do fato vitalrdquo (CV 1985 p156)
Mas eacute tambeacutem ciente das apropriaccedilotildees ideoloacutegicas do vitalismo que ele
procura destacar a fecundidade e a vitalidade desta tradiccedilatildeo de pensamento de
modo a poder nela se inscrever sem ser acusado de reacionaacuterio Isso porque
admite que historicamente o conceito de totalidade orgacircnica foi transposto para o
terreno poliacutetico como forma de justificar o regime totalitaacuterio a enteleacutequia de
Driesch foi tomada como o Fuumlhrer do organismo assim como a geneacutetica as
teacutecnicas de esterilizaccedilatildeo e de inseminaccedilatildeo artificial foram colocadas a serviccedilo da
eugenia racista e o darwinismo foi usado para justificar o imperialismo e a poliacutetica
do espaccedilo vital (Lebensraum) alematilde Natildeo obstante negando haver uma relaccedilatildeo
direta entre vitalismo e nacional-socialismo ele acredita que a conversatildeo de
certos bioacutelogos vitalistas ao nazismo natildeo deve fazer com que desabonemos o
vitalismo assim como natildeo criticamos a aritmeacutetica e o caacutelculo por sua utilizaccedilatildeo
pelos banqueiros e atuais capitalistas (cf CV 1985 p98)
De todo modo considerando que foi a biologia vitalista impregnada de
animismo a que foi utilizada pela ideologia nazista para justificar seu projeto social
se ele natildeo se importa de ser chamado de vitalista natildeo eacute por aceitar a existecircncia de
uma forccedila vital situada para aleacutem da mateacuteria viva que a animaria de fora como
fizeram os animistas e os vitalistas claacutessicos mas por admitir uma capacidade
inerente proacutepria a ela de reaccedilatildeo e de autoconservaccedilatildeo que natildeo se encontra na
mateacuteria inerte e que atesta a especificidade da ordem vital em relaccedilatildeo agrave
maquinal
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Aleacutem disso se para Canguilhem eacute a perspectiva vitalista a que melhor o
auxilia a operar a diferenciaccedilatildeo entre o vivo e o inerte eacute tambeacutem ela a uacutenica que
consegue explicar o surgimento da atividade teacutecnica a partir da vida mesma
ldquoo vitalismo eacute talvez o sentimento de uma antecipaccedilatildeo ontoloacutegica portanto cronologicamente irrecuperaacutevel da vida sobre a teoria e a teacutecnica sobre a inteligecircncia e a simulaccedilatildeo da vidardquo (FCR 1995 p128)
Transpondo esta ideia para sua reflexatildeo sobre o surgimento da medicina ele nota
que enquanto a maacutequina precisa de algueacutem que a construa que a regule e a
repare o vivente se reproduz se autorrepara se autocura e se autorregenera
sendo precisamente esta capacidade de reaccedilatildeo e de resistecircncia agrave morte inerente
a tudo que vive a origem da teacutecnica meacutedica
Neste capiacutetulo entatildeo a forma como ele define a vida e o que faz com que
ela seja a raiz da atividade meacutedica eacute o que nos propomos apresentar
Quando estudamos o pensamento de Canguilhem em seu conjunto
notamos que se ele tece criacuteticas agrave biologia mecanicista natildeo eacute soacute porque considera
insuficientes os estudos bioloacutegicos que natildeo levam em conta a distinccedilatildeo existente
entre o movimento vital e o movimento fiacutesico este uacuteltimo com tendecircncia agrave ineacutercia
(cf CV 1985 p12) Eacute tambeacutem porque percebe que historicamente ela se
constituiu a partir de um projeto poliacutetico-ideoloacutegico de supressatildeo de toda e
qualquer referecircncia a valores no campo da ciecircncia associado agrave disputa de
autoridade entre os poderes religioso e laico
ldquoMas vem-nos imediatamente ao espiacuterito que desde o princiacutepio do seacuteculo XIX a definiccedilatildeo do objeto especiacutefico da biologia foi purgado de qualquer referecircncia a conceitos de ordem axioloacutegica tais como perfeiccedilatildeo ou imperfeiccedilatildeo normal ou anormal etc () Consequentemente o problema da lsquonormalidadersquo na histoacuteria do pensamento bioloacutegico devia colocar-se entre as consideraccedilotildees natildeo atuais Queremos fazer uma tentativa de demonstrar o contraacuteriordquo (cf I 1981 p109)
Assim se ele se dedica filosoficamente ao problema do normal e do patoloacutegico eacute
sobretudo para resgatar a dimensatildeo ativa e axioloacutegica da vida traduzida por suas
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propriedades de instituir valores e de criar normas isto eacute pela polaridade
dinacircmica e normatividade que lhe satildeo proacuteprias
Com efeito em seus Eacutetudes dacuteHistoire et de Philosophie des Sciences
Canguilhem esclarece que a partir do momento em que a mecacircnica cartesiana e
galileana foi dada como modelo de uma ciecircncia universal em seu objeto e
homogecircnea em seu meacutetodo abolindo toda a diferenccedila ontoloacutegica entre as coisas
do ceacuteu e da terra entre as coisas inertes e os seres vivos os organismos
passaram a ser descritos e explicados em sua estrutura e funccedilotildees como um ponto
de convergecircncia de forccedilas fiacutesicas e como o resultado de um conjunto de
influecircncias externas impostas pelo ambiente natural A biologia passou entatildeo a
utilizar a linguagem da fiacutesica e da quiacutemica e a explicar os seres vivos nos mesmos
termos da mateacuteria inerte reduzindo-os a propriedades puramente extensionais A
consequecircncia disso foi a perda da especificidade das ciecircncias bioloacutegicas em seu
objeto e meacutetodos de investigaccedilatildeo (cf E 1989 p33)
Jaacute na Ideologia e racionalidade nas ciecircncias da vida ao apresentar seu
estudo sobre o problema da normalidade na histoacuteria do pensamento bioloacutegico
Canguilhem inicia sua argumentaccedilatildeo citando a surpresa de Emile Radl autor de
Geschichte der biologischen Theorien in der Neuzeit (1913) com o fato de a
biologia de seu tempo ser colocada em diacutevida com Galileu e Descartes jaacute que a
eles natildeo se pode atribuir nenhuma ideia bioloacutegica digna de nota A seu ver o
historiador jaacute fazendo oposiccedilatildeo agraves pretensotildees do que mais tarde seria chamado
de reducionismo se colocava expressamente contra a filosofia bioloacutegica
materialista do XIX amalgamada num racionalismo de laboratoacuterio isomorfo de um
radicalismo poliacutetico anticlerical ldquose a vida natildeo eacute mais do que mateacuteria que se
acautelem a alma a imortalidade e o poder clericalrdquo (I 1981 p107)
Mas atraveacutes desta explicitaccedilatildeo ideoloacutegica longe de querer criticar o projeto
de constituiccedilatildeo de um pensamento bioloacutegico laico o que agora Canguilhem
procura mostrar eacute que desde o princiacutepio do seacuteculo XIX devido agrave disputa de
autoridade entre os poderes religioso e secular a ciecircncia bioloacutegica vem sendo
purificada de qualquer referecircncia a conceitos de ordem axioloacutegica do estudo das
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funccedilotildees da vida agrave questatildeo da origem das espeacutecies Em decorrecircncia disso
abolindo toda diferenccedila entre o vivo e o natildeo vivo os bioacutelogos e bioquiacutemicos
submeteram completamente seu objeto agrave jurisdiccedilatildeo dos fiacutesicos e dos quiacutemicos
tomando por modelo explicativo das funccedilotildees de autoconservaccedilatildeo autorregulaccedilatildeo
e autorreproduccedilatildeo a ldquooficina quiacutemica completamente automaacuteticardquo (cf I 1981
p109) Os progressos obtidos por eles na anaacutelise e na siacutentese dos compostos
orgacircnicos a reduccedilatildeo dos processos vitais a transformaccedilotildees quiacutemicas e
termodinacircmicas encorajaram tambeacutem os filoacutesofos e bioacutelogos que se dedicavam agrave
explicaccedilatildeo da evoluccedilatildeo das espeacutecies a refutar por oposiccedilatildeo agrave biologia natural ou
revelada toda ideia sobre a natureza da vida que natildeo tivesse um caraacuteter
mecanicista ou materialista de modo a eliminar dela qualquer referecircncia a uma
concepccedilatildeo de valor (cf I 1981 p117)
Assim eacute para demonstrar que natildeo haacute como eliminar da ideia de vida
qualquer referecircncia a uma comparaccedilatildeo de valores pois a vida mesma representa
uma diferenccedila de valor em relaccedilatildeo agrave morte e ainda que a interrogaccedilatildeo sobre o
sentido dos comportamentos e normas de adaptabilidade da vida eacute uma tarefa da
biologia e natildeo da fiacutesica ou da quiacutemica que Canguilhem se empenharaacute em mostrar
que se a vida fosse indiferente agraves suas proacuteprias normas e agraves condiccedilotildees que lhe
satildeo impostas funccedilotildees como a autoconservaccedilatildeo e a autorregulaccedilatildeo sequer seriam
possiacuteveis assim como natildeo haveria como falar em adaptaccedilatildeo comportamento cujo
sentido vital - que mesmo uma explicaccedilatildeo causal da evoluccedilatildeo natildeo consegue abolir
- eacute determinado por referecircncia do ser vivo agrave morte ldquoSeraacute indiferente viver ou
morrer lutar com sucesso ou com sucesso ndash mesmo que o sucesso consista
simplesmente em continuar a viverrdquo (I 1981 p116)
Isso explica porque em suas Novas reflexotildees referentes ao normal e ao
patoloacutegico (1963-1966) ele diz que desde seu Ensaio sobre alguns problemas
relativos ao normal e ao patoloacutegico (1943) baseia sua reflexatildeo sobre o normal
numa anaacutelise filosoacutefica da vida compreendida como uma atividade de oposiccedilatildeo agrave
ineacutercia e agrave indiferenccedila Neste contexto se colocando contra a biologia
fundamentada nos princiacutepios da mecacircnica moderna que considera a vida um
objeto estaacutevel idecircntico a si mesmo uma mateacuteria inerte que precisa ser colocada
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em movimento por uma forccedila exterior a ela afirma que este modelo explicativo
natildeo pode ser transposto para os fenocircmenos vitais porque a vida natildeo eacute indiferente
agraves condiccedilotildees que lhe satildeo impostas
ldquoA mecacircnica moderna baseando a ciecircncia do movimento no princiacutepio da ineacutercia tornava absurda com efeito a distinccedilatildeo [aristoteacutelica] entre os movimentos naturais e os movimentos violentos jaacute que a ineacutercia eacute precisamente a indiferenccedila em relaccedilatildeo agraves direccedilotildees e variaccedilotildees do movimento Ora a vida estaacute bem longe de uma tal indiferenccedila em relaccedilatildeo agraves condiccedilotildees que lhe satildeo impostas a vida eacute polaridaderdquo (NP 1990 p98)
Assim percebendo que a vida natildeo permanece inerte diante do que lhe
ameaccedila Canguilhem diz haver nela uma polaridade dinacircmica entendida como
uma resposta agraves demandas do meio expressa atraveacutes do estabelecimento de
valores vitais opostos positivos e negativos Mesmo o mais simples dos aparelhos
bioloacutegicos de nutriccedilatildeo de assimilaccedilatildeo e de excreccedilatildeo afirma ele atesta esta
polaridade estando certa a linguagem psicanaliacutetica ao qualificar como poacutelos os
orifiacutecios naturais de ingestatildeo e de excreccedilatildeo e em situar os objetos de satisfaccedilatildeo
em relaccedilatildeo a uma propulsatildeo e a uma repulsatildeo ldquoViver eacute mesmo para uma ameba
preferir e excluirrdquo (NP 1990 p105)36
Ademais eacute tambeacutem por natildeo haver indiferenccedila bioloacutegica pelo fato de a vida
ser atividade polarizada de conflito com o meio que podemos falar em
normatividade vital pois eacute apenas a partir do valor atribuiacutedo pela vida a um
determinado comportamento bioloacutegico que podemos chamaacute-lo ou natildeo de normal
Ateacute porque caso admitiacutessemos que a vida natildeo faz diferenccedila entre suas normas
estariacuteamos nos condenando a natildeo poder nem mesmo distinguir um alimento de
um excremento um estado fisioloacutegico de um patoloacutegico
ldquoEacute por referecircncia agrave polaridade dinacircmica da vida que se pode chamar de normais determinados tipos ou funccedilotildees Se existem normas bioloacutegicas eacute porque a vida sendo natildeo apenas submissatildeo ao meio mas tambeacutem instituiccedilatildeo de seu meio proacuteprio
36
Nos Eacutetudes dacuteHistoire et de Philosophie des Sciences no toacutepico ldquoLa nouvelle connaissance de la vierdquo Canguilhem nota que Bergson na obra La Penseacutee et le Mouvant ao se referir agrave assimilaccedilatildeo esclarece que ela natildeo aparece somente como a absorccedilatildeo de um alimento mas tambeacutem como a forma como o vivente trata aquilo que se assimila se o reteacutem ou o rejeita de modo que ldquoviver em qualquer escala que seja eacute escolher e negligenciarrdquo (E 1989 p350)
45
estabelece por isso mesmo valores natildeo apenas no meio mas tambeacutem no proacuteprio organismo Eacute o que chamamos de normatividade bioloacutegicardquo (NP 1990 p187)
Assim se falamos em normas bioloacutegicas de diferentes naturezas de
distintas qualidades eacute somente porque todo vivente e natildeo apenas o humano
inconscientemente impotildee valores Desta forma contrariando a ideia de que a
atribuiccedilatildeo de valores a determinados comportamentos bioloacutegicos eacute possiacutevel
apenas ao vivente capaz de linguagem verbal isto eacute ao vivente humano
Canguilhem esclarece que natildeo seria possiacutevel ao homem estimar de modo
consciente se a normatividade natildeo estivesse em germe na vida
ldquoO verbete do Vocabulaire philosophique parece supor que o valor soacute pode ser atribuiacutedo a um fato bioloacutegico por lsquoaquele que falarsquo isto eacute evidentemente um homem Achamos ao contraacuterio que para um ser vivo o fato de reagir por uma doenccedila a uma lesatildeo a uma infestaccedilatildeo a uma anarquia funcional traduz o fato fundamental que a vida natildeo eacute indiferente agraves condiccedilotildees nas quais ela eacute possiacutevel que a vida eacute polaridade e por isso mesmo posiccedilatildeo inconsciente de valor em resumo que a vida eacute de fato uma atividade normativardquo (NP 1990 p96)
37
Portanto aleacutem da polaridade vital devemos reconhecer uma ldquonormatividade
original da vidardquo (NP 1990 p142) Ou seja a capacidade que todo vivente tem de
instituir normas de funcionamento orgacircnico e tambeacutem de superaacute-las em uma
situaccedilatildeo eventual Isso porque considerando a polaridade dinacircmica dizer que o
37
Lecourt (2005) acredita que ao se perguntar sobre as raiacutezes bioloacutegicas dos valores humanos Canguilhem se alinha agrave Werthphilosophie Tambeacutem Debru (2007) acredita que a tese canguilhemiana de vida animada pela ideia de posiccedilatildeo de valor evoca fortemente esta corrente de pensamento na qual o valor eacute aquilo que nasce do embate do vivente com o meio Pela mesma perspectiva Schmidgen (2008) a partir da identificaccedilatildeo do conjunto dos autores alematildees que figuram em seus escritos trata especificamente da influencia da Werthphilosophie ou da filosofia axioloacutegica como chamada na Franccedila em Canguilhem Como Lecourt ele destaca a referecircncia agrave obra do vienense Robert Reininger Werthphilosophie und Ethik (1939) no Ensaio de 43 e dos trabalhos de Rickert Herxheimer Windelband e Muumlsterberg e ainda o elogio em O conhecimento da vida agrave obra Esquisse drsquoune philosophie des valeurs (1939) de Eugeacutene Dupreacuteel Sobre a influecircncia da Werthphilosophie na filosofia de Canguilhem confira LECOURT D Georges Canguilhem Que sais-je Les envies du savoir 1
a ediccedilatildeo Paris Presses Universitaires de France
- PUF 2008 DEBRU C Lrsquoengagement philosophique dans le champ de la medicine Georges Canguilhem aujourdrsquohui In BAUNSTEIN J-F (org) Histoire des sciences et politique du vivant Paris Presses Universitaires de France ndash PUF 2007 SCHMIDGEN H Georges Canguilhem et ldquoles discours allemandsrdquo In FAGOT-LARGEAULT DEBRU D MORANGE M (dir) HAN H-J (eacuted) Philosophie et meacutedecine en hommage agrave Georges Canguilhem (LrsquoHistoire des sicences ndash Textes et Egravetudes) Paris Vrin 2008
46
vivente eacute normativo natildeo eacute apenas afirmar que ele institui normas Eacute ainda
constatar que a manutenccedilatildeo de uma uacutenica norma eacute sentida privativamente e natildeo
positivamente por ele jaacute que a conservaccedilatildeo normativa impede a adoccedilatildeo de novos
comportamentos vitais dificultando a atividade proacutepria de todo organismo que eacute a
de operar ajustes normativos
No entanto Canguilhem nota que a normatividade vital natildeo se trata de uma
maleabilidade funcional total e instantacircnea pois natildeo podemos adotar normas a
nosso bel-prazer Ela seria entatildeo mais bem definida como uma plasticidade
funcional que permite a todo vivente alterar dentro de certos limites suas
constantes funcionais interpretadas como normas habituais de vida (cf NP 1990
p 138) Por isso seria mais adequado falar em ritmos estabilizados da vida ou em
modos de ser da vida termos mais condizentes com o dinamismo que lhe eacute
proacuteprio (cf NP 1990 p166)
Destarte natildeo sendo estaacutetica a vida natildeo se traduz por constantes ou
invariantes bioloacutegicas codificadas mas pela possibilidade do vivente adotar
diferentes modos de ser permitindo a ele no momento de ruptura de sua
estabilidade orgacircnica encontrar entre as constantes aquela na qual poderaacute ainda
viver uma nova norma que mesmo sendo patoloacutegica natildeo deixaraacute de ser para ele
ldquonormalrdquo Em resumo a vida opera por normas por comportamentos que se
estabilizam em constantes mas esta estabilizaccedilatildeo natildeo deve constituir um
obstaacuteculo a uma superaccedilatildeo eventual pois isto significaria a morte da
normatividade
ldquoHaacute dois tipos de comportamentos ineacuteditos da vida Haacute os que se estabilizam em novas constantes mas cuja estabilidade natildeo constituiraacute obstaacuteculo a uma nova superaccedilatildeo eventual Satildeo realmente normais por normatividade E haacute os que se estabilizam sob a forma de constantes que o indiviacuteduo se esforccedilaraacute ansiosamente por preservar de qualquer perturbaccedilatildeo eventual Trata-se aqui de constantes normais mas de valor repulsivo exprimindo nelas a morte da normatividaderdquo (NP 1990 p167)
Em vista disso Canguilhem apresenta como criteacuterio de sauacutede e de doenccedila ndash
modos de ser respectivamente valorados positiva e negativamente pela vida ndash a
amplitude ou restriccedilatildeo da normatividade ou seja a maior ou menor possibilidade
47
do vivente ultrapassar um estado de normalidade estabilizado e adotar outro38
Atraveacutes deste paracircmetro o doente eacute anormal natildeo por natildeo ter norma mas por soacute
poder admitir uma norma ldquoComo jaacute dissemos muitas vezes o doente natildeo eacute
anormal por ausecircncia de norma e sim por incapacidade de ser normativordquo (NP
1990 p148)
Com efeito como esclarece em La connaissance de la vie a doenccedila ou
estado patoloacutegico natildeo eacute a perda de uma norma mas eacute um ritmo de vida regrado
por normas vitalmente inferiores ou depreciadas pela vida pois impedem o vivente
de uma participaccedilatildeo ativa num dado meio ldquoRigorosamente lsquopatoloacutegicorsquo eacute o
contraacuterio vital de lsquosatildeorsquo e natildeo o contraditoacuterio loacutegico de normalrdquo (CV 1985 p166)
Considerando portanto que o patoloacutegico eacute tambeacutem uma espeacutecie de normal
devemos reconhecer que enquanto o ser vivo doente estaacute normalizado em
condiccedilotildees bem definidas pois perdeu sua capacidade de instituir normas
diferentes em condiccedilotildees adversas o vivente saudaacutevel eacute normativo pois consegue
questionar suas normas usuais por ocasiatildeo de situaccedilotildees criacuteticas e superaacute-las
atraveacutes da instauraccedilatildeo de uma nova ordem vital
ldquoSe reconhecermos que a doenccedila natildeo deixa de ser uma espeacutecie de norma bioloacutegica consequumlentemente o estado patoloacutegico natildeo pode ser chamado de anormal no sentido absoluto mas anormal apenas na relaccedilatildeo com uma situaccedilatildeo determinada Reciprocamente ser sadio e ser normal natildeo satildeo fatos totalmente equivalentes jaacute que o patoloacutegico eacute uma espeacutecie de normal Ser sadio significa natildeo apenas ser normal numa situaccedilatildeo determinada mas ser tambeacutem normativo nessa situaccedilatildeo e em outras situaccedilotildees eventuais O que caracteriza a sauacutede eacute a possibilidade de ultrapassar a norma que define o normal momentacircneo a possibilidade de tolerar infraccedilotildees agrave norma habitual e de instituir normas novas em situaccedilotildees novasrdquo (NP 1990 p158)
Aleacutem disso para Canguilhem acompanhando o pensamento de Goldstein
haacute uma irreversibilidade na normatividade vital pois as normas criadas apoacutes uma
crise orgacircnica natildeo satildeo as mesmas adotadas pelo vivente antes do processo
criacutetico Com efeito Goldstein afirma que as novas normas fisioloacutegicas instituiacutedas
38
Por este ponto de vista podemos aproximar o pensamento de Canguilhem ao de Simondon para quem o indiviacuteduo vivente eacute um sistema metaestaacutevel rico em potenciais sendo que o equiliacutebrio estaacutevel deste sistema representa seu mais baixo niacutevel de energia potencial possiacutevel pois o impede de transformar-se em outro Cf SIMONDON G Lrsquoindividuation agrave la lumiegravere des notions de forme et drsquoinformation Paris Millon 2005
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apoacutes a crise orgacircnica natildeo satildeo as mesmas anteriores agrave doenccedila admitindo o fato
bioloacutegico fundamental de que a vida natildeo conhece reversibilidade mas admite
reparaccedilotildees que satildeo realmente inovaccedilotildees fisioloacutegicas ldquocurar eacute criar para si novas
normas de vida agraves vezes superiores agraves antigasrdquo (NP 1990 p 188) Com isso ele
contraria a ideia de cura como possibilidade de retorno a um estado de ordem
preacutevio anterior agrave doenccedila (restitutio ad integrum)
ldquocurar apesar dos deacuteficits sempre eacute acompanhado de perdas essenciais para o organismo e ao mesmo tempo do reaparecimento de uma ordem A isso corresponde uma nova norma individualrdquo (cf NP 1990 p156)
Por este vieacutes a cura natildeo pode ser entendida como um retorno a um estado
anterior de ldquoinocecircncia bioloacutegicardquo Ela eacute a reconquista de um estado de estabilidade
orgacircnica que estaraacute mais proacuteximo da doenccedila ou da sauacutede na medida em que
estiver mais ou menos aberto a eventuais modificaccedilotildees
Assim colocando de outro modo a questatildeo da normalidade Canguilhem
mostra que o que chamamos de vivente normal ou saudaacutevel eacute o normativo e o
anormal ou patoloacutegico eacute aquele que natildeo apresenta capacidade de evitar ou corrigir
comportamentos que lhe ameaccedilam por uma restriccedilatildeo em sua normatividade
traduzida pela incapacidade de uma norma vital transformar-se em outra norma
quando instada pelo meio a isto Jaacute o vivente saudaacutevel eacute aquele que consegue se
ajustar ao meio adaptando-se ativamente a ele39 seja alterando sua norma atual
seja alterando o meio tambeacutem este passiacutevel de ajustes e modificaccedilotildees
ldquoMas o meio coacutesmico o meio do animal de modo geral natildeo seraacute um sistema de constantes mecacircnicas fiacutesicas e quiacutemicas natildeo seraacute feito de invariantes Eacute claro que este meio definido pela ciecircncia eacute feito de leis mas essas leis satildeo abstraccedilotildees teoacutericas O ser vivo natildeo vive entre leis mas entre seres e acontecimentos que diversificam essas leis O que sustenta o paacutessaro eacute o galho da aacutervore e natildeo as leis da elasticidade Se reduzirmos o galho agraves leis da elasticidade tambeacutem natildeo devemos falar em paacutessaro e sim em soluccedilotildees coloidais Em tal niacutevel de abstraccedilatildeo analiacutetica natildeo se
39
Na mesma direccedilatildeo Bergson diferencia a adaptaccedilatildeo passiva na qual o organismo eacute uma mateacuteria inerte que sofre influecircncia do meio e a adaptaccedilatildeo ativa que ocorre quando um organismo seletivamente extrai desta influecircncia uma condiccedilatildeo apropriada (cf BERGSON 2005 p76-77) In BERGSON H A evoluccedilatildeo criadora (Trad Bento Prado Neto) Satildeo Paulo Martins Fontes 2005 (Coleccedilatildeo Toacutepicos)
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pode mais falar em meio para um ser vivo nem em sauacutede nem em doenccedila Da mesma forma o que a raposa come eacute o ovo de galinha e natildeo a quiacutemica dos albuminoides ou as leis da embriologiardquo (NP 1990 p159)
Natildeo sendo o meio portanto um sistema de constantes invariaacuteveis tambeacutem ele
estaacute em contiacutenuo processo de estruturaccedilatildeo pelos viventes que com ele se
relacionam ldquoDe fato o meio do ser vivo eacute tambeacutem obra do ser vivo que se furta e
se oferece eletivamente a certas influecircnciasrdquo (NP 1990 p143)
Mas embora Canguilhem defenda que o meio natildeo eacute apenas um fato fiacutesico
mas um fato bioloacutegico isto eacute natildeo eacute um fato constituiacutedo mas um fato a se
constituir acredita que o vivente natildeo o altera em busca de um estado de
estabilizaccedilatildeo permanente nem se adapta mecanicamente a ele Afastando-se de
dois princiacutepios um teleoloacutegico e outro mecanicista sobre a adaptaccedilatildeo ele recusa
tanto a ideia de que o ser vivo se adapta de acordo com a procura de satisfaccedilotildees
funcionais sendo a adaptaccedilatildeo um ideal a ser atingido como aquela que afirma
que o ser vivo eacute adaptado pela accedilatildeo de uma necessidade de ordem mecacircnica
fiacutesico-quiacutemica ou bioloacutegica (outros seres vivos) sendo ela a expressatildeo de um
estado de equiliacutebrio que natildeo deve ser alterado pois isso significaria um risco de
morte
Contestando ambas as perspectivas ele entende que o vivente natildeo eacute um ser
passivo que apenas recebe influecircncias de um meio que lhe eacute adverso40 Em seu
embate com o meio para manter sua integridade mais do que se conservar no
sentido de manter-se como estaacute ele deve continuamente confrontar-se com o
meio transformaacute-lo e tambeacutem se transformar
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Segundo Braunstein (2007) a criacutetica ao conceito mecanicista de meio estaacute presente no coraccedilatildeo das duas principais obras de Canguilhem O normal e o patoloacutegico (1943) e A formaccedilatildeo do conceito de reflexo (1955) aleacutem de figurar no artigo ldquoLe vivant et son milieurdquo (1946-1947) de La connaissance de la vie Ele nota que desde a deacutecada de 30 Canguilhem jaacute se colocava contra uma concepccedilatildeo determinista de meio presente nos trabalhos de Barregraves e antes deste no de Taine Considerando que nem a raccedila nem o meio nem o momento satildeo suficientes para definir o homem ele natildeo aceita falar em influecircncia do meio sobre o vivente como faz a tradiccedilatildeo mecanicista mas em reaccedilatildeo do vivente em relaccedilatildeo ao meio Sobre as implicaccedilotildees da concepccedilatildeo determinista de meio natildeo soacute na biologia como na psicologia assunto que trataremos mais adiante confira BRAUNSTEIN J-F (org) Psychologie et milieu Eacutethique et histoire des sciences chez Georges Canguilhem In BRAUNSTEIN J-F (org) Histoire des sciences et politique du vivant Paris Presses Universitaires de France ndash PUF 2007
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ldquo() se consideramos a relaccedilatildeo organismo-meio como consequecircncia de uma atividade verdadeiramente bioloacutegica como a procura de uma situaccedilatildeo na qual o ser vivo em vez de sofrer influecircncias recolhe as influecircncias e as qualidades que correspondem a suas exigecircncias entatildeo os meios nos quais os seres vivos estatildeo colocados estatildeo delimitados por eles centrados neles Neste sentido o organismo natildeo estaacute jogado num meio ao qual tem que se dobrar mas ao contraacuterio ele estrutura seu meio ao mesmo tempo em que desenvolve suas capacidades de organismordquo (NP 1990 p258)
Por isso em La connaissance de la vie ele novamente concorda com
Goldstein para quem a interaccedilatildeo entre vivente e meio natildeo eacute uma relaccedilatildeo de tipo
fiacutesica mas bioloacutegica Segundo o autor de Der Aufbau des Organismus entre o
vivente e o meio a relaccedilatildeo se estabelece como um debate (Auseinandersetzung)
onde os viventes colocam suas proacuteprias normas de apreciaccedilatildeo das situaccedilotildees
dominam o meio e se acomodam Eacute neste sentido que a atividade do organismo
pode ser definida como criadora pois cada vivente compotildee o ambiente a sua
maneira de modo a poder se realizar isto eacute existir (cf CV 1985 p 24) Mas
para ele esta relaccedilatildeo natildeo consiste essencialmente numa oposiccedilatildeo
ldquouma vida que se afirma contra jaacute eacute uma vida ameaccedilada () Uma vida satilde confiante na sua existecircncia em seus valores eacute uma vida em flexatildeo uma vida flexiacutevel quase em moderaccedilatildeordquo (CV 1985 p146)
Desta forma a situaccedilatildeo de um vivente comandado de fora pelo meio deve ser
considerada catastroacutefica pois traduz uma dominaccedilatildeo do exterior sobre um
organismo que deveria compocirc-lo influenciaacute-lo e organizaacute-lo tendo a si proacuteprio
como centro de referecircncia e como polo doador de sentido vital
Considerada a estreita relaccedilatildeo organismo-meio a normalidade do vivente
natildeo pode ser pensada fora de sua relaccedilatildeo com o meio assim como a normalidade
do meio natildeo pode ser pensada sem o vivente ldquoo ser vivo e o meio considerados
separadamente natildeo satildeo normais poreacutem eacute sua relaccedilatildeo que os torna normais um
para o outrordquo (NP 1990 p96) O vivente eacute normal na medida em que consegue
responder agraves exigecircncias do meio assim como o meio soacute pode ser considerado
normal em relaccedilatildeo agrave norma morfoloacutegica e funcional do vivente que o utiliza em seu
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proveito Eacute portanto a relaccedilatildeo do vivente com o meio41 que definiraacute a normalidade
natildeo do soacute do vivente mas tambeacutem do proacuteprio meio ldquoo meio eacute normal pelo fato do
ser vivo nele desenvolver melhor sua vida e nele manter melhor sua proacutepria
normardquo (cf NP 1990 p111)
Mesmo quando pensamos num conjunto de viventes como representantes
de uma mesma espeacutecie sua normalidade tambeacutem teraacute estreita relaccedilatildeo com as
condiccedilotildees que o meio pode oferecer a sua manutenccedilatildeo e propagaccedilatildeo Entatildeo o
meio normal para uma espeacutecie eacute aquele que permite a ela natildeo soacute maior
fecundidade mas tambeacutem uma variedade de formas que na hipoacutetese de
ocorrerem modificaccedilotildees externas decirc condiccedilotildees agrave vida de encontrar numa dessas
formas a soluccedilatildeo para o problema de adaptaccedilatildeo que se vecirc forccedilada a resolver Daiacute
o sentido do elogio de Canguilhem ao Darwin por ter definido uma espeacutecie como
o agrupamento de indiviacuteduos todos diferentes em certo grau e cuja unidade
traduziria a normalizaccedilatildeo momentacircnea de suas relaccedilotildees com o meio inclusive
com outras espeacutecies (cf NP 1990 p112)
Atraveacutes deste entendimento de normalidade derivado da relaccedilatildeo do vivente
com seu meio ateacute mesmo os considerados ldquoanormaisrdquo por serem mutantes
poderatildeo ser considerados normais se num dado meio a sua norma for vitalmente
vaacutelida Exemplo disto eacute o fato de que uma espeacutecie animal cega derivada de uma
de boa visatildeo seraacute mais normal que a vidente em uma caverna (cf NP 1990
p237) assim como uma drosoacutefila de asa vestigial derivada por mutaccedilatildeo de uma
drosoacutefila alada seraacute normal agrave beira-mar jaacute que num meio ventilado as drosoacutefilas
aladas tecircm mais oportunidade de serem eliminadas ganhando vantagem das
mutantes apenas num meio protegido de ventos e fechado (cf NP 1990 p111)
Na mesma direccedilatildeo na Ideologia e racionalidade nas ciecircncias da vida ao
escrever sobre o problema da normalidade na histoacuteria do pensamento bioloacutegico
41
Canguilhem assim como Simondon natildeo acredita ser possiacutevel pensar o vivente separado do meio em que se encontra O ponto de vista simondoniano eacute que o meio natildeo estaacute despojado do indiviacuteduo assim como o indiviacuteduo natildeo perde a dimensatildeo do meio e que o vivente resolve seus problemas natildeo somente adaptando-se (como pode fazer uma maacutequina) mas tambeacutem modificando a si mesmo inventando novas estruturas internas cf SIMONDON G Lrsquoindividuation agrave la lumiegravere des notions de forme et drsquoinformation Op cit
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Canguilhem ressalta que eacute Darwin quem descobre um mecanismo natural de
normalizaccedilatildeo da anomalia menor que eacute a variaccedilatildeo jaacute que para ele os desvios
satildeo possibilidades de incursatildeo dos seres vivos em outros meios ldquosegundo o
espiacuterito do darwinismo a norma natildeo eacute algo fixo mas uma capacidade transitivardquo
(cf I 1981 p116-117) Ou seja para o autor de A origem das espeacutecies a
normalidade dos seres vivos seraacute dada pela qualidade da relaccedilatildeo que tecircm com
seu meio como o que permite a eles e atraveacutes das variaccedilotildees individuais dos seus
descendentes novas formas de relaccedilatildeo com um novo meio e assim
sucessivamente
Com isso Canguilhem quer provar que houve uma confusatildeo na
identificaccedilatildeo dos termos anormal e anomalia Ele explica que etimologicamente
anomalia vem do grego anomalia que significa desigualdade aspereza o a-
nomalos eacute o desigual o rugoso o irregular Assim houve um engano a respeito
do termo anomalia derivando-o natildeo de omalos mas de nomos que significa lei A
seu ver o termo anomalia designa um fato eacute um descritivo enquanto anormal faz
referecircncia a um valor sendo um termo apreciativo Natildeo obstante a confusatildeo
tornou o anormal um conceito descritivo e a anomalia avaliativo (cf NP 1990
p101) Pela sua perspectiva o anocircmalo seria apenas o ldquodesigualrdquo o ldquodiferenterdquo e
o patoloacutegico sim seria o ldquoanormalrdquo natildeo por carecer de norma mas por ser uma
norma valorada negativamente pela vida ldquoo patoloacutegico natildeo eacute a ausecircncia de norma
bioloacutegica eacute uma norma diferente mas comparativamente repelida pela vidardquo (NP
1990 p113-114) Portanto nos equivocamos quando identificamos o patoloacutegico
ao anocircmalo A anomalia como uma variedade bioloacutegica pode transformar-se em
doenccedila mas natildeo eacute por si soacute uma doenccedila ldquoa anomalia pode constituir um objeto
de um capiacutetulo especial da histoacuteria natural mas natildeo da patologiardquo (NP 1990
p105)
Para corroborar seu ponto de vista ele lembra que para I Geoffroy Saint-
Hilaire a anomalia eacute um fato bioloacutegico que a ciecircncia deve explicar e natildeo apreciar
Segundo o autor da Histoire geacutenerale et particuliegravere des anomalies de l
organisation chez lrsquohomme et les animaux eacute incorreto falar a respeito dos animais
que apresentam organizaccedilatildeo e caracteres insoacutelitos em capricho da natureza em
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desordem ou irregularidade Natildeo existem formaccedilotildees orgacircnicas que natildeo estejam
submetidas a leis e se existem exceccedilotildees satildeo exceccedilotildees agraves leis dos naturalistas e
natildeo agraves leis da natureza Ou seja todas as espeacutecies vivas ldquosatildeo o que devem serrdquo
Mas embora todas elas apresentem uma grande variaccedilatildeo nas formas e no
volume proporcional dos oacutergatildeos por outro lado haacute um conjunto de traccedilos comuns
agrave grande maioria dos indiviacuteduos que compotildeem a mesma espeacutecie sendo este
conjunto o que define um tipo especiacutefico A anomalia como variedade bioloacutegica
seria apenas qualquer desvio do tipo especiacutefico ou qualquer particularidade
orgacircnica apresentada por um indiviacuteduo comparado com a grande maioria dos
indiviacuteduos de sua espeacutecie
ldquoPortanto em anatomia o termo anomalia deve conservar estritamente o seu sentido de insoacutelito de inabitual ser anormal consiste em se afastar por sua proacutepria organizaccedilatildeo da grande maioria dos seres com os quais se deve ser comparadordquo (NP 1990 p102)
Assim sendo uma anomalia natildeo eacute patoloacutegica apenas por ser uma
anomalia isto eacute um desvio do tipo especiacutefico Ela seraacute patoloacutegica apenas quando
suas normas forem inferiores quanto agrave estabilidade fecundidade e variabilidade
da vida e forem sentidas privativamente pelo organismo num determinado meio
Isto eacute enquanto a anomalia natildeo tiver uma incidecircncia funcional a ponto de ter
expressatildeo na ordem dos valores vitais ela seraacute uma variaccedilatildeo sobre um tema
especiacutefico uma ilustraccedilatildeo da diversidade de normas presente na ordem bioloacutegica
ldquoA anomalia eacute a consequecircncia de variaccedilatildeo individual que impede dois seres de poderem se substituir um ao outro de modo completo Ilustra na ordem bioloacutegica o princiacutepio leibnitziano dos indiscerniacuteveis No entanto diversidade natildeo eacute doenccedilardquo (NP 1990 p106)
Por isso Canguilhem concorda tambeacutem com John A Ryle autor de The
meaning of normal que procura demonstrar que certos desvios individuais em
relaccedilatildeo agraves normas fisioloacutegicas natildeo satildeo por isso patoloacutegicos Eacute normal que exista a
variabilidade pois ela eacute necessaacuteria agrave adaptaccedilatildeo e portanto agrave sobrevivecircncia das
espeacutecies (cf NP 1990 p242) Eacute atraveacutes da variabilidade que a vida obteacutem ldquosem
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procurar fazecirc-lordquo uma espeacutecie de seguro contra a especializaccedilatildeo excessiva sem
reversibilidade ou flexibilidade o que no fundo eacute uma adaptaccedilatildeo bem sucedida (cf
NP 1990 p111) Daiacute a importacircncia das mutaccedilotildees para a preservaccedilatildeo das
espeacutecies ldquoem mateacuteria de adaptaccedilatildeo o perfeito ou acabado significa o comeccedilo do
fim das espeacuteciesrdquo (NP 1990 p237)
Destarte refutando a ideia de que as modificaccedilotildees do coacutedigo geneacutetico
contradizem a ldquosabedoria dos organismosrdquo Canguilhem lembra que nem todas as
alteraccedilotildees bioquiacutemicas satildeo patoloacutegicas pois pode acontecer que em certos
meios elas possam conferir uma certa superioridade agravequeles que satildeo seus
beneficiaacuterios como eacute o caso da resistecircncia agrave malaacuteria por portadores de um deacuteficit
em glicose-6-fosfato-desidrogenase De fato se a adaptabilidade depende da
variabilidade a diferenccedila bioquiacutemica individual ocorrida no interior de uma dada
espeacutecie pode tornaacute-la mais apta agrave sobrevivecircncia
ldquoao contraacuterio da humanidade que segundo Marx soacute levanta os problemas que pode resolver a vida multiplica de antematildeo soluccedilotildees para os problemas de adaptaccedilatildeo que poderatildeo surgirrdquo (NP 1990 p240)
Acompanhando tambeacutem G Teissier para quem as mutaccedilotildees podem ser
vantajosas se o meio variar em seu favor Canguilhem diz que embora possam ser
contestaacuteveis as noccedilotildees de seleccedilatildeo natural e de luta pela sobrevivecircncia natildeo soacute
pela ideia de finalidade e superioridade a elas subjacentes42 mas tambeacutem porque
a maior parte dos seres vivos satildeo mortos pelo meio muito antes que suas
42
Em seus Eacutetudes dacuteHistoire et de Philosophie des Sciences no artigo ldquoLes concepts de lsquolutte pour lrsquoexistencersquo et de lsquoselection naturellersquo em 1858 Charles Darwin et Alfred Russel Wallacerdquo Canguilhem daacute a entender que se natildeo recusa de todo o mecanismo de seleccedilatildeo natural proposto por Darwin eacute porque ele natildeo eacute um poder de escolha que recobre uma representaccedilatildeo antropomoacuterfica de um poder natural divinizado mas designa somente uma lei que exprime os efeitos de composiccedilatildeo entre variaccedilatildeo acidental hereditariedade e concorrecircncia vital (cf E 1989 p108) Aleacutem disso na Ideologia e racionalidade nas ciecircncias da vida deixa entrever que se acompanha o ponto de vista darwinista eacute porque ateacute Darwin os seres vivos se multiplicavam num quadro em que encontravam exclusivamente o seu bem sendo radical a mudanccedila de referecircncia quando ele propocircs que os seres vivos se multiplicam sem obrigaccedilatildeo de identidade especiacutefica e que atraveacutes do jogo composto pelo seu nuacutemero e pelas suas diferenccedilas se encontram coagidos a viver como podem o menos mal possiacutevel sem lugar reservado sem garantias de futuro (cf I 1981 p92) Como veremos tambeacutem pela sua perspectiva na ausecircncia de orientaccedilatildeo teleoloacutegica a evoluccedilatildeo aparece como um ensaio de formas sem plano ou fim preacute-determinado traduzido como uma aventura com um percurso imprevisiacutevel
55
desigualdades possam lhe ser uacuteteis isso natildeo quer dizer que apresentar
desigualdades seja biologicamente indiferente (cf NP 1990 p99)
Em La connaissance de la vie acompanhando o mesmo autor em Le
Meacutecanisme de LrsquoEvolution nota que para toda espeacutecie eacute necessaacuterio admitir uma
certa flutuaccedilatildeo dos genes da qual depende a plasticidade da adaptaccedilatildeo e
portanto seu poder evolutivo A seleccedilatildeo natural ou seja o crivo pelo meio eacute tanto
conservador em circunstacircncias estaacuteveis quanto inovador em circunstacircncias
criacuteticas de modo que ldquoos ensaios mais arriscados satildeo possiacuteveis e liacutecitosrdquo (CV
1985 p 161)
Em resumo nem toda anomalia como variaccedilatildeo morfoloacutegica ou funcional
seraacute patoloacutegica pelo simples fato de ser anomalia ldquonatildeo existe fato que seja
normal ou patoloacutegico em si A anomalia e a mutaccedilatildeo natildeo satildeo em si mesmas
patoloacutegicas Elas exprimem outras normas de vida possiacuteveisrdquo (NP 1990 p113)
Como simples diferenccedila de fato ela pode vir a ser patoloacutegica somente se o
indiviacuteduo considerado anocircmalo natildeo conseguir responder agraves exigecircncias do meio
natildeo tolerando qualquer desvio das condiccedilotildees nas quais suas normas satildeo vaacutelidas
por natildeo ser capaz de instituir novas normas vitais Portanto a condiccedilatildeo de
normalidade de um vivente natildeo adviraacute de sua fidelidade a um tipo especiacutefico do
qual seria uma coacutepia fiel mas dependeraacute de sua normatividade ou seja de sua
capacidade de instituir novas normas vitais quando da necessidade de superar as
dificuldades que resultam de uma alteraccedilatildeo do meio em que se encontra
Assim do ponto de vista canguilhemiano o normal em biologia natildeo eacute tanto
a forma antiga mas a nova se ela conseguir no seu meio manter-se normativa
ldquoCompreende-se finalmente porque uma anomalia ndash e especialmente uma mutaccedilatildeo isto eacute uma anomalia jaacute de iniacutecio hereditaacuteria ndash natildeo eacute patoloacutegica pelo simples fato de ser anomalia isto eacute um desvio a partir de um tipo especiacutefico definido por um grupo de caracteres mais frequumlentes em sua dimensatildeo meacutedia Caso contraacuterio seria preciso dizer que um indiviacuteduo mutante ponto de partida de uma nova espeacutecie eacute ao mesmo tempo patoloacutegico porque se desvia e normal porque se conserva e se reproduz O normal em biologia natildeo eacute tanto a forma antiga mas a nova se ela encontrar condiccedilotildees de existecircncia nas quais pareceraacute normativa isto eacute superando todas as formas passadas ultrapassadas e talvez dentro em breve mortasrdquo (NP 1990 p113)
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Ademais ao dizer que as anomalias podem ser o ponto de partida de uma
nova espeacutecie Canguilhem atribui a elas outro estatuto para aleacutem do sentido
bioloacutegico de diversificaccedilatildeo dos indiviacuteduos no interior de uma mesma espeacutecie Ele
aposta na ideia de que as mutaccedilotildees possam dar origem a novas espeacutecies e com
isso questiona em que medida os seres vivos que se afastam do tipo especiacutefico
satildeo anormais que estatildeo colocando em perigo a forma especiacutefica ou seratildeo
inventores a caminho de novas formas ldquoA vida natildeo eacute justamente evoluccedilatildeo
variaccedilatildeo de formas invenccedilatildeo de comportamentosrdquo (NP 1990 p164)
Com efeito tambeacutem nos Eacutetudes dacuteHistoire et de Philosophie des Sciences
no toacutepico La nouvelle connaissance de la vie ele diz que as formas vivas estatildeo
em movimento contiacutenuo de transformaccedilatildeo e defende que eacute realmente possiacutevel
explicar a evoluccedilatildeo das espeacutecies a partir da geneacutetica pela ocorrecircncia das
mutaccedilotildees sendo este o teor de sua objeccedilatildeo agraves teorias que afirmam ser elas
subpatoloacutegicas frequentemente letais e que o mutante vale biologicamente
menos do que o ser a partir do qual ele constitui uma mutaccedilatildeo ldquoDe fato isso eacute
verdadeiro as mutaccedilotildees satildeo frequentemente monstruosidades Mas ao olhar da
vida haacute monstruosidadesrdquo (E 1989 p363-364) A seu ver a vida eacute feita de
conservaccedilatildeo e de novidade comportando o risco das aberraccedilotildees ldquoa vida supera
seus erros por outros ensaios sendo um erro da vida simplesmente um impasserdquo
(E 1989 p364)
Mas vale notar que o fato de Canguilhem defender a ideia de que uma
mutaccedilatildeo possa dar origem a uma nova espeacutecie natildeo o faz um adepto do
mutacionismo corrente de pensamento para a qual as mutaccedilotildees satildeo o principal
mecanismo de evoluccedilatildeo das espeacutecies em detrimento da accedilatildeo do meio
ldquoo mutacionismo se apresentou em primeiro lugar como uma forma de explicaccedilatildeo dos fatos da evoluccedilatildeo cuja adoccedilatildeo pelos geneticistas reforccedilou ainda o caraacuteter de hostilidade a qualquer atitude de levar em consideraccedilatildeo a influecircncia do meiordquo (cf NP 1990 p112)
Com efeito em La connaissance de la vie no artigo ldquoLe vivant et son
milieurdquo quando reflete sobre o caraacuteter espontacircneo das mutaccedilotildees geneacuteticas como
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explicaccedilatildeo para a evoluccedilatildeo das espeacutecies ele faz uma criacutetica agraves teorias sobre a
geneacutetica da hereditariedade que advogam a autonomia total do vivente em relaccedilatildeo
ao meio isto eacute agravequelas que defendem que a aquisiccedilatildeo pelo vivente de sua forma
e suas funccedilotildees depende integralmente de seu potencial hereditaacuterio e que a accedilatildeo
do meio sobre o fenoacutetipo deixaria intacto o genoacutetipo A seu ver essas posiccedilotildees
natildeo estatildeo livres de criacuteticas pois algumas modificaccedilotildees hereditaacuterias podem ser
obtidas e consolidadas por condiccedilotildees externas sejam elas alimentares climaacuteticas
ou outras muito embora tambeacutem natildeo haja um domiacutenio integral do meio em
relaccedilatildeo a estas modificaccedilotildees
Assim entendendo que tanto a accedilatildeo do meio quanto as mutaccedilotildees
ocorridas espontaneamente e ao acaso isto eacute natildeo dirigidas adaptativamente
concorrem para o processo evolutivo em O normal e o patoloacutegico ele conjuga as
duas perspectivas
ldquoParece atualmente que se deve situar o aparecimento de espeacutecies novas na interferecircncia das inovaccedilotildees por mutaccedilatildeo e das oscilaccedilotildees do meio parece tambeacutem que um darwinismo modernizado pelo mutacionismo eacute a explicaccedilatildeo mais flexiacutevel e mais abrangente do fato da evoluccedilatildeo que apesar de tudo eacute incontestaacutevelrdquo (NP 1990 p112)
Aleacutem disso ainda na mesma obra esclarece que conforme sejamos fixistas
ou transformistas consideraremos de modo diferente o indiviacuteduo mutante Sem se
propor a tratar detidamente desta querela43 apenas diz que apesar das
diferenccedilas teoacutericas tanto os bioacutelogos que contestam ateacute mesmo o fato da
evoluccedilatildeo como os que natildeo admitem que as mutaccedilotildees sejam suficientes para
explicar os fatos da adaptaccedilatildeo e da evoluccedilatildeo - jaacute que os mutantes apesar das
diferenccedilas morfoloacutegicas natildeo saem do quadro da mesma espeacutecie - insistem sobre 43
Ramos (2005) ao tratar do embate dos fixistas e dos transformistas na histoacuteria do pensamento bioloacutegico nota foi somente a partir do seacuteculo XIX que a ideia da substituiccedilatildeo gradativa das espeacutecies por outras atraveacutes de processos adaptativos foi ganhando adeptos Ao contraacuterio do que propunham os fixistas ou criacionistas que acreditavam que as espeacutecies eram imutaacuteveis para os transformistas a adaptaccedilatildeo das espeacutecies somente poderia ser obtida atraveacutes de mudanccedilas Aleacutem disso segundo o autor os termos fixismo e transformismo podem ser aplicados com precisatildeo apenas agraves suas versotildees mais extremas a visatildeo cristatilde ortodoxa eacute claramente fixista enquanto a teoria da evoluccedilatildeo orgacircnica contemporacircnea eacute claramente transformista Cf RAMOS M C A Vecircnus fiacutesica de Maupertuis antigas ideias sobre a geraccedilatildeo reformadas pelo mecanicismo newtoniano Revista Latino-Americana de Filosofia e Histoacuteria da Ciecircncia Satildeo Paulo v 3 n 1 p 79-101 2005
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o caraacuteter subpatoloacutegico patoloacutegico ou mesmo letal da maioria delas Pensando de
outro modo ele acredita que considerando o caraacuteter de novidade que a mutaccedilatildeo
comporta o desvio em relaccedilatildeo ao normal que ela representa se normativo seraacute
conservado pela accedilatildeo da seleccedilatildeo natural44 natildeo tendo necessariamente por
destino a morte
ldquoCom efeito na medida em que no mundo animal ou vegetal uma mutaccedilatildeo pode constituir a origem de uma nova espeacutecie vemos uma norma nascer de um desvio em relaccedilatildeo a uma outra A norma eacute a forma de desvio que a seleccedilatildeo natural conserva Eacute a concessatildeo que a destruiccedilatildeo e a morte fazem ao acasordquo (NP 1990 p237)
E mesmo se considerarmos que as anomalias satildeo frequentemente restritivas
menos duraacuteveis e menos resistentes natildeo podendo explicar a gecircnese das
espeacutecies elas natildeo deixaratildeo de ter o poder de diversificaacute-las De todo modo tendo
em vista a importacircncia das anomalias para a diversificaccedilatildeo adaptaccedilatildeo e ateacute
mesmo para a evoluccedilatildeo das espeacutecies eacute um equivoco consideraacute-la um erro a ser
extirpado
Com efeito nas Novas reflexotildees referentes ao normal e ao patoloacutegico no
capiacutetulo intitulado ldquoUm novo conceito em patologia o errordquo ao problematizar a
ideia de que as alteraccedilotildees bioquiacutemicas hereditaacuterias estudadas pela patologia
molecular como erros de informaccedilatildeo satildeo necessariamente patoloacutegicas
Canguilhem defende a importacircncia destas microanomalias ou
micromonstruosidades para a adaptabilidade dos organismos e ainda contesta a
tese de que o valor vital de um erro geneacutetico provenha das proacuteprias raiacutezes da
organizaccedilatildeo ao niacutevel em que ela eacute apenas estrutura linear e natildeo se estabeleccedila
ao niacutevel do organismo considerado como um todo em conflito com um meio
44
Segundo Giroux (2008) a originalidade de Canguilhem em relaccedilatildeo agrave Goldstein reside na inserccedilatildeo da noccedilatildeo de norma individual na teoria darwiniana da evoluccedilatildeo Singularmente Canguilhem encontra na teoria da seleccedilatildeo natural um fundamento bioloacutegico objetivo agrave normatividade vital pois longe de rejeitar a noccedilatildeo de norma em biologia ela estabelece uma ligaccedilatildeo intriacutenseca entre variabilidade individual e valor vital Agora se a teoria da evoluccedilatildeo reafirma o conceito de normatividade bioloacutegica individual como ele sustenta esta eacute uma tese que tem sido hoje o centro de vivos debates em filosofia da biologia Cf GIROUX E Ny a-t-il de santeacute que de lrsquoindividu Um point de vue eacutepideacutemiologique sur les thegraveses de Canguilhem In FAGOT-LARGEAULT DEBRU D MORANGE M (dir) HAN H-J (eacuted) Philosophie et meacutedecine en hommage agrave Georges Canguilhem (LrsquoHistoire des sicences ndash Textes et Egravetudes) Paris Vrin 2008
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ambiente ldquoAssim como nem todos os germes patogecircnicos determinam uma
infecccedilatildeo em qualquer hospedeiro em qualquer circunstacircncia assim tambeacutem nem
todas as lesotildees bioquiacutemicas constituem a doenccedila de algueacutemrdquo (NP 1990 p256)
Ademais ele diz entender que a noccedilatildeo de erro na composiccedilatildeo bioquiacutemica
dos constituintes do organismo eacute de certo modo aristoteacutelica pois para Aristoacuteteles o
monstro era um erro da natureza que havia se enganado quanto agrave mateacuteria45 Na
mesma trilha a patologia molecular atual ao introduzir em suas teorias o conceito
de erro de informaccedilatildeo pode ser vista como um ldquonovo tipo de aristotelismo com a
condiccedilatildeo eacute claro de natildeo confundir a psicobiologia aristoteacutelica com a tecnologia
moderna das transmissotildeesrdquo (NP 1990 p252) Em vista disso problematizando o
uso da noccedilatildeo de erro em biologia como Simondon e Ruyer46 ele coloca em
questatildeo a importaccedilatildeo da linguagem da teoria da informaccedilatildeo para a bioquiacutemica dos
aminoaacutecidos como coacutedigo e mensagem e a consequente atribuiccedilatildeo aos
elementos do patrimocircnio hereditaacuterio o saber do quiacutemico e do geneticista como se
as enzimas conhecessem as reaccedilotildees tal como a quiacutemica as analisa e pudessem
ignoraacute-las ou ler errado seus enunciados (cf NP 1990 p251)
Tambeacutem em seus Eacutetudes dacuteHistoire et de Philosophie des Sciences
Canguilhem comenta que com a revoluccedilatildeo na geneacutetica ocorrida apoacutes a
descoberta da estrutura do DNA e com a constituiccedilatildeo da biologia molecular foi
operada uma mudanccedila no conhecimento da vida e seus fenocircmenos passaram a 45
Na Ideologia e racionalidade nas ciecircncias da vida Canguilhem esclarece que embora Aristoacuteteles fale em erro da natureza em sua filosofia tal noccedilatildeo servia para dizer que a vida tolerava a imperfeiccedilotildees que o processo teleoloacutegico da vida natildeo era absolutamente eficaz e infaliacutevel Para ele a existecircncia dos monstros atesta que haacute erros da natureza explicaacuteveis pela resistecircncia da mateacuteria agrave informaccedilatildeo pela forma ldquoA forma ou o fim natildeo satildeo necessaacuteria e universalmente exemplares reinam com uma certa toleracircncia de imperfeiccedilatildeordquo (I 1981 p110)
46 Nesta passagem das Novas Reflexotildees eacute agraves obras La cyberneacutetique et lrsquoorigine delrsquoinformation de
Ruyer e Lrsquoindividu et as geneacutese physico-biologique de Simondon que Canguilhem faz referecircncia Com efeito como eles Canguilhem critica a transposiccedilatildeo da loacutegica Ciberneacutetica e da Teoria da Informaccedilatildeo para a Biologia entendendo que se ao tratar da hereditariedade podemos falar em erro de informaccedilatildeo natildeo eacute como falha na reproduccedilatildeo das instruccedilotildees determinadas por um riacutegido programa geneacutetico aos moldes de um computador mas como uma nova orientaccedilatildeo dada por um a priori morfogeneacutetico aberto e flexiacutevel o suficiente para comportar variaccedilotildees quando da necessidade de resoluccedilotildees de problemaacuteticas que se vecirc obrigado a enfrentar quando de seu conflito com o meio Daiacute sua concordacircncia com Ruyer para quem somente o organismo e natildeo a maacutequina produz interpreta e altera informaccedilotildees e com Simondon que considera ser a informaccedilatildeo um modo de resoluccedilatildeo de uma problemaacutetica concreta no interior de um sistema metaestaacutevel inscrito em um meio especiacutefico que eacute o ser vivo
60
ser estudados em outra escala A biologia deixou de usar a linguagem da
mecacircnica da fiacutesica e da quiacutemica claacutessicas para utilizar a linguagem da teoria da
informaccedilatildeo e da comunicaccedilatildeo Agora para compreender a vida faz-se necessaacuterio
saber ler e decifrar suas mensagens ldquomensagem informaccedilatildeo programa coacutedigo
instruccedilatildeo decodificaccedilatildeo tais satildeo os novos conceitos do conhecimento da vidardquo (E
1989 p360)47 Novamente nota que considerar a hereditariedade bioloacutegica como
uma comunicaccedilatildeo de informaccedilatildeo eacute num certo sentido retomar um aristotelismo
admitir que haacute no vivente um logos inscrito conservado e transmitido Para
conhecer a vida natildeo eacute mais preciso recorrer agrave arquitetura e agrave mecacircnica mas agrave
gramaacutetica agrave semacircntica e agrave sintaxe ldquoPara compreender a vida eacute necessaacuterio antes
de ler decriptar a mensagem da vidardquo (E 1989 p362)
Mas eacute na Ideologia e racionalidade nas ciecircncias da vida quando retoma a
discussatildeo realizada nas Novas Reflexotildees tendo em vista que na atualidade satildeo
as modalidades de transmissatildeo da mensagem hereditaacuteria e de reproduccedilatildeo do
programa geneacutetico que determinam a norma ou o desvio complementa sua
argumentaccedilatildeo dizendo que o termo erro soacute natildeo eacute um retorno agrave concepccedilatildeo
aristoteacutelica e medieval que considerava os monstros como erros da natureza pois
agora natildeo lidamos mais com uma imperiacutecia de artesatildeo ou de arquiteto mas com
um lapso de um copista pois de erro da natureza o erro geneacutetico passou ser um
erro de leitura de uma mensagem um erro de reproduccedilatildeo de um texto um erro de
coacutepia (cf I 1981 p104-105) Aqui apesar de natildeo contestar que se deva localizar
na macromoleacutecula do aacutecido desoxirribonucleacuteico a funccedilatildeo conservadora e
inovadora da hereditariedade defende que a normalidade da alteraccedilatildeo bioquiacutemica
natildeo seraacute dada sem a consideraccedilatildeo da relaccedilatildeo que o organismo estabelece com
seu meio
47
Segundo Jacob (1983) a biologia moderna ambicionando interpretar as propriedades dos organismos pela estrutura das moleacuteculas que o constituem inaugura uma ldquonova era do mecanicismordquo na qual o modelo do programa geneacutetico eacute retirado das calculadoras eletrocircnicas e o material geneacutetico do ovo passa a ser comparado agrave fita magneacutetica de um computador Agora ldquoa hereditariedade passa a ser a transferecircncia de uma mensagem repetida de geraccedilatildeo em geraccedilatildeordquo (JACOB 1983 p 257) Cf JACOB F A loacutegica do vivente uma histoacuteria da hereditariedade Op cit
61
ldquoO coacutedigo geneacutetico eacute a conservaccedilatildeo de uma informaccedilatildeo retida apoacutes a eliminaccedilatildeo de erros Mas esses erros natildeo eram erros de combinaccedilatildeo eram erros de tentativa ou de ensaio isto eacute insucessos de alguma combinaccedilatildeo Estes ensaios criavam uma interaccedilatildeo entre organismos e meios As mutaccedilotildees dos genoacutetipos mesmo quando natildeo se revelavam natildeo pertinentes natildeo eram simplesmente desvios a partir de uma regra interna eram tambeacutem uma resposta uma reaccedilatildeo ao meiordquo (I 1981 p104-105)
Malgrado isso de modo equiacutevoco os geneticistas e bioquiacutemicos desconsideram
que os chamados erros do coacutedigo geneacutetico satildeo tentativas ou ensaios da vida
criados em resposta em reaccedilatildeo ao meio e realizam o estudo da estrutura
macromolecular da mateacuteria viva no que haacute de mais proacuteximo da natildeo-vida no
estado maacuteximo de privaccedilatildeo dos seus atributos tradicionais procurando encontrar
a normalidade e a anormalidade a norma e seu desvio nas profundezas do
organismo (cf I 1981 p119)
Destarte apostando na importacircncia do estudo das formaccedilotildees monstruosas
para o conhecimento das normas da vida no prefaacutecio da segunda ediccedilatildeo de O
normal e o patoloacutegico (1950) ao fazer uma anaacutelise criacutetica do seu Ensaio de 43
Canguilhem admite que deveria ter insistido com maior convicccedilatildeo que natildeo haacute a
priori diferenccedila ontoloacutegica entre uma forma viva perfeita e uma malograda e
questiona se seria liacutecito falar em formas vivas malogradas ldquoQue erro pode-se
detectar num ser vivo enquanto natildeo se tiver fixado a natureza de suas obrigaccedilotildees
como ser vivordquo (NP 1990 p13) Tambeacutem neste contexto ele lamenta natildeo ter
tirado maior partido das obras de Etienne Wolff em particular Les changements de
Sexe e La science des Monstres para fortalecer sua tese de que as
monstruosidades como singularidades morfoloacutegicas e funcionais natildeo estando
fora da normalidade mostram que a vida pode se organizar de diferentes formas
traduzindo uma multiplicidade de modos de ser possiacuteveis
Jaacute em La connaissance de la vie no artigo ldquoLe normal et le pathologiquerdquo
ele faz referecircncia aos trabalhos de teratogecircnese experimental48 de Etienne Wolff
48
Em La connaissance de la vie no artigo ldquoLa monstruositeacute et le monstrueuxrdquo Canguilhem esclarece as tentativas de elaboraccedilatildeo cientiacutefica da monstruosidade nascem no seacuteculo XIX do encontro da anatomia comparada e da embriologia reformada pela adoccedilatildeo da teoria da epigecircnese oposta ao preformismo Com efeito eacute no fim deste seacuteculo que Camile Dareste (1822-1899) encorajado por Darwin funda a teratogenia o estudo experimental das condiccedilotildees de produccedilatildeo artificial das monstruosidades visando agrave elucidaccedilatildeo da origem das espeacutecies Seguindo a
62
para em seguida se colocar como um antiacutepoda da teoria aristoteacutelica fixista e
ontoloacutegica Por outro prisma ele afirma natildeo ver o mundo dos seres vivos como
uma hierarquia de formas eternas mas como uma tentativa de hierarquizaccedilatildeo de
formas possiacuteveis Em sua concepccedilatildeo natildeo haacute a priori diferenccedila entre uma forma
acabada e uma forma falha natildeo sendo nem mesmo possiacutevel falar em formas
falhas
ldquoNada pode faltar a um ser vivo caso se admita que haacute mil e uma formas de viver Do mesmo modo que na guerra e na poliacutetica natildeo haacute uma vitoacuteria definitiva mas uma superioridade e um equiliacutebrio relativos e precaacuterios na ordem da vida natildeo haacute resultados que desvalorizem radicalmente outros ensaios fazendo-os parecer faltosos de algo () Eacute o futuro das formas que decide seu valor Todas as formas viventes satildeo para tomar a expressatildeo de Louis Role em sua grande obra Les Poissons lsquomonstros normalizadosrsquordquo (CV 1985 p160)
Assim se Canguilhem atribui novo estatuto aos monstros eacute tambeacutem porque
satildeo eles que nos fazem questionar se devemos falar em leis da vida ou em ordens
da vida isto eacute se em se tratando de vivente temos que consideraacute-lo um sistema
de leis ou uma organizaccedilatildeo de propriedades Com efeito no artigo ldquoLa
monstruositeacute et le monstrueuxrdquo ele explica que eacute a existecircncia dos monstros o que
coloca em questatildeo a vida quanto a seu poder de nos ensinar a ordem porque
estamos acostumados a ver o mesmo engendrar o mesmo Eacute somente porque nos
consideramos efeitos reais das leis da vida que uma diferenccedila morfoloacutegica
aparece a nossos olhos como uma monstruosidade Mas se olharmos por outra
perspectiva ldquoo monstro seria apenas o outro que o mesmo uma ordem outra que
a mais provaacutevelrdquo (CV 1985 p171)49 Portanto eacute o surgimento dos monstros o que
nos faz atribuir agrave vida certa excentricidade pois nos permite dissociar os conceitos
classificaccedilatildeo de Isidore Geoffroy Saint-Hilaire Dareste passa a criar monstruosidades simples a partir de um embriatildeo de galinha procurando estabelecer uma relaccedilatildeo entre as anomalias e as variedades hereditaacuterias no contexto das teorias da evoluccedilatildeo (cf CV 1985 p180)
49 Le Blanc (2010) nota que Canguilhem por natildeo considerar o vivente um sistema de leis mas
uma ordem de propriedades troca a crenccedila na legalidade fundamental da vida pelo valor singular dos indiviacuteduos isto eacute troca a figura uniacutevoca da normalidade pela normatividade plural dos particulares Ou seja ele substitui o conceito fixo de tipo que pressupotildee uma normalidade primeira pelo dinacircmico de ordem associado agrave multiplicidade de modos de vida ldquoa ordem vital natildeo eacute outra que o surgimento pluriforme e pluriacutevoco de modos vitaisrdquo (LE BLANC 2010 p152) Cf LE BLANC G Canguilhem et la vie humaine Paris QuadrigePUF 2010
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de reproduccedilatildeo e de repeticcedilatildeo provando ser a vida capaz de maior liberdade de
exerciacutecio e de transgressatildeo espontacircnea a seus proacuteprios haacutebitos (cf CV 1985
p173)
Ou seja se considerarmos a vida como um sistema de leis adotando para
os fenocircmenos vitais a mesma legalidade dos fenocircmenos fiacutesicos apenas
poderemos esperar dela regularidades e repeticcedilotildees Isto porque se as leis satildeo
invariantes essenciais das quais os fenocircmenos singulares satildeo exemplares
aproximados poreacutem falhos na reproduccedilatildeo integral de sua realidade legal o
singular ou seja o desvio a variaccedilatildeo aparece como um fracasso uma
imperfeiccedilatildeo ou uma impureza (cf CV 1985 p156) Mas de outro modo se
tomarmos a vida como uma ordem de propriedades podemos desenhaacute-la a partir
de uma organizaccedilatildeo de potenciais e uma hierarquia de funccedilotildees na qual a
estabilidade seraacute sempre precaacuteria (cf CV 1985 p 83)50 Por esta perspectiva a
irregularidade a anomalia natildeo seratildeo concebidas como acidentes afetando o
indiviacuteduo mas como sua existecircncia mesma e a singularidade individual natildeo seraacute
interpretada como um erro mas como um ensaio natildeo como uma falta mas como
uma aventura vital (cf CV 1985 p159)
Tambeacutem nos Eacutetudes dacuteHistoire et de Philosophie des Sciences no artigo
ldquoDu singulier et de la singulariteacute em epistemologie biologiquerdquo Canguilhem diz ser
a natureza rica em encruzilhadas e em planos de organizaccedilatildeo Nela a
singularidade morfoloacutegica representada pelo indiviacuteduo mutante joga seu papel
epistemoloacutegico questionando a generalidade anterior em relaccedilatildeo a qual ele se
singularizou Deste ponto de vista a vantagem da singularidade reside em seu
poder de deslocar o sistema que natildeo a comporta certificando a resistecircncia da
50
Segundo Barbara (2008) Canguilhem opotildee o conceito de lei ao de organizaccedilatildeo bioloacutegica Contra a dimensatildeo linear da legalidade dos fenocircmenos fiacutesico-quiacutemicos ele defende a ideia de uma ordem de propriedades organizada de maneira hieraacuterquica e em potecircncia que faz do vivente um sistema dinacircmico no qual o estado de estabilidade assume uma existecircncia muacuteltipla que natildeo pode ser referida a uma normalidade estatiacutestica Cf BARBARA J-G Lrsquoeacutetude du vivant chez Georges Canguilhem des concepts aux objets biologiques In FAGOT-LARGEAULT DEBRU D MORANGE M (dir) HAN H-J (eacuted) Philosophie et meacutedecine en hommage agrave Georges Canguilhem (LrsquoHistoire des sicences ndash Textes et Egravetudes) Paris Vrin 2008
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natureza de se enquadrar em uma camisa de forccedila de leis ou de regras ldquopor suas
singularidades a vida proclama sua barbaacuterierdquo (cf E 1989 p213)
Jaacute na Ideologia e racionalidade nas ciecircncias da vida novamente diz que a
anomalia como uma diferente forma de organizaccedilatildeo ou uma nova ordem vital
pode receber da vida mesma uma valoraccedilatildeo positiva indicativa de sua
normalidade num dado meio Sendo apenas uma ordem da vida menos provaacutevel
ela pode representar uma vantagem para a sobrevivecircncia em condiccedilotildees
ambientais novas (cf I 1981 p116) Aleacutem disso nota que quando falamos em
ordens da vida ou em formas de organizaccedilatildeo de diferentes valores
necessariamente nos referimos a qualidades de certas quantidades fiacutesicas o que
para ele eacute suficiente para colocar a biologia em um quadro especiacutefico de
referecircncia epistemoloacutegica ldquoIsto basta para distinguir a biologia da fiacutesica ainda que
a primeira pareccedila ter ligado o seu proacuteprio destino ao da segundardquo (I 1981 p120)
Com efeito agora seguindo L Lwoff autor de Lrsquoordre biologique para
quem ldquoa uacutenica fonte da ordem bioloacutegica eacute a proacutepria ordem bioloacutegicardquo Canguilhem
procura mostrar que o conceito de normalidade proacuteprio agrave biologia eacute estranho agrave
epistemologia da fiacutesica e da quiacutemica A seu ver mesmo para uma epistemologia
unitaacuteria ainda que materialista haacute uma diferenccedila radical entre estas ciecircncias pois
as anomalias as doenccedilas e a morte natildeo satildeo problemas fiacutesico-quiacutemicos mas
bioloacutegicos ldquoA doenccedila e a morte dos seres vivos que produziram a fiacutesica tantas
vezes com risco das suas vidas natildeo satildeo problemas de fiacutesica A doenccedila e a morte
dos fiacutesicos e bioacutelogos vivos satildeo problemas de biologiardquo (I 1981 p122) Exemplo
disso eacute que uma base nucleacuteica do material geneacutetico pode ser acidentalmente
substituiacuteda por outra e para o fiacutesico mesmo que tal mutaccedilatildeo seja letal nada
mudou pois a carga de entropia negativa natildeo variou Jaacute para o bioacutelogo a
mudanccedila de qualidade de uma certa quantidade fiacutesica pode fazer com que o
organismo se torne incapaz de funcionar normalmente cabendo a ele portanto e
natildeo ao fiacutesico mostrar qual o sentido vital desta alteraccedilatildeo (cf I 1981 p120)
Tambeacutem em La connaissance de la vie ao tratar da importacircncia dos
monstros para a ldquoapreciaccedilatildeo concreta e completa dos valores da vidardquo ele
65
apresenta a monstruosidade como uma forma de insurreiccedilatildeo contra a legalidade
da natureza imposta pela fiacutesica e filosofia mecanicistas e afirma que eacute por natildeo
haver o conceito de normalidade em fiacutesica e em mecacircnica que somente aos
organismos pode ser atribuiacuteda a qualificaccedilatildeo de monstros ldquoEacute necessaacuterio reservar
somente aos seres orgacircnicos a qualificaccedilatildeo de monstros Natildeo haacute monstro mineral
Natildeo haacute monstro mecacircnicordquo (CV 1985 p171)
Na mesma direccedilatildeo em O normal e o patoloacutegico considerando que natildeo haacute
uma ciecircncia especial das anomalias fiacutesicas ou quiacutemicas como haacute na biologia uma
ciecircncia dos tipos normativos de vida em suas diferentes formas e
comportamentos vitais Canguilhem nota que a histoacuteria das anomalias e a
teratologia constituem um capiacutetulo obrigatoacuterio que traduz a originalidade das
ciecircncias bioloacutegicas (cf NP 1990 p105)
Assim apostando na especificidade das ciecircncias da vida Canguilhem
acaba por se filiar agrave tradiccedilatildeo vitalista que em sua genealogia vai de Hipoacutecrates e
Aristoacuteteles agrave Driesch agrave von Monakow agrave Goldstein passando por van Helmont
Barthez Blumenbach Bichat Lamarck51 e J Muumlller sem excluir Claude
Bernard52 Isto porque na histoacuteria das ciecircncias da vida foram os vitalistas que ao
se recusarem a aliar seu objeto de estudo aos dos fiacutesicos e dos quiacutemicos
colocando um freio agrave ambiccedilatildeo anexionista das ciecircncias da mateacuteria possibilitaram
51
Ainda na coletacircnea La connaissance de la vie no artigo ldquoLe vivant et son milieurdquo Canguilhem diz considerar o lamarckismo um vitalismo porque em sua teoria diferentemente da de Darwin haacute uma originalidade na vida que o meio ignora (cf CV 1985 p136)
52 De acordo com Canguilhem saber se Claude Bernard era ou natildeo materialista ou vitalista eacute uma
questatildeo que gera polecircmica (cf NP 1990 p50) A seu ver Claude Bernard para refutar o vitalismo de Bichat que considera ser um indeterminismo se empenha em afirmar a legalidade dos fenocircmenos vitais sua constacircncia rigorosa em condiccedilotildees definidas que pode ser aquela dos fenocircmenos fiacutesicos (cf CV 1985 p 157) Natildeo obstante nas suas Leccedilons sur les phenoacutemegravenes de la vie (1878) refutando o materialismo mecanicista ele afirma a originalidade da forma viva e de suas atividades funcionais Para Claude Bernard apesar das manifestaccedilotildees vitais estarem sob a ldquoinfluecircncia direta da fiacutesico-quiacutemicardquo essas condiccedilotildees natildeo poderiam agrupar harmonizar os fenocircmenos na ordem e na sucessatildeo em que se apresentam nos seres vivos (cf NP 1990 p51) Segundo Dutra (2001) Claude Bernard se declarou estar fora tanto do vitalismo quanto do materialismo Foi sua insistecircncia na investigaccedilatildeo do determinismo fiacutesico-quiacutemico dos fenocircmenos da vida que levou muitos comentadores a vecirc-lo como materialista assim como suas criacuteticas ao materialismo que julgava insuficiente levou alguns a consideraacute-lo vitalista (cf DUTRA 2001 p149) Para saber mais sobre Claude Bernard o vitalismo e o materialismo Cf DUTRA LHA A epistemologia de Claude Bernard (Coleccedilatildeo CLE v33) Campinas UNICAMP Centro de Loacutegica Epistemologia e Histoacuteria da Ciecircncia 2001
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a constituiccedilatildeo da biologia como ciecircncia independente atraveacutes da constituiccedilatildeo de
um objeto e consequentemente de um campo de conhecimento e meacutetodos de
investigaccedilatildeo proacuteprios (cf CV 1985 p84)
Com efeito trabalhando para que a biologia natildeo se tornasse um braccedilo
menor da fiacutesica ou da quiacutemica Canguilhem lembra que foi Bichat quem defendeu
haver uma distinccedilatildeo entre as forccedilas vitais que regem os corpos organizados e as
leis fiacutesico-quiacutemicas e que foi sob sua influecircncia que Comte e Claude Bernard
afirmaram que a experimentaccedilatildeo bioloacutegica natildeo deve ser uma coacutepia dos princiacutepios
e praacuteticas da experimentaccedilatildeo fiacutesico-quiacutemica devendo o bioacutelogo inventar uma
teacutecnica experimental proacutepria (cf CV 1985 p 25-26) Isso porque para o autor
das Recherches sur la Vie et la Mort (1800) a fiacutesica e a quiacutemica satildeo
complementares porque as mesmas leis presidem os seus fenocircmenos ldquoMas um
imenso intervalo as separa da ciecircncia dos corpos organizados porque existe uma
enorme diferenccedila entre suas leis e as da vidardquo (CV 1985 p95)
Na trilha bichatiana tambeacutem para Canguilhem natildeo eacute possiacutevel explicar os
fenocircmenos orgacircnicos ou vitais atraveacutes das leis da fiacutesico-quiacutemica pois no
organismo sob a vigecircncia das mesmas leis podem ocorrer variaccedilotildees normativas
de diferentes qualidades ou sentidos vitais ldquoocorre com os estados do organismo
o mesmo que com a muacutesica as leis da acuacutestica natildeo satildeo violadas numa cacofonia
mas natildeo se pode concluir daiacute que qualquer combinaccedilatildeo de sons seja agradaacutevelrdquo
(NP 1990 p35) Isto eacute enquanto as leis satildeo imposiccedilotildees as normas satildeo
proposiccedilotildees enquanto as leis satildeo invariaacuteveis e indiferentes as normas bioloacutegicas
satildeo variaacuteveis e flutuantes podendo receber diferentes valoraccedilotildees bioloacutegicas
ldquoQuando os dejetos da assimilaccedilatildeo deixam de ser excretados por um organismo e obstruem ou envenenam o meio interno tudo isso com efeito esta de acordo com a lei (fiacutesica quiacutemica etc) mas nada disso estaacute de acordo com a norma que eacute a atividade do proacuteprio organismordquo (NP 1990 p98)
Daiacute sua concordacircncia com Goldstein para quem a anaacutelise fiacutesico-quiacutemica do
vivente pode e deve ser feita pois tem um interesse teoacuterico e praacutetico Mas ela
67
constitui um capiacutetulo da fiacutesica tendo a biologia todo o resto a fazer (cf CV 1985
p147)
Assim como os vitalistas Canguilhem recusa o mecanicismo cartesiano e o
reducionismo fiacutesico-quiacutemico mas apesar de simpaacutetico agrave tradiccedilatildeo vitalista natildeo iraacute
se identificar plenamente a ela Criacutetico do vitalismo claacutessico por sua aproximaccedilatildeo
ao animismo sthaliniano ele natildeo vai advogar em favor da existecircncia de uma ldquoforccedila
vitalrdquo irredutiacutevel agraves forccedilas da mateacuteria de uma ldquoalmardquo como essecircncia abstrata
metafiacutesica Ele natildeo fala em princiacutepio vital como fez Barthez em forccedila vital como
Bichat em enteleacutequia como Driesch ou em hormegrave como von Monakow Embora
acredite que as propriedades da mateacuteria viva natildeo se reduzem agraves leis da fiacutesico-
quiacutemica53 ele procura natildeo cometer a falta indesculpaacutevel de alguns vitalistas de
inserir o vivente em um meio fiacutesico do qual ele constituiria uma exceccedilatildeo (cf CV
1895 p95)54
Malgrado isso apostando na vitalidade e na fecundidade do vitalismo55
Canguilhem se coloca em concordacircncia com todos aqueles que consideram
53
Prochiantz (1993) observa que embora materialista Canguilhem recusa o reducionismo fiacutesico-quiacutemico abusivamente qualificado de materialismo Com efeito ao avaliar a influecircncia de Claude Bernard em seu pensamento nota que ele se coloca contrariamente agraves teorias mecanicistas e termodinamicistas de tradiccedilatildeo fisicalista adotando uma concepccedilatildeo de vida que apesar de materialista daacute agraves ciecircncias bioloacutegicas a sua especificidade como estudo da criaccedilatildeo do desenvolvimento da manutenccedilatildeo e da evoluccedilatildeo das formas vivas Sobre o assunto confira PROCHIANTZ A Le mateacuterialisme de Georges Canguilhem In BADIOU A (et al) Georges Canguilhem Philosophe historien des sciences Actes du colloque (6 7 8 deacutecembre 1990) Paris Albin Michel 1993
54 Han (2008) acredita que com esta afirmaccedilatildeo Canguilhem foi injusto com os vitalistas sobretudo
com Bichat para quem as leis da vida se unem agraves leis da fiacutesico-quiacutemica e interagem com elas Segundo ele Canguilhem negligencia o aspecto positivo do vitalismo francecircs tendo dele uma imagem preacute-concebida Segundo o comentador Canguilhem natildeo tematizou a heuriacutestica positiva do vitalismo talvez porque a maior parte das foacutermulas vitalistas da Escola de Montpellier ele tenha retirado de fontes indiretas como da obra historiograacutefica da medicina de Charles Daremberg Apesar disso ele admite que Canguilhem procurou fazer justiccedila ao vitalismo ao apresentar sua vitalidade e fecundidade ainda que de modo imperfeito Cf HAN H-J Georges Canguilhem et le vitalisme franccedilais remarques sur les ldquoaspects du vitalismerdquo In FAGOT-LARGEAULT DEBRU D MORANGE M (dir) HAN H-J (eacuted) Philosophie et meacutedecine en hommage agrave Georges Canguilhem (LrsquoHistoire des sicences ndash Textes et Egravetudes) Paris Vrin 2008
55 Para Canguilhem no artigo ldquoAspects du Vitalismerdquo testemunho da fecundidade do vitalismo eacute o
fato de que C F Wolff (1733-1794) adepto das concepccedilotildees vitalistas foi considerado o fundador da embriologia moderna graccedilas agraves observaccedilotildees microscoacutepicas que realizou dos momentos sucessivos do desenvolvimento do ovo Outro vitalista von Baer depois de ter descoberto em 1827 o ovo dos mamiacuteferos desenvolveu a teoria dos folhetos (ectoderma mesoderma e endoderma) a partir das observaccedilotildees que realizou das primeiras formaccedilotildees embrionaacuterias A
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estreito e insuficiente o antigo dogma da teoria mecanicista do organismo56 pois
percebe que ao tempo em que a maacutequina eacute heteropoeacutetica dependente de uma
orientaccedilatildeo normativa externa o organismo como uma totalidade autorregulada eacute
autopoeacutetico capaz de propor a si mesmo suas proacuteprias normas (cf CV 1985
p24) Daiacute a seu ver a insuficiecircncia de uma biologia que se submete
completamente ao espiacuterito das ciecircncias exatas dissolvendo no anonimato de um
meio mecacircnico fiacutesico e quiacutemico esses centros de organizaccedilatildeo adaptaccedilatildeo e
invenccedilatildeo que satildeo os seres vivos (cf CV 1985 p153)
Defendendo assim como os vitalistas ser o organismo irredutiacutevel a uma
composiccedilatildeo mecacircnica57 Canguilhem considera ser o meacutetodo analiacutetico proacuteprio agraves
ciecircncias da mateacuteria insuficiente para dar conta dos fenocircmenos bioloacutegicos jaacute que o
ser vivo natildeo eacute um segmento ou uma parte mas um todo ldquoa vida de um ser vivo eacute
para cada um de seus elementos a accedilatildeo imediata da copresenccedila de todosrdquo (NP
1990 p226)58 Como um conjunto integrado ou um todo organizado o organismo
natildeo vive de modo segmentado como eacute percebido pelo anatomista Sua proacutepria
histoacuteria da teoria celular tambeacutem mostra entre seus precursores e fundadores mais vitalistas que mecanicistas Schwann considerado como aquele que estabeleceu as leis gerais da formaccedilatildeo celular (1838) tambeacutem poderia ter sido favoraacutevel a certas concepccedilotildees antimecanicistas em razatildeo de sua crenccedila na existecircncia de um blastocircmero formador o que indica que o vivente natildeo eacute um mosaico ou uma colisatildeo de ceacutelulas Mesmo Virchow hostil agrave teoria do blastocircmero formador e considerado um ldquomecanicista convictordquo pensava que as ceacutelulas apareciam por precipitaccedilatildeo de uma substacircncia fundamental A afirmaccedilatildeo de que toda ceacutelula proveacutem de uma ceacutelula preacute-existente natildeo deixa de ter caraacuteter vitalista (cf CV 1985 p92-93) Outro domiacutenio que os vitalistas podem reivindicar descobertas autecircnticas eacute o da neurologia A teoria do reflexo por exemplo deve mais a vitalistas como Willis (1621-1675) e Pfluumlger (1829-1910) que aos mecanicistas ldquoa mecanizaccedilatildeo ulterior da teoria do reflexo em nada modifica suas origensrdquo (CV 1990 p93)
56 Aqui Canguilhem entra em concordacircncia com os bioacutelogos marxistas atraveacutes de um elogio agrave
interpretaccedilatildeo dialeacutetica dos fenocircmenos bioloacutegicos Segundo ele se a dialeacutetica em biologia eacute justificaacutevel eacute porque reconhece na vida sua espontaneidade proacutepria sua rebeldia agrave mecanizaccedilatildeo caracteriacutesticas que suscitaram o renascimento do vitalismo Assim ldquoAtentos ao que a vida apresenta de invenccedilatildeo e irredutibilidade os bioacutelogos marxistas deveriam louvar no vitalismo sua objetividade diante de certas caracteriacutesticas da vidardquo (CV 1985 p99)
57 Segundo Canguilhem Lapassade Piquemal e Ulmann (2003) em Du deacuteveloppement agrave
leacutevolution au XIXe siegravecle o fio condutor da totalidade eacute a afirmaccedilatildeo da estrutura orgacircnica
essencialmente irredutiacutevel a uma composiccedilatildeo mecacircnica (cf D 2003 p16) Cf CANGUILHEM G LAPASSADE G PIQUEMAL J ULMANN J Du deacuteveloppement agrave leacutevolution au XIX
e siegravecle Paris
QuadrigePUF 2003
58 Com efeito de acordo com Canguilhem eacute a escola vitalista francesa que propotildee uma imagem
de vida transcendente ao entendimento analiacutetico o organismo natildeo pode ser compreendido como um mecanismo pois a vida eacute irredutiacutevel a uma composiccedilatildeo de partes materiais (cf CV 1985 p63)
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necessidade de alimentos energia movimento repouso entre outras tem como
sede o organismo em sua totalidade Mesmo seus dispositivos de regulaccedilatildeo59 e
homeostase60 se exercendo por meio de um sistema nervoso e endoacutecrino
exprimem a integraccedilatildeo das partes ao todo ldquoEacute esta a razatildeo pela qual no interior do
organismo natildeo haacute propriamente distacircncia entre os oacutergatildeos natildeo haacute exterioridade
das partesrdquo (NP 1990 p225) Portanto o organismo como totalidade integrada
somente poderaacute ser percebido a partir de uma siacutentese e natildeo de uma anaacutelise isto
eacute apenas poderaacute ser apreendido atraveacutes de uma visatildeo de conjunto e natildeo pela
divisatildeo de seus componentes
Em La connaissance de la vie no artigo ldquoLa theacuteorie cellulairerdquo Canguilhem
nota que o advento da teoria celular fortaleceu o meacutetodo de investigaccedilatildeo analiacutetico
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Na Ideologia e racionalidade nas ciecircncias da vida em ldquoA formaccedilatildeo do conceito de regulaccedilatildeo bioloacutegica nos seacuteculos XVIII e XIXrdquo Canguilhem mostra que foi Hans Driesch (1867-1941) autor da obra Die Organischen Regulationen (1901) quem ao reconhecer nos primeiros blastocircmeros uma capacidade de impor ou transformar de uma parte uma regra de conformidade com a estrutura de um todo fez com que os embriologistas pudessem confirmar o reconhecimento jaacute realizado pelos fisiologistas da existecircncia de funccedilotildees controladoras de outras funccedilotildees que pela manutenccedilatildeo de certas constantes permitiam ao organismo comportar-se como um todo A estas funccedilotildees no ultimo terccedilo do seacuteculo XIX foi dado o nome de ldquoregulaccedilatildeordquo Segundo Canguilhem este termo inicialmente um conceito de ordem mecacircnica e poliacutetica foi introduzido metaforicamente na fisiologia numa eacutepoca em que as funccedilotildees por ele designadas estavam longe de serem compreendidas a partir de uma teoria geral das regulaccedilotildees e da homeostasia orgacircnica Apenas depois de Claude Bernard o termo ldquoregulaccedilatildeordquo entrou para o vocabulaacuterio da fisiologia natildeo como metaacutefora mas com reconhecimento cientiacutefico ldquoa regulaccedilatildeo bernardiana que se fundamenta na estabilidade interna das condiccedilotildees necessaacuterias da vida dos elementos celulares permite ao organismo enfrentar os acasos do meio ambiente pois esta regulaccedilatildeo consiste num mecanismo de compensaccedilatildeo de desequiliacutebriosrdquo (I 1981 p88)
60 Canguilhem esclarece que foi W B Cannnon bioacutelogo contemporacircneo quem expocircs em La
sagesse du Corps a teoria da homeostase teoria segundo a qual o organismo estaacute em estado permanente de equiliacutebrio controlado mantido contra as influecircncias perturbadoras de origem externa sendo a vida orgacircnica uma ordem de funccedilotildees precaacuterias e ameaccediladas mas constantemente restabelecidas por um sistema de regulaccedilotildees ldquoas regulaccedilotildees para as quais Cannon inventou o termo geral de homeostasia satildeo do tipo das que Claude Bernard havia reunido sob a denominaccedilatildeo de constantes do meio interno Satildeo normas de funcionamento orgacircnico como a regulaccedilatildeo dos movimentos respiratoacuterios sob a accedilatildeo da taxa de aacutecido carbocircnico dissolvido no sangue a termorregulaccedilatildeo no animal de temperatura constante etcrdquo (NP 1990 p235) Ele esclarece ainda que hoje aleacutem destas outras formas de regulaccedilatildeo devem ser levadas em consideraccedilatildeo no estudo das estruturas orgacircnicas e na gecircnese destas estruturas pois a embriologia experimental contemporacircnea descobriu que existem regulaccedilotildees morfoloacutegicas que durante o desenvolvimento embrionaacuterio conservam ou estabelecem a integridade da forma especiacutefica e prolongam sua accedilatildeo organizadora na reparaccedilatildeo de certas mutilaccedilotildees ldquoDe modo que se pode classificar em trecircs tipos o conjunto de normas graccedilas agraves quais os seres vivos se apresentam como um mundo distinto normas de constituiccedilatildeo normas de reconstituiccedilatildeo e normas de funcionamentordquo (NP 1990 p235)
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e recolocou a questatildeo do todo e da parte em biologia61 Aqui o teor de sua criacutetica
eacute que epistemologicamente a teoria das moleacuteculas orgacircnicas ilustra bem como
uma teoria bioloacutegica pode nascer do prestiacutegio de uma ciecircncia fiacutesica
ldquoA teoria das moleacuteculas orgacircnicas ilustra um meacutetodo de explicaccedilatildeo o meacutetodo analiacutetico e privilegia um tipo de imaginaccedilatildeo a imaginaccedilatildeo do descontiacutenuo () Um organismo eacute um mecanismo no qual o efeito global resulta necessariamente da conjunccedilatildeo de partes A verdadeira individualidade vivente eacute molecular monaacutedicardquo (CV 1985 p 56)
Tambeacutem nos Eacutetudes dacuteHistoire et de Philosophie des Sciences no artigo
ldquoLe tout et la partie dans la penseacutee biologiquerdquo ele opotildee a ideia de corpo como
agregado de ceacutelulas independentes a de totalidade orgacircnica Nota tambeacutem que
ateacute mesmo a atividade reflexa aparentemente segmentar e localizada deve ser
considerada como uma resposta do organismo como um todo a um estiacutemulo
externo pois o reflexo natildeo eacute um mecanismo elementar e riacutegido traduzido por uma
resposta muscular isolada a um estiacutemulo pontal Ele eacute uma reaccedilatildeo do organismo
como um todo a uma modificaccedilatildeo de sua relaccedilatildeo com o meio (cf E 1989 p303)
Por isso assim como Goldstein ele acredita que apesar de ser possiacutevel isolar as
partes de um todo natildeo eacute possiacutevel compor o todo a partir das partes sendo o
reflexo um fenocircmeno desta totalidade (cf E 1989 p328)
Ainda na mesma obra realizando um paralelo entre a forma como
Aristoacuteteles e Descartes conceberam o todo e a parte nos organismos Canguilhem
lembra que se no pensamento aristoteacutelico o vivente eacute visto como uma totalidade
natildeo entendida como a simples soma de partes havendo uma subordinaccedilatildeo das
partes ao todo jaacute no cartesiano o uso do modelo mecacircnico daacute ideia de que as
61
Segundo Jacob (1983) a teoria celular fez uma primeira grande objeccedilatildeo ao vitalismo que havia presidido agrave fundaccedilatildeo da biologia rejeitando uma de suas exigecircncias fundamentais a ideia de totalidade indivisiacutevel ldquoSatildeo precisamente estas ideacuteias de totalidade e de continuidade que Schwann contesta considerando natildeo mais a composiccedilatildeo elementar dos seres vivos mas as causas que regem duas de suas principais propriedades a nutriccedilatildeo e o crescimento Adotando-se o ponto de vista vitalista eacute preciso situar as causas destes dois fenocircmenos no conjunto do organismo () Mas pode-se tambeacutem considerar que em cada ceacutelula as moleacuteculas satildeo articuladas de forma a permitir que a ceacutelula atraia outras moleacuteculas e cresccedila por si mesma As propriedades do vivo natildeo podem mais ser atribuiacutedas ao todo mas a cada parte a cada ceacutelula que de certa forma possui uma lsquovida independentersquordquo (JACOB p124-125) Cf JACOB F A loacutegica do vivente uma histoacuteria da hereditariedade (Trad Acircngela Loreiro de Souza) Op cit
71
partes do organismo se compotildeem segundo uma ordem necessaacuteria e invariaacutevel e
que o todo como estrutura estaacutetica eacute o produto da composiccedilatildeo destas partes (cf
E 1989 p325) Considerando que uma lesatildeo no organismo natildeo abole
necessariamente sua plasticidade por exemplo que a destruiccedilatildeo parcial das
ceacutelulas nervosas natildeo acarreta necessariamente a perda da funccedilatildeo global do
ceacuterebro - o que mostra certa independecircncia de suas funccedilotildees em relaccedilatildeo agrave
integridade de sua estrutura ndash ele se recusa a reduzir a totalidade orgacircnica a um
conjunto de mecanismos no qual toda funccedilatildeo estaria na dependecircncia da estrutura
estaacutetica a qual estaacute referenciada (cf E 1989 p315)
Na mesma direccedilatildeo em La connaissance de la vie ao procurar diferenciar a
maacutequina de um organismo ele define um mecanismo como uma junccedilatildeo de soacutelidos
em movimento reunidos de forma tal que o movimento natildeo pode abolir a
configuraccedilatildeo do conjunto ldquoportanto em toda maacutequina o movimento eacute funccedilatildeo da
junccedilatildeo e o mecanismo da configuraccedilatildeordquo (CV 1985 p103) Os movimentos
produzidos mas natildeo criados pela maacutequina satildeo deslocamentos geomeacutetricos e
mensuraacuteveis e a configuraccedilatildeo consiste apenas em um sistema de ligaccedilotildees
comportando graus de liberdade determinados que dependem do movimento dos
soacutelidos em contato O mecanismo eacute ainda um conjunto de partes deformaacuteveis
que necessita de restauraccedilatildeo perioacutedica das relaccedilotildees estabelecidas entre estas
mesmas partes Uma maacutequina assim definida natildeo se basta a si mesma pois
depende natildeo soacute da engenhosidade de um construtor mas tambeacutem da vigilacircncia
de um maquinista
ldquoNo caso da maacutequina a construccedilatildeo lhe eacute estrangeira e supotildee a engenhosidade de um mecacircnico a conservaccedilatildeo exige a observaccedilatildeo e a vigilacircncia constantes de um maquinista e sabemos a que ponto certas maacutequinas complicadas podem ser irremediavelmente perdidas por falta de atenccedilatildeo ou de vigilacircncia Quanto a sua regulaccedilatildeo e a sua reparaccedilatildeo elas supotildeem igualmente a intervenccedilatildeo perioacutedica da accedilatildeo humanardquo (CV 1985 p116)
Desta forma embora pareccedila que Descartes ao identificar o organismo a um
mecanismo fez desaparecer toda a teleologia da vida a construccedilatildeo de uma
maacutequina natildeo se compreende sem um construtor nem sem uma finalidade ldquoUma
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maacutequina eacute feita pelo homem e para o homem em vista de alguns fins a obter sob
a forma de efeitos a produzirrdquo (cf CV 1985 p114)62 Jaacute o organismo natildeo possui
como a maacutequina um teacutelos predeterminado definido por uma razatildeo exterior a ele
Ensejando finalidades possiacuteveis a vida age segundo um empirismo ldquoA vida eacute
experiecircncia quer dizer improvisaccedilatildeo utilizaccedilatildeo de ocorrecircncias ela eacute tentativa em
todos os sentidosrdquo (CV 1985 p118)
Com efeito segundo Canguilhem enquanto a maacutequina apresenta uma
finalidade determinada realizando um programa previamente traccedilado no
organismo haacute a possibilidade de numa situaccedilatildeo acidental um oacutergatildeo adequar-se a
novas condiccedilotildees servindo a funccedilotildees imprevistas Exemplo disso eacute o caso da
hemiplegia direita na infacircncia que jamais eacute acompanhada de afasia pois outras
aacutereas natildeo lesadas do ceacuterebro acabam por assumir a funccedilatildeo da linguagem A seu
ver tal polivalecircncia dos oacutergatildeos eacute o que mostra ser a finalidade mais conveniente a
uma maacutequina que ao organismo ldquoUm organismo tem portanto mais liberdade de
accedilatildeo que uma maacutequina Ele eacute menos finalidade e mais potencialidaderdquo (CV 1985
p118)
Aleacutem disso se na maacutequina todo o efeito eacute dependente da ordem das
causas o organismo nem sempre segue o princiacutepio de causalidade para o qual
todo efeito tem uma causa e as mesmas causas produzem nas mesmas
condiccedilotildees os mesmos efeitos Experiecircncias de alguns neovitalistas como as
realizadas por Driesch sobre a totipotencialidade dos primeiros blastocircmeros
provam que o embriatildeo natildeo encerra uma ldquomaquinaria especiacuteficardquo como pensava
62
Acreditamos que neste aspecto Canguilhem concordaria com Bergson para quem o mecanicismo e finalismo natildeo seriam mais do que faces de uma mesma moeda Com efeito em A evoluccedilatildeo criadora ele explica porque recusa tanto a hipoacutetese mecanicista quanto a finalista para a compreensatildeo da evoluccedilatildeo dos viventes ldquouma teoria mecanicista seraacute aquela que nos faraacute assistir agrave construccedilatildeo gradual da maacutequina sob a influecircncia de circunstacircncias exteriores intervindo diretamente por uma accedilatildeo sobre os tecidos ou indiretamente pela accedilatildeo dos mais adaptados () O mecanicismo entatildeo censuraraacute com razatildeo o finalismo por seu caraacuteter antropomoacuterfico Mas natildeo percebe que ele proacuteprio procede segundo esse meacutetodo simplesmente mutilando-o Sem duacutevida faz taacutebula rasa do fim perseguido ou do modelo ideal Mas quer ele tambeacutem que a natureza tenha trabalhado como o operaacuterio humano juntando partesrdquo (BERGSON 2005 p97) Cf BERGSON H A evoluccedilatildeo criadora (Trad Bento Prado Neto) Op cit
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Descartes63 Isso porque em seu processo de formaccedilatildeo pode haver indiferenccedila
do efeito em relaccedilatildeo agrave ordem das causas e tambeacutem a reduccedilatildeo quantitativa da
causa pode natildeo trazer uma alteraccedilatildeo qualitativa no efeito o que mostra que o
desenvolvimento embrionaacuterio dificilmente pode ser reduzido a um esquema
mecacircnico (cf CV 1985 p92)
Na mesma direccedilatildeo em O normal e o patoloacutegico Canguilhem esclarece que
enquanto a maacutequina apresenta uma rigidez funcional por seguir uma finalidade
riacutegida e univalente ditada pela razatildeo de seu construtor no organismo natildeo haacute uma
finalidade predeterminada pois eacute improvisando que ele descobre seus fins
possiacuteveis64 Desta forma se eacute possiacutevel atribuir uma finalidade agrave vida ela somente
pode ser pensada num sentido organiacutesmico65 Ela somente poderaacute ser
operacional e natildeo real ontoloacutegica
ldquoSe existisse uma finalidade perfeita consumada um sistema completo de relaccedilotildees de conveniecircncia orgacircnica o proacuteprio conceito de finalidade natildeo teria nenhum sentido como conceito como projeto ou modelo para pensar a vida pela simples razatildeo de
63
Com efeito de acordo com Jacob (1983) para falar do desenvolvimento embrionaacuterio Descartes em Formation de lrsquoanimal utiliza termos semelhantes aos que mais tarde Laplace empregaraacute para descrever os movimentos do universo ldquoSe se conhecesse bem todas as partes da semente de uma espeacutecie de animal em particular por exemplo do homem seria possiacutevel deduzir por razotildees certas e matemaacuteticas a forma e a conformaccedilatildeo de cada um de seus membrosrdquo (DESCARTES In JACOB 1983 p60) In JACOB F A loacutegica da vida uma histoacuteria da hereditariedade (Trad Acircngela Loreiro de Souza) 2ordf ed Rio de Janeiro Ediccedilotildees Graal 1983
64 Para Puttini e Pereira Jr (2007) Canguilhem adota uma posiccedilatildeo antimecanicista mas sem
precisar com isto aceitar uma concepccedilatildeo teleoloacutegica sobre a vida como fizeram os vitalistas A respeito disto comentam que o sucesso da fiacutesica de Galileu e Newton fez com que ela servisse de modelo para as demais ciecircncias Utilizando apenas trecircs esquemas causais para a explicaccedilatildeo do movimento dos corpos (material formal e eficiente) a fiacutesica moderna excluiu a causa final proposta por Aristoacuteteles frequentemente evocada para explicar os fenocircmenos da vida e da sauacutede Os vitalistas insatisfeitos com o modelo mecanicista do universo se empenharam em provar a partir dos mesmos meacutetodos experimentais a existecircncia de uma teleologia vital para diferenciar as forccedilas fiacutesicas das forccedilas vitais O ponto de vista dos comentadores eacute o de que Canguilhem teve como os vitalistas o interesse em propor uma metodologia apropriada agraves ciecircncias da vida mas isso natildeo o fez afirmar a existecircncia de um princiacutepio vital teleoloacutegico Cf PUTTINI R F PEREIRA JR A Aleacutem do mecanicismo e do vitalismo a ldquonormatividade da vidardquo em Georges Canguilhem Op cit
65 Hacking (2007) alinha Canguilhem agrave tradiccedilatildeo aristoteacutelica por ele associar intimamente uma
teleologia agrave vida mas natildeo por procurar compreender a existecircncia dos organismos por seus fins mas por tentar compreender um aspecto do organismo por exemplo um oacutergatildeo considerando somente a razatildeo pela qual ele serve agrave preservaccedilatildeo do organismo ou de sua espeacutecie (cf HACKING 2007 p116) Cf HACKING I Canguilhem parmi les cyborgs In BAUNSTEIN J-F (org) Histoire des sciences et politique du vivant Paris Presses Universitaires de France ndash PUF 2007
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que natildeo haveria motivo para pensar nem razatildeo para o pensamento natildeo havendo nenhuma defasagem entre a organizaccedilatildeo possiacutevel e a organizaccedilatildeo real O pensamento da finalidade exprime a limitaccedilatildeo da finalidade da vida Se esse conceito tem um sentido eacute porque ele eacute o conceito de um sentido o conceito de uma organizaccedilatildeo possiacutevel e portanto natildeo garantidordquo (NP 1990 p256)
Ademais na mesma medida em que Canguilhem recusa a ideia de que os
fenocircmenos orgacircnicos seguem uma causalidade mecacircnica e apresentam uma
finalidade invariaacutevel como num mecanismo no qual haacute uma sequecircncia necessaacuteria
de operaccedilotildees que visa a um fim dado definido por uma razatildeo exterior a ela ele
tambeacutem nega a possibilidade dele ser comparado a uma sociedade na qual as
regras satildeo sempre exteriores ao conjunto de indiviacuteduos que a compotildeem Por isso
ao comparar as normas orgacircnicas agraves normas sociais conclui que eacute devido ao fato
das normas vitais serem internas e atuarem sem deliberaccedilatildeo ou caacutelculo que o
organismo natildeo pode ser comparado a uma sociedade na qual como na maacutequina
as normas satildeo exteriores devendo ser sempre representadas aprendidas
rememoradas aplicadas
ldquoA ordem social eacute um conjunto de regras com as quais seus servidores ou seus beneficiaacuterios de qualquer modo seus dirigentes tecircm que se preocupar A ordem vital eacute constituiacuteda por um conjunto de regras vividas sem problemasrdquo (NP 1990 p211)
Jaacute nos Escritos sobre medicina refletindo sobre o problema das regulaccedilotildees
no organismo e na sociedade esclarece que o fato de uma sociedade ser
organizada natildeo quer dizer que ela seja orgacircnica A seu ver ela eacute mais da ordem
de uma maacutequina que de um organismo
ldquoNatildeo haacute sociedade sem regulaccedilatildeo natildeo haacute sociedade sem regra mas natildeo haacute na sociedade auto-regulaccedilatildeo Nela a regulaccedilatildeo eacute sempre acrescentada se assim posso dizer e sempre precaacuteriardquo (EM 2005 p85)
Diferentemente de uma sociedade na qual a finalidade eacute exterior ao complexo
ajustado a finalidade do organismo lhe eacute inerente de modo que se haacute um modelo
para o organismo este modelo eacute ele mesmo (cf EM 2005 p76 E 1989 p333)
75
Destarte nos seus Eacutetudes dacuteHistoire et de Philosophie des Sciences
Canguilhem procura colocar em xeque o uso de modelos emprestados dos
domiacutenios da fiacutesica e da experiecircncia tecnoloacutegica do animal-maacutequina aos
autocircmatos ciberneacuteticos para a explicaccedilatildeo dos fenocircmenos vitais Isso porque os
organismos por serem autoconstitutivos e autocontrolados diferentemente das
estruturas mecacircnicas que precisam de um construtor de um operador e de um
reparador satildeo capazes de realizar processos de autorregulaccedilatildeo autorreparaccedilatildeo
autoconservaccedilatildeo (cf E 1989 p 319) Como uma totalidade integrada e
autorregulada que se autoconserva o organismo goza de uma plasticidade
funcional e de uma potencialidade de base de modo que o modelo explicativo
seja mecacircnico seja loacutegico das propriedades estruturais e funcionais do objeto
bioloacutegico pode muito bem ser relegado agrave categoria de mito (cf E 1989 p 318)
Com efeito concordando com as objeccedilotildees de Barthez quanto ao uso de
modelos mecacircnicos para a explicaccedilatildeo dos fenocircmenos bioloacutegicos Canguilhem
critica a reduccedilatildeo das estruturas e das funccedilotildees orgacircnicas a modelos emprestados
dos domiacutenios da tecnologia da mecacircnica ou fiacutesica de inspiraccedilatildeo cartesiana e
galileana Tambeacutem ele questionando o uso de modelos de feedback para explicar
a homeostase e a adaptaccedilatildeo ativa orgacircnicas bem como a construccedilatildeo de modelos
eleacutetricos (fiacutesico-quiacutemicos) em fisiologia nervosa natildeo acredita que os feedback
orgacircnicos faccedilam parte da mesma classe dos mecacircnicos embora possa haver
caracteres operacionais comuns entre os oacutergatildeos de regulaccedilatildeo e os dispositivos
mecacircnicos de regulagem ldquoNa era da Ciberneacutetica podemos crer na inadequaccedilatildeo
de modelos mecacircnicos aos sistemas bioloacutegicos caracterizados por sua totalidade
e auto-regulaccedilatildeo internardquo (E 1989 p311)
Tambeacutem na Ideologia e racionalidade nas ciecircncias da vida ele esclarece
que somente um organismo tem um metabolismo orientado para a
autorreproduccedilatildeo e autoconservaccedilatildeo por autorregulaccedilatildeo dados da vida verificaacuteveis
jaacute mesmo nos microrganismos (cf I 1981 p110) Por isso um fato que julga ser
singular e interessante eacute a multiplicaccedilatildeo de termos formados com o prefixo auto
usados pelos bioquiacutemicos e biofiacutesicos para descrever as funccedilotildees e o
comportamento dos sistemas organizados como auto-organizaccedilatildeo
76
autorreproduccedilatildeo autorregulaccedilatildeo e autoimunizaccedilatildeo e o esforccedilo realizado por eles
para esclarecer os determinismos dessas propriedades e construir modelos
ciberneacuteticos de autocircmatos autorreprodutores
ldquoMas esses modelos natildeo passam afinal de modelos loacutegicos e os uacutenicos autocircmatos que de fato satildeo auto-reprodutores satildeo precisamente os sistemas orgacircnicos naturais isto eacute vivosrdquo (I 1981 p120)
Nos Escritos sobre medicina ao tratar do problema da autorregulaccedilatildeo nos
seres vivos Canguilhem defende que o organismo eacute caracterizado pela presenccedila
constante e pela influecircncia permanente de todas as suas partes em cada uma
delas ldquoEacute proacuteprio do organismo viver como um todo e ele soacute pode viver como um
todordquo (EM 2005 p 77) Isso somente eacute possiacutevel por existir nele um conjunto de
dispositivos de regulaccedilatildeo orgacircnica cuja funccedilatildeo eacute manter a integridade e a
persistecircncia do organismo como um todo o que tambeacutem confirma a velha intuiccedilatildeo
da medicina hipocraacutetica confirmada pela fisiologia moderna de que existe no
organismo uma forccedila curativa da natureza (vis medicatrix naturae) uma espeacutecie
de medicaccedilatildeo natural ou de compensaccedilatildeo natural de lesotildees e distuacuterbios aos quais
o organismo estaacute exposto66
Como prova da ideia de organismo como totalidade autorregulada que se
autoconserva ele nota que mesmo no desenvolvimento embrionaacuterio existe uma
espeacutecie de controle do todo sobre as partes o que faz com que mesmo no caso
de ocorrerem variaccedilotildees no embriatildeo por fatores externos seja mantida a
integridade de sua forma especiacutefica Por extensatildeo a regeneraccedilatildeo do organismo
66
Segundo Canguilhem na Ideologia e racionalidade nas ciecircncias da vida a maioria das teorias meacutedicas do seacuteculo XVIII sejam elas mecanicistas ou vitalistas reconhecem que o organismo tem um poder de restituiccedilatildeo e de reintegraccedilatildeo e admitem que foi Hipoacutecrates quem apresentou sob o nome de Natureza esta vis medicatrix naturae como o poder de conservaccedilatildeo de si que eacute proacuteprio do corpo vivo E apesar de todas as teses aristoteacutelicas terem sido alteradas por Descartes ponto por ponto sendo a natureza identificada agraves leis do movimento e da conservaccedilatildeo e toda arte inclusive a medicina tenha se tornado de certa forma uma construccedilatildeo de maacutequinas mesmo ele teve que integrar a sua definiccedilatildeo de ser vivo que reivindicava como objeto da mecacircnica atributos rebeldes a sua jurisdiccedilatildeo e a autoconservaccedilatildeo continuou a ser o principal caraacuteter distintivo do corpo vivo (cf I 1981 p112)
77
adulto apenas eacute possiacutevel devido agrave presenccedila destes organizadores especiacuteficos
que fazem com que a forma orgacircnica seja constantemente preservada e mantida
ldquoDo mesmo modo e isto eacute apenas uma consequecircncia a regeneraccedilatildeo que acontece em alguns animais e que faz com que esses animais reencontrem depois de uma mutilaccedilatildeo e salvo algumas diferenccedilas quantitativas sua proacutepria forma mostra bem que haacute uma espeacutecie de dominaccedilatildeo da forma sobre a mateacuteria uma espeacutecie de comando do todo sobre as partesrdquo (EM 2005 p80)
Portanto na oacuteptica canguilhemiana autoconservaccedilatildeo por autorregulaccedilatildeo eacute
caracteriacutestica proacutepria aos sistemas vivos Somente neles observamos a existecircncia
de um sistema especializado de aparelhos de regulaccedilatildeo intimamente atrelado agraves
funccedilotildees de adaptaccedilatildeo ao meio (cf EM 2005 p54) Desta forma seria um
absurdo considerar o organismo uma maacutequina agrave regulaccedilatildeo e ainda esperar dele
qualquer reaccedilatildeo a uma avaria Ateacute porque adoecimento e morte tambeacutem satildeo
caracteriacutesticas exclusivas dos viventes ldquoNatildeo haver doenccedila na maacutequina coaduna-
se perfeitamente com o fato de que natildeo haacute morte na maacutequinardquo (EM 2005 p 41)
Assim para Canguilhem apenas os organismos satildeo capazes de perceber
quando sua existecircncia se encontra ameaccedilada e de fazer uso de sua potecircncia de
criaccedilatildeo de normas e valores como estrateacutegia de resistecircncia agrave degradaccedilatildeo67 Jaacute as
maacutequinas por natildeo adoecerem nem perceberem as ameaccedilas agrave integridade de sua
estrutura nada criam consistindo nisso sua apatia e sua ineacutercia Portanto como
caracteriacutesticas proacuteprias ao vivo normatividade e polaridade dinacircmica satildeo taacuteticas
vitais de luta contra a inadaptaccedilatildeo e consequentemente extinccedilatildeo da vida
67
Por Canguilhem apresentar a vida como potecircncia de criaccedilatildeo de normas e valores Czeresnia (2010) propotildee uma aproximaccedilatildeo do conceito de normatividade vital agrave noccedilatildeo nietzschiana de vontade de potecircncia ldquoO conceito de normatividade vital encontra o de vontade de poder como uma potecircncia que realiza a proacutepria vida orgacircnicardquo (CZERESNIA 2010 p709) A seu ver a ideia de Nietzsche de que a vida se produz a partir de uma condiccedilatildeo irredutiacutevel de valor e que dele depende o incremento da potecircncia e a expansatildeo da vida mesma se aproxima do conceito de normatividade vital canguilhemiana que constata que natildeo eacute possiacutevel pensar o vivo prescindindo da noccedilatildeo de valor e que a vida tem a propriedade de criar normas para perseverar condiccedilatildeo baacutesica da possibilidade do vivente manter-se na vida agrave revelia do principio da entropia Cf CZERESNIA D Canguilhem e o caraacuteter filosoacutefico das ciecircncias da vida Physis Revista de Sauacutede Coletiva Rio de Janeiro 20 [3] 709-727 2010
78
ldquoa vida procura ganhar da morte em todos os sentidos da palavra ganhar e em primeiro lugar no sentido em que o ganho eacute aquilo que eacute adquirido por meio do jogo A vida joga contra a entropia crescenterdquo (NP 1990 p208)
Isto esclarece porque ele concorda com Bichat para quem a vida eacute um
conjunto de funccedilotildees que resiste agrave morte e porque elogia Guyenot ao ter
compreendido que as flutuaccedilotildees do meio satildeo quase sempre uma ameaccedila agrave
existecircncia do ser vivo e que ele natildeo poderia subsistir se natildeo possuiacutesse certas
propriedades essenciais Para o autor de La vie comme invention o organismo
goza de um conjunto de propriedades graccedilas agraves quais ele resiste agraves muacuteltiplas
causas de sua destruiccedilatildeo e sem essas defesas a vida se extinguiria rapidamente
ldquoQualquer ferida seria mortal se os tecidos natildeo fossem capazes de cicatrizaccedilatildeo e
o sangue de coagulaccedilatildeordquo (NP 1990 p100)
Com efeito se existissem normas determinadas para o organismo como haacute
na maacutequina natildeo haveria possibilidade de restauraccedilatildeo orgacircnica em casos de
malformaccedilatildeo ou acidente (cf NP 1990 p236) Eacute portanto a capacidade de
estabelecimento de valores e de criaccedilatildeo de normas inerente agrave vida o que explica a
existecircncia em todo vivente de reaccedilotildees de caraacuteter hedocircnico e terapecircutico
ldquomesmo os seres vivos bem inferiores aos vertebrados quanto agrave organizaccedilatildeo
apresentam reaccedilotildees de valor hedocircnico ou comportamentos de auto-cura e de
auto-regeneraccedilatildeordquo (NP 1990 p97) De modo mais preciso eacute somente pelo fato
da vida ser reatividade polarizada de conflito com o meio e atividade normativa
que todas as teacutecnicas curativas se fazem possiacuteveis
ldquoNenhum ser vivo jamais teria desenvolvido uma teacutecnica meacutedica se nele assim como em qualquer outro ser vivo a vida fosse indiferente agraves condiccedilotildees que encontra se ela natildeo fosse reatividade polarizada agraves variaccedilotildees do meio no qual se desenrolardquo (NP 1990 p100)
Natildeo obstante Canguilhem entende que natildeo podemos falar de uma
ldquomedicina naturalrdquo sem cairmos no inconveniente de inscrever a teacutecnica vital no
quadro das teacutecnicas humanas quando o inverso eacute verdadeiro Toda teacutecnica
humana eacute que estaacute inscrita na vida
79
ldquoNatildeo eacute apenas porque a teacutecnica humana eacute normativa que a teacutecnica vital eacute considerada como tal por analogia E por ser atividade de informaccedilatildeo e assimilaccedilatildeo que a vida eacute a raiz de toda atividade teacutecnicardquo (NP 1990 p 100)
Assim natildeo devemos resvalar na ldquoilusatildeo de retroatividaderdquo de que fala Bergson a
considerar que a atividade vital persegue fins e utiliza meios comparaacuteveis aos dos
homens Do mesmo modo que a seleccedilatildeo natural natildeo utiliza algo semelhante a
pedigrees a vis medicatrix naturae natildeo faz uso de ventosas (cf NP 1990 p99)
Na mesma direccedilatildeo em La connaissance de la vie ele diz que se para todo
vivente a vida eacute experiecircncia somente o vivente humano diferentemente dos
demais constroacutei teorias e instrumentos para resolver direta ou indiretamente suas
tensotildees com o meio Por esse prisma nada mais humano que uma maacutequina
porque eacute pela construccedilatildeo de utensiacutelios e maacutequinas que o vivente humano se
distingue dos animais ldquomas isso natildeo quer dizer que o homem seja uma maacutequina
pois a construccedilatildeo da maacutequina natildeo eacute uma funccedilatildeo da maacutequinardquo (CV 1895 p 22)
Ou seja somente o vivente humano inventa teorias utensiacutelios e linguagem para
organizar a experiecircncia de modo a garantir a liberdade da vida (cf CV 1985
p11) Apenas ele faz uso da atividade teacutecnica intencional68 como uma forma de
superaccedilatildeo de obstaacuteculos que encontra em sua aprendizagem (learning) isto eacute em
suas tentativas de se ajustar ao mundo exterior (cf CV 1985 p24)
Por isso ainda na mesma obra no artigo ldquoMachine et Organismerdquo
objetivando compreender a construccedilatildeo das maacutequinas a partir da estrutura e do
funcionamento dos organismos ao passar em revista o pensamento dos principais
representantes da filosofia bioloacutegica da teacutecnica destaca aqueles que datildeo margem
agrave percepccedilatildeo de sua origem irracional e faz um elogio a Bergson por ter se tornado
um dos raros filoacutesofos franceses que consideram a invenccedilatildeo mecacircnica uma
funccedilatildeo bioloacutegica um aspecto da organizaccedilatildeo da mateacuteria pela vida (cf CV 1985
p125) Para ele assim como para o autor de A evoluccedilatildeo criadora a atividade
teacutecnica eacute autenticamente orgacircnica e portanto estaacute intimamente ligada agrave vida 68
Aqui Canguilhem toma de Kant os termos teacutecnica intencional do homem e teacutecnica natildeo intencional da vida utilizadas pelo filoacutesofo alematildeo em sua Critique du Jugement (cf CV 1985 p122)
80
Como um fenocircmeno bioloacutegico universal ela natildeo eacute somente uma operaccedilatildeo
intelectual do homem mas uma atividade que o coloca em continuidade com a
vida (cf CV 1985 p 126)69
Todavia somente o vivente humano ao sofrer com a ameaccedila da doenccedila e
da morte como estrateacutegia para a manutenccedilatildeo de sua integridade desenvolve
teacutecnicas intencionais como extensatildeo da atividade curativa da vida Ou seja se a
polaridade dinacircmica pode ser atribuiacuteda a todo vivente no vivente humano como
totalidade orgacircnica consciente a valoraccedilatildeo negativa se transforma em pathos e
este em teacutecnica meacutedica Isto eacute se tudo que vive tem uma capacidade espontacircnea
de conservaccedilatildeo de sua estrutura e de regulaccedilatildeo de suas funccedilotildees o vivente
humano atraveacutes de teorias e instrumentos meacutedicos reproduz de forma consciente
a atitude de todo vivente de manutenccedilatildeo de sua integridade orgacircnica Assim se eacute
dos obstaacuteculos que o meio impotildee ao vivente da doenccedila das anomalias de valor
vital negativo da ameaccedila da morte que adveacutem a teacutecnica curativa natildeo intencional
da vida eacute tambeacutem daiacute que nasce a teacutecnica terapecircutica intencional humana que eacute
a medicina
69
Sebestik (1993) ao investigar o papel da teacutecnica na obra de Canguilhem percebe que fora a comunicaccedilatildeo ldquoDescartes et la techniquerdquo ministrada por ele no IX
e Congregraves international de
Philosophie (1937) e o ceacutelebre artigo ldquoMachine et organismerdquo a concepccedilatildeo canguilhemiana de teacutecnica se encontra dispersa em seus escritos Apesar disso acredita ser possiacutevel apresentar uma ideia precisa dela visto que assentada em dois princiacutepios o primeiro deles eacute que a teacutecnica eacute uma atividade originaacuteria irredutiacutevel agrave ciecircncia e a segundo que ela estaacute inscrita na histoacuteria humana e atraveacutes dela na histoacuteria da vida Na mesma direccedilatildeo Lecourt (2008) comenta que Canguilhem em ldquoDescartes et la techniquerdquo se empenha em mostrar que a iniciativa da teacutecnica estaacute nas exigecircncias do vivente e deve ser pensada como criaccedilatildeo Na comunicaccedilatildeo apresentada na Socieacuteteacute toulousaine de philosophie em 1938 intitulada ldquoActiviteacute technique et creacuteationrdquo Canguilhem trata da proximidade e da distacircncia de suas teses das de Bergson e novamente defende que teacutecnica produccedilatildeo e criaccedilatildeo designam atitudes proacuteprias ao vivente humano que emergem de seu debate incessante com o meio Jaacute Hacking (2007) nota que na filosofia bioloacutegica da teacutecnica apresentada por Canguilhem os utensiacutelios e as maacutequinas satildeo apresentados como projeccedilotildees do corpo ou como produccedilotildees da vida ldquoelas satildeo uma extensatildeo da vida da vitalidade da forccedila vitalrdquo (HACKING 2007 p123-4) Atraveacutes de um anticartesianismo radical seu pensamento rompe as barreiras entre o espiacuterito e o corpo e por natildeo estabelecer uma oposiccedilatildeo fundamental entre maacutequina e organismo daacute abertura para que pensemos em formas artificiais de vida como os Cyborgs Sobre a filosofia da teacutecnica em Canguilhem Cf LECOURT D Georges Canguilhem Que sais-je Les envies du savoir 1
a ediccedilatildeo Paris Presses Universitaires de France - PUF 2008 SEBESTIK J Le rocircle de la
technique dans lœuvre de Georges Canguilhem In BADIOU A (et al) Georges Canguilhem Philosophe historien des sciences Actes du colloque (6 7 8 deacutecembre 1990) Paris Albin Michel 1993 HACKING I Canguilhem parmi les cyborgs In BAUNSTEIN J-F (org) Histoire des sciences et politique du vivant Paris Presses Universitaires de France ndash PUF 2007 p113-41
81
ldquoGostariacuteamos de saber como eacute que uma necessidade humana de terapecircutica teria dado origem a uma medicina cada vez mais clarividente em relaccedilatildeo agraves condiccedilotildees de doenccedila se a luta da vida contra os inuacutemeros perigos que a ameaccedilam natildeo fosse uma necessidade vital permanece e essencialrdquo (NP 1990 p97)
Portanto em consonacircncia aos princiacutepios hipocraacuteticos e tambeacutem
aristoteacutelicos70 segundo os quais a teacutecnica meacutedica imita a accedilatildeo meacutedica natural (vis
medicatrix naturae) para Canguilhem a medicina pode ser vista como uma
extensatildeo dos impulsos curativos da vida visto que eacute neles que ela se enraiacuteza
Como teacutecnica intencional do vivente humano ela eacute o prolongamento do esforccedilo
espontacircneo de defesa e de luta de todo vivente contra tudo o que lhe ameaccedila
ldquoOcorre com a medicina o mesmo que com todas as teacutecnicas Eacute uma atividade
que tem raiacutezes no esforccedilo espontacircneo do vivo para dominar o meio e organizaacute-lo
segundo seus valores de ser vivordquo (NP 1990 p188)
Entretanto singularmente na perspectiva canguilhemiana a medicina existe
como arte da vida porque o vivente humano considera como patoloacutegicos
determinados comportamentos que em relaccedilatildeo agrave polaridade dinacircmica da vida
satildeo apreendidos sob a forma de valores negativos A partir disto como taacutetica de
defesa ele prolonga de modo consciente um efeito espontacircneo proacuteprio da vida
de lutar contra tudo aquilo que constitui um obstaacuteculo agrave sua manutenccedilatildeo e
desenvolvimento tomados como normas (cf NP 1990 p96) Ou seja eacute somente
pelo fato da vida ser atividade polarizada e normativa que ela eacute a raiz da medicina
considerada uma teacutecnica de autocura e autorregeneraccedilao realizada
conscientemente pelo vivente humano que apenas prolonga as tentativas de cura
exercidas espontaneamente pelo ldquoprimeiro meacutedicordquo que eacute a vida 70
Com efeito nos Eacutetudes dacuteHistoire et de Philosophie des Sciences Canguilhem esclarece que assim como no pensamento hipocraacutetico no pensamento aristoteacutelico a arte meacutedica eacute a finalidade natildeo deliberada de um logos natural (Cf E 1989 p337) Na mesma direccedilatildeo na Ideologia e racionalidade nas ciecircncias da vida ele afirma que o naturalismo bioloacutegico de Aristoacuteteles que era filho de meacutedico assemelha-se ao naturalismo hipocraacutetico porque Aristoacuteteles estabelece uma analogia entre natureza e arte entre vida e teacutecnica Para ele a arte do meacutedico como a aplicaccedilatildeo de regras inspiradas pela ideia da sauacutede finalidade e forma do organismo vivo eacute a que mais se assemelha agrave arte das artes que eacute a natureza e a vida ldquoEgrave por demais conhecido que Aristoacuteteles concebe a natureza e a vida como a arte das artes entendida como um processo teleoloacutegico em si imanente sem premeditaccedilatildeo sem deliberaccedilatildeo processo que toda teacutecnica tende a imitar cuja maacutexima aproximaccedilatildeo eacute a que eacute conseguida pela arte do meacutedico quando este cura a si proacuteprio por auto-aplicaccedilatildeo das regras que lhe satildeo inspiradas pela ideacuteia da sauacutede finalidade e forma do organismo vivordquo (I 1981 p110)
82
CAPIacuteTULO II
Arte da cura ou ciecircncia das doenccedilas
Se o conhecimento eacute filho da razatildeo a sabedoria eacute filha da vida
O problema de a medicina ser uma arte da cura ou uma ciecircncia das doenccedilas
se inscreve no pensamento canguilhemiano no contexto de uma discussatildeo
epistemoloacutegica mais ampla que procura elucidar a anterioridade loacutegica e
cronoloacutegica das teacutecnicas em relaccedilatildeo agraves ciecircncias Como vimos no capiacutetulo anterior
Canguilhem define a medicina com uma teacutecnica de enraizamento vital isto eacute um
prolongamento consciente de uma forccedila curativa natural (vis medicatrix naturae)
disparada por valoraccedilotildees negativas que a vida mesma atribui a determinados
comportamentos orgacircnicos Ao enraizar a teacutecnica meacutedica na vida sua intenccedilatildeo eacute
colocar em questatildeo a ideia de que a ciecircncia deve comandar a teacutecnica o que
significaria afirmar uma subserviecircncia da segunda em relaccedilatildeo agrave primeira ideia que
ele enfaticamente recusa71
Afirmando que apesar dos esforccedilos de racionalizaccedilatildeo cientiacutefica a medicina
tem por essecircncia a cliacutenica e a terapecircutica como teacutecnica de instauraccedilatildeo e
restauraccedilatildeo do normal que natildeo pode ser reduzida agrave mera aplicaccedilatildeo de um
conhecimento ele nega a ideia de que ela pode ser caracterizada como uma
ciecircncia das doenccedilas devendo ser orientada por uma ciecircncia bioloacutegica do normal
a fisiologia da qual a patologia objetiva seria derivada Por outro vieacutes a medicina
considerada por ele como uma arte da cura deve menos se orientar por uma
ciecircncia bioloacutegica do normal da qual ele questiona ateacute mesmo a existecircncia mas se
colocar a serviccedilo das normas da vida
71
Para Delaporte (1994) revela-se aqui a funccedilatildeo heuriacutestica do interesse de Canguilhem pela patologia pela cliacutenica e pela terapecircutica Ao encontrar na praacutetica meacutedica a atividade de uma teacutecnica vital eacute possiacutevel negar a dependecircncia da teacutecnica para com a ciecircncia ramificando-a na vida ldquoa teacutecnica deriva da vida prolonga atos naturais e instintivosrdquo (DELAPORTE 1994 p 39) Cf DELAPORTE F ldquoA Histoacuteria das Ciecircncias segundo G Canguilhemrdquo In PORTOCARRERO V Filosofia Histoacuteria e Sociologia das Ciecircncias I abordagens contemporacircneas Rio de Janeiro Fiocruz 1994
83
Ora se concordarmos com a perspectiva canguilhemiana de que eacute o pathos
que condiciona o logos de que satildeo as valoraccedilotildees negativas que disparam a
atividade meacutedica consciente entatildeo temos que admitir que eacute tambeacutem um valor que
mostra qual objeto deve ser estudado racional e cientificamente pelo homem ou
seja que eacute a doenccedila como valoraccedilatildeo vital negativa que estaacute na origem da
atenccedilatildeo especulativa que a vida dedica agrave vida por intermeacutedio do homem (cf NP
1990 p76)
No entanto a ciecircncia moderna ao separar os fatos da esfera dos valores ao
operar uma cesura entre o objetivo e o subjetivo dando privileacutegio a um meacutetodo
baseado na experimentaccedilatildeo e na matemaacutetica para a compreensatildeo e domiacutenio dos
fenocircmenos naturais72 acabou por fazer a ciecircncia da vida perder de vista suas
origens Ela deixou de reconhecer a polaridade dinacircmica e a normatividade vitais
e passou a definir o que eacute o normal e o que eacute o patoloacutegico experimentalmente O
normal passou a ser um conceito objetivamente determinaacutevel por meacutetodos
cientiacutefico-experimentais e o estado patoloacutegico apenas uma modificaccedilatildeo
quantitativa deste
Eacute portanto com o intuito de inverter uma loacutegica que defende a anterioridade
da ciecircncia da vida em relaccedilatildeo aos valores vitais que Canguilhem afirma que se o
normal eacute objeto da atividade cientiacutefica eacute porque primeiramente recebeu da vida um
valor preacutevio identificado posteriormente pela medicina como estado de sauacutede ldquoeacute
72
Como esclarece Mariconda (2006) a distinccedilatildeo entre fato e valor elaborada na primeira metade do seacuteculo XVII e presente nos trabalhos de Bacon Galileu Descartes e Pascal estaacute na raiz da concepccedilatildeo moderna de domiacutenio (controle da natureza) que direciona o conhecimento cientiacutefico e o desenvolvimento teacutecnico e tecnoloacutegico atuais A seu ver eacute em torno da dicotomia entre fato e valor ndash ou entre objetivo e subjetivo ndash que se constituiu o proacuteprio campo da ciecircncia natural no interior da ampla modificaccedilatildeo que conduziu ao nascimento da ciecircncia moderna de Copeacuternico a Newton de Bacon a Hume Eacute tambeacutem ela que estaacute na origem da separaccedilatildeo entre as disciplinas naturais e morais e da ideia de que as ciecircncias naturais possuem um meacutetodo baseado na experiecircncia e na matemaacutetica divorciado da esfera dos valores Esta consideraccedilatildeo negativa da esfera valorativa na ciecircncia acarretou posteriormente ndash sobretudo atraveacutes dos trabalhos dos positivistas loacutegicos - em sua total desqualificaccedilatildeo jaacute que considerada despojada de significado cognitivo Por isso o meacutetodo da ciecircncia natural natildeo por acaso combina uma parte hipoteacutetica e uma experimental conjugando matemaacutetica experiecircncia observaccedilatildeo sistemaacutetica e intervenccedilatildeo controlada da natureza visto natildeo estar direcionado somente ao entendimento dos fenocircmenos naturais mas tambeacutem ao aumento do controle das condiccedilotildees naturais Cf MARICONDA P R O controle da natureza e as origens da dicotomia entre fato e valor Scientiaelig Studia Revista Latino-Americana de Filosofia e Histoacuteria da Ciecircncia Satildeo Paulo v 4 n 3 p 453-72 2006
84
a vida em si mesma e natildeo a apreciaccedilatildeo meacutedica que faz do normal bioloacutegico um
conceito de valor e natildeo um conceito de realidade estatiacutesticardquo (NP 1990 p100)
Mas antes mesmo disso foi o desvio o negativo o anormal que despertou o
interesse teoacuterico pelo normal
ldquoAs normas soacute satildeo reconhecidas como tal nas infraccedilotildees As funccedilotildees soacute satildeo reveladas por suas falhas A vida soacute se eleva agrave consciecircncia e agrave ciecircncia de si mesma pela inadaptaccedilatildeo pelo fracasso e pela dorrdquo (NP 1990 p169)
Ou seja eacute somente por haver uma diferenccedila qualitativa entre os estados normal e
patoloacutegico por ter a doenccedila um valor vital negativo traduzido em mal-estar
consciente no vivente humano que a teacutecnica meacutedica se faz possiacutevel e necessaacuteria
para o desenvolvimento de um atividade cientiacutefica que tenha por objeto de estudo
a vida
Sendo assim Canguilhem atribui agrave teacutecnica meacutedica uma importacircncia proacutepria
natildeo condicionada pelo conhecimento cientiacutefico que ela consegue incorporar
conferindo a ela uma certa independecircncia em relaccedilatildeo agraves ciecircncias das quais ela se
utiliza (cf NP 1990 p189) Mas isso natildeo significa dizer que ele desconsidera a
importacircncia da atividade cientiacutefica para a praacutetica meacutedica Isto eacute ao negar a
existecircncia de uma ciecircncia bioloacutegica do normal ele natildeo quer afirmar a
impossibilidade de haver uma ciecircncia da vida O que ele propotildee eacute colocaacute-la em
relaccedilatildeo com a atividade normativa da vida e por conseguinte com a teacutecnica
meacutedica tornando-a agora uma ciecircncia das situaccedilotildees bioloacutegicas consideradas
normais
ldquoa atribuiccedilatildeo de um valor de lsquonormalrsquo agraves constantes ndash cujo conteuacutedo eacute determinado cientificamente pela fisiologia reflete a relaccedilatildeo da ciecircncia da vida com a atividade normativa da vida e no que se refere agrave ciecircncia da vida humana com as teacutecnicas bioloacutegicas de produccedilatildeo e de instauraccedilatildeo do normal mais especificamente com a medicinardquo (NP 1990 p188)
Atraveacutes de sua criacutetica ele tambeacutem natildeo quer negar a possibilidade de haver
uma patologia cientiacutefica metoacutedica armada de meacutetodos objetivos de observaccedilatildeo e
de anaacutelise O que ele quer mostrar precisamente eacute que o objeto de estudo do
85
patologista ainda que possa ser estudado metoacutedica e objetivamente natildeo eacute
desprovido de subjetividade
ldquoPode-se praticar objetivamente isto eacute imparcialmente uma pesquisa cujo objeto natildeo pode ser concebido e construiacutedo sem referecircncia a uma qualificaccedilatildeo positiva ou negativa cujo objeto portanto natildeo eacute tanto um fato mas sobretudo um valorrdquo (NP 1990 p189)
Entatildeo o que ele critica na atividade cientiacutefica eacute o esquecimento da dimensatildeo
axioloacutegica original do normal e do patoloacutegico da diferenccedila qualitativa existente
entre esses estados a desconsideraccedilatildeo por parte da ciecircncia de que antes de uma
patologia objetiva metoacutedica cientiacutefica ou experimental existiu uma patologia
subjetiva que qualificou como patoloacutegico o fenocircmeno bioloacutegico no qual agora o
patologista se debruccedila A seu ver qualquer conceito empiacuterico de doenccedila sempre
conserva uma relaccedilatildeo com o conceito axioloacutegico de doenccedila porque natildeo eacute um
meacutetodo objetivo que qualifica como patoloacutegico determinado comportamento
orgacircnico mas o doente por intermeacutedio da cliacutenica que diz qual comportamento eacute
ou natildeo normal ldquoo conceito de normal natildeo eacute um conceito de existecircncia suscetiacutevel
em si mesmo de ser medido objetivamenterdquo (NP 1990 p164)
Destarte o recurso agrave medicina foi a saiacuteda encontrada por Canguilhem para
defender a precedecircncia da teacutecnica em relaccedilatildeo agrave ciecircncia dos valores em relaccedilatildeo
aos fatos do qualitativo em relaccedilatildeo ao quantitativo do subjetivo em relaccedilatildeo ao
objetivo e da experiecircncia vivida em relaccedilatildeo agrave experimentaccedilatildeo laboratorial Mas eacute
tambeacutem para fazer frente agrave ideologia de controle da natureza que orienta a ciecircncia
moderna que ele denuncia que a medicina ao se transformar numa ciecircncia das
doenccedilas adotando uma ideia de normalidade definida por meacutetodos cientiacutefico-
experimentais passou a ditar normas agrave vida ficando surda a seus apelos
Portanto eacute somente tendo em vista a criacutetica que faz aos fundamentos teoacutericos e
tambeacutem ideoloacutegicos da ciecircncia moderna que podemos compreender o pleno
sentido de sua contestaccedilatildeo agrave teoria da identidade real dos fenocircmenos normais e
patoloacutegicos eleita como objetivo do seu Ensaio de 43 e brevemente retomada na
coletacircnea La connaissance de la vie no artigo ldquoLe normal et le pathologiquerdquo
86
Em La connaissance de la vie Canguilhem identifica no seacuteculo XVIII a
origem histoacuterica da tese segundo a qual o estado patoloacutegico eacute homogecircneo ao
estado normal do qual constitui uma variaccedilatildeo quantitativa para mais ou para
menos A seu ver esta ideia remonta ao pensamento do meacutedico escocecircs Brown
ateacute Glisson e aos primeiros esboccedilos da teoria da irritabilidade popularizada por
Broussais e Comte antes mesmo de ganhar prestiacutegio atraveacutes de Claude Bernard
(cf CV 1985 p 165-166) Antes disso no Ensaio ele afirma natildeo ter sido por
acaso que ele decidiu procurar na obra de Comte e de Claude Bernard a
significaccedilatildeo essencial da teoria que escolheu criticar Ele os elegeu como base
para sua criacutetica devido agrave influecircncia desses autores na filosofia na ciecircncia e
mesmo na literatura do seacuteculo XIX
ldquoDecidimos centrar nossa exposiccedilatildeo em torno dos nomes de Comte e Claude Bernard porque estes autores desempenharam semivoluntariamente o papel de lsquoporta-bandeirarsquo esta eacute a razatildeo da preferecircncia que lhes foi dada em detrimento de tantos outros igualmente citados e que poderiam ser melhor explicados sob outras perspectivasrdquo (NP 1990 p26)
Partindo da recomendaccedilatildeo de Brown de que natildeo devemos confiar nas
forccedilas da natureza (cf I 1981 p49) ideologicamente tal teoria ao defender a
ideia de que o patoloacutegico seria apenas uma modificaccedilatildeo quantitativa do estado
normal fazendo da patologia uma mera extensatildeo da fisiologia carrega a ideia de
que eacute possiacutevel controlar a natureza dominaacute-la atraveacutes da atividade cientiacutefica Por
conseguinte se a medicina como ciecircncia das doenccedilas adveacutem do desejo humano
de dominar a vida para controlar o mal localizando-o para melhor agir sobre ele
como arte enraizada na vida ela expressa a confianccedila do homem na natureza em
suas tentativas de cura
Desta forma eacute em duas relaccedilotildees opostas em relaccedilatildeo agrave natureza de
domiacutenio e respeito que Canguilhem encontra a origem da oposiccedilatildeo entre uma
medicina que como ciecircncia das doenccedilas eacute orientada por uma patologia cientiacutefica
ligada agrave fisiologia que dita normas agrave vida e outra que como teacutecnica ou arte
considera sua normatividade e faz uso do resultado de todas as ciecircncias a serviccedilo
de suas normas Assim o que pretendemos nesse capiacutetulo provar eacute que se ele se
87
empenha em colocar em xeque tal teoria da qual Comte e Claude Bernard
serviram de ldquoporta-bandeirardquo eacute porque ela se tornou a base da ideia de medicina
como ciecircncia das doenccedilas concepccedilatildeo diametralmente oposta agravequela que ele quer
defender uma medicina como teacutecnica ou arte da cura assentada no respeito agraves
normas da vida
Tendo em vista que eacute o pathos que condiciona o logos para fundar uma
medicina como arte da cura teriacuteamos que considerar que em primeiro lugar
estariam os valores positivo e negativo da vida em seguida viria o ponto de vista
doente que traduz estes valores em normal e patoloacutegico para daiacute surgir a teacutecnica
meacutedica e por fim a ciecircncia da vida Diferentemente disso Canguilhem percebe
nos fundamentos da medicina como ciecircncia das doenccedilas que eacute a ciecircncia da vida
que define o que patoloacutegico a teacutecnica meacutedica incorpora este saber e o repassa ao
doente em forma de diagnoacutestico ignorando que eacute ele quem traduz os valores
positivo e negativo da vida em sauacutede e doenccedila Assim eacute para inverter a loacutegica que
faz o patoloacutegico derivar da ciecircncia fisioloacutegica e natildeo da experiecircncia negativa vivida
pelo doente que ele procura colocar em xeque a teoria segundo a qual a patologia
seria apenas uma fisiologia mais extensa e mais ampla
Em O normal e o patoloacutegico ao tratar do momento histoacuterico-cultural de
emergecircncia da tese segundo a qual o patoloacutegico seria apenas uma variaccedilatildeo
quantitativa do estado normal previamente determinado pela fisiologia
Canguilhem explica que no seacuteculo XIX era a fiacutesico-quiacutemica fisioloacutegica que
respondia agraves exigecircncias do conhecimento cientiacutefico porque apenas ela
comportava leis quantitativas verificadas pela experimentaccedilatildeo enquanto a
patologia ainda estava sobrecarregada de conceitos preacute-cientiacuteficos Por isso os
meacutedicos do seacuteculo XIX ansiosos por uma patologia racional e eficaz viram na
fisiologia um modelo a ser adotado
ldquoDentre a fisiologia e patologia da eacutepoca apenas a primeira comportava leis e postulava o determinismo de seu objeto mas isso natildeo eacute motivo suficiente para concluirmos que as leis e o determinismo dos fatos patoloacutegicos sejam as proacuteprias leis
88
e o proacuteprio determinismo dos fatos fisioloacutegicos apesar da legiacutetima aspiraccedilatildeo que temos de uma patologia racionalrdquo (NP 1990 p82)
Entendendo que a ambiccedilatildeo de tornar a patologia e consequentemente a
terapecircutica integralmente cientiacuteficas procedentes de uma fisiologia previamente
instituiacuteda soacute teria sentido se fosse possiacutevel uma definiccedilatildeo puramente objetiva do
normal como de um fato dada atraveacutes de meacutetodos cientiacutefico-experimentais e
uma traduccedilatildeo da diferenccedila entre os estados normal e patoloacutegico em termos
quantitativos - jaacute que apenas a quantidade pode dar conta da homogeneidade e
da variaccedilatildeo ndash Canguilhem procura a partir de um conjunto de estrateacutegias e
filiaccedilotildees teoacutericas evidenciar que o normal dificilmente pode ser apreendido por
criteacuterios matemaacuteticos e a fisiologia ao tentar mensuraacute-lo e a partir dele definir o
patoloacutegico no limite acabaria por perder de vista a proacutepria doenccedila fazendo dela
um conceito teoacuterico abstrato e esvaziado de sentido
ldquoa convicccedilatildeo de poder restaurar cientificamente o normal eacute tal que acaba por anular o patoloacutegico A doenccedila deixa de ser objeto de anguacutestia para o homem satildeo e torna-se objeto de estudo para o teoacuterico da sauacutederdquo (NP 1990 p22-23)
Uma das estrateacutegias utilizadas por Canguilhem para invalidar a possibilidade
da traduccedilatildeo das diferenccedilas entre os estados normal e patoloacutegico em termos
quantitativos eacute mostrar que se a intenccedilatildeo do cientista ao alegar a continuidade
meacutetrica entre os estados normal e patoloacutegico eacute anular a diferenccedila qualitativa
existente entre eles ela fracassa pois da continuidade natildeo eacute possiacutevel deduzir a
homogeneidade e mesmo se isso fosse possiacutevel uma homogeneizaccedilatildeo
acarretaria a perda do proacuteprio objeto de estudo cientiacutefico De fato para
Canguilhem e tese de que a sauacutede e a doenccedila seriam homogecircneas variando
apenas em grau levada agraves uacuteltimas consequecircncias acabaria por desvanecer o
conceito mesmo de doenccedila pois no momento em que a suposta continuidade
teoacuterica e meacutetrica identificada entre os estados fosse transformada em
homogeneidade o contraste qualitativo entre eles estaria supostamente anulado
Natildeo obstante ele esclarece que a substituiccedilatildeo do contraste qualitativo entre
os estados normal e patoloacutegico por uma progressatildeo quantitativa natildeo anula a
89
oposiccedilatildeo entre eles Isso porque a afirmaccedilatildeo da continuidade entre os estados
normal e patoloacutegico natildeo implica reduzi-los um ao outro subentendendo sua
homogeneidade ou identidade mas apenas apresentaacute-los como extremos de um
conjunto de intermediaacuterios
ldquoquando se converte essa continuidade em homogeneidade esquecemos que a diferenccedila continua a saltar aos olhos nos extremos sem os quais os intermediaacuterios natildeo teriam que desempenhar seu papel mediadorrdquo (NP 1990 p85)
A seu ver a existecircncia de estados que operam uma mediaccedilatildeo entre os extremos
denuncia que natildeo haacute como anular completamente o valor qualitativo dos termos
normal e patoloacutegico apesar de alguns cientistas alegando a continuidade entre a
sauacutede e a doenccedila deduzirem daiacute tambeacutem sua homogeneidade ldquoMas isso tambeacutem
poderia significar que natildeo existem doentes o que natildeo eacute menos absurdordquo (NP
1990 p53)
Embora Canguilhem compreenda o anseio da medicina de se orientar por
uma patologia objetiva ele natildeo deixa de ironizar o fato de que uma ciecircncia que faz
desaparecer seu objeto natildeo pode ser objetiva (cf NP 1990 p64) Ou seja para
ele eacute a proposta mesma de derivar a patologia de uma ciecircncia do normal o que
leva paradoxalmente ao desaparecimento de seu objeto fazendo com que seja
absolutamente ilegiacutetimo sustentar a tese de que o estado patoloacutegico eacute real e
simplesmente a variaccedilatildeo para mais ou para menos do estado fisioloacutegico Ateacute
porque os termos mais e menos que entram na definiccedilatildeo do patoloacutegico natildeo tecircm
uma significaccedilatildeo puramente quantitativa pois eacute sempre em relaccedilatildeo a uma norma
considerada vaacutelida e desejaacutevel que se pode falar em excesso ou falta Isso porque
o estado fisioloacutegico para o ser vivo eacute uma qualidade e um valor pois se ele fosse
apenas um simples resumo de quantidades sem valor bioloacutegico simples fato ou
sistema de fatos fiacutesicos e quiacutemicos ele natildeo poderia ser chamado nem de
fisioloacutegico nem de satildeo nem mesmo de normal
ldquoNormal e patoloacutegico natildeo tecircm sentido ao niacutevel em que o objeto bioloacutegico eacute decomposto em equiliacutebrios coloidais e soluccedilotildees ionizadas O fisiologista estudando um estado que ele chama de fisioloacutegico o estaacute qualificando por esse fato mesmo
90
inconscientemente ele considera esse estado como qualificado positivamente pelo ser vivo e para o ser vivo Ora natildeo eacute esse estado fisioloacutegico como tal que se prolonga ndash idecircntico a si mesmo ndash ateacute um outro estado capaz de adotar entatildeo inexplicavelmente a qualidade de moacuterbidordquo (NP 1990 p84)
Destarte apesar de negada a oposiccedilatildeo entre o normal e o patoloacutegico se
manteacutem no fundo da consciecircncia de quem decidiu adotar o ponto de vista teoacuterico
e meacutetrico ldquoa quantidade eacute a qualidade negada mas natildeo a qualidade suprimidardquo
(NP 1990 p83) Haacute uma heterogeneidade entre o normal e o patoloacutegico
malgrado os esforccedilos teoacutericos para provar sua homogeneizaccedilatildeo A doenccedila difere
da sauacutede como uma qualidade difere de outra o que faz com que a diferenccedila de
valor que o ser vivo estabelece entre sua vida normal e sua vida patoloacutegica natildeo
seja apenas uma aparecircncia ilusoacuteria que o cientista deva negar (cf NP 1990
p53) Assim ainda que a ciecircncia dos contraacuterios seja una como afirma Aristoacuteteles
natildeo podemos concluir daiacute que a vida seja idecircntica a si mesma na sauacutede e na
doenccedila simplificando de modo temeraacuterio a ciecircncia da vida
rdquoEacute urgente mais ainda que legiacutetimo que a ciecircncia da vida tome como objetos de mesma importacircncia teoacuterica e capazes de se explicar mutuamente os fenocircmenos ditos normais e os fenocircmenos ditos patoloacutegicos a fim de se tornar adequada agrave totalidade das vicissitudes da vida e agrave variedade de suas manifestaccedilotildeesrdquo (NP 1990 p63)
Natildeo havendo em sua leitura a contestaccedilatildeo da legitimidade da tarefa de
procurar explicaccedilotildees relativas aos fenocircmenos normais e patoloacutegicos Canguilhem
natildeo intenciona solapar a existecircncia de uma ciecircncia da vida mas sim assentaacute-la
sobre outras bases que contemplem as variaccedilotildees normativas da vida e suas
manifestaccedilotildees opostas de valor Eacute por este prisma que ele defende que o papel da
fisiologia eacute menos tentar definir objetivamente o estado normal mas determinar
exatamente o conteuacutedo das normas dentro das quais a vida conseguiu se
estabilizar admitindo a eventual correccedilatildeo destas normas de acordo com uma
variaccedilatildeo do meio no qual elas se desenrolam ldquoParece-nos que a fisiologia tem
mais a fazer que definir objetivamente o normal deve reconhecer a normatividade
original da vidardquo (NP 1990 p142) Portanto considerando o caraacuteter flutuante dos
fenocircmenos vitais a fisiologia entatildeo pode ser melhor definida como a ciecircncia dos
91
ritmos estabilizados da vida e natildeo como a ciecircncia das funccedilotildees normais da vida da
qual uma patologia objetiva seria derivada
ldquoOra se parece impossiacutevel manter a definiccedilatildeo da fisiologia como ciecircncia do normal parece difiacutecil admitir que pudesse haver uma ciecircncia da doenccedila e que possa haver uma patologia puramente cientiacuteficardquo (NP 1990 p173)
Outra estrateacutegia utilizada por Canguilhem para criticar validade da tese de
que o patoloacutegico seria apenas uma modificaccedilatildeo quantitativa do estado normal eacute
operar seu desvelamento ideoloacutegico evidenciando a relaccedilatildeo mutuamente
reforccediladora73 presente na ciecircncia moderna entre experimentaccedilatildeo quantificaccedilatildeo e
domiacutenio Para tanto ele nota que desde Bacon investe-se na ideia de que soacute se
pode domar a natureza fazendo com que ela nos obedeccedila Por este ponto de
vista dominar a natureza eacute tambeacutem conhecer as relaccedilotildees do estado normal com o
patoloacutegico atraveacutes do uso de meacutetodos experimentais e da matematizaccedilatildeo de seus
resultados a exemplo das ciecircncias fiacutesico-quiacutemicas Por isso ele acredita que a
ideia de heterogeneidade entre os estados melhor se alia agrave concepccedilatildeo meacutedica
naturista que espera pouco da intervenccedilatildeo humana para a restauraccedilatildeo do normal
pois segundo ela eacute a natureza e natildeo o homem que encontra os meios para a
cura enquanto que numa concepccedilatildeo cientiacutefica que admite e espera que o homem
deva forccedilar a natureza e dobraacute-la a seus desejos normativos a diferenccedila
qualitativa que separa o normal e o patoloacutegico dificilmente pode ser sustentada (cf
NP 1990 p21)
73
Tomamos aqui de Lacey (1998) a expressatildeo ldquorelaccedilatildeo mutuamente reforccediladorardquo para quem na ciecircncia moderna existe como que uma afinidade eletiva entre as estrateacutegias materialistas e a perspectiva moderna do controle da natureza inaugurada pelo pensamento de Francis Bacon Com efeito o teoacuterico da epistemologia engajada ao estudar a relaccedilatildeo entre entendimento cientiacutefico e controle da natureza nota que as estrateacutegias materialistas bastante conhecidas desde Galileu e Descartes aumentam a capacidade de controle da natureza respondendo assim aos interesses da utilidade baconiana Num sentido importante eacute caracteriacutestica do homem controlar a natureza mas esta postura deve ser valorizada apenas na medida em que contribui para o ideal de florescimento humano pois o controle contrasta com posturas de reciprocidade mutualidade e respeito em relaccedilatildeo agrave natureza representado por noccedilotildees como harmonizaccedilatildeo adaptaccedilatildeo participaccedilatildeo e unidade dialeacutetica ldquoexplorar as possibilidades de controle aleacutem desses limites natildeo possui nenhuma inteligibilidade moral (ou racional)rdquo (LACEY 1998 p120) Cf LACEY H Valores e atividade cientiacutefica Satildeo Paulo Discurso Editorial 1998
92
Nesta mesma direccedilatildeo argumentativa na coletacircnea La connaissance de la
vie no artigo ldquoAspects du vitalismerdquo Canguilhem opotildee duas posturas do homem
em relaccedilatildeo agrave natureza associando-as ao vitalismo e ao mecanicismo Segundo
ele o homem pode se sentir filho da natureza tendo por ela um sentimento de
uniatildeo e pertencimento ou sentir em face dela como que diante de um objeto
estranho Aquele que tem pela natureza um sentimento de filiaccedilatildeo e simpatia natildeo
considerando os fenocircmenos naturais como estrangeiros eacute fundamentalmente um
vitalista Desta forma em contraposiccedilatildeo agrave postura do mecanicista que se sente
separado da vida e se potildee diante dela de posse de um meacutetodo estrito e
imperioso eacute a confianccedila do vitalista na espontaneidade da vida o que faz com que
ele tenha horror a decompocirc-la em mecanismos a reduzi-la a uma soma de partes
e a lutar contar ela como se fosse um obstaacuteculo Essa diferenccedila de posturas eacute o
que faz com que o vitalismo apareccedila menos como um meacutetodo e mais como uma
exigecircncia mais como uma moral do que como uma teoria (cf CV 1985 p87-88)
Eacute portanto por ter em vista que eacute o desejo de domiacutenio da vida pelo
conhecimento cientiacutefico74 que subjaz agrave ideia de reduccedilatildeo da qualidade agrave
quantidade implicada na identidade essencial do fisioloacutegico e do patoloacutegico que
Canguilhem se propotildee a fazer uma genealogia ideoloacutegica da tese segundo o qual
o patoloacutegico natildeo passaria de um aumento ou reduccedilatildeo do estado normal Com
efeito perscrutando as bases histoacutericas e ideoloacutegicas de tal ideia ele encontra
nela a convicccedilatildeo otimista e racionalista de que natildeo haacute realidade no mal expressa
na recusa de duas representaccedilotildees da doenccedila tanto a ontoloacutegica quanto a
dinamista75 bases do dualismo meacutedico76
74
Em La connaissance de la vie no artigo ldquoLa penseacutee et le vivantrdquo ao refletir sobre a relaccedilatildeo do pensamento com a vida Canguilhem afirma que o conhecimento eacute o que permite o descolamento do homem do mundo o afastamento necessaacuterio agrave interrogaccedilatildeo e agrave duacutevida diante dos obstaacuteculos surgidos Ele eacute portanto um meio de resoluccedilatildeo direta ou indireta das tensotildees do homem com o meio Mas para que ele possibilite ao homem um novo equiliacutebrio com o mundo uma nova forma e uma nova organizaccedilatildeo de sua vida a inteligecircncia deve reconhecer seus limites e a originalidade dos fenocircmenos da natureza de modo que jaacute que a vida natildeo se opotildee ao pensamento o conhecimento natildeo destrua a vida
75 Segundo Canguilhem de acordo com a histoacuteria da medicina moderna Thomas Sydenham
(1624-1689) acreditava que para ajudar o doente era preciso delimitar e determinar o seu mal Com o mesmo espiacuterito I Saint-Hilaire e Pinel elaboraram classificaccedilotildees nosoloacutegicas na tentativa de impor um certo ordenamento agraves doenccedilas como jaacute faziam os naturalistas com as espeacutecies
93
ldquoa recusa de uma concepccedilatildeo ontoloacutegica da doenccedila corolaacuterio negativo da afirmaccedilatildeo de identidade quantitativa entre o normal e o patoloacutegico eacute em primeiro lugar talvez a recusa mais profunda de admitir a existecircncia do malrdquo (NP 1990 p78)
Segundo Canguilhem a histoacuteria do pensamento meacutedico oscila entre duas
representaccedilotildees da doenccedila A primeira delas remontada agraves antigas concepccedilotildees de
doenccedila como sortileacutegio encantamento ou possessatildeo demoniacuteaca adviria de uma
teoria ontoloacutegica do mal na qual a doenccedila entraria e sairia do homem como que
por uma porta A segunda explicitada nos escritos e praacuteticas hipocraacuteticas natildeo
apresenta uma concepccedilatildeo ontoloacutegica e localizante da doenccedila mas sim dinacircmica e
totalizante ldquoNesse caso a doenccedila natildeo estaacute em alguma parte do homem Estaacute em
todo homem e eacute toda delerdquo (NP 1990 p20) Nela a natureza (physis) tanto no
homem como fora dele eacute harmonia e equiliacutebrio e a doenccedila natildeo sendo somente
desequiliacutebrio ou desarmonia dos humores eacute sobretudo o esforccedilo que a natureza
exerce no homem para obter um novo equiliacutebrio ldquoa doenccedila eacute uma reaccedilatildeo
generalizada com intenccedilatildeo de cura O organismo fabrica uma doenccedila para curar a
si proacutepriordquo (NP 1990 p21)
vegetais e animais Tais classificaccedilotildees nosograacuteficas acabaram por encontrar substrato na anatomia patoloacutegica de Morgagni que permitiu a associaccedilatildeo entre as lesotildees definidas nos oacutergatildeos e um grupo de sintomas estaacuteveis Como com Harvey e Haller a anatomia havia sido ldquoanimadardquo para tornar-se fisiologia a patologia veio naturalmente prolongaacute-la Semanticamente diz Canguilhem foi a influecircncia desta teoria que fez com que o patoloacutegico passasse a ser definido a partir do normal natildeo tanto como a ou dis mas hiper ou hipo (cf NP 1990 p 19-23) A seu ver uma parte do sucesso que a teoria microbiana das doenccedilas contagiosas de Pasteur deve ao fato dela guardar ainda uma representaccedilatildeo ontoloacutegica do mal Com efeito na nosologia atual satildeo as doenccedilas de carecircncia e as infecciosas ou parasitaacuterias que expressam a representaccedilatildeo ontoloacutegica da doenccedila enquanto as perturbaccedilotildees endoacutecrinas e as doenccedilas marcadas pelo prefixo dis satildeo as que reafirmam a teoria dinamista ou funcional
76 Canguilhem esclarece que apesar dos esforccedilos dos iatroquimistas e dos iatromecanicistas a
medicina do seacuteculo XVIII tinha permanecido por influecircncia dos animistas e dos vitalistas uma medicina dualista um maniqueiacutesmo meacutedico (cf NP 1990 p77) Eacute em contraposiccedilatildeo a este maniqueiacutesmo que as demonstraccedilotildees criacuteticas de Claude Bernard se dirigiam a tese que admitia a diferenccedila qualitativa nos mecanismos e nos produtos das funccedilotildees vitais no estado patoloacutegico e no estado normal Considerando que a sauacutede e a doenccedila natildeo satildeo dois modos de ser que diferem essencialmente ele considera ser uma ldquovelharia meacutedicardquo a ideia de que sauacutede e doenccedila satildeo princiacutepios distintos entidades que disputam o organismo vivo e dele fazem o teatro de suas lutas A seu ver a ideia de luta entre dois agentes opostos jaacute estaacute ultrapassada havendo portanto a necessidade de reconhecer em tudo a continuidade dos fenocircmenos sua gradaccedilatildeo insensiacutevel e sua harmonia (Cf NP 1990 p48-9)
94
Na perspectiva canguilhemiana a formulaccedilatildeo da teoria segundo a qual os
fenocircmenos patoloacutegicos nos organismos vivos nada mais satildeo do que variaccedilotildees
para mais ou para menos dos fenocircmenos fisioloacutegicos correspondentes apesar de
negaacute-la tem sua origem na primeira representaccedilatildeo do patoloacutegico por guardar
dela o caraacuteter localizante da doenccedila Ademais ele vecirc nesta tese a exigecircncia de
uma eacutepoca que acreditava na onipotecircncia de uma teacutecnica baseada na ciecircncia
ldquoUma arte de viver ndash e a medicina o eacute no sentido pleno da palavra - implica numa
ciecircncia da vidardquo (NP 1990 p63) Ou seja ele encontra nela tambeacutem a convicccedilatildeo
humanista de que a accedilatildeo do homem sobre o meio e sobre ele mesmo deve ser
apenas a aplicaccedilatildeo de uma ciecircncia previamente instituiacuteda atrelada agrave ideia
determinista de que a atividade cientiacutefica deve se identificar agrave descoberta das leis
dos fenocircmenos77
Em vista disso ele critica Claude Bernard por ter transposto em sua
Introduction agrave leacutetude de la meacutedecine expeacuterimentale (1865) esta ideia agrave teacutecnica
meacutedica defendendo que a accedilatildeo eficaz se confunde com a ciecircncia que a ciecircncia
se confunde com a descoberta das leis dos fenocircmenos e que a medicina deve se
ancorar numa ciecircncia da vida ldquoClaude Bernard considera a medicina como a
ciecircncia das doenccedilas e a fisiologia como a ciecircncia da vida Nas ciecircncias eacute a teoria
que ilumina e domina a praacuteticardquo (NP 1990 p45) Tal concepccedilatildeo faz com que a
medicina seja integralmente identificada agrave aplicaccedilatildeo de uma ciecircncia fisioloacutegica
que teria por tarefa descortinar as leis que presidem os fenocircmenos vitais normais
dos quais os fenocircmenos patoloacutegicos seriam apenas uma variaccedilatildeo quantitativa
Igualmente Canguilhem coloca em questatildeo a maacutexima positivista de que
para agir eacute preciso primeiramente saber ideia que coloca a terapecircutica
77
Canguilhem encontra em Laplace a origem do determinismo de Claude Bernard Laplace foi colaborador de Lovoisier nas pesquisas sobre a respiraccedilatildeo e o calor animal primeiro ecircxito espetacular nas investigaccedilotildees sobre as leis dos fenocircmenos bioloacutegicos segundo os meacutetodos de experimentaccedilatildeo e de medidas usados em fiacutesica e quiacutemica Desses estudos Laplace conservou o grande interesse pela fisiologia e apesar de natildeo utilizar o termo determinismo ele eacute um dos pais espirituais da doutrina que este termo designa Adotando um determinismo fechado para o qual natildeo eacute possiacutevel realizar correccedilotildees das foacutermulas de leis e dos conceitos que a elas se ligam para ele ldquoo determinismo natildeo eacute uma exigecircncia de meacutetodo um postulado normativo da pesquisa bastante flexiacutevel para natildeo prejulgar nada sobre a forma dos resultados aos quais vai conduzirrdquo (cf NP 1990 p82) Ele eacute a proacutepria realidade acabada moldada ne varietur nos quadros da mecacircnica de Newton
95
integralmente sob o jugo da atividade cientiacutefica Natildeo obstante ele diz natildeo
desqualificar o valor da filosofia das luzes e do positivismo para a medicina
acreditando que uma terapecircutica positiva ou cientiacutefica eacute superior a uma
terapecircutica maacutegica ou miacutestica jaacute que a ciecircncia natildeo confunde a doenccedila com algo
pecaminoso ou demoniacuteaco ldquoNatildeo se trata absolutamente de dispensar os meacutedicos
de estudar a fisiologia e a farmacodinacircmica Eacute muito importante natildeo confundir a
doenccedila com o pecado nem com o democircniordquo (NP 1990 p78) Mas apesar de
concordar com a visatildeo cientiacutefica de que natildeo haacute realidade no mal como entidade
demoniacuteaca ele acredita que este conceito natildeo eacute desprovido de sentido jaacute que
existem valores negativos entre os valores vitais o que faz do patoloacutegico um
estado normativa e qualitativamente diferente do estado normal Apesar disso a
doenccedila ainda eacute vista pela ciecircncia como um fenocircmeno que nada cria em termos
normativos ldquoeacute por natildeo admitir na doenccedila nenhuma norma bioloacutegica proacutepria que
dela nada se espera para as ciecircncias das normas da vidardquo (NP 1990 p171)
Ora Canguilhem natildeo nega agrave ciecircncia o seu papel de produtora de
conhecimentos verdadeiros nem mesmo desconsidera os benefiacutecios dos
conhecimentos obtidos em laboratoacuterio para as praacuteticas meacutedicas78 O que ele
defende fundamentalmente eacute que a renovaccedilatildeo do progresso teoacuterico pode se dar
atraveacutes da atividade natildeo teoacuterica pragmaacutetica e teacutecnica Sem a temeridade da
teacutecnica diz os problemas cientiacuteficos seriam poucos
ldquoEis o que haacute de verdade no empirismo filosofia da aventura intelectual menosprezada por um meacutetodo experimental que por reaccedilatildeo se sente um pouco tentado demais a se racionalizarrdquo (NP 1990 p 79)
Assim atraveacutes da valorizaccedilatildeo empirismo o que ele quer criticar eacute o que chama de
cientificismo exacerbado daqueles que acreditam que a teacutecnica deva ser sempre a
78
Quando Lecourt (2008) trata das relaccedilotildees entre a teacutecnica e a ciecircncia no pensamento canguilhemiano observa que Canguilhem natildeo nega que a teacutecnica em geral pode incorporar conhecimentos cientiacuteficos a fim de aumentar sua eficaacutecia Segundo ele a medicina pode tirar benefiacutecios dos conhecimentos fisioloacutegicos mas natildeo podemos esquecer que sem os problemas surgidos na cliacutenica a fisiologia perderia o essencial de sua razatildeo de ser e o motor do seu progresso (cf LECOURT 2008 p42) Cf LECOURT D Que sais-je Les envies du savoir 1
a ediccedilatildeo Paris
Presses Universitaires de France - PUF 2008
96
aplicaccedilatildeo de uma ciecircncia jaacute que dela nada pode se esperar para os progressos
do conhecimento79
Isso explica porque para fazer uma contraposiccedilatildeo aos pensamentos de
Comte e Claude Bernard Canguilhem faz uma breve exposiccedilatildeo das ideias de
Reneacute Leriche meacutedico que acredita que se deve partir da teacutecnica meacutedica e
ciruacutergica suscitada pelo estado patoloacutegico para somente entatildeo se chegar ao
conhecimento do fisioloacutegico pois este deve ser obtido por abstraccedilatildeo retrospectiva
da experiecircncia cliacutenica e terapecircutica Acreditando que o estudo do homem normal
natildeo eacute suficiente para nos dar informaccedilotildees completas sobre os fenocircmenos vitais
para Leriche eacute a anaacutelise do homem doente que deve servir para o conhecimento
do homem normal pois conseguimos descobrir nele deacuteficits que nem a mais sutil
experiecircncia em animais conseguiria realizar e graccedilas aos quais eacute possiacutevel chegar
agraves caracteriacutesticas da vida normal (cf NP 1990 p75) Portanto eacute por afirmar que
as doenccedilas nos mostram mais possibilidades fisioloacutegicas do que a ciecircncia do
normal nos faz crer que existam e defender que o papel da fisiologia eacute pesquisar e
solucionar os problemas levantados pelas doenccedilas dos doentes que Canguilhem
daacute importacircncia a sua teoria
ldquoMesmo correndo o risco de melindrar certas pessoas que acham que o intelecto soacute se realiza no intelectualismo queremos repetir mais uma vez que o valor da teoria de Leriche em si independente de qualquer criacutetica dirigida a algum detalhe de conteuacutedo eacute o fato de ser a teoria de uma teacutecnica uma teoria para qual a teacutecnica existe natildeo como uma serva doacutecil aplicando ordens intangiacuteveis mas como conselheira e incentivadora chamando a atenccedilatildeo para os problemas concretos e orientando a pesquisa na direccedilatildeo dos obstaacuteculos sem presumir antecipadamente nada acerca das soluccedilotildees teoacutericas que lhes seratildeo dadasrdquo (NP 1990 p76)
79
Ainda segundo Lecourt (2008) eacute contra o cientificismo radical do seacuteculo XIX que Canguilhem se coloca ao afirmar que a accedilatildeo eacute primeira em relaccedilatildeo ao conhecimento Contrapondo-se agraves maacuteximas de Comte de que eacute preciso saber para agir ou ainda que eacute preciso saber para prever e prever para poder que implicam numa relaccedilatildeo de aplicaccedilatildeo entre ciecircncia e teacutecnica ele acredita que elas satildeo mais enganadoras do que ceacutelebres Para ele eacute uma ilusatildeo tentar subordinar a teacutecnica agrave ciecircncia como se a primeira fosse a aplicaccedilatildeo da segunda apenas porque certas teacutecnicas em determinado momento podem ser melhoradas pela aplicaccedilatildeo de uma teoria Eacute a ciecircncia que precede da teacutecnica porque satildeo as resistecircncias encontradas na arte humana que incitam a pesquisa do conhecimento verdadeiro Assim para o comentador Canguilhem faz uma criacutetica profunda ao cientificismo afirmando que o problema da ciecircncia natildeo pode ser resolvido sobre o terreno da ciecircncia Inspirado em Nietzsche ele diz ser necessaacuterio considerar a ciecircncia sob a oacuteptica da arte e a arte sob a oacuteptica da vida (cf LECOURT 2008 p71) Op cit
97
De outro modo Comte e Claude Bernard apostando na ciecircncia para a
orientaccedilatildeo da atividade teacutecnica concordando com a tese da identidade dos
fenocircmenos normais e patoloacutegicos reduzem a teacutecnica meacutedica agrave mera aplicaccedilatildeo de
conhecimentos cientiacuteficos A diferenccedila existente entre eles eacute que Comte
intenciona determinar especulativamente as leis do normal com vistas agrave
construccedilatildeo de um sistema de poliacutetica positiva e em Claude Bernard a afirmaccedilatildeo
da tese tem por finalidade uma accedilatildeo racional sobre a doenccedila a partir de uma
terapecircutica natildeo-empirista Nele portanto eacute a recusa do empirismo que daacute sentido
agrave tentativa de precisar experimentalmente a identidade do normal e do patoloacutegico
numa interpretaccedilatildeo de caraacuteter quantitativo e numeacuterico Desse modo enquanto
Comte afirma a tese da identidade real do normal e do patoloacutegico de modo
puramente conceitual Claude Bernard a sustenta a partir de uma vida inteira de
experimentaccedilotildees bioloacutegicas inclusive com animais para a definiccedilatildeo do patoloacutegico
no homem de modo a dar agrave ciecircncia fisioloacutegica uma base para que ela pudesse
reger a atividade terapecircutica por intermeacutedio da patologia (cf NP 1990 p78)
Assim no Ensaio estrategicamente ao expor os pensamentos de Comte e
Claude Bernard para defender a independecircncia da teacutecnica em relaccedilatildeo agrave ciecircncia a
partir da consideraccedilatildeo da dimensatildeo axioloacutegica do normal e do patoloacutegico
Canguilhem natildeo quer mostrar apenas em que medida ambos resvalaram em
problemas ao recorrerem a noccedilotildees de caraacuteter qualitativo quando da defesa da
distinccedilatildeo quantitativa dos fenocircmenos normais e patoloacutegicos mas tambeacutem apontar
os limites das experimentaccedilotildees realizadas em laboratoacuterio e com animais para a
compreensatildeo da doenccedila no homem Isso porque acredita que o laboratoacuterio eacute
apenas um meio dentre outros nos quais o ser vivo molda seus modos de vida e
a doenccedila natildeo sendo um estado forccedilado experimentalmente eacute uma experiecircncia
vivida por um indiviacuteduo concreto num meio natildeo controlado no qual variaccedilotildees e
toda sorte de acontecimentos satildeo possiacuteveis
ldquoO meio de laboratoacuterio eacute para o animal ou para o homem um meio possiacutevel entre outros Eacute claro que o cientista tem razatildeo em ver nos seus aparelhos apenas as teorias que eles materializam nos produtos empregados apenas as reaccedilotildees que eles permitem e de postular a validade universal dessas teorias e dessas reaccedilotildees para o ser vivo poreacutem aparelhos e produtos satildeo objetos entre os quais ele se move como
98
num mundo insoacutelito Natildeo eacute possiacutevel que os modos de vida no laboratoacuterio natildeo conservem alguma especificidade em relaccedilatildeo com o local e com o momento da experiecircnciardquo (NP 1990 p117)
Destarte na primeira parte do Ensaio dedicada ao problema de se o
estado patoloacutegico seria apenas uma variaccedilatildeo quantitativa do estado normal
Canguilhem nota que apesar de suas experimentaccedilotildees bioloacutegicas estarem
apresentadas metodicamente na Introduction agrave leacutetude de la meacutedecine
expeacuterimentale (1865) Leccedilons sur le diabegravete et la glycogenegravese animale (1877) eacute o
texto em que Claude Bernard procura melhor demonstrar a teoria sobre a
identidade do normal e do patoloacutegico atraveacutes da exposiccedilatildeo dos mecanismos de
uma doenccedila em particular que na sua perspectiva consiste uacutenica e inteiramente no
distuacuterbio de uma funccedilatildeo normal Jaacute Comte afirma a identidade real dos fenocircmenos
patoloacutegicos e fisioloacutegicos correspondentes durante os trecircs estaacutegios de sua
evoluccedilatildeo intelectual80 embora a 40a Liccedilatildeo do Cours de philosophie positive
contenha o texto mais completo sobre o tema
Do ponto de vista comteano eacute de Broussais a ideia de que todas as
doenccedilas consistem basicamente no excesso ou na falta de excitaccedilatildeo dos diversos
tecidos abaixo ou acima do grau que constitui o estado normal81 o que faz com
que os fenocircmenos da doenccedila coincidam essencialmente com os fenocircmenos da
sauacutede dos quais soacute difeririam pela intensidade
80
Quando Canguilhem fala de trecircs estaacutegios de evoluccedilatildeo intelectual de Comte ele considera como primeiro periacuteodo o preparatoacuterio ao Cours de philosophie positive como segundo o periacuteodo propriamente dito de Filosofia Positiva e como uacuteltimo o do Systeacuteme de politique positive (cf NP 1990 p27)
81 Para Canguilhem Comte erroneamente atribui a Broussais o meacuterito que cabe verdadeiramente a
Bichat e a Pinel de ter concluiacutedo que todas as doenccedilas satildeo sintomas de perturbaccedilotildees nas funccedilotildees vitais decorrentes de lesotildees histoloacutegicas Com efeito a teoria de Broussais combina os ensinamentos do meacutedico escocecircs Brown e de Bichat Para Brown a doenccedila depende de variaccedilotildees de intensidade da incitaccedilatildeo propriedade peculiar que permite aos seres vivos serem afetados e reagirem Mas se Brown faz uma ldquomatematizaccedilatildeordquo dos fenocircmenos patoloacutegicos Bichat em Recherches sur la Vie et la Mort (1800) prefere opor o objeto e os meacutetodos da fisiologia ao objeto e meacutetodo da fiacutesica entendendo que encaixar agrave forccedila os fenocircmenos vitais no quadro riacutegido das relaccedilotildees meacutetricas significaria desnaturaacute-los Natildeo obstante a hostilidade de Bichat em relaccedilatildeo a qualquer intenccedilatildeo meacutetrica em biologia paradoxalmente alia-se agrave afirmaccedilatildeo de que no niacutevel nos tecidos as doenccedilas devem ser explicadas por variaccedilotildees de suas propriedades variaccedilotildees estas que temos que admitir serem quantitativas (cf NP 1990 p40)
99
ldquoSegundo o princiacutepio eminentemente filosoacutefico que serve doravante de base geral e direta agrave patologia positiva princiacutepio este que foi definitivamente estabelecido pelo gecircnio ousado e perseverante de nosso ilustre concidadatildeo Broussais o estado patoloacutegico em absoluto natildeo difere radicalmente do estado fisioloacutegico em relaccedilatildeo ao qual ele soacute poderia constituir sob um aspecto qualquer um simples prolongamento mais ou menos extenso dos limites de variaccedilotildees quer superiores quer inferiores peculiares a cada fenocircmeno do organismo normal se jamais poder produzir fenocircmenos realmente novos que natildeo tivessem de modo nenhum ateacute certo ponto seus anaacutelogos puramente fisioloacutegicosrdquo (NP 1990 p 31)
No capiacutetulo intitulado ldquoAugust Comte e o lsquoPrinciacutepio de Broussaisrsquordquo
Canguilhem diz que dentre as obras de Broussais Comte conhecia melhor o
trabalho De lrsquoirritation et la folie (1828) Nele Broussais identifica os termos
anormal patoloacutegico ou moacuterbido empregando-os indiferentemente e defende que
a distinccedilatildeo entre o normal ou fisioloacutegico e o anormal ou patoloacutegico eacute simplesmente
quantitativa explicada em termos de excesso ou falta Ainda afirma que tal
distinccedilatildeo tambeacutem deve ser vaacutelida para os fenocircmenos mentais assim como eacute para
os fenocircmenos orgacircnicos uma vez que admitia a teoria fisioloacutegica das faculdades
intelectuais Comte acredita que jamais se concebeu de maneira tatildeo direta e tatildeo
satisfatoacuteria a relaccedilatildeo fundamental entre patologia e fisiologia e por isso atribui ao
princiacutepio de Broussais um alcance universal na ordem dos fenocircmenos bioloacutegicos
psicoloacutegicos e socioloacutegicos inclusive no campo da poliacutetica
Destarte para Canguilhem eacute somente remontando agraves fontes longiacutenquas
das ideias de Comte atraveacutes da patologia de Broussais de Brown82 e de Bichat
82
Na Ideologia e racionalidade nas ciecircncias da vida na seccedilatildeo intitulada ldquoUma ideologia meacutedica exemplar o sistema de Brownrdquo Canguilhem estuda os motivos do sucesso alcanccedilado pela teoria meacutedica de John Brown (1735-1788) exposta nos Elementos de Medicina (1780) Para Cuvier destaca a principal razatildeo da aceitaccedilatildeo do brownismo na Itaacutelia e na Alemanha foi a distribuiccedilatildeo das doenccedilas e dos medicamentos em duas classes opostas conforme a accedilatildeo vital se encontrasse excitada ou diminuiacuteda o que reduzia a arte meacutedica a um pequeno nuacutemero de foacutermulas guias seguros para seu exerciacutecio Outros historiadores tambeacutem encontraram a explicaccedilatildeo para o sucesso da teoria de Brown na simplificaccedilatildeo que oferecia agrave praacutetica meacutedica agora reduzida a dois atos terapecircuticos inversos estimular e debilitar Outros explicaram sua larga aceitaccedilatildeo na Alemanha por ela ao apresentar o conflito entre estimulaccedilatildeo e desfalecimento dar respaldo meacutedico aos ldquosuspiros de enlanguescimentordquo dos romacircnticos Jaacute a Franccedila foi o paiacutes em que a doutrina de Brown teve menos sucesso entre os meacutedicos A recusa de sua teoria pelas escolas meacutedicas tanto a de Paris quanto a de Montpellier ocorreu porque sua concepccedilatildeo geral sobre os fenocircmenos da vida se contrapunha a de Bichat ldquoBrown eacute anti-Bichat por antecipaccedilatildeordquo (I 1981 p48) Enquanto Brown afirmava que a vida eacute um estado forccedilado e que os seres vivos tendem para a destruiccedilatildeo sucumbindo agraves potecircncias externas Bichat defendia que a vida eacute um conjunto de funccedilotildees que resiste agrave morte De acordo com Canguilhem na Franccedila Brown foi eclipsado por Broussais para quem ao contraacuterio do que pregava o brownismo a irritabilidade era um mal Mas
100
que compreendemos melhor o alcance e o limite de suas ideias Mas natildeo
devemos nos esquecer que as intenccedilotildees e os objetivos de Comte satildeo bastante
diferentes dos de seus predecessores Comte pretende com suas investigaccedilotildees
instituir cientificamente uma doutrina poliacutetica83 Afirmando de maneira geral que
as doenccedilas natildeo alteram essencialmente os processos vitais ele quer mostrar que
as crises poliacuteticas podem ser sanadas e a sociedade passada a turbulecircncia
retornaraacute a sua estrutura permanente e essencial tolerando o progresso dentro
dos limites de variaccedilatildeo da ordem natural definida pela estaacutetica social
Com efeito do mesmo modo que Broussais afirma que qualquer
modificaccedilatildeo artificial ou natural na ordem real de um fenocircmeno diz respeito
somente agrave alteraccedilatildeo na intensidade dos fenocircmenos a ele correspondentes e que
apesar das variaccedilotildees de grau os fenocircmenos conservam sempre a mesma
disposiccedilatildeo natildeo havendo mudanccedila de natureza propriamente dita Comte defendia
que uma perturbaccedilatildeo do organismo coletivo isto eacute as revoluccedilotildees natildeo alteram
essencialmente a natureza da sociedade sua tendecircncia agrave cessaccedilatildeo da
perturbaccedilatildeo e retorno da ordem ideia base de seu princiacutepio socioloacutegico
fundamental de que o progresso natildeo seria nada mais que o desenvolvimento da
ordem (cf NP 1990 p28)
Natildeo obstante Broussais ao tentar reduzir toda patogenia a um fenocircmeno
de aumento ou diminuiccedilatildeo procurando fazer uso de conceitos de valor
quantitativo ao falar em alteraccedilatildeo ou perturbaccedilatildeo orgacircnica acaba por resvalar em
conceitos qualitativos (cf NP 1990 p40) Comte na mesma esteira fracassou na
tentativa de traduzir a diferenccedila existente entre o normal e o patoloacutegico em termos
de quantidade Ao refletir sobre os limites da variaccedilatildeo do estado normal e do
apesar da discordacircncia Broussais conserva dele a ideia de que a natureza natildeo dispocircs para a vida e para a sauacutede potecircncias diferentes daquelas que presidem as doenccedilas e a morte Este princiacutepio de identidade dos fenocircmenos normais e patoloacutegicos admitido por Magendie Comte e Claude Bernard fundou uma ideologia meacutedica liberta de toda fidelidade ao hipocratismo Para Brown ao contraacuterio do que propunha Bichat eacute preciso estimular ou debilitar pois natildeo podemos ficar na inaccedilatildeo confiando nas forccedilas da natureza (Cf I 1981 p49)
83 Vale dizer que segundo Canguilhem Comte ao adotar a mesma concepccedilatildeo de patologia de
Broussais pretendia instituir uma teoria poliacutetica por isso a subordina a um sistema de poliacutetica positiva sendo que sua difusatildeo como concepccedilatildeo independente ocorreu atraveacutes de meacutedicos psicoacutelogos e literatos de inspiraccedilatildeo e tradiccedilatildeo positivista (cf NP 1990 p42)
101
patoloacutegico em sua compatibilidade com a existecircncia dos organismos Comte fala
em harmonia de influecircncias distintas tanto internas quanto internas conceito de
caraacuteter evidentemente qualitativo ldquoEsclarecido por este conceito de harmonia o
conceito de normal ou de fisioloacutegico eacute reduzido a um conceito qualitativo e
polivalente esteacutetico e moral mais ainda que cientiacuteficordquo (NP 1990 p33)
Jaacute Claude Bernard ao explicar o que seria o diabetes utiliza
indiferentemente as expressotildees variaccedilotildees quantitativas e diferenccedilas de grau
fazendo uso das ideias de continuidade e homogeneidade indistintamente como
se a primeira subentendesse a segunda (cf NP 1990 p53) Sendo assim se ele
se equivocou ao deduzir da continuidade a homogeneidade correndo o risco de
deixar a doenccedila escorregar-lhe por entre os dedos Comte ao recorrer a
Broussais acabou por tropeccedilar em conceitos notadamente qualitativos Isto eacute se
Comte recorre ao princiacutepio de Broussais com intenccedilatildeo de conhecer objetivamente
o estado normal do qual o patoloacutegico seria apenas a expressatildeo exacerbada ele
natildeo consegue excluir deste conceito seu caraacuteter normativo Isso porque ao tomar
uma certa concepccedilatildeo de normalidade como ideal de funcionamento orgacircnico ele
natildeo percebe que por traacutes de sua definiccedilatildeo objetiva do conceito de normal em sua
explicaccedilatildeo deste estado como um fato reside uma atribuiccedilatildeo preacutevia de valor
ldquoDefinir o normal por meio do que eacute de mais ou de menos eacute reconhecer o caraacuteter normativo do estado dito lsquonormalrsquo Este estado normal ou fisioloacutegico deixa de ser apenas uma disposiccedilatildeo detectaacutevel e explicaacutevel como um fato para ser a manifestaccedilatildeo do apego a algum valorrdquo (NP 1990 p36)
Igualmente Claude Bernard ao que parece natildeo conseguiu escapar da
mesma ambiguidade ao defender que eacute a exageraccedilatildeo a desproporccedilatildeo ou
desarmonia dos fenocircmenos normais o que constitui o estado doentio Sua ideia de
que toda ldquodoenccedila tem uma funccedilatildeo normal correspondente da qual ela eacute a
expressatildeo perturbada exagerada diminuiacuteda ou anuladardquo (NP 1990 p45) ao
manter o termo ldquoexageraccedilatildeordquo dos fenocircmenos normais para definir o estado
patoloacutegico ainda guarda um sentido claramente qualitativo Sendo assim apesar
de trazer para sustentar seu princiacutepio geral de patologia argumentos controlaacuteveis
102
protocolos de experiecircncia e principalmente meacutetodos de quantificaccedilatildeo dos
conceitos fisioloacutegicos haacute em suas teorias assim como nas de Broussais e Comte
uma convergecircncia de conceitos qualitativos e quantitativos na definiccedilatildeo dos
fenocircmenos patoloacutegicos
Desta forma para Canguilhem o problema da atribuiccedilatildeo de realidade
objetiva acessiacutevel ao conhecimento cientiacutefico quantitativo ao conceito de doenccedila
permanece em aberto Para ele o argumento de Claude Bernard de que a sauacutede
e a doenccedila natildeo satildeo dois modos de vida que diferem essencialmente havendo
entre estes estados apenas uma diferenccedila de grau - natildeo existindo assim um uacutenico
caso em que a doenccedila tenha feito surgir condiccedilotildees novas uma mudanccedila completa
da cena produtos novos e especiais - parece natildeo ter validade universal (cf NP
1990 p49)
Haacute um conjunto de doenccedilas que colocam em questatildeo este esquema
explicativo pois natildeo se enquadram no modelo hipohiper No caso da uacutelcera
gaacutestrica por exemplo o essencial da doenccedila natildeo consiste na hipercloridria mas
sim na autodigestatildeo do estocircmago fenocircmeno que difere profundamente do estado
normal De igual modo a hipertensatildeo natildeo pode ser considerada o simples
aumento da pressatildeo arterial fisioloacutegica como se ela natildeo modificasse
profundamente a estrutura e as funccedilotildees dos oacutergatildeos essenciais como o coraccedilatildeo e
o pulmatildeo Ateacute o argumento claacutessico de Claude Bernard de que o principal sintoma
do diabetes eacute o ultrapassamento do limiar de glicose normal na urina natildeo invalida
a tese de que a presenccedila de accediluacutecar na urina diabeacutetica a torna qualitativamente
diferente de uma urina normal pois ldquoo estado patoloacutegico identificado como seu
principal sintoma eacute uma qualidade nova em relaccedilatildeo ao estado fisioloacutegicordquo (NP
1990 p 55)
Mesmo a ideia de substituiccedilatildeo da ideia de sintoma por mecanismos de
funcionamento normais e patoloacutegicos como estrateacutegia para imprimir maior
objetividade agrave explicaccedilatildeo do estado doentio natildeo elimina a diferenccedila de qualidade
existente entre o comportamento de um mesmo oacutergatildeo em estado considerado
103
normal e em outro tomado por patoloacutegico84 Pela perspectiva canguilhemiana
considerar as funccedilotildees fisioloacutegicas como mecanismos os limiares como barragens
as regulaccedilotildees como vaacutelvulas de seguranccedila servofreios ou termostatos significaria
cair no que chama de ldquoarmadilhas e ciladasrdquo das concepccedilotildees iatromecanicistas
(cf NP 1990 p56) No caso do diabetes por exemplo ainda que considerado um
certo ldquocomportamento renalrdquo para a explicaccedilatildeo das variaccedilotildees do limiar normal de
glicose na urina o uso do termo comportamento normal jaacute introduz na explicaccedilatildeo
do fenocircmeno patoloacutegico uma noccedilatildeo que natildeo pode ser inteiramente transposta em
termos analiacuteticos e quantitativos
Tambeacutem as doenccedilas nervosas resistem agraves explicaccedilotildees baseadas nos
princiacutepios de Claude Bernard A exemplo disso Goldstein atraveacutes da observaccedilatildeo
cliacutenica de pacientes com ferimentos no ceacuterebro concluiu que natildeo se deve
absolutamente crer que as diversas atitudes de um doente com lesatildeo cerebral
representam apenas uma espeacutecie de resiacuteduo do comportamento normal aquilo
que sobreviveu agrave destruiccedilatildeo As atitudes que sobreviveram no doente jamais se
apresentam da mesma forma no homem normal nem mesmo nos estaacutegios
inferiores de sua ontogecircnese ou filogecircnese A doenccedila daacute ao comportamento do
doente formas peculiares que soacute podem ser bem compreendidas se levada em
conta a novidade instaurada pelo estado moacuterbido
ldquoPortanto eacute preciso comeccedilar por compreender que o fenocircmeno patoloacutegico revela uma estrutura individual modificada Eacute preciso ter sempre em mente a transformaccedilatildeo da personalidade do doente Caso contraacuterio arriscamo-nos a ignorar que o doente mesmo quando eacute capaz de reaccedilotildees normais semelhantes agraves que antes podia ter pode chegar a essas reaccedilotildees por caminhos completamente diferentes Essas reaccedilotildees aparentemente equivalentes agraves reaccedilotildees normais natildeo satildeo resiacuteduos do comportamento normal anterior natildeo satildeo o resultado de uma reduccedilatildeo ou diminuiccedilatildeo natildeo satildeo o aspecto normal da vida menos alguma coisa que foi destruiacuteda satildeo reaccedilotildees que jamais se apresentam no indiviacuteduo normal sob a mesma forma e nas mesmas condiccedilotildeesrdquo (NP 1990 p147)
84
Em realidade o que Canguilhem critica nas conclusotildees bernardianas natildeo eacute tanto o fato de serem errocircneas jaacute que de fato alguns sintomas satildeo o produto quantitativamente variado de mecanismos constantes no estado fisioloacutegico mas sua extrapolaccedilatildeo ilegiacutetima Sua teoria eacute vaacutelida somente em certos casos nos quais se restringe o fenocircmeno patoloacutegico a algum sintoma natildeo levando em conta o contexto cliacutenico ou quando se busca a causa dos efeitos sintomaacuteticos em mecanismos funcionais parciais desconsiderando que o comportamento de um oacutergatildeo natildeo pode ser abstraiacutedo do comportamento do organismo funcionando como um todo (cf NP 1990 p60-1)
104
Igualmente o princiacutepio bernardiano parece natildeo se aplicar em casos de
doenccedilas infecciosas sendo difiacutecil afirmar que o estado infeccioso natildeo traz
nenhuma descontinuidade na histoacuteria do ser vivo No caso das doenccedilas mentais
vale a mesma criacutetica Acompanhando psiquiatras como Blondel Lagache e
Minkowski Canguilhem natildeo acredita ser possiacutevel comparar os sintomas
patoloacutegicos com elementos da consciecircncia normal Com efeito Blondel em seu
livro La conscience morbide descreve casos de alienaccedilatildeo nos quais o meacutedico tem
a impressatildeo de lidar com uma estrutura de mentalidade diferente Tambeacutem para
Lagache a desorganizaccedilatildeo moacuterbida natildeo eacute o simeacutetrico inverso da organizaccedilatildeo
mental normal Haacute uma originalidade no patoloacutegico pois na consciecircncia patoloacutegica
podem existir formas que natildeo encontram equivalentes no estado normal Jaacute
Minkowski apresenta o fenocircmeno da alienaccedilatildeo sob o acircngulo do ldquoser de modo
diferenterdquo no sentido qualitativo da palavra acreditando que ela natildeo pode ser
reduzida a um fato de doenccedila determinado por referecircncia a uma imagem ou ideia
precisa do homem meacutedio ou normal (cf NP 1990 p89)85
Canguilhem de igual modo questiona a ideia de que as constantes
classificadas como normais designam caracteriacutesticas meacutedias e mais frequentes
nos casos observaacuteveis num sentido descritivo Para ele a tentativa de reduzir a
norma agrave meacutedia apresenta dificuldades que satildeo atualmente e provavelmente
insuperaacuteveis Norma e meacutedia satildeo conceitos diferentes e que eacute inuacutetil tentar reduzi-
los a uma unidade agraves custas da originalidade do primeiro (cf NP 1990 p142)
85
Eacute importante notar que Canguilhem ao fazer referecircncia agrave psicologia e agrave psiquiatria fenomenoloacutegica quer compreender de modo idecircntico a doenccedila somaacutetica e a psiacutequica Acreditando na contribuiccedilatildeo reciacuteproca entre a fisiopatologia e a psicopatologia no Ensaio diz que os meacutedicos e fisiologistas poderiam tirar proveito da retificaccedilatildeo e atualizaccedilatildeo dos conceitos de normal e de patoloacutegico realizadas pelos estudiosos das doenccedilas mentais (cf NP 1990 p90) Em La connaissance de la vie no artigo ldquoLe normal et le pathologiquerdquo fazendo novamente referecircncia agrave Lagache Minkowski e agora tambeacutem agrave Lacan ele novamente fala da diferenccedila qualitativa entre os estados normal e patoloacutegico e realiza um diaacutelogo entre a medicina das doenccedilas orgacircnicas e a das psiacutequicas mas agora para apresentar em que medida o estudo da anomalia somaacutetica pode contribuir para o entendimento da anomalia psiacutequica ldquoOra como nos pareceu reconhecer na sauacutede um poder normativo de colocar em questatildeo as normas fisioloacutegicas usuais atraveacutes da busca do debate do vivente e o meio ndash debate que implica a aceitaccedilatildeo normal do risco da doenccedila ndash de igual modo nos parece que a norma em mateacuteria de psiquismo humano eacute a reivindicaccedilatildeo e o uso da liberdade como poder de revisatildeo e de instituiccedilatildeo de normas reivindicaccedilatildeo que implica normalmente o risco da loucurardquo (CV 1995 p168)
105
No entanto o fisiologista encontra no conceito de meacutedia um equivalente objetivo e
cientificamente vaacutelido do conceito de normal natildeo compartilhando sabiamente com
Claude Bernard a correta aversatildeo herdada de Bichat por resultados de anaacutelise
de experiecircncias bioloacutegicas expressos em meacutedias cujos valores fariam
desaparecer o caraacuteter oscilatoacuterio e riacutetmico do fenocircmeno bioloacutegico fundamental
visto que nunca representariam um fato verdadeiro
ldquose procurarmos o verdadeiro nuacutemero das pulsaccedilotildees cardiacuteacas pela meacutedia das medidas tomadas durante vaacuterias vezes durante um mesmo dia num determinado indiviacuteduo lsquoteremos precisamente um nuacutemero falsorsquordquo (NP 1990 p118)
Por isso do ponto de vista bernardiano o normal seraacute muito melhor definido como
tipo ideal em condiccedilotildees experimentais determinadas do que como meacutedia
aritmeacutetica ou frequecircncia estatiacutestica
No entanto Canguilhem diante da impossibilidade de se fornecer o
equivalente integral do normal anatocircmico ou fisioloacutegico sob a forma de meacutedia
objetivamente calculada natildeo tenta resolver este problema como tentou fazer
Claude Bernard definindo o normal como tipo ideal em condiccedilotildees experimentais
Ou seja apesar de se filiar agrave criacutetica bernardiana agravequeles que reduzem o normal agrave
meacutedia ele discorda da possibilidade de sua determinaccedilatildeo por vias experimentais
Isso porque muitas satildeo as dificuldades enfrentadas pelo fisiologista no curso de
suas pesquisas ao tentar comparar as condiccedilotildees experimentais agraves condiccedilotildees
normais primeiro natildeo haacute como ter certeza quanto ao fato do indiviacuteduo dito
normal em situaccedilatildeo experimental ser idecircntico a outro da mesma espeacutecie em
situaccedilatildeo natildeo artificial segundo os meios artificiais de induccedilatildeo de uma doenccedila
podem provocar alteraccedilotildees fenomenologicamente diferentes das presentes em
estados patoloacutegicos natildeo artificialmente induzidos o que faz com que o fisiologista
nunca possa assegurar que o estado patoloacutegico forjado experimentalmente seja
idecircntico ao estado patoloacutegico espontaneamente instaurado e por fim haveria a
impossibilidade de realizar estudos comparativos entre indiviacuteduos de diferentes
espeacutecies acometidos pela mesma doenccedila jaacute que as comparaccedilotildees estabelecidas
entre estados patoloacutegicos de indiviacuteduos diferentes abrem uma grande margem de
106
incerteza ldquonatildeo se pode sem grandes preocupaccedilotildees tirar conclusotildees que se
apliquem ao homem diabeacutetico a partir do catildeo de Von Mering e Minkowski ou do
catildeo de Youngrdquo (NP 1990 p116)
Assim colocando em questatildeo a concepccedilatildeo comum de que os fisiologistas
devem ter por fenocircmenos normais aqueles cuja exploraccedilatildeo eacute possiacutevel graccedilas aos
instrumentos de laboratoacuterio ele contesta a ideia de que o aferimento e a
mensuraccedilatildeo laboratoriais satildeo suficientes para servir de norma agrave atividade
funcional do ser vivo fora do espaccedilo experimental
ldquoAs normas funcionais do ser vivo examinado no laboratoacuterio soacute adquirem sentido dentro das normas operacionais do cientista Neste sentido nenhum fisiologista contestaraacute que apenas fornece um conteuacutedo ao conceito de norma bioloacutegica mas que de modo algum elabora o que tal conceito tem de normativordquo (NP 1990 p114)
Isso ocorre porque o proacuteprio laboratoacuterio jaacute eacute um meio novo que impotildee ao indiviacuteduo
uma reaccedilatildeo normativa de ajustamento o que provoca uma alteraccedilatildeo em seu
modo de vida usual aleacutem de que a determinaccedilatildeo de constantes fisioloacutegicas
atraveacutes de meacutedias obtidas experimentalmente sempre corre o risco de apresentar
o homem normal como um homem mediacuteocre bem abaixo das possibilidades
fisioloacutegicas que os homens em condiccedilatildeo de influir sobre si mesmos e sobre o meio
satildeo capazes (cf NP 1990 p129)
Por outra via para demonstrar o que o conceito de norma tem de normativo
Canguilhem opta por fazer uma breve exposiccedilatildeo e um exame da ldquoteoria do
homem meacutediordquo de Quecirctelet e das criacuteticas a ela feitas por Halbawachs Mayer e
Laugier86 de modo a apresentar as dificuldades encontradas por ele ao tentar
definir a norma como meacutedia ou frequecircncia estatiacutestica Para se contrapor agrave
perspectiva metafiacutesica de Quetelecirct estrategicamente agora ele recorre a um
conjunto de estudos situados na interface das ciecircncias bioloacutegicas com as ciecircncias
humanas que procura relacionar as caracteriacutesticas fisioloacutegicas e patoloacutegicas do
homem com o meio geograacutefico e histoacuterico em que ele se encontra Almejando
86
Autores respectivamente das obras La theacuteorie de lrsquohomme moyen essai sur Quecirctelet et la statistique morale Lrsquoorganisme normal et la mesure du fonctionnement e Lrsquohomme normal
107
realizar uma inversatildeo loacutegica Canguilhem faz uso deste referencial para defender
que natildeo eacute norma que se submete agrave meacutedia mas eacute a meacutedia que traduz uma norma
bioloacutegica e socialmente aceita por um determinado grupo geograacutefica e
historicamente situado
Ao expor a teoria de Quecirctelet Canguilhem destaca que na obra
Anthropomeacutetrie ou mesure des diffeacuterentes facultes de lhomme (1870) ele estudou
sistematicamente as variaccedilotildees da estatura do homem estabelecendo para
determinados caracteres meacutedios em indiviacuteduos de uma populaccedilatildeo homogecircnea um
poliacutegono de frequecircncia expresso em uma ldquocurva em sinordquo denominada curva
binomial ou curva de Gauss Do ponto de vista graacutefico dentre o grande nuacutemero de
homens cuja estatura varia dentro de limites determinados aqueles que se
aproximam mais da estatura meacutedia satildeo os mais numerosos e aqueles que mais se
afastam satildeo em menor nuacutemero O tipo humano a partir do qual os demais satildeo
desvios tanto mais raros quanto maior for a distacircncia em relaccedilatildeo a ele
caracterizaria o homem meacutedio
Ademais distinguindo dois tipos de meacutedia a aritmeacutetica ou mediana e a
meacutedia verdadeira Quecirctelet ainda acreditava que a existecircncia desta uacuteltima seria
um sinal incontestaacutevel da existecircncia de uma regularidade na natureza
interpretada num sentido ontoloacutegico ldquoOra essa possibilidade de interpretar as
flutuaccedilotildees bioloacutegicas pelo caacutelculo de probabilidades parecia a Quecirctelet da mais
alta importacircncia metafiacutesicardquo (NP 1990 p123) Para ele o homem estaria sujeito
agraves leis divinas e as cumpriria com regularidade assim como os animais e as
plantas As variaccedilotildees ou flutuaccedilotildees encontradas em determinado caraacuteter seriam
consequecircncias da lei do acaso ou da lei das causas acidentais cujos efeitos
tenderiam a se anular por compensaccedilatildeo progressiva fazendo aparecer com mais
nitidez o tipo humano meacutedio
Segundo Canguilhem Halbwachs contesta a ideia de que a distribuiccedilatildeo da
altura humana em torno de uma meacutedia seja um fenocircmeno ao qual possa de
aplicar a lei do acaso pois se apenas ela vigorasse natildeo se poderia identificar
efeitos orgacircnicos constantes Ademais ele acredita que Quecirctelet natildeo tem razatildeo
108
ao considerar a estatura um fato puramente bioloacutegico pois eacute impossiacutevel
desconsiderar a influecircncia do meio geograacutefico e da histoacuteria em sua variaccedilatildeo jaacute
que na espeacutecie humana ela eacute um fenocircmeno inseparavelmente bioloacutegico e social A
estatura soacute seria um fato puramente bioloacutegico se fosse estudada num conjunto de
indiviacuteduos pertencentes a uma linhagem pura animal ou vegetal
ldquoEm resumo hereditariedade e tradiccedilatildeo haacutebito ou costume satildeo outras tantas formas de dependecircncia e de ligaccedilatildeo interindividual portanto outros tantos obstaacuteculos a uma utilizaccedilatildeo adequada do caacutelculo de probabilidadesrdquo (NP 1990 p125)
Tomando como exemplo a longevidade Halbwachs mostra sua estreita relaccedilatildeo
com as condiccedilotildees de trabalho e higiene a fadiga e as doenccedilas mais comuns em
determinado grupo social A seu ver o que se expressa no nuacutemero abstrato que eacute
a duraccedilatildeo meacutedia da vida humana natildeo eacute a duraccedilatildeo biologicamente normal mas a
duraccedilatildeo de uma vida socialmente normativa (cf NP 1990 p127)
Outro problema da teoria de Quecirctelet apontado por Canguilhem eacute que
mesmo que fosse possiacutevel encontrar uma meacutedia que caracterizasse o estado
normal o problema agora consistiria em saber dentro de que oscilaccedilotildees em torno
deste valor meacutedio puramente teoacuterico os indiviacuteduos ainda seriam considerados
normais De acordo com Mayer e Laugier os fenocircmenos biomeacutetricos admitem
uma margem de variaccedilatildeo de modo que natildeo eacute possiacutevel determinar em que medida
o desvio passaria a ser anormal Com efeito se o normal eacute o resultado de caacutelculo
de meacutedias ou se o modelo eacute o resultado de um produto de estatiacutestica e se eacute
precisamente o afastamento maior ou menor desta meacutedia o que constitui a
individualidade o problema eacute como saber em que ponto ocorre a passagem do
normal para o anormal
ldquoEstabelecer uma curva de Quecirctelet natildeo significa resolver o problema do normal em relaccedilatildeo a um determinado caraacuteter por exemplo em relaccedilatildeo agrave estatura Satildeo necessaacuterias hipoacuteteses diretrizes e convenccedilotildees praacuteticas que permitam decidir em que niacutevel das estaturas seja em direccedilatildeo agraves grandes seja em direccedilatildeo agraves pequenas ocorre a passagem do normal para o anormal O mesmo problema persiste se substituirmos um conjunto de meacutedias aritmeacuteticas por um esquema estatiacutestico a partir do qual determinado indiviacuteduo se afasta mais ou menos pois a estatiacutestica natildeo fornece nenhum meio para decidir se o desvio eacute normal ao anormalrdquo (NP 1990 p121)
109
Na leitura canguilhemiana se Quecirctelet errou ao atribuir agrave meacutedia de um
caraacuteter anatocircmico humano um valor de norma divina foi ao especificar a norma e
natildeo ao interpretar a meacutedia como signo de uma norma pois se uma norma
transparece atraveacutes de uma meacutedia natildeo eacute por haver uma regularidade imposta por
uma lei divina mas sim por haver normas e valores vitais privilegiados postos a
partir das relaccedilotildees que os indiviacuteduos estabelecem com seu meio Concordando
com Halbwachs para quem ldquoo homem eacute um fator geograacutefico e a geografia estaacute
profundamente impregnada de histoacuteria sob a forma de teacutecnicas coletivasrdquo (NP
1990 p125) Canguilhem acredita que as meacutedias anatomofisioloacutegicas estatildeo em
conformidade aos gecircneros e niacuteveis de vida agraves tomadas de posiccedilatildeo eacuteticas e
religiosas ou seja em consonacircncia agraves formas coletivas de vida embora natildeo
sejam completamente determinadas por ela
Assim pelo seu vieacutes um traccedilo humano natildeo seria normal por ser frequente
mas seria frequente por ser normal num determinado gecircnero de vida
ldquoNo entanto na nossa opiniatildeo se Quecirctelet se enganou ao atribuir agrave meacutedia de um caraacuteter anatocircmico humano um valor de norma divina ele errou apenas ao especificar a norma mas natildeo ao interpretar a meacutedia como signo de uma norma Se eacute verdade que o corpo humano eacute em certo sentido produto da atividade social natildeo eacute absurdo supor que a constacircncias de certos traccedilos revelados por uma meacutedia dependa da fidelidade consciente ou inconsciente a certas normas da vida Por conseguinte na espeacutecie humana a frequecircncia estatiacutestica natildeo traduz apenas uma normatividade vital mas tambeacutem uma normatividade socialrdquo (NP 1990 p125-126)
Aqui Canguilhem tambeacutem daacute destaque aos trabalhos do geoacutegrafo francecircs
Maximilien Sorre autor da obra Les fondements biologiques de la geogroacutegraphie
humaine por compartilhar com ele a mesma ideia concernente agrave variaccedilatildeo das
constantes fisioloacutegicas em conformidade ao meio Para Sorre as constantes
fisioloacutegicas numa determinada zona de povoamento natildeo traduzem a ineacutercia de um
determinismo mas um esforccedilo para manter uma estabilidade funcional ideal
naquele meio de modo que as constantes fisioloacutegicas natildeo satildeo constantes no
sentido absoluto do termo pois para cada funccedilatildeo ou funccedilotildees haacute uma margem de
110
variaccedilatildeo que entra em jogo de acordo com a capacidade de adaptaccedilatildeo funcional
de cada grupo a seu ambiente
ldquoEm conclusatildeo Sorre se obstina em mostrar que o homem considerado coletivamente estaacute aacute procura de seus lsquoideais funcionaisrsquo isto eacute dos valores de cada um dos elementos do ambiente para os quais uma funccedilatildeo determinada se realiza melhor () Eacute desnecessaacuterio dizer que nos agrada ver um geoacutegrafo apoiar coma seriedade dos resultados de suas anaacutelises a interpretaccedilatildeo das constantes bioloacutegicas por noacutes propostardquo (NP 1990 p135)
Mas eacute importante dizer que Canguilhem esclarece que sua tese de que as
constantes funcionais podem ser interpretadas como normas habituais de vida natildeo
deve nos levar a crer que as normas fisioloacutegicas sejam o resultado de haacutebitos
individuais e momentacircneos
ldquoAfirmar com a devida reserva que o homem tem caracteriacutesticas fiacutesicas em relaccedilatildeo com sua atividade natildeo significa deixar qualquer pessoa acreditar que poderaacute alterar sua glicemia ou seu metabolismo basal pelo meacutetodo Coueacute ou mesmo pela mudanccedila de ambiente Natildeo se muda em alguns dias aquilo que a espeacutecie elabora durante milecircniosrdquo (NP 1990 p139)
No entanto haacute casos em que se evidencia a influecircncia de uma escolha
expliacutecita sobre um modo de ser fisioloacutegico por exemplo a inversatildeo das condiccedilotildees
de repouso e sono pode levar a uma inversatildeo completa do ritmo nictemeral de
temperatura (cf NP 1990 p141) Mas em resumo o que ele quer dizer eacute que
considerar os valores meacutedios das constantes fisioloacutegicas como expressatildeo de
normas coletivas de vida natildeo significa afirmar uma fatalidade geograacutefica como
bem mostrou os trabalhos da escola francesa de geografia humana inaugurada
por Vidal de la Blanche87 Significa apenas dizer que inventando gecircneros de vida
o homem tambeacutem inventa ao longo do tempo modos de ser fisioloacutegicos (cf NP
1990 p139)
87
Vidal de la Blache (1845-1918) geoacutegrafo francecircs autor da obra Tableau de la Geacuteographie de la France (1903) foi influenciado pela corrente filosoacutefica historicista e pioneiro da corrente geograacutefica que defende o possibilismo em oposiccedilatildeo ao determinismo ambiental germacircnico de Friedrich Ratzel (criador do termo Lebensraum) Com sua teoria ele se contrapocircs agrave concepccedilatildeo fatalista e mecanicista da relaccedilatildeo entre os homens e a natureza afirmando que o homem eacute um ser ativo e natildeo passivo com condiccedilotildees de modificar o meio natural e adaptaacute-lo segundo suas necessidades
111
Destarte afirmando haver uma estreita relaccedilatildeo entre normatividade bioloacutegica
e normatividade social Canguilhem quer mostrar que o meio humano geograacutefico
e histoacuterico eacute ao mesmo tempo causa e efeito das estruturas e comportamentos
dos indiviacuteduos Isso quer dizer que eacute o enfrentamento constante das normas vitais
com as formas coletivas de vida o que explica a variabilidade dos traccedilos humanos
fazendo com que caracteriacutesticas como a longevidade e a estatura sejam ao
mesmo tempo fenocircmenos bioloacutegicos e sociais Desta forma se considerarmos
que haacute variaccedilotildees normativas em conformidade agraves formas coletivas de vida natildeo
apenas nos espaccedilos geograacuteficos mas tambeacutem nos diferentes tempos histoacutericos88
as constantes que se apresentariam com maior frequecircncia e valor meacutedio num
determinado grupo seriam em realidade a expressatildeo de uma normatividade natildeo
apenas bioloacutegica mas tambeacutem social
ldquoConsequumlentemente poder-se-ia atribuir agrave existecircncia de uma meacutedia dos caracteres mais frequentes um sentido bastante diferente daquele que Quecirctelet lhe atribuiacutea A existecircncia dessa meacutedia natildeo traduziria um equiliacutebrio especiacutefico estaacutevel e si o equiliacutebrio instaacutevel de normas e formas de vida mais ou menos equivalentes e que se enfrentam momentaneamenterdquo (NP 1990 p128)
Assim recusando a interpretaccedilatildeo metafiacutesica do conceito de norma
apresentado por Quecirctelet Canguilhem conclui que se determinada caracteriacutestica
bioloacutegica tem maior frequecircncia eacute porque ela eacute normativa num determinado gecircnero
de vida geograacutefico e historicamente situado ldquoSeraacute que natildeo conviria inverter o
problema e refletir se a ligaccedilatildeo dos dois conceitos natildeo poderia ser explicada pela
subordinaccedilatildeo da meacutedia agrave normardquo (NP 1990 p 122) Ou seja se consideramos
que haacute uma relaccedilatildeo entre as normas bioloacutegicas e os haacutebitos humanos
relacionados aos gecircneros niacuteveis e ritmos de vida coletiva veremos que a meacutedia
88
Ancorado nos estudos paleopatoloacutegicos de Pales e Vallois autores de respectivamente Etat actuel de la paleacuteopathologie contribution agrave lrsquoegravetude de la pathologie comparative e Les maladies de lrsquohomme preacutehistorique Canguilhem nota que a relatividade de certos distuacuterbios patoloacutegicos em sua relaccedilatildeo com os gecircneros de vida natildeo se observa apenas atraveacutes da comparaccedilatildeo de grupos eacutetnicos e culturais de um mesmo periacuteodo histoacuterico mas tambeacutem pela comparaccedilatildeo com grupos anteriores desaparecidos Exemplo disso eacute que algumas afecccedilotildees comuns nos homens preacute-histoacutericos se apresentavam em proporccedilotildees bem diferentes das encontradas atualmente como a inexistecircncia de caacuteries dentaacuterias e o elevado nuacutemero de osteoartrite por conta da frequente exposiccedilatildeo ao clima frio e uacutemido
112
apenas expressa a viabilidade de uma norma num determinado grupo humano
Por esta perspectiva na qual eacute a meacutedia que se submete agrave norma ldquoa norma natildeo se
deduz da meacutedia mas se traduz pela meacutediardquo (NP 1990 p127)
Respondendo antecipadamente agravequeles que objetariam sua tese
apontando que subordinando a meacutedia agrave norma o normal deixaria de ter a rigidez
de um determinativo para todos os indiviacuteduos da mesma espeacutecie tornando
impreciso o limite entre o normal e o patoloacutegico Canguilhem explica que como
poderia parecer agrave primeira vista as variaccedilotildees normativas concernentes agraves
diferentes formas coletivas de vida natildeo implicariam a relatividade do normal e do
patoloacutegico de modo que natildeo fosse mais possiacutevel determinar onde termina a
sauacutede e onde comeccedila a doenccedila Isso porque considerado o ser individual eacute
perfeitamente possiacutevel avaliar quando ele passa a ser incapaz de realizar as
tarefas que uma nova situaccedilatildeo lhe impotildee pois se a fronteira entre o normal e o
patoloacutegico pode ser imprecisa para diversos indiviacuteduos considerados
simultaneamente para um uacutenico e mesmo indiviacuteduo considerado
sucessivamente natildeo eacute (cf NP 1990 p145)
Assim natildeo eacute uma meacutedia estatiacutestica que vai determinar em que ponto ocorre
a passagem do normal para o anormal Com efeito para Goldstein assim como
para Laugier uma meacutedia obtida estatisticamente natildeo permite dizer se estamos
diante de um indiviacuteduo normal ou natildeo
ldquoTratando-se de uma norma supra-individual eacute impossiacutevel determinar o lsquoser doentersquo (Kraksein) quanto ao conteuacutedo No entanto isto eacute perfeitamente possiacutevel quando se trata de uma norma individualrdquo (NP 1990 p144)
Tambeacutem para Canguilhem eacute sempre o indiviacuteduo que devemos tomar como
ponto de referecircncia para determinar em qual momento termina a sauacutede e em qual
momento comeccedila a doenccedila pois mesmo que desconheccedila a localizaccedilatildeo e a data
exata do iniacutecio do fenocircmeno patoloacutegico ele certamente natildeo se engana quanto ao
fato de se sentir doente
113
ldquoEm uacuteltima anaacutelise satildeo os doentes que geralmente julgam ndash de ponto de vista muito variados ndashse natildeo satildeo mais normais ou se voltaram a secirc-lo Para um homem que imagina seu futuro quase sempre a partir de sua experiecircncia passada voltar a ser normal significa retornar uma atividade interrompida ou pelo menos uma atividade considerada equivalente segundo os gostos individuais ou os valores sociais do meio Mesmo que essa atividade seja uma atividade reduzida mesmo que os comportamentos possiacuteveis sejam menos variaacuteveis menos flexiacuteveis do que eram antes o indiviacuteduo natildeo daacute tanta importacircncia assim a esses detalhes O essencial para eles eacute sair de um abismo de impotecircncia ou de sofrimento em que quase ficou definitivamente o essencial eacute lsquoter escapado de boarsquordquo (NP 1990 p91)
Daiacute para ele o papel da cliacutenica e natildeo do laboratoacuterio para a identificaccedilatildeo do
normal e do patoloacutegico Afirmando que natildeo eacute a patologia objetiva que procede da
fisiologia mas a fisiologia que procede de uma patologia que pode ser chamada
de subjetiva jaacute que derivada do ponto de vista do doente ele quer mostrar que soacute
sabemos estar diante de um fenocircmeno dito patoloacutegico devido a uma informaccedilatildeo
cliacutenica preacutevia Disso decorre que eacute a medicina cliacutenica que oferece a categoria de
patoloacutegico a todas as ciecircncias que ela que utiliza em benefiacutecio da vida Isto eacute
quando falamos em anatomia patoloacutegica fisiologia patoloacutegica histologia
patoloacutegica embriologia patoloacutegica a qualificaccedilatildeo de patoloacutegico que utilizamos eacute
uma noccedilatildeo de origem teacutecnica e por isso mesmo de origem subjetiva
ldquoPode-se descrever objetivamente estruturas ou comportamentos mas natildeo se pode chamaacute-los de lsquopatoloacutegicosrsquo com base em nenhum criteacuterio puramente objetivo Objetivamente soacute se pode definir variedades ou diferenccedilas sem valor vital positivo ou negativordquo (NP 1990 p186)
Desta forma eacute o valor cliacutenico de um comportamento individual que vai ou
natildeo defini-lo como patoloacutegico Ou seja a fisiologia soacute sabe que estaacute diante de um
fato patoloacutegico porque recebe da cliacutenica uma noccedilatildeo de doenccedila originada da
experiecircncia que os homens tecircm de suas relaccedilotildees de conjunto com o meio (cf NP
1990 p 65) Se as doenccedilas natildeo renovassem incessantemente o terreno a ser
explorado pelo cientista a fisiologia marcaria passo num terreno jaacute repisado ldquoSe
natildeo houvesse obstaacuteculos patoloacutegicos natildeo haveria tambeacutem fisiologia pois natildeo
haveria problemas fisioloacutegicos a resolverrdquo (NP 1990 p169) No entanto o
fisiologista se esquece que sua ciecircncia foi precedida por uma medicina cliacutenica e
114
por uma terapecircutica nem sempre tatildeo absurda como se costuma considerar (cf
NP 1990 p75)
Assim pelo vieacutes canguilhemiano se a medicina existe eacute porque os homens
se sentem doentes e natildeo porque haacute meacutedicos que dizem a eles que estatildeo com tal
ou qual enfermidade Ou seja a doenccedila se apresenta primeiro ao doente como
sensaccedilatildeo subjetiva de uma restriccedilatildeo normativa para somente entatildeo depois
apresentar-se ao meacutedico e depois dele ao patologista O patoloacutegico natildeo se define
por meio de uma ciecircncia das doenccedilas mas atraveacutes de uma experiecircncia concreta
qualificada como negativa por aquele que a vivencia Eacute portanto no plano da vida
concreta que a polaridade bioloacutegica estabelece a diferenccedila entre a sauacutede e a
doenccedila e natildeo no plano da ciecircncia abstrata o que faz com que natildeo seja possiacutevel
falarmos com absoluta correccedilatildeo loacutegica de uma patologia objetiva (cf NP 1990
p189)89
Neste contexto se Canguilhem traz o pensamento de Leriche eacute porque
apesar dele afirmar tal como Comte e Claude Bernard a continuidade dos
estados fisioloacutegico e patoloacutegico quando trata do problema da dor ele natildeo a
apresenta como uma modificaccedilatildeo quantitativa do fenocircmeno normal mas como um
estado autenticamente anormal Para ele a dor-doenccedila estaria em noacutes como um
acidente que evoluiria ao contraacuterio das leis da sensaccedilatildeo normal Tudo nela seria
anormal rebelde agrave lei (cf NP 1990 p71) Desta forma o que interessa a
89
Na perspectiva de Gayon (2006) aqui podem ser levantadas algumas problematizaccedilotildees A primeira delas eacute relativa ao estatuto epistemoloacutegico da medicina dependente da definiccedilatildeo do conceito de doenccedila e a segunda eacute atinente ao sentido que tem hoje considerar a medicina uma arte tendo em vista sua cientifizaccedilatildeo abertamente proclamada Isso porque segundo o comentador o esforccedilo canguilhemiano se direciona para mostrar primeiramente a independecircncia da biologia em relaccedilatildeo agraves ciecircncias da mateacuteria (fiacutesico-quiacutemica) valorizando com isso o pensamento vitalista Mas mais do que isso Canguilhem procura mostrar a independecircncia da medicina em relaccedilatildeo agrave biologia considerando a dimensatildeo axioloacutegica da doenccedila seu valor vital negativo para aquele que adoece No entanto fundar o normal e o patoloacutegico sobre a normatividade proacutepria da vida implica dizer que a qualificaccedilatildeo da doenccedila implica somente um julgamento de valor Ou seja na medida em que Canguilhem realiza uma abordagem axioloacutegica da doenccedila isto eacute apresenta a insuficiecircncia da anatomofisiologia para a definiccedilatildeo do patoloacutegico ele pode com isso ser acusado de um certo ldquosubjetivismordquo jaacute que por este criteacuterio a diagnose da doenccedila dependeria apenas do ponto de vista da pessoa doente Segundo Gayon este eacute tambeacutem precisamente o teor da criacutetica de Fagot-Largeault e Engelhardt ao enfoque qualitativo da doenccedila apresentado por Canguilhem Cf GAYON J ldquoEpistemologia da medicinardquo In RUSSO M CAPONI S (Org) Estudos de filosofia e histoacuteria das ciecircncias biomeacutedicas Satildeo Paulo Discurso Editorial 2006
115
Canguilhem nesta teoria que considera original e profunda eacute que a dor como
sensaccedilatildeo de anormalidade nos faz sair do plano da ciecircncia abstrata para entrar
na esfera da consciecircncia concreta Atraveacutes dela obtemos a coincidecircncia total da
doenccedila e do doente jaacute a dor necessariamente pede algueacutem que sofre
Por isso Canguilhem apesar de concordar com Leriche quanto agrave
coincidecircncia total do doente e da doenccedila no fenocircmeno da dor discorda dele por
propor a desconsideraccedilatildeo da opiniatildeo do doente em relaccedilatildeo agrave proacutepria doenccedila
Com efeito tendo em vista a insidiosidade de algumas delas Leriche para quem
ldquoa sauacutede e o silecircncio na vida dos oacutergatildeosrdquo entende que nem sempre este silecircncio
equivale agrave ausecircncia de lesotildees ou perturbaccedilotildees funcionais Ele acredita que se
uma autoacutepsia revelasse um cacircncer de rim ignorado pelo seu portador
identificariacuteamos uma doenccedila apesar de natildeo podermos atribuiacute-la agrave pessoa alguma
De outro modo Canguilhem acredita que para haver doenccedila ela deve aparecer
na consciecircncia do indiviacuteduo concreto
ldquoOra achamos que natildeo haacute nada na ciecircncia que antes natildeo tenha aparecido na consciecircncia e que especialmente no caso que nos interessa eacute o ponto de vista do doente que no fundo eacute verdadeirordquo (NP 1990 p68)
Apostando numa patologia subjetiva na qual se conjugam doenccedila e
consciecircncia da doenccedila90 Canguilhem acredita que mesmo no caso de doenccedilas
insidiosas como eacute o caso de algumas degenerescecircncias infecccedilotildees e infestaccedilotildees
ainda que o doente se engane quanto agrave localizaccedilatildeo e ao iniacutecio da enfermidade eacute
apenas ele quem informa ao meacutedico o momento em que uma norma passou a ser
restritiva pois eacute ele que sofre o impacto da doenccedila no exerciacutecio de suas
atividades cotidianas que sente a diferenccedila existente entre sua vida atual e a sua
vida passada Portanto natildeo eacute o fisiologista em laboratoacuterio quem vai definir o que
eacute normal e o que eacute patoloacutegico mas o meacutedico cliacutenico em acordo com seus
90
De fato Canguilhem entra em algumas aporias quando de sua discussatildeo sobre a necessidade da coincidecircncia do doente e da doenccedila para a caracterizaccedilatildeo do patoloacutegico Percebemos isso quando ao identificar a doenccedila ao apelo pateacutetico do doente em nota de rodapeacute exclui o caso das doenccedilas mentais pois nelas o desconhecimento da doenccedila por parte do doente constitui um aspecto essencial da proacutepria doenccedila (cf NP 1990 p186)
116
clientes quem vai dizer onde termina a sauacutede e onde comeccedila a doenccedila segundo
normas e valores individuais
Apesar disso de modo equiacutevoco o meacutedico toma da fisiologia um
determinado conceito de patoloacutegico derivado de uma concepccedilatildeo de normal de
caraacuteter teoacuterico e meacutetrico se esquecendo que quem ofereceu ao fisiologista a
qualificaccedilatildeo de sauacutede e doenccedila a determinados comportamentos foi ele mesmo a
partir da consideraccedilatildeo do ponto de vista do doente
ldquoo meacutedico geralmente tira a norma de seu conhecimento da fisiologia dita ciecircncia do homem normal de sua experiecircncia vivida das funccedilotildees orgacircnicas e da representaccedilatildeo comum da norma num meio social em dado momento Das trecircs autoridades a que predomina eacute de longe a fisiologiardquo (NP 1990 p94)
De igual modo o fisiologista se esquece que foi a experiecircncia negativa da
doenccedila a anguacutestia vivida por um indiviacuteduo concreto que recorreu agrave medicina o
que suscitou o estudo do patoloacutegico Na mesma esteira o meacutedico
desconsiderando a qualificaccedilatildeo negativa que o doente atribui agraves experiecircncias
vividas opta por orientar sua praacuteticas por uma concepccedilatildeo de doenccedila previamente
determinada pela fisiologia A consequecircncia disso eacute que ele orientado por uma
ciecircncia do homem normal passa a tomar para si o conceito cientiacutefico-experimental
e natildeo o axioloacutegico ou experiencial da sauacutede e da doenccedila separando a doenccedila do
doente e considerando normais as constantes que designam uma caracteriacutestica
meacutedia e mais frequente julgadas ideais num sentido descritivo e puramente
teoacuterico e natildeo no sentido terapecircutico que eacute um sentido normativo
O meacutedico ignorando a ideia de que o que daacute sentido agrave sua arte eacute a indicaccedilatildeo
de uma terapecircutica que leve agrave cura entendida como a restauraccedilatildeo da capacidade
da vida de criar novas normas e de resistir aos valores vitais negativos pondo
termo agrave anguacutestia de um indiviacuteduo concreto ele passa a acreditar que ela eacute um
retorno a uma norma da qual o organismo havia se afastado norma esta
considerada positiva natildeo pelo doente mas pela ciecircncia Com isso se esquece
que mais do que a fisiologia eacute o doente quem tem maior autoridade para indicar o
117
momento no qual uma norma passa a ser restritiva e volta a ser propulsiva (cf NP
1990 p94)
Por isso Canguilhem natildeo acredita que a medicina deva se moldar
completamente agrave fisiologia e se orientar por uma ciecircncia do patoloacutegico A cliacutenica
natildeo eacute uma ciecircncia e jamais o seraacute mesmo que ela faccedila uso de meios com eficaacutecia
cientiacutefica garantida Isso porque ela eacute inseparaacutevel da terapecircutica que tem por fim
algo que escapa agrave jurisdiccedilatildeo do saber objetivo que eacute a satisfaccedilatildeo subjetiva de que
uma norma foi instaurada Daiacute sua ideia de que realizar um diagnoacutestico apenas
atraveacutes de meacutetodos experimentais sem nenhum interrogatoacuterio ou investigaccedilatildeo
cliacutenica eacute fazer do indiviacuteduo uma viacutetima de uma grave confusatildeo do ponto de vista
filosoacutefico e perigosa do ponto de vista terapecircutico (cf NP 1990 p185)
Com efeito se a teacutecnica meacutedica eacute originada de um pathos consciente se eacute a
proacutepria vida ao estabelecer uma diferenccedila entre seus comportamentos
propulsivos e repulsivos que daacute origem agrave medicina entatildeo natildeo eacute a ciecircncia que
introduz na consciecircncia humana as categorias de sauacutede e de doenccedila isto eacute natildeo eacute
a atividade cientiacutefica do fisiologista que determina o que eacute normal ou patoloacutegico no
homem mas o doente por intermeacutedio da cliacutenica que fala em que ponto termina a
sauacutede e comeccedila a doenccedila que indica o momento em que deixou de se sentir em
posiccedilatildeo normativa jaacute que a doenccedila natildeo eacute originalmente um fato cientiacutefico e
objetivo definido em laboratoacuterio mas uma categoria biologicamente teacutecnica e
subjetiva por ser um comportamento de valor negativo para um ser vivo individual
concreto em atividade polarizada com seu meio (cf NP 1990 p182)
Em uacuteltima anaacutelise para o meacutedico deixar de escutar o doente eacute estar surdo
aos apelos da vida
ldquoNatildeo se ditam normas agrave vida cientificamente Mas a vida eacute essa atividade polarizada de conflito com o meio e que se sente ou natildeo normal conforme se sinta ou natildeo em posiccedilatildeo normativa O meacutedico optou pela vida A ciecircncia lhe eacute uacutetil no cumprimento dos deveres decorrentes dessa escolhardquo (NP 1990 p186)
Considerando que a atividade cientiacutefica moderna eacute ideologicamente
orientada pelo anseio de domiacutenio da natureza notamos que Canguilhem acredita
118
que a medicina a partir da adoccedilatildeo de paracircmetros que impotildeem agrave vida atraveacutes dos
indiviacuteduos uma norma considerada ideal definida por meios cientiacutefico-
experimentais acaba por perder de vista seu sentido original que eacute o de se
colocar a serviccedilo das normas da vida Sendo assim se partimos da hipoacutetese de
que ao criticar a tese de que o patoloacutegico seria apenas uma modificaccedilatildeo
quantitativa do estado normal sustentaacuteculo de uma medicina como ciecircncia das
doenccedilas ele queria contestar a subserviecircncia da teacutecnica em relaccedilatildeo agrave ciecircncia
vemos por fim que sua defesa de uma medicina como arte da cura enraizada na
vida acaba por culminar num questionamento sobre a funccedilatildeo social da medicina
tendo em vista a ideologia de domiacutenio ou controle que a orienta importada da
atividade cientiacutefica
Em vista disso eacute do problema da normalizaccedilatildeo operada pelas praacuteticas
meacutedica e psicoloacutegica do que em seguida iremos tratar
119
CAPIacuteTULO III
Medicina psicologia e normalizaccedilatildeo
Nada pode impedir a primavera do pensamento
pois a vida sempre reclama liberdade
Nos capiacutetulos anteriores vimos que para Canguilhem a medicina eacute uma
arte enraizada na vida e a normalidade e a patologia satildeo comportamentos vitais
qualitativamente diferentes associados agrave capacidade de o vivente criar e superar
suas proacuteprias normas isto eacute de realizar ajustes normativos Dada a multiplicidade
normativa da ordem vital atestada pela existecircncia das monstruosidades natildeo
haveria como identificar um tipo bioloacutegico saudaacutevel ideal mas diferentes formas
de vida saudaacuteveis se capazes de se adaptar ativamente a seu meio ou seja
transformaacute-lo a partir de seu proacuteprio centro de referecircncia
Vimos tambeacutem que de acordo com a perspectiva canguilhemiana o sentido
original da medicina se perdeu quando ela deixou de ser uma arte da cura para se
transformar em uma ciecircncia das doenccedilas pautada nas ideias de vida como um
sistema de leis e na definiccedilatildeo cientiacutefico-experimental e natildeo axioloacutegico-experiencial
do normal e do patoloacutegico Orientada pela ideologia de controle da natureza
proacutepria da ciecircncia moderna a medicina perdeu o respeito pela vida e passou a
ditar normas a ela ficando surda a seus apelos
O que pretendemos neste capiacutetulo mostrar eacute que Canguilhem ainda
procurou deixar claro que a uacuteltima consequecircncia deste processo foi que a
medicina ao deixar de ser uma extensatildeo da atividade vital se transformou em um
dispositivo social91 de normalizaccedilatildeo dos indiviacuteduos na medida em que o tipo
91
Destacamos que Canguilhem ao tratar das instituiccedilotildees de sauacutede seus discursos e praacuteticas manteacutem o sentido da noccedilatildeo de dispositivo tal como apresentada por Foucault como uma integraccedilatildeo das relaccedilotildees de poder e de ordens discursivas materializada em instituiccedilotildees em suas decisotildees juriacutedicas sanitaacuterias etc Em entrevista a Alain Grosrichard ao ser questionado sobre o sentido primeiro e funccedilatildeo metodoloacutegica deste termo Foucault responde ldquoAtraveacutes deste termo tento demarcar em primeiro lugar um conjunto decididamente heterogecircneo que engloba discursos instituiccedilotildees organizaccedilotildees arquitetocircnicas decisotildees regulamentares leis medidas administrativas enunciados cientiacuteficos proposiccedilotildees filosoacuteficas morais filantroacutepicas Em suma o dito e o natildeo dito satildeo os elementos do dispositivo O dispositivo eacute a rede que se pode tecer entre estes elementosrdquo
120
anormal assim considerado pela ciecircncia bioloacutegica por sua alteraccedilatildeo
anatomofisioloacutegica ou geneacutetica e sua inadaptaccedilatildeo ao meio atraveacutes do discurso
meacutedico psiquiaacutetrico psicoloacutegico e psicossocioloacutegico orientado pela ideologia de
controle social passou a encontrar um anaacutelogo no tipo social anormal igualmente
inadaptado ao meio que precisa ter seu comportamento corrigido para garantia
da manutenccedilatildeo da ordem sociopoliacutetica instituiacuteda
Tal como Foucault ele acredita que assim como o monstro fiacutesico
caracterizado por uma alteraccedilatildeo anatomofisioloacutegica ou geneacutetica coloca em
questatildeo o legalismo da natureza o monstro mental ou comportamental coloca em
questatildeo o legalismo social92 Ou melhor da mesma forma que o desviante ou
anocircmalo bioloacutegico mostra que haacute outras ordens vitais possiacuteveis o desviante ou
inadaptado social mostra que haacute outros comportamentos sociais possiacuteveis e no
limite outras ordens poliacuteticas desejaacuteveis Daiacute sua periculosidade e a necessidade
de sua identificaccedilatildeo enquadramento na categoria de doente mental de seu
sequestro e encarceramento institucional e de sua normalizaccedilatildeo a ser obtida
atraveacutes das praacuteticas meacutedico-psiquiaacutetricas e psicoloacutegicas93
(FOUCAULT 2000 p 244) Cf FOUCAULT M Microfiacutesica do poder 19ordf ed Rio de janeiro Graal 2000
92 Sobre este duplo registro de infraccedilatildeo normativa representado pela monstruosidade em Os
anormais Foucault trata dos monstros e sua contribuiccedilatildeo para a construccedilatildeo da figura do anormal no seacuteculo XIX periacuteodo de criaccedilatildeo de inuacutemeras instituiccedilotildees especiacuteficas de cura e correccedilatildeo das anormalidades Ao realizar sua arqueologia da anomalia ele identifica como figuras constitutivas do anormal os monstros naturais violadores das leis da natureza e os morais violadores das leis da sociedade ou infratores do pacto social como os monstros poliacuteticos Aleacutem disso esclarece que seraacute a relaccedilatildeo direta da monstruosidade com a criminalidade o que iraacute justificar a emergecircncia e atuaccedilatildeo de um poder meacutedico-juriacutedico soacute se puniraacute em nome da lei os que seratildeo julgados criminosos poreacutem avaliados apreciados medidos em termos de normal e patoloacutegico (cf Foucault 2001 p114) Assim a psiquiatria nasce como um ramo especializado da higiene puacuteblica se configurando como uma ciecircncia e teacutecnica de correccedilatildeo dos que colocam em perigo a seguranccedila da sociedade ldquoFoi como precauccedilatildeo social foi como higiene do corpo social inteiro que a psiquiatria se institucionalizou (nunca esquecer que a primeira revista de certo modo especializada em psiquiatria na Franccedila foram os Annales drsquohygiegravene publique)rdquo (Foucault 2001 p148) A partir de entatildeo nota inuacutemeros monstrinhos passaram a povoar a psiquiatria e a psiquiatra legal do seacuteculo XIX e o perigo social a ser codificado em seu interior como doenccedila Cf FOUCAULT M Os Anormais [curso no Collegravege de France (1974-1975)] (trad Eduardo Brandatildeo) Satildeo Paulo Martins Fontes 2001 (Coleccedilatildeo Toacutepicos)
93 Macherey (2009) esclarece que Foucault em seus estudos sobre a loucura a penalidade e a
sexualidade se empenha em mostrar como a monstruosidade dos seres reputados como infames se integra agrave dinacircmica do que ele nomeia de biopoder Para Canguilhem esta questatildeo se remete agrave constituiccedilatildeo de um poder histoacuterico-social normativo que transforma as diferentes formas de
121
Destarte se em seu Ensaio de 43 Canguilhem se propocircs a pensar o
conceito de normal e de patoloacutegico fundamentalmente a partir da relaccedilatildeo do
organismo com seu meio bioloacutegico em suas Novas Reflexotildees referentes ao
normal e ao patoloacutegico ele procura investigar o sentido dos conceitos de norma e
de normal nas ciecircncias humanas a partir de uma investigaccedilatildeo sobre a relaccedilatildeo dos
indiviacuteduos em seu meio social94 Agora a partir do estudo das normas sociais ele
coloca em cena o problema da normalizaccedilatildeo e sua associaccedilatildeo aos processos de
racionalizaccedilatildeo e planificaccedilatildeo explicitando sua relaccedilatildeo com os interesses poliacuteticos
e econocircmicos da sociedade capitalista industrial
Ao trazer a problemaacutetica da identificaccedilatildeo de tipos sociais normais e
anormais e da realizaccedilatildeo do diagnoacutestico da sauacutede e da doenccedila a partir dos
criteacuterios de adaptaccedilatildeo e inadaptaccedilatildeo social utilizados pela psicologia do
comportamento para realizar sua criacutetica Canguilhem se aproxima dos filoacutesofos da
potecircncia Espinosa e Nietzsche e da perspectiva socioloacutegica marxista de Georges
Friedmann Tal aproximaccedilatildeo se evidencia nos escritos Meio e normas do homem
no trabalho Qursquoest que la Psychologie e Le cerveau et la penseacutee nos quais ele
mostra como a psicologia behaviorista a partir de uma concepccedilatildeo de indiviacuteduo
condicionaacutevel num meio mecanizado e de suas teacutecnicas de identificaccedilatildeo dos
desviantes e de readaptaccedilatildeo por correccedilatildeo comportamental acabou por se
transformar numa poliacutecia dos anormais dos inadaptados sociais sobretudo para
o trabalho
Na trilha de Foucault tanto em suas Novas Reflexotildees quanto em seus
Escritos sobre a medicina Canguilhem apresenta o momento do nascimento da
medicina moderna e de quando ela se transformou em dispositivo de gestatildeo
sociopoliacutetica da vida cotidiana estruturado a partir do discurso higienista e das
existecircncia em objeto de anaacutelise classificaccedilatildeo e institucionalizaccedilatildeo a partir de criteacuterios exteriores a elas no contexto dos processos de normalizaccedilatildeo Cf MACHEREY P De Canguilhem agrave Foucault la force des normes Paris La Fabrique Eacuteditions 2009
94 Corroborando nossa anaacutelise Lecourt mostra que quando considera o indiviacuteduo inscrito no seu
meio bioloacutegico Canguilhem tem por referecircncia os pensamentos de Nietzsche Simondon Goldstein Uexkuumlll e Darwin mas ao tomaacute-lo como indiviacuteduo inscrito em um meio especificamente humano as referecircncias passam a ser Vidal de la Blanche e Foucault Cf LECOURT D La question de lrsquoindividu drsquoapregraves Georges Canguilhem In BADIOU A (et al) Georges Canguilhem Philosophe historien des sciences Actes du colloque (6 7 8 deacutecembre 1990) Op cit
122
praacuteticas preventivistas realizadas pelas instituiccedilotildees de sauacutede puacuteblica Com isso
alude agraves duas formas de biopoder e seus campos de exerciacutecio o corpo-maacutequina e
o corpo-espeacutecie isto eacute ao poder disciplinar baseado na chamada anatomopoliacutetica
do corpo humano e agrave biopoliacutetica entendida como a gestatildeo cientiacutefica da vida ao
niacutevel das populaccedilotildees com vistas a mostrar sua importacircncia para o
desenvolvimento e consolidaccedilatildeo da sociedade capitalista95
Diante deste cenaacuterio de exerciacutecio poliacutetico do biopoder pela classe
dominante da sociedade capitalista ele encontra a saiacuteda na liberaccedilatildeo da potecircncia
poliacutetica do corpo de reagir e transformar as regras opressivas do meio social que
querem se impor com a forccedila e a inquestionabilidade de uma lei natural Por fim
mostrando a relaccedilatildeo entre psicologia do comportamento normalizaccedilatildeo do
pensamento e controle das condutas sociais desviantes Canguilhem por uma via
explicitamente espinosana associa pensamento inventividade e potecircncia reativa
e normativa do corpo para mostrar que a maior prova de sauacutede eacute a reaccedilatildeo e a
resistecircncia agraves opressotildees sociais a reivindicaccedilatildeo do direito ao exerciacutecio da
liberdade de pensar e de agir no mundo
Sendo assim eacute a partir de outra concepccedilatildeo de indiviacuteduo como totalidade
corpomente e de sauacutede como exerciacutecio da potecircncia vital reativa e normativa que
Canguilhem acredita ser possiacutevel fazer frente agraves praacuteticas normalizadoras e
gestoras da vida individual e coletiva Ou seja eacute tendo em vista que o movimento
da vida natildeo tende agrave apatia agrave ineacutercia e agrave indiferenccedila que ele acredita que se a
cliacutenica natildeo quer normalizar mas produzir sauacutede ela deve se orientar pela
liberdade e resistecircncia proacuteprias agrave vida respeitando sua normatividade e abrindo
matildeo da ideologia de controle caracteriacutestica da ciecircncia moderna e das praacuteticas
dela derivadas
95
No curso Em defesa da sociedade ao tratar do biopoder Foucault esclarece que esses dois conjuntos de mecanismos o disciplinar dos corpos e o regulamentador das populaccedilotildees natildeo estatildeo no mesmo niacutevel mas se articulam um com o outro Isso porque a norma eacute o que pode tanto se aplicar a um corpo que se quer disciplinar quanto a uma populaccedilatildeo que se quer regulamentar E embora conclua que o recurso ao poder soberano de matar e ao biopoder chegou ao extremo na sociedade nazista a gestatildeo por parte do Estado da vida e da morte pode ser associada a todos os regimes marcados pelo racismo mesmo os de esquerda (cf FOUCAULT 2010 p213) Cf FOUCAULT M Em defesa da sociedade curso no Collegravege de France [1975-1976] (Trad Maria Ermantina Galvatildeo) Satildeo Paulo Editora WMF Martins Fontes 2010 (Coleccedilatildeo Michel Foucault)
123
Em suas Novas Reflexotildees referentes ao normal e ao patoloacutegico em
interlocuccedilatildeo com o pensamento de Foucault Canguilhem apresenta um estudo
sobre os conceitos de norma e de normal pela perspectiva das ciecircncias
humanas96 Agora procurando compreender o sentido das normas vitais a partir
do estudo das normas sociais ele trata do problema da normalizaccedilatildeo fenocircmeno
exclusivamente antropoloacutegico ou cultural em sua relaccedilatildeo com os processos de
racionalizaccedilatildeo e planificaccedilatildeo sociopoliacuteticas e econocircmicas97 Por uma perspectiva
96
Roudinesco (2007) nota que Canguilhem ao escrever suas Novas reflexotildees abordando o problema das normas sociais assim o fez em resposta a uma leitura que fizera do livro de Michel Foucault O Nascimento da cliacutenica Neste Foucault atribuiacutea uma origem histoacuterica agrave constituiccedilatildeo da medicina moderna e substituiacutea a concepccedilatildeo canguilhemiana de norma produzida pela vida por outra constituiacuteda pela ordem social e portadora de normalizaccedilatildeo Para a autora Canguilhem nas Novas reflexotildees retoma a noccedilatildeo foucaultiana de normatividade social natildeo para invalidar sua tese inicial mas para imprimir-lhe um rigor que provavelmente ela jamais teria alcanccedilado sem o desafio lanccedilado por Foucault Tambeacutem Macherey (2009) acredita ser possiacutevel aproximar as deacutemarches teoacutericas de Canguilhem Foucault porque ambos tecircm uma reflexatildeo filosoacutefica consagrada ao problema das normas realizada a partir de materiais tomados de empreacutestimo das ciecircncias bioloacutegicas e humanas O espiacuterito fundamental de suas pesquisas eacute a compreensatildeo do que eacute viver e viver em sociedade sob as normas A diferenccedila entre eles eacute a de que Canguilhem realiza sua criacutetica se engajando do lado da experiecircncia concreta do vivente abrindo uma perspectiva que pode ser chamada de fenomenoloacutegica jaacute que ancorada na capacidade do ser vivo em criar normas como expressatildeo de sua polaridade constitutiva enquanto o segundo substitui a normatividade essencial da vida por um nascimento histoacuterico das normas situado no desenvolvimento de um processo social e poliacutetico realizando assim uma arqueologia das normas meacutedicas Em vista disso se a experiecircncia da qual trata Canguilhem eacute a do vivente em Foucault a significaccedilatildeo da experiecircncia cliacutenica passa a ser dada atraveacutes de uma leitura histoacuterica da constituiccedilatildeo do olhar meacutedico Para Macherey eacute esta posiccedilatildeo de Foucault de alargar consideravelmente o terreno de funcionamento das normas o que faz com que Canguilhem se desloque nas Novas reflexotildees do vital ao social sem contudo abandonar sua perspectiva fenomenoloacutegica que eacute a de se engajar ao lado da ldquoexperiecircncia concreta do viventerdquo Cf ROUDINESCO E In Filoacutesofos na tormenta (Canguilhem Sartre Foucault Althusser Deleuze Derrida) Op cit MACHEREY P De Canguilhem agrave Foucault la force des normes Op cit
97 Le Blanc (2010a) esclarece que nas Novas reflexotildees aparece uma nova figura da norma a
normalizaccedilatildeo Seu objeto agora eacute visto sob um novo ponto de vista Enquanto que no Ensaio Canguilhem se volta ao estudo do indiviacuteduo bioloacutegico e apresenta a normatividade enraizada na vida agora seu interesse se volta agrave invenccedilatildeo do sujeito entre as normas vitais e sociais e agrave gecircnese social dos processos de normalizaccedilatildeo Ele mostra que diferentemente da normatividade que nasce espontaneamente da vida a normalizaccedilatildeo emerge do conflito e do arbitraacuterio social e estaacute ligada aos processos de racionalizaccedilatildeo da sociedade sendo possiacutevel distinguir os trecircs momentos de sua gecircnese intenccedilatildeo normativa decisatildeo normativa instituidora de regras regulamentos padrotildees e modelos e seu uso normalizador manifesto na correccedilatildeo e na vigilacircncia Portanto a normalizaccedilatildeo aparece como tentativa de racionalizaccedilatildeo do social como prova reguladora axioloacutegica e disciplinar Ela vale por sua exterioridade arbitrariedade e transcendecircncia enquanto a normatividade vital se caracteriza pelo contraacuterio pela interiorizaccedilatildeo dos valores sua necessidade e sua imanecircncia agrave vida (cf LE BLANC 2010a p 86) Cf LE BLANC G Canguilhem et les normes Op cit
124
histoacuterica ele procura mostrar quando devido aos interesses de determinada
sociedade a burguesa ou cientiacutefico-industrial o processo de normalizaccedilatildeo iniciado
na definiccedilatildeo das normas gramaticais acaba por se estender agraves normas
morfoloacutegicas dos homens para fins de defesa nacional passando pela imposiccedilatildeo
de normas industriais e higiecircnicas de modo a modificar o modo de produccedilatildeo no
trabalho e as formas de conduccedilatildeo da vida cotidiana das populaccedilotildees operaacuterias
Partindo de um estudo etimoloacutegico da palavra norma Canguilhem lembra
que ela eacute uma palavra latina de origem matemaacutetica que quer dizer esquadro e que
normalis significa perpendicular Tambeacutem nota que ela suporta o sentido inicial do
termo ortos presente em palavras como ortografia e ortopedia (cf NP 1990
p216) Isso faz com que uma norma sirva para retificar pocircr de peacute endireitar Por
essa perspectiva o que caracteriza um objeto ou um fato dito normal eacute poder ser
tomado como ponto de referecircncia em relaccedilatildeo a objetos ou fatos ainda agrave espera de
serem classificados como tal Portanto uma norma tira seu sentido sua funccedilatildeo e
seu valor do fato de existir fora dela algo que natildeo corresponde agrave exigecircncia que
ela impotildee
ldquolsquoNormarrsquo normalizar eacute impor uma exigecircncia a uma existecircncia a um dado cuja variedade e disparidade se apresentam em relaccedilatildeo agrave exigecircncia como um indeterminado hostil mais ainda do que estranhordquo (NP 1990 p211)
Assim o sentido da normalizaccedilatildeo eacute partir de uma norma externa para
regular os demais objetos que fora dela se encontram Como exemplo a
normalizaccedilatildeo teacutecnica consiste na escolha e na determinaccedilatildeo da mateacuteria da forma
e das dimensotildees de um objeto cujas caracteriacutesticas passam a ser referencial
obrigatoacuterio para a fabricaccedilatildeo dos demais como forma de manter a singularidade
das proporccedilotildees e como uma soluccedilatildeo para evitar a confusatildeo de esforccedilos a
dificuldade e a demora da substituiccedilatildeo de peccedilas e a despesa inuacutetil (cf NP 1990
p 217)
Apoacutes apresentar o terreno de origem do sentido dos termos norma e normal
posteriormente trazidos para uma grande variedade de outros campos
Canguilhem afirma que a gramaacutetica oferece uma mateacuteria inestimaacutevel para o
125
estudo das normas pois ela foi o primeiro alvo dos processos de normalizaccedilatildeo
Identificando o nascimento da gramaacutetica no seacuteculo XVII ele diz que neste periacuteodo
a norma gramatical regulava a liacutengua usada pelos burgueses parisienses cultos e
se remetia a uma norma poliacutetica a centralizaccedilatildeo administrativa em proveito do
poder real Ainda esclarece que segundo o linguista Pierre Guiraud a burguesia
como classe ascendente apenas tomou posse da liacutengua quando se apoderou dos
meios de produccedilatildeo e conquistou definitivamente o poder poliacutetico no processo
iniciado com a Revoluccedilatildeo Francesa
ldquoEntre 1759 data do aparecimento da palavra normal e 1834 data de aparecimento da palavra normalizado uma classe normativa conquistou o poder de identificar a funccedilatildeo das normas sociais com o uso que ela proacutepria fazia das normas cujo conteuacutedo determinava Bom exemplo de ilusatildeo ideoloacutegicardquo (NP 1990 p218)
Sendo fato que a liacutengua ofereceu agrave experiecircncia de normalizaccedilatildeo seu primeiro
campo de atuaccedilatildeo mais tarde a exigecircncia de normalizaccedilatildeo iniciada na
gramaacutetica passou a dizer respeito agrave sauacutede da populaccedilatildeo considerada
estatisticamente Normal seraacute o termo pelo qual os teoacutericos reformistas do seacuteculo
XIX vatildeo designar o protoacutetipo escolar e o estado de sauacutede orgacircnica no contexto de
reforma das instituiccedilotildees pedagoacutegica e sanitaacuteria efetivadas como expressatildeo de
exigecircncias de ordem mecacircnica energeacutetica comercial militar e poliacutetica proacuteprias a
este periacuteodo
ldquoTanto a reforma hospitalar como a reforma pedagoacutegica exprimem uma exigecircncia de racionalizaccedilatildeo que se manifesta tambeacutem na poliacutetica como se manifesta na economia sob a influecircncia de um maquinismo industrial nascente que levaraacute enfim ao que se chamou desde entatildeo normalizaccedilatildeordquo (NP 1990 p 209-210)
Tambeacutem na Ideologia e racionalidade nas ciecircncias da vida ao traccedilar um
esboccedilo histoacuterico-epistemoloacutegico da medicina no seacuteculo XIX Canguilhem diz que
uma nova situaccedilatildeo se estabeleceu na Europa neste periacuteodo e que um dos
motivos que deflagrou tal mudanccedila foi um acontecimento simultaneamente
126
institucional e cultural chamado por Foucault de nascimento da cliacutenica98 que
instituiu uma reforma hospitalar em Viena e em Paris e generalizou praacuteticas de
percussatildeo e auscultaccedilatildeo mediata com referecircncia sistemaacutetica da observaccedilatildeo dos
sintomas aos dados da anatomopatologia (cf I 1981 p53-54) Aleacutem disso no
acircmbito da sauacutede preventiva ele nota que a efetividade das praacuteticas de vacinaccedilatildeo
alimentou ainda mais o desejo de invenccedilatildeo de novos tratamentos capazes de
transformar massivamente as condiccedilotildees fiacutesicas e morais da vida humana (cf I
1981 p43)
Assim como Foucault a partir de uma investigaccedilatildeo histoacuterica e da
consideraccedilatildeo do liame entre poliacutetica e medicina Canguilhem procura esclarecer
que neste periacuteodo a definiccedilatildeo de normas higiecircnicas supotildee o interesse que se
dava do ponto de vista poliacutetico agrave sauacutede da populaccedilatildeo agrave salubridade das
condiccedilotildees de vida e agrave extensatildeo uniforme dos tratamentos preventivos e curativos
com vistas agrave produccedilatildeo econocircmica e agrave seguranccedila do Estado Ou seja foi a partir
de um interesse sociopoliacutetico e econocircmico na sauacutede das populaccedilotildees que a
medicina se viu diante de uma necessidade de reforma a ser operada atraveacutes de
uma racionalizaccedilatildeo de seus tratamentos preventivos e curativos e de planificaccedilatildeo
de suas estrateacutegias visando abarcar o conjunto da sociedade
Nos Escritos sobre a medicina ainda na trilha foucaultiana Canguilhem se
propotildee a pensar a sauacutede a partir de sua apropriaccedilatildeo pelos poderes sociomeacutedicos
explicitando o componente de natureza social e portanto poliacutetico nas teorias e
praacuteticas meacutedicas Assim como em suas Novas reflexotildees ele faz referecircncia agrave obra
O nascimento da cliacutenica para novamente apontar quando a medicina se tornou
um dispositivo de gestatildeo sociopoliacutetica meacutedica da vida cotidiana Ele nota que foi a
partir do seacuteculo XIX que as sociedades de tipo industrial passaram a gerir a sauacutede
98
Segundo Foucault a medicina moderna fixa sua proacutepria data de nascimento nos uacuteltimos anos do seacuteculo XVIII Neste periacuteodo houve natildeo apenas uma mudanccedila na experiecircncia meacutedica mas a adoccedilatildeo de uma nova linguagem a da ciecircncia positiva permitindo que finalmente fosse possiacutevel pronunciar sobre o indiviacuteduo um discurso de estrutura cientiacutefica Daiacute decorre que a medicina como arte entra pouco a pouco em regressatildeo diante da medicina dos oacutergatildeos da cliacutenica inteiramente ordenada pela anatomia patoloacutegica Ou seja para ele o grande corte da histoacuteria da medicina ocidental data precisamente do momento em que a experiecircncia cliacutenica torna-se o olhar anatomocliacutenico Cf FOUCAULT M O nascimento da cliacutenica Rio de Janeiro Forense Universitaacuteria 1977
127
das populaccedilotildees operaacuterias por serem o componente humano das forccedilas
produtivas A vigilacircncia e a melhoria das condiccedilotildees de vida passaram a ser objeto
de regulamentaccedilatildeo e medidas decididas pelo poder poliacutetico e operacionalizadas
pelos higienistas Surgem neste periacuteodo na Inglaterra e tambeacutem na Franccedila
numerosos tratados de higiene industrial e enquetes sobre a sauacutede dos operaacuterios
nos diferentes ramos da induacutestria como o Tableau de lrsquoeacutetat physique et moral des
ouvriers employeacutes dans les fabriques de coton de laine et de soie de Villermeacute
(1840)
Canguilhem diz ainda que neste mesmo momento histoacuterico havendo natildeo
soacute uma preocupaccedilatildeo por parte dos higienistas com a incidecircncia patogecircnica nas
aglomeraccedilotildees urbanas eacute proposta uma expansatildeo da gestatildeo sociopoliacutetica meacutedica
do meio urbano ao rural Tomando o exemplo da Franccedila de modo a mostrar a
extensatildeo do controle administrativo da sauacutede das populaccedilotildees ele cita a existecircncia
de um corpo de oficiais de sauacutede vigias e conselheiros em mateacuteria de sauacutede isto
eacute de submeacutedicos dos quais se exigia um conhecimento menos elaborado que o
dos doutores capacitados para atuar nos campos onde a vida era considerada
menos sofisticada do que nas cidades (cf EM 2005 p47)
Aleacutem disso esclarece que ao lado progressos da higiene puacuteblica e da
medicina preventiva estabelecida a partir da substituiccedilatildeo do ideal pessoal de cura
das doenccedilas por um ideal social de prevenccedilatildeo das doenccedilas e concretizada pelas
praacuteticas de vacinaccedilatildeo surge uma nova forma de gestatildeo da sauacutede da populaccedilatildeo jaacute
adoecida a organizaccedilatildeo hospitalar O hospital passa a ser natildeo mais o locus de
amparo para invaacutelidos e moribundos mas o local de exerciacutecio de praacuteticas
curativas dotadas de cientificidade Exemplo desta transiccedilatildeo foi a substituiccedilatildeo
gradativa do hospiacutecio como asilo de acolhimento de doentes abandonados pelo
hospital psiquiaacutetrico espaccedilo de anaacutelise e vigilacircncia de doentes catalogados
construiacutedo e governado como uma ldquomaacutequina de curarrdquo (cf EM 2005 p28)99
99
Na Histoacuteria da Loucura Foucault apresenta o momento histoacuterico de apropriaccedilatildeo meacutedico-juriacutedica da experiecircncia da loucura e sua transformaccedilatildeo em doenccedila mental associada agrave ideia de periculosidade social e a transformaccedilatildeo do Hospital em asilo cientiacutefico espaccedilo de vigilacircncia e puniccedilatildeo locus de exerciacutecio do poder psiquiaacutetrico Ao tratar da praacutetica do internamento ele explica que no interior do asilo era essencial que a razatildeo fosse significada por tipos sociais cristalizados e
128
Com efeito Canguilhem apresenta as sociedades industriais como
sociedades de populaccedilatildeo predominantemente urbana nas quais a concentraccedilatildeo
demograacutefica e as condiccedilotildees de trabalho dos operaacuterios contribuiacuteram largamente
para o desenvolvimento de doenccedilas infecciosas e nas quais o hospital se
consolidou como lugar de tratamento generalizado no anonimato Ainda ele
esclarece que as descobertas cientiacuteficas de Koch Pasteur e seus alunos sobre as
formas de contaacutegio microbiano ou viral o desenvolvimento das teacutecnicas de
assepsia dos soros e das vacinas forneceram agrave higiene puacuteblica seus meios de
eficaacutecia100 Sobre a medicina curativa menciona que foram os resultados das
pesquisas sobre os antibioacuteticos desenvolvidas por Paul Ehrlich nos primeiros
anos do seacuteculo XX que revolucionaram a terapecircutica transformando o conceito
de cura em esperanccedila de vida (cf EM 2005 p55-56)
Aqui ao traccedilar um breve panorama da histoacuteria da medicina no XIX
Canguilhem intenciona criticar a Higiene em sua ambiccedilatildeo sociopoliacutetica-meacutedica de
regulamentar a vida dos indiviacuteduos e em seu discurso de que o corpo eacute mero
produto do seu meio caracteriacutestico
ldquoO corpo eacute um dado uma vez que eacute genoacutetipo efeito a um soacute tempo necessaacuterio e singular dos componentes de um patrimocircnio geneacutetico () O corpo eacute um produto visto
que a cura do louco significava sua estabilizaccedilatildeo num tipo moralmente reconhecido e aprovado Dado isso o que chama de praacutetica psiquiaacutetrica natildeo eacute mais do que ldquouma certa taacutetica moral contemporacircnea do fim do seacuteculo XVIII conservada nos mitos da vida asilar e recoberta pelos mitos do positivismordquo (FOUCAULT 2004 p501) Em Mort de lrsquohomme ou eacutepuisement du cogito Canguilhem esclarece que foi Descartes quem Foucault escolheu para representar a ideia de loucura na idade claacutessica por ser ele um dos artesatildeos da particcedilatildeo das normas que teve por efeito confinar a loucura no espaccedilo asilar onde os psicopatologistas do seacuteculo XIX a encontraram como objeto de saber Cf FOUCAULT M Histoacuteria da Loucura na Idade Claacutessica (Trad Joseacute Teixeira Coelho Netto) Satildeo Paulo Perspectiva 7ordf ediccedilatildeo 2004 CANGUILHEM G Mort de lrsquohomme ou eacutepuisement du cogito Critique Tome XXIV n
o 242 juillet 1967
100 Em seus Estudos de Histoacuteria e de Filosofia das Ciecircncias quando trata do estatuto
epistemoloacutegico da medicina Canguilhem diz que uma renovaccedilatildeo epistemoloacutegica profunda na medicina se deu pelos resultados das pesquisas de Pasteur Koch e seus alunos Quiacutemico sem formaccedilatildeo meacutedica Pasteur inaugura uma medicina livre do antropocentrismo tradicional da cliacutenica humana Expondo o papel das bacteacuterias e dos viacuterus na produccedilatildeo das doenccedilas ele tambeacutem impocircs agrave medicina uma mudanccedila em seus lugares de exerciacutecio Se tratar com vistas agrave curar se fazia em casa ou no hospital agora vacinar para prevenir iraacute se fazer no dispensaacuterio no quartel na escola ldquoO objeto da revoluccedilatildeo meacutedica eacute doravante menos a doenccedila do que a sauacutede Donde o desenvolvimento de uma disciplina meacutedica apreciada desde o fim do seacuteculo XVIII na Inglaterra assim como na Franccedila a higienerdquo (E 2012 p463)
129
que sua atividade de inserccedilatildeo em um meio caracteriacutestico seu modo de vida escolhido ou imposto esporte ou trabalho contribui para dar forma seu fenoacutetipo ou seja para modificar sua estrutura morfoloacutegica e por conseguinte para singularizar suas capacidades Eacute neste ponto que um certo discurso [o da Higiene] encontra ocasiatildeo e justificativardquo (EM 2005 p42)
Mas tambeacutem mostrar que foi no uacuteltimo quarto deste seacuteculo que a concepccedilatildeo de
sauacutede passou a ser atrelada agraves funccedilotildees de adaptaccedilatildeo ao meio ambiente atraveacutes
do entendimento do organismo como um sistema aberto
Ao tratar desta questatildeo ele cita a teoria dos meios esboccedilada por Comte e
desenvolvida pelos meacutedicos positivistas da Sociedade de Biologia contemporacircnea
da constituiccedilatildeo da fisiologia como ciecircncia (cf EM 2005 p54) Alertando sobre o
quanto a associaccedilatildeo adaptaccedilatildeo e sauacutede pode ser problemaacutetica se natildeo for bem
esclarecida ele questiona primeiro sobre que tipo de relaccedilatildeo o organismo
estabelece com seu meio se eacute possiacutevel afirmar que eacute determiniacutestica e de sujeiccedilatildeo
e segundo se eacute possiacutevel transpor esta mesma ideia para a relaccedilatildeo dos indiviacuteduos
no meio social como sinocircnimo de normalidade
Em suas Novas reflexotildees sobre a ideia de adaptaccedilatildeo como sinocircnimo de
sauacutede Canguilhem diz que este conceito foi estendido a seu ver de modo
descabido da biologia mecanicista para a psicologia e a sociologia101 o que faz
com que deva ser utilizado do ponto de vista o mais criacutetico possiacutevel Isso porque a
101
Tambeacutem a sociologia tomando a ideia de doenccedila ou patologia social como sinal de uma adaptaccedilatildeo fracassada faz com que o normal social se traduza necessariamente como aderecircncia do grupo social agraves normas instituiacutedas garantidora de uma ordem ou estrutura social estaacutetica livre das crises revoluccedilotildees e conflitos de classe Le Blanc (2010b) esclarece que a genealogia do normal natildeo se limita para Canguilhem agrave medicina e agrave psicologia mas tambeacutem agrave sociologia Com efeito Canguilhem faz uma anaacutelise do pensamento de Durkheim em seu curso sobre as Regras do meacutetodo socioloacutegico e o reprova por transpor para a sociologia a tese da variaccedilatildeo quantitativa dos fenocircmenos normais e patoloacutegicos presente em Comte e Claude Bernard da ciecircncia fisioloacutegica para as ciecircncias humanas A seu ver Durkheim para elaborar uma ciecircncia do social capaz de identificar as ordens sociais normais e patoloacutegicas tambeacutem recorre a uma concepccedilatildeo de normalidade quantitativa a partir da qual o normal eacute o equivalente agrave meacutedia e o tipo social meacutedio o frequente Aleacutem da ideia abstrata de tipo meacutedio Canguilhem coloca em questatildeo a ideia de conservaccedilatildeo das estruturas sociais normais como um ideal Para ele natildeo haacute estaacutetica social que natildeo sob o fundo de uma dinacircmica social Isto eacute natildeo haacute na sociedade uma tendecircncia agrave conservaccedilatildeo de uma normalidade social pois esta concepccedilatildeo conservadora transforma as normas sociais em estruturas do social e apresenta uma noccedilatildeo de normal social como algo jaacute constituiacutedo um dado como se fosse possiacutevel definir uma noccedilatildeo de normalidade preacutevia agraves decisotildees normativas da proacutepria sociedade Sobre uma anaacutelise detalhada da criacutetica de Canguilhem ao pensamento socioloacutegico de Durkheim confira LE BLANC G Canguilhem et la vie humaine Op Cit
130
definiccedilatildeo psicossocial do normal a partir do adaptado implica uma concepccedilatildeo de
sociedade mecanizada na qual os indiviacuteduos estatildeo submetidos a seus
determinismos Por outro vieacutes sem precisar com isso ser considerado anarquista
ele acredita que definir a anormalidade a partir da inadaptaccedilatildeo social significa
tentar naturalizar uma atitude de subordinaccedilatildeo do indiviacuteduo em relaccedilatildeo a seu meio
social identificando como anormal qualquer atitude contestatoacuteria
ldquoDefinir a anormalidade a partir da inadaptaccedilatildeo social eacute aceitar mais ou menos a ideacuteia de que o indiviacuteduo deve aderir agrave maneira de ser de determinada sociedade e portanto adaptar-se a ela como a uma realidade que seria ao mesmo tempo um bemrdquo (NP 1990 p257)
Ora se a partir de sua biologia vitalista o organismo natildeo estaacute jogado em um meio
ao qual ele deve se dobrar analogamente quando nos referimos agrave condiccedilatildeo dos
indiviacuteduos no meio social esta tambeacutem natildeo deve ser de sujeiccedilatildeo ou passividade
Nesta mesma direccedilatildeo reflexiva interessado sobretudo nas apropriaccedilotildees
sociopoliacuteticas e econocircmicas desta teoria no artigo ldquoLe vivant et son milieurdquo da
coletacircnea La connaissance de la vie Canguilhem esclarece que a teoria
cartesiana da formaccedilatildeo das estruturas orgacircnicas antecede agrave explicaccedilatildeo
mecanicista dos movimentos do organismo no meio segundo a qual o meio do
comportamento coincide com o meio geograacutefico e este com o meio fiacutesico (cf CV
1985 p141) Como exemplo deste tratamento determinista ou mais precisamente
mecanicista das relaccedilotildees entre vivente e meio ele cita Jacques Loeb que
generalizando as conclusotildees de suas pesquisas sobre o fototropismo animal
considera que todo movimento dos organismos eacute forccedilado pelo meio e a atividade
reflexa como resposta a um estiacutemulo fiacutesico elementar eacute o modelo explicativo de
todas as condutas do vivente ldquoeste cartesianismo exorbitante eacute
incontestavelmente ao mesmo tempo que o darwinismo a origem dos postulados
da psicologia behavioristardquo (CV 1985 p140)
Com efeito Watson apresenta o objetivo programaacutetico da psicologia como a
pesquisa analiacutetica das condiccedilotildees de adaptaccedilatildeo do vivente ao meio pela produccedilatildeo
experimental das relaccedilotildees entre excitaccedilatildeo e resposta Considerando que o
131
determinismo das relaccedilotildees entre estiacutemulo e resposta eacute fiacutesico em sua teoria a
consciecircncia eacute simplesmente anulada ou abolida como ilusoacuteria O meio se encontra
investido de todos os poderes sua potecircncia domina e ateacute mesmo abole a
hereditariedade e a constituiccedilatildeo geneacutetica Sendo o meio um dado natildeo se espera
do organismo mais do que dele foi recebido ldquoa situaccedilatildeo do vivente seu ser no
mundo eacute uma condiccedilatildeo ou mais exatamente um condicionamentordquo (CV 1985
p140)
Acompanhando o trabalho de Friedmann102 sobre o maquinismo industrial
Canguilhem lembra que Albert Weiss tomando a biologia como uma fiacutesica
dedutiva propotildee uma teoria eletrocircnica do comportamento humano aperfeiccediloando
as teses da psicologia behaviorista em sua aplicaccedilatildeo na induacutestria Afirmando a
tese do condicionamento do vivente ao meio fiacutesico geral de acordo com Weiss
restaria apenas aos psicoteacutecnicos prolongar os estudos analiacuteticos das reaccedilotildees
humanas agraves teacutecnicas tayloristas de cronometragem dos movimentos tomando o
homem como uma maacutequina reagindo a outras maacutequinas neste caso num ldquonovo
meiordquo o do trabalho
No artigo ldquoMachine et organismerdquo Canguilhem novamente tambeacutem traz o
problema da apropriaccedilatildeo da filosofia mecanicista pelas teorias econocircmicas e
sociais capitalistas A questatildeo agora posta eacute se a teoria do animal-maacutequina ao
justificar a exploraccedilatildeo da natureza pelo homem e a utilizaccedilatildeo teacutecnica do animal
tambeacutem nos obriga a justificar a exploraccedilatildeo do homem pelo homem e seu uso
como instrumento de trabalho Neste contexto ele traz a concepccedilatildeo mecanicista
de universo da vida como uma Weltanschaung bourgeoise e novamente cita a
obra de Friedmann na qual mostra que eacute com Taylor e com os primeiros teacutecnicos
102
Georges Philippe Friedmann (1902-1977) eacute considerado um dos fundadores da sociologia do trabalho Em suas obras se destacam a criacutetica agrave organizaccedilatildeo cientiacutefica do trabalho (OCT) a consideraccedilatildeo do fator humano no processo produtivo a partir da anaacutelise da situaccedilatildeo dos trabalhadores submetidos ao trabalho fragmentado e repetitivo na sociedade industrial Foi um intelectual marxista proacuteximo do partido comunista e partiacutecipe da resistecircncia francesa Leitor de Leibniz Espinosa e Marx suas principais obras satildeo La Crise du Progregraves (1936) Problegravemes Humains du Machinisme Industriel (1946) Villes et Campagne Civilisation Urbaine et Civilisation Rurale en France (1953) Ougrave va le Travail Humain (1954) Problegravemes de lAmeacuterique Latine - Traiteacute de sociologie du travail (1962) Le Travail en Miettes Speacutecialisation et loisirs (1964) Fin du Peuple Juif (1966) Sept Eacutetudes sur lHommes et la Technique (1966) La Puissance et la Sagesse (1970) Villes et Campagnes (1971)
132
da racionalizaccedilatildeo dos movimentos que o organismo humano eacute alinhado ao
funcionamento das maacutequinas A racionalizaccedilatildeo no trabalho se traduziria entatildeo
por uma mecanizaccedilatildeo do organismo visando agrave eliminaccedilatildeo dos movimentos inuacuteteis
do ponto de vista do rendimento considerado como funccedilatildeo matemaacutetica de certo
nuacutemero de fatores (cf CV 1985 p126)
Em seu artigo Meio e normas do homem no trabalho Canguilhem elogia
Friedmann por pensar as questotildees da racionalizaccedilatildeo teacutecnica e do maquinismo por
diferentes pontos de vista mecacircnico bioloacutegico psicoloacutegico e socioloacutegico e por
fazecirc-lo com uma preocupaccedilatildeo eacutetica inscrita numa filosofia humanista Ele nota que
na obra Problegravemes humains du machinisme industriel (1946) sua intenccedilatildeo eacute
denunciar a ilusatildeo cientificista de deduzir todo progresso humano a partir do
conhecimento cientifico e a tecnicista de comandaacute-lo a partir do industrialismo Por
fim seu pensamento acaba por se configurar como uma etnografia social ou uma
etologia do homo faber nas sociedades modernas tecnicamente caracterizadas
pelo uso da eletricidade como forccedila motriz e economicamente pela tendecircncia
imperialista do capitalismo bancaacuterio
Segundo Canguilhem nesta obra Friedmann ultrapassa a atitude analiacutetica
e mecanicista no estudo do homem no trabalho e reconhecendo a originalidade
dos valores humanos - mas sem empunhar a bandeira espiritualista - deixa clara
sua preocupaccedilatildeo eacutetica de transformar efetivamente a condiccedilatildeo humana Por uma
perspectiva revolucionaacuteria entatildeo natildeo negando sua posiccedilatildeo poliacutetica de criacutetica agrave
estrutura econocircmica das sociedades capitalistas ele se empenha em mostrar as
insuficiecircncias metoacutedicas e doutrinaacuterias da racionalizaccedilatildeo em seu intento de tratar
o homem como seu objeto e da organizaccedilatildeo cientiacutefica do trabalho por concebecirc-lo
como uma maacutequina
Com efeito Friedmann parte do pressuposto de que o racionalismo
entendido como o privileacutegio de um meacutetodo de matematizaccedilatildeo da experiecircncia e
que a racionalizaccedilatildeo tal como a concebeu Taylor acabou por significar a
submissatildeo do homem agrave razatildeo e natildeo o reino da razatildeo no homem
133
ldquoE de fato deve se ao mesmo tempo para justificar o empreendimento do taylorismo conceber o homem como uma maacutequina a engatar corretamente com outras maacutequinas e como o ser vivo simplificado nos seus interesses e reaccedilotildees em consideraccedilatildeo com o meio ateacute natildeo conhecer outros estimulantes atrativos e repulsivos senatildeo lsquoo afago e o chicotersquo Aqui como acolaacute estaacute o absurdo do pleno poder da loacutegicardquo (MNHT 2001 p111)
De modo extensivo entendendo que eacute necessaacuterio pensar o trabalho em sua
forma contemporacircnea tanto nas sociedades capitalistas quanto nas socialistas
ele apresenta o sentido da racionalizaccedilatildeo para aleacutem da preocupaccedilatildeo teacutecnica
mostrando que ela natildeo pode ser vista apenas como um meio para o alcance de
determinados fins de uma empresa na medida em que fundamentalmente se
remete aos fins de uma sociedade econocircmica ldquoA racionalizaccedilatildeo cessa entatildeo de
aparecer como um absoluto teacutecnico Eacute preciso recolocaacute-la para dela compreender
o sentido no seu meio histoacuterico sua estrutura socialrdquo (MNHT 2001 p113)
Assim acreditando que a psicoteacutecnica e a organizaccedilatildeo cientiacutefica do
trabalho natildeo satildeo neutras e que natildeo haacute uma racionalizaccedilatildeo mas vaacuterias
racionalizaccedilotildees Friedman desloca sua discussatildeo sobre o estudo do homem no
trabalho para uma reflexatildeo sobre os fins de uma sociedade econocircmica e as
mudanccedilas que opera na natureza das coisas e do proacuteprio homem - mudanccedilas que
a seu ver pedem uma decisatildeo sobre princiacutepios e conduta poliacutetica a adotar pois
entre o maacuteximo de rendimento e de lucro e o optimum de desabrochamento das
potencialidades humanas eacute necessaacuterio escolher (cf MNHT 2001 p113)
Em resumo Friedmann procura desfazer a ilusatildeo tecnicista que consiste
em atrelar o homem agrave maacutequina e tratar um e outro sob um mesmo ponto de vista
estritamente meacutetrico e quantitativo Ainda apontar os limites de certa visatildeo
psicoteacutecnica que apesar de reconhecer no trabalho humano um fenocircmeno
orgacircnico e natildeo mecacircnico o reduz ao aspecto bioloacutegico e psicoloacutegico do fator
humano individual Ainda denunciar a estreiteza de visatildeo da psicossociologia da
empresa que substitui a consideraccedilatildeo das reaccedilotildees mentais do operaacuterio isolado
pela pesquisa das reaccedilotildees mentais do grupo operaacuterio nas relaccedilotildees industriais
mas que isola a empresa da estrutura social Com isso para Canguilhem ele toca
e nos faz tocar no acircmago socioloacutegico do problema das relaccedilotildees do homem no
134
trabalho a anaacutelise psicoteacutecnica do trabalho na linha de montagem mais do que um
fato teacutecnico eacute um fato psicoloacutegico e mais do que ambos um fato social (cf
MNHT 2001 p113)
Mas o que interessa aqui destacar eacute que a intenccedilatildeo de Canguilhem ao
estudar a obra de Friedmann expondo a criacutetica que faz agrave Taylor e agrave psicoteacutecnica
de C S Myers e E Mayo eacute pensar a relaccedilatildeo do homem com o meio e a questatildeo
das normas humanas
ldquoQueriacuteamos mais especialmente centrar o conjunto de outras consideraccedilotildees sobre a fisiologia do trabalho o ambiente do trabalho a adaptaccedilatildeo das maacutequinas ao homem as relaccedilotildees industriais em torno de duas questotildees mais amplas e segundo noacutes fundamentais a das relaccedilotildees do homem e do meio e a questatildeo da determinaccedilatildeo e da significaccedilatildeo das normas humanasrdquo (MNHT 2001 p114)
Abordando o problema das relaccedilotildees do homem com o meio social atraveacutes
da questatildeo da adaptaccedilatildeo do trabalhador a seu meio de trabalho ele contesta o
ponto de vista da psicologia da reaccedilatildeo ou do comportamento pela reduccedilatildeo que faz
do meio do trabalho ao meio fiacutesico e da condiccedilatildeo do trabalhador ao
condicionamento de um ser vivo no meio geograacutefico
ldquoDo ponto de vista do biologista ou do psicoacutelogo behaviorista este novo meio como o meio natural se decompotildee em uma soma de excitantes de natureza fiacutesica aos quais o ser vivo reage segundo mecanismos analiticamente desmontaacuteveis que a estrutura do organismo daacute a chaverdquo (MNHT 2001 p114)
Seguindo uma concepccedilatildeo mecanicista de fisiologia Taylor acreditava ser
possiacutevel assimilar o trabalho humano a um jogo de mecanismos inanimados fazer
com que os movimentos dos operaacuterios dependessem inteiramente e unicamente
do movimento da maacutequina regulada segundo as exigecircncias do maior rendimento
econocircmico Aleacutem disso da mesma forma que behavioristas como Watson e Albert
Weiss defendiam o poder determinante do meio ele tambeacutem julgava que o
operaacuterio em suas relaccedilotildees com o meio fiacutesico e social no interior da empresa
deveria reagir sem iniciativa pessoal a uma soma de estimulaccedilotildees movimentos
135
mecacircnicos e ordens hieraacuterquicas dos quais ele natildeo poderia escolher nem a
qualidade nem a intensidade nem a frequecircncia
Para contestar os exageros mecanicistas de Jacques Loeb e Watson
Canguilhem cita autores que mostram que o animal natildeo reage por uma soma de
reaccedilotildees moleculares a um meio que pode ser decomposto em elementos
excitantes mas reage a ele como um todo a um ambiente apreendido como um
complexo no qual os movimentos satildeo tomados como regulaccedilotildees para as
necessidades que os comandam e para as quais o uso dos sentidos eacute essencial
ldquoO meio soacute pode impor algum movimento a um organismo quando este organismo se propotildee primeiro ao meio conforme certas orientaccedilotildees proacuteprias Uma reaccedilatildeo imposta eacute uma reaccedilatildeo patoloacutegica Os psicoacutelogos da escola Gestalt (principalmente Koffka) dissociaram dois aspectos do meio o meio de comportamento eacute uma escolha operada pelo ser vivo no interior do meio fiacutesico ou geograacutefico Com Von Uexkuumlll e Goldstein os biologistas acabam de compreender que o proacuteprio do ser vivo eacute de criar o seu meiordquo (MNHT 2001 p116)
Ademais ao tratar tambeacutem do tema da significaccedilatildeo das normas humanas
Canguilhem nota que se a razatildeo eacute considerada a norma das normas eacute natural
que o conceito de normalizaccedilatildeo seja apresentado como sinocircnimo de
racionalizaccedilatildeo Eacute tambeacutem esperado que uma racionalizaccedilatildeo de inspiraccedilatildeo
cientificista procure determinar objetivamente atraveacutes de procedimentos
experimentais as normas de rendimento teacutecnico de modo a indicar para certo
trabalho o uacutenico e melhor meacutetodo a seguir the one best way (cf MNHT 2001
p117) Por este crivo os motivos da resistecircncia operaacuteria agrave racionalizaccedilatildeo satildeo
qualificados de irracionais isto eacute de anormais a questatildeo das aptidotildees individuais
e coletivas satildeo negligenciadas e todo operaacuterio que natildeo se dobra a norma
empresarial deve ser demitido
ldquoCertamente na condiccedilatildeo de mecanizar o homem e de mecanizar o tempo negligenciando sistematicamente o caraacuteter riacutetmico de atividade de um ser vivo qualquer pode-se estabelecer a norma de rendimento de um determinado operaacuterio pela medida do tempo miacutenimo praticado por diferentes operaacuterios para cada elemento de uma tarefa decomposta O inconveniente eacute esta norma natildeo ter nenhuma significaccedilatildeo concreta para um indiviacuteduo tomado em sua totalidade bio-psicoloacutegica de sua existecircnciardquo (MNHT 2001 p118)
136
Todavia Canguilhem mostra que o primeiro problema que aparece ao
tentarmos racionalizar o trabalho eacute o de escolher a norma que seraacute imposta como
norma geral ou meacutedia a todos os operaacuterios empregados em uma mesma tarefa
Pois assim como natildeo existe uma racionalizaccedilatildeo mas racionalizaccedilotildees natildeo haacute
uma norma mas normas referenciadas a pluralidade de valores dos quais nos
termos de Friedmann irrompe uma onda de realidades psiacutequicas morais e sociais
(cf MNHT 2001 p118)
Ele tambeacutem percebe que eacute a falta de significaccedilatildeo das normas no trabalho
que ao fim das contas gera as patologias relacionadas a ele As normas
capitalistas suplantando as normatividades individuais e tolhendo as
potencialidades humanas levam o operaacuterio agrave insatisfaccedilatildeo pelo esvaziamento do
sentido atribuiacutedo a seu trabalho Isso somado agrave monotonia da tarefa e ao incentivo
das relaccedilotildees competitivas entre os trabalhadores acaba por se transformar em
fonte de sofrimento Ou seja eacute o conjunto de fatores alienantes relacionados agrave
proacutepria estrutura organizacional da empresa a bem dizer associada ao modo de
produccedilatildeo capitalista o que torna o ambiente de trabalho adoecedor
Por isso na esteira de Friedmann Canguilhem considera as reaccedilotildees de
resistecircncia operaacuteria agrave mecanizaccedilatildeo taylorista como reaccedilotildees de defesa bioloacutegica e
tambeacutem social e ambas como sinocircnimo de sauacutede Atraveacutes delas o operaacuterio deixa
de se sentir objeto para se perceber sujeito em seu meio de trabalho o qual
modela a partir de suas proacuteprias normas O meio normal de trabalho enfim eacute
aquele que os operaacuterios instituem a partir de seus proacuteprios valores103 Destarte se
103
Nesta mesma direccedilatildeo Le Blanc (2010b) argumenta que eacute tendo em vista as dificuldades produzidas por uma compreensatildeo das alienaccedilotildees sociais que Canguilhem recorre a Friedmann para formular sua perspectiva social Para o autor de Problegravemes humains du machinisme industriel a loacutegica industriosa do capitalismo realizada no taylorismo submete os homens agraves normas e ao ritmo de trabalho Portanto a adaptaccedilatildeo do vivente ao trabalho exige sua adaptaccedilatildeo agraves maacutequinas e impotildee a ele uma forma econocircmica maior o liberalismo da sociedade industrial (cf LE BLANC 2010b p248) A importacircncia da anaacutelise de Friedmann para Canguilhem eacute apresentar a relaccedilatildeo do homem com o meio do trabalho natildeo em termos de determinaccedilatildeo mas de resistecircncia sobretudo de resistecircncia da subjetividade aos efeitos do trabalho e de sua dissoluccedilatildeo no meio socioeconocircmico Assim o termo resistecircncia assume uma significaccedilatildeo essencial na experiecircncia da subjetividade Ela natildeo se submete agraves normas teacutecnicas impostas pela racionalizaccedilatildeo econocircmica o que pode conduzir a uma nova revoluccedilatildeo nas relaccedilotildees do homem com a maacutequina Pois eacute a maacutequina agora que deve
137
Canguilhem se diferencia de Friedmann por defender o primado do vital sobre o
mecacircnico e dos valores sobre a vida e natildeo o primado do humano sobre o
mecacircnico e do social sobre o humano de modo mais fundamental uma mesma
ideia os une
ldquoA ilusatildeo capitalista estaacute em acreditar que as normas capitalistas satildeo definitivas e universais sem pensar que a normatividade natildeo pode ser um privileacutegio O que Friedmann chama de lsquoliberaccedilatildeo do potencial do indiviacuteduorsquo natildeo eacute outra coisa que esta normatividade que faz para o homem o sentido de sua vidardquo (MNHT 2001 p117)
Vemos assim que em seu artigo Meio e normas do homem no trabalho
atraveacutes da anaacutelise da obra de Friedmann Canguilhem faz uma criacutetica agrave
mecanizaccedilatildeo do trabalhador realizada pelo taylorismo agrave psicoteacutecnica e agrave
psicossociologia do trabalho em seu compromisso com o rendimento e lucro e natildeo
com o desenvolvimento do potencial dos trabalhadores Todavia na base de sua
criacutetica estaacute a reduccedilatildeo que a psicologia do comportamento faz do meio do trabalho
ao meio fiacutesico a qual o trabalhador deve necessariamente se adaptar meio este
supostamente separado do contexto social mais amplo mas que em verdade o
espelha e o sustenta Ou seja estaacute o seu embate com o behaviorismo visto por
ele como uma teacutecnica de submissatildeo e de adaptaccedilatildeo passiva dos indiviacuteduos ao
meio social
De modo mais incisivo em Qursquoest que la Psychologie e Le cerveau et la
penseacutee ele critica o behaviorismo seus pressupostos e apropriaccedilotildees pela
educaccedilatildeo economia e principalmente pela poliacutetica revelando seu uso para
identificaccedilatildeo de comportamentos opositivos normalizaccedilatildeo e controle do
pensamento e manutenccedilatildeo de toda sorte de sistemas poliacuteticos com destaque aos
conservadores e repressivos Se aproximando dos pensamentos de Espinosa e
Nietzsche e tambeacutem da perspectiva socialista libertaacuteria de Noam Chomsky ele
coloca em questatildeo a suposta unidade da psicologia e mostra como ela acabou
por se configurar como uma tecnologia do poder uma teacutecnica utilizada para
se adaptar agraves normas bioloacutegicas e psicoloacutegicas do homem e natildeo o contrario (cf LE BLANC 2010b p248) Op cit
138
normalizaccedilatildeo do pensamento e instrumentalizaccedilatildeo do homem isto eacute para sua
brutalizaccedilatildeo104
Com efeito nos seus Eacutetudes dacuteHistoire et de Philosophie des Sciences
Canguilhem diz o quatildeo embaraccedilosa aos psicoacutelogos eacute a pergunta Qursquoest que la
Psychologie porque ela remete agrave questatildeo sobre o que fazem e aonde querem
chegar fazendo o que fazem Ainda de saiacuteda questiona se a eficaacutecia da
psicologia se deve agrave aplicaccedilatildeo de uma ciecircncia como querem alguns ou ela eacute tatildeo
mal fundamentada que natildeo passaria de uma filosofia sem rigor uma eacutetica sem
exigecircncia e uma medicina sem controle por conjugar saberes advindos de
diferentes matrizes teoacutericas referenciais eacuteticos diversos sem a devida criacutetica (do
padre do educador do chefe do juiz etc) e por se voltar as trecircs classes de
doenccedilas mais ininteligiacuteveis e menos curaacuteveis as nervosas mentais e
dermatoloacutegicas
Entendendo que este questionamento natildeo eacute impertinente nem inuacutetil
Canguilhem pergunta se teria razatildeo Daniel Lagache ao afirmar que a unidade da
psicologia seria encontrada numa definiccedilatildeo possiacutevel de uma teoria geral da
conduta siacutentese da psicologia experimental da psicoacuteloga cliacutenica da psicanaacutelise
da psicologia social e da etnologia105 Contestando este ponto de vista ele vecirc
104
Braunstein (2004) esclarece que se nos escritos canguilhemianos a introspecccedilatildeo eacute criticada como filosofia da inaccedilatildeo o behaviorismo eacute criticado como filosofia da brutalizaccedilatildeo Esta hostilidade de Canguilhem em relaccedilatildeo agrave brutalizaccedilatildeo proacutepria agrave psicologia do comportamento pode ser atribuiacuteda agrave influecircncia de seus dois mestres Alain e Bergson Para Alain o psicoacutelogo eacute o ldquomestre da submissatildeordquo que imobiliza o espiacuterito e o impossibilita de agir Jaacute Bergson defende que a ciecircncia natildeo deve tratar o vivente como inerte sendo necessaacuterio evitar uma ldquofiacutesica do espiacuteritordquo Como a filosofia da vida mostra que o vivente cria suas proacuteprias normas e pode se opor ao meio a filosofia da accedilatildeo humana afirma que o vivente humano pode recusar o dado e impor suas proacuteprias normas no meio social No uacuteltimo periacuteodo de sua obra inspirado na terminologia de Foucault ele reformula sua criacutetica agrave brutalizaccedilatildeo e fala em serviccedilo dos saberes pelos poderes Os poderes estatildeo interessados em nosso poder de pensar eles visam agrave normalizaccedilatildeo do pensamento Daiacute a importacircncia central da criacutetica canguilhemiana agrave psicologia posto que ela assimilada ao behaviorismo define o vivente como o resultado necessaacuterio de um estiacutemulo vindo do meio ideia utilizada pelos poderes para realizar o controle social Por isso a psicologia eacute para ele a anti-filosofia por excelecircncia Cf BRAUNSTEIN J-F La critique canguilhemienne de la psychologie Estudos e Pesquisas em Psicologia UERJ RJ vol 4 ndeg 2 2004
105 De modo mais preciso Canguilhem acredita que Lagache se embaraccedila ao tentar unificar o
naturalismo da psicologia experimental e o humanismo da psicologia cliacutenica ateacute porque a primeira eacute caracterizada por seu meacutetodo e a segunda por seu objeto A seu ver esta fusatildeo mais parece um ldquopacto de coexistecircncia paciacuteficardquo no interior da psicologia do que uma real unificaccedilatildeo de seu domiacutenio ldquoA unidade da psicologia eacute aqui procurada em sua definiccedilatildeo possiacutevel como teoria geral da
139
nesta definiccedilatildeo mais um pacto de coexistecircncia paciacutefica que uma unidade Isso
porque se o estatuto de ciecircncia estaacute relacionado agrave clareza de seu objeto mas
ainda mais ao rigor de seu meacutetodo considerando que o objeto da psicologia eacute o
homem o problema estaria em saber se eacute possiacutevel encontrar uma unidade em
seu domiacutenio apesar de tal disparidade metodoloacutegica
Diante disso para saber se haveria de fato uma unidade de projeto na
psicologia ele se potildee a esboccedilar a histoacuteria de sua constituiccedilatildeo em sua relaccedilatildeo
com a histoacuteria das ciecircncias e da filosofia empreitada que a miscelacircnea atual de
disciplinas psicoloacutegicas justificaria No final desta tarefa o que ele encontra satildeo
trecircs diferentes entendimentos sobre a psicologia a saber como ciecircncia natural
como ciecircncia da subjetividade esta subdividida em fiacutesica do sentido externo
ciecircncia do sentido interno e ciecircncia do sentido iacutentimo e por fim como ciecircncia das
reaccedilotildees e do comportamento106 Ao analisar cada uma destas vertentes nota que
conduta siacutentese da psicologia experimental da psicologia cliacutenica da psicanaacutelise da psicologia social e da etnologia Mas quando se olha de perto podemos dizer que esta unidade parece mais um pacto de coexistecircncia paciacutefica acordado entre profissionais do que a uma essecircncia loacutegica obtida pela descoberta de uma constante numa variedade de casosrdquo (E 1989 p366) De acordo com Carol amp Plats (2008) Lagache defende uma psicologia que ele denomina de humanista baseada no modelo cliacutenico e que estuda o homem total e concreto na situaccedilatildeo Em nome da unidade da psicologia ele apresenta o meacutetodo cliacutenico e experimental como complementares poreacutem como bem expocircs Canguilhem havia bons motivos para pensar que sua intenccedilatildeo era meramente conciliatoacuteria motivada por questotildees poliacuteticas Como seu meacutetodo sofria oposiccedilatildeo por parte dos psiquiatras ele natildeo queria perder o apoio dos psicoacutelogos experimentalistas O exemplo da tentativa de unificaccedilatildeo das diferentes culturas da psicologia mostra o quanto questotildees poliacuteticas subjazem e interferem na escolha e elaboraccedilatildeo das teorias cientiacuteficas embora seus defensores aleguem autonomia imparcialidade e neutralidade Cf CARROY J PLAS R Reflexotildees histoacutericas sobre as culturas da psicologia [Trad Dener Luiacutes da Silva] Pesquisas e Praacuteticas psicossociais 3(1) Satildeo Joatildeo del-Rei ag 2008
106 Para traccedilar este percurso Canguilhem vai de Aristoacuteteles a Freud passando por Galeno
Descartes Wundt Woflf Maine de Biran Kant Pinel Royer-Collard Esquirol Ribot Janet e outros Ao estudar a psicologia como ciecircncia natural ele lembra que em seu Tratado Da alma Aristoacuteteles coloca o corpo natural e organizado que possui uma vida em potecircncia como objeto da fiacutesica e a alma como forma do corpo vivente e natildeo como substacircncia separada da mateacuteria Ao estudaacute-la como ciecircncia da subjetividade ele nota que a psicologia continua sendo uma fiacutesica mas natildeo no sentido dos antigos mas uma fiacutesica matemaacutetica de responsabilidade dos fiacutesicos mecanicistas do XVII Se a nova fiacutesica eacute um caacutelculo a psicologia tende a imitaacute-la Isto eacute se Descartes em suas Regras para a direccedilatildeo do espiacuterito propotildee a reduccedilatildeo das diferenccedilas qualitativas entre os dados sensoriais a uma diferenccedila geomeacutetrica a psicologia passa a ser uma fiacutesica matemaacutetica do sentido externo Jaacute como ciecircncia do sentido interno originada nas Meditaccedilotildees cartesianas identificada a uma ciecircncia da consciecircncia de si ela acabou por se constituir como uma psicologia racional fundada sobre a intuiccedilatildeo de um eu substancial Jaacute como ciecircncia do sentido iacutentimo ela se ancora no fato de que se ateacute aquele momento a relaccedilatildeo entre o psiacutequico e o fiacutesico havia sido formulada como somato-psiacutequica agora se converte em psico-somaacutetica dada a inversatildeo operada pela noccedilatildeo de inconsciente Assim se se identifica psiquismo e
140
enquanto nas duas primeiras eacute possiacutevel identificar certa ideia de homem como
alma ou sujeito forma natural ou consciecircncia de interioridade quando se estuda
os fundamentos da psicologia do comportamento a ideia que se extrai eacute a de
ferramenta Entatildeo pergunta
ldquoMas enfim qual o sentido deste instrumentalismo agrave segunda potecircncia O que empurra ou inclina os psicoacutelogos a converter-se entre os homens em instrumentos de uma ambiccedilatildeo de tratar o homem como instrumentordquo (E 1989 p378)
Com efeito ao relatar a histoacuteria da psicologia como ciecircncia das reaccedilotildees e
do comportamento Canguilhem apresenta as razotildees cientiacutefica teacutecnica e
econocircmica e poliacutetica de seu advento A primeira estaria relacionada agrave constituiccedilatildeo
de uma biologia como ciecircncia das relaccedilotildees entre organismos e meios e a
derrocada da ideia de existecircncia de um reino humano separado a segunda ao
desenvolvimento da sociedade industrial agrave atenccedilatildeo ao caraacuteter industrioso da
espeacutecie humana e ao fim da dignidade do pensamento especulativo e a terceira
estaria vinculada ao fim da crenccedila nos valores de privileacutegio social e na difusatildeo do
igualitarismo o que acarretou uma mudanccedila no papel do Estado frente agrave
sociedade e nas prerrogativas civis e militares A partir disso ele encontra a
origem da psicologia do comportamento ligada a um fenocircmeno proacuteprio das
sociedades modernas a peritagem entendida em um sentido amplo enquanto
determinaccedilatildeo das competecircncias e rastreio das simulaccedilotildees
Ainda ao investigar seus fundamentos teoacutericos percebe que dentre os
diferentes tipos de estudos psicoloacutegicos a psicologia do comportamento eacute a mais
incapaz de exibir com clareza seu projeto instaurador
consciecircncia recorrendo agrave autoridade de Descartes o inconsciente eacute de ordem fiacutesica Se se pensa que o psiacutequico pode ser inconsciente que ele natildeo eacute apenas o que estaacute escondido mas o que se esconde o que escondemos a psicologia passa a ser a natildeo apenas a ciecircncia da intimidade mas das ldquoprofundezas da almardquo Por fim no seacuteculo XIX ao lado da psicologia como patologia nervosa e mental como fiacutesica do sentido externo como ciecircncia do sentido interno e do sentido iacutentimo nasce uma psicologia que se quer uma ciecircncia objetiva das atitudes reaccedilotildees e comportamentos Eacute precisamente a esta que Canguilhem direciona sua maior criacutetica por estar desvinculada de qualquer filosofia ou ideia de homem isto eacute de uma antropologia (cf E 1989 p380)
141
ldquoSe entre os projetos instauradores de certos tipos anteriores de psicologia alguns podem passar por contrassensos filosoacuteficos aqui ao contraacuterio como toda relaccedilatildeo com uma teoria filosoacutefica estaacute refutada a questatildeo eacute a de saber de onde tal investigaccedilatildeo psicoloacutegica pode retirar seu sentidordquo (E 1989 p376-377)
Assim partindo da criacutetica nietzschiana agrave psicologia inglesa presente na
Genealogia da moral Canguilhem explica que se o utilitarismo implica a ideia de
utilidade para o homem o instrumentalismo traz a ideia de homem como meio de
utilidade Assim Nietzsche tem razatildeo ao dizer que os psicoacutelogos querem ser os
ldquoinstrumentos ingecircnuos e precisosrdquo do estudo do homem se esforccedilando para
chegar a um conhecimento objetivo e determiniacutestico dos seus comportamentos ndash
se natildeo mais o determinismo proacuteprio agrave fiacutesica newtoniana um determinismo
estatiacutestico assentado sobre os resultados da biometria
ldquoAs investigaccedilotildees sobre as leis de adaptaccedilatildeo e da aprendizagem sobre a relaccedilatildeo entre aprendizagem e aptidotildees sobre a detecccedilatildeo e a medida de aptidotildees sobre as condiccedilotildees de rendimento e da produtividade (quer se trate de indiviacuteduos ou de grupos) ndash pesquisas inseparaacuteveis de suas aplicaccedilotildees em seleccedilatildeo ou orientaccedilatildeo ndash admitem todas um postulado impliacutecito comum a natureza do homem eacute ser um instrumento sua vocaccedilatildeo eacute ser posto em seu lugar em sua tarefardquo (E 1989 p378)
Em resumo para Canguilhem o problema eacute que a psicologia da reaccedilatildeo e
do comportamento dos seacuteculos XIX e XX acreditou ser independente da filosofia
separando-se de toda especulaccedilatildeo sobre uma ideia de homem Os psicoacutelogos se
transformaram em uma elite coorporativa de especialistas investidos por eles
mesmos de sua proacutepria missatildeo de serem os managers das relaccedilotildees do homem
com o homem Alheios agraves condiccedilotildees histoacutericas e sociais em que satildeo chamados a
aplicar suas teacutecnicas a eles natildeo interessa saber qual seraacute a utilizaccedilatildeo de seus
relatoacuterios ou diagnoacutesticos natildeo sendo este assunto de psicoacutelogo
Sendo assim restaria ao homem submetido a uma prova de teste mostrar
repugnacircncia ao ser ldquotratado como insetordquo por algueacutem que se julga superior a ele
acreditando ter autoridade para lhe dizer quem ou o que eacute e o que deve fazer (cf
E 1989 p378) Mas ao filoacutesofo com certo cinismo caberia perguntar ao
psicoacutelogo a que tende a psicologia para saber o que ela eacute e como um conselho de
orientaccedilatildeo dizer a ele que quando se sai da Sorbonne pela rua Saint Jacques eacute
142
possiacutevel pegar dois caminhos um que leva ao Panteatildeo e outro agrave delegacia de
poliacutecia (cf E 1989 p381)
Em Le cerveau et la penseacutee ainda refletindo sobre os caminhos e
descaminhos trilhados pela psicologia Canguilhem destaca suas apropriaccedilotildees
poliacuteticas seu uso como teacutecnica de controle do pensamento Com efeito ele inicia
sua conferecircncia dizendo que haacute um nuacutemero cada vez maior de poderes
interessados em nossa faculdade de pensar e que este interesse natildeo eacute
puramente teoacuterico mas poliacutetico porque nele reside a intenccedilatildeo de fazer com que
pensemos como querem que pensemos Agora ao lado da referecircncia ao conluio
de certas empresas de informaacutetica como a IBM107 com o Terceiro Reich a
psicologia comportamental aparece como uma teacutecnica que objetiva em uacuteltima
anaacutelise a normalizaccedilatildeo do pensamento
Querendo evidenciar as apropriaccedilotildees sociais e poliacuteticas das teorias
cientiacuteficas ao inveacutes de situar a questatildeo ceacuterebro e pensamento na histoacuteria dos
seres vivos ele opta por inscrevecirc-la na histoacuteria da cultura iniciando seu exame
pelo seacuteculo XIX contexto do embate do positivismo com o espiritualismo atraveacutes
da teoria das localizaccedilotildees cerebrais Isto eacute ele escolhe iniciar sua reflexatildeo pela
anaacutelise da obra Anatomie et physiologie du systegraveme nerveux em geacuteneacuteral et du
cerveau em particulier (1810) na qual Gall em oposiccedilatildeo agrave teoria dos metafiacutesicos
espiritualistas da substancialidade ontoloacutegica da alma apresenta a ideia da
inerecircncia das qualidades morais e dos poderes intelectuais ao ceacuterebro isto eacute a
teoria dos hemisfeacuterios cerebrais como a sede da faculdades de pensar
Destacando tambeacutem a frenologia de Spurzheim e a de seus disciacutepulos nota
que antes dela acreditava-se que Descartes era pensador um autor responsaacutevel
por seu sistema filosoacutefico Agora ele eacute portador de um ceacuterebro pensante que
explica por sua configuraccedilatildeo tudo o que fez e pensou Na visatildeo frenoloacutegica
Descartes eacute portador de um ceacuterebro que pensa sob o nome de Reneacute Descartes e
107
Certamente Canguihem se refere ao apoio teconoloacutegico da IBM agrave Hitler no decorrer de boa parte da Segunda Guerra Atraveacutes de seus programas de identificaccedilatildeo catalogaccedilatildeo e seleccedilatildeo especialmente da tecnologia Hollerith de cartotildees perfurados a Alemanha nazista foi capaz de automatizar a perseguiccedilatildeo aos judeus e organizar o trabalho forccedilado nos campos de concentraccedilatildeo
143
o cogito natildeo eacute mais o efeito das faculdades intelectuais reflexivas mas da
faculdade que percebe as accedilotildees que estatildeo em noacutes
ldquoEm suma a partir da imagem do cracircnio de Descartes o saacutebio frenologista conclui que todo Descartes biografia e filosofia estaacute num ceacuterebro que eacute preciso dizer seu ceacuterebro o ceacuterebro de Descartes jaacute que conteacutem a faculdade de perceber as accedilotildees que estatildeo nelerdquo (CP 1993 p17)
Mas se o Ego pensante eacute uma ilusatildeo e se as expressotildees eu penso eu sinto natildeo
satildeo formas corretas de se expressar e que seria preciso dizer isso pensa em mim
isso sente em mim cabe perguntar como do eu penso pode advir o isso pensa
que o fisiologista indica e descreve como o ceacuterebro
Ele ainda lembra que a frenologia como uma cranioscopia baseada na
correspondecircncia entre o conteuacutedo e o continente entre a configuraccedilatildeo dos
hemisfeacuterios e a forma do cracircnio foi aplicada como instrumento para orientaccedilatildeo e
seleccedilatildeo profissional e ateacute mesmo para fins de escolha matrimonial Ela serviu
posteriormente como base para a elaboraccedilatildeo do primeiro mapa topograacutefico
cerebral convertido depois em teacutecnicas de psicocirurgia como a lobotomia
Destarte se ele escolhe iniciar sua anaacutelise pela teoria das localizaccedilotildees cerebrais e
da frenologia eacute porque Gall e Spurzheim natildeo deixaram de afirmar o alcance
praacutetico de suas teorias na aacuterea da pedagogia do rastreamento de atitudes na
identificaccedilatildeo de aptidotildees ndash chamada mais tarde de orientaccedilatildeo ndash da medicina e da
esfera da seguranccedila na prevenccedilatildeo da delinquecircncia
ldquoDestacamos novamente a rapidez com a qual o conhecimento suposto das funccedilotildees do ceacuterebro eacute investido em teacutecnicas de intervenccedilatildeo como si a teoria fosse congenitalmente suscitada por um interesse praacuteticordquo (CP 1993 p14)
Fazendo referecircncia agrave obra De lrsquointelligence de Hypollite Taine ele nota
tambeacutem que paralelamente ao desenvolvimento das pesquisas em neurologia
cerebral a psicologia animada por elas tornou-se natildeo mais do que uma sombra
da fisiologia ao tentar elucidar a partir das localizaccedilotildees cerebrais os processos
psiacutequicos como se as representaccedilotildees estivessem armazenadas nas ceacutelulas
144
nervosas108 Para contestar tal associaccedilatildeo Canguilhem cita Pierre Janet para
quem eacute um exagero vincular a psicologia ao estudo do ceacuterebro Isso porque o
pensamento natildeo eacute funccedilatildeo de nenhum oacutergatildeo em particular mas um processo de
conjunto do indiviacuteduo tomado como um todo
ldquoO que noacutes chamamos ideia de fenocircmenos da psicologia eacute um comportamento de conjunto de todo indiviacuteduo tomado em seu conjunto Noacutes pensamos com nossas matildeos assim como com nosso ceacuterebro noacutes pensamos com nosso estocircmago noacutes pensamos como um todo Natildeo eacute necessaacuterio separar um do outro A psicologia eacute a ciecircncia do homem inteiro natildeo uma ciecircncia do ceacuterebro Esse eacute um erro psicoloacutegico que tem feito muito mal durante muito tempordquo (CP 1993 p15-16)
Tambeacutem porque o autor de La penseacutee inteacuterieure et ses troubles esclarece que o
conceito de alienaccedilatildeo mental natildeo eacute primeiramente um termo psicoloacutegico mas
antes de tudo uma categoria utilizada pela poliacutecia ldquoA palavra louco eacute portanto um
termo policialrdquo (CP 1993 p16) Por isso para ele a posiccedilatildeo de Janet em mateacuteria
de patogenia e terapecircutica eacute tatildeo contestadora quanto a de um adepto da
antipsiquiatria pois quando deixamos de acreditar no reducionismo do psiacutequico ao
aparelho neurocerebral nos tornamos tatildeo ceacuteticos quanto eles em relaccedilatildeo agrave
eficiecircncia de um internamento quase carceraacuterio daqueles categorizados
socialmente como loucos
A partir do questionamento sobre o que eacute pensar entatildeo Canguilhem reflete
sobre a possibilidade de que ele seja identificado agrave funccedilatildeo de ceacuterebro anaacutelogo a
um computador Ele explica que a metaacutefora do ceacuterebro computador se justificaria
na medida em que se entende como pensamento as operaccedilotildees da loacutegica o
caacutelculo o raciociacutenio ldquoRazatildeo ratio deriva etimologicamente de reor calcularrdquo (CP
1993 p18) No entanto isso natildeo excluiria a necessidade de uma motivaccedilatildeo
preacutevia para o pensar e natildeo explicaria a capacidade reflexiva do pensamento de
108
Ironicamente sobre os primoacuterdios da psicologia cientiacutefica Politzer comenta que eacute na tentativa de criaccedilatildeo de uma psicologia ldquosem almardquo que comeccedila a migraccedilatildeo dos aparelhos dos laboratoacuterios de fisiologia para os de psicologia ldquoQuanto orgulho Quanta alegria Os psicoacutelogos tecircm laboratoacuterios e publicam monografias Acabam-se as disputas verbais calculemos Puxam-se os logaritmos pelo cabelo e Ribot calcula o nuacutemero de ceacutelulas cerebrais para saber se podem abrigar todas as ideacuteias Nasce a psicologia cientiacuteficardquo (POLITZER 1998 p38) Cf POLITZER G Criacutetica dos fundamentos da psicologia a psicologia e a psicanaacutelise Op cit
145
voltar-se para si mesmo Assim natildeo sem ironia ele problematiza Considerando
que o homem eacute um inventor de maacutequinas de onde viria sua motivaccedilatildeo para
construir outra maacutequina Seria o computador cerebral capaz de entender a si
proacuteprio de refletir sobre sua proacutepria natureza Poderia ele escrever sua
autobiografia na falta de sua autocriacutetica
Acreditando que a analogia entre o ceacuterebro e uma maacutequina
computadorizada eacute enganosa Canguilhem contesta o uso do modelo maquinal
para explicaacute-lo e o uso da linguagem da informaacutetica para elucidar seu
funcionamento (recepccedilatildeo de estiacutemulos transmissatildeo e desvio de sinais
elaboraccedilatildeo de respostas e registro de operaccedilotildees) Ainda recusando a associaccedilatildeo
do ceacuterebro ao pensamento ele elogia bioacutelogos como Franccedilois Jacob e Michel
Jouvet reticentes em deduzir a consciecircncia de uma ciecircncia do ceacuterebro isto eacute de
uma neurociecircncia
Mas mais do que defender a impossibilidade de traduccedilatildeo dos processos da
consciecircncia em termos neurobioloacutegicos de modo fundamental o que Canguilhem
quer desvendar eacute o interesse que estaacute por traacutes da metaacutefora da assimilaccedilatildeo do
ceacuterebro a um computador o porquecirc a ideia de maquinaria eletrocircnica do
pensamento tem sido habilmente transformada em lugar comum publicitaacuterio no
estaacutegio industrial da informaacutetica
ldquoComo poderiacuteamos estar contra um computador se nosso ceacuterebro eacute ele mesmo um computador O computador em sua proacutepria casa Por que natildeo se jaacute temos um computador em cada um de noacutes Um modelo de pesquisa cientiacutefica foi convertido em maacutequina de propaganda ideoloacutegica com dois fins prevenir ou desarmar a oposiccedilatildeo a um meio de regulaccedilatildeo automatizada das relaccedilotildees sociais dissimular a presenccedila de tomadores de decisatildeo que estatildeo por traacutes do anonimato de uma maacutequinardquo (CP 1993 p21)
Para desconstruir entatildeo a ideia de assimilaccedilatildeo possiacutevel do ceacuterebro a uma
maacutequina em uacuteltima anaacutelise para fazer frente aos fins relacionados a seu uso
ideoloacutegico ele recorre agrave capacidade criadora inventiva do pensamento Afirma
que pensar envolve criaccedilatildeo e a maquinaria cerebral estaacute limitada a relacionar
146
dados sob a limitaccedilatildeo de um programa ldquoInventar eacute criar informaccedilatildeo Perturbar
haacutebitos do pensamento o estado estacionaacuterio de um saberrdquo (CP 1993 p21)
Ele argumenta que se fosse possiacutevel assimilar o ceacuterebro a uma maacutequina
eletrocircnica seria tambeacutem possiacutevel entender atraveacutes de uma explicaccedilatildeo fiacutesico-
quiacutemica como o ceacuterebro eacute capaz de inventar o que natildeo ocorre Embora natildeo
negue o benefiacutecio real que certas drogas psicotroacutepicas tecircm oferecido a indiviacuteduos
com certas doenccedilas mentais como a esquizofrenia ou nervosas como a doenccedila
de Parkinson julga que apesar da existecircncia de efeitos felizes dos mediadores
quiacutemicos das perspectivas abertas por certas descobertas da
neuroendocrinologia natildeo parece ter chegado o tempo de acreditar do mesmo
modo que Cabanis que o ceacuterebro vai secretar pensamento assim como o fiacutegado
secreta a biacutelis (cf CP 1993 p23)109
Eacute precisamente no contexto desta discussatildeo que Canguilhem coloca em
questatildeo a psicologia entendida como estudo do comportamento se eacute que ainda
ela pode ser chamada de psicologia Isso porque ela exclui qualquer referecircncia ao
pensamento e agrave consciecircncia interessando-se pelo ceacuterebro apenas como uma
ldquocaixa pretardquo onde apenas as entradas e saiacutedas satildeo levadas em conta Mais do
que isso porque em suas teacutecnicas de condicionamento ela se utiliza de
dispositivos de aprendizagem baseados no estiacutemulo-resposta erro-castigo
correccedilatildeo-recompensa O problema eacute que seja no condicionamento pavloviano
109
Varela (1993) focando o problema da relaccedilatildeo entre a neurociecircncia e a psicologia apresenta brevemente como se deu o desenvolvimento das pesquisas sobre o ceacuterebro dos anos 70 ateacute as mais recentes e como hoje se pensa o mental como uma propriedade emergente das propriedades cognitivas Acreditando que a aproximaccedilatildeo entre o pensamento e as propriedades cognitivas mais gerais natildeo eacute quimeacuterica mas a origem de um programa construtivo ele coloca entatildeo a questatildeo se as ideias de Canguilhem natildeo estariam hoje caducas diante do programa cognitivista computacional Agora o problema do paradoxo da reflexividade colocado por Canguilhem ndash como pode o ceacuterebro escrever sua proacutepria teoria ndash este quebra-cabeccedilas da relaccedilatildeo entre a emergecircncia do pensamento a partir de agentes cognitivos mais simples e a experiecircncia do ponto de vista do sujeito ele mesmo seu mundo vivido isto eacute da exterioridade do mecanismo com a interioridade da experiecircncia vivida eacute ainda uma questatildeo controversa que vai alimentar os debates da proacutexima deacutecada Ele concorda com a atitude de Canguilhem de natildeo cair na tentaccedilatildeo do reducionismo mecanicista dos fisicalistas fisicalizantes mas tambeacutem natildeo quer resvalar na completa inacessibilidade do ponto de vista dos psicanalistas psicanalizantes A seu ver os filoacutesofos deveriam dialogar com os cientistas para natildeo caiacuterem nem no reducionismo nem na inefabilidade achando outra via entendida por ele como um caminho meacutedio mais satisfatoacuterio Cf VARELA FJ ldquoLe cerveau et la penseacuteerdquo In BADIOU A (et al) Georges Canguilhem Philosophe historien des sciences Actes du colloque (6 7 8 deacutecembre 1990) Paris Albin Michel 1993
147
seja no skinneriano ou instrumental em ambos os casos haacute uma confusatildeo entre
aprendizagem e condicionamento e uma extrapolaccedilatildeo indevida dos resultados
obtidos por experimentaccedilatildeo com outros animais para o homem aleacutem da
identificaccedilatildeo do meio controlado ao meio social
Segundo Canguilhem o uso destas teacutecnicas de orientaccedilatildeo ou
direcionamento dos indiviacuteduos no meio social o condicionamento de seu
comportamento atraveacutes de uma distribuiccedilatildeo manifesta ou velada de recompensas
tem servido como meio de conservaccedilatildeo de diferentes tipos de estruturas
sociopoliacuteticas110 estando certos aqueles que notando seu uso generalizado
dizem que condicionamento e descondicionamento lavagem cerebral e camisa-
de-forccedila quiacutemica natildeo satildeo privileacutegio de paiacutes nenhum (cf CP 1993 p25)
Acreditando que numa sociedade repressora ou conservadora a equaccedilatildeo
pensamento = ceacuterebro tem servido de base para as teacutecnicas de normalizaccedilatildeo de
conduta ele concorda com Chomsky111 quando afirma que a crenccedila de que o
espiacuterito humano eacute vazio fornece uma justificativa para toda sorte de sistemas
110
Com efeito como mostra Le Blanc (2010b) para Canguilhem a psicologia constituiacuteda a partir da biologia do comportamento longe de aceder a um valor cientiacutefico real eacute investida de dispositivos econocircmicos e poliacuteticos ocupando um lugar especial na estrateacutegia liberal Ela faz a instrumentalizaccedilatildeo do homem adaptando-o a uma nova sociedade na qual o valor maior eacute o rendimento a utilidade e a eficaacutecia Como praacutetica de medida da capacidade adaptativa do homem ela natildeo eacute mais um conhecimento do homem mas uma praacutetica destinada a fazecirc-lo instrumento utensiacutelio de um corpo poliacutetico que luta por sua manutenccedilatildeo Ela eacute entatildeo uma disciplina do homem uma praacutetica de controle com vistas a uma melhor integraccedilatildeo social ldquoa normalidade eacute o efeito da praacutetica disciplinar a serviccedilo das normas sociaisrdquo (LE BLANC 2010b p162-163) Ou seja a psicologia instrumental de orientaccedilatildeo adaptativa eacute uma praacutetica disciplinar voltada para a melhor inserccedilatildeo possiacutevel do homem na sociedade moderna o que a faz uma teacutecnica normalizadora uma praacutetica de seleccedilatildeo social uma poliacutecia do espiacuterito (cf LE BLANC 2010b p166-168) Cf LE BLANC G Canguilhem et la vie humaine Op Cit
111 Canguilhem acompanha Chomsky em sua criacutetica ao behaviorismo mas natildeo deixa de
apresentar as implicaccedilotildees do inatismo linguiacutestico Chomsky acredita que a competecircncia linguumliacutestica estaacute relacionada com a determinaccedilatildeo geneacutetica das capacidades cerebrais Por isso ele concorda com Descartes e Leibniz filoacutesofos que defenderam o inatismo dos princiacutepios racionais Atraveacutes disso Chomsky quer fazer oposiccedilatildeo agrave Skinner natildeo soacute agrave teoria exposta na obra Verbal Behavior mas as suas teses poliacuteticas expostas em Beyond Freedom and Dignity No entanto como salientam seus opositores o inatismo do poder intelectual defendido por Chomsky pode se transformar num argumento em favor do elitismo servindo de justificativa das relaccedilotildees sociais desiguais De acordo com Canguilhem a questatildeo colocada no contexto de embate entre o empirismo e o inatismo eacute que se a teoria da disposiccedilatildeo inicial para aprender deve ser associada a uma programaccedilatildeo geneacutetica deveriam ser tambeacutem os fundamentos da poliacutetica procurados nos ceacuterebros Ou seja o problema aqui posto eacute o da possibilidade de escaparmos ao determinismo das capacidades e disposiccedilotildees humanas tanto do a priori da determinaccedilatildeo geneacutetica quanto do a posteriori da determinaccedilatildeo pelo meio social
148
autoritaacuterios e que isso desenvolvido ao extremo ndash como foi em Skinner - acabaria
numa espeacutecie de esquema fascista
Fazendo oposiccedilatildeo agrave ideia de meio social mecanizado ele entende que o
essencial do meio social eacute ser um sistema de significaccedilotildees e que natildeo podemos
admitir que a aprendizagem e o sentido atribuiacutedo pelos homens agraves coisas e aos
outros seja o resultado de um simples adestramento por condicionamento
Refletindo sobre a relaccedilatildeo ceacuterebro-pensamento-linguagem diz que a
aprendizagem da linguagem natildeo se daacute por um condicionamento que desemboca
num viacutenculo duraacutevel entre um significante um significado e um referente A
linguagem humana eacute essencialmente uma funccedilatildeo semacircntica cujas explicaccedilotildees do
tipo fisicalista nunca chegaram a dar conta Pois o sentido natildeo eacute uma relaccedilatildeo
entre mas uma relaccedilatildeo com ldquoEis porque ele escapa a qualquer reduccedilatildeo que tente
aprisionaacute-lo numa configuraccedilatildeo orgacircnica ou mecacircnicardquo (CP 1993 p27)
Em suma a linguagem remete a um pensar e na experiecircncia do
pensamento cada palavra ou discurso tem uma cor simboacutelica diferente Eacute o
homem que atribui sentido a seu proacuteprio mundo e a relaccedilatildeo de sentido na
linguagem natildeo se reduz a uma relaccedilatildeo fiacutesica ou a sistemas de elementos no
ceacuterebro do locutor e de seu interlocutor Eacute preciso levar em conta os desvios e
entorses de sentido nesta relaccedilatildeo O homem pode brincar com o sentido desviaacute-
lo simulaacute-lo mentir criar armadilhas Como disse Michel Jouvet ldquouma maacutequina
natildeo pode enganar nem tampouco se enganar Em outras palavras uma maacutequina
natildeo eacute capaz de maquinaccedilotildeesrdquo (CP 1993 p33)
Assim o Eu aparece na filosofia em decorrecircncia do fato de que o mundo eacute
nosso proacuteprio mundo Mas este Eu natildeo eacute o psicoloacutegico correlato agrave ilusatildeo de uma
interioridade psiacutequica ndash jaacute que do ponto de vista filosoacutefico natildeo haacute contradiccedilatildeo em
reconhecer uma subjetividade sem interioridade Eacute um Eu que podemos chamar
de concreto que estaacute no mundo numa situaccedilatildeo de presenccedila-observaccedilatildeo
reivindicada pelo seu pensamento
149
ldquoPensar eacute o exerciacutecio do homem que exige a consciecircncia de si na presenccedila ao mundo natildeo como representaccedilatildeo do sujeito Eu mas como sua reivindicaccedilatildeo pois essa presenccedila eacute vigilacircncia e mais exatamente observaccedilatildeordquo (CP 1993 p29)
Segundo Canguilhem eacute na filosofia de Espinosa que a funccedilatildeo subjetiva da
presenccedila-observaccedilatildeo eacute mais manifesta assim como a defesa da liberdade de
pensar Porque o Eu espinosano eacute um Eu que reivindica diante do poder do
soberano de regular tudo o que diz respeito aos cidadatildeos o direito de cada um
pensar o que quer e dizer o que pensa Se Descartes se defendeu da acusaccedilatildeo
de criacutetico poliacutetico dizendo apenas querer reformar seus proacuteprios pensamentos e
procurou se afastar de indiviacuteduos com ldquohumor confuso e inquietordquo e com tendecircncia
agrave oposiccedilatildeo Espinosa natildeo hesitou em tomar posiccedilatildeo e insurgir-se contra o que
chama de uacuteltimos baacuterbaros
ldquoEm suma esta filosofia que refuta e recusa os fundamentos da filosofia cartesiana o cogito a liberdade em Deus e no homem esta filosofia sem sujeito muitas vezes assimilada a um sistema materialista esta filosofia vivida por um filoacutesofo que pensou e imprimiu em seu autor a forccedila necessaacuteria para se insurgir contra o fato consumado A filosofia deve dar conta de tal forccedilardquo (CP 1993 p30-31)
Destarte se a atitude de Espinosa de sair de sua casa apoacutes o assassinato de seu
amigo republicano por orangistas e de pregar cartazes com as palavras ultimi
barbarorum nas paredes da cidade estaacute em conformidade com sua filosofia da natildeo
submissatildeo a de Descartes de se afastar dos espiacuteritos que tendem agrave oposiccedilatildeo
tambeacutem estaacute
A seu ver a filosofia de Espinosa nos convida a sair de nossa reserva e a
se opor a toda intervenccedilatildeo em nosso ceacuterebro ndash entendido como o regulador vivo
de nossas accedilotildees no mundo e na sociedade - que tenha por objetivo nos privar de
nossos gestos de engajamento A partir dela sentimos a necessidade de sairmos
de uma posiccedilatildeo de conformismo ante uma realidade determinada que se coloca
como fato consumado e transformaacute-la
Assim na vereda espinosana Canguilhem acredita que a filosofia natildeo pode
deixar de erguer-se contra uma psicologia que se quer objetiva instruindo outras
150
ciecircncias sobre nossas funccedilotildees intelectuais e dispondo suas aquisiccedilotildees teoacutericas
para serem exploradas pela pedagogia pela economia e finalmente pela
poliacutetica112 Quanto agrave filosofia sua funccedilatildeo natildeo eacute aumentar o rendimento do
pensamento mas lembrar-lhe do sentido de seu poder
ldquoAtribuir agrave filosofia a tarefa especiacutefica de defender o Eu como reivindicaccedilatildeo inalienaacutevel da presenccedila-observaccedilatildeo eacute reconhecer que ela natildeo tem outro papel senatildeo o da criacutetica Aleacutem disso esta tarefa de negaccedilatildeo natildeo eacute negativa pois a defesa de uma reserva eacute a preservaccedilatildeo das condiccedilotildees de possibilidade de saiacutedardquo (CP 1993 p31)
Portanto como Politzer apostando numa subjetividade sem interioridade113
Canguilhem apresenta uma psicologia filosoacutefica que defende a ideia de um Eu
concreto material que valora e cria suas proacuteprias normas mas que natildeo se
identifica nem a uma substacircncia pensante nem ao ceacuterebro114 Sobre este embora
112
Segundo Braunstein (2004) Canguilhem quer elaborar uma teoria da subjetividade sem cogito e para ele Espinosa eacute a prova viva de que uma filosofia com este caraacuteter natildeo conduz agrave inaccedilatildeo ou ao fatalismo Enquanto Descartes filoacutesofo do cogito pede prudecircncia em poliacutetica Espinosa se coloca publicamente em defesa da liberdade do pensamento Assim o que Canguilhem chama de psicologismo eacute um uso exorbitante do cogito que pode conduzir agrave aceitaccedilatildeo e agrave submissatildeo Por isso Canguilhem insiste na inspiraccedilatildeo espinosista de Cavaillegraves e persiste em compreender seu ldquoestilo singular de accedilatildeo de resistecircnciardquo Ele eacute um filoacutesofo da accedilatildeo sem cogito Canguilhem ainda denuncia o sociologismo dos socioacutelogos puros (Comte Marx e Durkheim) que pretendem se mover no mundo dos fatos se esquecendo da significaccedilatildeo dos valores e que caem na tentaccedilatildeo de tratar o homem como um mecanismo que pode ser dominado do exterior no momento em que se conhece suas leis Mas se Canguilhem salva alguns socioacutelogos como Baugleacute e Halbwachs eacute difiacutecil citar um psicoacutelogo que para ele natildeo caia em um psicologismo Cf BRAUNSTEIN J-F La critique canguilhemienne de la psychologie Estudos e Pesquisas em Psicologia UERJ RJ vol 4 ndeg 2 2004
113 Ainda segundo Braunstein (2007) por ser a teoria da subjetividade de Canguilhem baseada
numa filosofia sem sujeito e sem cogito ele aplaude a criacutetica severa que Politzer desenvolve agrave tese da vida interior Ele destaca a influecircncia da psicologia concreta de Politzer para o pensamento canguilhemiano embora note que Canguilhem natildeo foi tatildeo generoso com Watson como foram Politzer e mesmo Foucault por ter ele colocado em questatildeo a ldquoilusatildeo da subjetividaderdquo (cf Braunstein 2007 p71) Cf BRAUNSTEIN J-F Psychologie et milieu Eacutethique et histoire des sciences chez Georges Canguilhem In BRAUNSTEIN J-F (org) Histoire des sciences et politique du vivant Paris Presses Universitaires de France ndash PUF 2007
114 Como mostra Le Blanc (2010b) Canguilhem entende que uma psicologia somente eacute possiacutevel
na medida em que integrada a uma antropologia quer dizer a uma filosofia Uma psicologia antropoloacutegica ou filosoacutefica se opotildee a uma psicologia instrumental entendida como ficccedilatildeo filosoacutefica falsificaccedilatildeo eacutetica e uma perversatildeo da medicina Ele entende que a psicologia eacute um exerciacutecio de compreensatildeo dos valores humanos Assim ao inveacutes de se desligar da filosofia ela deveria se colocar ao lado dos valores espontacircneos e muacuteltiplos do vivente humano da pluralidade das normas elaboradas pelas diferentes subjetividades Por isso no capiacutetulo ldquoLogique et psychologierdquo do curso Les normes et le normal (1942-1943) ele defende uma psicologia compreensiva da toleracircncia Afirma que toda psicologia eacute no fundo compreensatildeo das normas mas compreensatildeo
151
possa tecirc-lo como um regulador da atividade pensante corpoacuterea acredita que ele
natildeo seja a sede do pensamento como querem os neurofisiologistas nem anaacutelogo
ao computador como desejam alguns neurocientistas
Sua psicologia parte de uma concepccedilatildeo de pensar como atividade natildeo
controlaacutevel porque espontacircnea e inventiva capaz de realizar subversotildees
normativas Subversotildees das quais a loucura eacute o melhor testemunho pois
evidencia a possibilidade da desordem Daiacute o temor da desrazatildeo por parte dos
poderes sociopoliacuteticos instituiacutedos e a necessidade de confinamento do louco no
Hospital psiquiaacutetrico e sua normalizaccedilatildeo isso eacute sua reidentificaccedilatildeo ao tipo social
normal a ser obtida atraveacutes das praacuteticas meacutedico-psicoloacutegicas
Natildeo obstante malgrado os dispositivos meacutedico-psiquiaacutetricos e psicoloacutegicos
o poder natildeo tem total gerecircncia sobre o pensamento porque a ele eacute sempre
possiacutevel subverter a ordem mental instituiacuteda pois haacute uma potecircncia poliacutetica
revolucionaacuteria interna imanente proacutepria agrave vida Isso quer dizer que a potecircncia
(potentia) nunca se submete integralmente ao poder (potestas) Revoluccedilotildees satildeo
possiacuteveis bioloacutegicas psicoloacutegicas e sociais entendidas como uma subversatildeo
uma transformaccedilatildeo radical da ordem instituiacuteda Agraves vezes para garantirmos a
sauacutede bioloacutegica existencial e social eacute preciso operar revoluccedilotildees em noacutes e nos
meios em que vivemos
Assim entendemos que atraveacutes de seu pensamento meacutedico-filosoacutefico
Canguilhem quer se opor agraves tentativas de transformaccedilatildeo do meio social em meio
controlado de identificaccedilatildeo da sauacutede agrave adaptaccedilatildeo passiva agraves normas sociais
preestabelecidas e agraves praacuteticas meacutedico-psicoloacutegicas que buscam transformar os
indiviacuteduos no homem meacutedio normal mediocrizado muito aqueacutem de suas
potencialidades reativas e normativas Por isso de Friedmann ele elogia a recusa
da identificaccedilatildeo do meio social ao meio fiacutesico e dele extrai um entendimento de
sauacutede como liberaccedilatildeo da potecircncia de resistecircncia e de reaccedilatildeo dos trabalhadores
tolerante e concreta do conflito espontacircneo das normas Ela eacute entatildeo descritiva pois daacute conta dos conflitos no jogo das normas produzidas pelo homem e natildeo prescritiva reduzindo o jogo das normas a uma uacutenica norma (cf LE BLANC 2010b p154) Op cit
152
agraves condiccedilotildees opressivas do meio do trabalho reprodutor das relaccedilotildees do meio
social mais amplo
Com Foucault ele compartilha a criacutetica agrave psicologia do comportamento
como poliacutecia dos anormais e agrave medicina social higienista como dispositivo de
controle da sauacutede das populaccedilotildees e de normalizaccedilatildeo da vida cotidiana115 Dele
ainda toma a criacutetica ao Hospital psiquiaacutetrico como dispositivo de normalizaccedilatildeo dos
loucos de adaptaccedilatildeo por correccedilatildeo comportamental quando possiacutevel e quando
natildeo de exclusatildeo definitiva dos desviantes do meio social com vistas agrave defesa da
ordem social instituiacuteda
Jaacute para se opor agrave psicologia do comportamento aliada agrave neurociecircncia e agrave
psiquiatria bioloacutegica pautadas na ideia de identificaccedilatildeo do pensamento ao ceacuterebro
e deste a um computador mero receptor e organizador de dados eacute agrave Espinosa
que ele recorre pois nele encontra uma criacutetica ao cogito cartesiano e uma
115
Satildeo tantas as interlocuccedilotildees entre Canguilhem e Foucault que as aproximaccedilotildees entre seus pensamentos tecircm sido foco de estudo de vaacuterios autores Interessado nos pontos de convergecircncia mas tambeacutem de divergecircncia existentes entre eles Le Blanc (2010b) nota que Foucault natildeo acredita ser mais possiacutevel se reportar agrave vida sem considerar a sua apropriaccedilatildeo epistemoloacutegica e poliacutetica Isso porque estamos sempre submetidos aos dispositivos de poder e agraves ordens de discurso particulares configurados por uma episteme subjacente As normas sociais assim compreendidas mecanizam o sistema social impossibilitando o indiviacuteduo de escapar dos processos normalizadores Jaacute Canguilhem atribui a todas atividades humanas uma vivacidade proacutepria que natildeo pode ser integralmente capturada pelos dispositivos sociais existindo sempre uma possibilidade de resistecircncia e de sublevaccedilatildeo de escape agraves normas sociais impostas e aos efeitos do poder ldquoA invenccedilatildeo natildeo eacute para Foucault um dado da vida ordinaacuteria A renovaccedilatildeo das normas a capacidade de todo homem lsquodestruir normas e instituir novasrsquo natildeo se vecirc em Foucault salvo em raras experiecircncias histoacutericas de elevaccedilatildeo () A filosofia da vida ordinaacuteria de Canguilhem culmina numa normatividade de erracircncia absoluta A vida por sua erracircncia conquista a possibilidade de fazer acontecer outras normas A vida social natildeo estaacute definitivamente fechadardquo (LE BLANC 2010b p283-284) Em outro escrito Le Blanc (2010a) afirma que a sociedade disciplinar moderna eacute definida por Foucault como uma sociedade das normas Elas passam pelos corpos e pelos espiacuteritos natildeo havendo como escapar deste jogo normativo O indiviacuteduo jamais se libera das normas Jaacute para Canguilhem a mecanizaccedilatildeo da vida social cria e fixa margens mas haacute zonas de vida na qual o sujeito cria suas proacuteprias normas Existe entatildeo ao lado da normatividade vital uma normatividade que consiste na livre confrontaccedilatildeo entre as normas sociais jaacute existentes e as normas valorizadas individualizadas do sujeito social Haacute portanto no sujeito simultaneamente o assujeitamento agraves normas jaacute sedimentadas e a subjetivaccedilatildeo destas mesmas normas (cf LE BLANC 2010a p 86) Ou seja as normas sociais natildeo escapam agrave loacutegica criadora do vivente Vemos entatildeo que o problema eacute que nas sociedades totalitaacuterias haacute um estreitamento destas margens e a diminuiccedilatildeo das possibilidades de criaccedilatildeo de contra-normas e micro-normas o que faz com que os indiviacuteduos se pareccedilam cada vez mais dada a diminuiccedilatildeo dos processos de singularizaccedilatildeo e a imposiccedilatildeo de uma identidade coletiva Cf LE BLANC G Canguilhem et les normes 2
a ed Paris Presses Universitaires de France - PUF 2010a LE BLANC G Canguilhem
et la vie humaine Paris QuadrigePUF 2010b
153
associaccedilatildeo do pensamento ao aumento da potecircncia do corpo ideia coerente com
sua filosofia da natildeo submissatildeo agrave exterioridade da resistecircncia agrave servidatildeo e agrave
impotecircncia e que pressupotildee uma tomada de posiccedilatildeo eacutetico-poliacutetica por parte do
filoacutesofo em defesa da liberdade de pensar e de agir no mundo
Com isso Canguilhem quer mostrar que para que a cliacutenica seja meacutedica ou
psicoloacutegica deixe de ser uma teacutecnica de controle e normalizaccedilatildeo dos indiviacuteduos
ela precisa abandonar o modelo maquinal de corpo que o apresenta como
matematizaacutevel e passiacutevel de ser dominado em seus processos atraveacutes de normas
externas e se nortear pela noccedilatildeo de totalidade corpomente e por outra
concepccedilatildeo de sauacutede associada agrave capacidade de reaccedilatildeo e de resistecircncia da vida
e a sua liberdade de valorar e criar suas proacuteprias normas Aleacutem disso ela precisa
de outra orientaccedilatildeo eacutetico-poliacutetica por parte dos profissionais que a realizam em
recusa ao papel de agentes de controle social a eles atribuiacutedo Ateacute porque como
entende a ampliaccedilatildeo histoacuterica do espaccedilo no qual se exerce o controle
administrativo da sauacutede dos indiviacuteduos desembocou na atualidade numa
Organizaccedilatildeo Mundial da Sauacutede (cf EM 2005 p43)
Em resumo pela perspectiva canguilhemiana para que a cliacutenica deixe de
ser um dispositivo de normalizaccedilatildeo ela precisa acompanhar o movimento
espontacircneo da vida respeitando suas normas imanentes Para tanto seria
necessaacuteria uma mudanccedila na racionalidade meacutedica o que exigiria do profissional
uma reflexatildeo filosoacutefica sobre as teorias que fundamentam suas praacuteticas o que
inclui necessariamente o desvelamento de seu caraacuteter eacutetico-poliacutetico-ideoloacutegico
Sendo assim a forma pela qual a cliacutenica pode ser revitalizada na
atualidade segundo a racionalidade meacutedico-filosoacutefica vitalista de Canguilhem eacute o
que em seguida iremos apresentar
154
CAPIacuteTULO IV
A revitalizaccedilatildeo da cliacutenica
Eacute quando lutamos pela vida que ela nos dota de maior forccedila
Partindo do pressuposto de que a criacutetica que Canguilhem faz aos
fundamentos teoacutericos e ideoloacutegicos da medicina cientiacutefica moderna eacute profiacutecua natildeo
soacute para a filosofia mas tambeacutem para a medicina a proposta deste capiacutetulo eacute o
resgatar os elementos conceituais apresentados nos capiacutetulos anteriores para
apresentar a medicina-filosoacutefica canguilhemiana como uma nova racionalidade em
sauacutede capaz de operar uma revitalizaccedilatildeo da cliacutenica transformando-a em
dispositivo de resistecircncia agraves praacuteticas de normalizaccedilatildeo neste campo
Em nosso entender apresentando uma concepccedilatildeo de medicina que natildeo
assentada numa ciecircncia bioloacutegica do normal mas numa ciecircncia das situaccedilotildees
bioloacutegicas consideradas normais Canguilhem opera uma subversatildeo no
pensamento meacutedico na medida em que coloca o doente como indiviacuteduo
concreto e natildeo a doenccedila como entidade nosoloacutegica abstrata no centro das
praacuteticas de cuidado em sauacutede E se defendemos a originalidade de seu
pensamento e a relevacircncia de suas proposiccedilotildees natildeo eacute somente porque contribui
para o renascimento da arte da cura em tempos de tecnociecircncia mas tambeacutem
porque ele consegue abrir novos horizontes teoacutericos e eacuteticos para a formaccedilatildeo e
pesquisa em sauacutede na atualidade
Tendo em vista que ainda nos encontramos no mesmo registro de
pensamento da modernidade ou seja ainda natildeo nos livramos de uma leitura
mecanicista da vida e de um racionalismo de laboratoacuterio na definiccedilatildeo do normal e
do patoloacutegico o vitalismo canguilhemiano pode contribuir para uma nova viragem
paradigmaacutetica no pensamento meacutedico natildeo apenas por colocar em questatildeo seus
fundamentos teoacutericos a insuficiecircncia dos modelos mecacircnicos para a
compreensatildeo dos fenocircmenos vitais mas tambeacutem por desvelar seu substrato
ideoloacutegico de controle da vida em seus sentidos bioloacutegico existencial e social
155
De modo mais preciso a proposta canguilhemiana de realizaccedilatildeo de uma
criacutetica da razatildeo meacutedica praacutetica apontando para a necessidade de superaccedilatildeo da
racionalidade fisiopatoloacutegica que ocasionou uma desvitalizaccedilatildeo ou quase morte
da cliacutenica e seu apelo agrave necessidade de resgatar seu sentido primeiro o de
inclinar-se ou voltar-se ao leito do doente pode a nosso ver contribuir para a
proposiccedilatildeo de outro logos outro ethos e outra praacutexis para a cliacutenica seja ela
meacutedica psicoloacutegica ou outra livrando-a de injunccedilotildees ideoloacutegicas de controle sobre
a vida
Com efeito nos Eacutetudes dacuteHistoire et de Philosophie des Sciences ao tratar
do poder e dos limites da racionalidade em medicina Canguilhem fala da
necessidade de uma renovaccedilatildeo no pensamento meacutedico e coloca a criacutetica agrave
medicina racional como primeiro passo a ser dado para a invenccedilatildeo de novos
modelos de racionalidade neste campo ao mesmo tempo teoacuterico e praacutetico eacutetico e
poliacutetico Natildeo obstante alerta que a criacutetica natildeo deve resvalar nem na adesatildeo agrave
antimedicina nem na retomada da teoria hipocraacutetica da natura medicatrix
advogadas por charlatatildees e propagandistas da autocura mas sim culminar na
invenccedilatildeo de uma nova racionalidade meacutedica que ciente dos limites da atual
tambeacutem seja capaz de superar as limitaccedilotildees da antiga
ldquonatildeo haveria portanto no amaacutelgama ideoloacutegico em questatildeo algum nuacutecleo de positividade digno de ser retido e reconhecido como apelo a uma renovaccedilatildeo da racionalidade capaz de superar a limitaccedilatildeo da antigardquo (E 1989 p404)
Assim eacute procurando deixar claro que sua criacutetica aos fundamentos da medicina de
seu tempo natildeo resvala no irracionalismo por querer se afastar da ideologia dos
partidaacuterios da nostalgia naturista e da utopia libertaacuteria que toma por oportunista e
perigosa que Canguilhem faz questatildeo de reiterar que seu resultado natildeo deve
significar a defesa da autogestatildeo em sauacutede ou o renascimento de magias
terapecircuticas (cf E 1989 p401)
Destarte apesar de acreditar na necessidade de invenccedilatildeo de novos
modelos de cuidado em sauacutede Canguilhem natildeo deprecia o valor de uma
racionalidade meacutedica jaacute que a renovaccedilatildeo que deseja que ocorra natildeo se
156
caracteriza nem como uma satanizaccedilatildeo da medicina cientiacutefica nem como um
recuo um retorno a medicinas preacute-racionais Portanto eacute evitando realizar uma
criacutetica banal agrave medicina que percebe estar muito em voga no seu tempo que ele
apresenta outra proposta de racionalidade meacutedica que natildeo a da medicina
cientiacutefica moderna filha ou herdeira da medicina racional ativa e operativa
A criacutetica de Canguilhem se direciona entatildeo a uma determinada forma de
racionalidade que orienta a praacutetica meacutedica a biomeacutedica moderna - mecanicista
logo reducionista normalizadora e portanto controladora ou gestora da vida
cotidiana Em contraposiccedilatildeo a ela sua filosofia desenha outra racionalidade em
medicina de orientaccedilatildeo vitalista e inspiraccedilatildeo hipocraacutetica que coloca em questatildeo a
ideia de medicina como ciecircncia das doenccedilas e resgata a noccedilatildeo de medicina como
arte da cura como teacutecnica que prolonga a atividade hedocircnica proacutepria agrave vida
Tendo por pressuposto outra concepccedilatildeo de vivente que natildeo a maquinal e
de normalidade e de patologia que natildeo a cientiacutefico-experimental o fundamento da
arte meacutedica que propotildee eacute a ancoragem numa determinada concepccedilatildeo de vida
inscrita num pensamento vitalista materialista poreacutem antimecanicista e
antiteleoloacutegico que se coloca sob o signo da potecircncia e da resistecircncia da
liberdade criatividade e espontaneidade de seus fenocircmenos e que possibilita
uma compreensatildeo do normal e do patoloacutegico associada a sua capacidade
valorativa e normativa proacutepria Eacute portanto distinguindo normatividade de
normalizaccedilatildeo ndash entendida como imposiccedilatildeo de normas externas - que ele
consegue propor uma praacutetica meacutedica orientada pelo respeito agraves diversas formas
de vida a seus ritmos e normas e aos diferentes modos sociais de exerciacutecio da
vida cotidiana
Assim como jaacute apresentado se em sua anaacutelise filosoacutefica da vida
Canguilhem apresenta o vivente identificado a uma totalidade orgacircnica com
tendecircncia agrave autoconservaccedilatildeo por auto-organizaccedilatildeo e com sentido vital singular na
qual a qualidade de seus processos se saudaacuteveis ou patoloacutegicos somente podem
ser pensados a partir da relaccedilatildeo que estabelece com seu meio bioloacutegico (milieu) o
vivente humano em sua especificidade nela figura como uma totalidade orgacircnica
157
consciente dotada de sentido existencial produto e produtora do meio
sociocultural (entourage) no qual se encontra e que pode ter sua potecircncia elevada
ou diminuiacuteda de acordo com a qualidade das relaccedilotildees que nele tece
Tambeacutem como vimos no contexto de sua discussatildeo sobre as relaccedilotildees
entre as normas vitais e sociais Canguilhem apresenta uma reflexatildeo sobre as
ligaccedilotildees existentes entre a poliacutetica e a forma de organizaccedilatildeo das praacuteticas de
hospitalizaccedilatildeo fazendo referecircncia a um poder sociomeacutedico Aqui esclarece que a
imposiccedilatildeo de uma norma ideal pelas praacuteticas institucionais de sauacutede tem por
resultado a normalizaccedilatildeo de corpos e mentes por ser condiccedilatildeo necessaacuteria agrave
manutenccedilatildeo de determinado status quo social Por isso a medicina social de
tradiccedilatildeo higienista eacute definida por ele como um dispositivo estatal de controle da
sauacutede dos coletivos e a psiquiatria bioloacutegica e a psicologia comportamental como
instrumentos de diminuiccedilatildeo da potecircncia do pensamento e de normalizaccedilatildeo das
condutas sociais desviantes dado o objetivo de adaptabilidade passiva presente
nos procedimentos e nas abordagens meacutedicas psicoloacutegicas e psicossocioloacutegicas
Portanto se em biologia Canguilhem assume uma postura integrista ao
inscrever o vivente humano como individualidade concreta num meio
sociocultural (entourage) a partir de uma orientaccedilatildeo possibilista ele nos coloca a
questatildeo de em que medida a mecanizaccedilatildeo da vida social pode favorecer o
aparecimento de diversas patologias associadas agraves formas como se datildeo as
relaccedilotildees em sociedade e quais seriam as formas possiacuteveis de enfrentaacute-las Aleacutem
disso ele tambeacutem nos coloca o problema de quanto haacute de ideologia de domiacutenio
em nossas teorias e praacuteticas de sauacutede e do efeito inverso que as praacuteticas
operadas pelo conjunto das instituiccedilotildees sanitaacuterias podem causar acarretando natildeo
a potencializaccedilatildeo mas a minimizaccedilatildeo da potecircncia de resistecircncia dos indiviacuteduos
Agora neste capiacutetulo mostraremos que a racionalidade meacutedica vitalista
desenhada a partir do pensamento de Canguilhem pode trazer contribuiccedilotildees agrave
formaccedilatildeo teoacuterica agrave praacutetica assistencial e pesquisa em sauacutede abrindo outros
horizontes teoacuterico-metodoloacutegicos e eacutetico-poliacuteticos para cliacutenica menos estreitos do
que os colocados pela racionalidade biomeacutedica moderna
158
Sem querer atribuir a Canguilhem mais do que realmente quis realizar se
falamos na possibilidade de delineamento de outra racionalidade em sauacutede a
partir de uma anaacutelise do conjunto dos seus escritos eacute porque a reflexatildeo que faz
sobre os conceitos de vida normal e patoloacutegico bem como sobre a produccedilatildeo do
saber e exerciacutecio do poder meacutedicos na atualidade mais do que uma contribuiccedilatildeo
aos estudos sobre histoacuteria e filosofia das ciecircncias da vida oferece agrave medicina
elementos para o redimensionamento de suas accedilotildees num campo onde logos
ethos e praacutexis satildeo indissociaacuteveis Mas antes de apresentarmos os contornos da
racionalidade meacutedica proposta por ele eacute necessaacuterio compreendermos o que ele
considera criticaacutevel na racionalidade cientiacutefico-moderna em seus campos teoacuterico-
praacutetico e eacutetico-poliacutetico criacutetica que daacute sentido ao resgate que faz da tradiccedilatildeo
meacutedico-filosoacutefica vitalista
Nos Eacutetudes dacuteHistoire et de Philosophie des Sciences Canguilhem
esclarece que a medicina como atividade teacutecnica eacute um fenocircmeno das sociedades
industriais e tem a ver com uma escolha de caraacuteter poliacutetico na medida em que
comporta uma tomada de posiccedilatildeo impliacutecita ou expliacutecita sobre o futuro da
humanidade a estrutura da sociedade as instituiccedilotildees de higiene e seguridade
social o ensino da medicina e a profissatildeo meacutedica (cf E 1989 p383-384) Com
isso ele mostra que uma revisatildeo da razatildeo meacutedica praacutetica natildeo eacute soacute uma questatildeo
de ordem teoacuterico-epistemoloacutegica ou teacutecnico-cientiacutefica mas tambeacutem eacutetico-poliacutetica
ou ideoloacutegica na medida em que as praacuteticas de sauacutede sejam elas individuais ou
coletivas natildeo satildeo neutras tendo uma estreita relaccedilatildeo com os poderes econocircmico
e militar de uma naccedilatildeo
Assim ao realizar uma oposiccedilatildeo agrave desvalorizaccedilatildeo da vida encontrada na
teoria mecanicista de corpo e agrave desindividualizaccedilatildeo do vivente singular que ocorre
no meio mecanizado e consequentemente agraves praacuteticas meacutedicas que daiacute
decorrem ele natildeo somente estaacute fazendo uma escolha teoacuterico-epistemoloacutegica
mas ao mesmo tempo estaacute tomando uma posiccedilatildeo de caraacuteter eacutetico-poliacutetico Ou
seja ao colocar em questatildeo o poder da racionalidade da medicina cientiacutefica
159
moderna isto eacute o modelo biomeacutedico moderno e seus campos de exerciacutecio teoacuterico
e praacutetico que ele identifica como o laboratoacuterio e o hospital Canguilhem estaacute
tambeacutem colocando em questatildeo a ideologia subjacente a ele ou seja o valor
moderno de controle ou domiacutenio da vida que o orienta e que encontrou por
exemplo na psiquiatria bioloacutegica nas pesquisas ou experimentaccedilotildees cientiacuteficas
com humanos nas medidas profilaacuteticas e eugecircnicas do nazismo sua mais
completa efetivaccedilatildeo116
Em nossa leitura entatildeo ao desvelar a ideologia de controle subjacente agraves
praacuteticas de sauacutede da atualidade toda sua obra passa a ter tambeacutem um caraacuteter ou
uma dimensatildeo poliacutetica Com efeito em seu Ensaio sobre alguns problemas 116
Sendo assim acompanhamos Ferraz (1994) quando a partir de uma chave de leitura neopragmaacutetica entende que Canguilhem construiu uma epistemologia regional para medicina na qual ficam claras as particularidades dos fundamentos e das regras de accedilatildeo deste campo de saber e que ao colocar valor da vida como motor da terapecircutica realizou uma virada de 180 graus na tradiccedilatildeo meacutedica cientificista No entanto discordamos dele quando ao investigar as teses principais de O Normal e o Patoloacutegico atribui agrave Canguilhem a ideia de que o valor da vida deriva da normatividade vital como capacidade que a vida possui em si de determinar na consciecircncia os valores e juiacutezos fundamentais agrave sobrevivecircncia do ser humano porque as normas jaacute existiriam previamente numa espeacutecie de protolinguagem agrave espera de chegarem agrave consciecircncia humana Aos olhos do autor ao apresentar a normatividade vital como uma instacircncia preacute-linguiacutestica que expressa a intencionalidade da vida ele atribui agrave racionalidade universal humana uma espeacutecie de racionalidade preacutevia que informaria quais os criteacuterios de julgamento da vida qual a natureza dos mesmos e quais os fundamentos que temos para afirmar o valor da vida Fazendo do valor da vida um fato Canguilhem delegaria a responsabilidade de defesa da vida a uma razatildeo vital a uma espeacutecie de juiacutezo superior da vida segundo o qual nossos valores humanos deveriam coincidir porque seriacuteamos apenas representantes desta forccedila transcendental Segundo o comentador a entrega da defesa da vida a uma racionalidade preacute-humana poderia ganhar ldquocontornos moacuterbidosrdquo O pensamento canguilhemiano poderia representar uma ldquoreediccedilatildeo do nazismordquo pois alguns setores da sociedade poderiam tentar decifrar com fidelidade quais seriam os objetivos ou intenccedilotildees da vida e definir a partir disso qual raccedila grupo ou naccedilatildeo seria a mais fiel expressatildeo da normatividade vital justificando o direito sobre a vida dos menos capacitados Ao retirar a definiccedilatildeo dos valores da tradiccedilatildeo e colocar na vida ele justificaria crenccedilas e praacuteticas racistas ldquocolocar tal responsabilidade para a lsquolinguagem das reaccedilotildees vitaisrsquo eacute despolitizar o valor da vidardquo (FERRAZ 1994 p22) Em nossa leitura antagocircnica a do autor Canguilhem natildeo afirma que as normas estatildeo latentes a espera de manifestaccedilatildeo Tambeacutem para ele natildeo haacute como definir a normatividade vital pois ela natildeo se identifica a uma norma orgacircnica ideal mas agrave capacidade de o vivente instituir normas Na perspectiva canguilhemiana natildeo haacute uma norma orgacircnica que possa se transformar em diretriz para a teacutecnica terapecircutica visando o estabelecimento de um comportamento normativo pois cada vivente tem a sua medida Ou seja uma norma saudaacutevel somente pode ser referenciada a um indiviacuteduo concreto singular portanto natildeo pode ser universalizada O mesmo vale para a norma patoloacutegica Ao contraacuterio do comentador acreditamos que todo esforccedilo canguilhemiano estaacute voltado para afirmar a singularidade das normas e para mostrar como eacute natildeo somente doentio mas politicamente perigoso definir qual seria a normatividade ideal e impocirc-la como regra No entanto trocando a afirmaccedilatildeo da normatividade por justificaccedilatildeo da normalizaccedilatildeo o autor eacute quem deu ao pensamento de Canguilhem contornos moacuterbidos Cf FERRAZ C H O valor da vida como fato uma critica neopragmatica agrave epistemologia da vida de Georges Canguilhem Rio de Janeiro Seacuterie Estudos em Sauacutede Coletiva UERJIMS 1994
160
relativos ao normal e ao patoloacutegico ele jaacute criticava a concepccedilatildeo de sauacutede como
norma ideal e adaptaccedilatildeo passiva ao meio pela ideia de submissatildeo a ela
associada e apresentava outra na qual inscrevia a capacidade de resistecircncia na
vida mesma mostrando que todo vivente humano tem a capacidade de subverter
uma ordem instituiacuteda e criar outra mais saudaacutevel para si nos acircmbitos bioloacutegico
existencial e tambeacutem social A partir disso redesenhando a cliacutenica meacutedica ele daacute
o primeiro passo para o que mais tarde se colocaria de modo mais expliacutecito como
sua criacutetica ao modelo biomeacutedico moderno e agraves praacuteticas de normalizaccedilatildeo dele
derivadas pela funccedilatildeo social a qual se prestam
Destarte eacute por entender que a medicina traduzida por seu discurso
instituiccedilotildees e suas praacuteticas pode se transformar num dispositivo social de
normalizaccedilatildeo conveniente a um regime de Estado totalitaacuterio que precisa realizar o
controle dos indiviacuteduos propagando normas de vida nos acircmbitos bioloacutegico
existencial e social que ele propotildee outra racionalidade meacutedica assentada no
respeito agrave liberdade dos indiviacuteduos de criar suas proacuteprias normas sejam elas
vitais ou sociais
De fato como vimos em suas Novas Reflexotildees referentes ao normal e ao
patoloacutegico Canguilhem apresenta os meios teacutecnicos de sauacutede ao lado dos da
educaccedilatildeo como um dos braccedilos normalizadores do Estado Isto eacute associando as
ideias de mecanizaccedilatildeo da vida social e normalizaccedilatildeo ele mostra que a
racionalizaccedilatildeo e a planificaccedilatildeo dos meios teacutecnicos de sauacutede estatildeo em estreita
relaccedilatildeo com os interesses beacutelicos e econocircmicos dos regimes totalitaacuterios tanto de
esquerda quanto de direita Tambeacutem em seus Escritos sobre a medicina ele fala
em vida social normalizada e sua relaccedilatildeo com os interesses sociopoliacuteticos na
regulaccedilatildeo das condiccedilotildees do exerciacutecio da vida a ser realizado por um tipo
especiacutefico de organizaccedilatildeo sanitaacuteria (cf EM 2005 p62-63)
Portanto eacute sobretudo em vista da funccedilatildeo social que as praacuteticas de sauacutede
assumiram na atualidade que a racionalidade meacutedica que propotildee inclui outro
logos outro ethos e outra praacutexis isto eacute outro pensamento sobre a vida que natildeo o
mecanicista outra eacutetica que natildeo elaborada a partir de princiacutepios abstratos
161
consegue fazer uma defesa laica da vida na medida em que sustenta valores que
a vida mesma coloca como positivos para si e um diferente procedimento
metodoloacutegico pautado na observaccedilatildeo e na escuta da vida no respeito a seu
tempo de reaccedilatildeo espontacircnea e no incentivo a sua capacidade de resistecircncia
advinda de sua potecircncia normativa proacutepria
De modo mais preciso eacute por se opor aos processos de mecanizaccedilatildeo da
vida de normalizaccedilatildeo dos indiviacuteduos e agrave gestatildeo soacutecio-poliacutetica meacutedica da vida
cotidiana que Canguilhem desenha uma racionalidade meacutedica que apesar de
dialogar com a perspectiva naturista da tradiccedilatildeo meacutedica hipocraacutetica por tambeacutem
apostar na capacidade de autodefesa da vida e na idiossincrasia do doente
apresenta uma loacutegica proacutepria norteada pela noccedilatildeo de resistecircncia vital nos acircmbitos
bioloacutegico existencial e social
Com efeito em nosso trabalho de leitura sistematizaccedilatildeo e anaacutelise do
conjunto de seus escritos notamos que desde seu Essai sur quelques problegravemes
concernant le normal et le pathologique ao colocar em questatildeo a tese da
diferenccedila quantitativa entre o normal e o patoloacutegico ele jaacute apresentava as
principais diretrizes de outra loacutegica para a praacutetica e eacutetica meacutedicas com vistas agrave
configuraccedilatildeo de uma cliacutenica centrada no indiviacuteduo concreto norteada pelas
noccedilotildees de valor e sentido vitais117 Mas eacute em seus Escritos sobre a Medicina e
nos seus Eacutetudes dacuteHistoire et de Philosophie des Sciences na seccedilatildeo Meacutedecine
que de modo mais aprofundado ele opera sua criacutetica ao caraacuteter antinaturalista das
praacuteticas de sauacutede derivadas do modelo biomeacutedico moderno traduzido por ele
como desconsideraccedilatildeo da singularidade normativa individual e remata os
117
Por isso concordamos com Le Blanc (2010a) para quem a liccedilatildeo eacutetica de Canguilhem eacute a seguinte ldquoage de tal forma que multiplique a vida em si e ao redor de sirdquo A eacutetica se encontra em correspondecircncia com a vida porque o valor se inscreve no cerne mesmo dela Da vida ao valor natildeo se opera uma separaccedilatildeo porque a vida mesma eacute valor Natildeo obstante enquanto a vida eacute posiccedilatildeo inconsciente de valor o sujeito eacutetico pode colocar conscientemente seus valores seguindo os valores imanentes da vida Isso daacute agrave eacutetica todo seu peso como valorizaccedilatildeo da vida-valor Em sua especificidade o modo de ser eacutetico do meacutedico eacute uma resposta agraves possibilidades negativas que a vida pode afirmar a dor a doenccedila e a morte Quer dizer o ser eacutetico do meacutedico se realiza em seu constante confronto com os sofrimentos individuais Sendo assim o meacutedico se comporta de maneira eacutetica porque ele tenta reagir agraves diminuiccedilotildees locais de vida ldquoum ato eacutetico eacute sempre a resposta que a vida inventa no sujeito contra sua destruiccedilatildeo possiacutevelrdquo (LE BLANC 2010a p102) Op cit
162
contornos de sua racionalidade meacutedico-filosoacutefica vitalista fazendo uso dela para
debater temas atuais sobre o ensino a eacutetica e a praacutetica meacutedicas118
Sobre a intenccedilatildeo canguilhemiana eacute certo que como ele mesmo afirma no
prefaacutecio de seu Ensaio nesta obra ele natildeo se imbuiu da tarefa de apresentar uma
nova racionalidade em medicina a ponto de ocasionar uma renovaccedilatildeo
metodoloacutegica neste campo
ldquose a medicina dever renovada cabe aos meacutedicos a honra e o risco de fazecirc-lo Tivemos poreacutem a ambiccedilatildeo de contribuir para a renovaccedilatildeo de certos conceitos metodoloacutegicos retificando sua compreensatildeo pela influecircncia de uma certa concepccedilatildeo meacutedica Que natildeo se espere portanto desta obra mais do que quisemos dar A medicina eacute frequentemente a presa e a viacutetima de uma certa literatura pseudo-filosoacutefica cujos autores cumpre dizer muitas vezes satildeo os proacuteprios meacutedicos e da qual a medicina e a filosofia raramente tiram algum proveitordquo (NP 1990 p16)
Mas se em seu Ensaio sua intenccedilatildeo ao especular filosoficamente alguns
dos meacutetodos e conquistas da medicina natildeo foi dar alguma liccedilatildeo ou fazer um
julgamento de valor sobre a atividade meacutedica tendecircncia que nota ser comum na
literatura meacutedico-filosoacutefica de seu tempo em seus Escritos sobre a medicina ele
diz ter chegado o tempo de uma criacutetica que possa dar agrave medicina cientiacutefica a
consciecircncia de seus poderes e limites e que com isso consiga diminuir a
presunccedilatildeo do poder meacutedico fruto de um saber experimental que negligencia o
118
Cammelli (2006) nota que Canguilhem quer pensar a atualidade a partir do que podemos chamar de loacutegica da resistecircncia e lembra que para ele um conjunto de escritos se torna obra quanto assume uma funccedilatildeo operatoacuteria de desestabilizaccedilatildeo de um saber instituiacutedo ganhando assim relevacircncia teoacuterico-praacutetica ldquoJogando com a palavra podemos dizer que no seu caso obra vale mais como verbo do que como substantivo O escrito filosoacutefico natildeo deve ser uma lsquoobrarsquo mas alguma coisa que lsquooperarsquo algo que opera deslocamentos e efeitos de verdade no interior de um saber atualrdquo (CAMMELLI 2006 p19) Assim atraveacutes de seus estudos de epistemologia da biologia e da medicina Canguilhem quer mostrar que ao tempo em que a biologia fascista reduz o vivente a uma simples maacutequina sujeita a leis cientiacuteficas a poliacutetica fascista reduz o corpo social a um objeto bioloacutegico controlaacutevel mediante teacutecnicas guiadas pela ciecircncia como a medicina e a nova ciecircncia geneacutetica Estendendo o controle para todos os aspectos da vida da populaccedilatildeo o fascismo transforma o meacutedico numa figura-chave da biopoliacutetica pois operando a partir das noccedilotildees de meacutedia e meio eacute ele que normaliza a populaccedilatildeo levando-a agrave indiferenccedila agrave impotecircncia e agrave obediecircncia automaacutetica transformando o indiviacuteduo num sujeito doacutecil que se conforma passivamente agraves condiccedilotildees externas Sua obra entatildeo operando como um dispositivo teoacuterico-praacutetico que coloca em questatildeo os conceitos de meacutedia e meio ndash noccedilotildees a partir das quais se estrutura o poder biopoliacutetico do nazi-fascismo - denota natildeo soacute um engajamento epistemoloacutegico-poliacutetico mas provoca tambeacutem um impacto no acircmbito teacutecnico-cientiacutefico neste caso na biologia e na medicina fazendo-as rever seus objetivos e meacutetodos Cf CAMMELLI M ldquoLogiche della resistenzardquo In CANGUILHEM G Il fascismo e i contadini Bologna Il Mulino 2006
163
que chama de a priori orgacircnico de oposiccedilatildeo agrave lei da degradaccedilatildeo (cf EM 2005
p69) Isto eacute acredita ser o momento em que os meacutedicos devem reconhecer os
limites da racionalidade meacutedico-cientiacutefica moderna assumindo que no acircmbito do
exerciacutecio praacutetico de sua arte eacute necessaacuterio considerar que para a obtenccedilatildeo da cura
deve haver uma colaboraccedilatildeo entre o saber experimental e o natildeo-saber propulsivo
da vida (cf EM 2005 p69)
Na contramatildeo do pensamento meacutedico hegemocircnico da atualidade vendo
sentido em falar de natureza mesmo na era da farmacodinacircmica industrial do
imperialismo laboratorial e do tratamento eletrocircnico da informaccedilatildeo diagnoacutestica ele
resgata da medicina vitalista a confianccedila no poder de cura espontacircneo da vida
Natildeo obstante de modo a deixar clara a exata medida de sua adesatildeo agrave tradiccedilatildeo
meacutedica vitalista ele critica a proliferaccedilatildeo de uma literatura meacutedico-filosoacutefica de
inspiraccedilatildeo naturista que por falta de lucidez teoacuterica ou mesmo por maacute-feacute defende
a tese da confianccedila praacutetica no poder curativo da natureza apenas por descreacutedito agrave
medicina cientiacutefica
ldquoFoi a antipsiquiatria quem deu a partida e a antimedicalizaccedilatildeo a seguiu Muito antes das exortaccedilotildees de Ivan Illich agrave recuperaccedilatildeo pelos indiviacuteduos pela regularidade de sua sauacutede agrave autogestatildeo de sua cura e agrave reivindicaccedilatildeo de sua morte as repercussotildees da psicanaacutelise e da psicossomaacutetica no niacutevel de vulgarizaccedilatildeo proacuteprio agrave miacutedia popularizaram a ideia de uma conversatildeo do doente almejaacutevel e possiacutevel em seu proacuteprio meacutedico Acreditou-se inventar quando na realidade se retomava o tema milenar do meacutedico de si mesmordquo (EM 2005 p66)
Entendendo que a trivialidade conceitual deste tipo de literatura eacute bem pior
que o pensamento meacutedico fundamentado unicamente em conhecimentos proacuteprio
aos das ciecircncias fiacutesicas diz que este tipo de oferta terapecircutica serve sobretudo
para exploraccedilatildeo financeira de doentes insatisfeitos ou decepcionados com o que
consideram negligecircncia ou falta por parte dos meacutedicos No entanto tambeacutem
percebe que natildeo eacute por acaso que a tese do meacutedico de si mesmo e a ideia de
sauacutede retornada agraves suas fontes permanecem presentes nos manuais de sauacutede e
nas obras de medicina domeacutestica Ele acredita que se por um lado este tipo de
literatura alimenta uma arte meacutedica mal fundamentada ou interessada em
164
enganar por outro representa tambeacutem uma reaccedilatildeo sincera de compensaccedilatildeo
diante das crises da terapecircutica
ldquona realidade a literatura medica de inspiraccedilatildeo naturista permaneceu permanece e permaneceraacute sem duacutevida por muito tempo ainda dividida entre duas intenccedilotildees ou duas motivaccedilotildees reaccedilatildeo sincera de compensaccedilatildeo quando das crises da terapecircutica utilizaccedilatildeo astuciosa do desarvoramento dos doentes para a venda de qualquer electuaacuterio de Orvieto mesmo que sob a forma de impressordquo (EM 2005 p19)
Entretanto malgrado o crescimento da oferta e da adesatildeo dos doentes a
terapecircuticas natildeo cientiacuteficas ele vecirc apenas um esboccedilo de revisatildeo de ordem
profissional ainda tiacutemido e confuso em resposta aos protestos naturistas Nota
haver ateacute mesmo uma indiferenccedila ou hostilidade da grande maioria dos meacutedicos
para com os movimentos de contestaccedilatildeo da racionalidade meacutedica vigente no
interior mesmo da profissatildeo
Pela mesma perspectiva nos Eacutetudes dacuteHistoire et de Philosophie des
Sciences eacute procurando deixar claro que sua intenccedilatildeo natildeo eacute atribuir agrave medicina
cientiacutefica a culpa por todas as morbidades modernas que ele faz questatildeo de
rechaccedilar trabalhos que ao propagarem teses como a da expropriaccedilatildeo da sauacutede e
da iatrogenia em nada contribuem para a renovaccedilatildeo da racionalidade meacutedica
atual A seu ver contestar a racionalidade meacutedica em seu campo de exerciacutecio natildeo
significa aderir agrave tendecircncia radical de proposiccedilatildeo de uma desmedicalizaccedilatildeo da
sociedade nem inscrever seus argumentos num amaacutelgama de banalidades que
aglutina o discurso da qualidade de vida o naturismo agroalimentar e alguns
subprodutos da psicanaacutelise Isto eacute para ele afirmar que a racionalidade meacutedica
deve reconhecer seus limites natildeo significa colocar em questatildeo a legitimidade da
medicina mas apenas expor sua obrigaccedilatildeo de mudar de registro (cf E 1989
p401)
Ainda na mesma obra ao tratar do poder e dos limites da racionalidade em
medicina Canguilhem explica que a ambiccedilatildeo de uma medicina racional remonta
ao seacuteculo XVII como projeto e ao XVIII como programa nascendo quando os
meacutedicos franceses e italianos acreditaram poder fundar sob os princiacutepios da
165
mecacircnica cartesiana e galileana uma medicina praacutetica na qual a eficaacutecia seria
dada pela aplicaccedilatildeo de um conhecimento tido por certeiro No seacuteculo XIX
identificada a uma medicina experimental a medicina racional toma
definitivamente a precedecircncia procurando suplantar definitivamente o empirismo
meacutedico Eacute Claude Bernard quem diante dos problemas postos ao exerciacutecio praacutetico
da medicina afirma que o empirismo como o oposto do racionalismo difere
essencialmente da ciecircncia Para ele a ciecircncia estaria fundada sobre o
racionalismo dos fatos e a ciecircncia meacutedica seria aquela que explicaria racional e
experimentalmente as doenccedilas para prever seu curso e modificaacute-lo De acordo
com sua racionalidade cientiacutefico-experimental eacute necessaacuterio fazer a ciecircncia do
curar em oposiccedilatildeo agrave arte ou empirismo de curar (cf E 1989 p394)
Na seccedilatildeo dedicada agrave ideia de medicina experimental segundo Claude
Bernard Canguilhem nota que ela aparece como uma declaraccedilatildeo de guerra agrave
medicina hipocraacutetica empiacuterica expectante e observacional ao partir da ideia de
que dominar cientificamente a natureza conquistaacute-la em proveito do homem deve
ser a atitude fundamental do meacutedico experimentador ldquoa ideia de medicina
experimental a dominaccedilatildeo cientiacutefica da natureza viva eacute o hipocratismo invertidordquo
(E 1989 p132) Na perspectiva bernardiana a experimentaccedilatildeo meacutedica deve ser
fundada no conhecimento preacutevio das leis fisioloacutegicas de modo a melhor conhecer
a natureza e a partir disso agir para dominar os fenocircmenos patoloacutegicos em clara
oposiccedilatildeo agrave atitude passiva contemplativa e meramente descritiva dos
hipocraacuteticos ldquopara sair do empirismo e merecer o nome de ciecircncia essa
experimentaccedilatildeo meacutedica deve ser fundada no conhecimento das leis vitais
fisioloacutegicas ou patoloacutegicasrdquo (E 1989 p133)
Com efeito conseguindo responder a todas as exigecircncias do programa
racionalista por comportar leis e postular o determinismo de seu objeto de todas
as disciplinas a fisiologia experimental eacute a que mais tende a contestar o paradigma
naturista hipocraacutetico pois eacute ela que defende a ideia de identidade dos estados
normal e patoloacutegico e a possibilidade de dela deduzir uma teacutecnica de restauraccedilatildeo
do organismo a partir de uma norma fundada em razotildees Seguindo este princiacutepio
para a obtenccedilatildeo da cura bastaria ao meacutedico conhecer as doenccedilas identificar
166
seus sintomas e etiologia para a partir daiacute prescrever a medicaccedilatildeo absolutamente
eficaz e a profilaxia certeira
ldquoo adveacuterbio lsquoabsolutamentersquo e o adjetivo lsquocerteirorsquo satildeo aqui prova desta racionalidade bernardiana que por exaltaccedilatildeo do determinismo refuta e ridiculariza a introduccedilatildeo em medicina de conceitos e de procedimentos de ordem probabiliacutestica e estatiacutesticardquo (E 1989 p396)
Assim ao deduzir uma conduta terapecircutica do conhecimento fisioloacutegico Claude
Bernard une efetivamente a cliacutenica e o laboratoacuterio Mas mais do que isso
consegue atribuir agrave medicina um poder social ateacute entatildeo desconhecido por ela
advindo da importacircncia atribuiacuteda agrave ciecircncia e suas aplicaccedilotildees nas sociedades
industriais do XIX (cf E 1989 p140)
Tambeacutem na Ideologia e racionalidade nas ciecircncias da vida Canguilhem
avalia que a histoacuteria da medicina dos uacuteltimos seacuteculos se apresenta como uma
sucessatildeo de revisotildees conceituais e de tratamento dos fenocircmenos patoloacutegicos
notando que as racionalidades meacutedicas foram construiacutedas por processo de
rupturas e invenccedilotildees ldquoNatildeo eacute preciso ser hegeliano para admitir que tambeacutem na
medicina os caminhos da histoacuteria raramente satildeo direitosrdquo (I 1981 p52) Aqui ao
tratar do processo de constituiccedilatildeo da racionalidade biomeacutedica moderna ele
apresenta os deslocamentos que foram necessaacuterios a sua constituiccedilatildeo A
mudanccedila de locus de intervenccedilatildeo meacutedica do leito do doente situado em seu lugar
de vida cotidiana ao leito do hospital implicou numa alteraccedilatildeo na forma de
investigaccedilatildeo do fenocircmeno patoloacutegico do meio humano como campo dos
acontecimentos ao meio controlado isto eacute da experiecircncia vivida ao experimento
laboratorial e por conseguinte do homem doente agrave doenccedila do animal cobaia
Este novo modelo meacutedico fundamentado no conhecimento baseado na
coleccedilatildeo de fatos e na elaboraccedilatildeo de leis confirmadas pela experiecircncia ocasionou
uma mudanccedila na maneira de ver a relaccedilatildeo entre patologia e fisiologia e a
elucidaccedilatildeo experimental desta relaccedilatildeo acabou por acarretar numa nova maneira
de agir na cliacutenica Agora o conhecimento cientiacutefico deve ser convertido em
terapecircuticas efetivas (cf I 1981 p57) Assim em recusa aos antigos meacutetodos
167
terapecircuticos hipocraacuteticos os meacutedicos passaram a seguir entatildeo a recomendaccedilatildeo
de Brown de natildeo confiar nas forccedilas da natureza ldquoEacute preciso estimular ou debilitar
Natildeo podemos permanecer na inaccedilatildeo Natildeo devemos confiar nas forccedilas da
naturezardquo (I 1981 p49)
Aleacutem disso inscrevendo esta discussatildeo na problemaacutetica da histoacuteria das
ciecircncias e recorrendo aos conceitos de corte epistemoloacutegico de Bachelard e de
revoluccedilotildees cientiacuteficas de Kuhn ele nota que o discurso metodoloacutegico bernardiano
aliando teoria e progresso crescimento cientiacutefico sem sobressaltos e revoluccedilotildees
determinismo e accedilatildeo eficaz como seu resultado apresenta todos os componentes
de uma ideologia meacutedica que se encontra em relaccedilatildeo manifesta com a ideologia
progressista da sociedade industrial europeia em meados do seacuteculo XIX que ao
mesmo tempo em que negava o progresso social sem ordem devido ao caraacuteter
antirrevolucionaacuterio do periacuteodo tambeacutem reivindicava a dependecircncia da teacutecnica em
relaccedilatildeo agrave ciecircncia (cf I 1981 p60)
Foi com este espiacuterito que Claude Bernard empreendeu a defesa da
fisiologia como ciecircncia fundadora de uma medicina verdadeiramente cientiacutefica e
progressiva ateacute porque as teorias cientiacuteficas das quais ela seria a aplicaccedilatildeo
seriam em si mesmas progressivas ou abertas Daiacute suas duas foacutermulas a fixar ldquoO
experimentador nunca sobrevive a si proacuteprio ele estaacute sempre ao niacutevel do
progressordquo e ldquoCom teoria natildeo haacute revoluccedilotildees A ciecircncia cresce gradualmente e sem
sobressaltosrdquo O problema identificado por Canguilhem eacute que a reivindicaccedilatildeo
permanente que Claude Bernard faz do uso do meacutetodo experimental acabou por
significar a limitaccedilatildeo interna de sua proacutepria teoria meacutedica Isso porque se a praacutetica
natildeo ultrapassa a teoria sendo apenas a aplicaccedilatildeo de um conhecimento cientiacutefico
preacute-estabelecido torna-se impossiacutevel qualquer revoluccedilatildeo na teacutecnica e por
conseguinte a obtenccedilatildeo de qualquer conhecimento advindo dela
ldquoEm resumo o conceito de teoria sem revoluccedilatildeo que Claude Bernard tomou como fundamento soacutelido de sua metodologia natildeo eacute mais do que um indiacutecio da limitaccedilatildeo interna de sua proacutepria teoria meacutedicardquo (I 1981 p60)
168
Em seus Escritos sobre a medicina novamente tratando da diferenccedila entre
as medicinas expectante e cientiacutefica Canguilhem esclarece que Brown acreditava
poder resumir em duas palavras o imperativo da atividade meacutedica ldquoEacute preciso
estimular ou debilitar Inaccedilatildeo nunca Natildeo confiem na forccedila da naturezardquo A seu ver
esta era a consequecircncia necessaacuteria de certa concepccedilatildeo de corpo na qual a vida
era considerada um estado forccedilado e o corpo inteiramente subordinados agraves
potecircncias externas Isto eacute para uma medicina ativa que tem por fundamento a
ideia de corpo inerte doacutecil manipulaacutevel e inteiramente submetido ao entorno a
praacutetica meacutedica deve se dar atraveacutes de intervenccedilotildees eficazes propiciando uma
melhora ou restituiccedilatildeo de um estado de sauacutede que o doente natildeo conseguiria obter
por seus proacuteprios meios ldquoPara o corpo inerte medicina ativa () Para o corpo
dinacircmico medicina expectanterdquo (EM 2005 p12) Para uma medicina expectante
pautada na ideia de corpo dinacircmico dotado de uma capacidade espontacircnea de
conservaccedilatildeo de sua estrutura e de regulaccedilatildeo de suas funccedilotildees a arte meacutedica deve
fazer a medida do poder da natureza uma avaliaccedilatildeo de suas forccedilas e a partir
disso laisser faire a natureza ou intervir para sustentaacute-la ou ajudaacute-la ou ainda
renunciar agrave intervenccedilatildeo quando a doenccedila eacute mais forte do que a natureza (cf EM
2005 p15)
Em resumo o fundamento da medicina hipocraacutetica eacute o de que a natureza eacute
a primeira conservadora da sauacutede por ser a primeira formadora do organismo (cf
EM 2005 p13) Sendo assim o primeiro meacutedico eacute uma atividade interior a ele de
compensaccedilatildeo dos deacuteficits e de estabelecimento do equiliacutebrio rompido Por
extensatildeo em sua praacutetica o meacutedico deve fazer uma observaccedilatildeo atenta e fiel das
reaccedilotildees e performances do organismo em estado de doenccedila de modo a
compreender seus dispositivos de seguranccedila contra os riscos e sua relaccedilatildeo com o
meio119 A partir disso contar com a autofarmacopeacuteia orgacircnica com as
substacircncias liberadas pelo organismo com funccedilatildeo de remeacutedio confiando que a
119
Na coletacircnea La connaissance de la vie no artigo ldquoAspects du vitalismerdquo Canguilhem esclarece que a teoria hipocraacutetica da natura medicatrix daacute mais importacircncia agrave reaccedilatildeo do organismo e sua defesa do que agrave identificaccedilatildeo da causa moacuterbida Segundo ela importa mais prever o curso da doenccedila do que determinar sua causa A terapecircutica eacute feita mais de prudecircncia que de audaacutecia porque a natureza eacute o primeiro dos meacutedicos O vitalismo meacutedico portanto eacute a traduccedilatildeo de uma confianccedila do vivente na vida ldquoAssim vitalismo e naturismo satildeo indissociaacuteveisrdquo (CV 1985 p86)
169
natureza tambeacutem colaboraraacute com os remeacutedios que prescreveu Natildeo obstante
nenhum texto hipocraacutetico chega a descrever a natureza como infaliacutevel ou
onipotente O hipocratismo constatava que as forccedilas da natureza satildeo limitadas
pois haacute momentos em que elas cedem e o meacutedico em respeito a elas tambeacutem
deve ceder (cf EM 2005 p17)
Tambeacutem defendendo a introduccedilatildeo da ideia de natureza no pensamento e
na praacutetica meacutedicas Canguilhem coloca em questatildeo tanto a ideia de corpo inerte
quanto a de poder ilimitado da medicina fundadoras de uma terapecircutica que por
excesso de ativismo acaba por colaborar inclusive com o proacuteprio mal na medida
em que procurando entravar as iniciativas espontacircneas da natureza enfraquece
as reaccedilotildees de autodefesa do organismo (cf EM 2005 p14) Ou seja a seu ver a
ideia de que a natureza soacute fala se for bem interrogada e que quando age
responde com um paroxismo de que natildeo se deve aceitar da natureza tudo o que
ela diz da maneira como ela diz e tambeacutem o que ela faz se por um lado estaacute
certa ao identificar os limites de um hipocratismo de estrita obediecircncia - verificado
no caso das doenccedilas autoimunes em que a autodefesa se transforma em ataque -
por outro ao instaurar a desconfianccedila nos poderes curativos da vida natildeo faz mais
do que perturbar a relaccedilatildeo entre meacutedico e natureza fazendo com que entre eles
natildeo mais haja cooperaccedilatildeo mas um embate (cf EM 2005 p20)
Desta forma afirmar que a arte meacutedica deve se pautar na escuta e na
observaccedilatildeo da natureza natildeo quer dizer que ela aja sempre na exata medida do
necessaacuterio Todavia tal fato natildeo nos leva a uma medicina anti-hipocraacutetica porque
mesmo nos casos de reaccedilatildeo orgacircnica de defesa desmedida haacute a afirmaccedilatildeo do
poder curativo da natureza embora compreendido em seus limites (cf EM 2005
p 16) Por isso eacute importante esclarecer que mesmo filiado agrave tradiccedilatildeo meacutedica dos
antigos no que tange agrave consideraccedilatildeo da ideia de natureza na praacutetica meacutedica120
120
Eacute importante notar que Canguilhem embora resgate a ideia de natureza ele procura se afastar dos mais diferentes discursos ideoloacutegicos sobre ela como o dos naturistas arcaizantes que pregam em resposta aos problemas ecoloacutegicos decorrentes do desenvolvimento da sociedade industrial o retorno a uma ordem anterior mais harmocircnica entre o homem e o mundo natural Em ldquoLa question de lrsquoeacutecologie la technique ou la vierdquo ele critica as reivindicaccedilotildees anti-tecnoloacutegicas dos naturistas as quais associa agrave propaganda de produtos ldquobioloacutegicosrdquo e do turismo em regiotildees rurais Ainda esclarece que a ideia de natureza tem sido usada no contexto sociopoliacutetico para moderar a
170
Canguilhem procura deixar claro que a racionalidade meacutedica vitalista que propotildee
natildeo significa nem a retomada do naturismo hipocraacutetico embora dele tome a
confianccedila no poder de cura da vida nem o abandono do sentido de verdade da
ciecircncia malgrado a tendecircncia ao cientificismo ou racionalismo exacerbado da
atividade cientiacutefica transposto para o campo meacutedico Isto eacute ela natildeo se traduz nem
pelo ceticismo epistemoloacutegico ou niilismo terapecircutico da antimedicina nem pela
confianccedila desmedida no saber-poder meacutedico proacutepria da medicina cientiacutefica
moderna
Para contestar a racionalidade meacutedica cientiacutefico-experimental os meacutedicos
natildeo precisam fazer uma apologia da teacutecnica ou arte da cura identificada a um
hipocratismo ao gosto do dia com base numa moral humanista ou personalista
difusa nem assumir uma atitude radical de desconsiderar as contribuiccedilotildees das
pesquisas de base cientiacutefico-experimental para o exerciacutecio praacutetico da medicina
como as da imunologia da geneacutetica e da biologia molecular sobre o patrimocircnio
geneacutetico e a idiotipia que comprovam a ideia de individualidade bioloacutegica (cf EM
2005 p31)121 Ciente dos poderes e limites da racionalidade biomeacutedica moderna
eles natildeo precisam deixar de incorporar em suas praacuteticas o que a ciecircncia trouxe de
avanccedilos para a terapecircutica sobretudo no que tange ao conhecimento objetivo das
doenccedilas seu diagnoacutestico e medicaccedilotildees mas devem considerar que a eficaacutecia da
intervenccedilatildeo iraacute advir do exerciacutecio mesmo da teacutecnica meacutedica do saber que o
exerciacutecio praacutetico da medicina proporciona sobretudo no que concerne agrave
identificaccedilatildeo do normal e do patoloacutegico para um indiviacuteduo concreto entendendo
dominaccedilatildeo e a degradaccedilatildeo proacuteprias ao desenvolvimento das sociedades industriais em qualquer regime poliacutetico Ao investigar as diferentes ideologias e a finalidade poliacutetica dos discursos sobre a natureza como o eco-fascismo o eco-marxismo e o eco-capitalismo das sociedades liberais ele nota a estreita relaccedilatildeo existente entre eles e os interesses de planificaccedilatildeo e crescimento econocircmico de uma naccedilatildeo Ao expor entatildeo os diferentes discursos ideoloacutegicos sobre a natureza o que ele percebe eacute um amaacutelgama ideoloacutegico que vai do mea culpa liberal ao anticapitalismo marxista-maoiacutesta do naturismo arcaizante agrave contestaccedilatildeo hippie do romantismo ao regionalismo Cf CANGUILHEM G ldquoLa question de lrsquoeacutecologie la technique ou la vierdquo In DAGOGNET F Consideacuterations sur lrsquoideacutee de nature Paris Vrin 2000
121 Tambeacutem nos Eacutetudes ele fala da importacircncia da chamada patologia molecular para a
identificaccedilatildeo de predisposiccedilotildees geneacuteticas agrave rejeiccedilatildeo de hetero-enxertos e a certas afecccedilotildees por corroborar a ideia de individualidade bioloacutegica (cf E 1989 p405)
171
que a desindividualizaccedilatildeo da doenccedila eacute um meacutetodo de pesquisa cientiacutefica e natildeo de
intervenccedilatildeo cliacutenica
De modo mais preciso tal como apresenta nos seus Eacutetudes dacuteHistoire et de
Philosophie des Sciences para realizar a criacutetica ao cientificismo meacutedico ele natildeo
quer nem retomar o hipocratismo tradicional nem defender o naturismo
antirracionalista ou selvagem defendido pelos teoacutericos da antimedicina Segundo
ele uma coisa eacute considerar a forccedila da natureza no processo de cura outra eacute
deixar o doente a proacutepria sorte postura vinculada agrave ideologia do liberalismo
poliacutetico Isto eacute uma coisa eacute respeitar o tempo de resposta orgacircnica ao mal agindo
tecnicamente em conformidade a ela outra eacute deixar a natureza agir em livre curso
como se a teacutecnica natildeo intencional da vida prescindisse da teacutecnica meacutedica
intencional humana ldquoSe a humanidade se deu uma medicina eacute porque natildeo podia
dispensaacute-lardquo (E 1989 p385) Outra ainda eacute desconsiderar a importacircncia dos
conhecimentos cientiacuteficos para as praacuteticas meacutedicas embora elas natildeo se resumam
a mera aplicaccedilatildeo das ciecircncias puras ou fundamentais das quais se beneficia
Assim se a questatildeo natildeo eacute dispensar a teacutecnica meacutedica intencional humana
e nem os conhecimentos advindos da pesquisa cientiacutefico-experimental o
problema apresentado por Canguilhem desde seu Ensaio eacute que partir do momento
que a medicina como teacutecnica ou arte da cura se tornou uma ciecircncia das doenccedilas
houve uma mudanccedila no entendimento do patoloacutegico agora definido por meacutetodos
cientiacutefico-experimentais e por conseguinte nas praacuteticas meacutedicas A partir de uma
concepccedilatildeo de corpo maquiacutenico inerte e indiferente ou passivo e apaacutetico a sauacutede
passou a partir definiccedilotildees positivas a se identificar a um estado orgacircnico ideal
definido em condiccedilotildees experimentais determinadas a doenccedila foi tomada como
uma variaccedilatildeo quantitativa para menos deste e a cura como uma restituiccedilatildeo da
norma vital anterior da qual o organismo tinha se afastado As consequecircncias
disso foram a desconsideraccedilatildeo da heterogeneidade ou da diferenccedila qualitativa
existente entre os fenocircmenos normais e patoloacutegicos associada agrave tendecircncia agrave
mensuraccedilatildeo desses estados segundo um padratildeo de normalidade - seja
aritmeacutetico seja estatiacutestico ndash base de uma terapecircutica pensada pela perspectiva do
reparo (cf NP 1990 p217)
172
Como mostra em seus Escritos sobre a medicina tal racionalidade meacutedica
levou agrave reduccedilatildeo anatomofisioloacutegica do patoloacutegico traduzida pela
desindividualizaccedilatildeo da doenccedila e agrave identificaccedilatildeo da cliacutenica a praacuteticas de
normalizaccedilatildeo dos processos vitais dado o enquadramento da normalidade em
criteacuterios matemaacuteticos e sua imposiccedilatildeo como regra de sauacutede Transposta a mesma
loacutegica para o acircmbito populacional a desconsideraccedilatildeo da individualidade da
doenccedila se acentuou ainda mais quando da extensatildeo dos procedimentos meacutedicos
preventivos e curativos para o conjunto da sociedade a partir das medidas
higienistas com vistas agrave normalizaccedilatildeo coletiva ldquoO higienista se esmera em gerir
uma populaccedilatildeo Ele natildeo tem de se haver com indiviacuteduos Sauacutede puacuteblica eacute uma
denominaccedilatildeo contestaacutevel Salubridade conviria melhorrdquo (EM 2005 p44) Isto eacute
com o higienismo e o advento da hospitalizaccedilatildeo a noccedilatildeo de individualidade se
dissolveu no coletivo e as doenccedilas passaram a se remeter mais agrave medicina que
ao mal experienciado pelo paciente
ldquoO tratamento hospitalar das doenccedilas em uma estrutura social regulamentada contribuiu para desindividualizaacute-las ao mesmo tempo em que a anaacutelise cada vez mais artificial de suas condiccedilotildees de aparecimento extraiu sua realidade da representaccedilatildeo cliacutenica inicialrdquo (EM 2005 p 28)
Desde entatildeo o meacutedico terapeuta que exercia diversas partes da medicina
atualmente chamado cliacutenico geral perdeu seu prestiacutegio e autoridade em benefiacutecio
dos meacutedicos engenheiros especialistas nas diversas partes de um corpo-maacutequina
(cf EM 2005 p28) Mudado o local de investigaccedilatildeo da doenccedila do leito do doente
para o laboratoacuterio o doente passou a ser caracterizado pela doenccedila e a doenccedila
deixou de ser o feixe de sintomas apresentado de modo espontacircneo por ele Os
sintomas da doenccedila o diagnoacutestico etioloacutegico o prognoacutestico e a decisatildeo
terapecircutica passaram a ser sustentados natildeo mais pelo interrogatoacuterio ou
investigaccedilatildeo cliacutenica mas por pesquisas experimentais e exames laboratoriais e o
doente deixou de ser o sujeito de sua doenccedila para ser objeto
O meacutedico passou a realizar seu diagnoacutestico natildeo mais a partir da
observaccedilatildeo dos sintomas espontacircneos mas atraveacutes do exame de sinais
173
provocados A consulta passou a consistir na interrogaccedilatildeo de um banco de dados
de ordem semioloacutegica e etioloacutegica de um computador e a formulaccedilatildeo de um
diagnoacutestico a depender de uma avaliaccedilatildeo de informaccedilotildees estatiacutesticas Com o
deslocamento do local de observaccedilatildeo e anaacutelise das estruturas orgacircnicas suspeitas
para o laboratoacuterio de exames fiacutesicos e quiacutemicos a doenccedila passou a ser localizada
no oacutergatildeo no tecido na ceacutelula no gene na enzina e identificada na sala de
autoacutepsia (cf EM 2005 p24-26)
Pelo mesmo vieacutes em O normal e o patoloacutegico Canguilhem critica o uso do
modelo maquinal e o meacutetodo analiacutetico para a compreensatildeo do vivente e tambeacutem
os meacutedicos que consideram o organismo como uma maacutequina cujo rendimento
deve ser medido (cf NP 1990 p92) A seu ver de modo errocircneo a anaacutelise
anatocircmica e fisioloacutegica dissocia o organismo em oacutergatildeos e funccedilotildees elementares
tentando situar a doenccedila ao niacutevel das condiccedilotildees parciais da estrutura total ou do
comportamento de conjunto Conforme progride a anaacutelise a doenccedila eacute colocada ao
niacutevel do oacutergatildeo tecido ou ceacutelula ou seja procura-se numa parte um problema
levantado pelo organismo inteiro
ldquoEacute por essa razatildeo que achamos contrariamente a todos os haacutebitos meacutedicos atuais que eacute medicamente incorreto falar em oacutergatildeos doentes tecidos doentes ceacutelulas doentesrdquo (NP 1990 p188)
Assim recusando a ideia de que o corpo eacute um conjunto de partes como eacute
uma maacutequina ele resgata da tradiccedilatildeo hipocraacutetica a concepccedilatildeo totalizante e natildeo
localizante do patoloacutegico segundo a qual a doenccedila natildeo estaacute em alguma parte do
homem mas em todo ele e eacute toda dele ldquoa doenccedila existe natildeo somente para o
homem mas para qualquer ser vivo soacute existe doenccedila do todo orgacircnicordquo (NP
1990 p182-183) Natildeo sendo uma mera somatoacuteria de ceacutelulas e oacutergatildeos o indiviacuteduo
eacute um todo e somente como um todo pode ou natildeo ser considerado doente
ldquoProcurar a doenccedila ao niacutevel da ceacutelula eacute confundir o plano da vida concreta ndash em que a polaridade bioloacutegica estabelece a diferenccedila entre a sauacutede e a doenccedila ndash e o plano da ciecircncia abstrata em que o problema recebe uma soluccedilatildeordquo (NP 1990 p183)
174
Acreditando que sauacutede e doenccedila satildeo conceitos vulgares e natildeo cientiacuteficos
para ele a atividade meacutedica tem como centro o doente e seus julgamentos de
valor Portanto para elaborar um diagnoacutestico o meacutedico natildeo pode prescindir da
escuta e da observaccedilatildeo cliacutenicas Por isso ele julga haver um equiacutevoco quando
algueacutem fala em patologia objetiva ou em meacutetodos objetivos de investigaccedilatildeo
diagnoacutestica achando que apenas a observaccedilatildeo anatocircmica e histoloacutegica o teste
fisioloacutegico ou o exame bacterioloacutegico satildeo suficientes para realizar o diagnoacutestico da
doenccedila sem nenhum interrogatoacuterio ou exploraccedilatildeo cliacutenica
ldquoum microscoacutepio um termocircmetro um caldo de cultura natildeo podem conhecer uma medicina que o meacutedico porventura ignore Fornecem apenas um resultado Este resultado natildeo tem por si nenhum valor diagnoacutestico Para fazer um diagnoacutestico eacute preciso observar o comportamento do doenterdquo (NP 1990 p185)
Assim questionando a ideia de que eacute necessaacuterio desindividualizar a doenccedila
para compreender o fenocircmeno patoloacutegico ele apresenta outra racionalidade que
recusa este princiacutepio principal caracteriacutestica da racionalidade biomeacutedica moderna
pautada na elucidaccedilatildeo cientiacutefico-experimental do patoloacutegico isto eacute numa
patologia objetiva e propotildee outra forma de pensar na qual a doenccedila eacute antes de
tudo um pathos subjetivo e mais do que um acometimento bioloacutegico eacute uma
ameaccedila a uma existecircncia individual um drama na histoacuteria de um indiviacuteduo
concreto que vecirc mudadas suas relaccedilotildees de conjunto com seu meio (entourage)
Por esta perspectiva para individualizar a doenccedila natildeo haacute como prescindir da
relaccedilatildeo meacutedico-doente estabelecida na cliacutenica pois eacute neste momento que o
meacutedico entra em contato com o indiviacuteduo completo e concreto que sente um mal-
estar e que vivencia a anguacutestia suscitada pela doenccedila (cf NP 1990 p65)
Por outra via entatildeo guardando de Hipoacutecrates sua confianccedila na capacidade
de autodefesa da vida (vis medicatrix naturae) sua concepccedilatildeo totalizante da
doenccedila e o caraacuteter empiacuterico-observacional e relacional de sua arte meacutedica
Canguilhem apresenta uma racionalidade meacutedica vitalista proacutepria que considera a
dimensatildeo axioloacutegica da vida quer dizer que tem por base a ideia de que o
entendimento do normal e do patoloacutegico deve ser buscado na experiecircncia que os
175
homens tecircm de suas relaccedilotildees de conjunto com o meio (cf NP 1990 p65) Por
esta perspectiva individualizar a doenccedila eacute tomaacute-la como pathos de um indiviacuteduo
concreto em seu meio consciente de sua situaccedilatildeo favoraacutevel ou desfavoraacutevel na
existecircncia122
Com efeito em seu Ensaio sobre alguns problemas relativos ao normal e
ao patoloacutegico acompanhando Goldstein para quem para a compreensatildeo do ser
doente (Kranksein) eacute preciso considerar que a doenccedila eacute um abalo e uma ameaccedila
agrave existecircncia e que por isso sua definiccedilatildeo exige como ponto de partida a noccedilatildeo de
ser individual Canguilhem afirma que a sauacutede aleacutem de um comportamento
bioloacutegico eacute um sentimento de seguranccedila na vida uma maneira de abordar a
existecircncia com uma sensaccedilatildeo natildeo apenas de possuidor mas tambeacutem de criador
de novas normas vitais ldquoa palavra valere que deu origem a valor significa em
latim passar bemrdquo (NP 1990 p163) Jaacute a doenccedila eacute um comportamento de valor
negativo que para o vivente humano concreto em atividade polarizada com seu
meio chega agrave consciecircncia como um passar mal (cf NP 1990 p163)
Na mesma direccedilatildeo em La connnaissance de la vie no artigo ldquoLe normal et
le pathologiquerdquo ao tratar da singularidade individual ele novamente esclarece
que ela natildeo se refere a um tipo preestabelecido mas se remete a diferentes
organizaccedilotildees para as quais a validade ou seja seu valor se identifica a seu ecircxito
de permanecer na vida ldquoAqui estaacute o sentido profundo de identidade atestado
pela linguagem entre valor e sauacutede valere em latim eacute passar bem [bien porter]rdquo
(CV 1985 p159) Ainda mais uma vez citando o pensamento de Goldstein
122
Em vista disso Scofano amp Luz (2008) veem uma aproximaccedilatildeo possiacutevel entre os pensamentos de Canguilhem e Samuel Hahnemann (1755-1843) fundador da homeopatia Segundo as autoras Hahnemann descreveu a doenccedila como um desequiliacutebrio do organismo como um todo carregando a marca da afecccedilatildeo individual Da mesma forma Canguilhem afirma que os sintomas soacute tecircm sentido dentro de seu contexto especiacutefico e expressa um distuacuterbio global Hahnemann daacute agrave sauacutede uma definiccedilatildeo positiva como o estado de equiliacutebrio da forccedila vital entendida como uma qualidade essencial da mateacuteria que compotildee os seres vivos e que corresponde a uma concepccedilatildeo de vitalismo que entende o vivo como totalidade auto-organizada Canguilhem definiu seu vitalismo como o simples reconhecimento da originalidade da vida sobre a mateacuteria inanimada e descreveu a vida como uma polaridade dinacircmica Neste contexto a doenccedila eacute vista como uma forma de obrigar o organismo a buscar um novo equiliacutebrio para manter a homeostase Por esta perspectiva sauacutede e cura satildeo partes integrantes da auto-organizaccedilatildeo dos seres vivos e a dicotomia do processo sauacutededoenccedila eacute mero artefato linguiacutestico Cf SCOFANO D LUZ MT Vitalism and vital normativeness Hahnemann and Canguilhem Int J High Dilution Res 7(24)140-146 2008
176
corrobora sua afirmaccedilatildeo do Ensaio de que a adaptaccedilatildeo a um meio pessoal eacute um
dos pressupostos fundamentais da sauacutede e como evento subjetivamente
experimentado pelo paciente eacute mais uma apreciaccedilatildeo de valor do que algo a ser
medido ou exposto objetivamente (cf CV 1985 p164)
Assim eacute se apropriando de teorias como a de Espinosa Nietzsche
Simondon Politzer e Goldstein que Canguilhem compotildee sua concepccedilatildeo de vida
como potecircncia123 e de vivente humano como indiviacuteduo concreto que natildeo se
resume ao sujeito da modernidade124 pois se define como uma totalidade
orgacircnica consciente para a qual a doenccedila comportamento bioloacutegico de valor vital
negativo adquire tambeacutem sentido existencial negativo125 Recorrendo agrave ideia
espinosana de esforccedilo do vivente para manter-se na vida e nietzschiana de vida
como potecircncia criadora de valores que busca superaccedilatildeo ou expansatildeo e natildeo
123 Na construccedilatildeo da concepccedilatildeo canguilhemiana de vida Macherey (2009) destaca as contribuiccedilotildees de Bachelard Bergson e Espinosa A noccedilatildeo de erro e o conceito de valor vital negativo satildeo trabalhados a partir de Bachelard a ideia de esforccedilo espontacircneo de todo vivente para manter-se na vida o movimento polarizado da vida que permite ao vivente desenvolver ao maacuteximo isso que nele eacute ser ou existir tecircm inspiraccedilatildeo bergsoniana mas tambeacutem se aproxima da noccedilatildeo espinosana de conatus (cf MACHEREY 2009 p100)
124 Atraveacutes de sua criacutetica ao sujeito moderno transparente a si mesmo que pretende o domiacutenio de
tudo o que eacute de si mesmo e do mundo Canguilhem antecipa o que Ferry amp Renaut (1988) definem como o anti-humanismo hiperboacutelico da filosofia francesa contemporacircnea dos anos 6070 representada entre outros por Foucault Lacan Derrida Deleuze e Althusser e caracterizada pela proclamaccedilatildeo da morte do homem como sujeito metafiacutesico abstrato atemporal e autocircnomo pela recorrecircncia agrave histoacuteria por ldquooacutedio ao universalrdquo e pela identificaccedilatildeo do humanismo moderno a uma ideologia burguesa Com efeito ao trocar a noccedilatildeo de homem pela de vivente humano como totalidade orgacircnica consciente singular dotada de potecircncia normativa e depois pela de indiviacuteduo concreto historicizado produtor de valores e normas sociais Canguilhem compartilha com esta geraccedilatildeo a afirmaccedilatildeo das diferenccedilas individuais ou idiossincrasias a criacutetica agraves normalizaccedilotildees e a defesa de uma eacutetica libertaacuteria que recusa uma concepccedilatildeo universalista de ethos baseado na lei e nos valores universais Mas com isso ele tambeacutem teraacute de se a ver com o fato de que a criacutetica ao sujeito e a promoccedilatildeo do indiviacuteduo a defesa do direito absoluto agrave heterogeneidade colocam no horizonte o individualismo exacerbado da sociedade de consumo e que uma concepccedilatildeo individualista de ethos exclui a possibilidade de se falar em direitos humanos Cf FERRY L RENAUT A Pensamento 68 ensaio sobre o anti-humanismo contemporacircneo [trad Roberto Markeson amp Nelci do Nascimento Gonccedilalves] Satildeo Paulo Ensaio 1988
125 Para Badiou (1993) nem substancial nem transcendental nem psicoloacutegico o sujeito para
Canguilhem eacute o vivente singular centro a partir do qual emergem norma e sentido ldquorsquoHumanidadersquo eacute entatildeo o nome geneacuterico de todo sujeito vivente singularrdquo (BADIOU 1993 p302) Entatildeo se por vezes Canguilhem fala em Sujeito este soacute pode ser o sujeito vivente singular insatisfeito com seu sentido que vive em constantes deslocamentos (deacuteplacement) em relaccedilatildeo a si mesmo isto eacute um sujeito livre para se deslocar um sujeito historicizado no verdadeiro sentido do termo (cf BADIOU 1993 p304) Cf BADIOU A Y a-t-il une theacuteorie du sujet chez Georges Canguilhem In BADIOU A (et al) Georges Canguilhem Philosophe historien des sciences Actes du colloque (6 7 8 deacutecembre 1990) Op cit
177
conservaccedilatildeo de seu estado de forccedilas e ainda tomando de Simondon a noccedilatildeo de
indiviacuteduo vivente como sistema metaestaacutevel rico em potenciais e de processo de
individuaccedilatildeo como devir de potencialidades do ser ele remata sua ideia de
indiviacuteduo concreto como um todo potencial em processo contiacutenuo de auto-
organizaccedilatildeo fiacutesica e psiacutequica constituiacutedo e constituinte de seu meio capaz de
reagir a o que lhe ameaccedila atraveacutes do exerciacutecio de sua liberdade de valorar e criar
normas
De modo mais preciso como vimos a partir de seu pensamento bioloacutegico
vitalista materialista antimecanicista e antiteleoloacutegico ele define os organismos
como sistemas autorreguladores vivos com tendecircncia agrave autoconservaccedilatildeo por
superaccedilatildeo caracterizados pela espontaneidade e pela liberdade de valorar seus
comportamentos criar e infringir suas proacuteprias normas O vivente humano como
potecircncia normativa e valorativa na sua especificidade aparece dotado de sentido
bioloacutegico e existencial singular apresentando a capacidade de transformar o meio
ao mesmo tempo vital e social em que vive e de adaptar-se ativamente a ele
Portanto ele natildeo se resume a uma individualidade bioloacutegica ou fiacutesico-quiacutemica
estaacutetica mas aparece como uma totalidade individual concreta em contiacutenuo
processo de auto-organizaccedilatildeo somaacutetica e psiacutequica produto e produtora do meio
ecoloacutegico geograacutefico histoacuterico e sociocultural em que se encontra
Com efeito em O normal e o patoloacutegico Canguilhem adota uma concepccedilatildeo
de vida como potecircncia dinacircmica de superaccedilatildeo no campo somaacutetico e psiacutequico (cf
NP 1990 p90) Isso explica porque ao definir a medicina como uma arte da cura
enraizada na vida ele diz ser o meacutedico natildeo um cientista mas um artiacutefice que tem
por mateacuteria a vida humana concreta natildeo inerte e apaacutetica da tradiccedilatildeo mecanicista
submetida agrave orientaccedilatildeo normativa externa mas dinacircmica e criadora em constante
devir e portanto natildeo determinada e matematizaacutevel mas sim dotada de uma
estrutura histoacuterica tanto quanto histoloacutegica (cf NP 1990 p164) Caracterizada
pela processualidade e pela indeterminaccedilatildeo de seus acontecimentos a ela eacute
possiacutevel subverter uma ordem instituiacuteda e criar novas ordens para si mesma Eacute
por esta mesma perspectiva que ele afirma ser tambeacutem o meio bioloacutegico infiel
ldquonada acontece por acaso mas tudo ocorre sob a forma de acontecimento Eacute
178
nisso que o meio eacute infiel Sua infidelidade eacute exatamente seu devir sua histoacuteriardquo
(NP 1990 p159)
O fato de a vida ser atividade polarizada e criadora esclarece tambeacutem
porque Canguilhem diz ser a sauacutede uma maior normatividade isto eacute uma maior
capacidade de reaccedilatildeo e de instituiccedilatildeo de normas o que daacute ao vivente uma maior
possibilidade de enfrentamento agraves infidelidades do meio (milieu) Ainda que ela eacute
a indeterminaccedilatildeo inicial da capacidade do indiviacuteduo de instituir novas normas
bioloacutegicas Assim considerando que a vida estaacute habitualmente aqueacutem de suas
possibilidades ele considera ser a sauacutede em casos de necessidade de reaccedilatildeo e
de defesa por parte do vivente o poder de ir aleacutem de sua capacidade presumida
ldquoAssim como haacute um seguro psicoloacutegico que natildeo representa presunccedilatildeo haacute um
seguro bioloacutegico que natildeo representa excesso e que eacute a sauacutederdquo (NP 1990 p160)
Assim a sauacutede natildeo eacute a adoccedilatildeo e conservaccedilatildeo de uma norma orgacircnica tida
por ideal mas um guia regulador das possibilidades de reaccedilatildeo do vivente ao que
lhe ameaccedila Aleacutem disso a possibilidade de abusar da sauacutede faz parte da sauacutede o
que mostra que a ameaccedila da doenccedila eacute um dos elementos constitutivos dela
ldquoestar em boa sauacutede eacute poder cair doente e se recuperar eacute um luxo bioloacutegicordquo (NP
1990 p160) Como capacidade de superar crises a sauacutede mais do que natildeo
adoecer eacute conseguir se recuperar Daiacute o sentido da doenccedila paradoxal do homem
normal que se origina da permanecircncia do estado satildeo que nasce da existecircncia
quase incompatiacutevel com a doenccedila Como uma inquietaccedilatildeo por ter permanecido
normal o homem pode sentir uma necessidade de testar sua sauacutede jaacute que ele soacute
se sente satildeo quando sua sauacutede o abandona quando consegue frear um processo
de adoecimento que os outros levariam ateacute o fim quando potildee agrave prova sua
confianccedila bioloacutegica em si mesmo e se certifica de seu poder de recuperaccedilatildeo ldquoO
homem dito satildeo natildeo eacute portanto satildeo Sua sauacutede eacute o equiliacutebrio conquistado agrave custa
de rupturas incoativasrdquo (NP 1990 p 261)
Assim notando que a noccedilatildeo de sauacutede absoluta estaacute associada a de tipo
ideal e esta articulada ao desejo de existecircncia de um ser divino perfeito
Canguilhem adverte que a sauacutede contiacutenua sim eacute um fato anormal pois a doenccedila
179
eacute prevista para o organismo embora seja um estado contra o qual eacute preciso lutar
jaacute que para o vivente a persistecircncia na vida eacute a norma (cf NP 1990 p107)
Entendendo tambeacutem que o vivente natildeo se limita a seu organismo pois ele estaacute
inserido em um meio e que sua sauacutede estaacute estreitamente relacionada com a
qualidade das trocas que estabelece com ele na oacuteptica canguilhemiana
normalidade natildeo eacute sinocircnimo de adaptaccedilatildeo passiva mas o poder se realizar
melhor num ambiente o que demanda reatividade e criatividade vitais
indispensaacuteveis a uma atividade transformadora reciacuteproca (cf NP 1990 p73)
Tendo em vista a dimensatildeo axioloacutegica da sauacutede e da doenccedila ele diz que o
homem soacute se sente em boa sauacutede e destaca o que eacute precisamente a sauacutede
quando se sente mais do que adaptado ao meio e agraves suas exigecircncias isto eacute
quando se sente normativo ou seja capaz de seguir novas normas de vida (cf
NP 1990 p 161) Sendo assim para o vivente humano como um julgamento de
valor a sauacutede eacute traduzida por bem-estar vida longa capacidade de reproduccedilatildeo
de trabalho fiacutesico resistecircncia agrave fadiga ausecircncia de dor sentir o corpo o menos
possiacutevel uma agradaacutevel sensaccedilatildeo de existir126 Jaacute a doenccedila eacute algo nocivo
indesejaacutevel porque tambeacutem desvalorizado num dado meio social ldquomais do que a
opiniatildeo dos meacutedicos eacute a apreciaccedilatildeo dos pacientes e das ideias dominantes do
meio social que determina o que se chama lsquodoenccedilarsquordquo (cf NP 1990 p93) Isso
porque a representaccedilatildeo social da doenccedila eacute tambeacutem fator constitutivo do
patoloacutegico considerando que o estado de mal pode ser agravado pela ausecircncia
de uma atividade possiacutevel e de um papel social condigno ao enfermo (cf NP
1990 p108)
Por isso Canguilhem diz acreditar ser aleacutem do corpo entendido como
conjunto de oacutergatildeos e suas funccedilotildees que se deve olhar para julgar o que eacute normal e
patoloacutegico jaacute que a normalidade apenas poderaacute ser definida a partir da relaccedilatildeo do
indiviacuteduo com seu meio Assim considerando que sauacutede tem a ver com esta
relaccedilatildeo para saber se houve cura eacute necessaacuterio considerar como o indiviacuteduo vive 126
Canguilhem aqui entra em concordacircncia com Karl Jaspers quando em sua Psychopathologie geacuteneacuterale expotildee as dificuldades se para chegar a uma determinaccedilatildeo meacutedica do normal e da sauacutede por serem antes de tudo conceitos vulgares ou julgamentos de valor relativos agrave existecircncia (cf NP 1990 p93)
180
e se relaciona pois mesmo que sua atividade residual tenha ficado reduzida apoacutes
o episoacutedio da doenccedila o que importa eacute a satisfaccedilatildeo que ele demonstra com a
possibilidade de retorno a suas atividades cotidianas habituais Isso porque
quando se trata de normas humanas essas normas satildeo determinadas como
possibilidades de agir de um indiviacuteduo num situaccedilatildeo social e natildeo como funccedilatildeo de
um organismo encarado como um mecanismo vinculado a um meio bioloacutegico ou
fiacutesico-quiacutemico (milieu) Se o meio humano eacute um campo de experiecircncias e
empreendimentos a sauacutede passa a ser a quantidade de energia que o indiviacuteduo
dispotildee para delimitaacute-lo e estruturaacute-lo (cf NP 1990 p259) Desta forma a soacute cura
pode ser traduzida pelo aumento das possibilidades de accedilatildeo ou como diria
Espinosa como aumento da potecircncia de agir dos indiviacuteduos em seu meio
(entourage) o que pede natildeo soacute mudanccedilas normativas individuais mas tambeacutem da
normatividade social
Tambeacutem em seus Escritos sobre a Medicina em recusa a ideia de corpo
estaacutetico e objetivado tal como apresentado pela perspectiva mecanicista
Canguilhem apresenta uma concepccedilatildeo de corpo dinacircmico e subjetivo jaacute que
rechaccedila a distinccedilatildeo substancial entre res cogitans e res extensa127 Novamente
ele defende a ideia de que de que as funccedilotildees orgacircnicas de autorregulaccedilatildeo estatildeo
intimamente ligadas agraves funccedilotildees de adaptaccedilatildeo ao meio ambiente e que esta
relaccedilatildeo natildeo eacute de sujeiccedilatildeo passiva (cf EM 2005 p54-55) A maacute sauacutede eacute a
restriccedilatildeo das margens de seguranccedila orgacircnica a limitaccedilatildeo do poder de toleracircncia e
de compensaccedilatildeo agraves agressotildees do meio ambiente (cf EM 2005 p43) Aqui
considerando as noccedilotildees de patrimocircnio geneacutetico e resistecircncia orgacircnica apresenta
todo vivente humano como um organismo individual dotado de um sistema proacuteprio
de autodefesa
127
Eacute importante notar que com a noccedilatildeo de corpo subjetivo atraveacutes de uma adjetivaccedilatildeo Canguilhem escapa da mera justaposiccedilatildeo de termos como vemos nas palavras psicossomaacutetico somatopsiacutequico ou biopsicoloacutegico Em seus Eacutetudes dacuteHistoire et de Philosophie des Sciences no artigo ldquoPuissance et limites de la rationaliteacute em meacutedecinerdquo ao tratar da questatildeo mentecorpo ele diz que mesmo os adeptos da medicina psicossomaacutetica se contentam com a justaposiccedilatildeo de termos mantendo implicitamente nesta construccedilatildeo semacircntica o problema da relaccedilatildeo entre o somaacutetico e o psiacutequico (cf E 1989 p408)
181
ldquoo conceito de homem recobre com uma falsa aparecircncia de identidade especiacutefica organismos individuais providos de diferentes poderes de resistecircncia agraves agressotildees por sua ascendecircnciardquo (EM 2005 p27)
Por esta perspectiva o vivente humano como individualidade bioloacutegica natildeo pode
ser pensado como um universal mas somente como um singular128 que
consegue resistir ao que lhe ameaccedila adaptando-se ativamente ao meio devido a
sua capacidade de resistecircncia proacutepria
Mas mais do que considerar que os viventes humanos satildeo singulares
quanto agraves capacidades de resistecircncia orgacircnica individualizar a doenccedila eacute inscrevecirc-
la na histoacuteria de um indiviacuteduo concreto para o qual a doenccedila natildeo eacute apenas uma
alteraccedilatildeo anatomofisioloacutegica mas uma provaccedilatildeo no sentido afetivo do termo pois
ela o coloca diante da finitude e da impotecircncia para fazer frente agraves exigecircncias de
seu meio de vida (entourage) Isto eacute se todo ser vivo eacute um organismo singular
cuja sauacutede exprime a qualidade dos poderes que o constituem o vivente humano
em sua especificidade como indiviacuteduo concreto consciente eacute o uacutenico que tem a
capacidade de avaliar e de representar a si mesmo estes poderes de exerciacutecio e
seus limites Para este sauacutede eacute o sentimento de uma capacidade de ultrapassar
capacidades iniciais de fazer com que o corpo faccedila o que parecia natildeo prometer
inicialmente (cf EM 2005 p43)
Jaacute a doenccedila como fato bioloacutegico universal e no vivente humano como
prova existencial eacute o que desperta questionamentos sobre a precariedade de
suas estruturas orgacircnicas ldquoas doenccedilas satildeo instrumentos da vida por meio dos
quais o ser vivo quando se trata do homem se vecirc obrigado a se reconhecer
mortalrdquo (EM 2005 p33) Em resumo a doenccedila eacute um drama inevitaacutevel a ser vivido
pelo homem em algum momento de sua existecircncia inclusive por tornaacute-lo
consciente de sua finitude
128
Eacute o que faz Cammelli (2006) dizer que para Canguilhem a humanidade soacute pode ser as diferentes formas de vida cada qual com sua singularidade Logo ele questiona a noccedilatildeo de Humanidade defendida pelos marxistas pois haacute somente a existecircncia singular (cf CAMMELLI 2006 p43) Op cit
182
ldquoAs doenccedilas do homem natildeo satildeo somente limitaccedilotildees de seu poder fiacutesico satildeo dramas de sua histoacuteria A vida humana eacute uma existecircncia um ser-aiacute para um devir natildeo preordenado na obsessatildeo de seu fim Portanto o homem eacute aberto agrave doenccedila natildeo por sua condenaccedilatildeo ou sina mas por sua simples presenccedila no mundordquo (EM 2005 p62)
Como a doenccedila nunca seraacute excluiacuteda da experiecircncia humana Canguilhem
concorda com a ideia de Cornillot de que a sauacutede absoluta estaacute em contradiccedilatildeo
com a dinacircmica proacutepria dos sistemas bioloacutegicos (cf EM 2005 p 64) Aqui ao
dizer que a doenccedila eacute um episoacutedio inevitaacutevel e que o risco da doenccedila eacute inerente ao
gozo da sauacutede ele aproxima sua concepccedilatildeo de sauacutede a de Nietzsche pra quem a
grande sauacutede eacute o poder absorver e de vencer as tendecircncias moacuterbidas o poder pocircr
agrave prova todos os valores e todos os desejos (cf EM 2005 p64) Ainda reafirma
sua ideia de que estar saudaacutevel natildeo significa estar fixado em uma uacutenica norma129
e que cura natildeo eacute o retorno a um estado de normalidade preacutevio
ldquoA vida do indiviacuteduo eacute desde a origem reduccedilatildeo dos poderes da vida Porque a sauacutede natildeo eacute uma constante satisfaccedilatildeo mas o a priori do poder de dominar situaccedilotildees perigosas esse poder eacute usado para dominar perigos sucessivos A sauacutede depois da cura natildeo eacute a sauacutede anterior A consciecircncia luacutecida do fato de que curar natildeo eacute retornar ajuda o doente em sua busca de um estado de menor renuacutencia possiacutevel liberando-o da fixaccedilatildeo ao estado anteriorrdquo (EM 2005 p70)
Lembrando tambeacutem que Nietzsche por recusar a distinccedilatildeo substancial
cartesiana considerava o corpo uma grande razatildeo da qual proviria toda verdade
Canguilhem afirma que a sauacutede como verdade do corpo natildeo pode ser referida a
uma explicaccedilatildeo por teoremas Aleacutem disso a cura natildeo pode ser assimilada a um
efeito necessaacuterio de uma relaccedilatildeo meacutedico-doente de tipo mecacircnico concebida
como a de um teacutecnico competente com um mecanismo perturbado (cf EM 2005
p60) A definiccedilatildeo de sauacutede inclui a referecircncia da vida orgacircnica ao prazer e agrave dor
experimentados pelo indiviacuteduo que o discurso meacutedico acredita poder descrever
na terceira pessoa Mas a dor e o prazer satildeo sempre de algueacutem (cf EM 2005
p45) Ela eacute condiccedilatildeo a priori latente vivida em um sentido propulsivo de
129
Em La connaissance de la vie no artigo ldquoLe normal et le pathologiquerdquo ao tratar das doenccedilas mentais Canguilhem define a fixaccedilatildeo normativa como o proacuteprio estado patoloacutegico ldquoQuem quereria sustentar em mateacuteria de psiquismo humano que o anormal natildeo obedece as normas Ele talvez seja anormal porque obedece demaisrdquo (CV 1985 p 168)
183
realizaccedilatildeo de toda atividade escolhida ou imposta (cf EM 2005 p58) Por
oposiccedilatildeo as doenccedilas satildeo crises orgacircnicas das funccedilotildees de autoconservaccedilatildeo e
tambeacutem crises no esforccedilo para defender valores e razotildees de viver (cf EM 2005
p32) Por isso ele acredita que seja qual for o interesse do estudo das doenccedilas
suas variedades e histoacuteria ele natildeo pode eclipsar o interesse pelas tentativas de
compreensatildeo do papel e do sentido da doenccedila na experiecircncia humana
Todavia percebe que a partir do momento em que a sauacutede passou a dizer
respeito a um homem participante de uma comunidade social ou profissional o
sentido existencial da doenccedila desapareceu Seu sentido foi ocultado pelas
exigecircncias de uma contabilidade na medida em que passou a dizer mais respeito
ao deacuteficit orccedilamentaacuterio de uma instituiccedilatildeo do que o viver a doenccedila para o doente
Tambeacutem a sauacutede passou a ser objeto de um caacutelculo ldquoDesde entatildeo conhecemos o
checkuprdquo (EM 2005 p42) Com a multiplicaccedilatildeo dos hospitais organizados para
funcionar como maacutequinas de curar a atenccedilatildeo concedida por um meacutedico particular
a um doente particular se perdeu num espaccedilo cada vez mais preenchido por
equipamentos e regulamentos sanitaacuterios (cf EM 2005 p61) A imagem do
meacutedico haacutebil e atento de quem os doentes esperam a cura foi pouco a pouco
ocultada pela de agentes executando instruccedilotildees de um aparelho de Estado
encarregado de velar pelo direito agrave sauacutede de cada cidadatildeo em reacuteplica aos
deveres que a coletividade assume para o bem de todos (cf EM 2005 p56) Por
isso hoje ainda estamos longe de uma sauacutede medida por meio de aparelhos de
uma sauacutede livre natildeo condicionada natildeo contabilizada que natildeo eacute objeto para
aquele que se diz ou crecirc especialista da sauacutede (cf EM 2005 p44)
Natildeo sendo a cura o retorno a uma norma orgacircnica anterior Canguilhem
tambeacutem acredita que ela natildeo eacute mero efeito da terapecircutica prescrita como em
geral se ensina nas escolas meacutedicas Primeiro porque a vis medicatrix naturae
age como intermediaacuteria no processo de cura na medida em que a vida mesma
quando ameaccedilada reage criando novas normas para si Como jaacute mostrava
Hipoacutecrates nem todos os doentes tratados se curam e alguns doentes se curam
sem meacutedico (cf EM 2005 p12) Segundo porque a relaccedilatildeo intersubjetiva
meacutedico-doente interfere no processo de cura fato atestado pelo uso do meacutetodo
184
placebo e pelo poder de presenccedila do meacutedico assimilado ao do medicamento
ldquoDoravante em se tratando de remeacutedios a maneira de os dar vale mais por
vezes do que o que eacute dadordquo (EM 2005 p50) Natildeo obstante ele percebe que as
faculdades preparam mal os alunos pois fazem com que acreditem que a cura se
determina exclusivamente por intervenccedilotildees de ordem fiacutesica ou fisioloacutegica
desconsiderando a importacircncia da relaccedilatildeo ativa positiva ou negativa da relaccedilatildeo
meacutedico-doente considerada resiacuteduo arcaico de magia ou de fetichismo
A seu ver a cura eacute um acontecimento que se daacute na relaccedilatildeo entre meacutedico e
doente que nem sempre se daacute sem desentendimentos ou descompassos Ou
seja para o meacutedico do ponto de vista objetivo a cura eacute o resultado de um
tratamento validado pela enquete estatiacutestica de seus resultados mas haacute nela um
elemento subjetividade em referecircncia agrave avaliaccedilatildeo que o doente faz de seu proacuteprio
estado Haacute indiviacuteduos que apesar de objetivamente curados ainda se sentem
doentes e outros que embora ainda doentes sentem-se e comportam-se como
se estivessem curados (cf EM 2005 p60) Sendo assim o meacutedico deveria
compreender que a demanda de seus clientes pode ser apenas a de conservar
sua disposiccedilatildeo de viver sem se preocupar se os testes objetivos satildeo positivos ou
concordantes Por isso tambeacutem do ponto de vista da praacutetica meacutedica deveria valer
mais o vivido pelo sujeito vivo do que o que diz a ciecircncia do fisiologista
ldquoEacute que a sauacutede e a cura resultam de um gecircnero de discurso diferente daquele por meio do qual se aprende o vocabulaacuterio e a sintaxe nos tratados de medicina e nas conferecircncias de cliacutenicardquo (EM 2005 p59)
Em vista disso Canguilhem recorre agrave Goldstein para quem a relaccedilatildeo
meacutedico-doente natildeo eacute uma situaccedilatildeo baseada unicamente num conhecimento do
tipo da causalidade mas um debate entre duas pessoas no qual uma quer ajudar
a outra a adquirir uma estruturaccedilatildeo tatildeo conforme possiacutevel a sua essecircncia e que
portanto a tarefa do meacutedico se aproxima a do pedagogo na medida em que ele
age como um conselheiro ou guia do doente no difiacutecil caminho da cura (cf EM
2005 p64-66) Tambeacutem entendendo que a relaccedilatildeo meacutedico-doente natildeo eacute de
simples ordem instrumental de causalidade entre o gesto terapecircutico e seu
185
resultado ele contesta a ideia de que eacute possiacutevel realizar um diagnoacutestico sem a
observaccedilatildeo e a escuta do doente Aproximando a atividade meacutedica a do exegeta
propotildee entatildeo um procedimento metodoloacutegico que por influecircncia do pensamento
freudiano130 aposta na relaccedilatildeo meacutedico-paciente como integrante do processo de
cura e na interpretaccedilatildeo do sentido do sintoma para cada doente em particular
ldquoMeu meacutedico eacute aquele que aceita de modo geral que eu o instrua sobre aquilo que soacute eu estou fundamentado para lhe dizer ou seja o que meu corpo anuncia como sintoma e cujo sentido natildeo me claro Meu meacutedico eacute aquele que aceita que eu veja nele um exegeta antes de vecirc-lo como um reparadorrdquo (EM 2005 p45)
Tendo em vista tambeacutem que o entendimento sobre o patoloacutegico direciona a
terapecircutica Canguilhem destaca a importacircncia do conhecimento de seus tipos e
causas Segundo ele as doenccedilas podem ser hereditaacuterias congecircnitas ocasionais
causadas pela relaccedilatildeo do indiviacuteduo com seu meio ecoloacutegico e a seu grupo social
de vida Elas tecircm uma distribuiccedilatildeo geograacutefica e se datildeo segundo a forma das
relaccedilotildees sociais proacuteprias agraves populaccedilotildees afetadas Desta forma para compreender
sua gecircnese eacute necessaacuterio ir aleacutem de seus aspectos anatomofisioloacutegicos Todavia
embora concorde com a criacutetica ao extremismo das teorias meacutedicas enfeudadas
pelo pasteurismo e pela bioquiacutemica molecular que atribuem agraves doenccedilas
unicamente uma etiologia anatomofisioloacutegica ele tambeacutem potildee em questatildeo o que
chama de psicologismo e sociologismo na explicaccedilatildeo da gecircnese do patoloacutegico
bem como as taumaturgias de inspiraccedilatildeo psicoloacutegica e psicossocioloacutegica (cf EM
2005 p30-31)
130
Entendendo que a importacircncia da relaccedilatildeo meacutedico-paciente jaacute estava presente na medicina hipocraacutetico-galecircnica na Ideologia e racionalidade nas ciecircncias da vida Canguilhem lembra o que Freud disse sobre a medicina antiga de que o tratamento psicoloacutegico era praticamente o uacutenico de que se dispunha pois a pessoa do meacutedico era o remeacutedio principal para os doentes cuja doenccedila era em muitos casos uma intensa anguacutestia (cf I 1981 p53) Em seus Escritos sobre a medicina ele nota que a reatualizaccedilatildeo da importacircncia da relaccedilatildeo meacutedico-paciente no processo de cura deve ser creditada agrave psicanaacutelise ldquoPortanto natildeo haacute razatildeo em nos surpreender ao constatar que os meacutedicos os primeiros a considerar a cura como problema e assunto de interesse satildeo em sua maioria psicanalistas ou homens para quem a psicanaacutelise existe como instacircncia de questionamento sobre sua praacutetica e seus pressupostos ()rdquo (EM 2005 p51) Vemos assim que Canguilhem elogia Freud natildeo apenas porque seu pensamento mais se aproximou do caraacuteter axioloacutegico valorativo dos fenocircmenos vitais por incluir as noccedilotildees de conflito e polaridade na anaacutelise dos fenocircmenos psiacutequicos inconscientes mas tambeacutem por questotildees de meacutetodo por colocar a relaccedilatildeo analista-analisando como procedimento central da cliacutenica psicanaliacutetica
186
Com efeito ele questiona se devemos reconhecer apenas causalidades de
ordem socioloacutegica no aparecimento e no curso das doenccedilas ou se eacute o caso de
atribuir agrave doenccedila e agrave cura um caraacuteter psicoloacutegico como se elas fossem
exclusivamente obras do inconsciente131 No primeiro caso se as doenccedilas
derivassem apenas do bloqueio das estruturas sociais de comunicaccedilatildeo os
remeacutedios decorreriam apenas de disciplinas socioloacutegicas No segundo
dependeriam apenas de uma iniciativa de ordem psiacutequica jaacute que a apariccedilatildeo da
doenccedila neste caso decorreria de um fracasso de conduta ou de uma conduta de
fracasso (cf EM 2005 p 51-52) Acreditando na complexidade dos fatores que
concorrem para a emergecircncia do patoloacutegico ele questiona a validade de qualquer
reducionismo quando da determinaccedilatildeo da causa das doenccedilas e tambeacutem da
terapecircutica a ser indicada ldquoEm mateacuteria de reducionismo em terapecircutica o
psicologismo valeria mais do que o fisiologismordquo (EM 2005 p68)
Natildeo obstante embora acredite que eacute abusivo atribuir a todas as doenccedilas
uma gecircnese social Canguilhem afirma que devemos reconhecer a relaccedilatildeo entre
os modos de vida e a multiplicaccedilatildeo das situaccedilotildees patoloacutegicas Haacute sim doenccedilas
nas quais se deve levar em conta o status social do doente e a representaccedilatildeo que
o indiviacuteduo tem dele Por exemplo as que adveacutem da percepccedilatildeo que o indiviacuteduo
tem de seu niacutevel de inserccedilatildeo numa hierarquia de ordem profissional e cultural do
pouco reconhecimento social de suas potencialidades Assim o fato de o doente
viver a doenccedila como uma degradaccedilatildeo uma desvalorizaccedilatildeo social e natildeo apenas
como sofrimento ou reduccedilatildeo de comportamento deve ser considerado como um
dos componentes da proacutepria doenccedila O abandono de origem psicossocial pode
causar esgotamento orgacircnico propiciar a eclosatildeo de doenccedilas infecciosas e mais
ainda de afecccedilotildees relacionadas ao sistema neuroendoacutecrino como fadiga crocircnica 131
Sobre o aspecto psicoloacutegico na gecircnese e cura das doenccedilas nos Eacutetudes dacuteHistoire et de Philosophie des Sciences Canguilhem diz concordar que a consciecircncia do doente tem o poder de potencializar ou reprimir a eficaacutecia de um medicamento mas natildeo eacute o caso de atribuir ao Ccedila o poder de provocar e curar doenccedilas como defendia o meacutedico austriacuteaco Georg Groddeck pioneiro da medicina psicossomaacutetica Aqui ele novamente elogia Freud por ser mais racional e natildeo querer tratar doenccedilas como o cacircncer unicamente atraveacutes de tratamentos psicoloacutegicos e concorda com Paul Schilder autor que tem sua obra situada na intersecccedilatildeo de duas linhas de pensamento a de Freud e a de Goldstein esclarecida pela psicologia da Gestalt e pela fenomenologia para quem o aspecto psicoloacutegico da medicina eacute importante mas eacute necessaacuterio natildeo exagerar (cf E 1989 p406-408)
187
uacutelcera gastrointestinal e doenccedilas de adaptaccedilatildeo como o stress (cf EM 2005
p62)
Destarte embora ele critique a psicologia meacutedica que considera a doenccedila
como uma complacecircncia do doente ou uma situaccedilatildeo-refuacutegio ele natildeo nega o seu
fator psicoloacutegico Ele nota tambeacutem que nomear a doenccedila agrava os sintomas pelo
risco da exclusatildeo social que daiacute adveacutem tanto quanto pelo receio da consumaccedilatildeo
orgacircnica Ou seja a reaccedilatildeo de anguacutestia diante da ideia que o meio (entourage) da
pessoa doente faraacute da doenccedila tambeacutem pode ser fator agravante do seu estado de
mal
ldquoEncontramo-nos aqui na fronteira nebulosa entre a medicina somaacutetica e a medicina psicossomaacutetica ela proacutepria assediada pela psicanaacutelise Aqui o inconsciente estaacute em questatildeo tal como as teacutecnicas proacuteprias para fazecirc-lo falar a fim de saber lhe responderrdquo (EM 2005 p30)
Sobre a terapecircutica desde seu Ensaio sobre alguns problemas relativos ao
normal e ao patoloacutegico ele jaacute advertia que na ausecircncia de um modelo ideal eacute o
vivente singular que deve fornecer a norma de sua atividade restauradora quando
se trata da sauacutede humana a medida ou o criteacuterio de normalidade e anormalidade
deve ser procurado na histoacuteria de cada um (cf NP 1990 p259) Com isso a
terapecircutica deve ser definida como uma atividade normativa que visa agrave cura de
um indiviacuteduo concreto consciente quer dizer como uma accedilatildeo voltada agrave
emergecircncia de uma nova ordem vital traduzida por ele como um voltar a passar
bem Aleacutem disso jaacute alertava os meacutedicos sobre a artificialidade da identificaccedilatildeo da
doenccedila a um conjunto de sintomas e da busca da causa dos efeitos sintomaacuteticos
nos mecanismos funcionais parciais somadas agrave ignoracircncia de suas complicaccedilotildees
e ao esquecimento de aquilo que os torna patoloacutegicos eacute sua relaccedilatildeo de inserccedilatildeo
na totalidade indivisiacutevel de um comportamento individual (cf NP 1990 p65)
Tambeacutem jaacute considerava que para a compreensatildeo do patoloacutegico eacute
necessaacuterio ir aleacutem de sua base anatomofisoloacutegica ateacute porque em alguns casos
pode nem haver uma lesatildeo orgacircnica identificada como causa da doenccedila Exemplo
disso o fenocircmeno da dor-doenccedila mostra que eacute necessaacuterio admitir que a dor
188
possa ter um sentido vital sem que tenha um oacutergatildeo especiacutefico de referecircncia que
tenha um valor enciclopeacutedico de informaccedilatildeo do tipo topograacutefico ou funcional Mais
do que um impulso nervoso percorrendo um feixe de nervos sendo resultante de
um conflito do indiviacuteduo com seu meio ela eacute um fenocircmeno global que soacute tem
sentido ao niacutevel da individualidade humana concreta
ldquoParece-nos de importacircncia capital que o meacutedico proclame que o homem faz sua dor ndash como faz uma doenccedila ou como faz seu luto ndash em vez de dizer que ele recebe ou sofre essa dor Inversamente considerar a dor como uma impressatildeo recolhida num ponto do corpo e transmitida ao ceacuterebro eacute supor que ela seja toda constituiacuteda como tal sem qualquer relaccedilatildeo com a atividade do paciente que a senterdquo (NP 1990 p72-73)
Tambeacutem jaacute criticava a superficialidade das prescriccedilotildees meacutedicas pautadas
no desconhecimento das condiccedilotildees socioeconocircmicas de vida do doente
ldquoAs prescriccedilotildees do bom senso meacutedico satildeo tatildeo familiares que nelas natildeo se procura nenhum sentido profundo E no entanto eacute aflitivo e difiacutecil obedecer ao meacutedico que diz ldquoPoupe-serdquo ldquoEacute faacutecil dizer para me cuidar mas tenho minha casa para cuidarrdquo dizia por ocasiatildeo de uma consulta no hospital uma dona-de-casa que natildeo tinha nenhuma intenccedilatildeo irocircnica ou semacircntica de dizer esta frase Uma famiacutelia significa a eventualidade de um marido ou de um filho doente da calccedila rasgada que eacute preciso remendar agrave noite quando o menino estaacute na cama jaacute que ele soacute tem uma calccedila de ir longe comprar o patildeo se a padaria proacutexima estiver fechada por infraccedilatildeo aos dispositivos regulamentares etc Cuidar-se como eacute difiacutecil quando se vivia sem saber a que horas se comia sem saber se a escada era iacutengreme ou natildeo sem saber o horaacuterio do uacuteltimo bonde porque se a hora tivesse passado voltava-se a peacute para casa mesmo que fosse longerdquo (NP 1990 p158-159)
Ainda aconselhava o meacutedico a recorrer a uma terapecircutica judiciosa natildeo
agindo intempestivamente sobre um comportamento orgacircnico por exemplo a
febre hipertensatildeo ou mesmo algumas alteraccedilotildees no psiquismo entendendo que
elas podem inclusive ser necessaacuterias ao processo de cura (cf NP 1990 p157)
Recomendava ter em vista quando de suas indicaccedilotildees terapecircuticas higiecircnicas e
dieteacuteticas os haacutebitos humanos relacionados aos gecircneros niacuteveis e ritmos de vida
Natildeo havendo como universalizar procedimentos a adotar um relativismo
terapecircutico considerando que cada indiviacuteduo singular vive a seu modo no seu
meio que tambeacutem expressa haacutebitos de vida coletiva
189
ldquoJaacute que as normas fisioloacutegicas definem natildeo tanto uma natureza humana mas sobretudo haacutebitos humanos relacionados com os gecircneros de vida os niacuteveis de vida e os ritmos de vida qualquer regra dieteacutetica deve levar em conta esses haacutebitosrdquo (NP 1990 p133)
Novamente em suas Novas Reflexotildees referentes ao normal e ao
patoloacutegico ele volta a afirmar que para o meacutedico fazer um diagnoacutestico natildeo basta
realizar teses de laboratoacuterio e medidas eacute preciso estudar tambeacutem o meio fiacutesico e
social a nutriccedilatildeo o modo e as condiccedilotildees de trabalho a situaccedilatildeo econocircmica e a
educaccedilatildeo das diferentes classes sociais (cf NP 1990 p243)
Portanto desde seu Ensaio colocando em questatildeo a tese de que o estado
patoloacutegico seria apenas uma variaccedilatildeo quantitativa do estado normal Canguilhem
jaacute mostrava os principais contornos de sua racionalidade meacutedico-filosoacutefica vitalista
norteadora de uma praacutetica cliacutenica centrada no indiviacuteduo concreto atravessada
pelas noccedilotildees de sentido e valor vitais Tambeacutem jaacute ensejava sua criacutetica ao modelo
biomeacutedico moderno de orientaccedilatildeo materialista mecanicista e reducionista e aos
meacutetodos diagnoacutesticos e praacuteticas terapecircuticas dele derivadas Ou seja desde este
escrito ele jaacute apontava os limites de uma racionalidade meacutedica que troca a
experiecircncia vivida pelo experimento e que considera o doente natildeo como sujeito
de sua dor-doenccedila mas como objeto de anaacutelise e reparaccedilatildeo incapaz de se
pronunciar sobre seu mal
Mas eacute nos seus Escritos sobre a medicina que ele deixa mais claro o que
significa adotar uma racionalidade meacutedica vitalista ancorada numa patologia
subjetiva referenciada a um indiviacuteduo concreto De modo a natildeo ser acusado de
irracionalista em ldquoAs doenccedilasrdquo ele mostra estar ciente de que haacute doenccedilas que natildeo
se acessa passando pelo doente e que satildeo desconhecidas pelo cliacutenico observador
de sinais espontacircneos ou fabricados (cf EM 2005 p27) Ou seja ele natildeo quer
que o meacutedico abra matildeo do uso dos meacutetodos objetivos de investigaccedilatildeo diagnoacutestica
e se oriente exclusivamente pelo ponto de vista do doente O que ele critica eacute que
os exames que deveriam servir para o meacutedico se certificar do diagnoacutestico agora
satildeo o uacutenico meio de realizaacute-lo e seus resultados o uacutenico referencial de conduccedilatildeo
190
do tratamento em desconsideraccedilatildeo da forma como o indiviacuteduo identifica o que o
faz sofrer e como qualifica sua existecircncia
Todavia eacute principalmente em seus Eacutetudes dacuteHistoire et de Philosophie des
Sciences na seccedilatildeo Meacutedecine que Canguilhem faz uma apresentaccedilatildeo da
racionalidade meacutedico-cientiacutefica moderna pautada numa patologia objetiva base
de uma nosologia abstrata Sem desconsiderar as contribuiccedilotildees desta
racionalidade para a eliminaccedilatildeo das doenccedilas e para o aumento da expectativa de
vida ele procura apontar suas limitaccedilotildees e os problemas por ela gerados como o
excesso de ativismo meacutedico a medicalizaccedilatildeo crescente da populaccedilatildeo e os
dilemas eacuteticos relacionados agrave audaacutecia terapecircutica que as novas teacutecnicas meacutedicas
e ciruacutergicas incitam
Aleacutem disso ele tenta responder agraves provaacuteveis objeccedilotildees a sua racionalidade
como o subjetivismo na definiccedilatildeo do patoloacutegico e mostrar que seu pensamento
meacutedico-filosoacutefico apesar de estar centrado no indiviacuteduo natildeo inviabiliza praacuteticas de
sauacutede puacuteblica ou de modo mais preciso de salubridade puacuteblica mas apenas
aponta o problema da manutenccedilatildeo nelas da ideologia higienista de controle da
sauacutede das populaccedilotildees ao tempo em que natildeo deixaram de monitorar
comportamentos coletivos e de querer normalizaacute-los impondo regras higiecircnicas
dieteacuteticas e modos padronizados de vida saudaacutevel
Com efeito em ldquoO estatuto epistemoloacutegico da medicinardquo ele procura
responder agrave objeccedilatildeo de que sua criacutetica agrave medicina cientiacutefica resvalaria num
irracionalismo e tenta esclarecer o que significa exatamente dizer que em sua
praacutetica o meacutedico deve jogar o jogo da vida Aqui apoacutes apresentar o processo de
desindividualizaccedilatildeo da doenccedila como a principal caracteriacutestica da pesquisa
cientiacutefica do patoloacutegico e fazer uma distinccedilatildeo entre medicina como aplicaccedilatildeo de
uma ciecircncia e como ciecircncia aplicada conclui que ancorada numa ciecircncia da vida
a medicina natildeo perderia seu estatuto epistemoloacutegico ainda que natildeo identificada agrave
aplicaccedilatildeo das ciecircncias puras ou fundamentais das quais se beneficia No terreno
da indeterminaccedilatildeo e da contingecircncia trabalhando com a vida ela se colocaria
mais no campo da probabilidade do que da certeza Assim conservando o rigor
191
teoacuterico dos conhecimentos que empresta para a realizaccedilatildeo de seu projeto
terapecircutico sem deles ser escrava a medicina nada perderia de sua dignidade ao
transgredir eventualmente o saber advindo da pesquisa cientiacutefica-experimental (cf
E 2012 p 468)
No artigo ldquoPuissance et limites de la rationaliteacute em meacutedecinerdquo como que
respondendo agrave objeccedilatildeo de que sua criacutetica agrave noccedilatildeo de patologia objetiva eacute
irracional esclarece que se defende uma patologia subjetiva eacute na medida em que
o meacutedico natildeo pode ignorar a queixa do doente e a representaccedilatildeo subjetiva das
causas de seu mal
ldquoEacute necessaacuterio admitir que o doente eacute mais do que um terreno singular no qual a doenccedila se enraiacuteza ele eacute mais que um sujeito gramatical qualificado por um atributo emprestado da nosologia do momento O doente eacute um Sujeito capaz de expressatildeo que se reconhece como Sujeito em tudo que apenas se pode designar por possesivos sua dor e a representaccedilatildeo que ele faz dela sua anguacutestia sua esperanccedila e seus sonhosrdquo (E 1989 p408-409)
Ou seja Canguilhem apenas acredita que o meacutedico natildeo pode ignorar o ponto de
vista do sujeito assistido mesmo quando este diz estar com uma doenccedila e ele natildeo
encontra objetivamente doenccedila alguma Mesmo que ela lhe pareccedila uma ilusatildeo
ela deve ser reconhecida em sua autenticidade Ele deve sempre levar em conta a
opiniatildeo do doente sobre seu mal mesmo que por vezes tenha que substituir a
representaccedilatildeo que faz dele pelo que a ciecircncia reconhece como a verdade de sua
doenccedila Aleacutem disso Canguilhem ressalta que do mesmo modo que natildeo eacute possiacutevel
anular a dimensatildeo subjetiva da experiecircncia vivida pelo doente tambeacutem natildeo haacute
como homogeneizar e uniformizar a atenccedilatildeo e a atitude do meacutedico para com ele
dada sua singularidade constitucional
Em ldquoTherapeutique Experimentation Responsabiliteacuterdquo considerando o
caraacuteter empiacuterico da cliacutenica meacutedica ele fala do espiacuterito antifiacutesico que anima as
praacuteticas meacutedicas na atualidade no sentido de negaccedilatildeo da natureza (physis) ou
de modo mais preciso das normas singulares de sauacutede e tal ou tal doente A seu
ver em decorrecircncia da desnaturaccedilatildeo (deacute-naturation) do corpo humano a
medicina chega ateacute mesmo a despossuir o doente de sua existecircncia orgacircnica
192
proacutepria impondo normas anocircnimas julgadas superiores agraves individuais e
espontacircneas (cf E 1989 p384) Assim tendo em vista que eacute sempre na urgecircncia
que o meacutedico costuma tomar suas decisotildees e a individualizaccedilatildeo proacutepria agrave mateacuteria
da qual tratam que se presta mal ao conhecimento more geomeacutetrico ele defende
a necessidade de uma praacutetica meacutedica responsaacutevel que aceite experimentar de
modo a dar conta da singularidade de cada doente ldquouma medicina preocupada
com o homem em sua singularidade soacute pode ser uma medicina que experimentardquo
(E 1989 p389)
Acreditando entatildeo que tratar eacute em algum grau realizar uma experiecircncia
Canguilhem salienta que deve haver no meacutedico um senso de responsabilidade
moral e profissional rigorosamente sancionada ldquoReivindicar o dever da
experimentaccedilatildeo cliacutenica eacute aceitar todas as exigecircncias intelectuais e morais Ora
segundo nossa opiniatildeo elas satildeo esmagadorasrdquo (E 1989 p390) Para isso seria
necessaacuterio que as escolas meacutedicas ensinassem aos estudantes antes de
qualquer coisa suas atribuiccedilotildees e o sentido de sua tarefa futura Assim uma
verdadeira pedagogia deveria incluir obrigatoriamente uma propedecircutica meacutedica
especiacutefica na qual a psicologia e a deontologia meacutedicas se justificariam diante do
fato de que cuidar eacute sempre decidir em proveito da vida alguma experiecircncia (cf
E 1989 p391)
Contudo ele diz notar que com a hegemonia da racionalidade biomeacutedica
moderna o ensino meacutedico passou a privilegiar os aspectos teacutecnico-cientiacuteficos da
profissatildeo em detrimento da deontologia da consideraccedilatildeo dos aspectos
bioafetivos e psicossocioloacutegicos da doenccedila e da reflexatildeo sobre as condiccedilotildees
sociais e legais do exerciacutecio da praacutetica meacutedica na sociedade Ele diz ficar
estupefato com o fato de os cursos de medicina privilegiarem o ensino da
composiccedilatildeo quiacutemica da saliva e o ciclo vital das amebas intestinais das baratas de
cozinha e tratarem tatildeo pouco ou mesmo nem tratarem da psicossociologia da
doenccedila da psicologia do doente da significaccedilatildeo vital da doenccedila dos deveres do
meacutedico em relaccedilatildeo ao doente ndash e natildeo somente em relaccedilatildeo a seus colegas de
profissatildeo (E 1989 p390) Ele chega a ficar ateacute mesmo escandalizado com a
aplicaccedilatildeo de exames de seleccedilatildeo de alunos aptos para continuarem os estudos
193
meacutedicos nos quais os criteacuterios se resumem ao conhecimento de ciecircncias
fundamentais (fiacutesica quiacutemica biologia) e natildeo o sentido de responsabilidades de
sua tarefa futura e a essecircncia da atividade meacutedica - que eacute a defesa da vida (cf E
1989 p391)
Aleacutem disso ainda no mesmo escrito ao tratar da aceleraccedilatildeo das invenccedilotildees
teacutecnicas e da raacutepida incorporaccedilatildeo destas novidades na praacutetica meacutedica ele nota
primeiro que a crise mais aguda da medicina se daria hoje por conta da
diversidade de opiniotildees relativas agrave atitude e deveres do meacutedico diante das
possibilidades terapecircuticas abertas pelos resultados das pesquisas laboratoriais
pela produccedilatildeo de antibioacuteticos e vacinas intervenccedilotildees ciruacutergicas de restauraccedilatildeo
enxerto e proacutetese e aplicaccedilatildeo no organismo de corpos radioativos Colocando em
questatildeo os problemas da audaacutecia terapecircutica que as novas teacutecnicas meacutedicas e
ciruacutergicas possibilitam e a tecnocracia meacutedica expliacutecita de usar a experimentaccedilatildeo
terapecircutica em nome do direito que todo indiviacuteduo tem sobre seu organismo
Canguilhem sem querer adotar uma postura reacionaacuteria diz acreditar que a
medicina natildeo deve rejeitar em defesa da vida os benefiacutecios que estas inovaccedilotildees
trazem mas nos alerta sobre perigos de privilegiar as novidades em relaccedilatildeo ao
uso e sobretudo sobre os interesses coorporativos e econocircmicos que estatildeo por
traacutes da incorporaccedilatildeo delas ldquoNatildeo eacute somente a razatildeo que tem suas astuacutecias os
interesses tambeacutem tecircm as suasrdquo (E 1989 p384)
Na mesma direccedilatildeo em ldquoPuissance et limites de la rationaliteacute em meacutedecinerdquo
diz que a medicina eacute campo teoacuterico-praacutetico de produccedilatildeo de saber e de exerciacutecio
de poder no qual deveres e benefiacutecios estatildeo em jogo Com vaacuterias facetas para
os acadecircmicos ela eacute uma ciecircncia para os meacutedicos praacuteticos que atuam no hospital
uma teacutecnica para a sociedade um direito a ser reivindicado para o Estado e para
o laboratoacuterio farmacecircutico a aacuterea de escoamento de seus novos produtos
Aqui ele nota que a revoluccedilatildeo terapecircutica dada pela invenccedilatildeo da
farmacoterapia cientiacutefica e pela vulgarizaccedilatildeo das novidades organizada por
aqueles que a exploram gerou na sociedade um comportamento cultural de
impaciecircncia de cura e frenesi por inovaccedilotildees farmacoloacutegicas A crenccedila no
194
progresso da racionalidade meacutedica fez com que houvesse uma confusatildeo entre
valor de uso e uacuteltimo grito e uma cobranccedila cada vez maior da sociedade de
resolutividade por parte os serviccedilos de sauacutede puacuteblica com pouca toleracircncia em
relaccedilatildeo agrave impotecircncia meacutedica diante de certas doenccedilas O resultado disso foi a
conversatildeo do apelo pateacutetico em reivindicaccedilatildeo ou direito de ter sua sauacutede
garantida pelo Estado numa maior obstinaccedilatildeo terapecircutica e numa medicalizaccedilatildeo
crescente da populaccedilatildeo ldquoEacute incontestaacutevel que os imperativos da farmacovigilacircncia
em meacutedio e longo prazos podem ceder diante do entusiasmo e do interesserdquo (E
1989 p402-403)
Apontando o quanto a medicalizaccedilatildeo excessiva eacute nociva para a sauacutede por
fragilizar a resistecircncia orgacircnica natural sem contar a possibilidade da iatrogenia
Canguilhem diz acreditar que a questatildeo natildeo eacute desmedicalizar radicalmente a
sociedade mas agir com cautela dosando os riscos e benefiacutecios do uso dos
medicamentos e da realizaccedilatildeo dos atos ciruacutergicos Por exemplo ele natildeo nega que
o antibioacutetico seja a invenccedilatildeo mais revolucionaacuteria da histoacuteria da terapecircutica mas
aponta os riscos de natildeo eliminaccedilatildeo do agressor pelo medicamento e a
consequente ocorrecircncia de mutaccedilotildees que o tornaria mais resistente132
Vemos entatildeo como desde seu Ensaio Canguilhem faz uso de sua
racionalidade vitalista para operar sua criacutetica agrave medicina moderna e se inscrever
nos debates meacutedico-cientiacuteficos sobre a formaccedilatildeo pesquisa e praacuteticas em sauacutede
Colocando em cena problemas que ainda estatildeo longe de serem resolvidos seu
pensamento meacutedico-filosoacutefico por seu caraacuteter propositivo aponta algumas saiacutedas
e nos instiga a novas reflexotildees Sua discussatildeo sobre patologia objetiva e
subjetiva por exemplo antecipa as recentes discussotildees sobre a medicina
baseada em evidecircncias e a medicina baseada em narrativas assim como as
criacuteticas que faz ao hospital como lugar de objetivaccedilatildeo ou desindividualizaccedilatildeo do
132
Tambeacutem em seus Escritos sobre a medicina criticando o que chama de doenccedila obsessiva pela sauacutede ele igualmente trata do problema natildeo soacute do uso excessivo de antibioacuteticos que pode ter por consequecircncia o aparecimento de microacutebios ainda mais resistentes mas tambeacutem da praacutetica generalizada de vacinaccedilotildees Ainda fala que a multiplicaccedilatildeo de atos meacutedicos e ciruacutergicos nas sociedades industriais de alta tecnologia de proteccedilatildeo sanitaacuteria tambeacutem pode aumentar os riscos de fragilizaccedilatildeo dos mecanismos bioloacutegicos de resistecircncia agraves doenccedilas (cf EM 2005 p26-27)
195
doente e de tratamento no anonimato satildeo problemas que as poliacuteticas de
humanizaccedilatildeo dos serviccedilos de sauacutede ainda hoje procuram solucionar133 Mesmo
suas anaacutelises sobre o ambiente e as relaccedilotildees no trabalho tambeacutem nos parecem
atuais quando realizamos reflexotildees relativas agrave sauacutede fiacutesica e mental dos
trabalhadores
Aleacutem disso a questatildeo que coloca sobre os malefiacutecios do consumo abusivo
de medicamentos e do excesso de atos ciruacutergicos sem a devida consideraccedilatildeo dos
seus riscos de imediato nos remete ao elevado nuacutemero de cirurgias bariaacutetricas
realizadas no Brasil e ao uso exorbitante de medicamentos por mulheres
sobretudo os anorexiacutegenos e os ansioliacuteticos benzodiazepiacutenicos sem contar o
nuacutemero de crianccedilas que fazem uso de medicamentos para o controle do
comportamento devido a transtorno de deacuteficit de atenccedilatildeo com hiperatividade
(TDAH)134
133
Segundo Benevides amp Passos (2005) considerando que o Homem como imagem transcendental que paira como realidade separada tem sido a garantia da normalizaccedilatildeo da classificaccedilatildeo e da definiccedilatildeo de praacuteticas modeladoras e corretivas de tudo que se afasta ou se desvia dessa figura identificatoacuteria ideal o que se quer hoje entatildeo quando se fala em humanizaccedilatildeo dos serviccedilos de sauacutede soacute pode ser um novo humanismo que sirva de base para accedilotildees natildeo mais orientadas por uma noccedilatildeo idealizada do Homem mas comprometidas com a experiecircncia singular de qualquer homem em processo contiacutenuo de humanizaccedilatildeo Neste contexto Canguilhem pode contribuir com seu pensamento sobre a sauacutede como experiecircncia de criaccedilatildeo de si e de modos de viver tomando a vida em seu movimento de produccedilatildeo de normas e natildeo de assujeitamento a elas ldquoA contribuiccedilatildeo de Canguilhem (1978) para o debate acerca da normatividade da vida eacute indispensaacutevel Este autor nos indicou como a vida se define natildeo por uma assujeitamento a normas e sim por uma produccedilatildeo delas A distinccedilatildeo proposta entre normalidade e normatividade daacute a direccedilatildeo para este debate acerca do tema da humanizaccedilatildeo como experiecircncia concreta de um homem em processo de produccedilatildeo de si e de sua sauacutede Por humanizaccedilatildeo entendemos portanto menos a retomada ou revalorizaccedilatildeo da imagem idealizada do Homem e mais a incitaccedilatildeo a um processo de produccedilatildeo de novos territoacuterios existenciaisrdquo (Benevides amp Passos 2005 p570) Cf BENEVIDES R PASSOS E A humanizaccedilatildeo como dimensatildeo puacuteblica das poliacuteticas de sauacutede Ciecircnc sauacutede coletiva [online] 2005 vol10 n3 pp 561-571
134 Cada vez mais os diagnoacutesticos incidem sobre a infacircncia e a adolescecircncia patologizando
comportamentos proacuteprios a estas fases da vida sem a devida identificaccedilatildeo dos fatores contextuais familiares e culturais que os geram Como exemplo de acordo com o Manual Diagnoacutestico e Estatiacutestico de Transtornos Mentais ndash DSM IV (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders IV) no TDAH a hiperatividade pode manifestar-se por inquietaccedilatildeo ou remexer-se na cadeira por natildeo permanecer sentado quando deveria por correr ou subir excessivamente em coisas quando isto eacute inapropriado por dificuldade em brincar ou ficar em silecircncio em atividades de lazer por frequentemente parecer estar a todo vapor ou cheio de gaacutes ou por falar em excesso Os bebecircs e preacute-escolares com este transtorno diferem de crianccedilas ativas por estarem constantemente irrequietos e envolvidos com tudo agrave sua volta eles andam para laacute e para caacute movem-se mais raacutepido que a sombra sobem ou escalam moacuteveis correm pela casa e tecircm dificuldades em participar de atividades sedentaacuterias em grupo durante a preacute-escola As crianccedilas
196
Aleacutem disso atraveacutes da reflexatildeo que faz nos seus Eacutetudes sobre os jogos de
interesse que estatildeo por traacutes da proliferaccedilatildeo de diagnoacutesticos e suas medicaccedilotildees
dado o atrelamento da cliacutenica meacutedica agrave induacutestria farmacecircutica ele nos faz pensar
se hoje o profissional meacutedico natildeo se tornou um garoto-propaganda dos novos
produtos disponiacuteveis no mercado Chegamos a tal ponto de natildeo sabermos mais se
o remeacutedio prescrito eacute o mais apropriado para o doente ou para o par meacutedico-
induacutestria farmacecircutica ou mesmo se a doenccedila diagnosticada apareceu nas
classificaccedilotildees meacutedicas depois da invenccedilatildeo do medicamento ou seja se primeiro
ocorreu a descoberta da droga e somente depois a invenccedilatildeo cientiacutefica da
doenccedila135
Ainda a partir de suas reflexotildees sobre as pesquisas de ponta no campo
biomeacutedico sobre a rejeiccedilatildeo nos transplantes de oacutergatildeos e a possibilidade de
constituiccedilatildeo de um banco de viacutesceras disponiacuteveis agrave demanda noacutes nos
perguntamos se algumas pesquisas de fato visam o futuro da humanidade se
em idade escolar exibem comportamentos similares mas em geral com menor frequecircncia ou intensidade do que bebecircs e preacute-escolares Elas tecircm dificuldade para permanecer sentadas levantam-se com frequecircncia e se remexem ou sentam-se na beira da cadeira como que prontas para se levantarem Elas manuseiam objetos inquietamente batem com as matildeos e balanccedilam pernas e braccedilos excessivamente Com frequecircncia se levantam da mesa durante as refeiccedilotildees enquanto assistem televisatildeo ou enquanto fazem os deveres de casa falam em excesso e podem fazer ruiacutedos demasiados durante atividades tranquilas Em adolescentes e adultos os sintomas de hiperatividade assumem a forma de sensaccedilotildees de inquietaccedilatildeo e dificuldade para envolver-se em atividades tranquilas e sedentaacuterias Os indiviacuteduos com este transtorno tipicamente fazem comentaacuterios inoportunos interrompem demais os outros metem-se em assuntos alheios agarram objetos de outros pegam coisas que natildeo deveriam tocar e fazem palhaccediladas A impulsividade pode levar a acidentes (por ex derrubar objetos colidir com pessoas segurar inadvertidamente uma panela quente) e ao envolvimento em atividades potencialmente perigosas sem consideraccedilatildeo quanto agraves possiacuteveis consequecircncias (por ex andar de skate em um terreno extremamente irregular)
135 Segundo Caponi (2010) os recentes estudos sobre fisiologia do ceacuterebro base da atual neurociecircncia e da psiquiatria tecircm contribuiacutedo para a expansatildeo do uso de drogas psicotroacutepicas para um nuacutemero crescente de transtornos de humor e ansiedade Ela entende que o sonho de encontrar foacutermulas maacutegicas para resolver os problemas comportamentais ou cognitivos e para maximizar nosso potencial aumentou nos uacuteltimos anos acarretando em algo que Canguilhem natildeo podia prever o surgimento de novas patologias a partir da descoberta de novos psicotroacutepicos Acredita que poderiacuteamos repetir a mesma criacutetica de Canguilhem em O ceacuterebro e o pensamento sobre o valor das imagens de tomografia por emissatildeo ou ressonacircncia magneacutetica funcional para a compreensatildeo da sauacutede e da doenccedila mental Tambeacutem questionar a multiplicaccedilatildeo diagnoacutestica e uso abusivo de medicamentos para tratamento da depressatildeo TDAH (Transtorno de Deacuteficit de Atenccedilatildeo com Hiperatividade) e os chamados transtornos de ansiedade ofuscando ou ignorando as referecircncias necessaacuterias ao corpo subjetivo Cf CAPONI S Georges Canguilhem del cuerpo subjetivo a la localizacioacuten cerebral Salud Colectiva Buenos Aires 6(2)149-161 MayoAgosto 2010
197
querem responder agrave realizaccedilatildeo do velho sonho da medicina de conservaccedilatildeo e
bom uso da sauacutede como lembra Canguilhem ou se o interesse que estaacute por traacutes
delas natildeo eacute a possibilidade de mercantilizaccedilatildeo de seus resultados136
Sobre o ensino tanto em seus Escritos sobre a medicina quanto nos
Eacutetudes dacuteHistoire et de Philosophie des Sciences Canguilhem critica as escolas
meacutedicas que costumam desconsiderar a importacircncia da relaccedilatildeo meacutedico-doente e
dar privileacutegio aos estudos anatomofisioloacutegicos em detrimento de disciplinas que
abordam os aspectos filosoacuteficos psicoloacutegicos e socioantropoloacutegicos do processo
sauacutededoenccedila A seu ver a ultraespecializaccedilatildeo na formaccedilatildeo meacutedica natildeo apenas
fez com que o corpo fosse decomposto em partes e que fosse perdida a noccedilatildeo de
totalidade orgacircnica Tambeacutem a reduccedilatildeo anatomofisioloacutegica fez com que o doente
fosse descontextualizado de seu meio sociocultural de vida e que o meacutedico
perdesse de vista os fatores psicoloacutegicos sociais e ecoloacutegicos envolvidos na
gecircnese do patoloacutegico ignorando sua complexidade etioloacutegica Isso nos faz
questionar em que medida uma formaccedilatildeo centrada no laboratoacuterio e na sala de
anatomia habilita o profissional meacutedico a trabalhar com o vivente humano em sua
136 Tambeacutem Giroux (2010) entende que na atualidade o estatuto de doente estaacute cada vez mais ligado agraves possibilidades de tratamento e agraves descobertas e inovaccedilotildees da induacutestria farmacecircutica Daiacute sua questatildeo Se encontraacutessemos um tratamento para prolongar a vida e retardar o envelhecimento a velhice poderia ser considerada doenccedila A seu ver caracterizar um estado como patoloacutegico tem importantes consequecircncias sociais eacuteticas poliacuteticas e juriacutedicas pois tal categorizaccedilatildeo repercute no plano de investimentos e sobre a orientaccedilatildeo das pesquisas biomeacutedicas decide e justifica a adoccedilatildeo de terapecircuticas a concessatildeo de beneacuteficos e direitos especiacuteficos e no acircmbito judiciaacuterio tambeacutem decide a responsabilidade criminal Partindo da criacutetica ao conceito biomeacutedico de doenccedila realizada por Canguilhem ele tambeacutem pergunta se a definiccedilatildeo objetiva de doenccedila e da sauacutede natildeo teria alargado o campo da medicina e possibilitado o uso ideoloacutegico da noccedilatildeo de doente Ainda se haveria uma demarcaccedilatildeo natural entre o normal e o patoloacutegico tal como entende a biomedicina ou uma relatividade histoacuterica e social presidindo a categorizaccedilatildeo de um estado considerado normal ou patoloacutegico como querem os socioacutelogos historiadores antropoacutelogos filoacutesofos e mesmo alguns psiquiatras Ele acredita que haacute uma natureza construiacuteda ideoloacutegica e sociopoliacutetica pretensamente cientiacutefica e naturalista que seria usada para justificar de maneira disfarccedilada as exclusotildees sociais poliacuteticas ou morais ou ainda promover uma medicalizaccedilatildeo excessiva do domiacutenio da vida ndash na linguagem de Ivan Illich uma expropriaccedilatildeo da sauacutede e na de Foucault um biopoder Como Canguilhem ele acredita que a extensatildeo indefinida do domiacutenio da medicina e do campo do patoloacutegico eacute fortalecida pela definiccedilatildeo de sauacutede da Organizaccedilatildeo Mundial de Sauacutede (OMS) como completo estado de bem-estar fiacutesico mental e social Mas o que entender por completo bem-estar Natildeo residiria aiacute o sentido da proliferaccedilatildeo diagnoacutestica e da crescente medicalizaccedilatildeo da vida na atualidade Cf GIROUX E Apregraves Canguilhem deacutefinir la santeacute et la maladie Paris Presses Universitaires de France PUF 2010
198
integralidade e ainda ter um olhar criacutetico em relaccedilatildeo aos jogos de interesse
poliacuteticos e econocircmicos presentes no que chamamos de campo da sauacutede
Ademais seu pensamento levanta algumas questotildees sobre os dilemas
eacuteticos e a conduccedilatildeo das pesquisas envolvendo viventes humanos e natildeo humanos
pela perspectiva da chamada bioeacutetica137 Fazendo menccedilatildeo agrave cacotanaacutesia derivada
do excesso de ativismo terapecircutico por exemplo caracteriacutestica da obstinaccedilatildeo
terapecircutica em casos de terminalidade da vida138 ele daacute a entender que a
eutanaacutesia voluntaacuteria ou ateacute mesmo involuntaacuteria seria eticamente admissiacutevel
quando a vida natildeo mostrasse mais potecircncia ou forccedila de reaccedilatildeo e insistir em sua
manutenccedilatildeo apenas traria mais desgastes bioloacutegicos psicoloacutegicos e sociais do
que qualidade de vida ao doente Segundo Canguilhem isso evitaria o tormento
do doente em seus uacuteltimos momentos o que tornaria a morte ainda mais penosa
(cf E 1989 p402) Todavia eacute possiacutevel inferir a interdiccedilatildeo eacutetica da eutanaacutesia natildeo
voluntaacuteria visto que para a efetivaccedilatildeo da morte haveria a necessidade de aceite
natildeo coagido por parte do doente ou de seus familiares caso contraacuterio a accedilatildeo de
assemelharia agraves praacuteticas de extermiacutenio nazista
Pelo mesmo raciociacutenio o de consideraccedilatildeo do movimento da vida se
tomada em seu sentido exclusivamente bioloacutegico o argumento da potencialidade
valeria como justificativa para a interdiccedilatildeo da praacutetica do aborto ou mesmo do uso
de ceacutelulas-tronco embrionaacuterias em pesquisa e de descarte de embriotildees
congelados Ou seja seria possiacutevel inscrever esta questatildeo no contexto de uma
eacutetica laica de defesa da vida que para valorizaacute-la natildeo precisa sacralizaacute-la
137
Na entrevista a Franccedilois Bing e Jean-Franccedilois Braunstein no ano de 1996 quando questionado sobre sua posiccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave bioeacutetica em sua intenccedilatildeo de colocar freios na atividade cientiacutefica Canguilhem diz se surpreender ao ver seus trabalhos associados a este tema pois natildeo escreveu nada a este respeito Mas responde que natildeo eacute sistematicamente hostil a certas orientaccedilotildees de ordem bioeacutetica Ela o interessa quando eacute feita seriamente para evitar alguns excessos agrave confianccedila atribuiacuteda agrave biologia e agrave medicina para resolver algumas questotildees que satildeo mais de ordem eacutetica e poliacutetica do que de praacutetica meacutedica Cf CANGUILHEM G Entretien avec Georges Canguilhem In BING F BRAUNSTEIN J-F ROUDINESCO E (org) Actualiteacute de Georges Canguilhem Le normal et le pathologique Op cit
138 No vocabulaacuterio da bioeacutetica atual a cacotanaacutesia ou maacute morte eacute identificada agrave obstinaccedilatildeo
terapecircutica Portanto ela se opotildee agrave eutanaacutesia ou boa morte que se daria por provocaccedilatildeo (eutanaacutesia ativa) aceleraccedilatildeo (eutanaacutesia de duplo efeito) ou por omissatildeo proposital de cuidados meacutedicos (eutanaacutesia passiva ou ortotanaacutesia que significa a morte no tempo certo associada agrave filosofia dos cuidados paliativos)
199
recorrendo agrave eacutetica hipocraacutetica ou agrave moral cristatilde impliacutecita no princiacutepio primum non
nocere isto eacute que natildeo precisa lanccedilar matildeo das noccedilotildees metafiacutesico-religiosas de
Bem e de Mal para afirmar a existecircncia de valores negativos e positivos
apontados pela vida mesma Mas consideradas as dimensotildees existenciais e
sociais da vida humana a praacutetica do aborto poderia ser eticamente possiacutevel caso
a mulher consentisse mas jamais deveria ser praticado sem seu aceite como as
interrupccedilotildees eugecircnicas da gravidez por valores racistas sexistas e eacutetnicos a
exemplo das que foram realizadas durante o III Reich ou mesmo as feitas para
controle estatal da natalidade na China comunista
Ainda ao mudar o estatuto do animal apresentado por ele como vivente
natildeo humano mas como igualmente produtor de valores e normas portanto capaz
de qualificar sua existecircncia em algum acircmbito mesmo que ainda por noacutes
indefinido Canguilhem coloca em cena a problemaacutetica da experimentaccedilatildeo com
outros vivos sua eticidade e a questatildeo do especismo139 Como vimos na sua
perspectiva embora o vivente natildeo humano natildeo seja provido de linguagem ele
natildeo deixa de ser produtor de valor e de ter uma existecircncia dotada de sentido vital
ainda que a ciecircncia ignore sua dimensatildeo Aleacutem disso assim como em O normal e
o patoloacutegico em La connaissance de la vie no artigo ldquoLrsquoexperimentationrdquo ele potildee
em questatildeo a validade das pesquisas realizadas com animais visto que a
transposiccedilatildeo dos resultados obtidos com este tipo de experimentaccedilatildeo para o
homem natildeo eacute direta Desta forma conduzir pesquisas com animais exigiria
igualmente uma baliza eacutetica e ainda uma reflexatildeo criteriosa de sua necessidade
Aleacutem disso neste mesmo escrito ele aborda o problema da
experimentaccedilatildeo com humanos e as questotildees eacuteticas que ao redor desta questatildeo
gravitam ldquoo problema da experimentaccedilatildeo com humanos natildeo eacute mais um simples
problema de teacutecnica eacute um problema de valorrdquo (CV 1985 p38) Aqui aponta o
problema de delimitar a extensatildeo do conceito de experimentaccedilatildeo humana situado
no limite das intervenccedilotildees terapecircuticas e as teacutecnicas de prevenccedilatildeo higiecircnica e
139
A exemplo de outras posturas discriminatoacuterias como o sexismo e o racismo o especismo eacute entendido como a discriminaccedilatildeo por espeacutecie animal decorrente da maior importacircncia dada agrave vida humana em relaccedilatildeo agraves demais vidas
200
penal como a lobotomia e a esterilizaccedilatildeo legal Ao refletir sobre o criteacuterio de
legitimidade da experimentaccedilatildeo bioloacutegica com humanos sua transformaccedilatildeo em
cobaias experimentais lembra que historicamente indiviacuteduos desvalorizados como
socialmente desclassificados e fisiologicamente comprometidos foram utilizados
como material experimental a exemplo do que ocorrido no decorrer da II Guerra
Mundial com a retomada da antiga praacutetica de vivissecccedilatildeo de humanos
condenados agrave morte mas agora no contexto de deliacuterios racistas
Em vista disso Canguilhem diz acreditar que o problema de o homem
consentir ser objeto de seu proacuteprio saber se inscreve no debate sempre aberto
relativo ao homem como meio ou fim objeto ou pessoa e nos alerta sobre a
importacircncia do pesquisador respeitar a especificidade de seu objeto e conduzir
suas pesquisas experimentais a partir do valor de certo sentido de natureza
bioloacutegica (cf CV 1985 p38) Entendendo por natureza humana a vida concreta
em seus sentidos bioloacutegico existencial e social vemos que para ele a
consideraccedilatildeo por parte do pesquisador de que eacute necessaacuterio um consentimento por
parte daquele que seraacute sujeito de uma experimentaccedilatildeo deve passar a ser a
principal baliza eacutetica da pesquisa jaacute que assentada no valor ditado pela vida
mesma de liberdade de escolha e de resistecircncia do vivente humano ao que toma
como uma ameaccedila a sua existecircncia
Assim se mesmo o tratar eacute realizar uma experiecircncia tambeacutem na cliacutenica o
indiviacuteduo deve poder se expressar quanto agrave definiccedilatildeo de seu projeto terapecircutico e
agrave conduccedilatildeo de seu tratamento tendo a liberdade de recusar o que se contrapotildee a
seu desejo ou interesse Ademais se cada corpo subjetivo historicizado tem sua
verdade a experiecircncia do adoecimento vivida por um indiviacuteduo singular tambeacutem
pode ser fonte de conhecimentos verdadeiros dada a nova relaccedilatildeo entre physis
techneacute e episteme Quer dizer na cliacutenica o que a ciecircncia apresenta como verdade
do corpo natildeo pode sobrepujar o que o indiviacuteduo concreto traz como sua verdade
sua dor seu sofrimento seu mal Dado isso a partir de uma abordagem
qualitativa do adoecer humano centrada na escuta da fala do doente para a
realizaccedilatildeo do diagnoacutestico o meacutedico natildeo pode prescindir quando da realizaccedilatildeo da
anamnese de um meacutetodo de investigaccedilatildeo natildeo soacute da histoacuteria da doenccedila atual e
201
das pregressas mas de dados da histoacuteria de vida do indiviacuteduo que adoeceu natildeo
para patologizaacute-la desde seus primoacuterdios mas para contextualizar e compreender
as causas de seu processo de adoecimento
A partir deste mesmo ponto de vista no acircmbito da pesquisa em sauacutede
ganham destaque as metodologias de investigaccedilatildeo cliacutenico-qualitativas ndash tambeacutem
chamadas de meacutetodos compreensivo-interpretativos - que privilegiam as
narrativas pessoais ou histoacuterias de vida os sentidos e significaccedilotildees do adoecer
humano bem como os trabalhos de campo que aproximam o pesquisador da
realidade concreta de vida dos sujeitos pesquisados a fim de compreender a
multiplicidade de aspectos envolvidos em seu processo de adoecimento bem
como para identificar os recursos e suportes psicossociais com os quais podem
contar para enfrentaacute-los
Interessante notar que quando reflete sobre a complexidade etioloacutegica das
doenccedilas e dos motivos de seu agravamento embora Canguilhem diga que nem
todas as doenccedilas tem uma gecircnese social sabemos que assim como haacute doenccedilas
relacionadas ao ambiente natural ecoloacutegico haacute doenccedilas relacionadas agraves
condiccedilotildees precaacuterias de vida decorrentes da forma como uma dada sociedade se
organiza por exemplo haacute patologias especiacuteficas geradas por uma estratificaccedilatildeo
econocircmica perversa causadora de modos insalubres de vida e tambeacutem as
causadas pela maneira como se datildeo as relaccedilotildees entre os indiviacuteduos neste
contexto140 Ou seja as doenccedilas apresentam um panorama do que historicamente
faz os indiviacuteduos sofrerem e tambeacutem satildeo um retrato dos niacuteveis e dos modos de
vida da sociedade da qual faziam ou fazem parte
De fato as sociedades capitalistas liberais fixam padrotildees esteacuteticos e
socioeconocircmicos de vida que inalcanccedilaacuteveis para alguns acabam por se tornar
geradores de anguacutestia Por isso haacute inuacutemeras doenccedilas decorrentes da frustraccedilatildeo
das expectativas do indiviacuteduo quanto a sua inserccedilatildeo profissional e reconhecimento
140
O que daria certa razatildeo a Marx quando partindo da percepccedilatildeo da reproduccedilatildeo das relaccedilotildees de classe na vida familiar privada em sua anaacutelise sobre o suiciacutedio o apresenta como um entre os mil e um sintomas da luta social geral Cf MARX K Sobre o suiciacutedio (Trad Rubens Enderle e Francisco Fontanella) Satildeo Paulo Boitempo 2006
202
social exclusivamente causadas pela impossibilidade de sua identificaccedilatildeo a um
tipo social bem-sucedido Isso mostra que pode haver doenccedilas inclusive
fisioloacutegicas derivadas de um sofrimento psiacutequico deflagrado por questotildees de
ordem social atestando que pode haver tanto uma sociogecircnese das doenccedilas
psicoloacutegicas como nos quadros de ansiedade e nos transtornos de humor
(maniacuteacos depressivos e bipolares) como uma psicossociogecircnese das doenccedilas
fisioloacutegicas como exemplo nas doenccedilas derivadas do stress prolongado como as
gaacutestricas e cardiovasculares ou ateacute mesmo nos cacircnceres
Eacute certo que Canguilhem natildeo acredita que exista uma organizaccedilatildeo social
capaz de evitar o adoecimento jaacute que eacute normal ficar doente uma vez que se estaacute
vivo Tambeacutem que uma sociedade possa ser identificada a um organismo pois
nesta assimilaccedilatildeo o que domina eacute a ideia de diagnoacutestico de seus distuacuterbios
terapecircutica e medicaccedilatildeo para os males sociais mormente identificados aos
indiviacuteduos desviantes da norma (cf EM 2005 p74) No entanto se
reconhecermos a associaccedilatildeo entre os modos sociais de vida e a multiplicaccedilatildeo das
situaccedilotildees patoloacutegicas a questatildeo que se coloca eacute como a sociedade pode ser
organizada pelos seus membros de modo que favoreccedila maior qualidade de vida e
relaccedilotildees mais salutares sem que isso signifique a justificaccedilatildeo de praacuteticas sociais
de identificaccedilatildeo e patologizaccedilatildeo dos culpados de suas crises e dos abalos de sua
suposta harmonia e equiliacutebrio espontacircneos
Em suas Novas Reflexotildees e nos seus Escritos sobre a medicina ele
esclarece que apesar de uma sociedade ser organizada ela natildeo eacute orgacircnica no
sentido de uma ser caracterizada por uma auto-organizaccedilatildeo espontacircnea isto eacute
ela natildeo se estrutura sem nenhuma deliberaccedilatildeo por parte do conjunto de seus
membros Neste sentido nenhuma organizaccedilatildeo social pode ser naturalizada como
se sua finalidade fosse determinada riacutegida como a de uma maacutequina e suas leis
fossem inquestionaacuteveis como as fiacutesicas No entanto acredita que os fenocircmenos
da organizaccedilatildeo social podem imitar os da organizaccedilatildeo vital assim como
Aristoacuteteles dizia que a arte imitava a natureza ldquoA regulaccedilatildeo social tende para a
regulaccedilatildeo orgacircnica e a imitardquo (NP 1990 p226) Assim podemos ousar dizer que
pela perspectiva vitalista canguilhemiana uma sociedade pode metaforicamente
203
imitar um organismo saudaacutevel ao comportar uma diversidade de normas
socioculturais cambiantes e ensejar constantemente finalidades possiacuteveis141
Com efeito ainda no mesmo escrito associando os regimes totalitaacuterios agrave
mecanizaccedilatildeo da vida social e notando que a submissatildeo das partes ao todo a
massificaccedilatildeo e o determinismo das relaccedilotildees sociais - proacuteprios a uma sociedade na
qual os fins da coletividade satildeo rigorosamente planificados executados em
conformidade a um riacutegido programa sociopoliacutetico e que pede uma adaptaccedilatildeo
passiva dos indiviacuteduos a suas leis - afetam a sauacutede dos indiviacuteduos a exemplo da
alteraccedilatildeo da pressatildeo sanguiacutenea dos chineses sob o regime maoiacutesta ele
indiretamente aventa outras formas de organizaccedilatildeo sociopoliacutetica (cf NP 1990
p245)
Entendendo que uma organizaccedilatildeo social que tem por base a noccedilatildeo de
independecircncia ou autonomia das partes em relaccedilatildeo ao todo correlata ao
individualismo proacuteprio das sociedades democraacuteticas adeptas do modelo
sociopoliacutetico e econocircmico liberal de defesa dos interesses das liberdades civis
individuais por engendrar relaccedilotildees competitivas entre seus membros transformar
o corpo em propriedade e a sauacutede em mercadoria tambeacutem natildeo tem sido salutar
esta natildeo parece ser para ele a melhor resposta agrave desindividualizaccedilatildeo proacutepria aos
regimes totalitaacuterios142
141
Com efeito em ldquoLa question de lrsquoeacutecologie la technique ou la vierdquo Canguilhem critica a identificaccedilatildeo do meio propriamente humano conceito socioloacutegico e histoacuterico ao meio biofiacutesico pois ela procura dissimular a crise do sistema de relaccedilotildees econocircmicas de produccedilatildeo explicando-a atraveacutes de uma suposta ruptura no equiliacutebrio bioloacutegico (QE 2000 p187) O problema aqui exposto eacute o de que a naturalizaccedilatildeo do meio social acaba por justificar sistemas poliacuteticos e determinados modos de produccedilatildeo neste caso o capitalista Diante disso haacute duas saiacutedas possiacuteveis ou a incomensurabilidade entre natureza e cultura dada a legalidade natural e o indeterminismo das relaccedilotildees sociais ou a aproximaccedilatildeo entre elas possiacutevel pela existecircncia de uma normatividade vital que escapa ao determinismo da lei natural e que pode oferecer agrave vida social como sua extensatildeo maior liberdade e consequentemente maior dinamismo e flexibilidade em suas normas Assim trocando o conceito de natureza pelo de vida Canguilhem impede a naturalizaccedilatildeo do modo de produccedilatildeo capitalista de suas leis e das relaccedilotildees sociais que ele engendra abrindo a possibilidade de pensarmos outras formas de organizaccedilatildeo social de produccedilatildeo e de relaccedilotildees sociais mais condizentes com o movimento dinacircmico da vida logo mais saudaacuteveis Cf ldquoLa question de lrsquoeacutecologie la technique ou la vierdquo In DAGOGNET F Consideacuterations sur lrsquoideacutee de nature Op cit
142 Segundo Cammelli (2006) atraveacutes de sua gaya ciecircncia marxista-nietzschiana Canguilhem vecirc o
corpo social como composiccedilatildeo dinacircmica de potecircncias concretas e heterogecircneas por vezes contraditoacuterias em oposiccedilatildeo ao corpo social abstrato estaacutetico e indiferenciado do fascismo construiacutedo como uma maacutequina que apenas obedece a comandos Em oposiccedilatildeo a esta loacutegica e seu
204
Sendo assim podemos dizer que considerando a relaccedilatildeo existente entre
modelo sociopoliacutetico e econocircmico e o entendimento do que seja sauacutede e a
organizaccedilatildeo poliacutetico-administrativa das instituiccedilotildees que estatildeo encarregadas de
promovecirc-la pela oacuteptica canguilhemiana uma sociedade identificada a um
conjunto integrado de indiviacuteduos inter-relacionados e interdependentes menos
estratificada socioeconomicamente e que se modulasse menos por padrotildees ideais
e estereotipados esteacuteticos e de comportamento isto eacute que fosse mais flexiacutevel
quanto a suas formas e modos de vida mais aberta agrave autocriacutetica e agrave mudanccedila de
sua normatividade tenderia a ser menos adoecedora Nesse sentido eacute possiacutevel
falar em sociedades mais saudaacuteveis porque mais abertas agrave liberdade e agrave
criatividade normativas e orientadas pelo respeito agrave singularidade e agrave diversidade
das formas individuais e aos diferentes modos de vida cotidiana
Atraveacutes de sua perspectiva numa sociedade com este caraacuteter a medicina
abriria matildeo de ser um dos braccedilos normalizadores do Estado pois o meacutedico
resgataria sua vocaccedilatildeo para curar se recusando a assumir tarefas
regulamentadas de descoberta das pistas tratamento e de controle (cf EM 2005
p66) As instituiccedilotildees de sauacutede almejando normatividade e natildeo normalidade
deixariam de ser dispositivos sociais de imposiccedilatildeo de padrotildees e normas de vida e
se transformariam em dispositivos de resistecircncia agrave normalizaccedilatildeo e portanto
promotoras da potencializaccedilatildeo de indiviacuteduos e coletividades Para tanto os
diferentes profissionais que nelas desenvolveriam suas praacuteticas fariam suas
escolhas teoacuterico-metodoloacutegicas de modo reflexivo e criacutetico evitando os meacutetodos
normalizadores e conduziriam suas accedilotildees a partir de uma diretriz eacutetico-poliacutetica
pautada no respeito agrave vida
Assim explorando o caraacuteter propositivo de seu pensamento eacute possiacutevel
contestar a ideia de que Canguilhem privilegiaria um modelo assistencial
esquema biopoliacutetico e normalizante ele propotildee uma teoria do agir poliacutetico proacutepria diferente da do corpo social homogecircneo no qual eacute impensaacutevel e concretamente impraticaacutevel qualquer possibilidade de oposiccedilatildeo ao poder instituiacutedo Ou seja atraveacutes de sua loacutegica da resistecircncia ele sugere outras formas de resoluccedilatildeo dos conflitos que atravessam o corpo social pela via da liberaccedilatildeo da potecircncia de vida e natildeo da pulsatildeo de morte ou de indiferenciaccedilatildeo do fascismo Cf CAMMELLI M ldquoLogiche della resistenzardquo Op cit
205
individualista com ecircnfase na dimensatildeo curativa da doenccedila Segundo ele accedilotildees
de sauacutede puacuteblica de caraacuteter preventivo devem existir a exemplo das praacuteticas de
vacinaccedilatildeo e coexistir com as praacuteticas direcionadas agrave promoccedilatildeo da sauacutede
individual (cf E 1989 p411) No entanto ele alerta que as accedilotildees generalizadas
de promoccedilatildeo agrave sauacutede prevenccedilatildeo e tratamento de doenccedilas no acircmbito coletivo natildeo
resultaratildeo necessariamente um benefiacutecio a todos os indiviacuteduos considerando a
multiplicidade dos modos de vida e as diferentes idisossincrasias a exemplo das
reaccedilotildees adversas que alguns indiviacuteduos tecircm com as vacinas
Mas de modo mais fundamental eacute tendo em vista que o Estado tem poder
por meio dos serviccedilos de sauacutede puacuteblica sobre a sauacutede dos cidadatildeos que
Canguilhem salienta que os profissionais que neles trabalham devem ficar atentos
quanto agrave manutenccedilatildeo da ideologia de controle das populaccedilotildees em suas praacuteticas a
exemplo das accedilotildees sanitaacuterias higienistas herdadas da medicina social Pois a seu
ver assim como as praacuteticas de sauacutede voltadas para o indiviacuteduo as coletivas
tambeacutem natildeo devem se traduzir por accedilotildees de normalizaccedilatildeo daqueles grupos que
em sua diferenccedila ao transgredirem uma norma de comportamento social tido por
saudaacutevel natildeo satildeo vantajosos para o Estado (cf E 1989 p410)
Daiacute podemos inferir que as accedilotildees de sauacutede coletiva podem e devem
existir mas para que deixem de ser praacuteticas de controle da condiccedilatildeo fiacutesica e moral
da populaccedilatildeo elas precisam natildeo mais impor normas anocircnimas higiecircnicas e
dieteacuteticas ou inculcar padrotildees e modelos de vida saudaacutevel atraveacutes de campanhas
contra ou de conscientizaccedilatildeo pela chamada educaccedilatildeo popular em sauacutede
Seguindo outra diretriz teoacuterico-metodoloacutegica e eacutetico-poliacutetica se elas almejam
efetivamente promover ou produzir sauacutede puacuteblica devem respeitar os valores e as
diferentes formas de cuidado proacuteprias aos diferentes grupos de uma mesma
coletividade que natildeo eacute uma massa homogecircnea desprovida de saberes
tradicionais
Em termos praacuteticos se os profissionais que atuam nos serviccedilos de sauacutede
puacuteblica natildeo querem normalizar populaccedilotildees eles natildeo devem se orientar apenas
por estudos epidemioloacutegicos quantitativos e se basear na noccedilatildeo de evitaccedilatildeo dos
206
riscos agraves doenccedilas e na culpabilizaccedilatildeo dos indiviacuteduos acometidos por elas como
se eles atentassem contra a ordem social instituiacuteda Considerando as dimensotildees
socioeconocircmicas poliacuteticas e culturais relativas agraves condiccedilotildees de sauacutede da
populaccedilatildeo eles natildeo devem negligenciar os determinantes e os condicionantes
sociais da sauacutede e os aspectos ecoloacutegicos que impactam negativamente a vida
dos indiviacuteduos bem como respeitar o contexto sociocultural em que desenvolve
suas praacuteticas isto eacute os valores e normas a partir dos quais um dado grupo social
estrutura seus modos de vida cotidiana agindo em conjunto com ele com vistas agrave
criaccedilatildeo de meios mais saudaacuteveis propiciadores de qualidade de vida coletiva
Portanto para que o profissional de sauacutede natildeo mais assuma o papel de
normalizador tanto no acircmbito individual quanto coletivo eacute necessaacuterio que ele
atraveacutes de uma tomada de posiccedilatildeo natildeo somente teacutecnico-cientiacutefica mas eacutetico-
poliacutetica se recuse a fazer uso de meacutetodos de controle avaliativo do
comportamento e do estilo de vida dos indiviacuteduos e de procedimentos que
meramente corrigem e apassivam os indiviacuteduos assistidos
Resistir a assumir este papel de normalizador eacute natildeo cair no que
Canguilhem chama em Qursquoest que la Psychologie de automatismo da execuccedilatildeo
que ocorre quando o profissional de sauacutede aplica um meacutetodo sem se ter clareza
do que se faz fazendo o que se faz Isto eacute quando faz uso de procedimentos
teacutecnicos de modo acriacutetico sem levar em conta as circunstacircncias histoacutericas e os
meios sociais em que satildeo aplicados e mesmo suas implicaccedilotildees na vida dos
indiviacuteduos assistidos Por exemplo quando ele faz uso de teacutecnicas de mediccedilatildeo de
quociente de inteligecircncia (QI) que costumam ser usados para justificar processos
de estigmatizaccedilatildeo e exclusatildeo de indiviacuteduos com diferenccedilas cognitivas ou ainda
oferta tratamentos meramente corretivos para pessoas com restriccedilotildees
neuromotoras ou ainda recorre a meacutetodos coercivos nos casos de sofrimento
psiacutequico quase sempre aplicados em espaccedilos institucionais fechados
Parece entatildeo que a saiacuteda entatildeo que ele nos aponta eacute o questionamento
por parte dos profissionais de sauacutede sobre a funccedilatildeo social das instituiccedilotildees de
sauacutede para as quais trabalham se potencializaccedilatildeo ou normalizaccedilatildeo do corpo
207
subjetivo se promoccedilatildeo de sauacutede puacuteblica ou imposiccedilatildeo de haacutebitos e modos de vida
coletiva saudaacuteveis e tambeacutem sobre a validade dos meacutetodos que utilizam suas
finalidades e implicaccedilotildees uacuteltimas sobre os riscos do uso social do diagnoacutestico
para aleacutem dos fins de orientaccedilatildeo da terapecircutica e sobre a utilidade dos testes e
avaliaccedilotildees que com seus resultados quantitativos dizem pouco ou quase nada do
valor e do sentido do patoloacutegico na experiecircncia humana Ou seja uma reflexatildeo
sobre em que medida suas accedilotildees natildeo se traduzem por estrateacutegias sociais de
controle dos desviantes da norma servindo apenas para patologizar as
diferenccedilas
Com efeito em suas Novas reflexotildees referentes ao normal e ao patoloacutegico
ao tratar da questatildeo da correccedilatildeo dos erros geneacuteticos e da ciecircncia dos
geneticistas Canguilhem identifica a caccedila aos genes heterodoxos a uma
inquisiccedilatildeo geneacutetica e pergunta se a identificaccedilatildeo deles natildeo culminaria na privaccedilatildeo
da liberdade dos genitores suspeitos de os portarem de sua liberdade de gerar
Fazendo referecircncia ao Admiraacutevel mundo novo de Aldous Huxley ele jaacute
apresentava o problema do limite tecircnue existente entre a identificaccedilatildeo de
predisposiccedilotildees geneacuteticas a doenccedilas (medicina preditiva) o uso de tecnologias de
correccedilatildeo de doenccedilas de base genocircmica (terapias gecircnicas) e os meacutetodos nazistas
de discriminaccedilatildeo geneacutetica e extermiacutenio definidos hoje como neoeugenia143 Ou
143
Em sua conferencia em homenagem a Canguilhem Gros (1993) diz que com o desenvolvimento da engenharia geneacutetica foram desenvolvidas novas teacutecnicas de diagnoacutestico preacute-natal genotiacutepico tornando o feto um paciente do mesmo modo que uma crianccedila ou um adulto Hoje a dificuldade eacutetica deste trabalho reside natildeo apenas no fato de que na maior parte dos casos o tratamento para a doenccedila encontrada ainda natildeo existe mas sobretudo porque assistimos a um processo de deslizamento ou derrapagem na qual a intenccedilatildeo de cuidado pouco a pouco acaba por se transformar em eugenia Ele argumenta que a este niacutevel de precisatildeo na anaacutelise molecular do genoma a proporccedilatildeo de fetos com um traccedilo hereditaacuterio desfavoraacutevel pode vir a ser consideraacutevel A medicina preditiva iraacute inclusive tornar possiacutevel identificar fatores de risco a doenccedilas que costumam se manifestar tardiamente como Alzheimer esclerose diabetes cacircncer ou reumatismo O maior problema entatildeo seraacute decidir o que fazer com o indiviacuteduo que ainda natildeo estaacute doente mas corre o risco de vir a ser Assim a medicina preditiva se vecirc colocada entre o desejo de ver curadas as doenccedilas geneacuteticas e o eugenismo positivo que aspira agrave procriaccedilatildeo do indiviacuteduo ideal Jaacute apresentados por Canguilhem estes satildeo problemas gerados pelo fato de se examinar a doenccedila pelo prisma do reducionismo molecular e celular Qual disciplina vai fixar as fronteiras entre o normal e o patoloacutegico Como saber qual seria a boa ou a maacute mutaccedilatildeo Que atitude a moral social iraacute adotar diante de um mal gene Qual embriatildeo seria geneticamente conveniente O que fazer com o feto que natildeo estaacute em conformidade com os desejos expressos do casal Estes satildeo algumas das questotildees que a medicina geneacutetica preditiva teraacute de se a ver para que seu objetivo de diagnosticar tratar e curar as doenccedilas geneacuteticas natildeo resvale numa eugenismo de conveniecircncia Cf
208
seja ele jaacute colocava o problema da manipulaccedilatildeo geneacutetica e dos excessos em seu
uso para aleacutem das finalidades terapecircuticas144
ldquoImagina-se a vida de uma populaccedilatildeo natural como um saquinho de loto e cabe aos funcionaacuterios designados pela ciecircncia da vida verificar a regularidade dos nuacutemeros que ele conteacutem antes de se permitir aos jogadores tiraacute-los para coloca-los nos cartotildees Na origem deste sonho haacute a intenccedilatildeo generosa de poupar seres vivos inocentes e impotentes do peso atroz de representar os erros da vida Na meta de chegada deste sonho encontra-se a poliacutecia dos genes encoberta pela ciecircncia dos geneticistas No entanto natildeo se deve deduzir daiacute a obrigaccedilatildeo de adotar uma permissividade geneacutetica mas apenas a obrigaccedilatildeo de relembrar agrave consciecircncia meacutedica que sonhar com remeacutedios absolutos eacute muitas vezes sonhar com remeacutedios piores que o malrdquo (NP 1990 p255)
A questatildeo da manipulaccedilatildeo geneacutetica pede entatildeo natildeo somente um agudo
senso de responsabilidade eacutetica por parte daqueles que trabalham com medicina
preditiva e terapias gecircnicas mas tambeacutem uma reflexatildeo sobre o que significa tratar
indiviacuteduos morfogeneticamente diferentes Lembrando do elogio agrave diversidade que
faz quando de sua reflexatildeo sobre as diferentes formas de vida podemos concluir
que assistir a indiviacuteduos com alteraccedilotildees morfogeneacuteticas e restriccedilotildees neuromotoras
natildeo significa meramente corrigir e impor uma esteacutetica uma forma ideal mas sim
possibilitar o aumento de sua potecircncia de agir no seu grupo social de vida atraveacutes
de praacuteticas propiciadoras de desenvolvimento autocircnomo de atividades cotidianas -
voltadas natildeo apenas para a funccedilatildeo mas para a funcionalidade - e do uso de
GROS F Hommage agrave Canguilhem In BADIOU A (et al) Georges Canguilhem Philosophe historien des sciences Actes du colloque (6 7 8 deacutecembre 1990) Op cit
144 Para exemplificar isso Canguilhem diz que a geneacutetica passou a oferecer aos bioacutelogos a
possibilidade de conceber e de aplicar uma biologia formal e de superar as formas empiacutericas de vida criando seres experimentais segundo normas diferentes fazendo com que a norma do organismo coincida com a do caacutelculo do geneticista eugenista Segundo ele datam de 1910 as primeiras conferecircncias de HJ Muumlller geneticista ceacutelebre por suas mutaccedilotildees provocadas Muumlller advogava a obrigaccedilatildeo moral e social do homem de intervir sobre si mesmo para se elevar ao niacutevel intelectual mais alto isto eacute defendia a vulgarizaccedilatildeo do gecircnio por eugenia Tratava-se de um programa social que propunha como ideal a ser realizado uma coletividade sem classes sem desigualdades sociais em que as teacutecnicas de conservaccedilatildeo do material seminal e de inseminaccedilatildeo artificial permitiriam agraves mulheres educadas para se sentirem honradas com tal dignidade carregar em seu ventre os filhos de homens geniais como Lecircnin e Darwin Todavia o escrito do geneticista russo foi mal visto ateacute mesmo na URSS pois ele desconsiderou que a ideia de uma sociedade sem classes natildeo se harmoniza com a teoria da hereditariedade que confirma a desigualdade humana (cf NP 1990 p232-233)
209
recursos e tecnologias especiacuteficas por exemplo de comunicaccedilatildeo e mobilidade
colocadas a serviccedilo de processos inclusivos
Aleacutem de suas Novas Reflexotildees escritos como Le cerveau et la penseacutee e
Qursquoest que la Psychologie nos fazem pensar sobre a atual proliferaccedilatildeo de
diagnoacutesticos das chamadas doenccedilas mentais e sua identificaccedilatildeo cada vez mais
precoce bem como sobre sua identificaccedilatildeo a desordens neuroloacutegicas ou
geneacuteticas atraveacutes de uma leitura meramente orgacircnica dos fatores geradores de
sofrimento psiacutequico Isto eacute nos fazem questionar sobre quais os limites da
reduccedilatildeo anatomofisioloacutegica das doenccedilas mentais realizada pela psiquiatria
bioloacutegica ou biopsiquiatria e pela psicologia cognitivo-comportamental aliada agrave
neurociecircncia e sobre a eficaacutecia da resposta meramente medicamentosa quando
natildeo eletroconvulsiva (ECT) ao sofrimento psiacutequico Eles nos fazem pensar
tambeacutem sobre a existecircncia ainda hoje de praacuteticas de normalizaccedilatildeo travestidas do
cuidado em sauacutede validadas pelo poder sociopoliacutetico e meacutedico-cientiacutefico a
exemplo das accedilotildees higienistas policialescas como as internaccedilotildees involuntaacuterias e
compulsoacuterias de usuaacuterios de substacircncias psicoativas e a psiquiatrizaccedilatildeo das
problemaacuteticas sociais operada atraveacutes de diagnoacutesticos como de transtorno
desafiador opositivo145 e o uso da farmacologia comportamental em adolescentes
que cometeram atos infracionais em acordo aos pressupostos teoacutericos e
ideoloacutegicos do behaviorismo radical
Em outra trilha entatildeo defendendo a necessidade de escuta cliacutenica
interpretaccedilatildeo do sentido do sintoma e uma definiccedilatildeo de cura como satisfaccedilatildeo
subjetiva Canguilhem tambeacutem oferece outros paracircmetros metodoloacutegicos para a
assistecircncia em sauacutede mental Com efeito ao realizar sua criacutetica agrave psiquiatria
145
Segundo o Manual Diagnoacutestico e Estatiacutestico de Transtornos Mentais ndash DSM IV (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders IV) - que lista 297 patologias mentais - e a Classificaccedilatildeo Internacional de Doenccedilas - CID-10 a caracteriacutestica essencial do Transtorno Desafiador Opositivo eacute um padratildeo recorrente de comportamento negativista desafiador desobediente e hostil para com figuras de autoridade que persiste por pelo menos 6 meses e se caracteriza pela ocorrecircncia frequente de pelo menos quatro dos seguintes comportamentos perder a paciecircncia discutir com adultos desafiar ativamente ou recusar-se a obedecer a solicitaccedilotildees ou regras dos adultos deliberadamente fazer coisas que aborrecem outras pessoas responsabilizar outras pessoas por seus proacuteprios erros ou mau comportamento ser suscetiacutevel ou facilmente aborrecido pelos outros mostrar-se enraivecido e ressentido ou ser rancoroso ou vingativo
210
bioloacutegica e agrave psicologia do comportamento e sua concepccedilatildeo de sauacutede como
adaptaccedilatildeo passiva e submissatildeo ao meio ele apresenta outra concepccedilatildeo de sauacutede
psiacutequica e de cura associadas ao aumento da potecircncia do pensamento e agrave
superaccedilatildeo das determinaccedilotildees identitaacuterias impostas pelo meio social
Pela sua perspectiva neste campo a cura seria obtida atraveacutes do exerciacutecio
da capacidade de superaccedilatildeo de um processo criacutetico e pela emergecircncia de uma
nova normatividade com diferente sentido existencial positivamente qualificada
pelo indiviacuteduo e traduzida por uma satisfaccedilatildeo que soacute eacute acessada por aquele que a
vivencia natildeo podendo ser quantificada atraveacutes de instrumentos e meacutetodos
objetivos de anaacutelise Ainda se o sofrimento psiacutequico eacute o resultado de um embate
do indiviacuteduo com seu meio sociocultural (entourage) a cura como resoluccedilatildeo
saudaacutevel deste conflito tambeacutem se daria pela criaccedilatildeo de novas normas sociais
mais flexiacuteveis quanto ao acolhimento das diversas formas de organizaccedilatildeo
psiacutequica tomadas como expressatildeo das diferenccedilas subjetivas individuais146
Tambeacutem se considerarmos sua criacutetica agrave medicalizaccedilatildeo excessiva no
conjunto das praacuteticas de cuidado em sauacutede mental a medicaccedilatildeo passa a ser
entendida como um dos recursos terapecircuticos natildeo precisando ser prescrito
necessariamente em todos os casos e devendo ser utilizado com prudecircncia em
respeito ao tempo de resposta psiacutequica Caso contraacuterio o processo de reaccedilatildeo e
criaccedilatildeo de uma nova norma existencial pode ser obliterado pela remissatildeo imediata
do sintoma atraveacutes de recursos medicamentosos sem nenhum tipo de
interpretaccedilatildeo de seu sentido para o indiviacuteduo singular Com isso o medicamento
que deveria ser coadjuvante no processo de cura acaba por se transformar num
fixador normativo que ao inveacutes de promover sauacutede mental acaba favorecendo a
doenccedila do homem normalizado
146 Entendemos entatildeo que se Canguilhem elogia Foucault eacute porque ao ter proclamado a morte do homem moderno seu pensamento daacute abertura para se pensar em outras formas de humanidade Isto eacute ao afirmar o esgotamento do cogito ele abre outras possibilidades de se pensar a subjetividade a partir de diferentes modos de subjetivaccedilatildeo e de outras possibilidades de construccedilatildeo ou estetizaccedilatildeo do sujeito Cf CANGUILHEM G Mort de lrsquohomme ou eacutepuisement du cogito Op Cit
211
O indiviacuteduo inclusive poderia estar sofrendo com fato de estar fixado em
uma uacutenica norma e a experiecircncia da crise como momento de exacerbaccedilatildeo dos
sintomas poderia ser a oportunidade de constituiccedilatildeo de uma nova normatividade
psiacutequica e por conseguinte de um novo sentido existencial Ou seja com a
medicalizaccedilatildeo excessiva agindo como um normalizador psiacutequico o indiviacuteduo
acabaria por perder a oportunidade de se tornar mais normativo e portanto mais
saudaacutevel
Aleacutem disso lembrando que Canguilhem tambeacutem recusa o papel social do
hospital como espaccedilo de anaacutelise e vigilacircncia trazendo o hospiacutecio como caso
exemplar de controle seu pensamento tambeacutem acena para a necessidade de uma
mudanccedila nos modos de atenccedilatildeo em sauacutede mental natildeo somente praacutetica ou
metodoloacutegica mas tambeacutem eacutetico-poliacutetica orientada para a liberdade Isso porque
seguindo sua racionalidade nenhum indiviacuteduo pode ser prognosticado como
incapaz ou portador de uma doenccedila mental que justifique sua hospitalizaccedilatildeo
forccedilada e a privaccedilatildeo de sua liberdade de inserccedilatildeo no seu meio social de vida
ficando agrave mercecirc de uma alforria meacutedica a ser obtida pelo atestado de retorno de
sua sanidade Se como vimos a vida mesma natildeo se enquadra em uma camisa-
de-forccedila de leis ou de regras porque haveriacuteamos de tentar produzir sauacutede atraveacutes
deste tipo de procedimento
A nosso ver entatildeo seu pensamento sugere a valorizaccedilatildeo de meacutetodos ou
teacutecnicas em sauacutede mental que possibilitem a realizaccedilatildeo de uma escuta
qualificada visando o acolhimento do sofrimento da anguacutestia vivida por um
indiviacuteduo concreto com vistas agrave superaccedilatildeo do processo criacutetico instaurado pela
doenccedila e agrave emergecircncia de uma nova normatividade nos campos psiacutequico e
tambeacutem social Isso exige novas formas de organizaccedilatildeo da rede de serviccedilos de
atenccedilatildeo em sauacutede mental que garantam uma atenccedilatildeo de portas abertas e
tambeacutem uma tomada de posiccedilatildeo eacutetico-poliacutetica do profissional em relaccedilatildeo ao locus
onde suas praacuteticas seratildeo desenvolvidas como a recusa em atuar em instituiccedilotildees
nas quais o desejo e a liberdade dos indiviacuteduos natildeo sejam respeitados
212
De modo geral podemos afirmar que sua racionalidade vitalista melhor
condiz com formas de organizaccedilatildeo soacutecio-poliacutetica sanitaacuteria menos
hospitalocecircntricas constituiacutedas por uma rede de instituiccedilotildees de sauacutede abertas e
acessiacuteveis estrategicamente proacuteximas ao meio em que os indiviacuteduos vivem com
vistas ao aumento da pertinecircncia e consequentemente da eficaacutecia de suas accedilotildees
porque agora estariam socioculturalmente contextualizadas Isto eacute estaacute em
consonacircncia com a estruturaccedilatildeo de um conjunto inter-relacionado de serviccedilos
norteados pelo princiacutepio da integralidade em sauacutede que sejam multiprofissionais
possibilitando diaacutelogos inter e transdisciplinares organizados de modo que
consigam dar conta da emergecircncia das situaccedilotildees sem deixar de acolher o
sofrimento de modo individualizado e de construir projetos terapecircuticos singulares
direcionados para cada caso em particular Ou seja com um sistema de sauacutede
que mesmo em suas instituiccedilotildees hospitalares guarde o sentido primeiro da cliacutenica
de voltar-se ao leito do paciente de modo a romper o tratamento no anonimato
Eacute neste sentido entatildeo que defendemos que eacute por realizar uma oposiccedilatildeo agraves
praacuteticas de normalizaccedilatildeo em sauacutede nos acircmbitos individual e coletivo derivadas da
ainda hegemocircnica tradiccedilatildeo biomeacutedica moderna que a racionalidade vitalista
proposta por Canguilhem consegue contribuir com a medicina atual em seu
objetivo de produccedilatildeo de sauacutede Na medida em que deixa claro que a funccedilatildeo da
terapecircutica natildeo eacute o retorno agrave normalidade mas o incentivo agrave normatividade ela
traz outras orientaccedilotildees agrave formaccedilatildeo teoacuterica agrave praacutetica assistencial e mesmo para a
pesquisa em sauacutede conseguindo abrir outros horizontes teoacuterico-metodoloacutegicos e
eacutetico-poliacuteticos para a cliacutenica seja ela meacutedica psicoloacutegica ou outra transformando-
a num dispositivo de resistecircncia agrave mecanizaccedilatildeo da vida agrave normalizaccedilatildeo dos
indiviacuteduos e agrave gestatildeo sociopoliacutetica meacutedica da vida cotidiana
Em resumo na contramatildeo da racionalidade biomeacutedica mecanicista sua
racionalidade vitalista consegue subsidiar o desenvolvimento de praacuteticas
terapecircuticas natildeo orientadas pela ideia de sauacutede perfeita e tipo ideal que natildeo
tenham por objetivo a normalizaccedilatildeo de corpos e mentes mas o aumento da
normatividade e por conseguinte da potecircncia de resistecircncia vital dos indiviacuteduos
Ou seja eacute somente tendo como eixo de suas praacuteticas a vida como posiccedilatildeo de
213
valor e criaccedilatildeo de normas em suas dimensotildees bioloacutegica existencial e social e
uma ideia de sauacutede como potecircncia de superaccedilatildeo no acircmbito somaacutetico e psiacutequico e
tambeacutem como capacidade de transformar o meio em que se vive de modo que ele
engendre relaccedilotildees socioafetivas mais salutares que a cliacutenica pode ser
revitalizada natildeo mais se orientando pela ideologia de controle ou domiacutenio e se
desenredando assim das malhas da normalizaccedilatildeo das quais ainda hoje
acreditamos ela natildeo conseguiu se desvencilhar
214
CONCLUSAtildeO
Partimos da hipoacutetese de que era possiacutevel apresentar o que chamamos de
medicina filosoacutefica canguilhemiana como base para a formulaccedilatildeo de uma nova
racionalidade em sauacutede capaz de operar uma revitalizaccedilatildeo da cliacutenica
transformando-a em dispositivo de resistecircncia agraves praacuteticas de normalizaccedilatildeo Mas
considerando que Canguilhem natildeo se pocircs a tarefa de apresentaacute-la em um uacutenico
escrito nem de modo rematado para desenhaacute-la foi preciso realizar uma leitura
do conjunto de seus textos sobre medicina histoacuteria e filosofia das ciecircncias da vida
nos quais ele reflete sobre os principais conceitos que datildeo inteligibilidade agraves
praacuteticas de sauacutede - vida normal e patoloacutegico ndash e sobre a produccedilatildeo do saber e
exerciacutecio do poder meacutedicos de modo a extrair seus principais contornos
Com efeito no curso de nossa investigaccedilatildeo notamos que o pensamento
meacutedico-filosoacutefico canguilhemiano se encontra disperso no conjunto de seus
escritos e que para desenhaacute-lo seria necessaacuterio identificar as concordacircncias
conceituais e filiaccedilotildees teoacutericas impliacutecitas e expliacutecitas dentre as quais
destacamos entre outras Aristoacuteteles Hipoacutecrates Bichat Barthez Darwin
Espinosa Nietzsche Bergson Uexkuumlll Goldstein Simondon Politzer Vidal de la
Blanche Friedmann e Foucault Ainda vimos que apesar dele ter sido elaborado
no decorrer de mais de quatro deacutecadas Canguilhem manteacutem uma coerecircncia
teoacuterico-epistemoloacutegica de defesa do vitalismo em oposiccedilatildeo ao mecanicismo
claacutessico e ao reducionismo fiacutesico-quiacutemico
Mas tambeacutem e isso de modo mais fundamental percebemos que se ele
adere a esta tradiccedilatildeo meacutedico-filosoacutefica natildeo eacute somente por compartilhar com ela o
reconhecimento da originalidade do fenocircmeno vital mas eacute principalmente porque
ela se opotildee agrave ideologia de controle da natureza sustentada pela ciecircncia moderna
Ou seja se Canguilhem aposta numa racionalidade meacutedica vitalista ancorada na
capacidade de resistecircncia proacutepria agrave vida para a proposiccedilatildeo de outro logos outro
ethos e outra praacutexis para a cliacutenica natildeo eacute somente porque ela lhe parece
conceitualmente mais bem sucedida na explicaccedilatildeo da forma como se processam
215
os fenocircmenos vitais mas eacute principalmente porque ela pode nos livrar das
injunccedilotildees ideoloacutegicas de esquerda e direita de controle sobre a vida
Sendo assim eacute para fazer frente a um pensamento meacutedico de orientaccedilatildeo
materialista mecanicista e reducionista que fez com que a praacutetica cliacutenica ficasse
aprisionada num esquema de causa e efeito reduzindo a relaccedilatildeo meacutedico-paciente
a um automatismo de ordem instrumental que ele se inscreve na tradiccedilatildeo meacutedico-
vitalista Natildeo obstante apesar de se inscrever nesta tradiccedilatildeo atraveacutes de seu
vitalismo materialista antimecanicista Canguilhem elabora uma racionalidade
meacutedica singular que a despeito de tambeacutem apostar numa concepccedilatildeo de corpo
dinacircmico e na forccedila curativa da natureza (vis medicatrix naturae) por ele traduzida
pelas noccedilotildees de polaridade dinacircmica e normatividade vital possui caracteriacutesticas
proacuteprias
Atraveacutes de sua perspectiva vitalista materialista antimecanicista e
antiteleoloacutegica Canguilhem entende que ao contraacuterio de uma maacutequina o vivente
natildeo eacute uma soma de partes mas um todo natildeo apresenta uma finalidade
ontoloacutegica mas organiacutesmica ou operacional e apresenta um metabolismo
orientado para a autorreproduccedilatildeo e autoconservaccedilatildeo por autorregulaccedilatildeo
Tambeacutem julga que seus fenocircmenos natildeo podem ser reduzidos agraves leis da fiacutesico-
quiacutemica pois enquanto as leis satildeo invariaacuteveis e indiferentes as normas bioloacutegicas
satildeo variaacuteveis e flutuantes podendo receber valoraccedilotildees bioloacutegicas qualitativamente
opostas positivas ou negativas
Assim tomando a vida como mateacuteria capaz de valorar positiva e
negativamente seus proacuteprios comportamentos ele denuncia a desvalorizaccedilatildeo da
mateacuteria viva operada pela distinccedilatildeo substancial cartesiana que fez do corpo
incapaz de produccedilatildeo de linguagem e de valor e o apresenta como um todo
criador de normas e valores Com isso recusa a ideia de ineacutercia vital jaacute que o
vivente eacute capaz de reagir a tudo o que lhe ameaccedila sendo esta atividade reativa
polarizada e normativa a raiz da teacutecnica meacutedica que eacute primeiramente vital e
somente depois por extensatildeo humana
216
Tambeacutem pela mesma perspectiva aleacutem da ideia de ineacutercia vital
Canguilhem coloca em questatildeo a ideia de submissatildeo do vivente ao meio tambeacutem
de origem mecanicista Defendendo as noccedilotildees de reatividade vital e uma teoria de
constituiccedilatildeo reciacuteproca do vivente e seu meio obtida por adaptaccedilatildeo ativa para ele o
organismo natildeo estaacute jogado no meio ao qual tem que se dobrar Ao contraacuterio ele
estrutura seu meio tendo a si mesmo como centro de referecircncia A partir desta
teoria ateacute mesmo uma forma considerada anocircmala por apresentar uma diferenccedila
morfoloacutegica ou funcional pode ser considerada normal se num dado meio ela for
vitalmente vaacutelida isto eacute se conseguir ser normativa capaz de instituir novas
normas vitais quando da necessidade de superar as dificuldades que resultam de
uma alteraccedilatildeo de seu meio de vida
Desta forma sauacutede e doenccedila natildeo podem ser definidas como um estado
orgacircnico ideal e seu desvio mas como a capacidade ou natildeo de o vivente instituir
novas normas vitais quando de seu embate com seu meio de modo que o que
chamamos de vivente normal ou saudaacutevel natildeo eacute o que se manteacutem num estado
ideal de normalidade mas eacute o normativo aquele que consegue se ajustar ao
meio adaptando-se ativamente a ele seja alterando sua norma atual seja
alterando o meio tambeacutem este capaz de sofrer ajustes e modificaccedilotildees Por
oposiccedilatildeo o vivente anormal ou patoloacutegico eacute aquele que natildeo apresenta esta
capacidade de evitar ou corrigir comportamentos que lhe ameaccedilam pela
incapacidade criar novas normas vitais seja espontaneamente seja quando
instado a isso
Ademais se em sua anaacutelise filosoacutefica da vida Canguilhem apresenta o
vivente humano identificado a uma totalidade orgacircnica consciente com tendecircncia
agrave autoconservaccedilatildeo por auto-organizaccedilatildeo e com sentido vital e existencial singular
na qual a qualidade de seus processos se saudaacuteveis ou patoloacutegicos somente
podem ser pensados a partir da relaccedilatildeo que estabelece com seu meio
(entourage) ao estudar a relaccedilatildeo dos indiviacuteduos com seu meio social ele tambeacutem
daacute a sua reflexatildeo sobre a vida um tom explicitamente sociopoliacutetico Ele mostra que
quando falamos no vivente humano precisamos considerar tambeacutem sua potecircncia
imanente de criar normas sociais e de tambeacutem alteraacute-las quando isso se fizer
217
necessaacuterio Tambeacutem que haacute formas de organizaccedilatildeo sociopoliacutetica mais
adoecedoras do que outras por serem menos flexiacuteveis e normalizadoras fazendo
do corpo social uma massa alienada e apaacutetica
Sendo assim afirmamos que eacute com uma intenccedilatildeo de criacutetica filosoacutefica e
tambeacutem poliacutetica que desde seu Ensaio ele recusa o princiacutepio de
desindividualizaccedilatildeo da doenccedila principal caracteriacutestica da racionalidade biomeacutedica
moderna pautada na elucidaccedilatildeo cientiacutefico-experimental do patoloacutegico isto eacute
numa patologia objetiva que desconsidera que a doenccedila eacute antes de tudo um
pathos subjetivo que mais do que um acometimento bioloacutegico eacute uma ameaccedila a
uma existecircncia individual Isso porque entendemos que mais do que por seu
caraacuteter cientificamente equiacutevoco se ele objeta este princiacutepio eacute por ser a
homogeneizaccedilatildeo a indiferenciaccedilatildeo e a dissoluccedilatildeo das individualidades no meio
social uma caracteriacutestica dos regimes poliacuteticos repressivos e conservadores que
se sustentam atraveacutes da despotencializaccedilatildeo dos indiviacuteduos
Eacute portanto por oposiccedilatildeo aos pressupostos teoacuterico-epistemoloacutegicos mas
tambeacutem poliacutetico-ideoloacutegicos da racionalidade cientiacutefico-moderna que faz da
medicina uma ciecircncia das doenccedilas que reduz a vida a uma perspectiva
anatomofisioloacutegica desindividualiza o doente e o torna mero objeto de
intervenccedilatildeo que Canguilhem define a medicina como uma teacutecnica ou arte da cura
situada na confluecircncia de vaacuterias ciecircncias que deve se colocar a serviccedilo das
normas vitais individuais positivamente valoradas pelo sujeito doente e tomadas
por ele como sinocircnimo de sauacutede
De modo mais preciso eacute a partir de uma tomada de posiccedilatildeo teoacuterico-
epistemoloacutegica e tambeacutem eacutetico-poliacutetica que em seus Escritos sobre a medicina
ele diz ter chegado o tempo de uma criacutetica da razatildeo meacutedica praacutetica como
estrateacutegia para invenccedilatildeo de uma nova racionalidade em sauacutede que consiga fazer
frente ao modelo biomeacutedico moderno de base racionalista e cientiacutefico-
experimental associado agrave ideologia de domiacutenio e controle da natureza
caracteriacutestica da ciecircncia moderna e que encontrou na ideologia poliacutetica do nazi-
fascismo sua mais acabada expressatildeo
218
Segundo Canguilhem para furtar-se de tal orientaccedilatildeo ideoloacutegica o meacutedico
deve ter em vista que cada doente eacute uma totalidade individual consciente singular
e que portanto sua terapecircutica deve respeitar as diversas formas de vida seus
valores e normas e os diferentes modos sociais de vida cotidiana Caso contraacuterio
a medicina iraacute se transformar em um dispositivo social de normalizaccedilatildeo e o
meacutedico teraacute seu papel limitado ao de reparador de um suposto estado normal
ideal e adequado a um determinado tipo de sociedade
Assim eacute tecendo criacuteticas agrave medicina cientiacutefica moderna filha da medicina
racional e tambeacutem agrave psicologia cientiacutefica do comportamento como caso exemplar
de tecnologia poliacutetica de controle e normalizaccedilatildeo do pensamento por operar a
partir da ideia de indiviacuteduo condicionaacutevel e de sauacutede como adaptabilidade passiva
ao meio social que Canguilhem constroacutei sua racionalidade meacutedica assentada em
sua concepccedilatildeo de vida como mateacuteria dotada de potecircncia reativa e normativa
base para uma cliacutenica atravessada pelas noccedilotildees de sentido e valor que procura
fazer com que o profissional de sauacutede deixe de ser um agente de normalizaccedilatildeo de
corpos e mentes e passe a ser um incentivador da capacidade de resistecircncia da
vida
A partir destas consideraccedilotildees identificando textualmente os elementos
propositivos de seu pensamento meacutedico-filosoacutefico mostramos que sua
contribuiccedilatildeo para o ensino se daacute por exemplo a partir de sua proposta de
inclusatildeo de disciplinas nos curriacuteculos dos cursos da aacuterea meacutedica que abordem os
aspectos filosoacuteficos psicoloacutegicos e socioantropoloacutegicos do processo
sauacutededoenccedila e que mostrem a importacircncia da relaccedilatildeo meacutedico-doente no
processo de cura Aleacutem disso que a racionalidade meacutedica que propotildee fundamenta
um raciociacutenio cliacutenico que consegue abarcar a complexidade etioloacutegica das
doenccedilas e os jogos de forccedila ou poder presentes na produccedilatildeo de conhecimento
meacutedico-cientiacutefico e suas aplicaccedilotildees Ainda que ela daacute base para diferentes
praacuteticas assistenciais que natildeo visando agrave sauacutede perfeita e um modo de vida
supostamente ideal podem melhor obter o aumento da capacidade de resistecircncia
e a liberaccedilatildeo de potencialidades individuais e coletivas
219
Tambeacutem mostramos que seu pensamento meacutedico-filosoacutefico sugere tanto
na pesquisa cientiacutefica quanto na assistecircncia ao doente o uso de meacutetodos de
investigaccedilatildeo cliacutenico-qualitativos que somados agraves exigecircncias eacuteticas para o
desenvolvimento de pesquisas com viventes humanos e natildeo humanos impedem
o investigador de tratar o vivo como coisa brutalizando-o Aleacutem disso que ele daacute
abertura para refletirmos sobre outras formas de organizaccedilatildeo dos serviccedilos de
sauacutede que sejam estruturadas de modo a possibilitar o desenvolvimento de accedilotildees
individuais e coletivas natildeo orientadas pela ideologia do controle mas pela
confianccedila e respeito agrave vida o que exigiria tambeacutem outras formas de organizaccedilatildeo
social menos estratificadas e socioeconomicamente desiguais mais flexiacuteveis e
baseadas em relaccedilotildees mais solidaacuterias e por conseguinte menos competitivas e
adoecedoras
Concluiacutemos entatildeo que a racionalidade meacutedica vitalista desenhada a partir
do pensamento de Canguilhem pode trazer outras orientaccedilotildees agrave formaccedilatildeo teoacuterica
praacutetica assistencial e mesmo em pesquisa em sauacutede podendo abrir outros
horizontes teoacuterico-metodoloacutegicos e eacutetico-poliacuteticos para cliacutenica de modo a se
transformar em um dispositivo de resistecircncia agrave mecanizaccedilatildeo da vida e agrave
normalizaccedilatildeo dos indiviacuteduos e agrave gestatildeo sociopoliacutetica meacutedica da vida cotidiana Por
isso defendemos que eacute a partir de sua criacutetica agrave cliacutenica como dispositivo de
normalizaccedilatildeo que de forma construtiva o logos o ethos e a praacutexis que propotildee
pode contribuir para pocircr fim agraves praacuteticas de sauacutede tecnicamente normalizadoras
eticamente condenaacuteveis e politicamente conservadoras que julgamos ainda em
muito presentes na atualidade tanto no campo da sauacutede individual quanto na
coletiva
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YEO I-S Teacutemoignage In FAGOT-LARGEAULT DEBRU D MORANGE M (dir) HAN H-J (eacuted) Philosophie et meacutedecine en hommage agrave Georges Canguilhem (LrsquoHistoire des sicences ndash Textes et Egravetudes) Paris Vrin 2008
ZALOSZYC A Prefaacutecio In CANGUILHEM G Escritos sobre a medicina (trad Vera Avellar Ribeiro rev teacutecnica Manoel Barros da Motta) Rio de Janeiro Forense Universitaacuteria 2005
3
Para Eduardo e Marinalva
exemplos de luta e resistecircncia
4
AGRADECIMENTOS
Ao Prof Pablo Mariconda pelo apoio constante confianccedila e sobretudo por
compreender que somente eacute possiacutevel pensar em liberdade
Aos professores Vladimir Safatle Rodolfo Franco Puttini Mauriacutecio de Carvalho
Ramos Ivan Domingues e Joseacute Luis Garcia pelas contribuiccedilotildees dadas a meu
trabalho por ocasiatildeo do Exame de Qualificaccedilatildeo e Defesa
Aos membros do Grupo de Estudos de Filosofia Histoacuteria e Sociologia da Ciecircncia e
da Tecnologia (USP) em especial a Max Vicentini
Aos colegas do Departamento de Terapia Ocupacional da Universidade Federal
do Paranaacute (UFPR) pelo incentivo
Aos funcionaacuterios da Secretaria do Departamento de Filosofia em particular agrave
Geni pelo suporte operacional de uacuteltima hora
Agrave Mocircnica Gama e Christiane Siegmann pela forccedila da amizade
5
ldquoAinda estou agrave espera de que um meacutedico filosoacutefico
no sentido excepcional da palavra - um meacutedico que tenha o problema da sauacutede geral do
povo tempo raccedila humanidade para cuidar -
teraacute uma vez o acircnimo de levar minha suspeita ao aacutepice e aventurar a proposiccedilatildeo em todo
filosofar ateacute agora nunca se tratou de lsquoverdadersquo mas de algo outro digamos sauacutede
futuro crescimento potecircncia vidardquo
(Nietzsche)
6
RESUMO
MOREIRA A B Clinica e resistecircncia a medicina filosoacutefica de Georges
Canguilhem 2013 227 f Tese (Doutorado) - Faculdade de Filosofia Letras e
Ciecircncias Humanas Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 2013
Este trabalho procura apresentar atraveacutes de uma anaacutelise do conjunto das obras de
Canguilhem uma ldquocriacutetica da razatildeo meacutedica praacuteticardquo tal como sugere num de seus
escritos Vale dizer que embora ele tenha afirmado natildeo pretender renovar a
medicina procurando apenas ajudaacute-la a pensar sobre seus pressupostos e
conceitos fundamentais em nosso entender ao realizar uma criacutetica agrave hegemonia
do modelo meacutedico cientiacutefico-moderno e ao operar o desvelamento de sua
ideologia de controle da vida acabou por delinear os contornos de uma nova
racionalidade meacutedica que por se ancorar numa definiccedilatildeo de medicina como arte
que se coloca a serviccedilo da capacidade de resistecircncia vital pode vir a fazer frente
agrave mecanizaccedilatildeo da vida agrave normalizaccedilatildeo dos indiviacuteduos e agrave gestatildeo sociopoliacutetica
meacutedica da vida cotidiana Assim eacute adotando o ponto de vista canguilhemiano de
que a ideia de normalidade como normalizaccedilatildeo mais se identifica agrave medicina
cientiacutefica moderna que opera com a ideia de norma como meacutedia estatiacutestica e tipo
ideal do que a uma medicina que considera que na natureza haacute apenas
normalidade como normatividade que procuramos ao fim de nosso trabalho
vislumbrar outro horizonte para as praacuteticas e a eacutetica do cuidado em sauacutede na
atualidade
Palavras-chave medicina ndash cliacutenica ndash normalidade ndash patologia - vitalismo
7
ABSTRACT
MOREIRA A B Clinic and Resistance Georges Canguilhemrsquos philosophical
medicine 2013 227 f Thesis (Doctoral) - Faculdade de Filosofia Letras e
Ciecircncias Humanas Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 2013
This work seeks to present through the analysis of Canguilhemrsquos complete work a
ldquocritique of the practical reasoning in medicinerdquo as suggested by the author
himself Although he has not intended to renovate medicine his intention was to
help thinking about its assumptions and fundamental concepts It is believed that
by criticizing the hegemony of the modern scientific-medical model and operating
the unveiling of its ideology of control over life he ended up outlining the contours
of a new medical rationale This approach is based on the definition of medicine as
a type of art which is at the service of a vital resistance capacity This way it can
cope with the mechanization of life the normalization of individuals and
sociopolitical medical management of everyday life Thus by adopting
Canguilhemrsquos perspective the idea of normality as normalization is more related to
the modern scientific medicine that works with the idea of statistical average and
the ideal type than the medicine which considers that in nature there is only
normality as normativity At the end of this work the aim is to glimpse another
horizon for the practices and the ethics of current health care
Keywords medicine ndash clinic ndash normality ndash pathology ndash ethics ndash vitalism
8
LISTA DE ABREVIACcedilOtildeES
NP ndash Le normal et le pathologique
FCR- La Formation du concept de reacuteflexe aux XVIIe et XVIIIe siegravecles
CV - La connaissance de la vie
D - Du deacuteveloppement agrave leacutevolution au XIXe siegravecle
E - Eacutetudes dacuteHistoire et de Philosophie des Sciences
I - Ideacuteologie et rationaliteacute dans lacutehistoire des sciences de la vie
EM ndash Eacutecrits sur la meacutedecine
CP - Le cerveau et la penseacutee
MNHT - Milieu et normes de Ihomme au travail
QE- La question de lrsquoeacutecologie la technique ou la vie
9
SUMAacuteRIO
INTRODUCcedilAtildeO 10
CAPIacuteTULO I Medicina uma arte enraizada na vida 34
CAPIacuteTULO II Arte da cura ou ciecircncia das doenccedilas 82
CAPIacuteTULO III Medicina psicologia e normalizaccedilatildeo 119
CAPIacuteTULO IV A revitalizaccedilatildeo da cliacutenica 154
CONCLUSAtildeO 214
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 220
10
INTRODUCcedilAtildeO
Bem-estar eacute a simples consciecircncia de viver
e soacute seu impedimento suscita a forccedila de resistecircncia (Kant)
Nosso trabalho objetiva mostrar que Canguilhem no conjunto de seus
escritos sobre medicina histoacuteria e filosofia das ciecircncias da vida ao refletir sobre
os principais conceitos que datildeo inteligibilidade agrave praacutetica meacutedica - vida normal e
patoloacutegico ndash e sobre a produccedilatildeo do saber e exerciacutecio do poder meacutedicos acaba por
apresentar outra deacutemarche para a cliacutenica que a transforma em dispositivo de
resistecircncia agraves praacuteticas de normalizaccedilatildeo em sauacutede Com efeito como filoacutesofo e
meacutedico ele defende que a filosofia pode ajudar a medicina a pensar sobre seus
pressupostos natildeo somente pela problematizaccedilatildeo de seus conceitos
fundamentais mas tambeacutem atraveacutes do esclarecimento de que o cuidado em
sauacutede eacute um fato de natureza poliacutetica tanto quanto cientiacutefica concernindo natildeo
apenas a intervenccedilotildees de ordem teacutecnico-cientiacutefica mas tambeacutem a uma tomada de
posiccedilatildeo de caraacuteter eacutetico-poliacutetico Assim considerando a ideologia de controle que
subjaz agrave ciecircncia moderna e dada a alianccedila da terapecircutica ao imperativo da
normalidade ele acredita que eacute chegado o tempo de uma criacutetica da razatildeo meacutedica
praacutetica como estrateacutegia para invenccedilatildeo de uma nova racionalidade em sauacutede que
consiga fazer frente ao modelo biomeacutedico moderno
Em nossa trajetoacuteria de investigaccedilatildeo utilizamos como textos de referecircncia
sua tese de doutorado em medicina intitulada Essai sur quelques problegravemes
concernant le normal et le pathologique (1943) que somada a suas Nouvelles
Reacuteflexions concernant le normal et le pathologique (1963-1966) compotildeem a obra
Le normal et le pathologique sua tese em filosofia La Formation du concept de
reacuteflexe aux XVIIe et XVIIIe siegravecles (1955) as coletacircneas La connaissance de la vie
(1952) Eacutetudes dacuteHistoire et de Philosophie des Sciences (1968) Ideacuteologie et
rationaliteacute dans lacutehistoire des sciences de la vie (1977) Aleacutem destas obras
recorremos ao artigo Milieu et normes de Ihomme au travail (1947) agrave conferecircncia
11
Le cerveau et la penseacutee (1980) e agrave publicaccedilatildeo poacutestuma intitulada Eacutecrits sur la
meacutedecine (2002) que agrega artigos e conferecircncias publicados entre os anos de
1972 a 19901 A opccedilatildeo pela anaacutelise deste conjunto de obras apesar dele ter sido
elaborado ao longo de mais de quatro deacutecadas se fez necessaacuteria para que
pudeacutessemos recolher um maior nuacutemero de elementos a fim de apresentarmos os
contornos desta outra racionalidade em sauacutede que acreditamos ter sido
gradativamente desenhada por Canguilhem
A partir de uma anaacutelise destes escritos notamos que Canguilhem
acompanhando os debates meacutedicos e cientiacuteficos de seu tempo manteacutem uma
coerecircncia teoacuterico-epistemoloacutegica de defesa do vitalismo em oposiccedilatildeo ao
mecanicismo claacutessico e a seus desdobramentos posteriores2 Percebemos
tambeacutem e isso de modo mais fundamental que se ele adere a esta tradiccedilatildeo
meacutedico-filosoacutefica natildeo eacute somente por compartilhar com ela o reconhecimento da
originalidade do fenocircmeno vital Eacute tambeacutem porque ela ao contraacuterio da tradiccedilatildeo
mecanicista se opotildee agrave ideologia3 de controle da natureza sustentada pela ciecircncia
moderna Assim em nosso entender se ele natildeo vecirc problemas em ser chamado
de vitalista eacute sobretudo porque ele encontra no vitalismo uma eacutetica de respeito e
1 Segundo Zaloszyc os Escritos sobre Medicina somados aos trecircs outros textos que figuram sobre
a rubrica ldquoMedicinardquo nos Eacutetudes dacuteHistoire et de Philosophie des Sciences compotildeem a totalidade dos escritos de Canguilhem sobre o tema Seguindo de perto o trabalho bibliograacutefico criacutetico de Limoges ele acredita que eacute neste conjunto de textos que Canguilhem trata da histoacuteria e da filosofia da medicina reservando-se a fronteira sempre incerta com os estudos de fisiologia e a reflexatildeo sobre o sujeito doente Cf ZALOSZYC A Prefaacutecio In CANGUILHEM G Escritos sobre a medicina (trad Vera Avellar Ribeiro rev teacutecnica Manoel Barros da Motta) Rio de Janeiro Forense Universitaacuteria 2005
2 Com efeito Canguilhem critica tanto a concepccedilatildeo mecanicista de vida do seacuteculo XVII derivada
da fisiologia de Descartes que procura explicar o ser vivo a partir do modelo de uma maacutequina quanto agravequela que a partir dos seacuteculos seguintes procuram explicaacute-lo em termos fiacutesico-quiacutemicos como a de Lavoisier e Laplace ambas identificadas ao determinismo ou seja agrave ideia de que os fenocircmenos vitais se produzem segundo uma ordem determinada e que as condiccedilotildees de sua apariccedilatildeo seguem a lei da causalidade Sobre as diferentes formulaccedilotildees histoacutericas do mecanicismo do seacuteculo XVII ao XIX confira FREZZATTI JR W A Haeckel e Nietzsche aspectos da criacutetica ao mecanicismo no seacuteculo XIX Scientia Studia vol 1 n
o 4 2003 p435-61
3 Vale esclarecer que utilizamos a noccedilatildeo de ideologia no sentido marxista que na leitura de
Canguilhem acompanhando a de Althusser eacute um conceito que se aplica aos sistemas de representaccedilotildees que se exprimem na linguagem da poliacutetica da moral da religiatildeo e da metafiacutesica e que se apresentam como se fossem a expressatildeo do que satildeo as proacuteprias coisas enquanto satildeo de fato meios de proteccedilatildeo e defesa de um determinado sistema de relaccedilotildees dos homens entre si e dos homens com as coisas (cfI 1981 p35)
12
defesa da vida que iraacute embasar sua postura eacutetico-poliacutetica de contraposiccedilatildeo a uma
ideologia de domiacutenio da vida que encontrou no nazi-fascismo sua versatildeo mais
acabada
Com efeito para Canguilhem considerando a indissociabilidade entre
logos ethos e praacutexis a medicina ao tomar contato com a formaccedilatildeo e a praacutetica
meacutedicas de seu tempo percebe que a partir de uma orientaccedilatildeo materialista
mecanicista e reducionista a praacutetica cliacutenica ficou aprisionada num esquema de
causa e efeito entre o gesto terapecircutico e seu resultado entre a medicaccedilatildeo
utilizada e a cura obtida atraveacutes dela reduzindo a relaccedilatildeo meacutedico-doente a um
automatismo de ordem meramente instrumental Aleacutem disso nota que o
esquecimento das recomendaccedilotildees hipocraacuteticas que ele lamenta imperar nas
escolas meacutedicas natildeo significou apenas que os meacutedicos deixaram de considerar o
doente como uma totalidade orgacircnica consciente e de invocar a natureza como
providecircncia curativa mas tambeacutem acarretou a perda do sentido da ideia de defesa
eacutetica da vida inerente agrave medicina
ldquoQuer o lamentemos quer natildeo o fato eacute que hoje ningueacutem eacute obrigado para exercer a medicina a ter o menor conhecimento de sua histoacuteria Eacute faacutecil imaginar uma doutrina meacutedica tal como o hipocratismo pode produzir no espiacuterito de quem soacute conhece Hipoacutecrates pelo famoso juramento rito final doravante esvaziado de sentidordquo (EM 2005 p13-14)
Sendo assim no percurso de nossa investigaccedilatildeo para alcanccedilarmos o teor
teoacuterico-epistemoloacutegico e eacutetico-poliacutetico da criacutetica de Canguilhem agrave medicina de seu
tempo o primeiro passo foi elucidar em qual momento se deu seu interesse por
ela4 Ora sabemos atraveacutes dele mesmo como consta no prefaacutecio de seu Ensaio
sobre alguns problemas relativos ao normal e ao patoloacutegico que cursou medicina
4 Roudinesco (2007) esclarece que entre os anos 30 e 40 periacuteodo em que Canguilhem decidiu
cursar medicina em geral os filoacutesofos que optavam por estudar medicina faziam por interesse pela psicopatologia e o tratamento das doenccedilas mentais almejando retirar o saber psiquiaacutetrico do campo meacutedico e devolvecirc-lo ao domiacutenio da psicologia cliacutenica Canguilhem distanciando-se desta tradiccedilatildeo optou por um caminho pouco comum em relaccedilatildeo ao trilhado por seus colegas de formaccedilatildeo filosoacutefica Ele escolheu partir do estudo da fisiopatologia ou nosologia somaacutetica para tratar do problema do normal e do patoloacutegico mas sem deixar de por extensatildeo discutir problemas de psicopatologia ou nosologia psiacutequica Cf ROUDINESCO E Filoacutesofos na tormenta (Canguilhem Sartre Foucault Althusser Deleuze Derrida) Rio de Janeiro Zahar 2007
13
alguns anos apoacutes haver concluiacutedo o curso de filosofia esperando com isso
acercar-se dos problemas humanos concretos
ldquoNatildeo eacute necessariamente para conhecer melhor as doenccedilas mentais que um professor de filosofia pode se interessar pela medicina Natildeo eacute tambeacutem necessariamente para praticar uma disciplina cientiacutefica Esperaacutevamos da medicina justamente uma introduccedilatildeo a problemas humanos concretosrdquo (NP 1990 p16)
Ciente dos limites da pura especulaccedilatildeo filosoacutefica ele acreditava que somente uma
ldquocultura meacutedica diretardquo possibilitaria o esclarecimento dos dois problemas que
mais o interessavam o da relaccedilatildeo entre as ciecircncias e as teacutecnicas e o das normas
e do normal Isso porque a medicina por ser uma arte ou teacutecnica de instauraccedilatildeo
e restauraccedilatildeo do normal ao mesmo tempo em que possibilitaria a
problematizaccedilatildeo da ideia de que a teacutecnica deve ser a mera aplicaccedilatildeo de uma
ciecircncia tambeacutem ela por operar a partir da noccedilatildeo de normalidade permitiria uma
reflexatildeo sobre o que seria este estado normal que a terapecircutica procura instaurar
ou restabelecer
No acircmbito de seu primeiro problema para defender a anterioridade loacutegica e
cronoloacutegica da teacutecnica em relaccedilatildeo agrave ciecircncia ele procurou mostrar a precedecircncia
da teacutecnica meacutedica em relaccedilatildeo agrave ciecircncia da vida a apresentando enraizada nas
normas e valores vitais Acreditando que na vida natildeo haacute ineacutercia ou indiferenccedila
bioloacutegica para ele assim como a ciecircncia entendida como procura do
conhecimento verdadeiro surge das resistecircncias encontradas na accedilatildeo praacutetica a
medicina como arte da vida existe porque o vivente humano considera como
patoloacutegicos certos estados ou comportamentos que em relaccedilatildeo agrave polaridade
dinacircmica da vida satildeo apreendidos sob a forma de valores negativos A doenccedila
de valor vital negativo para a totalidade orgacircnica no homem como totalidade
orgacircnica consciente eacute sentida como um mal sendo que eacute este pathos o que o
leva a praticar intencionalmente teacutecnicas de autocura e autorregeneraccedilatildeo jaacute
exercidas espontaneamente pelo ldquoprimeiro meacutedicordquo que eacute a vida Assim se eacute o
pathos que condiciona o logos a medicina existe porque os homens se sentem
14
doentes e natildeo porque haacute meacutedicos dotados de conhecimento cientiacutefico que os
informam do fato de estarem com tal ou qual enfermidade
Para abordar o segundo problema a estrateacutegia canguilhemiana foi mostrar
o alcance propriamente filosoacutefico do conceito de normal questionando se o
patoloacutegico eacute idecircntico ao anormal se o normal eacute idecircntico ao satildeo e se a anomalia eacute
a mesma coisa que anormalidade Isso porque a terapecircutica retirando sua
autoridade de seu conhecimento de fisiologia como ciecircncia das leis ou das
constantes da vida normal passou a se orientar por uma determinada noccedilatildeo de
normalidade - como estado habitual dos oacutergatildeos e seu estado ideal - sem ver nela
um problema a ser elucidado Criticando uma concepccedilatildeo de normalidade como
meacutedia estatiacutestica e tipo ideal Canguilhem acredita que a fisiologia tem mais a
fazer do que tentar definir objetivamente o estado normal Ela deve reconhecer a
ldquonormatividade original da vidardquo admitir que nela haacute uma plasticidade funcional
ligada a sua capacidade de criar e infringir suas proacuteprias normas
Destarte como forma de reabrir os debates sobre um problema dado por
resolvido Canguilhem optou por fazer o exame criacutetico de uma ideia amplamente
aceita no seacuteculo XIX de que o estado patoloacutegico seria apenas ldquoexageraccedilatildeo ou
atenuaccedilatildeo dos fenocircmenos normaisrdquo isto eacute uma variaccedilatildeo quantitativa para mais
ou para menos do estado normal estado este determinado por meacutetodos
cientiacutefico-experimentais A seu ver tal tese presente nos trabalhos de Comte
(1798-1857) e de Claude Bernard (1813-1878) se encontra vinculada agrave ambiccedilatildeo
de tornar a terapecircutica cientiacutefica o que soacute seria possiacutevel se houvesse uma
definiccedilatildeo puramente objetiva do estado normal a partir da qual o patoloacutegico
pudesse ser inferido (cf NP 1990 p23)
Na contramatildeo do posicionamento do filoacutesofo e do meacutedico e fisiologista
franceses influenciado sobretudo pelos trabalhos do meacutedico Kurt Goldstein5
5 Kurt Goldstein (1878-1965) psiquiatra e neurologista de origem alematilde Eacute o autor de Der Aufbau
des Organismus obra publicada na Alemanha em 1934 e popularizada na Franccedila pelos ciacuterculos filosoacuteficos influenciados pelos trabalhos de Maurice Merleau-Ponty Em seus trabalhos ele apresenta os resultados de sua praacutetica clinica com pacientes com lesatildeo neuroloacutegica adquiridas em combate militar no periacuteodo da primeira grande guerra Sua teoria das relaccedilotildees do vivente com seu meio influenciou obras como La structure du comportement (1942) de Merleau-Ponty e o Ensaio sobre alguns problemas relativos ao normal e ao patoloacutegico (1943) de Canguilhem Cf
15
Canguilhem procurou mostrar que o estado patoloacutegico natildeo eacute uma variaccedilatildeo
quantitativa da dimensatildeo da sauacutede isto eacute simples prolongamento
quantitativamente variado do estado normal mas uma nova dimensatildeo da vida um
novo comportamento orgacircnico qualitativamente diferente do estado normal ainda
que repelido pela vida mesma
Ademais atento agrave dimensatildeo existencial do processo de adoecimento ele
toma de Goldstein a ideia de que para a compreensatildeo do patoloacutegico eacute preciso
considerar a noccedilatildeo de ser doente (Kranksein) visto que a doenccedila mais do que um
acometimento bioloacutegico eacute uma ameaccedila a uma existecircncia individual ldquoa doenccedila eacute
abalo e ameaccedila agrave existecircncia Por conseguinte a definiccedilatildeo de doenccedila exige como
ponto de partida a noccedilatildeo de ser individualrdquo (NP 1990 p148) Assim contestando
a tese do tambeacutem meacutedico Reneacute Leriche6 de que para compreender a doenccedila eacute
preciso ldquodesumanizaacute-lardquo de que no estudo do patoloacutegico o que interessa eacute a
alteraccedilatildeo anatocircmica ou o distuacuterbio fisioloacutegico ele traz para a definiccedilatildeo do
patoloacutegico o ponto de vista do doente do homem concreto consciente de sua dor
e de sua incapacidade funcional e social que vivenciando a doenccedila como um
drama de sua historia7 percebe mudadas suas relaccedilotildees de conjunto com seu meio
(entourage)
Desta forma para Canguilhem malgrado todos os esforccedilos de
racionalizaccedilatildeo cientiacutefica a medicina tem a praacutetica cliacutenica como elemento
essencial que natildeo pode ser reduzida agrave mera aplicaccedilatildeo de um conhecimento
GOLDSTEIN K La structure de lrsquoorganisme Introduction agrave la biologie agrave partir de la pathologie humaine (1951) Paris Gallimard 1983
6 Reneacute Leriche (1879-1955) meacutedico-cirurgiatildeo francecircs que realizou um conjunto de pesquisas e
reflexotildees criacuteticas sobre o fenocircmeno da dor Confira tambeacutem CANGUILHEM G ldquoLa penseacutee de Reneacute Lericherdquo In Revue Philosophique juillet-septembre 1956 p 313-317
7 Enxergamos aqui um diaacutelogo com uma tradiccedilatildeo de pensamento que recorre ao concreto em
oposiccedilatildeo ao abstracionismo filosoacutefico particularmente com o trabalho de Georges Politzer (1903-1942) pensador de origem huacutengara que participou da Resistecircncia agrave ocupaccedilatildeo nazista na Franccedila e que foi preso torturado e executado pela Gestapo em 1942 Em sua obra Criacutetica dos Fundamentos da Psicologia (1928) ele faz uma criacutetica agrave psicologia aniacutemica ou subjetiva vinculada ao mito da vida interior e agrave objetiva baseada no caacutelculo e na experimentaccedilatildeo Adotando o teatro como metaacutefora de sua psicologia concreta defende que a vida propriamente humana eacute dramaacutetica e o eu empiacuterico soacute pode ser o indiviacuteduo particular e concreto Cf POLITZER G Criacutetica dos fundamentos da psicologia a psicologia e a psicanaacutelise (Trad Marcos Marcionilo e Yvone Maria de campos Teixeira da Silva) Piracicaba UNIMEP 1998
16
sendo vista como simples subsidiaacuteria dos resultados de pesquisas nos campos da
anatomia embriologia fisiologia e psicologia Dotada de certa independecircncia ela
tem por objeto a experiecircncia da doenccedila que eacute menos um fato objetivaacutevel nas
matildeos do cientista e mais um valor para aquele que adoece Portanto mais do que
uma ciecircncia propriamente dita a medicina eacute uma arte que encontra natildeo somente
no laboratoacuterio mas na relaccedilatildeo meacutedico-doente os elementos para a compreensatildeo
do comportamento patoloacutegico pois eacute somente a cliacutenica que coloca o meacutedico em
contato com o indiviacuteduo concreto ciente de sua dor e que vivencia a anguacutestia
suscitada pela doenccedila
Vinte anos depois de ter escrito seu Ensaio em suas Novas reflexotildees
referentes ao normal e ao patoloacutegico considerando o normal um conceito
dinacircmico e polecircmico e natildeo estaacutetico e paciacutefico Canguilhem retoma seu estudo
sobre as normas orgacircnicas agora querendo esclarecer sua significaccedilatildeo atraveacutes
da confrontaccedilatildeo com as normas sociais Voltando seu interesse para o problema
da identidade entre normalidade e adaptaccedilatildeo agora ele faz uma anaacutelise criacutetica
deste conceito que em sua acepccedilatildeo original vem da atividade teacutecnica mas que a
partir do seacuteculo XIX foi introduzido natildeo soacute na biologia mas tambeacutem na psicologia
e na sociologia de forma bastante questionaacutevel pela ideia de subordinaccedilatildeo
psicossocial a ela vinculada
Assim eacute atraveacutes de uma incursatildeo no estudo da sociedade da contestaccedilatildeo
da sinoniacutemia entre adaptaccedilatildeo social e normalidade que ele complementa sua
reflexatildeo sobre as normas e o normal dando a sua discussatildeo um caraacuteter
explicitamente sociopoliacutetico com forte acento foucaultiano
Com efeito compartilhando interesses no estudo sobre as normas
Canguilhem e Foucault sofrem influecircncias reciacuteprocas Se natildeo eacute novidade a
importacircncia das reflexotildees canguilhemianas para Foucault tambeacutem sabemos por
Canguilhem mesmo que foi atraveacutes dos escritos foucaultianos que ele se viu
diante da problemaacutetica do saber-poder meacutedico e das praacuteticas de normalizaccedilatildeo
operadas pelas instituiccedilotildees sanitaacuterias Ele admite que foi a partir da leitura de
obras como Histoacuteria da Loucura e O nascimento da cliacutenica que aprendeu a
17
conhecer uma forma de anormalidade diferente da patoloacutegico-orgacircnica e a
reconhecer a existecircncia histoacuterica de um poder meacutedico duvidoso exercido pelas
vias e meios do biopoder8
Desta forma assim como Foucault se empenhou em mostrar atraveacutes de
suas pesquisas arqueogenealoacutegicas que historicamente a medicina se constituiu
como uma estrateacutegia biopoliacutetica de normalizaccedilatildeo Canguilhem natildeo desconsiderou
a relaccedilatildeo existente entre a produccedilatildeo do saber e o exerciacutecio do poder meacutedicos o
liame existente entre medicina e poliacutetica fortalecido pelo componente de natureza
social na construccedilatildeo do conhecimento sobre as doenccedilas bem como na
organizaccedilatildeo e nas praacuteticas de hospitalizaccedilatildeo (cf EM 2005 p28 E 1989 p398)
Por extensatildeo Canguilhem e Foucault entram em concordacircncia quanto agrave
criacutetica aos fundamentos da psicologia cientiacutefica9 Tambeacutem em Canguilhem o alvo
de ataque privilegiado eacute a uma psicologia entendida como o estudo objetivo do
comportamento que utiliza as teacutecnicas de condicionamento com vistas agrave
orientaccedilatildeo ou direcionamento dos indiviacuteduos no meio social (cf CP 1993 p25)
Isto eacute se ele critica a psicologia eacute por ela ter aceitado converter-se em uma
ciecircncia objetiva das atitudes reaccedilotildees e comportamentos separando-se de toda
referecircncia agrave sabedoria isto eacute da especulaccedilatildeo filosoacutefica sobre a ideia de homem
tornando-se uma ldquofilosofia sem rigor uma eacutetica sem exigecircncia e uma medicina
sem controlerdquo (cf E 1989 p 366)
Assim eacute ao se perguntar sobre quais interesses estatildeo por traacutes da
investigaccedilatildeo de nosso poder de pensar que Canguilhem traccedila a histoacuteria da
psicologia buscando o sentido de cada um de seus projetos e identifica na
8 Eacute por ocasiatildeo do evento em comemoraccedilatildeo agrave publicaccedilatildeo de Histoacuteria da Loucura tese defendida
por Foucault em 1961 a uma banca da qual foi relator que Canguilhem admite o impacto que esta obra e O nascimento da cliacutenica tiveram em suas proacuteprias reflexotildees Cf CANGUILHEM G ldquoAberturardquo In CANGUILHEM G DERRIDA J MAJOR R ROUDINESCO E Foucault Leituras da Histoacuteria da Loucura (trad Maria Ignes Duque Estrada) Relume-Dumaraacute 1994
9 Canguilhem por ocasiatildeo da defesa de tese de Foucault comenta ldquoEacute portanto a significaccedilatildeo dos
comeccedilos da psiquiatria positivista - antes da revoluccedilatildeo freudiana - o que estaacute em questatildeo no trabalho do Sr Foucault E atraveacutes da psiquiatria eacute a significaccedilatildeo do evento da psicologia positiva que passa por uma revisatildeo Natildeo seraacute motivo de surpresa que esse estudo provoque a reconsideraccedilatildeo do estatuto de lsquociecircnciarsquo da psicologiardquo (CANGUILHEM 1994 p16) In CANGUILHEM G DERRIDA J MAJOR R ROUDINESCO E Ibid
18
psicologia do comportamento a ambiccedilatildeo de tratar o homem como ldquoinstrumentordquo
por razotildees cientiacuteficas teacutecnicas mas tambeacutem econocircmicas e poliacuteticas Em vista
disso estabelecendo uma relaccedilatildeo entre psicologia do comportamento
normalizaccedilatildeo do pensamento e controle das condutas sociais desviantes
inspirado na atitude de Espinosa ele adota uma postura eacutetico-poliacutetica de
resistecircncia a tudo que impede o exerciacutecio de nossa liberdade de pensar que limita
o aumento da potecircncia do pensamento e cerceia nossos gestos de engajamento
Aleacutem disso apresentando o desenvolvimento do problema da relaccedilatildeo entre
ceacuterebro e pensamento na histoacuteria da cultura de Hipoacutecrates e Galeno ateacute o
nascimento da psicocirurgia passando pela teoria das localizaccedilotildees cerebrais a
ciecircncia do ceacuterebro e a frenologia de Gall ele conclui que a filosofia natildeo pode
deixar de se erguer contra uma psicologia que aliada agrave neurologia cerebral se
quer objetiva e que pretende instruir outras ciecircncias sobre as funccedilotildees intelectuais
para que sejam exploradas pela pedagogia pela economia e pela poliacutetica Isso
porque um modelo de pesquisa cientiacutefica que procura deduzir a consciecircncia de
uma ciecircncia do ceacuterebro e ainda reduzi-lo a um computador nada tem a contribuir
para a reflexatildeo sobre nosso poder de pensar pois apenas serve de justificativa
para as teacutecnicas de normalizaccedilatildeo das condutas e de maacutequina de ldquopropaganda
ideoloacutegicardquo para toda sorte de sistemas autoritaacuterios (cf CP 1993 p21)
Mas eacute importante notar que a criacutetica canguilhemiana a racionalidade
meacutedica cientiacutefico-moderna natildeo resvala na antimedicina ou numa desvalorizaccedilatildeo
da ciecircncia em sua contribuiccedilatildeo para a praacutetica cliacutenica Canguilhem critica o
naturismo e a autogestatildeo radical da sauacutede como se fosse possiacutevel prescindir das
verdades cientiacuteficas Ele acredita que uma coisa eacute aventar outra racionalidade
para a medicina recusando a difusatildeo de uma ideologia meacutedica de especialistas
engenheiros de um corpo decomposto como uma maquinaria a outra eacute acreditar-
se obrigado a liberar-se de sua tutela considerada repressiva e aleacutem disso das
ciecircncias das quais ela costuma se beneficiar ldquonada eacute mais difundido e mais
rentaacutevel nos dias de hoje do que uma proclamaccedilatildeo anti-xrdquo (EM 2005 p 66) Por
isso ele alerta para que natildeo resvalemos em uma banalizaccedilatildeo da criacutetica como se
a medicina fosse a fonte de todos os males modernos como se as morbidades
19
fossem resultado de processos iatrogecircnicos e que por isso devecircssemos retornar a
medicinas preacute-racionais e agrave autogestatildeo em sauacutede
Ainda ao colocar em questatildeo se ante a crise da medicina contemporacircnea a
saiacuteda seria o retorno agrave medicina dos antigos ou a superaccedilatildeo da racionalidade
meacutedica atual vemos que a criacutetica de Canguilhem tambeacutem natildeo significa uma
adesatildeo agrave medicina dos vitalistas10 Como eles critica a tradiccedilatildeo meacutedica
mecanicista por definir o corpo como mateacuteria inerte a doenccedila como uma avaria e
a cura como o retorno a um estado anterior dada a possibilidade de
reversibilidade dos fenocircmenos orgacircnicos concepccedilatildeo atrelada aos princiacutepios de
conservaccedilatildeo ou de invariacircncia sobre os quais se fundamentam a mecacircnica e
cosmologia da eacutepoca claacutessica (cf EM 2005 p 53) No entanto apesar de se
inscrever na tradiccedilatildeo vitalista atraveacutes de seu vitalismo materialista
antimecanicista11 Canguilhem elabora uma racionalidade meacutedica singular que
apesar de tambeacutem apostar numa concepccedilatildeo de corpo dinacircmico e na forccedila curativa
da natureza (vis medicatrix naturae) por ele traduzida pelas noccedilotildees de polaridade
dinacircmica e normatividade vital assume feiccedilotildees proacuteprias
10
Embora Canguilhem teccedila elogios aos fundamentos da tradiccedilatildeo meacutedica vitalista Puttini e Pereira Jr acreditam que ele natildeo foi um ldquoadvogado da medicina vitalistardquo mas procurou antes de tudo realizar uma reflexatildeo epistemoloacutegica sobre a vida quer natildeo se prendesse agraves categorias mecanicistas Para os autores atraveacutes do conceito de normatividade vital Canguilhem procurou em verdade realizar uma ldquosuperaccedilatildeordquo da oposiccedilatildeo entre o mecanicismo e o vitalismo Cf PUTTINI R F PEREIRA JR A Aleacutem do mecanicismo e do vitalismo a ldquonormatividade da vidardquo em Georges Canguilhem Rio de Janeiro Physis vol 17 n
o 03 2007
11 Vale destacar que o fato de Canguilhem ter apontado apenas a insuficiecircncia da biologia
mecanicista para a explicaccedilatildeo dos fenocircmenos vitais isto eacute por ele natildeo tecirc-la falseado de todo levou alguns comentadores a enxergar uma posiccedilatildeo hiacutebrida de vitalismo e mecanicismo em sua concepccedilatildeo de vida Nesta direccedilatildeo Barbara (2008) acredita que Canguilhem adota uma racionalidade sincreacutetica entre vitalismo e mecanicismo optando por preservar uma tensatildeo entre os estudos dos mecanismos e a exigecircncia vitalista de um sentido de organismo em seu meio Mas se entendermos que as principais caracteriacutesticas da mateacuteria viva a polaridade dinacircmica e a normatividade vital ambas orientadas para a autoconservaccedilatildeo do vivente como sua finalidade imanente natildeo encontram lugar no modelo explicativo mecanicista parece possiacutevel dizer que a posiccedilatildeo de Canguilhem eacute antimecanicista por excelecircncia embora materialista Assim tendemos a acompanhar Dagognet (2007) em sua afirmaccedilatildeo de que o meacuterito de Canguilhem eacute ter subtraiacutedo a vida de um vitalismo animista sem precisar com isso professar um mecanicismo Cf BARBARA J-G Lrsquoeacutetude du vivant chez Georges Canguilhem des concepts aux objets biologiques In FAGOT-LARGEAULT DEBRU D MORANGE M (dir) HAN H-J (eacuted) Philosophie et meacutedecine en hommage agrave Georges Canguilhem (LrsquoHistoire des sicences ndash Textes et Egravetudes) Paris Vrin 2008 DAGOGNET F Pourquoi la maladie et le reacuteflexe dans la philosophie biomeacutedicale de Canguilhem In BAUNSTEIN J-F (org) Histoire des sciences et politique du vivant Paris Presses Universitaires de France ndash PUF 2007 p17-25
20
Em resumo em nosso entender o nuacutecleo da criacutetica canguilhemiana agrave
medicina de seu tempo eacute o fato dela ter deixado de ser uma arte da cura para se
tornar uma ciecircncia das doenccedilas orientada pelo valor de controle da natureza
proacuteprio da ciecircncia moderna Segundo Canguilhem a hegemonia desta
racionalidade fez com que a medicina se constituiacutesse como um campo de conflito
de discordacircncia entre valores orgacircnicos lentos e contiacutenuos e os valores teacutecnicos
mecacircnicos acelerados e descontiacutenuos Com a primazia da ordem tecnoloacutegica em
relaccedilatildeo agrave ordem bioloacutegica a terapecircutica moderna perdeu de vista toda norma
natural da vida orgacircnica e o doente passou a ser tratado segundo normas
anocircnimas impostas julgada superiores as suas normas individuais e espontacircneas
O ensino meacutedico passou a privilegiar os aspectos teacutecnico-cientiacuteficos da praacutetica
meacutedica em detrimento da deontologia da consideraccedilatildeo dos aspectos bioafetivos
e psicossocioloacutegicos da doenccedila e da reflexatildeo sobre as condiccedilotildees sociais e legais
de seu exerciacutecio no interior das coletividades (cf E 1989 p383-385)
Com efeito em seu artigo ldquoPuissance et limites de la rationaliteacute em
meacutedecinerdquo Canguilhem mostra que historicamente a ambiccedilatildeo por uma ciecircncia do
curar remonta ao seacuteculo XVII com os trabalhos dos iatromecanicistas que creem
poder fundar racionalmente a medicina a partir dos princiacutepios da mecacircnica
galileana e cartesiana Ao analisar a histoacuteria da medicina a partir da segunda
metade do seacuteculo XIX apresenta o impacto da anatomia patoloacutegica da histologia
da histo-patologia da quiacutemica orgacircnica e principalmente da fisiologia para o
estudo das doenccedilas e esclarece que eacute neste periacuteodo que surge o termo
racionalismo para caracterizar a medicina do futuro Objetivando o tratamento
racional da doenccedila a medicaccedilatildeo absolutamente eficaz e a profilaxia correta por
oposiccedilatildeo aos conceitos de ordem probabiliacutestica e estatiacutestica e agrave multiplicidade de
medicamentos empiricamente ministrados a medicina deixou de ser a arte o
empirismo do curar para ser a ciecircncia o racionalismo do curar o que causou uma
mudanccedila profunda na forma de compreensatildeo do fenocircmeno patoloacutegico e na
relaccedilatildeo meacutedico-doente (cf E 1989 p393-395)
Ademais na Ideologia e racionalidade nas ciecircncias da vida ao traccedilar um
esboccedilo histoacuterico-epistemoloacutegico e ideoloacutegico das teorias meacutedicas ele tambeacutem nota
21
que a medicina moderna ativa e operativa suscitada por Vesaacutelio e Harvey e
celebrada por Bacon e Descartes nasceu por oposiccedilatildeo a uma medicina
contemplativa que se baseando numa correspondecircncia isomoacuterfica entre o
equiliacutebrio do cosmos e o equiliacutebrio orgacircnico apostava no poder da natureza de
corrigir desordens e respeitava uma terapecircutica expectante e defensiva Nesta
mesma via a medicina cientiacutefico-experimental norteada por conhecimentos
fisioloacutegicos baseados em fatos e leis confirmados pela experimentaccedilatildeo laboratorial
e orientada pelo valor de controle da natureza sustentado pela ciecircncia moderna
passou a ditar normas agrave vida ignorando a vis medicatrix naturae atividade
curativa inerente a ela
Por isso ao realizar sua ldquogenealogia ideoloacutegica do princiacutepio de identidade
dos fenocircmenos normais e patoloacutegicosrdquo Canguilhem diz ter procurado colocar em
questatildeo uma ideologia meacutedica liberta de toda fidelidade ao hipocratismo ideologia
esta vinculada ao progressismo da sociedade industrial e fundadora do poder
ilimitado da medicina (cf I 1981 p49) Segundo ele tal princiacutepio que tem sua
origem na obra do meacutedico escocecircs Jonh Brown e foi admitida por Broussais
Comte e Claude Bernard abolindo a distinccedilatildeo entre fisiologia e patologia pocircs a
medicina inteiramente sob os auspiacutecios da atividade cientiacutefica experimental
afastando-a da observaccedilatildeo e da confianccedila na natureza proacuteprias da medicina
expectante e institui uma medicina racional pautada na ideia de ldquoeficaacutecia totalrdquo
que aposta numa supervalorizaccedilatildeo do saber que supera e domina a natureza ou
mais precisamente a vida
Sendo assim para Canguilhem tal ideologia natildeo sendo apenas o efeito da
colonizaccedilatildeo da medicina pelas ciecircncias fundamentais e aplicadas tambeacutem
decorre do interesse da sociedade industrial no controle da sauacutede das populaccedilotildees
operaacuterias necessaacuterio para manter produtiva a forccedila de trabalho fato que
evidencia que a ambiccedilatildeo da medicina em curar os indiviacuteduos prevenir e eliminar
doenccedilas contagiosas prolongar a esperanccedila de vida eacute um fato de natureza
poliacutetica tanto quanto cientiacutefica
22
ldquoA medicina experimental atuante e militante cujo modelo Claude Bernard pensou construir eacute a medicina de uma sociedade industrial Quando Claude Bernard opotildee a sua medicina agrave medicina contemplativa expectante isto eacute agrave medicina das sociedades agriacutecolas ele que eacute filho de um vinhateiro natildeo consegue conceber que a ciecircncia da eacutepoca natildeo soacute exigia do saacutebio o abandono das ideacuteias invalidadas pelos fatos mas que sobretudo exigia a renuacutencia ativa a um estilo pessoal de investigaccedilatildeo das ideacuteias exatamente como na mesma eacutepoca os progressos da economia exigiam o desenraizamento dos homens nascidos no campordquo (I 1981 p 60)
Com efeito eacute sob a influecircncia do industrialismo que a medicina se viu diante
da necessidade de reforma a ser operada atraveacutes de uma racionalizaccedilatildeo de seus
tratamentos preventivos e curativos e da planificaccedilatildeo de suas estrateacutegias visando
abarcar o conjunto da sociedade Neste contexto de reforma das instituiccedilotildees
sanitaacuterias a sauacutede da populaccedilatildeo passou a ser considerada estatisticamente e o
termo normal de origem matemaacutetica a ser usado para designar o protoacutetipo de
sauacutede orgacircnica Eacute portanto neste periacuteodo que a vigilacircncia e as condiccedilotildees de vida
passaram a ser objeto de medidas e de regulamentos decididos pelo poder
poliacutetico e esclarecido pelos higienistas ldquoMedicina e poliacutetica entatildeo se encontraram
em uma nova abordagem das doenccedilas da qual temos uma ilustraccedilatildeo convincente
na organizaccedilatildeo e nas praacuteticas de hospitalizaccedilatildeordquo (EM 2005 p28)
O problema identificado por Canguilhem ao analisar a relaccedilatildeo existente
entre o nascimento do hospital e a ambiccedilatildeo sociopoliacutetica-meacutedica higienista de
regulamentar a vida dos indiviacuteduos eacute que essa forma de abordagem meacutedica em
muito contribuiu para a desindividualizar a doenccedila pois se por um lado o discurso
higienista desindividualiza porque incide sobre uma coletividade tambeacutem o
hospital atraveacutes da ultraespecializaccedilatildeo de seus procedimentos que localizam a
doenccedila no oacutergatildeo no tecido na ceacutelula no gene na enzima perde de vista o
sujeito da doenccedila A seu ver como uma maacutequina de curar o hospital se constituiu
como um lugar de tratamento generalizado no anonimato pois nele o doente natildeo
eacute tratado como sujeito de sua doenccedila mas como objeto (cf EM 2005 p55)
Como mero corpo objetivado seu sofrimento e a reduccedilatildeo de suas atividades
cotidianas habituais natildeo satildeo considerados como constitutivos e agravantes de seu
estado de mal
23
Eacute tambeacutem diante da percepccedilatildeo de que os espaccedilos destinados ao cuidado
em sauacutede se encontram cada vez mais ocupados por equipamentos e
regulamentos sanitaacuterios e de que o meacutedico assumiu o papel de executor das
instruccedilotildees de um aparelho de Estado se esquecendo de que a sauacutede mais do que
uma exigecircncia de ordem econocircmica a ser valorizada no enquadramento de uma
legislaccedilatildeo eacute a unidade espontacircnea das condiccedilotildees de exerciacutecio da vida que
Canguilhem apresenta alguns questionamentos Como se livrar da tecnocracia
dos meacutedicos Seria preciso introduzir na formaccedilatildeo hospitalar-universitaacuteria um
ensino da participaccedilatildeo convival para garantia do melhor contato humano entre
meacutedicos e doentes Devemos resolver esta dificuldade criando equipes de sauacutede
com profissionais fortemente motivados que se empenhariam em recriar as
relaccedilotildees com o corpo o trabalho e a coletividade Mas essas soluccedilotildees que se
dizem de esquerda estatildeo isentas de toda ideologia de direita Seraacute chegado o
tempo de uma ldquocriacutetica da razatildeo meacutedica praacuteticardquo (cf EM 2005 p 69)
Destarte eacute por oposiccedilatildeo aos pressupostos teoacuterico-epistemoloacutegicos e
poliacutetico-ideoloacutegicos da racionalidade meacutedica cientiacutefico-moderna que Canguilhem
define a medicina como uma teacutecnica ou arte situada na confluecircncia de vaacuterias
ciecircncias que deve se colocar a serviccedilo das normas vitais (cf NP 1990 p16)
Mas para tanto o meacutedico precisa estar ciente de que a vida humana tem um
sentido bioloacutegico existencial e social e que todos esses sentidos devem ser
considerados para a compreensatildeo do fenocircmeno patoloacutegico (cf CV 1985 p 155)
Caso contraacuterio a medicina iraacute se transformar em um dispositivo social de
normalizaccedilatildeo e o meacutedico teraacute seu papel limitado ao de reparador de um suposto
estado normal ideal e adequado a um determinado modelo de sociedade este
mesmo incontestaacutevel
Desta forma ampliando a concepccedilatildeo de vida para aleacutem de sua dimensatildeo
bioloacutegica e conjugando a ela as dimensotildees existencial e social Canguilhem
recusa um biologismo um psicologismo ou mesmo um sociologismo limitados na
compreensatildeo do fenocircmeno patoloacutegico Advogando em defesa de uma cliacutenica
centrada no indiviacuteduo concreto norteada pelas noccedilotildees de sentido e valor vitais
ele procura fazer com que o meacutedico deixe de ser um agente de normalizaccedilatildeo de
24
corpos e mentes e passe a ser um incentivador da capacidade reativa e normativa
da vida (cf EM 2005 p45) Em nosso entender eacute a partir destas consideraccedilotildees
que o pensamento canguilhemiano pode contribuir para delinearmos outras
praacuteticas e eacutetica para o cuidado em sauacutede na atualidade pautadas num diferente
modelo de racionalidade que tenha a normatividade da vida por esteio abrindo
terreno para que a cliacutenica - seja ela meacutedica psicoloacutegica ou outra - ao inveacutes de se
aliar ao imperativo da normalidade possa atuar como um dispositivo de
resistecircncia agrave mecanizaccedilatildeo da vida agrave normalizaccedilatildeo dos indiviacuteduos e agrave gestatildeo
soacutecio-poliacutetica meacutedica da vida cotidiana
No Brasil natildeo satildeo muitos os autores que se propotildeem a estudar o
pensamento meacutedico-filosoacutefico de Canguilhem atraveacutes do conjunto de seus
escritos Via de regra as anaacutelises realizadas versam mais sobre a obra O Normal
e o patoloacutegico considerada a mais importante do autor Contudo o nuacutemero de
comentadores de sua filosofia da vida eacute crescente assim como a anaacutelise de seus
textos sobre medicina sendo unacircnime a afirmaccedilatildeo da atualidade de suas
proposiccedilotildees No cenaacuterio internacional na Franccedila em particular a fortuna criacutetica eacute
mais abundante Meacutedicos historiadores psicanalistas e filoacutesofos tecircm destacado a
relevacircncia das reflexotildees de Canguilhem para as praacuteticas de sauacutede na
contemporaneidade Prova disso eacute que recentemente por ocasiatildeo do centenaacuterio
de seu nascimento foi realizada uma publicaccedilatildeo em sua homenagem na qual um
conjunto de pesquisadores avaliam a pertinecircncia de sua filosofia da vida e sua
contribuiccedilatildeo para a medicina hoje12
12
Nesta obra na parte dedicada agrave Medicina por exemplo Giroux coloca o problema da conciliaccedilatildeo da sauacutede como normatividade individual e o ponto de vista epidemioloacutegico da sauacutede da populaccedilatildeo Lechopier amp Lepleacutege trazem a questatildeo do uso de instrumentos de medida de sauacutede (mesure de la santeacute perccedilue) que pretendem quantificar o impacto das doenccedilas ou das diferentes intervenccedilotildees de sauacutede na vida cotidiana sob o ponto de vista dos pacientes Montiel considerando que o pensamento de Canguilhem eacute uma ldquovacina contra o dogmatismo meacutedicordquo reflete sobre as repercussotildees praacuteticas de seu pensamento na formaccedilatildeo meacutedica considerando entre outros aspectos que o triunfo do laboratoacuterio sobre a cliacutenica instaurou uma iatrocracia ou um poder meacutedico ditatorial de especialistas Yeo trata da recepccedilatildeo do pensamento meacutedico canguilhemiano na Coreacuteia do Sul apontando seus limites em relaccedilatildeo a uma tradiccedilatildeo filosoacutefica e meacutedica neo-confucionista que admite o caraacuteter transcendente das normas Cf FAGOT-LARGEAULT DEBRU D
25
Dentre os estudiosos brasileiros Serpa Juacutenior analisando a tendecircncia de
expansatildeo das categorias diagnoacutesticas na atualidade e questionando as forccedilas e
interesses que estatildeo em jogo nesse processo de patologizaccedilatildeo do normal
defende a relevacircncia das argumentaccedilotildees de Canguilhem que se colocam em favor
de uma atividade normativa inerente agrave proacutepria vida em tempos de retomada de
um objetivismo meacutedico de alta performance que pretende definir a verdadeira
configuraccedilatildeo de corpos e mentes considerados normais e patoloacutegicos13 Bezerra
Juacutenior tambeacutem acredita ser a discussatildeo feita por Canguilhem atual pois ela pode
ajudar os profissionais de sauacutede a pensar de forma criacutetica a fronteira entre o
normal e o patoloacutegico evitando que se transformam em agentes de um processo
crescente de medicalizaccedilatildeo da existecircncia e de patologizaccedilatildeo do normal Para ele
as duas principais consequecircncias da adoccedilatildeo da perspectiva canguilhemiana na
cliacutenica satildeo o ato de colocar a ldquoexperiecircncia do sofrimentordquo no centro da terapecircutica
e contra o objetivismo reinante na medicina e na cultura apontar os impasses do
fisicalismo hegemocircnico na psiquiatria atual14
Tambeacutem no Brasil Safatle acredita que ao estudar os fenocircmenos normais e
patoloacutegicos Canguilhem coloca questotildees natildeo soacute para a biologia mas tambeacutem
para a cliacutenica meacutedica e psicoloacutegica Percebendo a relaccedilatildeo de suplementaridade
entre normatividade vital e normatividade social o comentador pergunta se natildeo
poderiacuteamos utilizar os conceitos de normal e de patoloacutegico tal como apresentados
por Canguilhem para refletirmos sobre o sofrimento que as nossas formas sociais
de vida produzem15 Jaacute Caponi analisa o atual conceito de sauacutede preconizado pela
Organizaccedilatildeo Mundial de Sauacutede (OMS) definido como equiliacutebrio e adaptaccedilatildeo ao
MORANGE M (dir) HAN H-J (eacuted) Philosophie et meacutedecine en hommage agrave Georges Canguilhem (LrsquoHistoire des sicences ndash Textes et Egravetudes) Paris Vrin 2008
13 Cf SERPA JUNIOR O D Indiviacuteduo organismo e doenccedila a atualidade de O normal e o
patoloacutegico de Georges Canguilhem Psicologia Cliacutenica Rio de Janeiro v 15 no 01 2006
14 Cf BEZERRA JUNIOR B ldquoO normal e o patoloacutegico uma discussatildeo atualrdquo In SOUZA A N
PITANGUY J (orgs) Sauacutede corpo e sociedade (Seacuterie Didaacuteticos) Rio de janeiro Editora UFRJ 2006
15 ldquoEacute possiacutevel que noccedilotildees como estas desenvolvidas por Canguilhem possam nos auxiliar o que
nos deixa com a questatildeo de saber ateacute que ponto reflexotildees epistemoloacutegicas como estas guardam forte potencial poliacutetico e emancipatoacuteriordquo (SAFATLE 2011 p26) Cf SAFATLE V O que eacute uma normatividade vital Sauacutede e doenccedila a partir de Georges Canguilhem Scientiaelig Studia Revista Latino-Americana de Filosofia e Histoacuteria da Ciecircncia Satildeo Paulo v 9 n 1 p 11-27 2011
26
meio a partir da perspectiva teoacuterica apontada por Canguilhem para mostrar em
que medida ele eacute impraticaacutevel natildeo apenas por ser utoacutepico e subjetivo mas
tambeacutem por ser politicamente conveniente para legitimar estrateacutegias de controle e
de exclusatildeo de todos aqueles que consideramos indesejaacuteveis ou perigosos
Lembrando que a normalizaccedilatildeo das condutas e dos estilos de vida nasceu com a
medicina social e que numa sociedade marcada pelas desigualdades parece mais
simples normalizar condutas do que transformar condiccedilotildees perversas de
existecircncia a autora faz uso das reflexotildees canguilhemianas tambeacutem para
problematizar o que chamamos hoje de sauacutede coletiva16
No cenaacuterio internacional Delaporte procura mostrar que a criacutetica de
Canguilhem agrave medicina cientiacutefica acaba por desvelaacute-la em suas aspiraccedilotildees ao
estabelecimento de um controle sobre a vida jaacute que a concepccedilatildeo positivista de
doenccedila como expressatildeo de uma supervalorizaccedilatildeo do saber foi o que tornou
acolhedora ao espiacuterito dos meacutedicos quiacutemicos e bioacutelogos a ideia tecnicista de
violar a natureza com fins terapecircuticos17 Lecourt vecirc nas reflexotildees
canguilhemianas uma criacutetica agrave medicina moderna em sua inclinaccedilatildeo a se tornar
um instrumento eficaz para soldar uma ordem social sufocante na medida em
que operando com o conceito de norma acaba por colocar o indiviacuteduo sob o
impeacuterio de uma concepccedilatildeo despoacutetica de sauacutede18
16
Cf CAPONI S Georges Canguilhem y el estatuto epistemoloacutegico del concepto de salud Historia Ciencias Sauacutede Manguinhos 42 287-307 1997
17 ldquoSe o vivo humano conhece as relaccedilotildees do mal com o estado normal entatildeo a medicina
comporta um poder de dominaccedilatildeo Eacute que a eficaacutecia da accedilatildeo estaacute fundada na ciecircncia Eis o programa de um positivismo despoacutetico e tatildeo seguro do seu poder que assimila a funccedilatildeo de conhecimento a uma funccedilatildeo de comando Reconhecemos de passagem uma das figuras de um sonho demiuacutergico o tema de uma potecircncia ilimitada do homem que se exerceria sobre a natureza e a vidardquo (DELAPORTE 1994 p37) Cf DELAPORTE F A Histoacuteria das Ciecircncias segundo G Canguilhem In PORTOCARRERO V Filosofia Histoacuteria e Sociologia das Ciecircncias I abordagens contemporacircneas Rio de Janeiro Fiocruz 1994
18 ldquoA sauacutede assume para aqueles a quem domina seja a triste face do regime versatildeo moderna da
servidatildeo voluntaacuteria seja a face mais dinacircmica e sorridente da forma ou mais ainda ou ainda mais estetizante da linha com destinaccedilatildeo preferencialmente feminina ou conjugal E se esgotado por estas exigecircncias o indiviacuteduo deixa lsquoabater-sersquo sempre lhe restaraacute a possibilidade de tomar dois anti-depressivos depois da refeiccedilatildeordquo (LECOURT 2006 p298-299) Cf LECOURT D ldquoNormasrdquo In RUSSO M CAPONI S (Org) Estudos de filosofia e histoacuteria das ciecircncias biomeacutedicas Satildeo Paulo Discurso Editorial 2006
27
Ainda Moullin acredita na importacircncia do pensamento de Canguilhem em
tempos de ldquomorte da cliacutenicardquo e pergunta se a referecircncia ao indiviacuteduo como forma
possiacutevel de vida e fonte de normatividade ainda satildeo aceitaacuteveis pelo meacutedico
contemporacircneo Refletindo tambeacutem sobre a medicina das populaccedilotildees ela destaca
a inquietaccedilatildeo de Canguilhem relativa agrave desconsideraccedilatildeo da sauacutede individual por
parte de uma medicina coletiva de corpos e autocircmatos19 Jaacute Gros faz uso do
pensamento canguilhemiano para refletir sobre os avanccedilos da biologia molecular e
da engenharia geneacutetica em consideraccedilatildeo ao tecircnue limite existente entre
eliminaccedilatildeo de erros geneacuteticos com fins terapecircuticos e a eugenia20
Mas vale dizer que apesar da existecircncia de um consenso entre os
comentadores sobre a relevacircncia do pensamento meacutedico-filosoacutefico de
Canguilhem o fato de ele ter optado por uma dupla formaccedilatildeo tem gerado
controveacutersias A exemplo disso Peacutequinot seu colega no periacuteodo de formaccedilatildeo
meacutedica se atendo agraves motivaccedilotildees pessoais que levaram Canguilhem agrave dupla
formaccedilatildeo recorda que ele nem mesmo gostava de ser chamado de doutor natildeo se
vendo como um ldquoverdadeiro meacutedicordquo e que apenas procurou tomar contato com a
medicina para poder melhor teorizaacute-la filosoficamente21 Moulin partindo da
afirmaccedilatildeo de Peacutequinot de que Canguilhem era um ldquodoutor em medicinardquo e natildeo um
meacutedico diz acreditar que ele ao situar seu lugar de fala (lieu de parole) e seu
projeto filosoacutefico na medicina oferece ao hospital uma legitimidade epistemoloacutegica
nova como local de pesquisas filosoacuteficas e daacute assim um excelente exemplo do
que se chamaria ldquoexerciacutecio teoacuterico da medicinardquo Mas ao mesmo tempo foi
somente sendo meacutedico ateacute o fim e correndo o risco de natildeo ser mais filoacutesofo que
19
Cf MOULIN A M La meacutedicine moderne selon Georges Canguilhem In BADIOU A (et al) Georges Canguilhem Philosophe historien des sciences Actes du colloque (6 7 8 deacutecembre 1990) Paris Albin Michel 1993
20 Cf GROS F Hommage agrave Canguilhem In BADIOU A (et al) Georges Canguilhem Philosophe
historien des sciences Actes du colloque (6 7 8 deacutecembre 1990) Paris Albin Michel 1993
21 Cf PEQUIGNOT H Georges Canguilhem et la medicine Revue de Metaphysique et de Morale
jan-mar 1985 [nuacutemero especial Georges Canguilhem]
28
ele pode provar a insuficiecircncia radical dos conhecimentos fornecidos pelo ensino
filosoacutefico e tambeacutem meacutedico22
Para Lecourt se eacute comum apresentar Canguilhem como ldquomeacutedico e filoacutesofordquo
ou como ldquofiloacutesofo e meacutedicordquo a segunda foacutermula eacute mais proacutexima da realidade pois
seu interesse pela medicina natildeo foi o de um meacutedico ou de um historiador mas o
de um filoacutesofo que viu nesta mateacuteria condiccedilotildees para prolongar seus estudos
teoacutericos Ele lembra que o proacuteprio Canguilhem diz ter exercido a medicina apenas
durante algumas semanas no maquis de Auvergne aleacutem de ter vivido um breve
episoacutedio de praacutetica psiquiaacutetrica no Hospital Saint-Alban23 Recorda ainda que ele
julga que a positividade destas praacuteticas residiu no fato de ter podido unir a seus
conhecimentos teoacutericos alguns conhecimentos de experiecircncia24 Assim se por um
lado seus estudos meacutedicos ganharam sentido no interior de seu projeto
epistemoloacutegico sendo a melhor explicitaccedilatildeo de seus temas de interesse por
outro serviram para aproximaacute-lo da ldquoconcretuderdquo dos problemas humanos
Portanto para ele eacute mais como filoacutesofo que Canguilhem defende natildeo soacute uma
postura epistemoloacutegica antipositivista que inverte a ordem de precedecircncia entre
ciecircncia e teacutecnica mas tambeacutem a partir de uma preocupaccedilatildeo eacutetica concreta
destaca a obrigaccedilatildeo do profissional meacutedico em ldquotomar partidordquo o que significa ter
22
Cf MOULIN A M La meacutedicine moderne selon Georges Canguilhem Op cit
23 Sobre sua breve experiecircncia praacutetica meacutedica Canguilhem resume ldquoNo veratildeo de 44 como
meacutedico do maquis de Auvergne escondi e cuidei dos feridos durante algumas semanas no hospital psiquiaacutetrico de Saint-Alban em Lozegravere e nas suas vizinhanccedilasrdquo (CANGUILHEM 1994 p 34) Cf CANGUILHEM G ldquoAberturardquo In CANGUILHEM G DERRIDA J MAJOR R ROUDINESCO E Foucault Leituras da Histoacuteria da Loucura (trad Maria Ignes Duque Estrada) Relume-Dumaraacute 1994
24 Aqui Lecourt se refere agrave entrevista dada por Canguilhem a Franccedilois Bing e Jean-Franccedilois
Braunstein em 21 de junho de 1995 Nela quando questionado sobre as razotildees que o levaram a estudar medicina ele explica ldquoPor mais pequeno e estreito que possa parecer comecei meus estudos em medicina porque estava decepcionado nos primeiros anos de ensino como professor de filosofia com as condiccedilotildees as quais meu ensino era julgado () Quando cheguei a Toulouse eu disse a mim mesmo que eu faria bem em unir ao que jamais pude ateacute entatildeo adquirir dos conhecimentos de ordem livresca em filosofia alguns conhecimentos de experiecircncia tais quais aqueles que se pode obter do ensino de medicina e talvez um dia de sua praacutetica Aiacute estaacute a razatildeo fundamentalrdquo (CANGUILHEM 1998 p 121) Cf CANGUILHEM G Entretien avec Georges Canguilhem In BING F BRAUNSTEIN J-F ROUDINESCO E (org) Actualiteacute de Georges Canguilhem Le normal et le pathologique Paris Syntheacutelabo 1998
29
consciecircncia da medida de suas responsabilidades e operar atraveacutes disso uma
reforma em sua conduta25
Jaacute Roudinesco a partir de dados biograacuteficos daacute maior destaque agrave faceta
canguilhemiana de resistente de meacutedico de urgecircncia que atuou na guerra e pela
guerra e enfatiza o quanto as duas modalidades de sua ldquofilosofia da accedilatildeordquo o ato
de resistir (soutenir) e o ato de cuidar (soigner) permitiram que Canguilhem
fizesse com que a Resistecircncia e a medicina dessem os braccedilos Aos olhos da
historiadora e tambeacutem psicanalista foi o exerciacutecio da medicina no maquis que
possibilitou a ele se confrontar com uma experiecircncia humana concreta dando
ldquocorpo e vidardquo agrave sua reflexatildeo conceitual sobre a natureza mesma da normalidade
A seu ver ao concluir que a medicina sem ser ela proacutepria uma ciecircncia utiliza o
resultado de todas as ciecircncias a serviccedilo das normas vitais Canguilhem a coloca
no centro de uma nova forma de racionalidade26 Mostrando que a atividade
cientiacutefica-laboratorial natildeo suplanta a observaccedilatildeo cliacutenica ele propotildee uma
revalorizaccedilatildeo da arte meacutedica e nos faz ver que somente uma medicina fundada
na escuta e na observaccedilatildeo do doente eacute capaz de assegurar um verdadeiro status
ao profissional meacutedico evitando que ele se torne lacaio do laboratoacuterio e da
farmacologia
Em nosso trabalho natildeo nos atemos agraves motivaccedilotildees que levaram
Canguilhem agrave dupla formaccedilatildeo nem mesmo nos propomos a apresentar dados
biograacuteficos sobre seu periacuteodo de formaccedilatildeo meacutedica ou sobre sua participaccedilatildeo na
Resistecircncia de modo a responder se ele tinha ou natildeo interesse em dedicar-se
integralmente agrave praacutetica cliacutenica tornando-se com isso um ldquoverdadeiro meacutedicordquo ou
em que medida a experiecircncia no maquis foi determinante para sua reflexatildeo sobre
a normalidade Ou seja natildeo procuramos investigar a relaccedilatildeo existente entre vida
e obra nem mesmo apontar todas as influecircncias teoacutericas que foram importantes
25
Cf LECOURT D Une philosophie de la medicine In Georges Canguilhem Que sais-je Les envies du savoir 1
a ediccedilatildeo Paris Presses Universitaires de France - PUF 2008
26 ldquoAbandonada haacute um seacuteculo pela filosofia fosse porque natildeo fazia parte das lsquociecircncias nobresrsquo
como a matemaacutetica ou a fiacutesica fosse porque se aproximava da biologia ela proacutepria ignorada pela filosofia a medicina podia tornar-se para o jovem filoacutesofo o centro de uma nova forma de racionalidaderdquo (ROUDINESCO 2007 p 23) Cf ROUDINESCO E Filoacutesofos na tormenta (Canguilhem Sartre Foucault Althusser Deleuze Derrida) Rio de Janeiro Zahar 2007
30
para a constituiccedilatildeo de seu pensamento meacutedico-filosoacutefico desde o periacuteodo de
juventude27
Quando estudamos o pensamento canguilhemiano procuramos sobretudo
identificar o ponto de vista de um filoacutesofo e tambeacutem meacutedico que optou por buscar
sua mateacuteria de reflexatildeo junto ao leito do doente resgatando com isso o sentido
primeiro da praacutetica cliacutenica o de ser uma teacutecnica ou arte da cura que se coloca a
serviccedilo da vida Se atraveacutes disso ele operou uma accedilatildeo de resistecircncia assim o
fez principalmente porque revelou a ideologia de controle ou domiacutenio subjacente agrave
medicina cientiacutefica moderna que acabou por transformaacute-la num dispositivo social
de normalizaccedilatildeo
Sendo assim diante da necessidade identificada por Canguilhem de
realizaccedilatildeo de uma ldquocriacutetica da razatildeo meacutedica praacuteticardquo a tarefa que a noacutes se colocou
foi a de recolher em seus escritos fundamentos para a construccedilatildeo de outra
racionalidade em sauacutede que consiga operar resistecircncia agraves praacuteticas de
normalizaccedilatildeo que acreditamos ainda serem correntes Destarte concordamos
com Roudinesco quanto agrave possibilidade de enxergarmos no pensamento de
Canguilhem outra forma de racionalidade meacutedica com raiacutezes na vida
Acompanhamos tambeacutem Debru por ele fazer uma defesa da racionalidade
meacutedica de tipo holista proposta por Canguilhem mas discordamos de Morange
por questionar a pertinecircncia das teses canguilhemianas presentes em sua criacutetica
radical ao projeto de fundar a medicina sobre bases cientiacuteficas
Com efeito segundo Morange o sucesso de O normal e o patoloacutegico se
deu porque esta obra antecipou as dificuldades enfrentadas pela tecnicizaccedilatildeo
crescente da medicina e se inscreveu nos debates comuns desde os anos 60
sobre a desumanizaccedilatildeo dos serviccedilos de sauacutede e a necessidade de reforma da
medicina moderna Mas embora acredite que esta criacutetica seja pertinente ele julga
ser sua base conceitual e filosoacutefica inaceitaacutevel Por exemplo Canguilhem natildeo faz
um retrato fiel da medicina de seu tempo Ele pouco considera os sucessos da
27
Empreitada jaacute realizada por Lecourt diretor honoraacuterio do Centre Georges Canguilhem - Universiteacute Paris Diderot 7 Cf LECOURT D Que sais-je Les envies du savoir 1
a ediccedilatildeo Paris
Presses Universitaires de France - PUF 2008
31
microbiologia Aleacutem disso Morange aponta os riscos de desconsideraccedilatildeo dos
criteacuterios objetivos para o diagnoacutestico da doenccedila e questiona a pertinecircncia da
afirmaccedilatildeo de que eacute o paciente que define a fronteira entre o normal e o patoloacutegico
Ele acredita ser uma ilusatildeo achar mais humana esta medicina holista que
considera a doenccedila como um novo estado e natildeo como uma alteraccedilatildeo localizada
nos oacutergatildeos Na era poacutes-genocircmica eacute a determinaccedilatildeo de caracteriacutesticas geneacuteticas
individuais que permite conhecer os riscos do desenvolvimento de certas
patologias ou a resposta particular a certos tratamentos farmacoloacutegicos Assim a
re-personalizaccedilatildeo do ato meacutedico seraacute bioloacutegica28
Jaacute Debru considerando o engajamento de Canguilhem - filosoacutefico no
campo da medicina e poliacutetico de combate aos nazistas - acredita que sua filosofia
eacute rica em consequecircncias para o plano da eacutetica meacutedica agrave praacutetica do cuidado e
para a concepccedilatildeo mesma de valor da vida Para ele o progresso das tecnologias
que permite realizar o sonho dos meacutedicos de tratamentos individualizados na
perspectiva de terapecircuticas novas e eficazes natildeo invalida a criacutetica ao ciclo
tecnocientiacutefico realizada por Canguilhem pois a biologia a imunologia e a
geneacutetica permitem reencontrar a individualidade do doente mas natildeo apreendem o
indiviacuteduo concreto A medicina contemporacircnea embora baseada em evidecircncias
se apoiando em aparelhos e estatiacutesticas ensaios cliacutenicos standartizados eacute
deficitaacuteria para se aproximar da individualidade do paciente em sua biografia isto
eacute em sua existecircncia sua maneira de ser no mundo e suas relaccedilotildees sociais e
afetivas Mais e mais reduzida ao suporte bioloacutegico da doenccedila ela ignora as
dimensotildees socioafetivas de numerosas doenccedilas e a pluralidade de fatores que
concorrem para o processo patoloacutegico sejam eles geneacuteticos ecoloacutegicos sociais
ou psicoloacutegicos Eacute aiacute que o holismo vitalista de Canguilhem pode sustentar uma
reflexatildeo sobre a praacutetica meacutedica nos servindo como um inspirador ou guia29
28
MORANGE M Retour sur le normal et le pathologique In FAGOT-LARGEAULT DEBRU D MORANGE M (dir) HAN H-J (eacuted) Op cit
29 DEBRU C Lrsquoengagement philosophique dans le champ de la meacutedecine Georges Canguilhem
aujordrsquohui In BRAUNSTEIN J-F (org) Histoire des sciences et politique du vivant Paris Presses Universitaires de France ndash PUF 2007 p45-62
32
Assim foi apostando na pertinecircncia de suas teses ou seja adotando o
ponto de vista de Canguilhem de que a ideia de normalidade como normalizaccedilatildeo
mais se identifica agrave medicina cientiacutefica moderna que opera com a ideia de norma -
como meacutedia estatiacutestica e tipo ideal - do que a uma medicina que considera que na
natureza haacute apenas normalidade como normatividade que procuramos ao fim de
nosso trabalho vislumbrar outra racionalidade para as praacuteticas de cuidado em
sauacutede na atualidade e obter algumas respostas a estas e a outras questotildees que a
nosso ver se impotildeem O que eacute sauacutede afinal Eacute possiacutevel compreendermos de
outra forma o fenocircmeno patoloacutegico O aprimoramento dos meacutetodos de anaacutelise
diagnoacutestica tem contribuiacutedo efetivamente para o tratamento e cura das doenccedilas
Quais os limites do uso da tecnologia meacutedica O tratamento farmacoloacutegico basta
para promover um efetivo bem-estar Ateacute que ponto natildeo patologizamos e
medicalizamos alguns comportamentos humanos apenas por natildeo se enquadrarem
na meacutedia ou natildeo responderem agraves normas sociais O que os profissionais de
sauacutede fazem fazendo o que fazem Produccedilatildeo de sauacutede ou normalizaccedilatildeo dos
corpos e das mentes Haacute como realizar uma politizaccedilatildeo da cliacutenica sem
resvalarmos em um discurso meramente ideoloacutegico
Seguindo a trilha aberta por Canguilhem do estudo sobre a vida o normal
e o patoloacutegico ateacute a apresentaccedilatildeo de problematizaccedilotildees relativas aos aspectos
teacutecnico-cientiacutefico e eacutetico-poliacutetico da cliacutenica meacutedica e psicoloacutegica estruturamos
nossa trajetoacuteria em quatro capiacutetulos O primeiro deles trata da concepccedilatildeo
canguilhemiana de vida procurando mostrar qual o sentido de considerarmos a
medicina uma teacutecnica ou arte que nela se enraiacuteza O segundo capiacutetulo se ateacutem agrave
criacutetica de Canguilhem agrave ideia de medicina como ciecircncia das doenccedilas realizada a
partir da contestaccedilatildeo que faz agrave tese presente nos trabalhos de Comte e Claude
Bernard de que o patoloacutegico seria apenas uma variaccedilatildeo quantitativa do estado
normal O terceiro objetiva mostrar como e porque aos olhos de Canguilhem as
praacuteticas de sauacutede podem se transformar em dispositivos de normalizaccedilatildeo dos
indiviacuteduos e em estrateacutegias de gestatildeo sociopoliacutetica meacutedica da vida cotidiana O
quarto capiacutetulo por fim apresenta os contornos desta outra racionalidade que
escolhemos chamar de medicina filosoacutefica de Georges Canguilhem dando
33
abertura a um debate sobre o ensino a pesquisa a praacutetica e a eacutetica em sauacutede na
atualidade
34
CAPIacuteTULO I
Medicina uma arte enraizada na vida
Se viver eacute lutar contra a morte nosso uacuteltimo suspiro eacute ainda um derradeiro ato de resistecircncia
Para esclarecermos porque Canguilhem define a medicina como uma arte
de enraizamento vital eacute preciso primeiramente identificar qual concepccedilatildeo de vida
ele apresenta no conjunto de seus escritos considerando que ela natildeo se encontra
em um escrito em particular mas aparece de modo disperso e nem sempre direto
no decorrer dos estudos que faz sobre medicina histoacuteria e filosofia das ciecircncias
da vida Apesar disso no curso de nossa investigaccedilatildeo notamos que o fio condutor
que une todas as reflexotildees canguilhemianas sobre a vida eacute a capacidade que ela
tem de accedilatildeo espontacircnea de reaccedilatildeo e de resistecircncia a tudo o que lhe ameaccedila
quando de seu embate com o meio
ldquoA vida natildeo eacute portanto para o ser vivo uma deduccedilatildeo monoacutetona um movimento retiliacuteneo ela ignora a rigidez geomeacutetrica ela eacute debate ou explicaccedilatildeo (o que Goldstein chama de Auseinandersetzung) com um meio em que haacute fugas vazios esquivamentos e resistecircncias inesperadasrdquo (NP 1990 p160)
Daiacute decorre que sendo este precisamente nosso tema de interesse eacute apenas por
natildeo ser a vida indiferente e apaacutetica pois ela reage e resiste agrave degradaccedilatildeo e agrave
morte que a medicina aparece como o prolongamento dela30
30
Canguilhem no verbete laquo Vie raquo da Encyclopaeligdia Universalis parte da questatildeo sobre o que eacute mais precisamente a vida do vivente para aleacutem da coleccedilatildeo de atributos proacuteprios que poderiam resumir a histoacuteria deste ser nascido para morrer Para respondecirc-la ele traccedila uma breve histoacuteria da apariccedilatildeo do conceito nos diversos verbetes de dicionaacuterios e enciclopeacutedias cientiacuteficas e encontra desde o esboccedilo de uma definiccedilatildeo geral de vida em Aristoacuteteles ateacute a perspectiva da ciberneacutetica Ou seja como resultado deste percurso ele encontra diferentes entendimentos de vida como animaccedilatildeo mecanismo organizaccedilatildeo e informaccedilatildeo Sem encontrar uma resposta rematada para a sua questatildeo em nenhuma destas concepccedilotildees por fim conclui que a morte eacute o uacutenico sinal irrefutaacutevel da vida Apoiado nos trabalhos de Freud e de Atlan especificamente no conceito de pulsatildeo de morte instabilidade desequiliacutebrio e inacabamento do vivo nota que o uacutenico projeto verdadeiramente reconhecido da vida eacute a morte ainda que recusado por ela Cf CANGUILHEM G Article Vie (Paris Encyclopaeligdia Universalis) t23 p546-553 1989
35
De modo mais preciso eacute em contraposiccedilatildeo aos fundamentos teoacutericos
ideoloacutegicos da biologia mecanicista em suas diferentes formulaccedilotildees histoacutericas
que a vida eacute definida por Canguilhem como uma atividade de oposiccedilatildeo agrave ineacutercia e
agrave indiferenccedila atividade a partir da qual todas as teacutecnicas humanas se originam
Por isso quando de sua reflexatildeo sobre o surgimento da medicina ele diz ser a vis
medicatrix naturae entendida por ele como uma teacutecnica curativa natildeo intencional
da vida a origem da teacutecnica terapecircutica intencional humana Ou seja para ele eacute
somente pelo fato da vida ser reatividade polarizada de conflito com o meio sendo
capaz de uma atividade normativa de caraacuteter hedocircnico que a teacutecnica meacutedica se
faz possiacutevel
Mas dizer que haacute nos escritos canguilhemianos uma concepccedilatildeo de vida
derivada de suas anaacutelises filosoacuteficas natildeo significa afirmar a existecircncia neles de
uma teoria bioloacutegica rematada Isso porque como Canguilhem mesmo esclarece
no prefaacutecio de La Formation du concept de reacuteflexe aux XVIIe et XVIIIe siegravecles ele
nunca procurou fazer uma teoria bioloacutegica tarefa proacutepria de um bioacutelogo nem uma
biologia de filoacutesofo projeto a seu ver monstruoso mas apenas uma filosofia da
vida tarefa esta sim proacutepria a um filoacutesofo (cf FCR 1955 p01)31 No entanto ao
fazer sua anaacutelise filosoacutefica da vida trazendo as ideias de polaridade dinacircmica e
normatividade vital para ressignificar as noccedilotildees correntes de normal e de
patoloacutegico ele acaba por apresentar um ponto de vista original sobre seus
fenocircmenos
Com efeito em seus estudos sobre a normalidade tomando por criteacuterio de
sauacutede e de doenccedila a normatividade vital ele coloca em questatildeo a ideia corrente
de que o patoloacutegico eacute anormal no sentido estrito da palavra jaacute que pela sua
perspectiva ateacute mesmo o doente pode ser considerado normal embora padeccedila de
uma restriccedilatildeo em sua capacidade normativa Aleacutem disso eacute tambeacutem em
31
Com efeito como esclarece Machado (1981) Canguilhem natildeo teve a pretensatildeo de fazer uma filosofia da vida no sentido de uma biologia de filoacutesofo Sua problemaacutetica de investigaccedilatildeo eacute a filosofia das ciecircncias da vida Assim se ela encerra uma reflexatildeo sobre a vida o que natildeo se pode negar tal reflexatildeo eacute indireta e mediatizada Cf MACHADO R A Histoacuteria Epistemoloacutegica de Georges Canguilhem In Ciecircncia e Saber A Trajetoacuteria da Arqueologia de Foucault 2ordf ed Rio de Janeiro Graal 1981
36
consideraccedilatildeo agrave polaridade e normatividade vitais que no contexto de suas
reflexotildees sobre a relaccedilatildeo do vivente com seu meio consegue contestar a ideia de
que a vida estaacute integralmente submetida a influecircncias externas restando a ela
apenas adaptar-se passivamente ao entorno A seu ver o vivente ao contraacuterio de
uma maacutequina natildeo eacute mateacuteria passiva regrada de fora mas pode transformar o
meio em que se encontra adaptando-se ativamente a ele
ldquoInsistimos que as funccedilotildees bioloacutegicas satildeo ininteligiacuteveis do modo como satildeo reveladas pela observaccedilatildeo quando soacute traduzem os estados de uma mateacuteria passiva diante das transformaccedilotildees do meiordquo (NP 1990 p143)
Com isso ele atribui agrave vida propriedades que soacute a ela podem ser referenciadas a
capacidade de valorar seus comportamentos a liberdade de infringir e criar suas
proacuteprias normas e a de alterar o meio no qual se desenrola
Assim se ele recusa a concepccedilatildeo de meio em sua formulaccedilatildeo mecanicista32
e por conseguinte as teorias para as quais ele domina e comanda a evoluccedilatildeo das
espeacutecies eacute porque acredita que sua primeira consequecircncia eacute conceber o
organismo como passivamente deformaacutevel sobre a pressatildeo do ambiente e com
isso sua espontaneidade proacutepria eacute refutada e ele passa a se identificar ao inerte
(cf E 1989 p 66)
Contrariamente a essa ideia em seus estudos sobre o ser vivo e seu meio
ele recorre agrave Uexkuumlll e agrave Goldstein para mostrar que o vivente natildeo eacute uma maacutequina
32
Como veremos entendendo que o conceito de meio transposto da mecacircnica e da fiacutesica para a biologia favorece as concepccedilotildees deterministas de vida Canguilhem procura dar a este termo uma conotaccedilatildeo estritamente bioloacutegica que natildeo o reduz a um sistema de constantes mecacircnicas fiacutesicas e quiacutemicas Na coletacircnea La connaissance de la vie no artigo ldquoLe vivant et son milieurdquo ele esclarece que a noccedilatildeo e o termo meio foram importados da mecacircnica para a biologia na segunda metade do seacuteculo XVIII A noccedilatildeo mas natildeo o termo aparece em Newton e o termo com sua significaccedilatildeo mecacircnica aparece na Encyclopeacutedie de drsquoAlembert e Diderot Com efeito eacute em Newton no estudo sobre o fenocircmeno fisioloacutegico da visatildeo que encontramos um primeiro exemplo de explicaccedilatildeo de uma reaccedilatildeo orgacircnica por accedilatildeo do meio ou seja de um fluido estritamente definido por suas propriedades fiacutesicas Na biologia eacute Lamarck quem introduz o termo defendendo que o meio domina e comanda a evoluccedilatildeo dos viventes Mas eacute de Taine mais do que Lamarck que os neo-lamarckistas franceses retiram o termo agora identificado como um dos princiacutepios de explicaccedilatildeo analiacutetica da histoacuteria ao lado da raccedila e do momento Assim a seu ver ldquoO benefiacutecio de uma histoacuteria mesmo que sumaacuteria da importaccedilatildeo em biologia do termo meio nos primeiros anos do seacuteculo XIX eacute prestar conta da acepccedilatildeo originalmente e estritamente mecanicista deste termordquo (cf CV 1985 p134)
37
que apenas responde a exitaccedilotildees do meio pois cada organismo tem um meio
proacuteprio (Umwelt) com tempo e espaccedilo ordenado pelo seu ritmo de vida no qual se
move e se orienta segundo seu interesse O meio ambiente humano (Umwelt
humaine) passa a ser entendido entatildeo como o mundo usual da experiecircncia
perspectiva e pragmaacutetica deste sujeito de valores vitais que eacute essencialmente o
ser vivo (cf CV 1985 p 145) Ainda eacute defendendo uma concepccedilatildeo de vivente
como um centro criador de valores e normas e adotando uma relaccedilatildeo do ser vivo
com seu meio de caraacuteter natildeo determinista que ele procura mostrar nos termos de
Goldstein quatildeo catastroacutefica e doentia pode ser uma vida apaacutetica estagnada e
condicionada pelo exterior considerando que ldquoviver para o animal e com mais
razatildeo para o homem natildeo eacute somente se estagnar e se conservar eacute afrontar riscos
e triunfarrdquo (CV 1985 p 146)
Tambeacutem como Nietzsche tomando a vida como potecircncia valorativa que
tende agrave expansatildeo e agrave superaccedilatildeo como movimento incessante de ensaio
experimentaccedilatildeo e criaccedilatildeo de novas formas eacute atraveacutes da afirmaccedilatildeo da reatividade
criatividade e liberdade vitais - jaacute que ela pode transgredir seus proacuteprios haacutebitos
ensaiar experimentar improvisar novos modos de ser e insurgir-se contra as
imposiccedilotildees do meio - que Canguilhem consegue se opor a uma perspectiva
ideoloacutegica de mecanizaccedilatildeo da vida e sua consequente desvalorizaccedilatildeo
perspectiva a seu ver inaugurada pela teoria cartesiana do animal-maacutequina que
inseparaacutevel da proposiccedilatildeo ldquopenso logo existordquo apresentou o corpo como incapaz
de linguagem e de invenccedilatildeo (cf CV 1985 p111) servindo posteriormente de
base para a constituiccedilatildeo de uma ciecircncia bioloacutegica materialista e mecanicista que
procurou eliminar da vida qualquer referecircncia a valores (cf I 1981 p117)
Desse modo eacute apontando as insuficiecircncias das teorias bioloacutegicas que
assimilam o organismo a uma maacutequina bem como o equiacutevoco das teorias
deterministas de meio que ele adota uma concepccedilatildeo de vivente como uma
totalidade orgacircnica autorregulada produtora de normas e valores e uma teoria das
relaccedilotildees do ser vivo com seu meio de teor integrista33 segundo a qual mesmo as
33
Segundo Jacob (1983) o integrismo em biologia por oposiccedilatildeo ao reducionismo defende natildeo soacute que o organismo natildeo eacute dissociaacutevel em seus elementos constituintes mas tambeacutem o vecirc como
38
chamadas anomalias morfoloacutegicas e geneacuteticas - natildeo sendo necessariamente
letais ou patoloacutegicas pois sua normalidade dependeraacute de suas relaccedilotildees com o
meio em que se encontram - seratildeo consideradas necessaacuterias agrave diversificaccedilatildeo
adaptaccedilatildeo e evoluccedilatildeo das espeacutecies
Vale dizer que ao refletir sobre as relaccedilotildees do vivente com seu meio se ele
se filia ao darwinismo natildeo eacute para tomar para si o mecanismo de evoluccedilatildeo
proposto pelo autor de A origem das espeacutecies mas eacute precisamente por ter sido
Darwin quem aleacutem de colocar em xeque as ideias de criaccedilatildeo especial e
imutabilidade das espeacutecies associou a ideia de normalidade do vivente ao
ambiente em que se encontra Tambeacutem para ele as formas vivas estatildeo em
movimento contiacutenuo de transformaccedilatildeo e este processo evolutivo natildeo segue um
plano ou teacutelos preacute-determinado pela mente de um Criador mas se daacute de modo
aleatoacuterio marcado pela aventura e pelo risco (cf E 1989 p364)
De igual modo a importacircncia que daacute agraves mutaccedilotildees natildeo o faz um seguidor do
mutacionismo Ou seja se ele atribui a elas outro estatuto natildeo eacute por considerar
que sejam as uacutenicas causas dos processos evolutivos mas porque as toma como
prova da criatividade e da liberdade vitais34 jaacute que natildeo ocorrem necessariamente
por influecircncia do meio mas de espontacircneo inovador e fortuito
integrado a um sistema de ordem superior isto eacute a um grupo a uma espeacutecie a uma populaccedilatildeo ou famiacutelia ecoloacutegica Isto eacute o bioacutelogo integrista natildeo apenas se recusa a compreender o funcionamento do organismo apenas por suas estruturas fiacutesicas e seu desempenho pelas reaccedilotildees quiacutemicas que nele ocorrem mas tambeacutem se interessa pelas coletividades pelos comportamentos e relaccedilotildees que os organismos manteacutem entre si e com o seu meio Desta vista a atitude integrista pode tambeacutem ser qualificada de evolucionista na medida em que um oacutergatildeo e uma funccedilatildeo soacute tecircm interesse quando considerados no interior de um todo constituiacutedo natildeo somente pelo organismo mas pela espeacutecie em seu cotejo com a sexualidade viacutetimas inimigos comunicaccedilatildeo e ritos Sobre o integrismo em biologia confira JACOB F A loacutegica do vivente uma histoacuteria da hereditariedade (Trad Acircngela Loreiro de Souza) Rio de Janeiro Ediccedilotildees Graaal 1983
34 Dagognet (2007) destaca a vizinhanccedila existente entre a ideia de liberdade e criatividade na
filosofia da vida de Canguilhem A seu ver o destaque dado por ele agrave existecircncia de genes mutantes serve para mostrar que agrave vida eacute sempre possiacutevel atribuir uma parte de novidade e de rearranjo Tambeacutem se verifica uma criatividade de base na relaccedilatildeo do vivente com seu meio jaacute que ele longe de se submeter institui o meio em que vive e natildeo paacutera de se transformar Desta forma eacute atraveacutes de um vitalismo racional ou surracional caracterizado pelo afrouxamento em relaccedilatildeo ao convencional e agraves regras que Canguilhem elabora uma ldquofilosofia heuriacutestica da criatividaderdquo que percebe a presenccedila sempre inventiva da vida laacute onde ela parece estar abolida se abaixar e se perder nos seus domiacutenios aparentemente menos como na patologia e na atividade reflexa Sobre a importacircncia do conceito de criatividade na filosofia da vida de Canguilhem Cf DAGOGNET F Pourquoi la maladie et le reacuteflexe dans la philosophie biomeacutedicale
39
Ademais se em suas reflexotildees sobre a vida ele valoriza as
monstruosidades morfoloacutegicas e funcionais e as micromonstruosidades geneacuteticas
natildeo eacute soacute porque elas atestam que ao contraacuterio de um sistema de leis que natildeo
comporta exceccedilotildees a vida como uma ordem de propriedades admite erros
desvios e infraccedilotildees como uma via para sua superaccedilatildeo Eacute tambeacutem porque
ideologicamente uma teoria do caraacuteter espontacircneo das mutaccedilotildees pode moderar a
ambiccedilatildeo humana de dominaccedilatildeo integral da natureza assim como o
reconhecimento de uma accedilatildeo natildeo determinista do entorno em relaccedilatildeo aos
viventes desautoriza uma accedilatildeo ilimitada do vivente humano sobre os outros
viventes e sobre ele mesmo por intermeacutedio do meio (cf CV 1985 p149) Aleacutem
disso ao recusar a ideia de origem das espeacutecies apenas por seleccedilatildeo natural ele
tambeacutem procura se afastar do que considera ser uma ldquodegradaccedilatildeo ideoloacutegicardquo da
teoria da concorrecircncia vital desastrosamente transposta para as relaccedilotildees dos
indiviacuteduos em sociedade (cf I 1981 p93)35
Em vista disso na trilha dos vitalistas Canguilhem questiona todo projeto
teoacuterico que procura explicar a vida a partir de um modelo mecacircnico ou fiacutesico-
quiacutemico o que faria da biologia um mero sateacutelite de outras ciecircncias Assim como
Barthez e Bichat ele critica a invasatildeo na biologia de ciecircncias estrangeiras a toda
concepccedilatildeo vital resistindo agrave pretensatildeo da fiacutesico-quiacutemica de fornecer agrave biologia
de Canguilhem In BAUNSTEIN J-F (org) Histoire des sciences et politique du vivant Paris Presses Universitaires de France ndash PUF 2007 p17-25
35 A criacutetica de Canguilhem se direciona aqui agrave teoria evolucionista de Herbert Spencer considerado
por alguns o pai do ldquodarwinismo socialrdquo Na Ideologia e racionalidade nas ciecircncias da vida ao examinar a gecircnese do evolucionismo ele diz considerar a obra de Spencer um interessante caso de ideologia cientiacutefica do seacuteculo XIX Isso porque para ele ideologia cientiacutefica eacute certo tipo de discurso que paralelo a uma ciecircncia em constituiccedilatildeo por exigecircncias de ordem praacutetica se vecirc pressionado a antecipar a consumaccedilatildeo da investigaccedilatildeo ou ainda uma construccedilatildeo discursiva presunccedilosa e deslocada por que julga seu fim concretizado desde o iniacutecio e quando se realiza eacute de um modo diferente e em outro domiacutenio que natildeo o prometido (cf I 1981 p57) A teoria de Spencer ao encontrar na biologia de Von Baer e depois na de Darwin um padratildeo de garantia cientiacutefica para um projeto de sociedade baseada no livre empreendimento no individualismo poliacutetico e na concorrecircncia pode exemplarmente ser tomada por uma ideologia cientiacutefica pois haacute nela uma extensatildeo de conclusotildees teoacutericas regionais desligadas de suas premissas originais e libertas de seus contextos realizada em nome de uma finalidade praacutetica ldquoA ideologia evolucionista funciona como autojustificaccedilatildeo dos interesses de um tipo de sociedade A sociedade industrial em conflito por um lado com a sociedade tradicional e por outro com a reivindicaccedilatildeo social Ideologia antiteleoloacutegica por um lado e anti-socialista por outro Reencontramos assim o conceito marxista de ideologia que a considera como a representaccedilatildeo da realidade natural ou social cuja verdade natildeo reside no que esta representaccedilatildeo diz mas no que ela calardquo (I 1981 p40)
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seus princiacutepios de explicaccedilatildeo (cf E 1989 p79) Tambeacutem a seu ver a anexaccedilatildeo
da biologia agraves ciecircncias da mateacuteria representaria a perda da especificidade de seu
objeto o fenocircmeno orgacircnico Assim afastado tanto da crenccedila animista na
existecircncia de uma alma provida de todos os atributos de inteligecircncia da qual
dependeria a vida do corpo animal como de um substancialismo dualista que
admite a existecircncia de uma substancia agindo sobre a outra da qual seria
ontologicamente distinta seu vitalismo ldquoeacute o simples reconhecimento da
originalidade do fato vitalrdquo (CV 1985 p156)
Mas eacute tambeacutem ciente das apropriaccedilotildees ideoloacutegicas do vitalismo que ele
procura destacar a fecundidade e a vitalidade desta tradiccedilatildeo de pensamento de
modo a poder nela se inscrever sem ser acusado de reacionaacuterio Isso porque
admite que historicamente o conceito de totalidade orgacircnica foi transposto para o
terreno poliacutetico como forma de justificar o regime totalitaacuterio a enteleacutequia de
Driesch foi tomada como o Fuumlhrer do organismo assim como a geneacutetica as
teacutecnicas de esterilizaccedilatildeo e de inseminaccedilatildeo artificial foram colocadas a serviccedilo da
eugenia racista e o darwinismo foi usado para justificar o imperialismo e a poliacutetica
do espaccedilo vital (Lebensraum) alematilde Natildeo obstante negando haver uma relaccedilatildeo
direta entre vitalismo e nacional-socialismo ele acredita que a conversatildeo de
certos bioacutelogos vitalistas ao nazismo natildeo deve fazer com que desabonemos o
vitalismo assim como natildeo criticamos a aritmeacutetica e o caacutelculo por sua utilizaccedilatildeo
pelos banqueiros e atuais capitalistas (cf CV 1985 p98)
De todo modo considerando que foi a biologia vitalista impregnada de
animismo a que foi utilizada pela ideologia nazista para justificar seu projeto social
se ele natildeo se importa de ser chamado de vitalista natildeo eacute por aceitar a existecircncia de
uma forccedila vital situada para aleacutem da mateacuteria viva que a animaria de fora como
fizeram os animistas e os vitalistas claacutessicos mas por admitir uma capacidade
inerente proacutepria a ela de reaccedilatildeo e de autoconservaccedilatildeo que natildeo se encontra na
mateacuteria inerte e que atesta a especificidade da ordem vital em relaccedilatildeo agrave
maquinal
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Aleacutem disso se para Canguilhem eacute a perspectiva vitalista a que melhor o
auxilia a operar a diferenciaccedilatildeo entre o vivo e o inerte eacute tambeacutem ela a uacutenica que
consegue explicar o surgimento da atividade teacutecnica a partir da vida mesma
ldquoo vitalismo eacute talvez o sentimento de uma antecipaccedilatildeo ontoloacutegica portanto cronologicamente irrecuperaacutevel da vida sobre a teoria e a teacutecnica sobre a inteligecircncia e a simulaccedilatildeo da vidardquo (FCR 1995 p128)
Transpondo esta ideia para sua reflexatildeo sobre o surgimento da medicina ele nota
que enquanto a maacutequina precisa de algueacutem que a construa que a regule e a
repare o vivente se reproduz se autorrepara se autocura e se autorregenera
sendo precisamente esta capacidade de reaccedilatildeo e de resistecircncia agrave morte inerente
a tudo que vive a origem da teacutecnica meacutedica
Neste capiacutetulo entatildeo a forma como ele define a vida e o que faz com que
ela seja a raiz da atividade meacutedica eacute o que nos propomos apresentar
Quando estudamos o pensamento de Canguilhem em seu conjunto
notamos que se ele tece criacuteticas agrave biologia mecanicista natildeo eacute soacute porque considera
insuficientes os estudos bioloacutegicos que natildeo levam em conta a distinccedilatildeo existente
entre o movimento vital e o movimento fiacutesico este uacuteltimo com tendecircncia agrave ineacutercia
(cf CV 1985 p12) Eacute tambeacutem porque percebe que historicamente ela se
constituiu a partir de um projeto poliacutetico-ideoloacutegico de supressatildeo de toda e
qualquer referecircncia a valores no campo da ciecircncia associado agrave disputa de
autoridade entre os poderes religioso e laico
ldquoMas vem-nos imediatamente ao espiacuterito que desde o princiacutepio do seacuteculo XIX a definiccedilatildeo do objeto especiacutefico da biologia foi purgado de qualquer referecircncia a conceitos de ordem axioloacutegica tais como perfeiccedilatildeo ou imperfeiccedilatildeo normal ou anormal etc () Consequentemente o problema da lsquonormalidadersquo na histoacuteria do pensamento bioloacutegico devia colocar-se entre as consideraccedilotildees natildeo atuais Queremos fazer uma tentativa de demonstrar o contraacuteriordquo (cf I 1981 p109)
Assim se ele se dedica filosoficamente ao problema do normal e do patoloacutegico eacute
sobretudo para resgatar a dimensatildeo ativa e axioloacutegica da vida traduzida por suas
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propriedades de instituir valores e de criar normas isto eacute pela polaridade
dinacircmica e normatividade que lhe satildeo proacuteprias
Com efeito em seus Eacutetudes dacuteHistoire et de Philosophie des Sciences
Canguilhem esclarece que a partir do momento em que a mecacircnica cartesiana e
galileana foi dada como modelo de uma ciecircncia universal em seu objeto e
homogecircnea em seu meacutetodo abolindo toda a diferenccedila ontoloacutegica entre as coisas
do ceacuteu e da terra entre as coisas inertes e os seres vivos os organismos
passaram a ser descritos e explicados em sua estrutura e funccedilotildees como um ponto
de convergecircncia de forccedilas fiacutesicas e como o resultado de um conjunto de
influecircncias externas impostas pelo ambiente natural A biologia passou entatildeo a
utilizar a linguagem da fiacutesica e da quiacutemica e a explicar os seres vivos nos mesmos
termos da mateacuteria inerte reduzindo-os a propriedades puramente extensionais A
consequecircncia disso foi a perda da especificidade das ciecircncias bioloacutegicas em seu
objeto e meacutetodos de investigaccedilatildeo (cf E 1989 p33)
Jaacute na Ideologia e racionalidade nas ciecircncias da vida ao apresentar seu
estudo sobre o problema da normalidade na histoacuteria do pensamento bioloacutegico
Canguilhem inicia sua argumentaccedilatildeo citando a surpresa de Emile Radl autor de
Geschichte der biologischen Theorien in der Neuzeit (1913) com o fato de a
biologia de seu tempo ser colocada em diacutevida com Galileu e Descartes jaacute que a
eles natildeo se pode atribuir nenhuma ideia bioloacutegica digna de nota A seu ver o
historiador jaacute fazendo oposiccedilatildeo agraves pretensotildees do que mais tarde seria chamado
de reducionismo se colocava expressamente contra a filosofia bioloacutegica
materialista do XIX amalgamada num racionalismo de laboratoacuterio isomorfo de um
radicalismo poliacutetico anticlerical ldquose a vida natildeo eacute mais do que mateacuteria que se
acautelem a alma a imortalidade e o poder clericalrdquo (I 1981 p107)
Mas atraveacutes desta explicitaccedilatildeo ideoloacutegica longe de querer criticar o projeto
de constituiccedilatildeo de um pensamento bioloacutegico laico o que agora Canguilhem
procura mostrar eacute que desde o princiacutepio do seacuteculo XIX devido agrave disputa de
autoridade entre os poderes religioso e secular a ciecircncia bioloacutegica vem sendo
purificada de qualquer referecircncia a conceitos de ordem axioloacutegica do estudo das
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funccedilotildees da vida agrave questatildeo da origem das espeacutecies Em decorrecircncia disso
abolindo toda diferenccedila entre o vivo e o natildeo vivo os bioacutelogos e bioquiacutemicos
submeteram completamente seu objeto agrave jurisdiccedilatildeo dos fiacutesicos e dos quiacutemicos
tomando por modelo explicativo das funccedilotildees de autoconservaccedilatildeo autorregulaccedilatildeo
e autorreproduccedilatildeo a ldquooficina quiacutemica completamente automaacuteticardquo (cf I 1981
p109) Os progressos obtidos por eles na anaacutelise e na siacutentese dos compostos
orgacircnicos a reduccedilatildeo dos processos vitais a transformaccedilotildees quiacutemicas e
termodinacircmicas encorajaram tambeacutem os filoacutesofos e bioacutelogos que se dedicavam agrave
explicaccedilatildeo da evoluccedilatildeo das espeacutecies a refutar por oposiccedilatildeo agrave biologia natural ou
revelada toda ideia sobre a natureza da vida que natildeo tivesse um caraacuteter
mecanicista ou materialista de modo a eliminar dela qualquer referecircncia a uma
concepccedilatildeo de valor (cf I 1981 p117)
Assim eacute para demonstrar que natildeo haacute como eliminar da ideia de vida
qualquer referecircncia a uma comparaccedilatildeo de valores pois a vida mesma representa
uma diferenccedila de valor em relaccedilatildeo agrave morte e ainda que a interrogaccedilatildeo sobre o
sentido dos comportamentos e normas de adaptabilidade da vida eacute uma tarefa da
biologia e natildeo da fiacutesica ou da quiacutemica que Canguilhem se empenharaacute em mostrar
que se a vida fosse indiferente agraves suas proacuteprias normas e agraves condiccedilotildees que lhe
satildeo impostas funccedilotildees como a autoconservaccedilatildeo e a autorregulaccedilatildeo sequer seriam
possiacuteveis assim como natildeo haveria como falar em adaptaccedilatildeo comportamento cujo
sentido vital - que mesmo uma explicaccedilatildeo causal da evoluccedilatildeo natildeo consegue abolir
- eacute determinado por referecircncia do ser vivo agrave morte ldquoSeraacute indiferente viver ou
morrer lutar com sucesso ou com sucesso ndash mesmo que o sucesso consista
simplesmente em continuar a viverrdquo (I 1981 p116)
Isso explica porque em suas Novas reflexotildees referentes ao normal e ao
patoloacutegico (1963-1966) ele diz que desde seu Ensaio sobre alguns problemas
relativos ao normal e ao patoloacutegico (1943) baseia sua reflexatildeo sobre o normal
numa anaacutelise filosoacutefica da vida compreendida como uma atividade de oposiccedilatildeo agrave
ineacutercia e agrave indiferenccedila Neste contexto se colocando contra a biologia
fundamentada nos princiacutepios da mecacircnica moderna que considera a vida um
objeto estaacutevel idecircntico a si mesmo uma mateacuteria inerte que precisa ser colocada
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em movimento por uma forccedila exterior a ela afirma que este modelo explicativo
natildeo pode ser transposto para os fenocircmenos vitais porque a vida natildeo eacute indiferente
agraves condiccedilotildees que lhe satildeo impostas
ldquoA mecacircnica moderna baseando a ciecircncia do movimento no princiacutepio da ineacutercia tornava absurda com efeito a distinccedilatildeo [aristoteacutelica] entre os movimentos naturais e os movimentos violentos jaacute que a ineacutercia eacute precisamente a indiferenccedila em relaccedilatildeo agraves direccedilotildees e variaccedilotildees do movimento Ora a vida estaacute bem longe de uma tal indiferenccedila em relaccedilatildeo agraves condiccedilotildees que lhe satildeo impostas a vida eacute polaridaderdquo (NP 1990 p98)
Assim percebendo que a vida natildeo permanece inerte diante do que lhe
ameaccedila Canguilhem diz haver nela uma polaridade dinacircmica entendida como
uma resposta agraves demandas do meio expressa atraveacutes do estabelecimento de
valores vitais opostos positivos e negativos Mesmo o mais simples dos aparelhos
bioloacutegicos de nutriccedilatildeo de assimilaccedilatildeo e de excreccedilatildeo afirma ele atesta esta
polaridade estando certa a linguagem psicanaliacutetica ao qualificar como poacutelos os
orifiacutecios naturais de ingestatildeo e de excreccedilatildeo e em situar os objetos de satisfaccedilatildeo
em relaccedilatildeo a uma propulsatildeo e a uma repulsatildeo ldquoViver eacute mesmo para uma ameba
preferir e excluirrdquo (NP 1990 p105)36
Ademais eacute tambeacutem por natildeo haver indiferenccedila bioloacutegica pelo fato de a vida
ser atividade polarizada de conflito com o meio que podemos falar em
normatividade vital pois eacute apenas a partir do valor atribuiacutedo pela vida a um
determinado comportamento bioloacutegico que podemos chamaacute-lo ou natildeo de normal
Ateacute porque caso admitiacutessemos que a vida natildeo faz diferenccedila entre suas normas
estariacuteamos nos condenando a natildeo poder nem mesmo distinguir um alimento de
um excremento um estado fisioloacutegico de um patoloacutegico
ldquoEacute por referecircncia agrave polaridade dinacircmica da vida que se pode chamar de normais determinados tipos ou funccedilotildees Se existem normas bioloacutegicas eacute porque a vida sendo natildeo apenas submissatildeo ao meio mas tambeacutem instituiccedilatildeo de seu meio proacuteprio
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Nos Eacutetudes dacuteHistoire et de Philosophie des Sciences no toacutepico ldquoLa nouvelle connaissance de la vierdquo Canguilhem nota que Bergson na obra La Penseacutee et le Mouvant ao se referir agrave assimilaccedilatildeo esclarece que ela natildeo aparece somente como a absorccedilatildeo de um alimento mas tambeacutem como a forma como o vivente trata aquilo que se assimila se o reteacutem ou o rejeita de modo que ldquoviver em qualquer escala que seja eacute escolher e negligenciarrdquo (E 1989 p350)
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estabelece por isso mesmo valores natildeo apenas no meio mas tambeacutem no proacuteprio organismo Eacute o que chamamos de normatividade bioloacutegicardquo (NP 1990 p187)
Assim se falamos em normas bioloacutegicas de diferentes naturezas de
distintas qualidades eacute somente porque todo vivente e natildeo apenas o humano
inconscientemente impotildee valores Desta forma contrariando a ideia de que a
atribuiccedilatildeo de valores a determinados comportamentos bioloacutegicos eacute possiacutevel
apenas ao vivente capaz de linguagem verbal isto eacute ao vivente humano
Canguilhem esclarece que natildeo seria possiacutevel ao homem estimar de modo
consciente se a normatividade natildeo estivesse em germe na vida
ldquoO verbete do Vocabulaire philosophique parece supor que o valor soacute pode ser atribuiacutedo a um fato bioloacutegico por lsquoaquele que falarsquo isto eacute evidentemente um homem Achamos ao contraacuterio que para um ser vivo o fato de reagir por uma doenccedila a uma lesatildeo a uma infestaccedilatildeo a uma anarquia funcional traduz o fato fundamental que a vida natildeo eacute indiferente agraves condiccedilotildees nas quais ela eacute possiacutevel que a vida eacute polaridade e por isso mesmo posiccedilatildeo inconsciente de valor em resumo que a vida eacute de fato uma atividade normativardquo (NP 1990 p96)
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Portanto aleacutem da polaridade vital devemos reconhecer uma ldquonormatividade
original da vidardquo (NP 1990 p142) Ou seja a capacidade que todo vivente tem de
instituir normas de funcionamento orgacircnico e tambeacutem de superaacute-las em uma
situaccedilatildeo eventual Isso porque considerando a polaridade dinacircmica dizer que o
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Lecourt (2005) acredita que ao se perguntar sobre as raiacutezes bioloacutegicas dos valores humanos Canguilhem se alinha agrave Werthphilosophie Tambeacutem Debru (2007) acredita que a tese canguilhemiana de vida animada pela ideia de posiccedilatildeo de valor evoca fortemente esta corrente de pensamento na qual o valor eacute aquilo que nasce do embate do vivente com o meio Pela mesma perspectiva Schmidgen (2008) a partir da identificaccedilatildeo do conjunto dos autores alematildees que figuram em seus escritos trata especificamente da influencia da Werthphilosophie ou da filosofia axioloacutegica como chamada na Franccedila em Canguilhem Como Lecourt ele destaca a referecircncia agrave obra do vienense Robert Reininger Werthphilosophie und Ethik (1939) no Ensaio de 43 e dos trabalhos de Rickert Herxheimer Windelband e Muumlsterberg e ainda o elogio em O conhecimento da vida agrave obra Esquisse drsquoune philosophie des valeurs (1939) de Eugeacutene Dupreacuteel Sobre a influecircncia da Werthphilosophie na filosofia de Canguilhem confira LECOURT D Georges Canguilhem Que sais-je Les envies du savoir 1
a ediccedilatildeo Paris Presses Universitaires de France
- PUF 2008 DEBRU C Lrsquoengagement philosophique dans le champ de la medicine Georges Canguilhem aujourdrsquohui In BAUNSTEIN J-F (org) Histoire des sciences et politique du vivant Paris Presses Universitaires de France ndash PUF 2007 SCHMIDGEN H Georges Canguilhem et ldquoles discours allemandsrdquo In FAGOT-LARGEAULT DEBRU D MORANGE M (dir) HAN H-J (eacuted) Philosophie et meacutedecine en hommage agrave Georges Canguilhem (LrsquoHistoire des sicences ndash Textes et Egravetudes) Paris Vrin 2008
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vivente eacute normativo natildeo eacute apenas afirmar que ele institui normas Eacute ainda
constatar que a manutenccedilatildeo de uma uacutenica norma eacute sentida privativamente e natildeo
positivamente por ele jaacute que a conservaccedilatildeo normativa impede a adoccedilatildeo de novos
comportamentos vitais dificultando a atividade proacutepria de todo organismo que eacute a
de operar ajustes normativos
No entanto Canguilhem nota que a normatividade vital natildeo se trata de uma
maleabilidade funcional total e instantacircnea pois natildeo podemos adotar normas a
nosso bel-prazer Ela seria entatildeo mais bem definida como uma plasticidade
funcional que permite a todo vivente alterar dentro de certos limites suas
constantes funcionais interpretadas como normas habituais de vida (cf NP 1990
p 138) Por isso seria mais adequado falar em ritmos estabilizados da vida ou em
modos de ser da vida termos mais condizentes com o dinamismo que lhe eacute
proacuteprio (cf NP 1990 p166)
Destarte natildeo sendo estaacutetica a vida natildeo se traduz por constantes ou
invariantes bioloacutegicas codificadas mas pela possibilidade do vivente adotar
diferentes modos de ser permitindo a ele no momento de ruptura de sua
estabilidade orgacircnica encontrar entre as constantes aquela na qual poderaacute ainda
viver uma nova norma que mesmo sendo patoloacutegica natildeo deixaraacute de ser para ele
ldquonormalrdquo Em resumo a vida opera por normas por comportamentos que se
estabilizam em constantes mas esta estabilizaccedilatildeo natildeo deve constituir um
obstaacuteculo a uma superaccedilatildeo eventual pois isto significaria a morte da
normatividade
ldquoHaacute dois tipos de comportamentos ineacuteditos da vida Haacute os que se estabilizam em novas constantes mas cuja estabilidade natildeo constituiraacute obstaacuteculo a uma nova superaccedilatildeo eventual Satildeo realmente normais por normatividade E haacute os que se estabilizam sob a forma de constantes que o indiviacuteduo se esforccedilaraacute ansiosamente por preservar de qualquer perturbaccedilatildeo eventual Trata-se aqui de constantes normais mas de valor repulsivo exprimindo nelas a morte da normatividaderdquo (NP 1990 p167)
Em vista disso Canguilhem apresenta como criteacuterio de sauacutede e de doenccedila ndash
modos de ser respectivamente valorados positiva e negativamente pela vida ndash a
amplitude ou restriccedilatildeo da normatividade ou seja a maior ou menor possibilidade
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do vivente ultrapassar um estado de normalidade estabilizado e adotar outro38
Atraveacutes deste paracircmetro o doente eacute anormal natildeo por natildeo ter norma mas por soacute
poder admitir uma norma ldquoComo jaacute dissemos muitas vezes o doente natildeo eacute
anormal por ausecircncia de norma e sim por incapacidade de ser normativordquo (NP
1990 p148)
Com efeito como esclarece em La connaissance de la vie a doenccedila ou
estado patoloacutegico natildeo eacute a perda de uma norma mas eacute um ritmo de vida regrado
por normas vitalmente inferiores ou depreciadas pela vida pois impedem o vivente
de uma participaccedilatildeo ativa num dado meio ldquoRigorosamente lsquopatoloacutegicorsquo eacute o
contraacuterio vital de lsquosatildeorsquo e natildeo o contraditoacuterio loacutegico de normalrdquo (CV 1985 p166)
Considerando portanto que o patoloacutegico eacute tambeacutem uma espeacutecie de normal
devemos reconhecer que enquanto o ser vivo doente estaacute normalizado em
condiccedilotildees bem definidas pois perdeu sua capacidade de instituir normas
diferentes em condiccedilotildees adversas o vivente saudaacutevel eacute normativo pois consegue
questionar suas normas usuais por ocasiatildeo de situaccedilotildees criacuteticas e superaacute-las
atraveacutes da instauraccedilatildeo de uma nova ordem vital
ldquoSe reconhecermos que a doenccedila natildeo deixa de ser uma espeacutecie de norma bioloacutegica consequumlentemente o estado patoloacutegico natildeo pode ser chamado de anormal no sentido absoluto mas anormal apenas na relaccedilatildeo com uma situaccedilatildeo determinada Reciprocamente ser sadio e ser normal natildeo satildeo fatos totalmente equivalentes jaacute que o patoloacutegico eacute uma espeacutecie de normal Ser sadio significa natildeo apenas ser normal numa situaccedilatildeo determinada mas ser tambeacutem normativo nessa situaccedilatildeo e em outras situaccedilotildees eventuais O que caracteriza a sauacutede eacute a possibilidade de ultrapassar a norma que define o normal momentacircneo a possibilidade de tolerar infraccedilotildees agrave norma habitual e de instituir normas novas em situaccedilotildees novasrdquo (NP 1990 p158)
Aleacutem disso para Canguilhem acompanhando o pensamento de Goldstein
haacute uma irreversibilidade na normatividade vital pois as normas criadas apoacutes uma
crise orgacircnica natildeo satildeo as mesmas adotadas pelo vivente antes do processo
criacutetico Com efeito Goldstein afirma que as novas normas fisioloacutegicas instituiacutedas
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Por este ponto de vista podemos aproximar o pensamento de Canguilhem ao de Simondon para quem o indiviacuteduo vivente eacute um sistema metaestaacutevel rico em potenciais sendo que o equiliacutebrio estaacutevel deste sistema representa seu mais baixo niacutevel de energia potencial possiacutevel pois o impede de transformar-se em outro Cf SIMONDON G Lrsquoindividuation agrave la lumiegravere des notions de forme et drsquoinformation Paris Millon 2005
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apoacutes a crise orgacircnica natildeo satildeo as mesmas anteriores agrave doenccedila admitindo o fato
bioloacutegico fundamental de que a vida natildeo conhece reversibilidade mas admite
reparaccedilotildees que satildeo realmente inovaccedilotildees fisioloacutegicas ldquocurar eacute criar para si novas
normas de vida agraves vezes superiores agraves antigasrdquo (NP 1990 p 188) Com isso ele
contraria a ideia de cura como possibilidade de retorno a um estado de ordem
preacutevio anterior agrave doenccedila (restitutio ad integrum)
ldquocurar apesar dos deacuteficits sempre eacute acompanhado de perdas essenciais para o organismo e ao mesmo tempo do reaparecimento de uma ordem A isso corresponde uma nova norma individualrdquo (cf NP 1990 p156)
Por este vieacutes a cura natildeo pode ser entendida como um retorno a um estado
anterior de ldquoinocecircncia bioloacutegicardquo Ela eacute a reconquista de um estado de estabilidade
orgacircnica que estaraacute mais proacuteximo da doenccedila ou da sauacutede na medida em que
estiver mais ou menos aberto a eventuais modificaccedilotildees
Assim colocando de outro modo a questatildeo da normalidade Canguilhem
mostra que o que chamamos de vivente normal ou saudaacutevel eacute o normativo e o
anormal ou patoloacutegico eacute aquele que natildeo apresenta capacidade de evitar ou corrigir
comportamentos que lhe ameaccedilam por uma restriccedilatildeo em sua normatividade
traduzida pela incapacidade de uma norma vital transformar-se em outra norma
quando instada pelo meio a isto Jaacute o vivente saudaacutevel eacute aquele que consegue se
ajustar ao meio adaptando-se ativamente a ele39 seja alterando sua norma atual
seja alterando o meio tambeacutem este passiacutevel de ajustes e modificaccedilotildees
ldquoMas o meio coacutesmico o meio do animal de modo geral natildeo seraacute um sistema de constantes mecacircnicas fiacutesicas e quiacutemicas natildeo seraacute feito de invariantes Eacute claro que este meio definido pela ciecircncia eacute feito de leis mas essas leis satildeo abstraccedilotildees teoacutericas O ser vivo natildeo vive entre leis mas entre seres e acontecimentos que diversificam essas leis O que sustenta o paacutessaro eacute o galho da aacutervore e natildeo as leis da elasticidade Se reduzirmos o galho agraves leis da elasticidade tambeacutem natildeo devemos falar em paacutessaro e sim em soluccedilotildees coloidais Em tal niacutevel de abstraccedilatildeo analiacutetica natildeo se
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Na mesma direccedilatildeo Bergson diferencia a adaptaccedilatildeo passiva na qual o organismo eacute uma mateacuteria inerte que sofre influecircncia do meio e a adaptaccedilatildeo ativa que ocorre quando um organismo seletivamente extrai desta influecircncia uma condiccedilatildeo apropriada (cf BERGSON 2005 p76-77) In BERGSON H A evoluccedilatildeo criadora (Trad Bento Prado Neto) Satildeo Paulo Martins Fontes 2005 (Coleccedilatildeo Toacutepicos)
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pode mais falar em meio para um ser vivo nem em sauacutede nem em doenccedila Da mesma forma o que a raposa come eacute o ovo de galinha e natildeo a quiacutemica dos albuminoides ou as leis da embriologiardquo (NP 1990 p159)
Natildeo sendo o meio portanto um sistema de constantes invariaacuteveis tambeacutem ele
estaacute em contiacutenuo processo de estruturaccedilatildeo pelos viventes que com ele se
relacionam ldquoDe fato o meio do ser vivo eacute tambeacutem obra do ser vivo que se furta e
se oferece eletivamente a certas influecircnciasrdquo (NP 1990 p143)
Mas embora Canguilhem defenda que o meio natildeo eacute apenas um fato fiacutesico
mas um fato bioloacutegico isto eacute natildeo eacute um fato constituiacutedo mas um fato a se
constituir acredita que o vivente natildeo o altera em busca de um estado de
estabilizaccedilatildeo permanente nem se adapta mecanicamente a ele Afastando-se de
dois princiacutepios um teleoloacutegico e outro mecanicista sobre a adaptaccedilatildeo ele recusa
tanto a ideia de que o ser vivo se adapta de acordo com a procura de satisfaccedilotildees
funcionais sendo a adaptaccedilatildeo um ideal a ser atingido como aquela que afirma
que o ser vivo eacute adaptado pela accedilatildeo de uma necessidade de ordem mecacircnica
fiacutesico-quiacutemica ou bioloacutegica (outros seres vivos) sendo ela a expressatildeo de um
estado de equiliacutebrio que natildeo deve ser alterado pois isso significaria um risco de
morte
Contestando ambas as perspectivas ele entende que o vivente natildeo eacute um ser
passivo que apenas recebe influecircncias de um meio que lhe eacute adverso40 Em seu
embate com o meio para manter sua integridade mais do que se conservar no
sentido de manter-se como estaacute ele deve continuamente confrontar-se com o
meio transformaacute-lo e tambeacutem se transformar
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Segundo Braunstein (2007) a criacutetica ao conceito mecanicista de meio estaacute presente no coraccedilatildeo das duas principais obras de Canguilhem O normal e o patoloacutegico (1943) e A formaccedilatildeo do conceito de reflexo (1955) aleacutem de figurar no artigo ldquoLe vivant et son milieurdquo (1946-1947) de La connaissance de la vie Ele nota que desde a deacutecada de 30 Canguilhem jaacute se colocava contra uma concepccedilatildeo determinista de meio presente nos trabalhos de Barregraves e antes deste no de Taine Considerando que nem a raccedila nem o meio nem o momento satildeo suficientes para definir o homem ele natildeo aceita falar em influecircncia do meio sobre o vivente como faz a tradiccedilatildeo mecanicista mas em reaccedilatildeo do vivente em relaccedilatildeo ao meio Sobre as implicaccedilotildees da concepccedilatildeo determinista de meio natildeo soacute na biologia como na psicologia assunto que trataremos mais adiante confira BRAUNSTEIN J-F (org) Psychologie et milieu Eacutethique et histoire des sciences chez Georges Canguilhem In BRAUNSTEIN J-F (org) Histoire des sciences et politique du vivant Paris Presses Universitaires de France ndash PUF 2007
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ldquo() se consideramos a relaccedilatildeo organismo-meio como consequecircncia de uma atividade verdadeiramente bioloacutegica como a procura de uma situaccedilatildeo na qual o ser vivo em vez de sofrer influecircncias recolhe as influecircncias e as qualidades que correspondem a suas exigecircncias entatildeo os meios nos quais os seres vivos estatildeo colocados estatildeo delimitados por eles centrados neles Neste sentido o organismo natildeo estaacute jogado num meio ao qual tem que se dobrar mas ao contraacuterio ele estrutura seu meio ao mesmo tempo em que desenvolve suas capacidades de organismordquo (NP 1990 p258)
Por isso em La connaissance de la vie ele novamente concorda com
Goldstein para quem a interaccedilatildeo entre vivente e meio natildeo eacute uma relaccedilatildeo de tipo
fiacutesica mas bioloacutegica Segundo o autor de Der Aufbau des Organismus entre o
vivente e o meio a relaccedilatildeo se estabelece como um debate (Auseinandersetzung)
onde os viventes colocam suas proacuteprias normas de apreciaccedilatildeo das situaccedilotildees
dominam o meio e se acomodam Eacute neste sentido que a atividade do organismo
pode ser definida como criadora pois cada vivente compotildee o ambiente a sua
maneira de modo a poder se realizar isto eacute existir (cf CV 1985 p 24) Mas
para ele esta relaccedilatildeo natildeo consiste essencialmente numa oposiccedilatildeo
ldquouma vida que se afirma contra jaacute eacute uma vida ameaccedilada () Uma vida satilde confiante na sua existecircncia em seus valores eacute uma vida em flexatildeo uma vida flexiacutevel quase em moderaccedilatildeordquo (CV 1985 p146)
Desta forma a situaccedilatildeo de um vivente comandado de fora pelo meio deve ser
considerada catastroacutefica pois traduz uma dominaccedilatildeo do exterior sobre um
organismo que deveria compocirc-lo influenciaacute-lo e organizaacute-lo tendo a si proacuteprio
como centro de referecircncia e como polo doador de sentido vital
Considerada a estreita relaccedilatildeo organismo-meio a normalidade do vivente
natildeo pode ser pensada fora de sua relaccedilatildeo com o meio assim como a normalidade
do meio natildeo pode ser pensada sem o vivente ldquoo ser vivo e o meio considerados
separadamente natildeo satildeo normais poreacutem eacute sua relaccedilatildeo que os torna normais um
para o outrordquo (NP 1990 p96) O vivente eacute normal na medida em que consegue
responder agraves exigecircncias do meio assim como o meio soacute pode ser considerado
normal em relaccedilatildeo agrave norma morfoloacutegica e funcional do vivente que o utiliza em seu
51
proveito Eacute portanto a relaccedilatildeo do vivente com o meio41 que definiraacute a normalidade
natildeo do soacute do vivente mas tambeacutem do proacuteprio meio ldquoo meio eacute normal pelo fato do
ser vivo nele desenvolver melhor sua vida e nele manter melhor sua proacutepria
normardquo (cf NP 1990 p111)
Mesmo quando pensamos num conjunto de viventes como representantes
de uma mesma espeacutecie sua normalidade tambeacutem teraacute estreita relaccedilatildeo com as
condiccedilotildees que o meio pode oferecer a sua manutenccedilatildeo e propagaccedilatildeo Entatildeo o
meio normal para uma espeacutecie eacute aquele que permite a ela natildeo soacute maior
fecundidade mas tambeacutem uma variedade de formas que na hipoacutetese de
ocorrerem modificaccedilotildees externas decirc condiccedilotildees agrave vida de encontrar numa dessas
formas a soluccedilatildeo para o problema de adaptaccedilatildeo que se vecirc forccedilada a resolver Daiacute
o sentido do elogio de Canguilhem ao Darwin por ter definido uma espeacutecie como
o agrupamento de indiviacuteduos todos diferentes em certo grau e cuja unidade
traduziria a normalizaccedilatildeo momentacircnea de suas relaccedilotildees com o meio inclusive
com outras espeacutecies (cf NP 1990 p112)
Atraveacutes deste entendimento de normalidade derivado da relaccedilatildeo do vivente
com seu meio ateacute mesmo os considerados ldquoanormaisrdquo por serem mutantes
poderatildeo ser considerados normais se num dado meio a sua norma for vitalmente
vaacutelida Exemplo disto eacute o fato de que uma espeacutecie animal cega derivada de uma
de boa visatildeo seraacute mais normal que a vidente em uma caverna (cf NP 1990
p237) assim como uma drosoacutefila de asa vestigial derivada por mutaccedilatildeo de uma
drosoacutefila alada seraacute normal agrave beira-mar jaacute que num meio ventilado as drosoacutefilas
aladas tecircm mais oportunidade de serem eliminadas ganhando vantagem das
mutantes apenas num meio protegido de ventos e fechado (cf NP 1990 p111)
Na mesma direccedilatildeo na Ideologia e racionalidade nas ciecircncias da vida ao
escrever sobre o problema da normalidade na histoacuteria do pensamento bioloacutegico
41
Canguilhem assim como Simondon natildeo acredita ser possiacutevel pensar o vivente separado do meio em que se encontra O ponto de vista simondoniano eacute que o meio natildeo estaacute despojado do indiviacuteduo assim como o indiviacuteduo natildeo perde a dimensatildeo do meio e que o vivente resolve seus problemas natildeo somente adaptando-se (como pode fazer uma maacutequina) mas tambeacutem modificando a si mesmo inventando novas estruturas internas cf SIMONDON G Lrsquoindividuation agrave la lumiegravere des notions de forme et drsquoinformation Op cit
52
Canguilhem ressalta que eacute Darwin quem descobre um mecanismo natural de
normalizaccedilatildeo da anomalia menor que eacute a variaccedilatildeo jaacute que para ele os desvios
satildeo possibilidades de incursatildeo dos seres vivos em outros meios ldquosegundo o
espiacuterito do darwinismo a norma natildeo eacute algo fixo mas uma capacidade transitivardquo
(cf I 1981 p116-117) Ou seja para o autor de A origem das espeacutecies a
normalidade dos seres vivos seraacute dada pela qualidade da relaccedilatildeo que tecircm com
seu meio como o que permite a eles e atraveacutes das variaccedilotildees individuais dos seus
descendentes novas formas de relaccedilatildeo com um novo meio e assim
sucessivamente
Com isso Canguilhem quer provar que houve uma confusatildeo na
identificaccedilatildeo dos termos anormal e anomalia Ele explica que etimologicamente
anomalia vem do grego anomalia que significa desigualdade aspereza o a-
nomalos eacute o desigual o rugoso o irregular Assim houve um engano a respeito
do termo anomalia derivando-o natildeo de omalos mas de nomos que significa lei A
seu ver o termo anomalia designa um fato eacute um descritivo enquanto anormal faz
referecircncia a um valor sendo um termo apreciativo Natildeo obstante a confusatildeo
tornou o anormal um conceito descritivo e a anomalia avaliativo (cf NP 1990
p101) Pela sua perspectiva o anocircmalo seria apenas o ldquodesigualrdquo o ldquodiferenterdquo e
o patoloacutegico sim seria o ldquoanormalrdquo natildeo por carecer de norma mas por ser uma
norma valorada negativamente pela vida ldquoo patoloacutegico natildeo eacute a ausecircncia de norma
bioloacutegica eacute uma norma diferente mas comparativamente repelida pela vidardquo (NP
1990 p113-114) Portanto nos equivocamos quando identificamos o patoloacutegico
ao anocircmalo A anomalia como uma variedade bioloacutegica pode transformar-se em
doenccedila mas natildeo eacute por si soacute uma doenccedila ldquoa anomalia pode constituir um objeto
de um capiacutetulo especial da histoacuteria natural mas natildeo da patologiardquo (NP 1990
p105)
Para corroborar seu ponto de vista ele lembra que para I Geoffroy Saint-
Hilaire a anomalia eacute um fato bioloacutegico que a ciecircncia deve explicar e natildeo apreciar
Segundo o autor da Histoire geacutenerale et particuliegravere des anomalies de l
organisation chez lrsquohomme et les animaux eacute incorreto falar a respeito dos animais
que apresentam organizaccedilatildeo e caracteres insoacutelitos em capricho da natureza em
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desordem ou irregularidade Natildeo existem formaccedilotildees orgacircnicas que natildeo estejam
submetidas a leis e se existem exceccedilotildees satildeo exceccedilotildees agraves leis dos naturalistas e
natildeo agraves leis da natureza Ou seja todas as espeacutecies vivas ldquosatildeo o que devem serrdquo
Mas embora todas elas apresentem uma grande variaccedilatildeo nas formas e no
volume proporcional dos oacutergatildeos por outro lado haacute um conjunto de traccedilos comuns
agrave grande maioria dos indiviacuteduos que compotildeem a mesma espeacutecie sendo este
conjunto o que define um tipo especiacutefico A anomalia como variedade bioloacutegica
seria apenas qualquer desvio do tipo especiacutefico ou qualquer particularidade
orgacircnica apresentada por um indiviacuteduo comparado com a grande maioria dos
indiviacuteduos de sua espeacutecie
ldquoPortanto em anatomia o termo anomalia deve conservar estritamente o seu sentido de insoacutelito de inabitual ser anormal consiste em se afastar por sua proacutepria organizaccedilatildeo da grande maioria dos seres com os quais se deve ser comparadordquo (NP 1990 p102)
Assim sendo uma anomalia natildeo eacute patoloacutegica apenas por ser uma
anomalia isto eacute um desvio do tipo especiacutefico Ela seraacute patoloacutegica apenas quando
suas normas forem inferiores quanto agrave estabilidade fecundidade e variabilidade
da vida e forem sentidas privativamente pelo organismo num determinado meio
Isto eacute enquanto a anomalia natildeo tiver uma incidecircncia funcional a ponto de ter
expressatildeo na ordem dos valores vitais ela seraacute uma variaccedilatildeo sobre um tema
especiacutefico uma ilustraccedilatildeo da diversidade de normas presente na ordem bioloacutegica
ldquoA anomalia eacute a consequecircncia de variaccedilatildeo individual que impede dois seres de poderem se substituir um ao outro de modo completo Ilustra na ordem bioloacutegica o princiacutepio leibnitziano dos indiscerniacuteveis No entanto diversidade natildeo eacute doenccedilardquo (NP 1990 p106)
Por isso Canguilhem concorda tambeacutem com John A Ryle autor de The
meaning of normal que procura demonstrar que certos desvios individuais em
relaccedilatildeo agraves normas fisioloacutegicas natildeo satildeo por isso patoloacutegicos Eacute normal que exista a
variabilidade pois ela eacute necessaacuteria agrave adaptaccedilatildeo e portanto agrave sobrevivecircncia das
espeacutecies (cf NP 1990 p242) Eacute atraveacutes da variabilidade que a vida obteacutem ldquosem
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procurar fazecirc-lordquo uma espeacutecie de seguro contra a especializaccedilatildeo excessiva sem
reversibilidade ou flexibilidade o que no fundo eacute uma adaptaccedilatildeo bem sucedida (cf
NP 1990 p111) Daiacute a importacircncia das mutaccedilotildees para a preservaccedilatildeo das
espeacutecies ldquoem mateacuteria de adaptaccedilatildeo o perfeito ou acabado significa o comeccedilo do
fim das espeacuteciesrdquo (NP 1990 p237)
Destarte refutando a ideia de que as modificaccedilotildees do coacutedigo geneacutetico
contradizem a ldquosabedoria dos organismosrdquo Canguilhem lembra que nem todas as
alteraccedilotildees bioquiacutemicas satildeo patoloacutegicas pois pode acontecer que em certos
meios elas possam conferir uma certa superioridade agravequeles que satildeo seus
beneficiaacuterios como eacute o caso da resistecircncia agrave malaacuteria por portadores de um deacuteficit
em glicose-6-fosfato-desidrogenase De fato se a adaptabilidade depende da
variabilidade a diferenccedila bioquiacutemica individual ocorrida no interior de uma dada
espeacutecie pode tornaacute-la mais apta agrave sobrevivecircncia
ldquoao contraacuterio da humanidade que segundo Marx soacute levanta os problemas que pode resolver a vida multiplica de antematildeo soluccedilotildees para os problemas de adaptaccedilatildeo que poderatildeo surgirrdquo (NP 1990 p240)
Acompanhando tambeacutem G Teissier para quem as mutaccedilotildees podem ser
vantajosas se o meio variar em seu favor Canguilhem diz que embora possam ser
contestaacuteveis as noccedilotildees de seleccedilatildeo natural e de luta pela sobrevivecircncia natildeo soacute
pela ideia de finalidade e superioridade a elas subjacentes42 mas tambeacutem porque
a maior parte dos seres vivos satildeo mortos pelo meio muito antes que suas
42
Em seus Eacutetudes dacuteHistoire et de Philosophie des Sciences no artigo ldquoLes concepts de lsquolutte pour lrsquoexistencersquo et de lsquoselection naturellersquo em 1858 Charles Darwin et Alfred Russel Wallacerdquo Canguilhem daacute a entender que se natildeo recusa de todo o mecanismo de seleccedilatildeo natural proposto por Darwin eacute porque ele natildeo eacute um poder de escolha que recobre uma representaccedilatildeo antropomoacuterfica de um poder natural divinizado mas designa somente uma lei que exprime os efeitos de composiccedilatildeo entre variaccedilatildeo acidental hereditariedade e concorrecircncia vital (cf E 1989 p108) Aleacutem disso na Ideologia e racionalidade nas ciecircncias da vida deixa entrever que se acompanha o ponto de vista darwinista eacute porque ateacute Darwin os seres vivos se multiplicavam num quadro em que encontravam exclusivamente o seu bem sendo radical a mudanccedila de referecircncia quando ele propocircs que os seres vivos se multiplicam sem obrigaccedilatildeo de identidade especiacutefica e que atraveacutes do jogo composto pelo seu nuacutemero e pelas suas diferenccedilas se encontram coagidos a viver como podem o menos mal possiacutevel sem lugar reservado sem garantias de futuro (cf I 1981 p92) Como veremos tambeacutem pela sua perspectiva na ausecircncia de orientaccedilatildeo teleoloacutegica a evoluccedilatildeo aparece como um ensaio de formas sem plano ou fim preacute-determinado traduzido como uma aventura com um percurso imprevisiacutevel
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desigualdades possam lhe ser uacuteteis isso natildeo quer dizer que apresentar
desigualdades seja biologicamente indiferente (cf NP 1990 p99)
Em La connaissance de la vie acompanhando o mesmo autor em Le
Meacutecanisme de LrsquoEvolution nota que para toda espeacutecie eacute necessaacuterio admitir uma
certa flutuaccedilatildeo dos genes da qual depende a plasticidade da adaptaccedilatildeo e
portanto seu poder evolutivo A seleccedilatildeo natural ou seja o crivo pelo meio eacute tanto
conservador em circunstacircncias estaacuteveis quanto inovador em circunstacircncias
criacuteticas de modo que ldquoos ensaios mais arriscados satildeo possiacuteveis e liacutecitosrdquo (CV
1985 p 161)
Em resumo nem toda anomalia como variaccedilatildeo morfoloacutegica ou funcional
seraacute patoloacutegica pelo simples fato de ser anomalia ldquonatildeo existe fato que seja
normal ou patoloacutegico em si A anomalia e a mutaccedilatildeo natildeo satildeo em si mesmas
patoloacutegicas Elas exprimem outras normas de vida possiacuteveisrdquo (NP 1990 p113)
Como simples diferenccedila de fato ela pode vir a ser patoloacutegica somente se o
indiviacuteduo considerado anocircmalo natildeo conseguir responder agraves exigecircncias do meio
natildeo tolerando qualquer desvio das condiccedilotildees nas quais suas normas satildeo vaacutelidas
por natildeo ser capaz de instituir novas normas vitais Portanto a condiccedilatildeo de
normalidade de um vivente natildeo adviraacute de sua fidelidade a um tipo especiacutefico do
qual seria uma coacutepia fiel mas dependeraacute de sua normatividade ou seja de sua
capacidade de instituir novas normas vitais quando da necessidade de superar as
dificuldades que resultam de uma alteraccedilatildeo do meio em que se encontra
Assim do ponto de vista canguilhemiano o normal em biologia natildeo eacute tanto
a forma antiga mas a nova se ela conseguir no seu meio manter-se normativa
ldquoCompreende-se finalmente porque uma anomalia ndash e especialmente uma mutaccedilatildeo isto eacute uma anomalia jaacute de iniacutecio hereditaacuteria ndash natildeo eacute patoloacutegica pelo simples fato de ser anomalia isto eacute um desvio a partir de um tipo especiacutefico definido por um grupo de caracteres mais frequumlentes em sua dimensatildeo meacutedia Caso contraacuterio seria preciso dizer que um indiviacuteduo mutante ponto de partida de uma nova espeacutecie eacute ao mesmo tempo patoloacutegico porque se desvia e normal porque se conserva e se reproduz O normal em biologia natildeo eacute tanto a forma antiga mas a nova se ela encontrar condiccedilotildees de existecircncia nas quais pareceraacute normativa isto eacute superando todas as formas passadas ultrapassadas e talvez dentro em breve mortasrdquo (NP 1990 p113)
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Ademais ao dizer que as anomalias podem ser o ponto de partida de uma
nova espeacutecie Canguilhem atribui a elas outro estatuto para aleacutem do sentido
bioloacutegico de diversificaccedilatildeo dos indiviacuteduos no interior de uma mesma espeacutecie Ele
aposta na ideia de que as mutaccedilotildees possam dar origem a novas espeacutecies e com
isso questiona em que medida os seres vivos que se afastam do tipo especiacutefico
satildeo anormais que estatildeo colocando em perigo a forma especiacutefica ou seratildeo
inventores a caminho de novas formas ldquoA vida natildeo eacute justamente evoluccedilatildeo
variaccedilatildeo de formas invenccedilatildeo de comportamentosrdquo (NP 1990 p164)
Com efeito tambeacutem nos Eacutetudes dacuteHistoire et de Philosophie des Sciences
no toacutepico La nouvelle connaissance de la vie ele diz que as formas vivas estatildeo
em movimento contiacutenuo de transformaccedilatildeo e defende que eacute realmente possiacutevel
explicar a evoluccedilatildeo das espeacutecies a partir da geneacutetica pela ocorrecircncia das
mutaccedilotildees sendo este o teor de sua objeccedilatildeo agraves teorias que afirmam ser elas
subpatoloacutegicas frequentemente letais e que o mutante vale biologicamente
menos do que o ser a partir do qual ele constitui uma mutaccedilatildeo ldquoDe fato isso eacute
verdadeiro as mutaccedilotildees satildeo frequentemente monstruosidades Mas ao olhar da
vida haacute monstruosidadesrdquo (E 1989 p363-364) A seu ver a vida eacute feita de
conservaccedilatildeo e de novidade comportando o risco das aberraccedilotildees ldquoa vida supera
seus erros por outros ensaios sendo um erro da vida simplesmente um impasserdquo
(E 1989 p364)
Mas vale notar que o fato de Canguilhem defender a ideia de que uma
mutaccedilatildeo possa dar origem a uma nova espeacutecie natildeo o faz um adepto do
mutacionismo corrente de pensamento para a qual as mutaccedilotildees satildeo o principal
mecanismo de evoluccedilatildeo das espeacutecies em detrimento da accedilatildeo do meio
ldquoo mutacionismo se apresentou em primeiro lugar como uma forma de explicaccedilatildeo dos fatos da evoluccedilatildeo cuja adoccedilatildeo pelos geneticistas reforccedilou ainda o caraacuteter de hostilidade a qualquer atitude de levar em consideraccedilatildeo a influecircncia do meiordquo (cf NP 1990 p112)
Com efeito em La connaissance de la vie no artigo ldquoLe vivant et son
milieurdquo quando reflete sobre o caraacuteter espontacircneo das mutaccedilotildees geneacuteticas como
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explicaccedilatildeo para a evoluccedilatildeo das espeacutecies ele faz uma criacutetica agraves teorias sobre a
geneacutetica da hereditariedade que advogam a autonomia total do vivente em relaccedilatildeo
ao meio isto eacute agravequelas que defendem que a aquisiccedilatildeo pelo vivente de sua forma
e suas funccedilotildees depende integralmente de seu potencial hereditaacuterio e que a accedilatildeo
do meio sobre o fenoacutetipo deixaria intacto o genoacutetipo A seu ver essas posiccedilotildees
natildeo estatildeo livres de criacuteticas pois algumas modificaccedilotildees hereditaacuterias podem ser
obtidas e consolidadas por condiccedilotildees externas sejam elas alimentares climaacuteticas
ou outras muito embora tambeacutem natildeo haja um domiacutenio integral do meio em
relaccedilatildeo a estas modificaccedilotildees
Assim entendendo que tanto a accedilatildeo do meio quanto as mutaccedilotildees
ocorridas espontaneamente e ao acaso isto eacute natildeo dirigidas adaptativamente
concorrem para o processo evolutivo em O normal e o patoloacutegico ele conjuga as
duas perspectivas
ldquoParece atualmente que se deve situar o aparecimento de espeacutecies novas na interferecircncia das inovaccedilotildees por mutaccedilatildeo e das oscilaccedilotildees do meio parece tambeacutem que um darwinismo modernizado pelo mutacionismo eacute a explicaccedilatildeo mais flexiacutevel e mais abrangente do fato da evoluccedilatildeo que apesar de tudo eacute incontestaacutevelrdquo (NP 1990 p112)
Aleacutem disso ainda na mesma obra esclarece que conforme sejamos fixistas
ou transformistas consideraremos de modo diferente o indiviacuteduo mutante Sem se
propor a tratar detidamente desta querela43 apenas diz que apesar das
diferenccedilas teoacutericas tanto os bioacutelogos que contestam ateacute mesmo o fato da
evoluccedilatildeo como os que natildeo admitem que as mutaccedilotildees sejam suficientes para
explicar os fatos da adaptaccedilatildeo e da evoluccedilatildeo - jaacute que os mutantes apesar das
diferenccedilas morfoloacutegicas natildeo saem do quadro da mesma espeacutecie - insistem sobre 43
Ramos (2005) ao tratar do embate dos fixistas e dos transformistas na histoacuteria do pensamento bioloacutegico nota foi somente a partir do seacuteculo XIX que a ideia da substituiccedilatildeo gradativa das espeacutecies por outras atraveacutes de processos adaptativos foi ganhando adeptos Ao contraacuterio do que propunham os fixistas ou criacionistas que acreditavam que as espeacutecies eram imutaacuteveis para os transformistas a adaptaccedilatildeo das espeacutecies somente poderia ser obtida atraveacutes de mudanccedilas Aleacutem disso segundo o autor os termos fixismo e transformismo podem ser aplicados com precisatildeo apenas agraves suas versotildees mais extremas a visatildeo cristatilde ortodoxa eacute claramente fixista enquanto a teoria da evoluccedilatildeo orgacircnica contemporacircnea eacute claramente transformista Cf RAMOS M C A Vecircnus fiacutesica de Maupertuis antigas ideias sobre a geraccedilatildeo reformadas pelo mecanicismo newtoniano Revista Latino-Americana de Filosofia e Histoacuteria da Ciecircncia Satildeo Paulo v 3 n 1 p 79-101 2005
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o caraacuteter subpatoloacutegico patoloacutegico ou mesmo letal da maioria delas Pensando de
outro modo ele acredita que considerando o caraacuteter de novidade que a mutaccedilatildeo
comporta o desvio em relaccedilatildeo ao normal que ela representa se normativo seraacute
conservado pela accedilatildeo da seleccedilatildeo natural44 natildeo tendo necessariamente por
destino a morte
ldquoCom efeito na medida em que no mundo animal ou vegetal uma mutaccedilatildeo pode constituir a origem de uma nova espeacutecie vemos uma norma nascer de um desvio em relaccedilatildeo a uma outra A norma eacute a forma de desvio que a seleccedilatildeo natural conserva Eacute a concessatildeo que a destruiccedilatildeo e a morte fazem ao acasordquo (NP 1990 p237)
E mesmo se considerarmos que as anomalias satildeo frequentemente restritivas
menos duraacuteveis e menos resistentes natildeo podendo explicar a gecircnese das
espeacutecies elas natildeo deixaratildeo de ter o poder de diversificaacute-las De todo modo tendo
em vista a importacircncia das anomalias para a diversificaccedilatildeo adaptaccedilatildeo e ateacute
mesmo para a evoluccedilatildeo das espeacutecies eacute um equivoco consideraacute-la um erro a ser
extirpado
Com efeito nas Novas reflexotildees referentes ao normal e ao patoloacutegico no
capiacutetulo intitulado ldquoUm novo conceito em patologia o errordquo ao problematizar a
ideia de que as alteraccedilotildees bioquiacutemicas hereditaacuterias estudadas pela patologia
molecular como erros de informaccedilatildeo satildeo necessariamente patoloacutegicas
Canguilhem defende a importacircncia destas microanomalias ou
micromonstruosidades para a adaptabilidade dos organismos e ainda contesta a
tese de que o valor vital de um erro geneacutetico provenha das proacuteprias raiacutezes da
organizaccedilatildeo ao niacutevel em que ela eacute apenas estrutura linear e natildeo se estabeleccedila
ao niacutevel do organismo considerado como um todo em conflito com um meio
44
Segundo Giroux (2008) a originalidade de Canguilhem em relaccedilatildeo agrave Goldstein reside na inserccedilatildeo da noccedilatildeo de norma individual na teoria darwiniana da evoluccedilatildeo Singularmente Canguilhem encontra na teoria da seleccedilatildeo natural um fundamento bioloacutegico objetivo agrave normatividade vital pois longe de rejeitar a noccedilatildeo de norma em biologia ela estabelece uma ligaccedilatildeo intriacutenseca entre variabilidade individual e valor vital Agora se a teoria da evoluccedilatildeo reafirma o conceito de normatividade bioloacutegica individual como ele sustenta esta eacute uma tese que tem sido hoje o centro de vivos debates em filosofia da biologia Cf GIROUX E Ny a-t-il de santeacute que de lrsquoindividu Um point de vue eacutepideacutemiologique sur les thegraveses de Canguilhem In FAGOT-LARGEAULT DEBRU D MORANGE M (dir) HAN H-J (eacuted) Philosophie et meacutedecine en hommage agrave Georges Canguilhem (LrsquoHistoire des sicences ndash Textes et Egravetudes) Paris Vrin 2008
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ambiente ldquoAssim como nem todos os germes patogecircnicos determinam uma
infecccedilatildeo em qualquer hospedeiro em qualquer circunstacircncia assim tambeacutem nem
todas as lesotildees bioquiacutemicas constituem a doenccedila de algueacutemrdquo (NP 1990 p256)
Ademais ele diz entender que a noccedilatildeo de erro na composiccedilatildeo bioquiacutemica
dos constituintes do organismo eacute de certo modo aristoteacutelica pois para Aristoacuteteles o
monstro era um erro da natureza que havia se enganado quanto agrave mateacuteria45 Na
mesma trilha a patologia molecular atual ao introduzir em suas teorias o conceito
de erro de informaccedilatildeo pode ser vista como um ldquonovo tipo de aristotelismo com a
condiccedilatildeo eacute claro de natildeo confundir a psicobiologia aristoteacutelica com a tecnologia
moderna das transmissotildeesrdquo (NP 1990 p252) Em vista disso problematizando o
uso da noccedilatildeo de erro em biologia como Simondon e Ruyer46 ele coloca em
questatildeo a importaccedilatildeo da linguagem da teoria da informaccedilatildeo para a bioquiacutemica dos
aminoaacutecidos como coacutedigo e mensagem e a consequente atribuiccedilatildeo aos
elementos do patrimocircnio hereditaacuterio o saber do quiacutemico e do geneticista como se
as enzimas conhecessem as reaccedilotildees tal como a quiacutemica as analisa e pudessem
ignoraacute-las ou ler errado seus enunciados (cf NP 1990 p251)
Tambeacutem em seus Eacutetudes dacuteHistoire et de Philosophie des Sciences
Canguilhem comenta que com a revoluccedilatildeo na geneacutetica ocorrida apoacutes a
descoberta da estrutura do DNA e com a constituiccedilatildeo da biologia molecular foi
operada uma mudanccedila no conhecimento da vida e seus fenocircmenos passaram a 45
Na Ideologia e racionalidade nas ciecircncias da vida Canguilhem esclarece que embora Aristoacuteteles fale em erro da natureza em sua filosofia tal noccedilatildeo servia para dizer que a vida tolerava a imperfeiccedilotildees que o processo teleoloacutegico da vida natildeo era absolutamente eficaz e infaliacutevel Para ele a existecircncia dos monstros atesta que haacute erros da natureza explicaacuteveis pela resistecircncia da mateacuteria agrave informaccedilatildeo pela forma ldquoA forma ou o fim natildeo satildeo necessaacuteria e universalmente exemplares reinam com uma certa toleracircncia de imperfeiccedilatildeordquo (I 1981 p110)
46 Nesta passagem das Novas Reflexotildees eacute agraves obras La cyberneacutetique et lrsquoorigine delrsquoinformation de
Ruyer e Lrsquoindividu et as geneacutese physico-biologique de Simondon que Canguilhem faz referecircncia Com efeito como eles Canguilhem critica a transposiccedilatildeo da loacutegica Ciberneacutetica e da Teoria da Informaccedilatildeo para a Biologia entendendo que se ao tratar da hereditariedade podemos falar em erro de informaccedilatildeo natildeo eacute como falha na reproduccedilatildeo das instruccedilotildees determinadas por um riacutegido programa geneacutetico aos moldes de um computador mas como uma nova orientaccedilatildeo dada por um a priori morfogeneacutetico aberto e flexiacutevel o suficiente para comportar variaccedilotildees quando da necessidade de resoluccedilotildees de problemaacuteticas que se vecirc obrigado a enfrentar quando de seu conflito com o meio Daiacute sua concordacircncia com Ruyer para quem somente o organismo e natildeo a maacutequina produz interpreta e altera informaccedilotildees e com Simondon que considera ser a informaccedilatildeo um modo de resoluccedilatildeo de uma problemaacutetica concreta no interior de um sistema metaestaacutevel inscrito em um meio especiacutefico que eacute o ser vivo
60
ser estudados em outra escala A biologia deixou de usar a linguagem da
mecacircnica da fiacutesica e da quiacutemica claacutessicas para utilizar a linguagem da teoria da
informaccedilatildeo e da comunicaccedilatildeo Agora para compreender a vida faz-se necessaacuterio
saber ler e decifrar suas mensagens ldquomensagem informaccedilatildeo programa coacutedigo
instruccedilatildeo decodificaccedilatildeo tais satildeo os novos conceitos do conhecimento da vidardquo (E
1989 p360)47 Novamente nota que considerar a hereditariedade bioloacutegica como
uma comunicaccedilatildeo de informaccedilatildeo eacute num certo sentido retomar um aristotelismo
admitir que haacute no vivente um logos inscrito conservado e transmitido Para
conhecer a vida natildeo eacute mais preciso recorrer agrave arquitetura e agrave mecacircnica mas agrave
gramaacutetica agrave semacircntica e agrave sintaxe ldquoPara compreender a vida eacute necessaacuterio antes
de ler decriptar a mensagem da vidardquo (E 1989 p362)
Mas eacute na Ideologia e racionalidade nas ciecircncias da vida quando retoma a
discussatildeo realizada nas Novas Reflexotildees tendo em vista que na atualidade satildeo
as modalidades de transmissatildeo da mensagem hereditaacuteria e de reproduccedilatildeo do
programa geneacutetico que determinam a norma ou o desvio complementa sua
argumentaccedilatildeo dizendo que o termo erro soacute natildeo eacute um retorno agrave concepccedilatildeo
aristoteacutelica e medieval que considerava os monstros como erros da natureza pois
agora natildeo lidamos mais com uma imperiacutecia de artesatildeo ou de arquiteto mas com
um lapso de um copista pois de erro da natureza o erro geneacutetico passou ser um
erro de leitura de uma mensagem um erro de reproduccedilatildeo de um texto um erro de
coacutepia (cf I 1981 p104-105) Aqui apesar de natildeo contestar que se deva localizar
na macromoleacutecula do aacutecido desoxirribonucleacuteico a funccedilatildeo conservadora e
inovadora da hereditariedade defende que a normalidade da alteraccedilatildeo bioquiacutemica
natildeo seraacute dada sem a consideraccedilatildeo da relaccedilatildeo que o organismo estabelece com
seu meio
47
Segundo Jacob (1983) a biologia moderna ambicionando interpretar as propriedades dos organismos pela estrutura das moleacuteculas que o constituem inaugura uma ldquonova era do mecanicismordquo na qual o modelo do programa geneacutetico eacute retirado das calculadoras eletrocircnicas e o material geneacutetico do ovo passa a ser comparado agrave fita magneacutetica de um computador Agora ldquoa hereditariedade passa a ser a transferecircncia de uma mensagem repetida de geraccedilatildeo em geraccedilatildeordquo (JACOB 1983 p 257) Cf JACOB F A loacutegica do vivente uma histoacuteria da hereditariedade Op cit
61
ldquoO coacutedigo geneacutetico eacute a conservaccedilatildeo de uma informaccedilatildeo retida apoacutes a eliminaccedilatildeo de erros Mas esses erros natildeo eram erros de combinaccedilatildeo eram erros de tentativa ou de ensaio isto eacute insucessos de alguma combinaccedilatildeo Estes ensaios criavam uma interaccedilatildeo entre organismos e meios As mutaccedilotildees dos genoacutetipos mesmo quando natildeo se revelavam natildeo pertinentes natildeo eram simplesmente desvios a partir de uma regra interna eram tambeacutem uma resposta uma reaccedilatildeo ao meiordquo (I 1981 p104-105)
Malgrado isso de modo equiacutevoco os geneticistas e bioquiacutemicos desconsideram
que os chamados erros do coacutedigo geneacutetico satildeo tentativas ou ensaios da vida
criados em resposta em reaccedilatildeo ao meio e realizam o estudo da estrutura
macromolecular da mateacuteria viva no que haacute de mais proacuteximo da natildeo-vida no
estado maacuteximo de privaccedilatildeo dos seus atributos tradicionais procurando encontrar
a normalidade e a anormalidade a norma e seu desvio nas profundezas do
organismo (cf I 1981 p119)
Destarte apostando na importacircncia do estudo das formaccedilotildees monstruosas
para o conhecimento das normas da vida no prefaacutecio da segunda ediccedilatildeo de O
normal e o patoloacutegico (1950) ao fazer uma anaacutelise criacutetica do seu Ensaio de 43
Canguilhem admite que deveria ter insistido com maior convicccedilatildeo que natildeo haacute a
priori diferenccedila ontoloacutegica entre uma forma viva perfeita e uma malograda e
questiona se seria liacutecito falar em formas vivas malogradas ldquoQue erro pode-se
detectar num ser vivo enquanto natildeo se tiver fixado a natureza de suas obrigaccedilotildees
como ser vivordquo (NP 1990 p13) Tambeacutem neste contexto ele lamenta natildeo ter
tirado maior partido das obras de Etienne Wolff em particular Les changements de
Sexe e La science des Monstres para fortalecer sua tese de que as
monstruosidades como singularidades morfoloacutegicas e funcionais natildeo estando
fora da normalidade mostram que a vida pode se organizar de diferentes formas
traduzindo uma multiplicidade de modos de ser possiacuteveis
Jaacute em La connaissance de la vie no artigo ldquoLe normal et le pathologiquerdquo
ele faz referecircncia aos trabalhos de teratogecircnese experimental48 de Etienne Wolff
48
Em La connaissance de la vie no artigo ldquoLa monstruositeacute et le monstrueuxrdquo Canguilhem esclarece as tentativas de elaboraccedilatildeo cientiacutefica da monstruosidade nascem no seacuteculo XIX do encontro da anatomia comparada e da embriologia reformada pela adoccedilatildeo da teoria da epigecircnese oposta ao preformismo Com efeito eacute no fim deste seacuteculo que Camile Dareste (1822-1899) encorajado por Darwin funda a teratogenia o estudo experimental das condiccedilotildees de produccedilatildeo artificial das monstruosidades visando agrave elucidaccedilatildeo da origem das espeacutecies Seguindo a
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para em seguida se colocar como um antiacutepoda da teoria aristoteacutelica fixista e
ontoloacutegica Por outro prisma ele afirma natildeo ver o mundo dos seres vivos como
uma hierarquia de formas eternas mas como uma tentativa de hierarquizaccedilatildeo de
formas possiacuteveis Em sua concepccedilatildeo natildeo haacute a priori diferenccedila entre uma forma
acabada e uma forma falha natildeo sendo nem mesmo possiacutevel falar em formas
falhas
ldquoNada pode faltar a um ser vivo caso se admita que haacute mil e uma formas de viver Do mesmo modo que na guerra e na poliacutetica natildeo haacute uma vitoacuteria definitiva mas uma superioridade e um equiliacutebrio relativos e precaacuterios na ordem da vida natildeo haacute resultados que desvalorizem radicalmente outros ensaios fazendo-os parecer faltosos de algo () Eacute o futuro das formas que decide seu valor Todas as formas viventes satildeo para tomar a expressatildeo de Louis Role em sua grande obra Les Poissons lsquomonstros normalizadosrsquordquo (CV 1985 p160)
Assim se Canguilhem atribui novo estatuto aos monstros eacute tambeacutem porque
satildeo eles que nos fazem questionar se devemos falar em leis da vida ou em ordens
da vida isto eacute se em se tratando de vivente temos que consideraacute-lo um sistema
de leis ou uma organizaccedilatildeo de propriedades Com efeito no artigo ldquoLa
monstruositeacute et le monstrueuxrdquo ele explica que eacute a existecircncia dos monstros o que
coloca em questatildeo a vida quanto a seu poder de nos ensinar a ordem porque
estamos acostumados a ver o mesmo engendrar o mesmo Eacute somente porque nos
consideramos efeitos reais das leis da vida que uma diferenccedila morfoloacutegica
aparece a nossos olhos como uma monstruosidade Mas se olharmos por outra
perspectiva ldquoo monstro seria apenas o outro que o mesmo uma ordem outra que
a mais provaacutevelrdquo (CV 1985 p171)49 Portanto eacute o surgimento dos monstros o que
nos faz atribuir agrave vida certa excentricidade pois nos permite dissociar os conceitos
classificaccedilatildeo de Isidore Geoffroy Saint-Hilaire Dareste passa a criar monstruosidades simples a partir de um embriatildeo de galinha procurando estabelecer uma relaccedilatildeo entre as anomalias e as variedades hereditaacuterias no contexto das teorias da evoluccedilatildeo (cf CV 1985 p180)
49 Le Blanc (2010) nota que Canguilhem por natildeo considerar o vivente um sistema de leis mas
uma ordem de propriedades troca a crenccedila na legalidade fundamental da vida pelo valor singular dos indiviacuteduos isto eacute troca a figura uniacutevoca da normalidade pela normatividade plural dos particulares Ou seja ele substitui o conceito fixo de tipo que pressupotildee uma normalidade primeira pelo dinacircmico de ordem associado agrave multiplicidade de modos de vida ldquoa ordem vital natildeo eacute outra que o surgimento pluriforme e pluriacutevoco de modos vitaisrdquo (LE BLANC 2010 p152) Cf LE BLANC G Canguilhem et la vie humaine Paris QuadrigePUF 2010
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de reproduccedilatildeo e de repeticcedilatildeo provando ser a vida capaz de maior liberdade de
exerciacutecio e de transgressatildeo espontacircnea a seus proacuteprios haacutebitos (cf CV 1985
p173)
Ou seja se considerarmos a vida como um sistema de leis adotando para
os fenocircmenos vitais a mesma legalidade dos fenocircmenos fiacutesicos apenas
poderemos esperar dela regularidades e repeticcedilotildees Isto porque se as leis satildeo
invariantes essenciais das quais os fenocircmenos singulares satildeo exemplares
aproximados poreacutem falhos na reproduccedilatildeo integral de sua realidade legal o
singular ou seja o desvio a variaccedilatildeo aparece como um fracasso uma
imperfeiccedilatildeo ou uma impureza (cf CV 1985 p156) Mas de outro modo se
tomarmos a vida como uma ordem de propriedades podemos desenhaacute-la a partir
de uma organizaccedilatildeo de potenciais e uma hierarquia de funccedilotildees na qual a
estabilidade seraacute sempre precaacuteria (cf CV 1985 p 83)50 Por esta perspectiva a
irregularidade a anomalia natildeo seratildeo concebidas como acidentes afetando o
indiviacuteduo mas como sua existecircncia mesma e a singularidade individual natildeo seraacute
interpretada como um erro mas como um ensaio natildeo como uma falta mas como
uma aventura vital (cf CV 1985 p159)
Tambeacutem nos Eacutetudes dacuteHistoire et de Philosophie des Sciences no artigo
ldquoDu singulier et de la singulariteacute em epistemologie biologiquerdquo Canguilhem diz ser
a natureza rica em encruzilhadas e em planos de organizaccedilatildeo Nela a
singularidade morfoloacutegica representada pelo indiviacuteduo mutante joga seu papel
epistemoloacutegico questionando a generalidade anterior em relaccedilatildeo a qual ele se
singularizou Deste ponto de vista a vantagem da singularidade reside em seu
poder de deslocar o sistema que natildeo a comporta certificando a resistecircncia da
50
Segundo Barbara (2008) Canguilhem opotildee o conceito de lei ao de organizaccedilatildeo bioloacutegica Contra a dimensatildeo linear da legalidade dos fenocircmenos fiacutesico-quiacutemicos ele defende a ideia de uma ordem de propriedades organizada de maneira hieraacuterquica e em potecircncia que faz do vivente um sistema dinacircmico no qual o estado de estabilidade assume uma existecircncia muacuteltipla que natildeo pode ser referida a uma normalidade estatiacutestica Cf BARBARA J-G Lrsquoeacutetude du vivant chez Georges Canguilhem des concepts aux objets biologiques In FAGOT-LARGEAULT DEBRU D MORANGE M (dir) HAN H-J (eacuted) Philosophie et meacutedecine en hommage agrave Georges Canguilhem (LrsquoHistoire des sicences ndash Textes et Egravetudes) Paris Vrin 2008
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natureza de se enquadrar em uma camisa de forccedila de leis ou de regras ldquopor suas
singularidades a vida proclama sua barbaacuterierdquo (cf E 1989 p213)
Jaacute na Ideologia e racionalidade nas ciecircncias da vida novamente diz que a
anomalia como uma diferente forma de organizaccedilatildeo ou uma nova ordem vital
pode receber da vida mesma uma valoraccedilatildeo positiva indicativa de sua
normalidade num dado meio Sendo apenas uma ordem da vida menos provaacutevel
ela pode representar uma vantagem para a sobrevivecircncia em condiccedilotildees
ambientais novas (cf I 1981 p116) Aleacutem disso nota que quando falamos em
ordens da vida ou em formas de organizaccedilatildeo de diferentes valores
necessariamente nos referimos a qualidades de certas quantidades fiacutesicas o que
para ele eacute suficiente para colocar a biologia em um quadro especiacutefico de
referecircncia epistemoloacutegica ldquoIsto basta para distinguir a biologia da fiacutesica ainda que
a primeira pareccedila ter ligado o seu proacuteprio destino ao da segundardquo (I 1981 p120)
Com efeito agora seguindo L Lwoff autor de Lrsquoordre biologique para
quem ldquoa uacutenica fonte da ordem bioloacutegica eacute a proacutepria ordem bioloacutegicardquo Canguilhem
procura mostrar que o conceito de normalidade proacuteprio agrave biologia eacute estranho agrave
epistemologia da fiacutesica e da quiacutemica A seu ver mesmo para uma epistemologia
unitaacuteria ainda que materialista haacute uma diferenccedila radical entre estas ciecircncias pois
as anomalias as doenccedilas e a morte natildeo satildeo problemas fiacutesico-quiacutemicos mas
bioloacutegicos ldquoA doenccedila e a morte dos seres vivos que produziram a fiacutesica tantas
vezes com risco das suas vidas natildeo satildeo problemas de fiacutesica A doenccedila e a morte
dos fiacutesicos e bioacutelogos vivos satildeo problemas de biologiardquo (I 1981 p122) Exemplo
disso eacute que uma base nucleacuteica do material geneacutetico pode ser acidentalmente
substituiacuteda por outra e para o fiacutesico mesmo que tal mutaccedilatildeo seja letal nada
mudou pois a carga de entropia negativa natildeo variou Jaacute para o bioacutelogo a
mudanccedila de qualidade de uma certa quantidade fiacutesica pode fazer com que o
organismo se torne incapaz de funcionar normalmente cabendo a ele portanto e
natildeo ao fiacutesico mostrar qual o sentido vital desta alteraccedilatildeo (cf I 1981 p120)
Tambeacutem em La connaissance de la vie ao tratar da importacircncia dos
monstros para a ldquoapreciaccedilatildeo concreta e completa dos valores da vidardquo ele
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apresenta a monstruosidade como uma forma de insurreiccedilatildeo contra a legalidade
da natureza imposta pela fiacutesica e filosofia mecanicistas e afirma que eacute por natildeo
haver o conceito de normalidade em fiacutesica e em mecacircnica que somente aos
organismos pode ser atribuiacuteda a qualificaccedilatildeo de monstros ldquoEacute necessaacuterio reservar
somente aos seres orgacircnicos a qualificaccedilatildeo de monstros Natildeo haacute monstro mineral
Natildeo haacute monstro mecacircnicordquo (CV 1985 p171)
Na mesma direccedilatildeo em O normal e o patoloacutegico considerando que natildeo haacute
uma ciecircncia especial das anomalias fiacutesicas ou quiacutemicas como haacute na biologia uma
ciecircncia dos tipos normativos de vida em suas diferentes formas e
comportamentos vitais Canguilhem nota que a histoacuteria das anomalias e a
teratologia constituem um capiacutetulo obrigatoacuterio que traduz a originalidade das
ciecircncias bioloacutegicas (cf NP 1990 p105)
Assim apostando na especificidade das ciecircncias da vida Canguilhem
acaba por se filiar agrave tradiccedilatildeo vitalista que em sua genealogia vai de Hipoacutecrates e
Aristoacuteteles agrave Driesch agrave von Monakow agrave Goldstein passando por van Helmont
Barthez Blumenbach Bichat Lamarck51 e J Muumlller sem excluir Claude
Bernard52 Isto porque na histoacuteria das ciecircncias da vida foram os vitalistas que ao
se recusarem a aliar seu objeto de estudo aos dos fiacutesicos e dos quiacutemicos
colocando um freio agrave ambiccedilatildeo anexionista das ciecircncias da mateacuteria possibilitaram
51
Ainda na coletacircnea La connaissance de la vie no artigo ldquoLe vivant et son milieurdquo Canguilhem diz considerar o lamarckismo um vitalismo porque em sua teoria diferentemente da de Darwin haacute uma originalidade na vida que o meio ignora (cf CV 1985 p136)
52 De acordo com Canguilhem saber se Claude Bernard era ou natildeo materialista ou vitalista eacute uma
questatildeo que gera polecircmica (cf NP 1990 p50) A seu ver Claude Bernard para refutar o vitalismo de Bichat que considera ser um indeterminismo se empenha em afirmar a legalidade dos fenocircmenos vitais sua constacircncia rigorosa em condiccedilotildees definidas que pode ser aquela dos fenocircmenos fiacutesicos (cf CV 1985 p 157) Natildeo obstante nas suas Leccedilons sur les phenoacutemegravenes de la vie (1878) refutando o materialismo mecanicista ele afirma a originalidade da forma viva e de suas atividades funcionais Para Claude Bernard apesar das manifestaccedilotildees vitais estarem sob a ldquoinfluecircncia direta da fiacutesico-quiacutemicardquo essas condiccedilotildees natildeo poderiam agrupar harmonizar os fenocircmenos na ordem e na sucessatildeo em que se apresentam nos seres vivos (cf NP 1990 p51) Segundo Dutra (2001) Claude Bernard se declarou estar fora tanto do vitalismo quanto do materialismo Foi sua insistecircncia na investigaccedilatildeo do determinismo fiacutesico-quiacutemico dos fenocircmenos da vida que levou muitos comentadores a vecirc-lo como materialista assim como suas criacuteticas ao materialismo que julgava insuficiente levou alguns a consideraacute-lo vitalista (cf DUTRA 2001 p149) Para saber mais sobre Claude Bernard o vitalismo e o materialismo Cf DUTRA LHA A epistemologia de Claude Bernard (Coleccedilatildeo CLE v33) Campinas UNICAMP Centro de Loacutegica Epistemologia e Histoacuteria da Ciecircncia 2001
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a constituiccedilatildeo da biologia como ciecircncia independente atraveacutes da constituiccedilatildeo de
um objeto e consequentemente de um campo de conhecimento e meacutetodos de
investigaccedilatildeo proacuteprios (cf CV 1985 p84)
Com efeito trabalhando para que a biologia natildeo se tornasse um braccedilo
menor da fiacutesica ou da quiacutemica Canguilhem lembra que foi Bichat quem defendeu
haver uma distinccedilatildeo entre as forccedilas vitais que regem os corpos organizados e as
leis fiacutesico-quiacutemicas e que foi sob sua influecircncia que Comte e Claude Bernard
afirmaram que a experimentaccedilatildeo bioloacutegica natildeo deve ser uma coacutepia dos princiacutepios
e praacuteticas da experimentaccedilatildeo fiacutesico-quiacutemica devendo o bioacutelogo inventar uma
teacutecnica experimental proacutepria (cf CV 1985 p 25-26) Isso porque para o autor
das Recherches sur la Vie et la Mort (1800) a fiacutesica e a quiacutemica satildeo
complementares porque as mesmas leis presidem os seus fenocircmenos ldquoMas um
imenso intervalo as separa da ciecircncia dos corpos organizados porque existe uma
enorme diferenccedila entre suas leis e as da vidardquo (CV 1985 p95)
Na trilha bichatiana tambeacutem para Canguilhem natildeo eacute possiacutevel explicar os
fenocircmenos orgacircnicos ou vitais atraveacutes das leis da fiacutesico-quiacutemica pois no
organismo sob a vigecircncia das mesmas leis podem ocorrer variaccedilotildees normativas
de diferentes qualidades ou sentidos vitais ldquoocorre com os estados do organismo
o mesmo que com a muacutesica as leis da acuacutestica natildeo satildeo violadas numa cacofonia
mas natildeo se pode concluir daiacute que qualquer combinaccedilatildeo de sons seja agradaacutevelrdquo
(NP 1990 p35) Isto eacute enquanto as leis satildeo imposiccedilotildees as normas satildeo
proposiccedilotildees enquanto as leis satildeo invariaacuteveis e indiferentes as normas bioloacutegicas
satildeo variaacuteveis e flutuantes podendo receber diferentes valoraccedilotildees bioloacutegicas
ldquoQuando os dejetos da assimilaccedilatildeo deixam de ser excretados por um organismo e obstruem ou envenenam o meio interno tudo isso com efeito esta de acordo com a lei (fiacutesica quiacutemica etc) mas nada disso estaacute de acordo com a norma que eacute a atividade do proacuteprio organismordquo (NP 1990 p98)
Daiacute sua concordacircncia com Goldstein para quem a anaacutelise fiacutesico-quiacutemica do
vivente pode e deve ser feita pois tem um interesse teoacuterico e praacutetico Mas ela
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constitui um capiacutetulo da fiacutesica tendo a biologia todo o resto a fazer (cf CV 1985
p147)
Assim como os vitalistas Canguilhem recusa o mecanicismo cartesiano e o
reducionismo fiacutesico-quiacutemico mas apesar de simpaacutetico agrave tradiccedilatildeo vitalista natildeo iraacute
se identificar plenamente a ela Criacutetico do vitalismo claacutessico por sua aproximaccedilatildeo
ao animismo sthaliniano ele natildeo vai advogar em favor da existecircncia de uma ldquoforccedila
vitalrdquo irredutiacutevel agraves forccedilas da mateacuteria de uma ldquoalmardquo como essecircncia abstrata
metafiacutesica Ele natildeo fala em princiacutepio vital como fez Barthez em forccedila vital como
Bichat em enteleacutequia como Driesch ou em hormegrave como von Monakow Embora
acredite que as propriedades da mateacuteria viva natildeo se reduzem agraves leis da fiacutesico-
quiacutemica53 ele procura natildeo cometer a falta indesculpaacutevel de alguns vitalistas de
inserir o vivente em um meio fiacutesico do qual ele constituiria uma exceccedilatildeo (cf CV
1895 p95)54
Malgrado isso apostando na vitalidade e na fecundidade do vitalismo55
Canguilhem se coloca em concordacircncia com todos aqueles que consideram
53
Prochiantz (1993) observa que embora materialista Canguilhem recusa o reducionismo fiacutesico-quiacutemico abusivamente qualificado de materialismo Com efeito ao avaliar a influecircncia de Claude Bernard em seu pensamento nota que ele se coloca contrariamente agraves teorias mecanicistas e termodinamicistas de tradiccedilatildeo fisicalista adotando uma concepccedilatildeo de vida que apesar de materialista daacute agraves ciecircncias bioloacutegicas a sua especificidade como estudo da criaccedilatildeo do desenvolvimento da manutenccedilatildeo e da evoluccedilatildeo das formas vivas Sobre o assunto confira PROCHIANTZ A Le mateacuterialisme de Georges Canguilhem In BADIOU A (et al) Georges Canguilhem Philosophe historien des sciences Actes du colloque (6 7 8 deacutecembre 1990) Paris Albin Michel 1993
54 Han (2008) acredita que com esta afirmaccedilatildeo Canguilhem foi injusto com os vitalistas sobretudo
com Bichat para quem as leis da vida se unem agraves leis da fiacutesico-quiacutemica e interagem com elas Segundo ele Canguilhem negligencia o aspecto positivo do vitalismo francecircs tendo dele uma imagem preacute-concebida Segundo o comentador Canguilhem natildeo tematizou a heuriacutestica positiva do vitalismo talvez porque a maior parte das foacutermulas vitalistas da Escola de Montpellier ele tenha retirado de fontes indiretas como da obra historiograacutefica da medicina de Charles Daremberg Apesar disso ele admite que Canguilhem procurou fazer justiccedila ao vitalismo ao apresentar sua vitalidade e fecundidade ainda que de modo imperfeito Cf HAN H-J Georges Canguilhem et le vitalisme franccedilais remarques sur les ldquoaspects du vitalismerdquo In FAGOT-LARGEAULT DEBRU D MORANGE M (dir) HAN H-J (eacuted) Philosophie et meacutedecine en hommage agrave Georges Canguilhem (LrsquoHistoire des sicences ndash Textes et Egravetudes) Paris Vrin 2008
55 Para Canguilhem no artigo ldquoAspects du Vitalismerdquo testemunho da fecundidade do vitalismo eacute o
fato de que C F Wolff (1733-1794) adepto das concepccedilotildees vitalistas foi considerado o fundador da embriologia moderna graccedilas agraves observaccedilotildees microscoacutepicas que realizou dos momentos sucessivos do desenvolvimento do ovo Outro vitalista von Baer depois de ter descoberto em 1827 o ovo dos mamiacuteferos desenvolveu a teoria dos folhetos (ectoderma mesoderma e endoderma) a partir das observaccedilotildees que realizou das primeiras formaccedilotildees embrionaacuterias A
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estreito e insuficiente o antigo dogma da teoria mecanicista do organismo56 pois
percebe que ao tempo em que a maacutequina eacute heteropoeacutetica dependente de uma
orientaccedilatildeo normativa externa o organismo como uma totalidade autorregulada eacute
autopoeacutetico capaz de propor a si mesmo suas proacuteprias normas (cf CV 1985
p24) Daiacute a seu ver a insuficiecircncia de uma biologia que se submete
completamente ao espiacuterito das ciecircncias exatas dissolvendo no anonimato de um
meio mecacircnico fiacutesico e quiacutemico esses centros de organizaccedilatildeo adaptaccedilatildeo e
invenccedilatildeo que satildeo os seres vivos (cf CV 1985 p153)
Defendendo assim como os vitalistas ser o organismo irredutiacutevel a uma
composiccedilatildeo mecacircnica57 Canguilhem considera ser o meacutetodo analiacutetico proacuteprio agraves
ciecircncias da mateacuteria insuficiente para dar conta dos fenocircmenos bioloacutegicos jaacute que o
ser vivo natildeo eacute um segmento ou uma parte mas um todo ldquoa vida de um ser vivo eacute
para cada um de seus elementos a accedilatildeo imediata da copresenccedila de todosrdquo (NP
1990 p226)58 Como um conjunto integrado ou um todo organizado o organismo
natildeo vive de modo segmentado como eacute percebido pelo anatomista Sua proacutepria
histoacuteria da teoria celular tambeacutem mostra entre seus precursores e fundadores mais vitalistas que mecanicistas Schwann considerado como aquele que estabeleceu as leis gerais da formaccedilatildeo celular (1838) tambeacutem poderia ter sido favoraacutevel a certas concepccedilotildees antimecanicistas em razatildeo de sua crenccedila na existecircncia de um blastocircmero formador o que indica que o vivente natildeo eacute um mosaico ou uma colisatildeo de ceacutelulas Mesmo Virchow hostil agrave teoria do blastocircmero formador e considerado um ldquomecanicista convictordquo pensava que as ceacutelulas apareciam por precipitaccedilatildeo de uma substacircncia fundamental A afirmaccedilatildeo de que toda ceacutelula proveacutem de uma ceacutelula preacute-existente natildeo deixa de ter caraacuteter vitalista (cf CV 1985 p92-93) Outro domiacutenio que os vitalistas podem reivindicar descobertas autecircnticas eacute o da neurologia A teoria do reflexo por exemplo deve mais a vitalistas como Willis (1621-1675) e Pfluumlger (1829-1910) que aos mecanicistas ldquoa mecanizaccedilatildeo ulterior da teoria do reflexo em nada modifica suas origensrdquo (CV 1990 p93)
56 Aqui Canguilhem entra em concordacircncia com os bioacutelogos marxistas atraveacutes de um elogio agrave
interpretaccedilatildeo dialeacutetica dos fenocircmenos bioloacutegicos Segundo ele se a dialeacutetica em biologia eacute justificaacutevel eacute porque reconhece na vida sua espontaneidade proacutepria sua rebeldia agrave mecanizaccedilatildeo caracteriacutesticas que suscitaram o renascimento do vitalismo Assim ldquoAtentos ao que a vida apresenta de invenccedilatildeo e irredutibilidade os bioacutelogos marxistas deveriam louvar no vitalismo sua objetividade diante de certas caracteriacutesticas da vidardquo (CV 1985 p99)
57 Segundo Canguilhem Lapassade Piquemal e Ulmann (2003) em Du deacuteveloppement agrave
leacutevolution au XIXe siegravecle o fio condutor da totalidade eacute a afirmaccedilatildeo da estrutura orgacircnica
essencialmente irredutiacutevel a uma composiccedilatildeo mecacircnica (cf D 2003 p16) Cf CANGUILHEM G LAPASSADE G PIQUEMAL J ULMANN J Du deacuteveloppement agrave leacutevolution au XIX
e siegravecle Paris
QuadrigePUF 2003
58 Com efeito de acordo com Canguilhem eacute a escola vitalista francesa que propotildee uma imagem
de vida transcendente ao entendimento analiacutetico o organismo natildeo pode ser compreendido como um mecanismo pois a vida eacute irredutiacutevel a uma composiccedilatildeo de partes materiais (cf CV 1985 p63)
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necessidade de alimentos energia movimento repouso entre outras tem como
sede o organismo em sua totalidade Mesmo seus dispositivos de regulaccedilatildeo59 e
homeostase60 se exercendo por meio de um sistema nervoso e endoacutecrino
exprimem a integraccedilatildeo das partes ao todo ldquoEacute esta a razatildeo pela qual no interior do
organismo natildeo haacute propriamente distacircncia entre os oacutergatildeos natildeo haacute exterioridade
das partesrdquo (NP 1990 p225) Portanto o organismo como totalidade integrada
somente poderaacute ser percebido a partir de uma siacutentese e natildeo de uma anaacutelise isto
eacute apenas poderaacute ser apreendido atraveacutes de uma visatildeo de conjunto e natildeo pela
divisatildeo de seus componentes
Em La connaissance de la vie no artigo ldquoLa theacuteorie cellulairerdquo Canguilhem
nota que o advento da teoria celular fortaleceu o meacutetodo de investigaccedilatildeo analiacutetico
59
Na Ideologia e racionalidade nas ciecircncias da vida em ldquoA formaccedilatildeo do conceito de regulaccedilatildeo bioloacutegica nos seacuteculos XVIII e XIXrdquo Canguilhem mostra que foi Hans Driesch (1867-1941) autor da obra Die Organischen Regulationen (1901) quem ao reconhecer nos primeiros blastocircmeros uma capacidade de impor ou transformar de uma parte uma regra de conformidade com a estrutura de um todo fez com que os embriologistas pudessem confirmar o reconhecimento jaacute realizado pelos fisiologistas da existecircncia de funccedilotildees controladoras de outras funccedilotildees que pela manutenccedilatildeo de certas constantes permitiam ao organismo comportar-se como um todo A estas funccedilotildees no ultimo terccedilo do seacuteculo XIX foi dado o nome de ldquoregulaccedilatildeordquo Segundo Canguilhem este termo inicialmente um conceito de ordem mecacircnica e poliacutetica foi introduzido metaforicamente na fisiologia numa eacutepoca em que as funccedilotildees por ele designadas estavam longe de serem compreendidas a partir de uma teoria geral das regulaccedilotildees e da homeostasia orgacircnica Apenas depois de Claude Bernard o termo ldquoregulaccedilatildeordquo entrou para o vocabulaacuterio da fisiologia natildeo como metaacutefora mas com reconhecimento cientiacutefico ldquoa regulaccedilatildeo bernardiana que se fundamenta na estabilidade interna das condiccedilotildees necessaacuterias da vida dos elementos celulares permite ao organismo enfrentar os acasos do meio ambiente pois esta regulaccedilatildeo consiste num mecanismo de compensaccedilatildeo de desequiliacutebriosrdquo (I 1981 p88)
60 Canguilhem esclarece que foi W B Cannnon bioacutelogo contemporacircneo quem expocircs em La
sagesse du Corps a teoria da homeostase teoria segundo a qual o organismo estaacute em estado permanente de equiliacutebrio controlado mantido contra as influecircncias perturbadoras de origem externa sendo a vida orgacircnica uma ordem de funccedilotildees precaacuterias e ameaccediladas mas constantemente restabelecidas por um sistema de regulaccedilotildees ldquoas regulaccedilotildees para as quais Cannon inventou o termo geral de homeostasia satildeo do tipo das que Claude Bernard havia reunido sob a denominaccedilatildeo de constantes do meio interno Satildeo normas de funcionamento orgacircnico como a regulaccedilatildeo dos movimentos respiratoacuterios sob a accedilatildeo da taxa de aacutecido carbocircnico dissolvido no sangue a termorregulaccedilatildeo no animal de temperatura constante etcrdquo (NP 1990 p235) Ele esclarece ainda que hoje aleacutem destas outras formas de regulaccedilatildeo devem ser levadas em consideraccedilatildeo no estudo das estruturas orgacircnicas e na gecircnese destas estruturas pois a embriologia experimental contemporacircnea descobriu que existem regulaccedilotildees morfoloacutegicas que durante o desenvolvimento embrionaacuterio conservam ou estabelecem a integridade da forma especiacutefica e prolongam sua accedilatildeo organizadora na reparaccedilatildeo de certas mutilaccedilotildees ldquoDe modo que se pode classificar em trecircs tipos o conjunto de normas graccedilas agraves quais os seres vivos se apresentam como um mundo distinto normas de constituiccedilatildeo normas de reconstituiccedilatildeo e normas de funcionamentordquo (NP 1990 p235)
70
e recolocou a questatildeo do todo e da parte em biologia61 Aqui o teor de sua criacutetica
eacute que epistemologicamente a teoria das moleacuteculas orgacircnicas ilustra bem como
uma teoria bioloacutegica pode nascer do prestiacutegio de uma ciecircncia fiacutesica
ldquoA teoria das moleacuteculas orgacircnicas ilustra um meacutetodo de explicaccedilatildeo o meacutetodo analiacutetico e privilegia um tipo de imaginaccedilatildeo a imaginaccedilatildeo do descontiacutenuo () Um organismo eacute um mecanismo no qual o efeito global resulta necessariamente da conjunccedilatildeo de partes A verdadeira individualidade vivente eacute molecular monaacutedicardquo (CV 1985 p 56)
Tambeacutem nos Eacutetudes dacuteHistoire et de Philosophie des Sciences no artigo
ldquoLe tout et la partie dans la penseacutee biologiquerdquo ele opotildee a ideia de corpo como
agregado de ceacutelulas independentes a de totalidade orgacircnica Nota tambeacutem que
ateacute mesmo a atividade reflexa aparentemente segmentar e localizada deve ser
considerada como uma resposta do organismo como um todo a um estiacutemulo
externo pois o reflexo natildeo eacute um mecanismo elementar e riacutegido traduzido por uma
resposta muscular isolada a um estiacutemulo pontal Ele eacute uma reaccedilatildeo do organismo
como um todo a uma modificaccedilatildeo de sua relaccedilatildeo com o meio (cf E 1989 p303)
Por isso assim como Goldstein ele acredita que apesar de ser possiacutevel isolar as
partes de um todo natildeo eacute possiacutevel compor o todo a partir das partes sendo o
reflexo um fenocircmeno desta totalidade (cf E 1989 p328)
Ainda na mesma obra realizando um paralelo entre a forma como
Aristoacuteteles e Descartes conceberam o todo e a parte nos organismos Canguilhem
lembra que se no pensamento aristoteacutelico o vivente eacute visto como uma totalidade
natildeo entendida como a simples soma de partes havendo uma subordinaccedilatildeo das
partes ao todo jaacute no cartesiano o uso do modelo mecacircnico daacute ideia de que as
61
Segundo Jacob (1983) a teoria celular fez uma primeira grande objeccedilatildeo ao vitalismo que havia presidido agrave fundaccedilatildeo da biologia rejeitando uma de suas exigecircncias fundamentais a ideia de totalidade indivisiacutevel ldquoSatildeo precisamente estas ideacuteias de totalidade e de continuidade que Schwann contesta considerando natildeo mais a composiccedilatildeo elementar dos seres vivos mas as causas que regem duas de suas principais propriedades a nutriccedilatildeo e o crescimento Adotando-se o ponto de vista vitalista eacute preciso situar as causas destes dois fenocircmenos no conjunto do organismo () Mas pode-se tambeacutem considerar que em cada ceacutelula as moleacuteculas satildeo articuladas de forma a permitir que a ceacutelula atraia outras moleacuteculas e cresccedila por si mesma As propriedades do vivo natildeo podem mais ser atribuiacutedas ao todo mas a cada parte a cada ceacutelula que de certa forma possui uma lsquovida independentersquordquo (JACOB p124-125) Cf JACOB F A loacutegica do vivente uma histoacuteria da hereditariedade (Trad Acircngela Loreiro de Souza) Op cit
71
partes do organismo se compotildeem segundo uma ordem necessaacuteria e invariaacutevel e
que o todo como estrutura estaacutetica eacute o produto da composiccedilatildeo destas partes (cf
E 1989 p325) Considerando que uma lesatildeo no organismo natildeo abole
necessariamente sua plasticidade por exemplo que a destruiccedilatildeo parcial das
ceacutelulas nervosas natildeo acarreta necessariamente a perda da funccedilatildeo global do
ceacuterebro - o que mostra certa independecircncia de suas funccedilotildees em relaccedilatildeo agrave
integridade de sua estrutura ndash ele se recusa a reduzir a totalidade orgacircnica a um
conjunto de mecanismos no qual toda funccedilatildeo estaria na dependecircncia da estrutura
estaacutetica a qual estaacute referenciada (cf E 1989 p315)
Na mesma direccedilatildeo em La connaissance de la vie ao procurar diferenciar a
maacutequina de um organismo ele define um mecanismo como uma junccedilatildeo de soacutelidos
em movimento reunidos de forma tal que o movimento natildeo pode abolir a
configuraccedilatildeo do conjunto ldquoportanto em toda maacutequina o movimento eacute funccedilatildeo da
junccedilatildeo e o mecanismo da configuraccedilatildeordquo (CV 1985 p103) Os movimentos
produzidos mas natildeo criados pela maacutequina satildeo deslocamentos geomeacutetricos e
mensuraacuteveis e a configuraccedilatildeo consiste apenas em um sistema de ligaccedilotildees
comportando graus de liberdade determinados que dependem do movimento dos
soacutelidos em contato O mecanismo eacute ainda um conjunto de partes deformaacuteveis
que necessita de restauraccedilatildeo perioacutedica das relaccedilotildees estabelecidas entre estas
mesmas partes Uma maacutequina assim definida natildeo se basta a si mesma pois
depende natildeo soacute da engenhosidade de um construtor mas tambeacutem da vigilacircncia
de um maquinista
ldquoNo caso da maacutequina a construccedilatildeo lhe eacute estrangeira e supotildee a engenhosidade de um mecacircnico a conservaccedilatildeo exige a observaccedilatildeo e a vigilacircncia constantes de um maquinista e sabemos a que ponto certas maacutequinas complicadas podem ser irremediavelmente perdidas por falta de atenccedilatildeo ou de vigilacircncia Quanto a sua regulaccedilatildeo e a sua reparaccedilatildeo elas supotildeem igualmente a intervenccedilatildeo perioacutedica da accedilatildeo humanardquo (CV 1985 p116)
Desta forma embora pareccedila que Descartes ao identificar o organismo a um
mecanismo fez desaparecer toda a teleologia da vida a construccedilatildeo de uma
maacutequina natildeo se compreende sem um construtor nem sem uma finalidade ldquoUma
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maacutequina eacute feita pelo homem e para o homem em vista de alguns fins a obter sob
a forma de efeitos a produzirrdquo (cf CV 1985 p114)62 Jaacute o organismo natildeo possui
como a maacutequina um teacutelos predeterminado definido por uma razatildeo exterior a ele
Ensejando finalidades possiacuteveis a vida age segundo um empirismo ldquoA vida eacute
experiecircncia quer dizer improvisaccedilatildeo utilizaccedilatildeo de ocorrecircncias ela eacute tentativa em
todos os sentidosrdquo (CV 1985 p118)
Com efeito segundo Canguilhem enquanto a maacutequina apresenta uma
finalidade determinada realizando um programa previamente traccedilado no
organismo haacute a possibilidade de numa situaccedilatildeo acidental um oacutergatildeo adequar-se a
novas condiccedilotildees servindo a funccedilotildees imprevistas Exemplo disso eacute o caso da
hemiplegia direita na infacircncia que jamais eacute acompanhada de afasia pois outras
aacutereas natildeo lesadas do ceacuterebro acabam por assumir a funccedilatildeo da linguagem A seu
ver tal polivalecircncia dos oacutergatildeos eacute o que mostra ser a finalidade mais conveniente a
uma maacutequina que ao organismo ldquoUm organismo tem portanto mais liberdade de
accedilatildeo que uma maacutequina Ele eacute menos finalidade e mais potencialidaderdquo (CV 1985
p118)
Aleacutem disso se na maacutequina todo o efeito eacute dependente da ordem das
causas o organismo nem sempre segue o princiacutepio de causalidade para o qual
todo efeito tem uma causa e as mesmas causas produzem nas mesmas
condiccedilotildees os mesmos efeitos Experiecircncias de alguns neovitalistas como as
realizadas por Driesch sobre a totipotencialidade dos primeiros blastocircmeros
provam que o embriatildeo natildeo encerra uma ldquomaquinaria especiacuteficardquo como pensava
62
Acreditamos que neste aspecto Canguilhem concordaria com Bergson para quem o mecanicismo e finalismo natildeo seriam mais do que faces de uma mesma moeda Com efeito em A evoluccedilatildeo criadora ele explica porque recusa tanto a hipoacutetese mecanicista quanto a finalista para a compreensatildeo da evoluccedilatildeo dos viventes ldquouma teoria mecanicista seraacute aquela que nos faraacute assistir agrave construccedilatildeo gradual da maacutequina sob a influecircncia de circunstacircncias exteriores intervindo diretamente por uma accedilatildeo sobre os tecidos ou indiretamente pela accedilatildeo dos mais adaptados () O mecanicismo entatildeo censuraraacute com razatildeo o finalismo por seu caraacuteter antropomoacuterfico Mas natildeo percebe que ele proacuteprio procede segundo esse meacutetodo simplesmente mutilando-o Sem duacutevida faz taacutebula rasa do fim perseguido ou do modelo ideal Mas quer ele tambeacutem que a natureza tenha trabalhado como o operaacuterio humano juntando partesrdquo (BERGSON 2005 p97) Cf BERGSON H A evoluccedilatildeo criadora (Trad Bento Prado Neto) Op cit
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Descartes63 Isso porque em seu processo de formaccedilatildeo pode haver indiferenccedila
do efeito em relaccedilatildeo agrave ordem das causas e tambeacutem a reduccedilatildeo quantitativa da
causa pode natildeo trazer uma alteraccedilatildeo qualitativa no efeito o que mostra que o
desenvolvimento embrionaacuterio dificilmente pode ser reduzido a um esquema
mecacircnico (cf CV 1985 p92)
Na mesma direccedilatildeo em O normal e o patoloacutegico Canguilhem esclarece que
enquanto a maacutequina apresenta uma rigidez funcional por seguir uma finalidade
riacutegida e univalente ditada pela razatildeo de seu construtor no organismo natildeo haacute uma
finalidade predeterminada pois eacute improvisando que ele descobre seus fins
possiacuteveis64 Desta forma se eacute possiacutevel atribuir uma finalidade agrave vida ela somente
pode ser pensada num sentido organiacutesmico65 Ela somente poderaacute ser
operacional e natildeo real ontoloacutegica
ldquoSe existisse uma finalidade perfeita consumada um sistema completo de relaccedilotildees de conveniecircncia orgacircnica o proacuteprio conceito de finalidade natildeo teria nenhum sentido como conceito como projeto ou modelo para pensar a vida pela simples razatildeo de
63
Com efeito de acordo com Jacob (1983) para falar do desenvolvimento embrionaacuterio Descartes em Formation de lrsquoanimal utiliza termos semelhantes aos que mais tarde Laplace empregaraacute para descrever os movimentos do universo ldquoSe se conhecesse bem todas as partes da semente de uma espeacutecie de animal em particular por exemplo do homem seria possiacutevel deduzir por razotildees certas e matemaacuteticas a forma e a conformaccedilatildeo de cada um de seus membrosrdquo (DESCARTES In JACOB 1983 p60) In JACOB F A loacutegica da vida uma histoacuteria da hereditariedade (Trad Acircngela Loreiro de Souza) 2ordf ed Rio de Janeiro Ediccedilotildees Graal 1983
64 Para Puttini e Pereira Jr (2007) Canguilhem adota uma posiccedilatildeo antimecanicista mas sem
precisar com isto aceitar uma concepccedilatildeo teleoloacutegica sobre a vida como fizeram os vitalistas A respeito disto comentam que o sucesso da fiacutesica de Galileu e Newton fez com que ela servisse de modelo para as demais ciecircncias Utilizando apenas trecircs esquemas causais para a explicaccedilatildeo do movimento dos corpos (material formal e eficiente) a fiacutesica moderna excluiu a causa final proposta por Aristoacuteteles frequentemente evocada para explicar os fenocircmenos da vida e da sauacutede Os vitalistas insatisfeitos com o modelo mecanicista do universo se empenharam em provar a partir dos mesmos meacutetodos experimentais a existecircncia de uma teleologia vital para diferenciar as forccedilas fiacutesicas das forccedilas vitais O ponto de vista dos comentadores eacute o de que Canguilhem teve como os vitalistas o interesse em propor uma metodologia apropriada agraves ciecircncias da vida mas isso natildeo o fez afirmar a existecircncia de um princiacutepio vital teleoloacutegico Cf PUTTINI R F PEREIRA JR A Aleacutem do mecanicismo e do vitalismo a ldquonormatividade da vidardquo em Georges Canguilhem Op cit
65 Hacking (2007) alinha Canguilhem agrave tradiccedilatildeo aristoteacutelica por ele associar intimamente uma
teleologia agrave vida mas natildeo por procurar compreender a existecircncia dos organismos por seus fins mas por tentar compreender um aspecto do organismo por exemplo um oacutergatildeo considerando somente a razatildeo pela qual ele serve agrave preservaccedilatildeo do organismo ou de sua espeacutecie (cf HACKING 2007 p116) Cf HACKING I Canguilhem parmi les cyborgs In BAUNSTEIN J-F (org) Histoire des sciences et politique du vivant Paris Presses Universitaires de France ndash PUF 2007
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que natildeo haveria motivo para pensar nem razatildeo para o pensamento natildeo havendo nenhuma defasagem entre a organizaccedilatildeo possiacutevel e a organizaccedilatildeo real O pensamento da finalidade exprime a limitaccedilatildeo da finalidade da vida Se esse conceito tem um sentido eacute porque ele eacute o conceito de um sentido o conceito de uma organizaccedilatildeo possiacutevel e portanto natildeo garantidordquo (NP 1990 p256)
Ademais na mesma medida em que Canguilhem recusa a ideia de que os
fenocircmenos orgacircnicos seguem uma causalidade mecacircnica e apresentam uma
finalidade invariaacutevel como num mecanismo no qual haacute uma sequecircncia necessaacuteria
de operaccedilotildees que visa a um fim dado definido por uma razatildeo exterior a ela ele
tambeacutem nega a possibilidade dele ser comparado a uma sociedade na qual as
regras satildeo sempre exteriores ao conjunto de indiviacuteduos que a compotildeem Por isso
ao comparar as normas orgacircnicas agraves normas sociais conclui que eacute devido ao fato
das normas vitais serem internas e atuarem sem deliberaccedilatildeo ou caacutelculo que o
organismo natildeo pode ser comparado a uma sociedade na qual como na maacutequina
as normas satildeo exteriores devendo ser sempre representadas aprendidas
rememoradas aplicadas
ldquoA ordem social eacute um conjunto de regras com as quais seus servidores ou seus beneficiaacuterios de qualquer modo seus dirigentes tecircm que se preocupar A ordem vital eacute constituiacuteda por um conjunto de regras vividas sem problemasrdquo (NP 1990 p211)
Jaacute nos Escritos sobre medicina refletindo sobre o problema das regulaccedilotildees
no organismo e na sociedade esclarece que o fato de uma sociedade ser
organizada natildeo quer dizer que ela seja orgacircnica A seu ver ela eacute mais da ordem
de uma maacutequina que de um organismo
ldquoNatildeo haacute sociedade sem regulaccedilatildeo natildeo haacute sociedade sem regra mas natildeo haacute na sociedade auto-regulaccedilatildeo Nela a regulaccedilatildeo eacute sempre acrescentada se assim posso dizer e sempre precaacuteriardquo (EM 2005 p85)
Diferentemente de uma sociedade na qual a finalidade eacute exterior ao complexo
ajustado a finalidade do organismo lhe eacute inerente de modo que se haacute um modelo
para o organismo este modelo eacute ele mesmo (cf EM 2005 p76 E 1989 p333)
75
Destarte nos seus Eacutetudes dacuteHistoire et de Philosophie des Sciences
Canguilhem procura colocar em xeque o uso de modelos emprestados dos
domiacutenios da fiacutesica e da experiecircncia tecnoloacutegica do animal-maacutequina aos
autocircmatos ciberneacuteticos para a explicaccedilatildeo dos fenocircmenos vitais Isso porque os
organismos por serem autoconstitutivos e autocontrolados diferentemente das
estruturas mecacircnicas que precisam de um construtor de um operador e de um
reparador satildeo capazes de realizar processos de autorregulaccedilatildeo autorreparaccedilatildeo
autoconservaccedilatildeo (cf E 1989 p 319) Como uma totalidade integrada e
autorregulada que se autoconserva o organismo goza de uma plasticidade
funcional e de uma potencialidade de base de modo que o modelo explicativo
seja mecacircnico seja loacutegico das propriedades estruturais e funcionais do objeto
bioloacutegico pode muito bem ser relegado agrave categoria de mito (cf E 1989 p 318)
Com efeito concordando com as objeccedilotildees de Barthez quanto ao uso de
modelos mecacircnicos para a explicaccedilatildeo dos fenocircmenos bioloacutegicos Canguilhem
critica a reduccedilatildeo das estruturas e das funccedilotildees orgacircnicas a modelos emprestados
dos domiacutenios da tecnologia da mecacircnica ou fiacutesica de inspiraccedilatildeo cartesiana e
galileana Tambeacutem ele questionando o uso de modelos de feedback para explicar
a homeostase e a adaptaccedilatildeo ativa orgacircnicas bem como a construccedilatildeo de modelos
eleacutetricos (fiacutesico-quiacutemicos) em fisiologia nervosa natildeo acredita que os feedback
orgacircnicos faccedilam parte da mesma classe dos mecacircnicos embora possa haver
caracteres operacionais comuns entre os oacutergatildeos de regulaccedilatildeo e os dispositivos
mecacircnicos de regulagem ldquoNa era da Ciberneacutetica podemos crer na inadequaccedilatildeo
de modelos mecacircnicos aos sistemas bioloacutegicos caracterizados por sua totalidade
e auto-regulaccedilatildeo internardquo (E 1989 p311)
Tambeacutem na Ideologia e racionalidade nas ciecircncias da vida ele esclarece
que somente um organismo tem um metabolismo orientado para a
autorreproduccedilatildeo e autoconservaccedilatildeo por autorregulaccedilatildeo dados da vida verificaacuteveis
jaacute mesmo nos microrganismos (cf I 1981 p110) Por isso um fato que julga ser
singular e interessante eacute a multiplicaccedilatildeo de termos formados com o prefixo auto
usados pelos bioquiacutemicos e biofiacutesicos para descrever as funccedilotildees e o
comportamento dos sistemas organizados como auto-organizaccedilatildeo
76
autorreproduccedilatildeo autorregulaccedilatildeo e autoimunizaccedilatildeo e o esforccedilo realizado por eles
para esclarecer os determinismos dessas propriedades e construir modelos
ciberneacuteticos de autocircmatos autorreprodutores
ldquoMas esses modelos natildeo passam afinal de modelos loacutegicos e os uacutenicos autocircmatos que de fato satildeo auto-reprodutores satildeo precisamente os sistemas orgacircnicos naturais isto eacute vivosrdquo (I 1981 p120)
Nos Escritos sobre medicina ao tratar do problema da autorregulaccedilatildeo nos
seres vivos Canguilhem defende que o organismo eacute caracterizado pela presenccedila
constante e pela influecircncia permanente de todas as suas partes em cada uma
delas ldquoEacute proacuteprio do organismo viver como um todo e ele soacute pode viver como um
todordquo (EM 2005 p 77) Isso somente eacute possiacutevel por existir nele um conjunto de
dispositivos de regulaccedilatildeo orgacircnica cuja funccedilatildeo eacute manter a integridade e a
persistecircncia do organismo como um todo o que tambeacutem confirma a velha intuiccedilatildeo
da medicina hipocraacutetica confirmada pela fisiologia moderna de que existe no
organismo uma forccedila curativa da natureza (vis medicatrix naturae) uma espeacutecie
de medicaccedilatildeo natural ou de compensaccedilatildeo natural de lesotildees e distuacuterbios aos quais
o organismo estaacute exposto66
Como prova da ideia de organismo como totalidade autorregulada que se
autoconserva ele nota que mesmo no desenvolvimento embrionaacuterio existe uma
espeacutecie de controle do todo sobre as partes o que faz com que mesmo no caso
de ocorrerem variaccedilotildees no embriatildeo por fatores externos seja mantida a
integridade de sua forma especiacutefica Por extensatildeo a regeneraccedilatildeo do organismo
66
Segundo Canguilhem na Ideologia e racionalidade nas ciecircncias da vida a maioria das teorias meacutedicas do seacuteculo XVIII sejam elas mecanicistas ou vitalistas reconhecem que o organismo tem um poder de restituiccedilatildeo e de reintegraccedilatildeo e admitem que foi Hipoacutecrates quem apresentou sob o nome de Natureza esta vis medicatrix naturae como o poder de conservaccedilatildeo de si que eacute proacuteprio do corpo vivo E apesar de todas as teses aristoteacutelicas terem sido alteradas por Descartes ponto por ponto sendo a natureza identificada agraves leis do movimento e da conservaccedilatildeo e toda arte inclusive a medicina tenha se tornado de certa forma uma construccedilatildeo de maacutequinas mesmo ele teve que integrar a sua definiccedilatildeo de ser vivo que reivindicava como objeto da mecacircnica atributos rebeldes a sua jurisdiccedilatildeo e a autoconservaccedilatildeo continuou a ser o principal caraacuteter distintivo do corpo vivo (cf I 1981 p112)
77
adulto apenas eacute possiacutevel devido agrave presenccedila destes organizadores especiacuteficos
que fazem com que a forma orgacircnica seja constantemente preservada e mantida
ldquoDo mesmo modo e isto eacute apenas uma consequecircncia a regeneraccedilatildeo que acontece em alguns animais e que faz com que esses animais reencontrem depois de uma mutilaccedilatildeo e salvo algumas diferenccedilas quantitativas sua proacutepria forma mostra bem que haacute uma espeacutecie de dominaccedilatildeo da forma sobre a mateacuteria uma espeacutecie de comando do todo sobre as partesrdquo (EM 2005 p80)
Portanto na oacuteptica canguilhemiana autoconservaccedilatildeo por autorregulaccedilatildeo eacute
caracteriacutestica proacutepria aos sistemas vivos Somente neles observamos a existecircncia
de um sistema especializado de aparelhos de regulaccedilatildeo intimamente atrelado agraves
funccedilotildees de adaptaccedilatildeo ao meio (cf EM 2005 p54) Desta forma seria um
absurdo considerar o organismo uma maacutequina agrave regulaccedilatildeo e ainda esperar dele
qualquer reaccedilatildeo a uma avaria Ateacute porque adoecimento e morte tambeacutem satildeo
caracteriacutesticas exclusivas dos viventes ldquoNatildeo haver doenccedila na maacutequina coaduna-
se perfeitamente com o fato de que natildeo haacute morte na maacutequinardquo (EM 2005 p 41)
Assim para Canguilhem apenas os organismos satildeo capazes de perceber
quando sua existecircncia se encontra ameaccedilada e de fazer uso de sua potecircncia de
criaccedilatildeo de normas e valores como estrateacutegia de resistecircncia agrave degradaccedilatildeo67 Jaacute as
maacutequinas por natildeo adoecerem nem perceberem as ameaccedilas agrave integridade de sua
estrutura nada criam consistindo nisso sua apatia e sua ineacutercia Portanto como
caracteriacutesticas proacuteprias ao vivo normatividade e polaridade dinacircmica satildeo taacuteticas
vitais de luta contra a inadaptaccedilatildeo e consequentemente extinccedilatildeo da vida
67
Por Canguilhem apresentar a vida como potecircncia de criaccedilatildeo de normas e valores Czeresnia (2010) propotildee uma aproximaccedilatildeo do conceito de normatividade vital agrave noccedilatildeo nietzschiana de vontade de potecircncia ldquoO conceito de normatividade vital encontra o de vontade de poder como uma potecircncia que realiza a proacutepria vida orgacircnicardquo (CZERESNIA 2010 p709) A seu ver a ideia de Nietzsche de que a vida se produz a partir de uma condiccedilatildeo irredutiacutevel de valor e que dele depende o incremento da potecircncia e a expansatildeo da vida mesma se aproxima do conceito de normatividade vital canguilhemiana que constata que natildeo eacute possiacutevel pensar o vivo prescindindo da noccedilatildeo de valor e que a vida tem a propriedade de criar normas para perseverar condiccedilatildeo baacutesica da possibilidade do vivente manter-se na vida agrave revelia do principio da entropia Cf CZERESNIA D Canguilhem e o caraacuteter filosoacutefico das ciecircncias da vida Physis Revista de Sauacutede Coletiva Rio de Janeiro 20 [3] 709-727 2010
78
ldquoa vida procura ganhar da morte em todos os sentidos da palavra ganhar e em primeiro lugar no sentido em que o ganho eacute aquilo que eacute adquirido por meio do jogo A vida joga contra a entropia crescenterdquo (NP 1990 p208)
Isto esclarece porque ele concorda com Bichat para quem a vida eacute um
conjunto de funccedilotildees que resiste agrave morte e porque elogia Guyenot ao ter
compreendido que as flutuaccedilotildees do meio satildeo quase sempre uma ameaccedila agrave
existecircncia do ser vivo e que ele natildeo poderia subsistir se natildeo possuiacutesse certas
propriedades essenciais Para o autor de La vie comme invention o organismo
goza de um conjunto de propriedades graccedilas agraves quais ele resiste agraves muacuteltiplas
causas de sua destruiccedilatildeo e sem essas defesas a vida se extinguiria rapidamente
ldquoQualquer ferida seria mortal se os tecidos natildeo fossem capazes de cicatrizaccedilatildeo e
o sangue de coagulaccedilatildeordquo (NP 1990 p100)
Com efeito se existissem normas determinadas para o organismo como haacute
na maacutequina natildeo haveria possibilidade de restauraccedilatildeo orgacircnica em casos de
malformaccedilatildeo ou acidente (cf NP 1990 p236) Eacute portanto a capacidade de
estabelecimento de valores e de criaccedilatildeo de normas inerente agrave vida o que explica a
existecircncia em todo vivente de reaccedilotildees de caraacuteter hedocircnico e terapecircutico
ldquomesmo os seres vivos bem inferiores aos vertebrados quanto agrave organizaccedilatildeo
apresentam reaccedilotildees de valor hedocircnico ou comportamentos de auto-cura e de
auto-regeneraccedilatildeordquo (NP 1990 p97) De modo mais preciso eacute somente pelo fato
da vida ser reatividade polarizada de conflito com o meio e atividade normativa
que todas as teacutecnicas curativas se fazem possiacuteveis
ldquoNenhum ser vivo jamais teria desenvolvido uma teacutecnica meacutedica se nele assim como em qualquer outro ser vivo a vida fosse indiferente agraves condiccedilotildees que encontra se ela natildeo fosse reatividade polarizada agraves variaccedilotildees do meio no qual se desenrolardquo (NP 1990 p100)
Natildeo obstante Canguilhem entende que natildeo podemos falar de uma
ldquomedicina naturalrdquo sem cairmos no inconveniente de inscrever a teacutecnica vital no
quadro das teacutecnicas humanas quando o inverso eacute verdadeiro Toda teacutecnica
humana eacute que estaacute inscrita na vida
79
ldquoNatildeo eacute apenas porque a teacutecnica humana eacute normativa que a teacutecnica vital eacute considerada como tal por analogia E por ser atividade de informaccedilatildeo e assimilaccedilatildeo que a vida eacute a raiz de toda atividade teacutecnicardquo (NP 1990 p 100)
Assim natildeo devemos resvalar na ldquoilusatildeo de retroatividaderdquo de que fala Bergson a
considerar que a atividade vital persegue fins e utiliza meios comparaacuteveis aos dos
homens Do mesmo modo que a seleccedilatildeo natural natildeo utiliza algo semelhante a
pedigrees a vis medicatrix naturae natildeo faz uso de ventosas (cf NP 1990 p99)
Na mesma direccedilatildeo em La connaissance de la vie ele diz que se para todo
vivente a vida eacute experiecircncia somente o vivente humano diferentemente dos
demais constroacutei teorias e instrumentos para resolver direta ou indiretamente suas
tensotildees com o meio Por esse prisma nada mais humano que uma maacutequina
porque eacute pela construccedilatildeo de utensiacutelios e maacutequinas que o vivente humano se
distingue dos animais ldquomas isso natildeo quer dizer que o homem seja uma maacutequina
pois a construccedilatildeo da maacutequina natildeo eacute uma funccedilatildeo da maacutequinardquo (CV 1895 p 22)
Ou seja somente o vivente humano inventa teorias utensiacutelios e linguagem para
organizar a experiecircncia de modo a garantir a liberdade da vida (cf CV 1985
p11) Apenas ele faz uso da atividade teacutecnica intencional68 como uma forma de
superaccedilatildeo de obstaacuteculos que encontra em sua aprendizagem (learning) isto eacute em
suas tentativas de se ajustar ao mundo exterior (cf CV 1985 p24)
Por isso ainda na mesma obra no artigo ldquoMachine et Organismerdquo
objetivando compreender a construccedilatildeo das maacutequinas a partir da estrutura e do
funcionamento dos organismos ao passar em revista o pensamento dos principais
representantes da filosofia bioloacutegica da teacutecnica destaca aqueles que datildeo margem
agrave percepccedilatildeo de sua origem irracional e faz um elogio a Bergson por ter se tornado
um dos raros filoacutesofos franceses que consideram a invenccedilatildeo mecacircnica uma
funccedilatildeo bioloacutegica um aspecto da organizaccedilatildeo da mateacuteria pela vida (cf CV 1985
p125) Para ele assim como para o autor de A evoluccedilatildeo criadora a atividade
teacutecnica eacute autenticamente orgacircnica e portanto estaacute intimamente ligada agrave vida 68
Aqui Canguilhem toma de Kant os termos teacutecnica intencional do homem e teacutecnica natildeo intencional da vida utilizadas pelo filoacutesofo alematildeo em sua Critique du Jugement (cf CV 1985 p122)
80
Como um fenocircmeno bioloacutegico universal ela natildeo eacute somente uma operaccedilatildeo
intelectual do homem mas uma atividade que o coloca em continuidade com a
vida (cf CV 1985 p 126)69
Todavia somente o vivente humano ao sofrer com a ameaccedila da doenccedila e
da morte como estrateacutegia para a manutenccedilatildeo de sua integridade desenvolve
teacutecnicas intencionais como extensatildeo da atividade curativa da vida Ou seja se a
polaridade dinacircmica pode ser atribuiacuteda a todo vivente no vivente humano como
totalidade orgacircnica consciente a valoraccedilatildeo negativa se transforma em pathos e
este em teacutecnica meacutedica Isto eacute se tudo que vive tem uma capacidade espontacircnea
de conservaccedilatildeo de sua estrutura e de regulaccedilatildeo de suas funccedilotildees o vivente
humano atraveacutes de teorias e instrumentos meacutedicos reproduz de forma consciente
a atitude de todo vivente de manutenccedilatildeo de sua integridade orgacircnica Assim se eacute
dos obstaacuteculos que o meio impotildee ao vivente da doenccedila das anomalias de valor
vital negativo da ameaccedila da morte que adveacutem a teacutecnica curativa natildeo intencional
da vida eacute tambeacutem daiacute que nasce a teacutecnica terapecircutica intencional humana que eacute
a medicina
69
Sebestik (1993) ao investigar o papel da teacutecnica na obra de Canguilhem percebe que fora a comunicaccedilatildeo ldquoDescartes et la techniquerdquo ministrada por ele no IX
e Congregraves international de
Philosophie (1937) e o ceacutelebre artigo ldquoMachine et organismerdquo a concepccedilatildeo canguilhemiana de teacutecnica se encontra dispersa em seus escritos Apesar disso acredita ser possiacutevel apresentar uma ideia precisa dela visto que assentada em dois princiacutepios o primeiro deles eacute que a teacutecnica eacute uma atividade originaacuteria irredutiacutevel agrave ciecircncia e a segundo que ela estaacute inscrita na histoacuteria humana e atraveacutes dela na histoacuteria da vida Na mesma direccedilatildeo Lecourt (2008) comenta que Canguilhem em ldquoDescartes et la techniquerdquo se empenha em mostrar que a iniciativa da teacutecnica estaacute nas exigecircncias do vivente e deve ser pensada como criaccedilatildeo Na comunicaccedilatildeo apresentada na Socieacuteteacute toulousaine de philosophie em 1938 intitulada ldquoActiviteacute technique et creacuteationrdquo Canguilhem trata da proximidade e da distacircncia de suas teses das de Bergson e novamente defende que teacutecnica produccedilatildeo e criaccedilatildeo designam atitudes proacuteprias ao vivente humano que emergem de seu debate incessante com o meio Jaacute Hacking (2007) nota que na filosofia bioloacutegica da teacutecnica apresentada por Canguilhem os utensiacutelios e as maacutequinas satildeo apresentados como projeccedilotildees do corpo ou como produccedilotildees da vida ldquoelas satildeo uma extensatildeo da vida da vitalidade da forccedila vitalrdquo (HACKING 2007 p123-4) Atraveacutes de um anticartesianismo radical seu pensamento rompe as barreiras entre o espiacuterito e o corpo e por natildeo estabelecer uma oposiccedilatildeo fundamental entre maacutequina e organismo daacute abertura para que pensemos em formas artificiais de vida como os Cyborgs Sobre a filosofia da teacutecnica em Canguilhem Cf LECOURT D Georges Canguilhem Que sais-je Les envies du savoir 1
a ediccedilatildeo Paris Presses Universitaires de France - PUF 2008 SEBESTIK J Le rocircle de la
technique dans lœuvre de Georges Canguilhem In BADIOU A (et al) Georges Canguilhem Philosophe historien des sciences Actes du colloque (6 7 8 deacutecembre 1990) Paris Albin Michel 1993 HACKING I Canguilhem parmi les cyborgs In BAUNSTEIN J-F (org) Histoire des sciences et politique du vivant Paris Presses Universitaires de France ndash PUF 2007 p113-41
81
ldquoGostariacuteamos de saber como eacute que uma necessidade humana de terapecircutica teria dado origem a uma medicina cada vez mais clarividente em relaccedilatildeo agraves condiccedilotildees de doenccedila se a luta da vida contra os inuacutemeros perigos que a ameaccedilam natildeo fosse uma necessidade vital permanece e essencialrdquo (NP 1990 p97)
Portanto em consonacircncia aos princiacutepios hipocraacuteticos e tambeacutem
aristoteacutelicos70 segundo os quais a teacutecnica meacutedica imita a accedilatildeo meacutedica natural (vis
medicatrix naturae) para Canguilhem a medicina pode ser vista como uma
extensatildeo dos impulsos curativos da vida visto que eacute neles que ela se enraiacuteza
Como teacutecnica intencional do vivente humano ela eacute o prolongamento do esforccedilo
espontacircneo de defesa e de luta de todo vivente contra tudo o que lhe ameaccedila
ldquoOcorre com a medicina o mesmo que com todas as teacutecnicas Eacute uma atividade
que tem raiacutezes no esforccedilo espontacircneo do vivo para dominar o meio e organizaacute-lo
segundo seus valores de ser vivordquo (NP 1990 p188)
Entretanto singularmente na perspectiva canguilhemiana a medicina existe
como arte da vida porque o vivente humano considera como patoloacutegicos
determinados comportamentos que em relaccedilatildeo agrave polaridade dinacircmica da vida
satildeo apreendidos sob a forma de valores negativos A partir disto como taacutetica de
defesa ele prolonga de modo consciente um efeito espontacircneo proacuteprio da vida
de lutar contra tudo aquilo que constitui um obstaacuteculo agrave sua manutenccedilatildeo e
desenvolvimento tomados como normas (cf NP 1990 p96) Ou seja eacute somente
pelo fato da vida ser atividade polarizada e normativa que ela eacute a raiz da medicina
considerada uma teacutecnica de autocura e autorregeneraccedilao realizada
conscientemente pelo vivente humano que apenas prolonga as tentativas de cura
exercidas espontaneamente pelo ldquoprimeiro meacutedicordquo que eacute a vida 70
Com efeito nos Eacutetudes dacuteHistoire et de Philosophie des Sciences Canguilhem esclarece que assim como no pensamento hipocraacutetico no pensamento aristoteacutelico a arte meacutedica eacute a finalidade natildeo deliberada de um logos natural (Cf E 1989 p337) Na mesma direccedilatildeo na Ideologia e racionalidade nas ciecircncias da vida ele afirma que o naturalismo bioloacutegico de Aristoacuteteles que era filho de meacutedico assemelha-se ao naturalismo hipocraacutetico porque Aristoacuteteles estabelece uma analogia entre natureza e arte entre vida e teacutecnica Para ele a arte do meacutedico como a aplicaccedilatildeo de regras inspiradas pela ideia da sauacutede finalidade e forma do organismo vivo eacute a que mais se assemelha agrave arte das artes que eacute a natureza e a vida ldquoEgrave por demais conhecido que Aristoacuteteles concebe a natureza e a vida como a arte das artes entendida como um processo teleoloacutegico em si imanente sem premeditaccedilatildeo sem deliberaccedilatildeo processo que toda teacutecnica tende a imitar cuja maacutexima aproximaccedilatildeo eacute a que eacute conseguida pela arte do meacutedico quando este cura a si proacuteprio por auto-aplicaccedilatildeo das regras que lhe satildeo inspiradas pela ideacuteia da sauacutede finalidade e forma do organismo vivordquo (I 1981 p110)
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CAPIacuteTULO II
Arte da cura ou ciecircncia das doenccedilas
Se o conhecimento eacute filho da razatildeo a sabedoria eacute filha da vida
O problema de a medicina ser uma arte da cura ou uma ciecircncia das doenccedilas
se inscreve no pensamento canguilhemiano no contexto de uma discussatildeo
epistemoloacutegica mais ampla que procura elucidar a anterioridade loacutegica e
cronoloacutegica das teacutecnicas em relaccedilatildeo agraves ciecircncias Como vimos no capiacutetulo anterior
Canguilhem define a medicina com uma teacutecnica de enraizamento vital isto eacute um
prolongamento consciente de uma forccedila curativa natural (vis medicatrix naturae)
disparada por valoraccedilotildees negativas que a vida mesma atribui a determinados
comportamentos orgacircnicos Ao enraizar a teacutecnica meacutedica na vida sua intenccedilatildeo eacute
colocar em questatildeo a ideia de que a ciecircncia deve comandar a teacutecnica o que
significaria afirmar uma subserviecircncia da segunda em relaccedilatildeo agrave primeira ideia que
ele enfaticamente recusa71
Afirmando que apesar dos esforccedilos de racionalizaccedilatildeo cientiacutefica a medicina
tem por essecircncia a cliacutenica e a terapecircutica como teacutecnica de instauraccedilatildeo e
restauraccedilatildeo do normal que natildeo pode ser reduzida agrave mera aplicaccedilatildeo de um
conhecimento ele nega a ideia de que ela pode ser caracterizada como uma
ciecircncia das doenccedilas devendo ser orientada por uma ciecircncia bioloacutegica do normal
a fisiologia da qual a patologia objetiva seria derivada Por outro vieacutes a medicina
considerada por ele como uma arte da cura deve menos se orientar por uma
ciecircncia bioloacutegica do normal da qual ele questiona ateacute mesmo a existecircncia mas se
colocar a serviccedilo das normas da vida
71
Para Delaporte (1994) revela-se aqui a funccedilatildeo heuriacutestica do interesse de Canguilhem pela patologia pela cliacutenica e pela terapecircutica Ao encontrar na praacutetica meacutedica a atividade de uma teacutecnica vital eacute possiacutevel negar a dependecircncia da teacutecnica para com a ciecircncia ramificando-a na vida ldquoa teacutecnica deriva da vida prolonga atos naturais e instintivosrdquo (DELAPORTE 1994 p 39) Cf DELAPORTE F ldquoA Histoacuteria das Ciecircncias segundo G Canguilhemrdquo In PORTOCARRERO V Filosofia Histoacuteria e Sociologia das Ciecircncias I abordagens contemporacircneas Rio de Janeiro Fiocruz 1994
83
Ora se concordarmos com a perspectiva canguilhemiana de que eacute o pathos
que condiciona o logos de que satildeo as valoraccedilotildees negativas que disparam a
atividade meacutedica consciente entatildeo temos que admitir que eacute tambeacutem um valor que
mostra qual objeto deve ser estudado racional e cientificamente pelo homem ou
seja que eacute a doenccedila como valoraccedilatildeo vital negativa que estaacute na origem da
atenccedilatildeo especulativa que a vida dedica agrave vida por intermeacutedio do homem (cf NP
1990 p76)
No entanto a ciecircncia moderna ao separar os fatos da esfera dos valores ao
operar uma cesura entre o objetivo e o subjetivo dando privileacutegio a um meacutetodo
baseado na experimentaccedilatildeo e na matemaacutetica para a compreensatildeo e domiacutenio dos
fenocircmenos naturais72 acabou por fazer a ciecircncia da vida perder de vista suas
origens Ela deixou de reconhecer a polaridade dinacircmica e a normatividade vitais
e passou a definir o que eacute o normal e o que eacute o patoloacutegico experimentalmente O
normal passou a ser um conceito objetivamente determinaacutevel por meacutetodos
cientiacutefico-experimentais e o estado patoloacutegico apenas uma modificaccedilatildeo
quantitativa deste
Eacute portanto com o intuito de inverter uma loacutegica que defende a anterioridade
da ciecircncia da vida em relaccedilatildeo aos valores vitais que Canguilhem afirma que se o
normal eacute objeto da atividade cientiacutefica eacute porque primeiramente recebeu da vida um
valor preacutevio identificado posteriormente pela medicina como estado de sauacutede ldquoeacute
72
Como esclarece Mariconda (2006) a distinccedilatildeo entre fato e valor elaborada na primeira metade do seacuteculo XVII e presente nos trabalhos de Bacon Galileu Descartes e Pascal estaacute na raiz da concepccedilatildeo moderna de domiacutenio (controle da natureza) que direciona o conhecimento cientiacutefico e o desenvolvimento teacutecnico e tecnoloacutegico atuais A seu ver eacute em torno da dicotomia entre fato e valor ndash ou entre objetivo e subjetivo ndash que se constituiu o proacuteprio campo da ciecircncia natural no interior da ampla modificaccedilatildeo que conduziu ao nascimento da ciecircncia moderna de Copeacuternico a Newton de Bacon a Hume Eacute tambeacutem ela que estaacute na origem da separaccedilatildeo entre as disciplinas naturais e morais e da ideia de que as ciecircncias naturais possuem um meacutetodo baseado na experiecircncia e na matemaacutetica divorciado da esfera dos valores Esta consideraccedilatildeo negativa da esfera valorativa na ciecircncia acarretou posteriormente ndash sobretudo atraveacutes dos trabalhos dos positivistas loacutegicos - em sua total desqualificaccedilatildeo jaacute que considerada despojada de significado cognitivo Por isso o meacutetodo da ciecircncia natural natildeo por acaso combina uma parte hipoteacutetica e uma experimental conjugando matemaacutetica experiecircncia observaccedilatildeo sistemaacutetica e intervenccedilatildeo controlada da natureza visto natildeo estar direcionado somente ao entendimento dos fenocircmenos naturais mas tambeacutem ao aumento do controle das condiccedilotildees naturais Cf MARICONDA P R O controle da natureza e as origens da dicotomia entre fato e valor Scientiaelig Studia Revista Latino-Americana de Filosofia e Histoacuteria da Ciecircncia Satildeo Paulo v 4 n 3 p 453-72 2006
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a vida em si mesma e natildeo a apreciaccedilatildeo meacutedica que faz do normal bioloacutegico um
conceito de valor e natildeo um conceito de realidade estatiacutesticardquo (NP 1990 p100)
Mas antes mesmo disso foi o desvio o negativo o anormal que despertou o
interesse teoacuterico pelo normal
ldquoAs normas soacute satildeo reconhecidas como tal nas infraccedilotildees As funccedilotildees soacute satildeo reveladas por suas falhas A vida soacute se eleva agrave consciecircncia e agrave ciecircncia de si mesma pela inadaptaccedilatildeo pelo fracasso e pela dorrdquo (NP 1990 p169)
Ou seja eacute somente por haver uma diferenccedila qualitativa entre os estados normal e
patoloacutegico por ter a doenccedila um valor vital negativo traduzido em mal-estar
consciente no vivente humano que a teacutecnica meacutedica se faz possiacutevel e necessaacuteria
para o desenvolvimento de um atividade cientiacutefica que tenha por objeto de estudo
a vida
Sendo assim Canguilhem atribui agrave teacutecnica meacutedica uma importacircncia proacutepria
natildeo condicionada pelo conhecimento cientiacutefico que ela consegue incorporar
conferindo a ela uma certa independecircncia em relaccedilatildeo agraves ciecircncias das quais ela se
utiliza (cf NP 1990 p189) Mas isso natildeo significa dizer que ele desconsidera a
importacircncia da atividade cientiacutefica para a praacutetica meacutedica Isto eacute ao negar a
existecircncia de uma ciecircncia bioloacutegica do normal ele natildeo quer afirmar a
impossibilidade de haver uma ciecircncia da vida O que ele propotildee eacute colocaacute-la em
relaccedilatildeo com a atividade normativa da vida e por conseguinte com a teacutecnica
meacutedica tornando-a agora uma ciecircncia das situaccedilotildees bioloacutegicas consideradas
normais
ldquoa atribuiccedilatildeo de um valor de lsquonormalrsquo agraves constantes ndash cujo conteuacutedo eacute determinado cientificamente pela fisiologia reflete a relaccedilatildeo da ciecircncia da vida com a atividade normativa da vida e no que se refere agrave ciecircncia da vida humana com as teacutecnicas bioloacutegicas de produccedilatildeo e de instauraccedilatildeo do normal mais especificamente com a medicinardquo (NP 1990 p188)
Atraveacutes de sua criacutetica ele tambeacutem natildeo quer negar a possibilidade de haver
uma patologia cientiacutefica metoacutedica armada de meacutetodos objetivos de observaccedilatildeo e
de anaacutelise O que ele quer mostrar precisamente eacute que o objeto de estudo do
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patologista ainda que possa ser estudado metoacutedica e objetivamente natildeo eacute
desprovido de subjetividade
ldquoPode-se praticar objetivamente isto eacute imparcialmente uma pesquisa cujo objeto natildeo pode ser concebido e construiacutedo sem referecircncia a uma qualificaccedilatildeo positiva ou negativa cujo objeto portanto natildeo eacute tanto um fato mas sobretudo um valorrdquo (NP 1990 p189)
Entatildeo o que ele critica na atividade cientiacutefica eacute o esquecimento da dimensatildeo
axioloacutegica original do normal e do patoloacutegico da diferenccedila qualitativa existente
entre esses estados a desconsideraccedilatildeo por parte da ciecircncia de que antes de uma
patologia objetiva metoacutedica cientiacutefica ou experimental existiu uma patologia
subjetiva que qualificou como patoloacutegico o fenocircmeno bioloacutegico no qual agora o
patologista se debruccedila A seu ver qualquer conceito empiacuterico de doenccedila sempre
conserva uma relaccedilatildeo com o conceito axioloacutegico de doenccedila porque natildeo eacute um
meacutetodo objetivo que qualifica como patoloacutegico determinado comportamento
orgacircnico mas o doente por intermeacutedio da cliacutenica que diz qual comportamento eacute
ou natildeo normal ldquoo conceito de normal natildeo eacute um conceito de existecircncia suscetiacutevel
em si mesmo de ser medido objetivamenterdquo (NP 1990 p164)
Destarte o recurso agrave medicina foi a saiacuteda encontrada por Canguilhem para
defender a precedecircncia da teacutecnica em relaccedilatildeo agrave ciecircncia dos valores em relaccedilatildeo
aos fatos do qualitativo em relaccedilatildeo ao quantitativo do subjetivo em relaccedilatildeo ao
objetivo e da experiecircncia vivida em relaccedilatildeo agrave experimentaccedilatildeo laboratorial Mas eacute
tambeacutem para fazer frente agrave ideologia de controle da natureza que orienta a ciecircncia
moderna que ele denuncia que a medicina ao se transformar numa ciecircncia das
doenccedilas adotando uma ideia de normalidade definida por meacutetodos cientiacutefico-
experimentais passou a ditar normas agrave vida ficando surda a seus apelos
Portanto eacute somente tendo em vista a criacutetica que faz aos fundamentos teoacutericos e
tambeacutem ideoloacutegicos da ciecircncia moderna que podemos compreender o pleno
sentido de sua contestaccedilatildeo agrave teoria da identidade real dos fenocircmenos normais e
patoloacutegicos eleita como objetivo do seu Ensaio de 43 e brevemente retomada na
coletacircnea La connaissance de la vie no artigo ldquoLe normal et le pathologiquerdquo
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Em La connaissance de la vie Canguilhem identifica no seacuteculo XVIII a
origem histoacuterica da tese segundo a qual o estado patoloacutegico eacute homogecircneo ao
estado normal do qual constitui uma variaccedilatildeo quantitativa para mais ou para
menos A seu ver esta ideia remonta ao pensamento do meacutedico escocecircs Brown
ateacute Glisson e aos primeiros esboccedilos da teoria da irritabilidade popularizada por
Broussais e Comte antes mesmo de ganhar prestiacutegio atraveacutes de Claude Bernard
(cf CV 1985 p 165-166) Antes disso no Ensaio ele afirma natildeo ter sido por
acaso que ele decidiu procurar na obra de Comte e de Claude Bernard a
significaccedilatildeo essencial da teoria que escolheu criticar Ele os elegeu como base
para sua criacutetica devido agrave influecircncia desses autores na filosofia na ciecircncia e
mesmo na literatura do seacuteculo XIX
ldquoDecidimos centrar nossa exposiccedilatildeo em torno dos nomes de Comte e Claude Bernard porque estes autores desempenharam semivoluntariamente o papel de lsquoporta-bandeirarsquo esta eacute a razatildeo da preferecircncia que lhes foi dada em detrimento de tantos outros igualmente citados e que poderiam ser melhor explicados sob outras perspectivasrdquo (NP 1990 p26)
Partindo da recomendaccedilatildeo de Brown de que natildeo devemos confiar nas
forccedilas da natureza (cf I 1981 p49) ideologicamente tal teoria ao defender a
ideia de que o patoloacutegico seria apenas uma modificaccedilatildeo quantitativa do estado
normal fazendo da patologia uma mera extensatildeo da fisiologia carrega a ideia de
que eacute possiacutevel controlar a natureza dominaacute-la atraveacutes da atividade cientiacutefica Por
conseguinte se a medicina como ciecircncia das doenccedilas adveacutem do desejo humano
de dominar a vida para controlar o mal localizando-o para melhor agir sobre ele
como arte enraizada na vida ela expressa a confianccedila do homem na natureza em
suas tentativas de cura
Desta forma eacute em duas relaccedilotildees opostas em relaccedilatildeo agrave natureza de
domiacutenio e respeito que Canguilhem encontra a origem da oposiccedilatildeo entre uma
medicina que como ciecircncia das doenccedilas eacute orientada por uma patologia cientiacutefica
ligada agrave fisiologia que dita normas agrave vida e outra que como teacutecnica ou arte
considera sua normatividade e faz uso do resultado de todas as ciecircncias a serviccedilo
de suas normas Assim o que pretendemos nesse capiacutetulo provar eacute que se ele se
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empenha em colocar em xeque tal teoria da qual Comte e Claude Bernard
serviram de ldquoporta-bandeirardquo eacute porque ela se tornou a base da ideia de medicina
como ciecircncia das doenccedilas concepccedilatildeo diametralmente oposta agravequela que ele quer
defender uma medicina como teacutecnica ou arte da cura assentada no respeito agraves
normas da vida
Tendo em vista que eacute o pathos que condiciona o logos para fundar uma
medicina como arte da cura teriacuteamos que considerar que em primeiro lugar
estariam os valores positivo e negativo da vida em seguida viria o ponto de vista
doente que traduz estes valores em normal e patoloacutegico para daiacute surgir a teacutecnica
meacutedica e por fim a ciecircncia da vida Diferentemente disso Canguilhem percebe
nos fundamentos da medicina como ciecircncia das doenccedilas que eacute a ciecircncia da vida
que define o que patoloacutegico a teacutecnica meacutedica incorpora este saber e o repassa ao
doente em forma de diagnoacutestico ignorando que eacute ele quem traduz os valores
positivo e negativo da vida em sauacutede e doenccedila Assim eacute para inverter a loacutegica que
faz o patoloacutegico derivar da ciecircncia fisioloacutegica e natildeo da experiecircncia negativa vivida
pelo doente que ele procura colocar em xeque a teoria segundo a qual a patologia
seria apenas uma fisiologia mais extensa e mais ampla
Em O normal e o patoloacutegico ao tratar do momento histoacuterico-cultural de
emergecircncia da tese segundo a qual o patoloacutegico seria apenas uma variaccedilatildeo
quantitativa do estado normal previamente determinado pela fisiologia
Canguilhem explica que no seacuteculo XIX era a fiacutesico-quiacutemica fisioloacutegica que
respondia agraves exigecircncias do conhecimento cientiacutefico porque apenas ela
comportava leis quantitativas verificadas pela experimentaccedilatildeo enquanto a
patologia ainda estava sobrecarregada de conceitos preacute-cientiacuteficos Por isso os
meacutedicos do seacuteculo XIX ansiosos por uma patologia racional e eficaz viram na
fisiologia um modelo a ser adotado
ldquoDentre a fisiologia e patologia da eacutepoca apenas a primeira comportava leis e postulava o determinismo de seu objeto mas isso natildeo eacute motivo suficiente para concluirmos que as leis e o determinismo dos fatos patoloacutegicos sejam as proacuteprias leis
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e o proacuteprio determinismo dos fatos fisioloacutegicos apesar da legiacutetima aspiraccedilatildeo que temos de uma patologia racionalrdquo (NP 1990 p82)
Entendendo que a ambiccedilatildeo de tornar a patologia e consequentemente a
terapecircutica integralmente cientiacuteficas procedentes de uma fisiologia previamente
instituiacuteda soacute teria sentido se fosse possiacutevel uma definiccedilatildeo puramente objetiva do
normal como de um fato dada atraveacutes de meacutetodos cientiacutefico-experimentais e
uma traduccedilatildeo da diferenccedila entre os estados normal e patoloacutegico em termos
quantitativos - jaacute que apenas a quantidade pode dar conta da homogeneidade e
da variaccedilatildeo ndash Canguilhem procura a partir de um conjunto de estrateacutegias e
filiaccedilotildees teoacutericas evidenciar que o normal dificilmente pode ser apreendido por
criteacuterios matemaacuteticos e a fisiologia ao tentar mensuraacute-lo e a partir dele definir o
patoloacutegico no limite acabaria por perder de vista a proacutepria doenccedila fazendo dela
um conceito teoacuterico abstrato e esvaziado de sentido
ldquoa convicccedilatildeo de poder restaurar cientificamente o normal eacute tal que acaba por anular o patoloacutegico A doenccedila deixa de ser objeto de anguacutestia para o homem satildeo e torna-se objeto de estudo para o teoacuterico da sauacutederdquo (NP 1990 p22-23)
Uma das estrateacutegias utilizadas por Canguilhem para invalidar a possibilidade
da traduccedilatildeo das diferenccedilas entre os estados normal e patoloacutegico em termos
quantitativos eacute mostrar que se a intenccedilatildeo do cientista ao alegar a continuidade
meacutetrica entre os estados normal e patoloacutegico eacute anular a diferenccedila qualitativa
existente entre eles ela fracassa pois da continuidade natildeo eacute possiacutevel deduzir a
homogeneidade e mesmo se isso fosse possiacutevel uma homogeneizaccedilatildeo
acarretaria a perda do proacuteprio objeto de estudo cientiacutefico De fato para
Canguilhem e tese de que a sauacutede e a doenccedila seriam homogecircneas variando
apenas em grau levada agraves uacuteltimas consequecircncias acabaria por desvanecer o
conceito mesmo de doenccedila pois no momento em que a suposta continuidade
teoacuterica e meacutetrica identificada entre os estados fosse transformada em
homogeneidade o contraste qualitativo entre eles estaria supostamente anulado
Natildeo obstante ele esclarece que a substituiccedilatildeo do contraste qualitativo entre
os estados normal e patoloacutegico por uma progressatildeo quantitativa natildeo anula a
89
oposiccedilatildeo entre eles Isso porque a afirmaccedilatildeo da continuidade entre os estados
normal e patoloacutegico natildeo implica reduzi-los um ao outro subentendendo sua
homogeneidade ou identidade mas apenas apresentaacute-los como extremos de um
conjunto de intermediaacuterios
ldquoquando se converte essa continuidade em homogeneidade esquecemos que a diferenccedila continua a saltar aos olhos nos extremos sem os quais os intermediaacuterios natildeo teriam que desempenhar seu papel mediadorrdquo (NP 1990 p85)
A seu ver a existecircncia de estados que operam uma mediaccedilatildeo entre os extremos
denuncia que natildeo haacute como anular completamente o valor qualitativo dos termos
normal e patoloacutegico apesar de alguns cientistas alegando a continuidade entre a
sauacutede e a doenccedila deduzirem daiacute tambeacutem sua homogeneidade ldquoMas isso tambeacutem
poderia significar que natildeo existem doentes o que natildeo eacute menos absurdordquo (NP
1990 p53)
Embora Canguilhem compreenda o anseio da medicina de se orientar por
uma patologia objetiva ele natildeo deixa de ironizar o fato de que uma ciecircncia que faz
desaparecer seu objeto natildeo pode ser objetiva (cf NP 1990 p64) Ou seja para
ele eacute a proposta mesma de derivar a patologia de uma ciecircncia do normal o que
leva paradoxalmente ao desaparecimento de seu objeto fazendo com que seja
absolutamente ilegiacutetimo sustentar a tese de que o estado patoloacutegico eacute real e
simplesmente a variaccedilatildeo para mais ou para menos do estado fisioloacutegico Ateacute
porque os termos mais e menos que entram na definiccedilatildeo do patoloacutegico natildeo tecircm
uma significaccedilatildeo puramente quantitativa pois eacute sempre em relaccedilatildeo a uma norma
considerada vaacutelida e desejaacutevel que se pode falar em excesso ou falta Isso porque
o estado fisioloacutegico para o ser vivo eacute uma qualidade e um valor pois se ele fosse
apenas um simples resumo de quantidades sem valor bioloacutegico simples fato ou
sistema de fatos fiacutesicos e quiacutemicos ele natildeo poderia ser chamado nem de
fisioloacutegico nem de satildeo nem mesmo de normal
ldquoNormal e patoloacutegico natildeo tecircm sentido ao niacutevel em que o objeto bioloacutegico eacute decomposto em equiliacutebrios coloidais e soluccedilotildees ionizadas O fisiologista estudando um estado que ele chama de fisioloacutegico o estaacute qualificando por esse fato mesmo
90
inconscientemente ele considera esse estado como qualificado positivamente pelo ser vivo e para o ser vivo Ora natildeo eacute esse estado fisioloacutegico como tal que se prolonga ndash idecircntico a si mesmo ndash ateacute um outro estado capaz de adotar entatildeo inexplicavelmente a qualidade de moacuterbidordquo (NP 1990 p84)
Destarte apesar de negada a oposiccedilatildeo entre o normal e o patoloacutegico se
manteacutem no fundo da consciecircncia de quem decidiu adotar o ponto de vista teoacuterico
e meacutetrico ldquoa quantidade eacute a qualidade negada mas natildeo a qualidade suprimidardquo
(NP 1990 p83) Haacute uma heterogeneidade entre o normal e o patoloacutegico
malgrado os esforccedilos teoacutericos para provar sua homogeneizaccedilatildeo A doenccedila difere
da sauacutede como uma qualidade difere de outra o que faz com que a diferenccedila de
valor que o ser vivo estabelece entre sua vida normal e sua vida patoloacutegica natildeo
seja apenas uma aparecircncia ilusoacuteria que o cientista deva negar (cf NP 1990
p53) Assim ainda que a ciecircncia dos contraacuterios seja una como afirma Aristoacuteteles
natildeo podemos concluir daiacute que a vida seja idecircntica a si mesma na sauacutede e na
doenccedila simplificando de modo temeraacuterio a ciecircncia da vida
rdquoEacute urgente mais ainda que legiacutetimo que a ciecircncia da vida tome como objetos de mesma importacircncia teoacuterica e capazes de se explicar mutuamente os fenocircmenos ditos normais e os fenocircmenos ditos patoloacutegicos a fim de se tornar adequada agrave totalidade das vicissitudes da vida e agrave variedade de suas manifestaccedilotildeesrdquo (NP 1990 p63)
Natildeo havendo em sua leitura a contestaccedilatildeo da legitimidade da tarefa de
procurar explicaccedilotildees relativas aos fenocircmenos normais e patoloacutegicos Canguilhem
natildeo intenciona solapar a existecircncia de uma ciecircncia da vida mas sim assentaacute-la
sobre outras bases que contemplem as variaccedilotildees normativas da vida e suas
manifestaccedilotildees opostas de valor Eacute por este prisma que ele defende que o papel da
fisiologia eacute menos tentar definir objetivamente o estado normal mas determinar
exatamente o conteuacutedo das normas dentro das quais a vida conseguiu se
estabilizar admitindo a eventual correccedilatildeo destas normas de acordo com uma
variaccedilatildeo do meio no qual elas se desenrolam ldquoParece-nos que a fisiologia tem
mais a fazer que definir objetivamente o normal deve reconhecer a normatividade
original da vidardquo (NP 1990 p142) Portanto considerando o caraacuteter flutuante dos
fenocircmenos vitais a fisiologia entatildeo pode ser melhor definida como a ciecircncia dos
91
ritmos estabilizados da vida e natildeo como a ciecircncia das funccedilotildees normais da vida da
qual uma patologia objetiva seria derivada
ldquoOra se parece impossiacutevel manter a definiccedilatildeo da fisiologia como ciecircncia do normal parece difiacutecil admitir que pudesse haver uma ciecircncia da doenccedila e que possa haver uma patologia puramente cientiacuteficardquo (NP 1990 p173)
Outra estrateacutegia utilizada por Canguilhem para criticar validade da tese de
que o patoloacutegico seria apenas uma modificaccedilatildeo quantitativa do estado normal eacute
operar seu desvelamento ideoloacutegico evidenciando a relaccedilatildeo mutuamente
reforccediladora73 presente na ciecircncia moderna entre experimentaccedilatildeo quantificaccedilatildeo e
domiacutenio Para tanto ele nota que desde Bacon investe-se na ideia de que soacute se
pode domar a natureza fazendo com que ela nos obedeccedila Por este ponto de
vista dominar a natureza eacute tambeacutem conhecer as relaccedilotildees do estado normal com o
patoloacutegico atraveacutes do uso de meacutetodos experimentais e da matematizaccedilatildeo de seus
resultados a exemplo das ciecircncias fiacutesico-quiacutemicas Por isso ele acredita que a
ideia de heterogeneidade entre os estados melhor se alia agrave concepccedilatildeo meacutedica
naturista que espera pouco da intervenccedilatildeo humana para a restauraccedilatildeo do normal
pois segundo ela eacute a natureza e natildeo o homem que encontra os meios para a
cura enquanto que numa concepccedilatildeo cientiacutefica que admite e espera que o homem
deva forccedilar a natureza e dobraacute-la a seus desejos normativos a diferenccedila
qualitativa que separa o normal e o patoloacutegico dificilmente pode ser sustentada (cf
NP 1990 p21)
73
Tomamos aqui de Lacey (1998) a expressatildeo ldquorelaccedilatildeo mutuamente reforccediladorardquo para quem na ciecircncia moderna existe como que uma afinidade eletiva entre as estrateacutegias materialistas e a perspectiva moderna do controle da natureza inaugurada pelo pensamento de Francis Bacon Com efeito o teoacuterico da epistemologia engajada ao estudar a relaccedilatildeo entre entendimento cientiacutefico e controle da natureza nota que as estrateacutegias materialistas bastante conhecidas desde Galileu e Descartes aumentam a capacidade de controle da natureza respondendo assim aos interesses da utilidade baconiana Num sentido importante eacute caracteriacutestica do homem controlar a natureza mas esta postura deve ser valorizada apenas na medida em que contribui para o ideal de florescimento humano pois o controle contrasta com posturas de reciprocidade mutualidade e respeito em relaccedilatildeo agrave natureza representado por noccedilotildees como harmonizaccedilatildeo adaptaccedilatildeo participaccedilatildeo e unidade dialeacutetica ldquoexplorar as possibilidades de controle aleacutem desses limites natildeo possui nenhuma inteligibilidade moral (ou racional)rdquo (LACEY 1998 p120) Cf LACEY H Valores e atividade cientiacutefica Satildeo Paulo Discurso Editorial 1998
92
Nesta mesma direccedilatildeo argumentativa na coletacircnea La connaissance de la
vie no artigo ldquoAspects du vitalismerdquo Canguilhem opotildee duas posturas do homem
em relaccedilatildeo agrave natureza associando-as ao vitalismo e ao mecanicismo Segundo
ele o homem pode se sentir filho da natureza tendo por ela um sentimento de
uniatildeo e pertencimento ou sentir em face dela como que diante de um objeto
estranho Aquele que tem pela natureza um sentimento de filiaccedilatildeo e simpatia natildeo
considerando os fenocircmenos naturais como estrangeiros eacute fundamentalmente um
vitalista Desta forma em contraposiccedilatildeo agrave postura do mecanicista que se sente
separado da vida e se potildee diante dela de posse de um meacutetodo estrito e
imperioso eacute a confianccedila do vitalista na espontaneidade da vida o que faz com que
ele tenha horror a decompocirc-la em mecanismos a reduzi-la a uma soma de partes
e a lutar contar ela como se fosse um obstaacuteculo Essa diferenccedila de posturas eacute o
que faz com que o vitalismo apareccedila menos como um meacutetodo e mais como uma
exigecircncia mais como uma moral do que como uma teoria (cf CV 1985 p87-88)
Eacute portanto por ter em vista que eacute o desejo de domiacutenio da vida pelo
conhecimento cientiacutefico74 que subjaz agrave ideia de reduccedilatildeo da qualidade agrave
quantidade implicada na identidade essencial do fisioloacutegico e do patoloacutegico que
Canguilhem se propotildee a fazer uma genealogia ideoloacutegica da tese segundo o qual
o patoloacutegico natildeo passaria de um aumento ou reduccedilatildeo do estado normal Com
efeito perscrutando as bases histoacutericas e ideoloacutegicas de tal ideia ele encontra
nela a convicccedilatildeo otimista e racionalista de que natildeo haacute realidade no mal expressa
na recusa de duas representaccedilotildees da doenccedila tanto a ontoloacutegica quanto a
dinamista75 bases do dualismo meacutedico76
74
Em La connaissance de la vie no artigo ldquoLa penseacutee et le vivantrdquo ao refletir sobre a relaccedilatildeo do pensamento com a vida Canguilhem afirma que o conhecimento eacute o que permite o descolamento do homem do mundo o afastamento necessaacuterio agrave interrogaccedilatildeo e agrave duacutevida diante dos obstaacuteculos surgidos Ele eacute portanto um meio de resoluccedilatildeo direta ou indireta das tensotildees do homem com o meio Mas para que ele possibilite ao homem um novo equiliacutebrio com o mundo uma nova forma e uma nova organizaccedilatildeo de sua vida a inteligecircncia deve reconhecer seus limites e a originalidade dos fenocircmenos da natureza de modo que jaacute que a vida natildeo se opotildee ao pensamento o conhecimento natildeo destrua a vida
75 Segundo Canguilhem de acordo com a histoacuteria da medicina moderna Thomas Sydenham
(1624-1689) acreditava que para ajudar o doente era preciso delimitar e determinar o seu mal Com o mesmo espiacuterito I Saint-Hilaire e Pinel elaboraram classificaccedilotildees nosoloacutegicas na tentativa de impor um certo ordenamento agraves doenccedilas como jaacute faziam os naturalistas com as espeacutecies
93
ldquoa recusa de uma concepccedilatildeo ontoloacutegica da doenccedila corolaacuterio negativo da afirmaccedilatildeo de identidade quantitativa entre o normal e o patoloacutegico eacute em primeiro lugar talvez a recusa mais profunda de admitir a existecircncia do malrdquo (NP 1990 p78)
Segundo Canguilhem a histoacuteria do pensamento meacutedico oscila entre duas
representaccedilotildees da doenccedila A primeira delas remontada agraves antigas concepccedilotildees de
doenccedila como sortileacutegio encantamento ou possessatildeo demoniacuteaca adviria de uma
teoria ontoloacutegica do mal na qual a doenccedila entraria e sairia do homem como que
por uma porta A segunda explicitada nos escritos e praacuteticas hipocraacuteticas natildeo
apresenta uma concepccedilatildeo ontoloacutegica e localizante da doenccedila mas sim dinacircmica e
totalizante ldquoNesse caso a doenccedila natildeo estaacute em alguma parte do homem Estaacute em
todo homem e eacute toda delerdquo (NP 1990 p20) Nela a natureza (physis) tanto no
homem como fora dele eacute harmonia e equiliacutebrio e a doenccedila natildeo sendo somente
desequiliacutebrio ou desarmonia dos humores eacute sobretudo o esforccedilo que a natureza
exerce no homem para obter um novo equiliacutebrio ldquoa doenccedila eacute uma reaccedilatildeo
generalizada com intenccedilatildeo de cura O organismo fabrica uma doenccedila para curar a
si proacutepriordquo (NP 1990 p21)
vegetais e animais Tais classificaccedilotildees nosograacuteficas acabaram por encontrar substrato na anatomia patoloacutegica de Morgagni que permitiu a associaccedilatildeo entre as lesotildees definidas nos oacutergatildeos e um grupo de sintomas estaacuteveis Como com Harvey e Haller a anatomia havia sido ldquoanimadardquo para tornar-se fisiologia a patologia veio naturalmente prolongaacute-la Semanticamente diz Canguilhem foi a influecircncia desta teoria que fez com que o patoloacutegico passasse a ser definido a partir do normal natildeo tanto como a ou dis mas hiper ou hipo (cf NP 1990 p 19-23) A seu ver uma parte do sucesso que a teoria microbiana das doenccedilas contagiosas de Pasteur deve ao fato dela guardar ainda uma representaccedilatildeo ontoloacutegica do mal Com efeito na nosologia atual satildeo as doenccedilas de carecircncia e as infecciosas ou parasitaacuterias que expressam a representaccedilatildeo ontoloacutegica da doenccedila enquanto as perturbaccedilotildees endoacutecrinas e as doenccedilas marcadas pelo prefixo dis satildeo as que reafirmam a teoria dinamista ou funcional
76 Canguilhem esclarece que apesar dos esforccedilos dos iatroquimistas e dos iatromecanicistas a
medicina do seacuteculo XVIII tinha permanecido por influecircncia dos animistas e dos vitalistas uma medicina dualista um maniqueiacutesmo meacutedico (cf NP 1990 p77) Eacute em contraposiccedilatildeo a este maniqueiacutesmo que as demonstraccedilotildees criacuteticas de Claude Bernard se dirigiam a tese que admitia a diferenccedila qualitativa nos mecanismos e nos produtos das funccedilotildees vitais no estado patoloacutegico e no estado normal Considerando que a sauacutede e a doenccedila natildeo satildeo dois modos de ser que diferem essencialmente ele considera ser uma ldquovelharia meacutedicardquo a ideia de que sauacutede e doenccedila satildeo princiacutepios distintos entidades que disputam o organismo vivo e dele fazem o teatro de suas lutas A seu ver a ideia de luta entre dois agentes opostos jaacute estaacute ultrapassada havendo portanto a necessidade de reconhecer em tudo a continuidade dos fenocircmenos sua gradaccedilatildeo insensiacutevel e sua harmonia (Cf NP 1990 p48-9)
94
Na perspectiva canguilhemiana a formulaccedilatildeo da teoria segundo a qual os
fenocircmenos patoloacutegicos nos organismos vivos nada mais satildeo do que variaccedilotildees
para mais ou para menos dos fenocircmenos fisioloacutegicos correspondentes apesar de
negaacute-la tem sua origem na primeira representaccedilatildeo do patoloacutegico por guardar
dela o caraacuteter localizante da doenccedila Ademais ele vecirc nesta tese a exigecircncia de
uma eacutepoca que acreditava na onipotecircncia de uma teacutecnica baseada na ciecircncia
ldquoUma arte de viver ndash e a medicina o eacute no sentido pleno da palavra - implica numa
ciecircncia da vidardquo (NP 1990 p63) Ou seja ele encontra nela tambeacutem a convicccedilatildeo
humanista de que a accedilatildeo do homem sobre o meio e sobre ele mesmo deve ser
apenas a aplicaccedilatildeo de uma ciecircncia previamente instituiacuteda atrelada agrave ideia
determinista de que a atividade cientiacutefica deve se identificar agrave descoberta das leis
dos fenocircmenos77
Em vista disso ele critica Claude Bernard por ter transposto em sua
Introduction agrave leacutetude de la meacutedecine expeacuterimentale (1865) esta ideia agrave teacutecnica
meacutedica defendendo que a accedilatildeo eficaz se confunde com a ciecircncia que a ciecircncia
se confunde com a descoberta das leis dos fenocircmenos e que a medicina deve se
ancorar numa ciecircncia da vida ldquoClaude Bernard considera a medicina como a
ciecircncia das doenccedilas e a fisiologia como a ciecircncia da vida Nas ciecircncias eacute a teoria
que ilumina e domina a praacuteticardquo (NP 1990 p45) Tal concepccedilatildeo faz com que a
medicina seja integralmente identificada agrave aplicaccedilatildeo de uma ciecircncia fisioloacutegica
que teria por tarefa descortinar as leis que presidem os fenocircmenos vitais normais
dos quais os fenocircmenos patoloacutegicos seriam apenas uma variaccedilatildeo quantitativa
Igualmente Canguilhem coloca em questatildeo a maacutexima positivista de que
para agir eacute preciso primeiramente saber ideia que coloca a terapecircutica
77
Canguilhem encontra em Laplace a origem do determinismo de Claude Bernard Laplace foi colaborador de Lovoisier nas pesquisas sobre a respiraccedilatildeo e o calor animal primeiro ecircxito espetacular nas investigaccedilotildees sobre as leis dos fenocircmenos bioloacutegicos segundo os meacutetodos de experimentaccedilatildeo e de medidas usados em fiacutesica e quiacutemica Desses estudos Laplace conservou o grande interesse pela fisiologia e apesar de natildeo utilizar o termo determinismo ele eacute um dos pais espirituais da doutrina que este termo designa Adotando um determinismo fechado para o qual natildeo eacute possiacutevel realizar correccedilotildees das foacutermulas de leis e dos conceitos que a elas se ligam para ele ldquoo determinismo natildeo eacute uma exigecircncia de meacutetodo um postulado normativo da pesquisa bastante flexiacutevel para natildeo prejulgar nada sobre a forma dos resultados aos quais vai conduzirrdquo (cf NP 1990 p82) Ele eacute a proacutepria realidade acabada moldada ne varietur nos quadros da mecacircnica de Newton
95
integralmente sob o jugo da atividade cientiacutefica Natildeo obstante ele diz natildeo
desqualificar o valor da filosofia das luzes e do positivismo para a medicina
acreditando que uma terapecircutica positiva ou cientiacutefica eacute superior a uma
terapecircutica maacutegica ou miacutestica jaacute que a ciecircncia natildeo confunde a doenccedila com algo
pecaminoso ou demoniacuteaco ldquoNatildeo se trata absolutamente de dispensar os meacutedicos
de estudar a fisiologia e a farmacodinacircmica Eacute muito importante natildeo confundir a
doenccedila com o pecado nem com o democircniordquo (NP 1990 p78) Mas apesar de
concordar com a visatildeo cientiacutefica de que natildeo haacute realidade no mal como entidade
demoniacuteaca ele acredita que este conceito natildeo eacute desprovido de sentido jaacute que
existem valores negativos entre os valores vitais o que faz do patoloacutegico um
estado normativa e qualitativamente diferente do estado normal Apesar disso a
doenccedila ainda eacute vista pela ciecircncia como um fenocircmeno que nada cria em termos
normativos ldquoeacute por natildeo admitir na doenccedila nenhuma norma bioloacutegica proacutepria que
dela nada se espera para as ciecircncias das normas da vidardquo (NP 1990 p171)
Ora Canguilhem natildeo nega agrave ciecircncia o seu papel de produtora de
conhecimentos verdadeiros nem mesmo desconsidera os benefiacutecios dos
conhecimentos obtidos em laboratoacuterio para as praacuteticas meacutedicas78 O que ele
defende fundamentalmente eacute que a renovaccedilatildeo do progresso teoacuterico pode se dar
atraveacutes da atividade natildeo teoacuterica pragmaacutetica e teacutecnica Sem a temeridade da
teacutecnica diz os problemas cientiacuteficos seriam poucos
ldquoEis o que haacute de verdade no empirismo filosofia da aventura intelectual menosprezada por um meacutetodo experimental que por reaccedilatildeo se sente um pouco tentado demais a se racionalizarrdquo (NP 1990 p 79)
Assim atraveacutes da valorizaccedilatildeo empirismo o que ele quer criticar eacute o que chama de
cientificismo exacerbado daqueles que acreditam que a teacutecnica deva ser sempre a
78
Quando Lecourt (2008) trata das relaccedilotildees entre a teacutecnica e a ciecircncia no pensamento canguilhemiano observa que Canguilhem natildeo nega que a teacutecnica em geral pode incorporar conhecimentos cientiacuteficos a fim de aumentar sua eficaacutecia Segundo ele a medicina pode tirar benefiacutecios dos conhecimentos fisioloacutegicos mas natildeo podemos esquecer que sem os problemas surgidos na cliacutenica a fisiologia perderia o essencial de sua razatildeo de ser e o motor do seu progresso (cf LECOURT 2008 p42) Cf LECOURT D Que sais-je Les envies du savoir 1
a ediccedilatildeo Paris
Presses Universitaires de France - PUF 2008
96
aplicaccedilatildeo de uma ciecircncia jaacute que dela nada pode se esperar para os progressos
do conhecimento79
Isso explica porque para fazer uma contraposiccedilatildeo aos pensamentos de
Comte e Claude Bernard Canguilhem faz uma breve exposiccedilatildeo das ideias de
Reneacute Leriche meacutedico que acredita que se deve partir da teacutecnica meacutedica e
ciruacutergica suscitada pelo estado patoloacutegico para somente entatildeo se chegar ao
conhecimento do fisioloacutegico pois este deve ser obtido por abstraccedilatildeo retrospectiva
da experiecircncia cliacutenica e terapecircutica Acreditando que o estudo do homem normal
natildeo eacute suficiente para nos dar informaccedilotildees completas sobre os fenocircmenos vitais
para Leriche eacute a anaacutelise do homem doente que deve servir para o conhecimento
do homem normal pois conseguimos descobrir nele deacuteficits que nem a mais sutil
experiecircncia em animais conseguiria realizar e graccedilas aos quais eacute possiacutevel chegar
agraves caracteriacutesticas da vida normal (cf NP 1990 p75) Portanto eacute por afirmar que
as doenccedilas nos mostram mais possibilidades fisioloacutegicas do que a ciecircncia do
normal nos faz crer que existam e defender que o papel da fisiologia eacute pesquisar e
solucionar os problemas levantados pelas doenccedilas dos doentes que Canguilhem
daacute importacircncia a sua teoria
ldquoMesmo correndo o risco de melindrar certas pessoas que acham que o intelecto soacute se realiza no intelectualismo queremos repetir mais uma vez que o valor da teoria de Leriche em si independente de qualquer criacutetica dirigida a algum detalhe de conteuacutedo eacute o fato de ser a teoria de uma teacutecnica uma teoria para qual a teacutecnica existe natildeo como uma serva doacutecil aplicando ordens intangiacuteveis mas como conselheira e incentivadora chamando a atenccedilatildeo para os problemas concretos e orientando a pesquisa na direccedilatildeo dos obstaacuteculos sem presumir antecipadamente nada acerca das soluccedilotildees teoacutericas que lhes seratildeo dadasrdquo (NP 1990 p76)
79
Ainda segundo Lecourt (2008) eacute contra o cientificismo radical do seacuteculo XIX que Canguilhem se coloca ao afirmar que a accedilatildeo eacute primeira em relaccedilatildeo ao conhecimento Contrapondo-se agraves maacuteximas de Comte de que eacute preciso saber para agir ou ainda que eacute preciso saber para prever e prever para poder que implicam numa relaccedilatildeo de aplicaccedilatildeo entre ciecircncia e teacutecnica ele acredita que elas satildeo mais enganadoras do que ceacutelebres Para ele eacute uma ilusatildeo tentar subordinar a teacutecnica agrave ciecircncia como se a primeira fosse a aplicaccedilatildeo da segunda apenas porque certas teacutecnicas em determinado momento podem ser melhoradas pela aplicaccedilatildeo de uma teoria Eacute a ciecircncia que precede da teacutecnica porque satildeo as resistecircncias encontradas na arte humana que incitam a pesquisa do conhecimento verdadeiro Assim para o comentador Canguilhem faz uma criacutetica profunda ao cientificismo afirmando que o problema da ciecircncia natildeo pode ser resolvido sobre o terreno da ciecircncia Inspirado em Nietzsche ele diz ser necessaacuterio considerar a ciecircncia sob a oacuteptica da arte e a arte sob a oacuteptica da vida (cf LECOURT 2008 p71) Op cit
97
De outro modo Comte e Claude Bernard apostando na ciecircncia para a
orientaccedilatildeo da atividade teacutecnica concordando com a tese da identidade dos
fenocircmenos normais e patoloacutegicos reduzem a teacutecnica meacutedica agrave mera aplicaccedilatildeo de
conhecimentos cientiacuteficos A diferenccedila existente entre eles eacute que Comte
intenciona determinar especulativamente as leis do normal com vistas agrave
construccedilatildeo de um sistema de poliacutetica positiva e em Claude Bernard a afirmaccedilatildeo
da tese tem por finalidade uma accedilatildeo racional sobre a doenccedila a partir de uma
terapecircutica natildeo-empirista Nele portanto eacute a recusa do empirismo que daacute sentido
agrave tentativa de precisar experimentalmente a identidade do normal e do patoloacutegico
numa interpretaccedilatildeo de caraacuteter quantitativo e numeacuterico Desse modo enquanto
Comte afirma a tese da identidade real do normal e do patoloacutegico de modo
puramente conceitual Claude Bernard a sustenta a partir de uma vida inteira de
experimentaccedilotildees bioloacutegicas inclusive com animais para a definiccedilatildeo do patoloacutegico
no homem de modo a dar agrave ciecircncia fisioloacutegica uma base para que ela pudesse
reger a atividade terapecircutica por intermeacutedio da patologia (cf NP 1990 p78)
Assim no Ensaio estrategicamente ao expor os pensamentos de Comte e
Claude Bernard para defender a independecircncia da teacutecnica em relaccedilatildeo agrave ciecircncia a
partir da consideraccedilatildeo da dimensatildeo axioloacutegica do normal e do patoloacutegico
Canguilhem natildeo quer mostrar apenas em que medida ambos resvalaram em
problemas ao recorrerem a noccedilotildees de caraacuteter qualitativo quando da defesa da
distinccedilatildeo quantitativa dos fenocircmenos normais e patoloacutegicos mas tambeacutem apontar
os limites das experimentaccedilotildees realizadas em laboratoacuterio e com animais para a
compreensatildeo da doenccedila no homem Isso porque acredita que o laboratoacuterio eacute
apenas um meio dentre outros nos quais o ser vivo molda seus modos de vida e
a doenccedila natildeo sendo um estado forccedilado experimentalmente eacute uma experiecircncia
vivida por um indiviacuteduo concreto num meio natildeo controlado no qual variaccedilotildees e
toda sorte de acontecimentos satildeo possiacuteveis
ldquoO meio de laboratoacuterio eacute para o animal ou para o homem um meio possiacutevel entre outros Eacute claro que o cientista tem razatildeo em ver nos seus aparelhos apenas as teorias que eles materializam nos produtos empregados apenas as reaccedilotildees que eles permitem e de postular a validade universal dessas teorias e dessas reaccedilotildees para o ser vivo poreacutem aparelhos e produtos satildeo objetos entre os quais ele se move como
98
num mundo insoacutelito Natildeo eacute possiacutevel que os modos de vida no laboratoacuterio natildeo conservem alguma especificidade em relaccedilatildeo com o local e com o momento da experiecircnciardquo (NP 1990 p117)
Destarte na primeira parte do Ensaio dedicada ao problema de se o
estado patoloacutegico seria apenas uma variaccedilatildeo quantitativa do estado normal
Canguilhem nota que apesar de suas experimentaccedilotildees bioloacutegicas estarem
apresentadas metodicamente na Introduction agrave leacutetude de la meacutedecine
expeacuterimentale (1865) Leccedilons sur le diabegravete et la glycogenegravese animale (1877) eacute o
texto em que Claude Bernard procura melhor demonstrar a teoria sobre a
identidade do normal e do patoloacutegico atraveacutes da exposiccedilatildeo dos mecanismos de
uma doenccedila em particular que na sua perspectiva consiste uacutenica e inteiramente no
distuacuterbio de uma funccedilatildeo normal Jaacute Comte afirma a identidade real dos fenocircmenos
patoloacutegicos e fisioloacutegicos correspondentes durante os trecircs estaacutegios de sua
evoluccedilatildeo intelectual80 embora a 40a Liccedilatildeo do Cours de philosophie positive
contenha o texto mais completo sobre o tema
Do ponto de vista comteano eacute de Broussais a ideia de que todas as
doenccedilas consistem basicamente no excesso ou na falta de excitaccedilatildeo dos diversos
tecidos abaixo ou acima do grau que constitui o estado normal81 o que faz com
que os fenocircmenos da doenccedila coincidam essencialmente com os fenocircmenos da
sauacutede dos quais soacute difeririam pela intensidade
80
Quando Canguilhem fala de trecircs estaacutegios de evoluccedilatildeo intelectual de Comte ele considera como primeiro periacuteodo o preparatoacuterio ao Cours de philosophie positive como segundo o periacuteodo propriamente dito de Filosofia Positiva e como uacuteltimo o do Systeacuteme de politique positive (cf NP 1990 p27)
81 Para Canguilhem Comte erroneamente atribui a Broussais o meacuterito que cabe verdadeiramente a
Bichat e a Pinel de ter concluiacutedo que todas as doenccedilas satildeo sintomas de perturbaccedilotildees nas funccedilotildees vitais decorrentes de lesotildees histoloacutegicas Com efeito a teoria de Broussais combina os ensinamentos do meacutedico escocecircs Brown e de Bichat Para Brown a doenccedila depende de variaccedilotildees de intensidade da incitaccedilatildeo propriedade peculiar que permite aos seres vivos serem afetados e reagirem Mas se Brown faz uma ldquomatematizaccedilatildeordquo dos fenocircmenos patoloacutegicos Bichat em Recherches sur la Vie et la Mort (1800) prefere opor o objeto e os meacutetodos da fisiologia ao objeto e meacutetodo da fiacutesica entendendo que encaixar agrave forccedila os fenocircmenos vitais no quadro riacutegido das relaccedilotildees meacutetricas significaria desnaturaacute-los Natildeo obstante a hostilidade de Bichat em relaccedilatildeo a qualquer intenccedilatildeo meacutetrica em biologia paradoxalmente alia-se agrave afirmaccedilatildeo de que no niacutevel nos tecidos as doenccedilas devem ser explicadas por variaccedilotildees de suas propriedades variaccedilotildees estas que temos que admitir serem quantitativas (cf NP 1990 p40)
99
ldquoSegundo o princiacutepio eminentemente filosoacutefico que serve doravante de base geral e direta agrave patologia positiva princiacutepio este que foi definitivamente estabelecido pelo gecircnio ousado e perseverante de nosso ilustre concidadatildeo Broussais o estado patoloacutegico em absoluto natildeo difere radicalmente do estado fisioloacutegico em relaccedilatildeo ao qual ele soacute poderia constituir sob um aspecto qualquer um simples prolongamento mais ou menos extenso dos limites de variaccedilotildees quer superiores quer inferiores peculiares a cada fenocircmeno do organismo normal se jamais poder produzir fenocircmenos realmente novos que natildeo tivessem de modo nenhum ateacute certo ponto seus anaacutelogos puramente fisioloacutegicosrdquo (NP 1990 p 31)
No capiacutetulo intitulado ldquoAugust Comte e o lsquoPrinciacutepio de Broussaisrsquordquo
Canguilhem diz que dentre as obras de Broussais Comte conhecia melhor o
trabalho De lrsquoirritation et la folie (1828) Nele Broussais identifica os termos
anormal patoloacutegico ou moacuterbido empregando-os indiferentemente e defende que
a distinccedilatildeo entre o normal ou fisioloacutegico e o anormal ou patoloacutegico eacute simplesmente
quantitativa explicada em termos de excesso ou falta Ainda afirma que tal
distinccedilatildeo tambeacutem deve ser vaacutelida para os fenocircmenos mentais assim como eacute para
os fenocircmenos orgacircnicos uma vez que admitia a teoria fisioloacutegica das faculdades
intelectuais Comte acredita que jamais se concebeu de maneira tatildeo direta e tatildeo
satisfatoacuteria a relaccedilatildeo fundamental entre patologia e fisiologia e por isso atribui ao
princiacutepio de Broussais um alcance universal na ordem dos fenocircmenos bioloacutegicos
psicoloacutegicos e socioloacutegicos inclusive no campo da poliacutetica
Destarte para Canguilhem eacute somente remontando agraves fontes longiacutenquas
das ideias de Comte atraveacutes da patologia de Broussais de Brown82 e de Bichat
82
Na Ideologia e racionalidade nas ciecircncias da vida na seccedilatildeo intitulada ldquoUma ideologia meacutedica exemplar o sistema de Brownrdquo Canguilhem estuda os motivos do sucesso alcanccedilado pela teoria meacutedica de John Brown (1735-1788) exposta nos Elementos de Medicina (1780) Para Cuvier destaca a principal razatildeo da aceitaccedilatildeo do brownismo na Itaacutelia e na Alemanha foi a distribuiccedilatildeo das doenccedilas e dos medicamentos em duas classes opostas conforme a accedilatildeo vital se encontrasse excitada ou diminuiacuteda o que reduzia a arte meacutedica a um pequeno nuacutemero de foacutermulas guias seguros para seu exerciacutecio Outros historiadores tambeacutem encontraram a explicaccedilatildeo para o sucesso da teoria de Brown na simplificaccedilatildeo que oferecia agrave praacutetica meacutedica agora reduzida a dois atos terapecircuticos inversos estimular e debilitar Outros explicaram sua larga aceitaccedilatildeo na Alemanha por ela ao apresentar o conflito entre estimulaccedilatildeo e desfalecimento dar respaldo meacutedico aos ldquosuspiros de enlanguescimentordquo dos romacircnticos Jaacute a Franccedila foi o paiacutes em que a doutrina de Brown teve menos sucesso entre os meacutedicos A recusa de sua teoria pelas escolas meacutedicas tanto a de Paris quanto a de Montpellier ocorreu porque sua concepccedilatildeo geral sobre os fenocircmenos da vida se contrapunha a de Bichat ldquoBrown eacute anti-Bichat por antecipaccedilatildeordquo (I 1981 p48) Enquanto Brown afirmava que a vida eacute um estado forccedilado e que os seres vivos tendem para a destruiccedilatildeo sucumbindo agraves potecircncias externas Bichat defendia que a vida eacute um conjunto de funccedilotildees que resiste agrave morte De acordo com Canguilhem na Franccedila Brown foi eclipsado por Broussais para quem ao contraacuterio do que pregava o brownismo a irritabilidade era um mal Mas
100
que compreendemos melhor o alcance e o limite de suas ideias Mas natildeo
devemos nos esquecer que as intenccedilotildees e os objetivos de Comte satildeo bastante
diferentes dos de seus predecessores Comte pretende com suas investigaccedilotildees
instituir cientificamente uma doutrina poliacutetica83 Afirmando de maneira geral que
as doenccedilas natildeo alteram essencialmente os processos vitais ele quer mostrar que
as crises poliacuteticas podem ser sanadas e a sociedade passada a turbulecircncia
retornaraacute a sua estrutura permanente e essencial tolerando o progresso dentro
dos limites de variaccedilatildeo da ordem natural definida pela estaacutetica social
Com efeito do mesmo modo que Broussais afirma que qualquer
modificaccedilatildeo artificial ou natural na ordem real de um fenocircmeno diz respeito
somente agrave alteraccedilatildeo na intensidade dos fenocircmenos a ele correspondentes e que
apesar das variaccedilotildees de grau os fenocircmenos conservam sempre a mesma
disposiccedilatildeo natildeo havendo mudanccedila de natureza propriamente dita Comte defendia
que uma perturbaccedilatildeo do organismo coletivo isto eacute as revoluccedilotildees natildeo alteram
essencialmente a natureza da sociedade sua tendecircncia agrave cessaccedilatildeo da
perturbaccedilatildeo e retorno da ordem ideia base de seu princiacutepio socioloacutegico
fundamental de que o progresso natildeo seria nada mais que o desenvolvimento da
ordem (cf NP 1990 p28)
Natildeo obstante Broussais ao tentar reduzir toda patogenia a um fenocircmeno
de aumento ou diminuiccedilatildeo procurando fazer uso de conceitos de valor
quantitativo ao falar em alteraccedilatildeo ou perturbaccedilatildeo orgacircnica acaba por resvalar em
conceitos qualitativos (cf NP 1990 p40) Comte na mesma esteira fracassou na
tentativa de traduzir a diferenccedila existente entre o normal e o patoloacutegico em termos
de quantidade Ao refletir sobre os limites da variaccedilatildeo do estado normal e do
apesar da discordacircncia Broussais conserva dele a ideia de que a natureza natildeo dispocircs para a vida e para a sauacutede potecircncias diferentes daquelas que presidem as doenccedilas e a morte Este princiacutepio de identidade dos fenocircmenos normais e patoloacutegicos admitido por Magendie Comte e Claude Bernard fundou uma ideologia meacutedica liberta de toda fidelidade ao hipocratismo Para Brown ao contraacuterio do que propunha Bichat eacute preciso estimular ou debilitar pois natildeo podemos ficar na inaccedilatildeo confiando nas forccedilas da natureza (Cf I 1981 p49)
83 Vale dizer que segundo Canguilhem Comte ao adotar a mesma concepccedilatildeo de patologia de
Broussais pretendia instituir uma teoria poliacutetica por isso a subordina a um sistema de poliacutetica positiva sendo que sua difusatildeo como concepccedilatildeo independente ocorreu atraveacutes de meacutedicos psicoacutelogos e literatos de inspiraccedilatildeo e tradiccedilatildeo positivista (cf NP 1990 p42)
101
patoloacutegico em sua compatibilidade com a existecircncia dos organismos Comte fala
em harmonia de influecircncias distintas tanto internas quanto internas conceito de
caraacuteter evidentemente qualitativo ldquoEsclarecido por este conceito de harmonia o
conceito de normal ou de fisioloacutegico eacute reduzido a um conceito qualitativo e
polivalente esteacutetico e moral mais ainda que cientiacuteficordquo (NP 1990 p33)
Jaacute Claude Bernard ao explicar o que seria o diabetes utiliza
indiferentemente as expressotildees variaccedilotildees quantitativas e diferenccedilas de grau
fazendo uso das ideias de continuidade e homogeneidade indistintamente como
se a primeira subentendesse a segunda (cf NP 1990 p53) Sendo assim se ele
se equivocou ao deduzir da continuidade a homogeneidade correndo o risco de
deixar a doenccedila escorregar-lhe por entre os dedos Comte ao recorrer a
Broussais acabou por tropeccedilar em conceitos notadamente qualitativos Isto eacute se
Comte recorre ao princiacutepio de Broussais com intenccedilatildeo de conhecer objetivamente
o estado normal do qual o patoloacutegico seria apenas a expressatildeo exacerbada ele
natildeo consegue excluir deste conceito seu caraacuteter normativo Isso porque ao tomar
uma certa concepccedilatildeo de normalidade como ideal de funcionamento orgacircnico ele
natildeo percebe que por traacutes de sua definiccedilatildeo objetiva do conceito de normal em sua
explicaccedilatildeo deste estado como um fato reside uma atribuiccedilatildeo preacutevia de valor
ldquoDefinir o normal por meio do que eacute de mais ou de menos eacute reconhecer o caraacuteter normativo do estado dito lsquonormalrsquo Este estado normal ou fisioloacutegico deixa de ser apenas uma disposiccedilatildeo detectaacutevel e explicaacutevel como um fato para ser a manifestaccedilatildeo do apego a algum valorrdquo (NP 1990 p36)
Igualmente Claude Bernard ao que parece natildeo conseguiu escapar da
mesma ambiguidade ao defender que eacute a exageraccedilatildeo a desproporccedilatildeo ou
desarmonia dos fenocircmenos normais o que constitui o estado doentio Sua ideia de
que toda ldquodoenccedila tem uma funccedilatildeo normal correspondente da qual ela eacute a
expressatildeo perturbada exagerada diminuiacuteda ou anuladardquo (NP 1990 p45) ao
manter o termo ldquoexageraccedilatildeordquo dos fenocircmenos normais para definir o estado
patoloacutegico ainda guarda um sentido claramente qualitativo Sendo assim apesar
de trazer para sustentar seu princiacutepio geral de patologia argumentos controlaacuteveis
102
protocolos de experiecircncia e principalmente meacutetodos de quantificaccedilatildeo dos
conceitos fisioloacutegicos haacute em suas teorias assim como nas de Broussais e Comte
uma convergecircncia de conceitos qualitativos e quantitativos na definiccedilatildeo dos
fenocircmenos patoloacutegicos
Desta forma para Canguilhem o problema da atribuiccedilatildeo de realidade
objetiva acessiacutevel ao conhecimento cientiacutefico quantitativo ao conceito de doenccedila
permanece em aberto Para ele o argumento de Claude Bernard de que a sauacutede
e a doenccedila natildeo satildeo dois modos de vida que diferem essencialmente havendo
entre estes estados apenas uma diferenccedila de grau - natildeo existindo assim um uacutenico
caso em que a doenccedila tenha feito surgir condiccedilotildees novas uma mudanccedila completa
da cena produtos novos e especiais - parece natildeo ter validade universal (cf NP
1990 p49)
Haacute um conjunto de doenccedilas que colocam em questatildeo este esquema
explicativo pois natildeo se enquadram no modelo hipohiper No caso da uacutelcera
gaacutestrica por exemplo o essencial da doenccedila natildeo consiste na hipercloridria mas
sim na autodigestatildeo do estocircmago fenocircmeno que difere profundamente do estado
normal De igual modo a hipertensatildeo natildeo pode ser considerada o simples
aumento da pressatildeo arterial fisioloacutegica como se ela natildeo modificasse
profundamente a estrutura e as funccedilotildees dos oacutergatildeos essenciais como o coraccedilatildeo e
o pulmatildeo Ateacute o argumento claacutessico de Claude Bernard de que o principal sintoma
do diabetes eacute o ultrapassamento do limiar de glicose normal na urina natildeo invalida
a tese de que a presenccedila de accediluacutecar na urina diabeacutetica a torna qualitativamente
diferente de uma urina normal pois ldquoo estado patoloacutegico identificado como seu
principal sintoma eacute uma qualidade nova em relaccedilatildeo ao estado fisioloacutegicordquo (NP
1990 p 55)
Mesmo a ideia de substituiccedilatildeo da ideia de sintoma por mecanismos de
funcionamento normais e patoloacutegicos como estrateacutegia para imprimir maior
objetividade agrave explicaccedilatildeo do estado doentio natildeo elimina a diferenccedila de qualidade
existente entre o comportamento de um mesmo oacutergatildeo em estado considerado
103
normal e em outro tomado por patoloacutegico84 Pela perspectiva canguilhemiana
considerar as funccedilotildees fisioloacutegicas como mecanismos os limiares como barragens
as regulaccedilotildees como vaacutelvulas de seguranccedila servofreios ou termostatos significaria
cair no que chama de ldquoarmadilhas e ciladasrdquo das concepccedilotildees iatromecanicistas
(cf NP 1990 p56) No caso do diabetes por exemplo ainda que considerado um
certo ldquocomportamento renalrdquo para a explicaccedilatildeo das variaccedilotildees do limiar normal de
glicose na urina o uso do termo comportamento normal jaacute introduz na explicaccedilatildeo
do fenocircmeno patoloacutegico uma noccedilatildeo que natildeo pode ser inteiramente transposta em
termos analiacuteticos e quantitativos
Tambeacutem as doenccedilas nervosas resistem agraves explicaccedilotildees baseadas nos
princiacutepios de Claude Bernard A exemplo disso Goldstein atraveacutes da observaccedilatildeo
cliacutenica de pacientes com ferimentos no ceacuterebro concluiu que natildeo se deve
absolutamente crer que as diversas atitudes de um doente com lesatildeo cerebral
representam apenas uma espeacutecie de resiacuteduo do comportamento normal aquilo
que sobreviveu agrave destruiccedilatildeo As atitudes que sobreviveram no doente jamais se
apresentam da mesma forma no homem normal nem mesmo nos estaacutegios
inferiores de sua ontogecircnese ou filogecircnese A doenccedila daacute ao comportamento do
doente formas peculiares que soacute podem ser bem compreendidas se levada em
conta a novidade instaurada pelo estado moacuterbido
ldquoPortanto eacute preciso comeccedilar por compreender que o fenocircmeno patoloacutegico revela uma estrutura individual modificada Eacute preciso ter sempre em mente a transformaccedilatildeo da personalidade do doente Caso contraacuterio arriscamo-nos a ignorar que o doente mesmo quando eacute capaz de reaccedilotildees normais semelhantes agraves que antes podia ter pode chegar a essas reaccedilotildees por caminhos completamente diferentes Essas reaccedilotildees aparentemente equivalentes agraves reaccedilotildees normais natildeo satildeo resiacuteduos do comportamento normal anterior natildeo satildeo o resultado de uma reduccedilatildeo ou diminuiccedilatildeo natildeo satildeo o aspecto normal da vida menos alguma coisa que foi destruiacuteda satildeo reaccedilotildees que jamais se apresentam no indiviacuteduo normal sob a mesma forma e nas mesmas condiccedilotildeesrdquo (NP 1990 p147)
84
Em realidade o que Canguilhem critica nas conclusotildees bernardianas natildeo eacute tanto o fato de serem errocircneas jaacute que de fato alguns sintomas satildeo o produto quantitativamente variado de mecanismos constantes no estado fisioloacutegico mas sua extrapolaccedilatildeo ilegiacutetima Sua teoria eacute vaacutelida somente em certos casos nos quais se restringe o fenocircmeno patoloacutegico a algum sintoma natildeo levando em conta o contexto cliacutenico ou quando se busca a causa dos efeitos sintomaacuteticos em mecanismos funcionais parciais desconsiderando que o comportamento de um oacutergatildeo natildeo pode ser abstraiacutedo do comportamento do organismo funcionando como um todo (cf NP 1990 p60-1)
104
Igualmente o princiacutepio bernardiano parece natildeo se aplicar em casos de
doenccedilas infecciosas sendo difiacutecil afirmar que o estado infeccioso natildeo traz
nenhuma descontinuidade na histoacuteria do ser vivo No caso das doenccedilas mentais
vale a mesma criacutetica Acompanhando psiquiatras como Blondel Lagache e
Minkowski Canguilhem natildeo acredita ser possiacutevel comparar os sintomas
patoloacutegicos com elementos da consciecircncia normal Com efeito Blondel em seu
livro La conscience morbide descreve casos de alienaccedilatildeo nos quais o meacutedico tem
a impressatildeo de lidar com uma estrutura de mentalidade diferente Tambeacutem para
Lagache a desorganizaccedilatildeo moacuterbida natildeo eacute o simeacutetrico inverso da organizaccedilatildeo
mental normal Haacute uma originalidade no patoloacutegico pois na consciecircncia patoloacutegica
podem existir formas que natildeo encontram equivalentes no estado normal Jaacute
Minkowski apresenta o fenocircmeno da alienaccedilatildeo sob o acircngulo do ldquoser de modo
diferenterdquo no sentido qualitativo da palavra acreditando que ela natildeo pode ser
reduzida a um fato de doenccedila determinado por referecircncia a uma imagem ou ideia
precisa do homem meacutedio ou normal (cf NP 1990 p89)85
Canguilhem de igual modo questiona a ideia de que as constantes
classificadas como normais designam caracteriacutesticas meacutedias e mais frequentes
nos casos observaacuteveis num sentido descritivo Para ele a tentativa de reduzir a
norma agrave meacutedia apresenta dificuldades que satildeo atualmente e provavelmente
insuperaacuteveis Norma e meacutedia satildeo conceitos diferentes e que eacute inuacutetil tentar reduzi-
los a uma unidade agraves custas da originalidade do primeiro (cf NP 1990 p142)
85
Eacute importante notar que Canguilhem ao fazer referecircncia agrave psicologia e agrave psiquiatria fenomenoloacutegica quer compreender de modo idecircntico a doenccedila somaacutetica e a psiacutequica Acreditando na contribuiccedilatildeo reciacuteproca entre a fisiopatologia e a psicopatologia no Ensaio diz que os meacutedicos e fisiologistas poderiam tirar proveito da retificaccedilatildeo e atualizaccedilatildeo dos conceitos de normal e de patoloacutegico realizadas pelos estudiosos das doenccedilas mentais (cf NP 1990 p90) Em La connaissance de la vie no artigo ldquoLe normal et le pathologiquerdquo fazendo novamente referecircncia agrave Lagache Minkowski e agora tambeacutem agrave Lacan ele novamente fala da diferenccedila qualitativa entre os estados normal e patoloacutegico e realiza um diaacutelogo entre a medicina das doenccedilas orgacircnicas e a das psiacutequicas mas agora para apresentar em que medida o estudo da anomalia somaacutetica pode contribuir para o entendimento da anomalia psiacutequica ldquoOra como nos pareceu reconhecer na sauacutede um poder normativo de colocar em questatildeo as normas fisioloacutegicas usuais atraveacutes da busca do debate do vivente e o meio ndash debate que implica a aceitaccedilatildeo normal do risco da doenccedila ndash de igual modo nos parece que a norma em mateacuteria de psiquismo humano eacute a reivindicaccedilatildeo e o uso da liberdade como poder de revisatildeo e de instituiccedilatildeo de normas reivindicaccedilatildeo que implica normalmente o risco da loucurardquo (CV 1995 p168)
105
No entanto o fisiologista encontra no conceito de meacutedia um equivalente objetivo e
cientificamente vaacutelido do conceito de normal natildeo compartilhando sabiamente com
Claude Bernard a correta aversatildeo herdada de Bichat por resultados de anaacutelise
de experiecircncias bioloacutegicas expressos em meacutedias cujos valores fariam
desaparecer o caraacuteter oscilatoacuterio e riacutetmico do fenocircmeno bioloacutegico fundamental
visto que nunca representariam um fato verdadeiro
ldquose procurarmos o verdadeiro nuacutemero das pulsaccedilotildees cardiacuteacas pela meacutedia das medidas tomadas durante vaacuterias vezes durante um mesmo dia num determinado indiviacuteduo lsquoteremos precisamente um nuacutemero falsorsquordquo (NP 1990 p118)
Por isso do ponto de vista bernardiano o normal seraacute muito melhor definido como
tipo ideal em condiccedilotildees experimentais determinadas do que como meacutedia
aritmeacutetica ou frequecircncia estatiacutestica
No entanto Canguilhem diante da impossibilidade de se fornecer o
equivalente integral do normal anatocircmico ou fisioloacutegico sob a forma de meacutedia
objetivamente calculada natildeo tenta resolver este problema como tentou fazer
Claude Bernard definindo o normal como tipo ideal em condiccedilotildees experimentais
Ou seja apesar de se filiar agrave criacutetica bernardiana agravequeles que reduzem o normal agrave
meacutedia ele discorda da possibilidade de sua determinaccedilatildeo por vias experimentais
Isso porque muitas satildeo as dificuldades enfrentadas pelo fisiologista no curso de
suas pesquisas ao tentar comparar as condiccedilotildees experimentais agraves condiccedilotildees
normais primeiro natildeo haacute como ter certeza quanto ao fato do indiviacuteduo dito
normal em situaccedilatildeo experimental ser idecircntico a outro da mesma espeacutecie em
situaccedilatildeo natildeo artificial segundo os meios artificiais de induccedilatildeo de uma doenccedila
podem provocar alteraccedilotildees fenomenologicamente diferentes das presentes em
estados patoloacutegicos natildeo artificialmente induzidos o que faz com que o fisiologista
nunca possa assegurar que o estado patoloacutegico forjado experimentalmente seja
idecircntico ao estado patoloacutegico espontaneamente instaurado e por fim haveria a
impossibilidade de realizar estudos comparativos entre indiviacuteduos de diferentes
espeacutecies acometidos pela mesma doenccedila jaacute que as comparaccedilotildees estabelecidas
entre estados patoloacutegicos de indiviacuteduos diferentes abrem uma grande margem de
106
incerteza ldquonatildeo se pode sem grandes preocupaccedilotildees tirar conclusotildees que se
apliquem ao homem diabeacutetico a partir do catildeo de Von Mering e Minkowski ou do
catildeo de Youngrdquo (NP 1990 p116)
Assim colocando em questatildeo a concepccedilatildeo comum de que os fisiologistas
devem ter por fenocircmenos normais aqueles cuja exploraccedilatildeo eacute possiacutevel graccedilas aos
instrumentos de laboratoacuterio ele contesta a ideia de que o aferimento e a
mensuraccedilatildeo laboratoriais satildeo suficientes para servir de norma agrave atividade
funcional do ser vivo fora do espaccedilo experimental
ldquoAs normas funcionais do ser vivo examinado no laboratoacuterio soacute adquirem sentido dentro das normas operacionais do cientista Neste sentido nenhum fisiologista contestaraacute que apenas fornece um conteuacutedo ao conceito de norma bioloacutegica mas que de modo algum elabora o que tal conceito tem de normativordquo (NP 1990 p114)
Isso ocorre porque o proacuteprio laboratoacuterio jaacute eacute um meio novo que impotildee ao indiviacuteduo
uma reaccedilatildeo normativa de ajustamento o que provoca uma alteraccedilatildeo em seu
modo de vida usual aleacutem de que a determinaccedilatildeo de constantes fisioloacutegicas
atraveacutes de meacutedias obtidas experimentalmente sempre corre o risco de apresentar
o homem normal como um homem mediacuteocre bem abaixo das possibilidades
fisioloacutegicas que os homens em condiccedilatildeo de influir sobre si mesmos e sobre o meio
satildeo capazes (cf NP 1990 p129)
Por outra via para demonstrar o que o conceito de norma tem de normativo
Canguilhem opta por fazer uma breve exposiccedilatildeo e um exame da ldquoteoria do
homem meacutediordquo de Quecirctelet e das criacuteticas a ela feitas por Halbawachs Mayer e
Laugier86 de modo a apresentar as dificuldades encontradas por ele ao tentar
definir a norma como meacutedia ou frequecircncia estatiacutestica Para se contrapor agrave
perspectiva metafiacutesica de Quetelecirct estrategicamente agora ele recorre a um
conjunto de estudos situados na interface das ciecircncias bioloacutegicas com as ciecircncias
humanas que procura relacionar as caracteriacutesticas fisioloacutegicas e patoloacutegicas do
homem com o meio geograacutefico e histoacuterico em que ele se encontra Almejando
86
Autores respectivamente das obras La theacuteorie de lrsquohomme moyen essai sur Quecirctelet et la statistique morale Lrsquoorganisme normal et la mesure du fonctionnement e Lrsquohomme normal
107
realizar uma inversatildeo loacutegica Canguilhem faz uso deste referencial para defender
que natildeo eacute norma que se submete agrave meacutedia mas eacute a meacutedia que traduz uma norma
bioloacutegica e socialmente aceita por um determinado grupo geograacutefica e
historicamente situado
Ao expor a teoria de Quecirctelet Canguilhem destaca que na obra
Anthropomeacutetrie ou mesure des diffeacuterentes facultes de lhomme (1870) ele estudou
sistematicamente as variaccedilotildees da estatura do homem estabelecendo para
determinados caracteres meacutedios em indiviacuteduos de uma populaccedilatildeo homogecircnea um
poliacutegono de frequecircncia expresso em uma ldquocurva em sinordquo denominada curva
binomial ou curva de Gauss Do ponto de vista graacutefico dentre o grande nuacutemero de
homens cuja estatura varia dentro de limites determinados aqueles que se
aproximam mais da estatura meacutedia satildeo os mais numerosos e aqueles que mais se
afastam satildeo em menor nuacutemero O tipo humano a partir do qual os demais satildeo
desvios tanto mais raros quanto maior for a distacircncia em relaccedilatildeo a ele
caracterizaria o homem meacutedio
Ademais distinguindo dois tipos de meacutedia a aritmeacutetica ou mediana e a
meacutedia verdadeira Quecirctelet ainda acreditava que a existecircncia desta uacuteltima seria
um sinal incontestaacutevel da existecircncia de uma regularidade na natureza
interpretada num sentido ontoloacutegico ldquoOra essa possibilidade de interpretar as
flutuaccedilotildees bioloacutegicas pelo caacutelculo de probabilidades parecia a Quecirctelet da mais
alta importacircncia metafiacutesicardquo (NP 1990 p123) Para ele o homem estaria sujeito
agraves leis divinas e as cumpriria com regularidade assim como os animais e as
plantas As variaccedilotildees ou flutuaccedilotildees encontradas em determinado caraacuteter seriam
consequecircncias da lei do acaso ou da lei das causas acidentais cujos efeitos
tenderiam a se anular por compensaccedilatildeo progressiva fazendo aparecer com mais
nitidez o tipo humano meacutedio
Segundo Canguilhem Halbwachs contesta a ideia de que a distribuiccedilatildeo da
altura humana em torno de uma meacutedia seja um fenocircmeno ao qual possa de
aplicar a lei do acaso pois se apenas ela vigorasse natildeo se poderia identificar
efeitos orgacircnicos constantes Ademais ele acredita que Quecirctelet natildeo tem razatildeo
108
ao considerar a estatura um fato puramente bioloacutegico pois eacute impossiacutevel
desconsiderar a influecircncia do meio geograacutefico e da histoacuteria em sua variaccedilatildeo jaacute
que na espeacutecie humana ela eacute um fenocircmeno inseparavelmente bioloacutegico e social A
estatura soacute seria um fato puramente bioloacutegico se fosse estudada num conjunto de
indiviacuteduos pertencentes a uma linhagem pura animal ou vegetal
ldquoEm resumo hereditariedade e tradiccedilatildeo haacutebito ou costume satildeo outras tantas formas de dependecircncia e de ligaccedilatildeo interindividual portanto outros tantos obstaacuteculos a uma utilizaccedilatildeo adequada do caacutelculo de probabilidadesrdquo (NP 1990 p125)
Tomando como exemplo a longevidade Halbwachs mostra sua estreita relaccedilatildeo
com as condiccedilotildees de trabalho e higiene a fadiga e as doenccedilas mais comuns em
determinado grupo social A seu ver o que se expressa no nuacutemero abstrato que eacute
a duraccedilatildeo meacutedia da vida humana natildeo eacute a duraccedilatildeo biologicamente normal mas a
duraccedilatildeo de uma vida socialmente normativa (cf NP 1990 p127)
Outro problema da teoria de Quecirctelet apontado por Canguilhem eacute que
mesmo que fosse possiacutevel encontrar uma meacutedia que caracterizasse o estado
normal o problema agora consistiria em saber dentro de que oscilaccedilotildees em torno
deste valor meacutedio puramente teoacuterico os indiviacuteduos ainda seriam considerados
normais De acordo com Mayer e Laugier os fenocircmenos biomeacutetricos admitem
uma margem de variaccedilatildeo de modo que natildeo eacute possiacutevel determinar em que medida
o desvio passaria a ser anormal Com efeito se o normal eacute o resultado de caacutelculo
de meacutedias ou se o modelo eacute o resultado de um produto de estatiacutestica e se eacute
precisamente o afastamento maior ou menor desta meacutedia o que constitui a
individualidade o problema eacute como saber em que ponto ocorre a passagem do
normal para o anormal
ldquoEstabelecer uma curva de Quecirctelet natildeo significa resolver o problema do normal em relaccedilatildeo a um determinado caraacuteter por exemplo em relaccedilatildeo agrave estatura Satildeo necessaacuterias hipoacuteteses diretrizes e convenccedilotildees praacuteticas que permitam decidir em que niacutevel das estaturas seja em direccedilatildeo agraves grandes seja em direccedilatildeo agraves pequenas ocorre a passagem do normal para o anormal O mesmo problema persiste se substituirmos um conjunto de meacutedias aritmeacuteticas por um esquema estatiacutestico a partir do qual determinado indiviacuteduo se afasta mais ou menos pois a estatiacutestica natildeo fornece nenhum meio para decidir se o desvio eacute normal ao anormalrdquo (NP 1990 p121)
109
Na leitura canguilhemiana se Quecirctelet errou ao atribuir agrave meacutedia de um
caraacuteter anatocircmico humano um valor de norma divina foi ao especificar a norma e
natildeo ao interpretar a meacutedia como signo de uma norma pois se uma norma
transparece atraveacutes de uma meacutedia natildeo eacute por haver uma regularidade imposta por
uma lei divina mas sim por haver normas e valores vitais privilegiados postos a
partir das relaccedilotildees que os indiviacuteduos estabelecem com seu meio Concordando
com Halbwachs para quem ldquoo homem eacute um fator geograacutefico e a geografia estaacute
profundamente impregnada de histoacuteria sob a forma de teacutecnicas coletivasrdquo (NP
1990 p125) Canguilhem acredita que as meacutedias anatomofisioloacutegicas estatildeo em
conformidade aos gecircneros e niacuteveis de vida agraves tomadas de posiccedilatildeo eacuteticas e
religiosas ou seja em consonacircncia agraves formas coletivas de vida embora natildeo
sejam completamente determinadas por ela
Assim pelo seu vieacutes um traccedilo humano natildeo seria normal por ser frequente
mas seria frequente por ser normal num determinado gecircnero de vida
ldquoNo entanto na nossa opiniatildeo se Quecirctelet se enganou ao atribuir agrave meacutedia de um caraacuteter anatocircmico humano um valor de norma divina ele errou apenas ao especificar a norma mas natildeo ao interpretar a meacutedia como signo de uma norma Se eacute verdade que o corpo humano eacute em certo sentido produto da atividade social natildeo eacute absurdo supor que a constacircncias de certos traccedilos revelados por uma meacutedia dependa da fidelidade consciente ou inconsciente a certas normas da vida Por conseguinte na espeacutecie humana a frequecircncia estatiacutestica natildeo traduz apenas uma normatividade vital mas tambeacutem uma normatividade socialrdquo (NP 1990 p125-126)
Aqui Canguilhem tambeacutem daacute destaque aos trabalhos do geoacutegrafo francecircs
Maximilien Sorre autor da obra Les fondements biologiques de la geogroacutegraphie
humaine por compartilhar com ele a mesma ideia concernente agrave variaccedilatildeo das
constantes fisioloacutegicas em conformidade ao meio Para Sorre as constantes
fisioloacutegicas numa determinada zona de povoamento natildeo traduzem a ineacutercia de um
determinismo mas um esforccedilo para manter uma estabilidade funcional ideal
naquele meio de modo que as constantes fisioloacutegicas natildeo satildeo constantes no
sentido absoluto do termo pois para cada funccedilatildeo ou funccedilotildees haacute uma margem de
110
variaccedilatildeo que entra em jogo de acordo com a capacidade de adaptaccedilatildeo funcional
de cada grupo a seu ambiente
ldquoEm conclusatildeo Sorre se obstina em mostrar que o homem considerado coletivamente estaacute aacute procura de seus lsquoideais funcionaisrsquo isto eacute dos valores de cada um dos elementos do ambiente para os quais uma funccedilatildeo determinada se realiza melhor () Eacute desnecessaacuterio dizer que nos agrada ver um geoacutegrafo apoiar coma seriedade dos resultados de suas anaacutelises a interpretaccedilatildeo das constantes bioloacutegicas por noacutes propostardquo (NP 1990 p135)
Mas eacute importante dizer que Canguilhem esclarece que sua tese de que as
constantes funcionais podem ser interpretadas como normas habituais de vida natildeo
deve nos levar a crer que as normas fisioloacutegicas sejam o resultado de haacutebitos
individuais e momentacircneos
ldquoAfirmar com a devida reserva que o homem tem caracteriacutesticas fiacutesicas em relaccedilatildeo com sua atividade natildeo significa deixar qualquer pessoa acreditar que poderaacute alterar sua glicemia ou seu metabolismo basal pelo meacutetodo Coueacute ou mesmo pela mudanccedila de ambiente Natildeo se muda em alguns dias aquilo que a espeacutecie elabora durante milecircniosrdquo (NP 1990 p139)
No entanto haacute casos em que se evidencia a influecircncia de uma escolha
expliacutecita sobre um modo de ser fisioloacutegico por exemplo a inversatildeo das condiccedilotildees
de repouso e sono pode levar a uma inversatildeo completa do ritmo nictemeral de
temperatura (cf NP 1990 p141) Mas em resumo o que ele quer dizer eacute que
considerar os valores meacutedios das constantes fisioloacutegicas como expressatildeo de
normas coletivas de vida natildeo significa afirmar uma fatalidade geograacutefica como
bem mostrou os trabalhos da escola francesa de geografia humana inaugurada
por Vidal de la Blanche87 Significa apenas dizer que inventando gecircneros de vida
o homem tambeacutem inventa ao longo do tempo modos de ser fisioloacutegicos (cf NP
1990 p139)
87
Vidal de la Blache (1845-1918) geoacutegrafo francecircs autor da obra Tableau de la Geacuteographie de la France (1903) foi influenciado pela corrente filosoacutefica historicista e pioneiro da corrente geograacutefica que defende o possibilismo em oposiccedilatildeo ao determinismo ambiental germacircnico de Friedrich Ratzel (criador do termo Lebensraum) Com sua teoria ele se contrapocircs agrave concepccedilatildeo fatalista e mecanicista da relaccedilatildeo entre os homens e a natureza afirmando que o homem eacute um ser ativo e natildeo passivo com condiccedilotildees de modificar o meio natural e adaptaacute-lo segundo suas necessidades
111
Destarte afirmando haver uma estreita relaccedilatildeo entre normatividade bioloacutegica
e normatividade social Canguilhem quer mostrar que o meio humano geograacutefico
e histoacuterico eacute ao mesmo tempo causa e efeito das estruturas e comportamentos
dos indiviacuteduos Isso quer dizer que eacute o enfrentamento constante das normas vitais
com as formas coletivas de vida o que explica a variabilidade dos traccedilos humanos
fazendo com que caracteriacutesticas como a longevidade e a estatura sejam ao
mesmo tempo fenocircmenos bioloacutegicos e sociais Desta forma se considerarmos
que haacute variaccedilotildees normativas em conformidade agraves formas coletivas de vida natildeo
apenas nos espaccedilos geograacuteficos mas tambeacutem nos diferentes tempos histoacutericos88
as constantes que se apresentariam com maior frequecircncia e valor meacutedio num
determinado grupo seriam em realidade a expressatildeo de uma normatividade natildeo
apenas bioloacutegica mas tambeacutem social
ldquoConsequumlentemente poder-se-ia atribuir agrave existecircncia de uma meacutedia dos caracteres mais frequentes um sentido bastante diferente daquele que Quecirctelet lhe atribuiacutea A existecircncia dessa meacutedia natildeo traduziria um equiliacutebrio especiacutefico estaacutevel e si o equiliacutebrio instaacutevel de normas e formas de vida mais ou menos equivalentes e que se enfrentam momentaneamenterdquo (NP 1990 p128)
Assim recusando a interpretaccedilatildeo metafiacutesica do conceito de norma
apresentado por Quecirctelet Canguilhem conclui que se determinada caracteriacutestica
bioloacutegica tem maior frequecircncia eacute porque ela eacute normativa num determinado gecircnero
de vida geograacutefico e historicamente situado ldquoSeraacute que natildeo conviria inverter o
problema e refletir se a ligaccedilatildeo dos dois conceitos natildeo poderia ser explicada pela
subordinaccedilatildeo da meacutedia agrave normardquo (NP 1990 p 122) Ou seja se consideramos
que haacute uma relaccedilatildeo entre as normas bioloacutegicas e os haacutebitos humanos
relacionados aos gecircneros niacuteveis e ritmos de vida coletiva veremos que a meacutedia
88
Ancorado nos estudos paleopatoloacutegicos de Pales e Vallois autores de respectivamente Etat actuel de la paleacuteopathologie contribution agrave lrsquoegravetude de la pathologie comparative e Les maladies de lrsquohomme preacutehistorique Canguilhem nota que a relatividade de certos distuacuterbios patoloacutegicos em sua relaccedilatildeo com os gecircneros de vida natildeo se observa apenas atraveacutes da comparaccedilatildeo de grupos eacutetnicos e culturais de um mesmo periacuteodo histoacuterico mas tambeacutem pela comparaccedilatildeo com grupos anteriores desaparecidos Exemplo disso eacute que algumas afecccedilotildees comuns nos homens preacute-histoacutericos se apresentavam em proporccedilotildees bem diferentes das encontradas atualmente como a inexistecircncia de caacuteries dentaacuterias e o elevado nuacutemero de osteoartrite por conta da frequente exposiccedilatildeo ao clima frio e uacutemido
112
apenas expressa a viabilidade de uma norma num determinado grupo humano
Por esta perspectiva na qual eacute a meacutedia que se submete agrave norma ldquoa norma natildeo se
deduz da meacutedia mas se traduz pela meacutediardquo (NP 1990 p127)
Respondendo antecipadamente agravequeles que objetariam sua tese
apontando que subordinando a meacutedia agrave norma o normal deixaria de ter a rigidez
de um determinativo para todos os indiviacuteduos da mesma espeacutecie tornando
impreciso o limite entre o normal e o patoloacutegico Canguilhem explica que como
poderia parecer agrave primeira vista as variaccedilotildees normativas concernentes agraves
diferentes formas coletivas de vida natildeo implicariam a relatividade do normal e do
patoloacutegico de modo que natildeo fosse mais possiacutevel determinar onde termina a
sauacutede e onde comeccedila a doenccedila Isso porque considerado o ser individual eacute
perfeitamente possiacutevel avaliar quando ele passa a ser incapaz de realizar as
tarefas que uma nova situaccedilatildeo lhe impotildee pois se a fronteira entre o normal e o
patoloacutegico pode ser imprecisa para diversos indiviacuteduos considerados
simultaneamente para um uacutenico e mesmo indiviacuteduo considerado
sucessivamente natildeo eacute (cf NP 1990 p145)
Assim natildeo eacute uma meacutedia estatiacutestica que vai determinar em que ponto ocorre
a passagem do normal para o anormal Com efeito para Goldstein assim como
para Laugier uma meacutedia obtida estatisticamente natildeo permite dizer se estamos
diante de um indiviacuteduo normal ou natildeo
ldquoTratando-se de uma norma supra-individual eacute impossiacutevel determinar o lsquoser doentersquo (Kraksein) quanto ao conteuacutedo No entanto isto eacute perfeitamente possiacutevel quando se trata de uma norma individualrdquo (NP 1990 p144)
Tambeacutem para Canguilhem eacute sempre o indiviacuteduo que devemos tomar como
ponto de referecircncia para determinar em qual momento termina a sauacutede e em qual
momento comeccedila a doenccedila pois mesmo que desconheccedila a localizaccedilatildeo e a data
exata do iniacutecio do fenocircmeno patoloacutegico ele certamente natildeo se engana quanto ao
fato de se sentir doente
113
ldquoEm uacuteltima anaacutelise satildeo os doentes que geralmente julgam ndash de ponto de vista muito variados ndashse natildeo satildeo mais normais ou se voltaram a secirc-lo Para um homem que imagina seu futuro quase sempre a partir de sua experiecircncia passada voltar a ser normal significa retornar uma atividade interrompida ou pelo menos uma atividade considerada equivalente segundo os gostos individuais ou os valores sociais do meio Mesmo que essa atividade seja uma atividade reduzida mesmo que os comportamentos possiacuteveis sejam menos variaacuteveis menos flexiacuteveis do que eram antes o indiviacuteduo natildeo daacute tanta importacircncia assim a esses detalhes O essencial para eles eacute sair de um abismo de impotecircncia ou de sofrimento em que quase ficou definitivamente o essencial eacute lsquoter escapado de boarsquordquo (NP 1990 p91)
Daiacute para ele o papel da cliacutenica e natildeo do laboratoacuterio para a identificaccedilatildeo do
normal e do patoloacutegico Afirmando que natildeo eacute a patologia objetiva que procede da
fisiologia mas a fisiologia que procede de uma patologia que pode ser chamada
de subjetiva jaacute que derivada do ponto de vista do doente ele quer mostrar que soacute
sabemos estar diante de um fenocircmeno dito patoloacutegico devido a uma informaccedilatildeo
cliacutenica preacutevia Disso decorre que eacute a medicina cliacutenica que oferece a categoria de
patoloacutegico a todas as ciecircncias que ela que utiliza em benefiacutecio da vida Isto eacute
quando falamos em anatomia patoloacutegica fisiologia patoloacutegica histologia
patoloacutegica embriologia patoloacutegica a qualificaccedilatildeo de patoloacutegico que utilizamos eacute
uma noccedilatildeo de origem teacutecnica e por isso mesmo de origem subjetiva
ldquoPode-se descrever objetivamente estruturas ou comportamentos mas natildeo se pode chamaacute-los de lsquopatoloacutegicosrsquo com base em nenhum criteacuterio puramente objetivo Objetivamente soacute se pode definir variedades ou diferenccedilas sem valor vital positivo ou negativordquo (NP 1990 p186)
Desta forma eacute o valor cliacutenico de um comportamento individual que vai ou
natildeo defini-lo como patoloacutegico Ou seja a fisiologia soacute sabe que estaacute diante de um
fato patoloacutegico porque recebe da cliacutenica uma noccedilatildeo de doenccedila originada da
experiecircncia que os homens tecircm de suas relaccedilotildees de conjunto com o meio (cf NP
1990 p 65) Se as doenccedilas natildeo renovassem incessantemente o terreno a ser
explorado pelo cientista a fisiologia marcaria passo num terreno jaacute repisado ldquoSe
natildeo houvesse obstaacuteculos patoloacutegicos natildeo haveria tambeacutem fisiologia pois natildeo
haveria problemas fisioloacutegicos a resolverrdquo (NP 1990 p169) No entanto o
fisiologista se esquece que sua ciecircncia foi precedida por uma medicina cliacutenica e
114
por uma terapecircutica nem sempre tatildeo absurda como se costuma considerar (cf
NP 1990 p75)
Assim pelo vieacutes canguilhemiano se a medicina existe eacute porque os homens
se sentem doentes e natildeo porque haacute meacutedicos que dizem a eles que estatildeo com tal
ou qual enfermidade Ou seja a doenccedila se apresenta primeiro ao doente como
sensaccedilatildeo subjetiva de uma restriccedilatildeo normativa para somente entatildeo depois
apresentar-se ao meacutedico e depois dele ao patologista O patoloacutegico natildeo se define
por meio de uma ciecircncia das doenccedilas mas atraveacutes de uma experiecircncia concreta
qualificada como negativa por aquele que a vivencia Eacute portanto no plano da vida
concreta que a polaridade bioloacutegica estabelece a diferenccedila entre a sauacutede e a
doenccedila e natildeo no plano da ciecircncia abstrata o que faz com que natildeo seja possiacutevel
falarmos com absoluta correccedilatildeo loacutegica de uma patologia objetiva (cf NP 1990
p189)89
Neste contexto se Canguilhem traz o pensamento de Leriche eacute porque
apesar dele afirmar tal como Comte e Claude Bernard a continuidade dos
estados fisioloacutegico e patoloacutegico quando trata do problema da dor ele natildeo a
apresenta como uma modificaccedilatildeo quantitativa do fenocircmeno normal mas como um
estado autenticamente anormal Para ele a dor-doenccedila estaria em noacutes como um
acidente que evoluiria ao contraacuterio das leis da sensaccedilatildeo normal Tudo nela seria
anormal rebelde agrave lei (cf NP 1990 p71) Desta forma o que interessa a
89
Na perspectiva de Gayon (2006) aqui podem ser levantadas algumas problematizaccedilotildees A primeira delas eacute relativa ao estatuto epistemoloacutegico da medicina dependente da definiccedilatildeo do conceito de doenccedila e a segunda eacute atinente ao sentido que tem hoje considerar a medicina uma arte tendo em vista sua cientifizaccedilatildeo abertamente proclamada Isso porque segundo o comentador o esforccedilo canguilhemiano se direciona para mostrar primeiramente a independecircncia da biologia em relaccedilatildeo agraves ciecircncias da mateacuteria (fiacutesico-quiacutemica) valorizando com isso o pensamento vitalista Mas mais do que isso Canguilhem procura mostrar a independecircncia da medicina em relaccedilatildeo agrave biologia considerando a dimensatildeo axioloacutegica da doenccedila seu valor vital negativo para aquele que adoece No entanto fundar o normal e o patoloacutegico sobre a normatividade proacutepria da vida implica dizer que a qualificaccedilatildeo da doenccedila implica somente um julgamento de valor Ou seja na medida em que Canguilhem realiza uma abordagem axioloacutegica da doenccedila isto eacute apresenta a insuficiecircncia da anatomofisiologia para a definiccedilatildeo do patoloacutegico ele pode com isso ser acusado de um certo ldquosubjetivismordquo jaacute que por este criteacuterio a diagnose da doenccedila dependeria apenas do ponto de vista da pessoa doente Segundo Gayon este eacute tambeacutem precisamente o teor da criacutetica de Fagot-Largeault e Engelhardt ao enfoque qualitativo da doenccedila apresentado por Canguilhem Cf GAYON J ldquoEpistemologia da medicinardquo In RUSSO M CAPONI S (Org) Estudos de filosofia e histoacuteria das ciecircncias biomeacutedicas Satildeo Paulo Discurso Editorial 2006
115
Canguilhem nesta teoria que considera original e profunda eacute que a dor como
sensaccedilatildeo de anormalidade nos faz sair do plano da ciecircncia abstrata para entrar
na esfera da consciecircncia concreta Atraveacutes dela obtemos a coincidecircncia total da
doenccedila e do doente jaacute a dor necessariamente pede algueacutem que sofre
Por isso Canguilhem apesar de concordar com Leriche quanto agrave
coincidecircncia total do doente e da doenccedila no fenocircmeno da dor discorda dele por
propor a desconsideraccedilatildeo da opiniatildeo do doente em relaccedilatildeo agrave proacutepria doenccedila
Com efeito tendo em vista a insidiosidade de algumas delas Leriche para quem
ldquoa sauacutede e o silecircncio na vida dos oacutergatildeosrdquo entende que nem sempre este silecircncio
equivale agrave ausecircncia de lesotildees ou perturbaccedilotildees funcionais Ele acredita que se
uma autoacutepsia revelasse um cacircncer de rim ignorado pelo seu portador
identificariacuteamos uma doenccedila apesar de natildeo podermos atribuiacute-la agrave pessoa alguma
De outro modo Canguilhem acredita que para haver doenccedila ela deve aparecer
na consciecircncia do indiviacuteduo concreto
ldquoOra achamos que natildeo haacute nada na ciecircncia que antes natildeo tenha aparecido na consciecircncia e que especialmente no caso que nos interessa eacute o ponto de vista do doente que no fundo eacute verdadeirordquo (NP 1990 p68)
Apostando numa patologia subjetiva na qual se conjugam doenccedila e
consciecircncia da doenccedila90 Canguilhem acredita que mesmo no caso de doenccedilas
insidiosas como eacute o caso de algumas degenerescecircncias infecccedilotildees e infestaccedilotildees
ainda que o doente se engane quanto agrave localizaccedilatildeo e ao iniacutecio da enfermidade eacute
apenas ele quem informa ao meacutedico o momento em que uma norma passou a ser
restritiva pois eacute ele que sofre o impacto da doenccedila no exerciacutecio de suas
atividades cotidianas que sente a diferenccedila existente entre sua vida atual e a sua
vida passada Portanto natildeo eacute o fisiologista em laboratoacuterio quem vai definir o que
eacute normal e o que eacute patoloacutegico mas o meacutedico cliacutenico em acordo com seus
90
De fato Canguilhem entra em algumas aporias quando de sua discussatildeo sobre a necessidade da coincidecircncia do doente e da doenccedila para a caracterizaccedilatildeo do patoloacutegico Percebemos isso quando ao identificar a doenccedila ao apelo pateacutetico do doente em nota de rodapeacute exclui o caso das doenccedilas mentais pois nelas o desconhecimento da doenccedila por parte do doente constitui um aspecto essencial da proacutepria doenccedila (cf NP 1990 p186)
116
clientes quem vai dizer onde termina a sauacutede e onde comeccedila a doenccedila segundo
normas e valores individuais
Apesar disso de modo equiacutevoco o meacutedico toma da fisiologia um
determinado conceito de patoloacutegico derivado de uma concepccedilatildeo de normal de
caraacuteter teoacuterico e meacutetrico se esquecendo que quem ofereceu ao fisiologista a
qualificaccedilatildeo de sauacutede e doenccedila a determinados comportamentos foi ele mesmo a
partir da consideraccedilatildeo do ponto de vista do doente
ldquoo meacutedico geralmente tira a norma de seu conhecimento da fisiologia dita ciecircncia do homem normal de sua experiecircncia vivida das funccedilotildees orgacircnicas e da representaccedilatildeo comum da norma num meio social em dado momento Das trecircs autoridades a que predomina eacute de longe a fisiologiardquo (NP 1990 p94)
De igual modo o fisiologista se esquece que foi a experiecircncia negativa da
doenccedila a anguacutestia vivida por um indiviacuteduo concreto que recorreu agrave medicina o
que suscitou o estudo do patoloacutegico Na mesma esteira o meacutedico
desconsiderando a qualificaccedilatildeo negativa que o doente atribui agraves experiecircncias
vividas opta por orientar sua praacuteticas por uma concepccedilatildeo de doenccedila previamente
determinada pela fisiologia A consequecircncia disso eacute que ele orientado por uma
ciecircncia do homem normal passa a tomar para si o conceito cientiacutefico-experimental
e natildeo o axioloacutegico ou experiencial da sauacutede e da doenccedila separando a doenccedila do
doente e considerando normais as constantes que designam uma caracteriacutestica
meacutedia e mais frequente julgadas ideais num sentido descritivo e puramente
teoacuterico e natildeo no sentido terapecircutico que eacute um sentido normativo
O meacutedico ignorando a ideia de que o que daacute sentido agrave sua arte eacute a indicaccedilatildeo
de uma terapecircutica que leve agrave cura entendida como a restauraccedilatildeo da capacidade
da vida de criar novas normas e de resistir aos valores vitais negativos pondo
termo agrave anguacutestia de um indiviacuteduo concreto ele passa a acreditar que ela eacute um
retorno a uma norma da qual o organismo havia se afastado norma esta
considerada positiva natildeo pelo doente mas pela ciecircncia Com isso se esquece
que mais do que a fisiologia eacute o doente quem tem maior autoridade para indicar o
117
momento no qual uma norma passa a ser restritiva e volta a ser propulsiva (cf NP
1990 p94)
Por isso Canguilhem natildeo acredita que a medicina deva se moldar
completamente agrave fisiologia e se orientar por uma ciecircncia do patoloacutegico A cliacutenica
natildeo eacute uma ciecircncia e jamais o seraacute mesmo que ela faccedila uso de meios com eficaacutecia
cientiacutefica garantida Isso porque ela eacute inseparaacutevel da terapecircutica que tem por fim
algo que escapa agrave jurisdiccedilatildeo do saber objetivo que eacute a satisfaccedilatildeo subjetiva de que
uma norma foi instaurada Daiacute sua ideia de que realizar um diagnoacutestico apenas
atraveacutes de meacutetodos experimentais sem nenhum interrogatoacuterio ou investigaccedilatildeo
cliacutenica eacute fazer do indiviacuteduo uma viacutetima de uma grave confusatildeo do ponto de vista
filosoacutefico e perigosa do ponto de vista terapecircutico (cf NP 1990 p185)
Com efeito se a teacutecnica meacutedica eacute originada de um pathos consciente se eacute a
proacutepria vida ao estabelecer uma diferenccedila entre seus comportamentos
propulsivos e repulsivos que daacute origem agrave medicina entatildeo natildeo eacute a ciecircncia que
introduz na consciecircncia humana as categorias de sauacutede e de doenccedila isto eacute natildeo eacute
a atividade cientiacutefica do fisiologista que determina o que eacute normal ou patoloacutegico no
homem mas o doente por intermeacutedio da cliacutenica que fala em que ponto termina a
sauacutede e comeccedila a doenccedila que indica o momento em que deixou de se sentir em
posiccedilatildeo normativa jaacute que a doenccedila natildeo eacute originalmente um fato cientiacutefico e
objetivo definido em laboratoacuterio mas uma categoria biologicamente teacutecnica e
subjetiva por ser um comportamento de valor negativo para um ser vivo individual
concreto em atividade polarizada com seu meio (cf NP 1990 p182)
Em uacuteltima anaacutelise para o meacutedico deixar de escutar o doente eacute estar surdo
aos apelos da vida
ldquoNatildeo se ditam normas agrave vida cientificamente Mas a vida eacute essa atividade polarizada de conflito com o meio e que se sente ou natildeo normal conforme se sinta ou natildeo em posiccedilatildeo normativa O meacutedico optou pela vida A ciecircncia lhe eacute uacutetil no cumprimento dos deveres decorrentes dessa escolhardquo (NP 1990 p186)
Considerando que a atividade cientiacutefica moderna eacute ideologicamente
orientada pelo anseio de domiacutenio da natureza notamos que Canguilhem acredita
118
que a medicina a partir da adoccedilatildeo de paracircmetros que impotildeem agrave vida atraveacutes dos
indiviacuteduos uma norma considerada ideal definida por meios cientiacutefico-
experimentais acaba por perder de vista seu sentido original que eacute o de se
colocar a serviccedilo das normas da vida Sendo assim se partimos da hipoacutetese de
que ao criticar a tese de que o patoloacutegico seria apenas uma modificaccedilatildeo
quantitativa do estado normal sustentaacuteculo de uma medicina como ciecircncia das
doenccedilas ele queria contestar a subserviecircncia da teacutecnica em relaccedilatildeo agrave ciecircncia
vemos por fim que sua defesa de uma medicina como arte da cura enraizada na
vida acaba por culminar num questionamento sobre a funccedilatildeo social da medicina
tendo em vista a ideologia de domiacutenio ou controle que a orienta importada da
atividade cientiacutefica
Em vista disso eacute do problema da normalizaccedilatildeo operada pelas praacuteticas
meacutedica e psicoloacutegica do que em seguida iremos tratar
119
CAPIacuteTULO III
Medicina psicologia e normalizaccedilatildeo
Nada pode impedir a primavera do pensamento
pois a vida sempre reclama liberdade
Nos capiacutetulos anteriores vimos que para Canguilhem a medicina eacute uma
arte enraizada na vida e a normalidade e a patologia satildeo comportamentos vitais
qualitativamente diferentes associados agrave capacidade de o vivente criar e superar
suas proacuteprias normas isto eacute de realizar ajustes normativos Dada a multiplicidade
normativa da ordem vital atestada pela existecircncia das monstruosidades natildeo
haveria como identificar um tipo bioloacutegico saudaacutevel ideal mas diferentes formas
de vida saudaacuteveis se capazes de se adaptar ativamente a seu meio ou seja
transformaacute-lo a partir de seu proacuteprio centro de referecircncia
Vimos tambeacutem que de acordo com a perspectiva canguilhemiana o sentido
original da medicina se perdeu quando ela deixou de ser uma arte da cura para se
transformar em uma ciecircncia das doenccedilas pautada nas ideias de vida como um
sistema de leis e na definiccedilatildeo cientiacutefico-experimental e natildeo axioloacutegico-experiencial
do normal e do patoloacutegico Orientada pela ideologia de controle da natureza
proacutepria da ciecircncia moderna a medicina perdeu o respeito pela vida e passou a
ditar normas a ela ficando surda a seus apelos
O que pretendemos neste capiacutetulo mostrar eacute que Canguilhem ainda
procurou deixar claro que a uacuteltima consequecircncia deste processo foi que a
medicina ao deixar de ser uma extensatildeo da atividade vital se transformou em um
dispositivo social91 de normalizaccedilatildeo dos indiviacuteduos na medida em que o tipo
91
Destacamos que Canguilhem ao tratar das instituiccedilotildees de sauacutede seus discursos e praacuteticas manteacutem o sentido da noccedilatildeo de dispositivo tal como apresentada por Foucault como uma integraccedilatildeo das relaccedilotildees de poder e de ordens discursivas materializada em instituiccedilotildees em suas decisotildees juriacutedicas sanitaacuterias etc Em entrevista a Alain Grosrichard ao ser questionado sobre o sentido primeiro e funccedilatildeo metodoloacutegica deste termo Foucault responde ldquoAtraveacutes deste termo tento demarcar em primeiro lugar um conjunto decididamente heterogecircneo que engloba discursos instituiccedilotildees organizaccedilotildees arquitetocircnicas decisotildees regulamentares leis medidas administrativas enunciados cientiacuteficos proposiccedilotildees filosoacuteficas morais filantroacutepicas Em suma o dito e o natildeo dito satildeo os elementos do dispositivo O dispositivo eacute a rede que se pode tecer entre estes elementosrdquo
120
anormal assim considerado pela ciecircncia bioloacutegica por sua alteraccedilatildeo
anatomofisioloacutegica ou geneacutetica e sua inadaptaccedilatildeo ao meio atraveacutes do discurso
meacutedico psiquiaacutetrico psicoloacutegico e psicossocioloacutegico orientado pela ideologia de
controle social passou a encontrar um anaacutelogo no tipo social anormal igualmente
inadaptado ao meio que precisa ter seu comportamento corrigido para garantia
da manutenccedilatildeo da ordem sociopoliacutetica instituiacuteda
Tal como Foucault ele acredita que assim como o monstro fiacutesico
caracterizado por uma alteraccedilatildeo anatomofisioloacutegica ou geneacutetica coloca em
questatildeo o legalismo da natureza o monstro mental ou comportamental coloca em
questatildeo o legalismo social92 Ou melhor da mesma forma que o desviante ou
anocircmalo bioloacutegico mostra que haacute outras ordens vitais possiacuteveis o desviante ou
inadaptado social mostra que haacute outros comportamentos sociais possiacuteveis e no
limite outras ordens poliacuteticas desejaacuteveis Daiacute sua periculosidade e a necessidade
de sua identificaccedilatildeo enquadramento na categoria de doente mental de seu
sequestro e encarceramento institucional e de sua normalizaccedilatildeo a ser obtida
atraveacutes das praacuteticas meacutedico-psiquiaacutetricas e psicoloacutegicas93
(FOUCAULT 2000 p 244) Cf FOUCAULT M Microfiacutesica do poder 19ordf ed Rio de janeiro Graal 2000
92 Sobre este duplo registro de infraccedilatildeo normativa representado pela monstruosidade em Os
anormais Foucault trata dos monstros e sua contribuiccedilatildeo para a construccedilatildeo da figura do anormal no seacuteculo XIX periacuteodo de criaccedilatildeo de inuacutemeras instituiccedilotildees especiacuteficas de cura e correccedilatildeo das anormalidades Ao realizar sua arqueologia da anomalia ele identifica como figuras constitutivas do anormal os monstros naturais violadores das leis da natureza e os morais violadores das leis da sociedade ou infratores do pacto social como os monstros poliacuteticos Aleacutem disso esclarece que seraacute a relaccedilatildeo direta da monstruosidade com a criminalidade o que iraacute justificar a emergecircncia e atuaccedilatildeo de um poder meacutedico-juriacutedico soacute se puniraacute em nome da lei os que seratildeo julgados criminosos poreacutem avaliados apreciados medidos em termos de normal e patoloacutegico (cf Foucault 2001 p114) Assim a psiquiatria nasce como um ramo especializado da higiene puacuteblica se configurando como uma ciecircncia e teacutecnica de correccedilatildeo dos que colocam em perigo a seguranccedila da sociedade ldquoFoi como precauccedilatildeo social foi como higiene do corpo social inteiro que a psiquiatria se institucionalizou (nunca esquecer que a primeira revista de certo modo especializada em psiquiatria na Franccedila foram os Annales drsquohygiegravene publique)rdquo (Foucault 2001 p148) A partir de entatildeo nota inuacutemeros monstrinhos passaram a povoar a psiquiatria e a psiquiatra legal do seacuteculo XIX e o perigo social a ser codificado em seu interior como doenccedila Cf FOUCAULT M Os Anormais [curso no Collegravege de France (1974-1975)] (trad Eduardo Brandatildeo) Satildeo Paulo Martins Fontes 2001 (Coleccedilatildeo Toacutepicos)
93 Macherey (2009) esclarece que Foucault em seus estudos sobre a loucura a penalidade e a
sexualidade se empenha em mostrar como a monstruosidade dos seres reputados como infames se integra agrave dinacircmica do que ele nomeia de biopoder Para Canguilhem esta questatildeo se remete agrave constituiccedilatildeo de um poder histoacuterico-social normativo que transforma as diferentes formas de
121
Destarte se em seu Ensaio de 43 Canguilhem se propocircs a pensar o
conceito de normal e de patoloacutegico fundamentalmente a partir da relaccedilatildeo do
organismo com seu meio bioloacutegico em suas Novas Reflexotildees referentes ao
normal e ao patoloacutegico ele procura investigar o sentido dos conceitos de norma e
de normal nas ciecircncias humanas a partir de uma investigaccedilatildeo sobre a relaccedilatildeo dos
indiviacuteduos em seu meio social94 Agora a partir do estudo das normas sociais ele
coloca em cena o problema da normalizaccedilatildeo e sua associaccedilatildeo aos processos de
racionalizaccedilatildeo e planificaccedilatildeo explicitando sua relaccedilatildeo com os interesses poliacuteticos
e econocircmicos da sociedade capitalista industrial
Ao trazer a problemaacutetica da identificaccedilatildeo de tipos sociais normais e
anormais e da realizaccedilatildeo do diagnoacutestico da sauacutede e da doenccedila a partir dos
criteacuterios de adaptaccedilatildeo e inadaptaccedilatildeo social utilizados pela psicologia do
comportamento para realizar sua criacutetica Canguilhem se aproxima dos filoacutesofos da
potecircncia Espinosa e Nietzsche e da perspectiva socioloacutegica marxista de Georges
Friedmann Tal aproximaccedilatildeo se evidencia nos escritos Meio e normas do homem
no trabalho Qursquoest que la Psychologie e Le cerveau et la penseacutee nos quais ele
mostra como a psicologia behaviorista a partir de uma concepccedilatildeo de indiviacuteduo
condicionaacutevel num meio mecanizado e de suas teacutecnicas de identificaccedilatildeo dos
desviantes e de readaptaccedilatildeo por correccedilatildeo comportamental acabou por se
transformar numa poliacutecia dos anormais dos inadaptados sociais sobretudo para
o trabalho
Na trilha de Foucault tanto em suas Novas Reflexotildees quanto em seus
Escritos sobre a medicina Canguilhem apresenta o momento do nascimento da
medicina moderna e de quando ela se transformou em dispositivo de gestatildeo
sociopoliacutetica da vida cotidiana estruturado a partir do discurso higienista e das
existecircncia em objeto de anaacutelise classificaccedilatildeo e institucionalizaccedilatildeo a partir de criteacuterios exteriores a elas no contexto dos processos de normalizaccedilatildeo Cf MACHEREY P De Canguilhem agrave Foucault la force des normes Paris La Fabrique Eacuteditions 2009
94 Corroborando nossa anaacutelise Lecourt mostra que quando considera o indiviacuteduo inscrito no seu
meio bioloacutegico Canguilhem tem por referecircncia os pensamentos de Nietzsche Simondon Goldstein Uexkuumlll e Darwin mas ao tomaacute-lo como indiviacuteduo inscrito em um meio especificamente humano as referecircncias passam a ser Vidal de la Blanche e Foucault Cf LECOURT D La question de lrsquoindividu drsquoapregraves Georges Canguilhem In BADIOU A (et al) Georges Canguilhem Philosophe historien des sciences Actes du colloque (6 7 8 deacutecembre 1990) Op cit
122
praacuteticas preventivistas realizadas pelas instituiccedilotildees de sauacutede puacuteblica Com isso
alude agraves duas formas de biopoder e seus campos de exerciacutecio o corpo-maacutequina e
o corpo-espeacutecie isto eacute ao poder disciplinar baseado na chamada anatomopoliacutetica
do corpo humano e agrave biopoliacutetica entendida como a gestatildeo cientiacutefica da vida ao
niacutevel das populaccedilotildees com vistas a mostrar sua importacircncia para o
desenvolvimento e consolidaccedilatildeo da sociedade capitalista95
Diante deste cenaacuterio de exerciacutecio poliacutetico do biopoder pela classe
dominante da sociedade capitalista ele encontra a saiacuteda na liberaccedilatildeo da potecircncia
poliacutetica do corpo de reagir e transformar as regras opressivas do meio social que
querem se impor com a forccedila e a inquestionabilidade de uma lei natural Por fim
mostrando a relaccedilatildeo entre psicologia do comportamento normalizaccedilatildeo do
pensamento e controle das condutas sociais desviantes Canguilhem por uma via
explicitamente espinosana associa pensamento inventividade e potecircncia reativa
e normativa do corpo para mostrar que a maior prova de sauacutede eacute a reaccedilatildeo e a
resistecircncia agraves opressotildees sociais a reivindicaccedilatildeo do direito ao exerciacutecio da
liberdade de pensar e de agir no mundo
Sendo assim eacute a partir de outra concepccedilatildeo de indiviacuteduo como totalidade
corpomente e de sauacutede como exerciacutecio da potecircncia vital reativa e normativa que
Canguilhem acredita ser possiacutevel fazer frente agraves praacuteticas normalizadoras e
gestoras da vida individual e coletiva Ou seja eacute tendo em vista que o movimento
da vida natildeo tende agrave apatia agrave ineacutercia e agrave indiferenccedila que ele acredita que se a
cliacutenica natildeo quer normalizar mas produzir sauacutede ela deve se orientar pela
liberdade e resistecircncia proacuteprias agrave vida respeitando sua normatividade e abrindo
matildeo da ideologia de controle caracteriacutestica da ciecircncia moderna e das praacuteticas
dela derivadas
95
No curso Em defesa da sociedade ao tratar do biopoder Foucault esclarece que esses dois conjuntos de mecanismos o disciplinar dos corpos e o regulamentador das populaccedilotildees natildeo estatildeo no mesmo niacutevel mas se articulam um com o outro Isso porque a norma eacute o que pode tanto se aplicar a um corpo que se quer disciplinar quanto a uma populaccedilatildeo que se quer regulamentar E embora conclua que o recurso ao poder soberano de matar e ao biopoder chegou ao extremo na sociedade nazista a gestatildeo por parte do Estado da vida e da morte pode ser associada a todos os regimes marcados pelo racismo mesmo os de esquerda (cf FOUCAULT 2010 p213) Cf FOUCAULT M Em defesa da sociedade curso no Collegravege de France [1975-1976] (Trad Maria Ermantina Galvatildeo) Satildeo Paulo Editora WMF Martins Fontes 2010 (Coleccedilatildeo Michel Foucault)
123
Em suas Novas Reflexotildees referentes ao normal e ao patoloacutegico em
interlocuccedilatildeo com o pensamento de Foucault Canguilhem apresenta um estudo
sobre os conceitos de norma e de normal pela perspectiva das ciecircncias
humanas96 Agora procurando compreender o sentido das normas vitais a partir
do estudo das normas sociais ele trata do problema da normalizaccedilatildeo fenocircmeno
exclusivamente antropoloacutegico ou cultural em sua relaccedilatildeo com os processos de
racionalizaccedilatildeo e planificaccedilatildeo sociopoliacuteticas e econocircmicas97 Por uma perspectiva
96
Roudinesco (2007) nota que Canguilhem ao escrever suas Novas reflexotildees abordando o problema das normas sociais assim o fez em resposta a uma leitura que fizera do livro de Michel Foucault O Nascimento da cliacutenica Neste Foucault atribuiacutea uma origem histoacuterica agrave constituiccedilatildeo da medicina moderna e substituiacutea a concepccedilatildeo canguilhemiana de norma produzida pela vida por outra constituiacuteda pela ordem social e portadora de normalizaccedilatildeo Para a autora Canguilhem nas Novas reflexotildees retoma a noccedilatildeo foucaultiana de normatividade social natildeo para invalidar sua tese inicial mas para imprimir-lhe um rigor que provavelmente ela jamais teria alcanccedilado sem o desafio lanccedilado por Foucault Tambeacutem Macherey (2009) acredita ser possiacutevel aproximar as deacutemarches teoacutericas de Canguilhem Foucault porque ambos tecircm uma reflexatildeo filosoacutefica consagrada ao problema das normas realizada a partir de materiais tomados de empreacutestimo das ciecircncias bioloacutegicas e humanas O espiacuterito fundamental de suas pesquisas eacute a compreensatildeo do que eacute viver e viver em sociedade sob as normas A diferenccedila entre eles eacute a de que Canguilhem realiza sua criacutetica se engajando do lado da experiecircncia concreta do vivente abrindo uma perspectiva que pode ser chamada de fenomenoloacutegica jaacute que ancorada na capacidade do ser vivo em criar normas como expressatildeo de sua polaridade constitutiva enquanto o segundo substitui a normatividade essencial da vida por um nascimento histoacuterico das normas situado no desenvolvimento de um processo social e poliacutetico realizando assim uma arqueologia das normas meacutedicas Em vista disso se a experiecircncia da qual trata Canguilhem eacute a do vivente em Foucault a significaccedilatildeo da experiecircncia cliacutenica passa a ser dada atraveacutes de uma leitura histoacuterica da constituiccedilatildeo do olhar meacutedico Para Macherey eacute esta posiccedilatildeo de Foucault de alargar consideravelmente o terreno de funcionamento das normas o que faz com que Canguilhem se desloque nas Novas reflexotildees do vital ao social sem contudo abandonar sua perspectiva fenomenoloacutegica que eacute a de se engajar ao lado da ldquoexperiecircncia concreta do viventerdquo Cf ROUDINESCO E In Filoacutesofos na tormenta (Canguilhem Sartre Foucault Althusser Deleuze Derrida) Op cit MACHEREY P De Canguilhem agrave Foucault la force des normes Op cit
97 Le Blanc (2010a) esclarece que nas Novas reflexotildees aparece uma nova figura da norma a
normalizaccedilatildeo Seu objeto agora eacute visto sob um novo ponto de vista Enquanto que no Ensaio Canguilhem se volta ao estudo do indiviacuteduo bioloacutegico e apresenta a normatividade enraizada na vida agora seu interesse se volta agrave invenccedilatildeo do sujeito entre as normas vitais e sociais e agrave gecircnese social dos processos de normalizaccedilatildeo Ele mostra que diferentemente da normatividade que nasce espontaneamente da vida a normalizaccedilatildeo emerge do conflito e do arbitraacuterio social e estaacute ligada aos processos de racionalizaccedilatildeo da sociedade sendo possiacutevel distinguir os trecircs momentos de sua gecircnese intenccedilatildeo normativa decisatildeo normativa instituidora de regras regulamentos padrotildees e modelos e seu uso normalizador manifesto na correccedilatildeo e na vigilacircncia Portanto a normalizaccedilatildeo aparece como tentativa de racionalizaccedilatildeo do social como prova reguladora axioloacutegica e disciplinar Ela vale por sua exterioridade arbitrariedade e transcendecircncia enquanto a normatividade vital se caracteriza pelo contraacuterio pela interiorizaccedilatildeo dos valores sua necessidade e sua imanecircncia agrave vida (cf LE BLANC 2010a p 86) Cf LE BLANC G Canguilhem et les normes Op cit
124
histoacuterica ele procura mostrar quando devido aos interesses de determinada
sociedade a burguesa ou cientiacutefico-industrial o processo de normalizaccedilatildeo iniciado
na definiccedilatildeo das normas gramaticais acaba por se estender agraves normas
morfoloacutegicas dos homens para fins de defesa nacional passando pela imposiccedilatildeo
de normas industriais e higiecircnicas de modo a modificar o modo de produccedilatildeo no
trabalho e as formas de conduccedilatildeo da vida cotidiana das populaccedilotildees operaacuterias
Partindo de um estudo etimoloacutegico da palavra norma Canguilhem lembra
que ela eacute uma palavra latina de origem matemaacutetica que quer dizer esquadro e que
normalis significa perpendicular Tambeacutem nota que ela suporta o sentido inicial do
termo ortos presente em palavras como ortografia e ortopedia (cf NP 1990
p216) Isso faz com que uma norma sirva para retificar pocircr de peacute endireitar Por
essa perspectiva o que caracteriza um objeto ou um fato dito normal eacute poder ser
tomado como ponto de referecircncia em relaccedilatildeo a objetos ou fatos ainda agrave espera de
serem classificados como tal Portanto uma norma tira seu sentido sua funccedilatildeo e
seu valor do fato de existir fora dela algo que natildeo corresponde agrave exigecircncia que
ela impotildee
ldquolsquoNormarrsquo normalizar eacute impor uma exigecircncia a uma existecircncia a um dado cuja variedade e disparidade se apresentam em relaccedilatildeo agrave exigecircncia como um indeterminado hostil mais ainda do que estranhordquo (NP 1990 p211)
Assim o sentido da normalizaccedilatildeo eacute partir de uma norma externa para
regular os demais objetos que fora dela se encontram Como exemplo a
normalizaccedilatildeo teacutecnica consiste na escolha e na determinaccedilatildeo da mateacuteria da forma
e das dimensotildees de um objeto cujas caracteriacutesticas passam a ser referencial
obrigatoacuterio para a fabricaccedilatildeo dos demais como forma de manter a singularidade
das proporccedilotildees e como uma soluccedilatildeo para evitar a confusatildeo de esforccedilos a
dificuldade e a demora da substituiccedilatildeo de peccedilas e a despesa inuacutetil (cf NP 1990
p 217)
Apoacutes apresentar o terreno de origem do sentido dos termos norma e normal
posteriormente trazidos para uma grande variedade de outros campos
Canguilhem afirma que a gramaacutetica oferece uma mateacuteria inestimaacutevel para o
125
estudo das normas pois ela foi o primeiro alvo dos processos de normalizaccedilatildeo
Identificando o nascimento da gramaacutetica no seacuteculo XVII ele diz que neste periacuteodo
a norma gramatical regulava a liacutengua usada pelos burgueses parisienses cultos e
se remetia a uma norma poliacutetica a centralizaccedilatildeo administrativa em proveito do
poder real Ainda esclarece que segundo o linguista Pierre Guiraud a burguesia
como classe ascendente apenas tomou posse da liacutengua quando se apoderou dos
meios de produccedilatildeo e conquistou definitivamente o poder poliacutetico no processo
iniciado com a Revoluccedilatildeo Francesa
ldquoEntre 1759 data do aparecimento da palavra normal e 1834 data de aparecimento da palavra normalizado uma classe normativa conquistou o poder de identificar a funccedilatildeo das normas sociais com o uso que ela proacutepria fazia das normas cujo conteuacutedo determinava Bom exemplo de ilusatildeo ideoloacutegicardquo (NP 1990 p218)
Sendo fato que a liacutengua ofereceu agrave experiecircncia de normalizaccedilatildeo seu primeiro
campo de atuaccedilatildeo mais tarde a exigecircncia de normalizaccedilatildeo iniciada na
gramaacutetica passou a dizer respeito agrave sauacutede da populaccedilatildeo considerada
estatisticamente Normal seraacute o termo pelo qual os teoacutericos reformistas do seacuteculo
XIX vatildeo designar o protoacutetipo escolar e o estado de sauacutede orgacircnica no contexto de
reforma das instituiccedilotildees pedagoacutegica e sanitaacuteria efetivadas como expressatildeo de
exigecircncias de ordem mecacircnica energeacutetica comercial militar e poliacutetica proacuteprias a
este periacuteodo
ldquoTanto a reforma hospitalar como a reforma pedagoacutegica exprimem uma exigecircncia de racionalizaccedilatildeo que se manifesta tambeacutem na poliacutetica como se manifesta na economia sob a influecircncia de um maquinismo industrial nascente que levaraacute enfim ao que se chamou desde entatildeo normalizaccedilatildeordquo (NP 1990 p 209-210)
Tambeacutem na Ideologia e racionalidade nas ciecircncias da vida ao traccedilar um
esboccedilo histoacuterico-epistemoloacutegico da medicina no seacuteculo XIX Canguilhem diz que
uma nova situaccedilatildeo se estabeleceu na Europa neste periacuteodo e que um dos
motivos que deflagrou tal mudanccedila foi um acontecimento simultaneamente
126
institucional e cultural chamado por Foucault de nascimento da cliacutenica98 que
instituiu uma reforma hospitalar em Viena e em Paris e generalizou praacuteticas de
percussatildeo e auscultaccedilatildeo mediata com referecircncia sistemaacutetica da observaccedilatildeo dos
sintomas aos dados da anatomopatologia (cf I 1981 p53-54) Aleacutem disso no
acircmbito da sauacutede preventiva ele nota que a efetividade das praacuteticas de vacinaccedilatildeo
alimentou ainda mais o desejo de invenccedilatildeo de novos tratamentos capazes de
transformar massivamente as condiccedilotildees fiacutesicas e morais da vida humana (cf I
1981 p43)
Assim como Foucault a partir de uma investigaccedilatildeo histoacuterica e da
consideraccedilatildeo do liame entre poliacutetica e medicina Canguilhem procura esclarecer
que neste periacuteodo a definiccedilatildeo de normas higiecircnicas supotildee o interesse que se
dava do ponto de vista poliacutetico agrave sauacutede da populaccedilatildeo agrave salubridade das
condiccedilotildees de vida e agrave extensatildeo uniforme dos tratamentos preventivos e curativos
com vistas agrave produccedilatildeo econocircmica e agrave seguranccedila do Estado Ou seja foi a partir
de um interesse sociopoliacutetico e econocircmico na sauacutede das populaccedilotildees que a
medicina se viu diante de uma necessidade de reforma a ser operada atraveacutes de
uma racionalizaccedilatildeo de seus tratamentos preventivos e curativos e de planificaccedilatildeo
de suas estrateacutegias visando abarcar o conjunto da sociedade
Nos Escritos sobre a medicina ainda na trilha foucaultiana Canguilhem se
propotildee a pensar a sauacutede a partir de sua apropriaccedilatildeo pelos poderes sociomeacutedicos
explicitando o componente de natureza social e portanto poliacutetico nas teorias e
praacuteticas meacutedicas Assim como em suas Novas reflexotildees ele faz referecircncia agrave obra
O nascimento da cliacutenica para novamente apontar quando a medicina se tornou
um dispositivo de gestatildeo sociopoliacutetica meacutedica da vida cotidiana Ele nota que foi a
partir do seacuteculo XIX que as sociedades de tipo industrial passaram a gerir a sauacutede
98
Segundo Foucault a medicina moderna fixa sua proacutepria data de nascimento nos uacuteltimos anos do seacuteculo XVIII Neste periacuteodo houve natildeo apenas uma mudanccedila na experiecircncia meacutedica mas a adoccedilatildeo de uma nova linguagem a da ciecircncia positiva permitindo que finalmente fosse possiacutevel pronunciar sobre o indiviacuteduo um discurso de estrutura cientiacutefica Daiacute decorre que a medicina como arte entra pouco a pouco em regressatildeo diante da medicina dos oacutergatildeos da cliacutenica inteiramente ordenada pela anatomia patoloacutegica Ou seja para ele o grande corte da histoacuteria da medicina ocidental data precisamente do momento em que a experiecircncia cliacutenica torna-se o olhar anatomocliacutenico Cf FOUCAULT M O nascimento da cliacutenica Rio de Janeiro Forense Universitaacuteria 1977
127
das populaccedilotildees operaacuterias por serem o componente humano das forccedilas
produtivas A vigilacircncia e a melhoria das condiccedilotildees de vida passaram a ser objeto
de regulamentaccedilatildeo e medidas decididas pelo poder poliacutetico e operacionalizadas
pelos higienistas Surgem neste periacuteodo na Inglaterra e tambeacutem na Franccedila
numerosos tratados de higiene industrial e enquetes sobre a sauacutede dos operaacuterios
nos diferentes ramos da induacutestria como o Tableau de lrsquoeacutetat physique et moral des
ouvriers employeacutes dans les fabriques de coton de laine et de soie de Villermeacute
(1840)
Canguilhem diz ainda que neste mesmo momento histoacuterico havendo natildeo
soacute uma preocupaccedilatildeo por parte dos higienistas com a incidecircncia patogecircnica nas
aglomeraccedilotildees urbanas eacute proposta uma expansatildeo da gestatildeo sociopoliacutetica meacutedica
do meio urbano ao rural Tomando o exemplo da Franccedila de modo a mostrar a
extensatildeo do controle administrativo da sauacutede das populaccedilotildees ele cita a existecircncia
de um corpo de oficiais de sauacutede vigias e conselheiros em mateacuteria de sauacutede isto
eacute de submeacutedicos dos quais se exigia um conhecimento menos elaborado que o
dos doutores capacitados para atuar nos campos onde a vida era considerada
menos sofisticada do que nas cidades (cf EM 2005 p47)
Aleacutem disso esclarece que ao lado progressos da higiene puacuteblica e da
medicina preventiva estabelecida a partir da substituiccedilatildeo do ideal pessoal de cura
das doenccedilas por um ideal social de prevenccedilatildeo das doenccedilas e concretizada pelas
praacuteticas de vacinaccedilatildeo surge uma nova forma de gestatildeo da sauacutede da populaccedilatildeo jaacute
adoecida a organizaccedilatildeo hospitalar O hospital passa a ser natildeo mais o locus de
amparo para invaacutelidos e moribundos mas o local de exerciacutecio de praacuteticas
curativas dotadas de cientificidade Exemplo desta transiccedilatildeo foi a substituiccedilatildeo
gradativa do hospiacutecio como asilo de acolhimento de doentes abandonados pelo
hospital psiquiaacutetrico espaccedilo de anaacutelise e vigilacircncia de doentes catalogados
construiacutedo e governado como uma ldquomaacutequina de curarrdquo (cf EM 2005 p28)99
99
Na Histoacuteria da Loucura Foucault apresenta o momento histoacuterico de apropriaccedilatildeo meacutedico-juriacutedica da experiecircncia da loucura e sua transformaccedilatildeo em doenccedila mental associada agrave ideia de periculosidade social e a transformaccedilatildeo do Hospital em asilo cientiacutefico espaccedilo de vigilacircncia e puniccedilatildeo locus de exerciacutecio do poder psiquiaacutetrico Ao tratar da praacutetica do internamento ele explica que no interior do asilo era essencial que a razatildeo fosse significada por tipos sociais cristalizados e
128
Com efeito Canguilhem apresenta as sociedades industriais como
sociedades de populaccedilatildeo predominantemente urbana nas quais a concentraccedilatildeo
demograacutefica e as condiccedilotildees de trabalho dos operaacuterios contribuiacuteram largamente
para o desenvolvimento de doenccedilas infecciosas e nas quais o hospital se
consolidou como lugar de tratamento generalizado no anonimato Ainda ele
esclarece que as descobertas cientiacuteficas de Koch Pasteur e seus alunos sobre as
formas de contaacutegio microbiano ou viral o desenvolvimento das teacutecnicas de
assepsia dos soros e das vacinas forneceram agrave higiene puacuteblica seus meios de
eficaacutecia100 Sobre a medicina curativa menciona que foram os resultados das
pesquisas sobre os antibioacuteticos desenvolvidas por Paul Ehrlich nos primeiros
anos do seacuteculo XX que revolucionaram a terapecircutica transformando o conceito
de cura em esperanccedila de vida (cf EM 2005 p55-56)
Aqui ao traccedilar um breve panorama da histoacuteria da medicina no XIX
Canguilhem intenciona criticar a Higiene em sua ambiccedilatildeo sociopoliacutetica-meacutedica de
regulamentar a vida dos indiviacuteduos e em seu discurso de que o corpo eacute mero
produto do seu meio caracteriacutestico
ldquoO corpo eacute um dado uma vez que eacute genoacutetipo efeito a um soacute tempo necessaacuterio e singular dos componentes de um patrimocircnio geneacutetico () O corpo eacute um produto visto
que a cura do louco significava sua estabilizaccedilatildeo num tipo moralmente reconhecido e aprovado Dado isso o que chama de praacutetica psiquiaacutetrica natildeo eacute mais do que ldquouma certa taacutetica moral contemporacircnea do fim do seacuteculo XVIII conservada nos mitos da vida asilar e recoberta pelos mitos do positivismordquo (FOUCAULT 2004 p501) Em Mort de lrsquohomme ou eacutepuisement du cogito Canguilhem esclarece que foi Descartes quem Foucault escolheu para representar a ideia de loucura na idade claacutessica por ser ele um dos artesatildeos da particcedilatildeo das normas que teve por efeito confinar a loucura no espaccedilo asilar onde os psicopatologistas do seacuteculo XIX a encontraram como objeto de saber Cf FOUCAULT M Histoacuteria da Loucura na Idade Claacutessica (Trad Joseacute Teixeira Coelho Netto) Satildeo Paulo Perspectiva 7ordf ediccedilatildeo 2004 CANGUILHEM G Mort de lrsquohomme ou eacutepuisement du cogito Critique Tome XXIV n
o 242 juillet 1967
100 Em seus Estudos de Histoacuteria e de Filosofia das Ciecircncias quando trata do estatuto
epistemoloacutegico da medicina Canguilhem diz que uma renovaccedilatildeo epistemoloacutegica profunda na medicina se deu pelos resultados das pesquisas de Pasteur Koch e seus alunos Quiacutemico sem formaccedilatildeo meacutedica Pasteur inaugura uma medicina livre do antropocentrismo tradicional da cliacutenica humana Expondo o papel das bacteacuterias e dos viacuterus na produccedilatildeo das doenccedilas ele tambeacutem impocircs agrave medicina uma mudanccedila em seus lugares de exerciacutecio Se tratar com vistas agrave curar se fazia em casa ou no hospital agora vacinar para prevenir iraacute se fazer no dispensaacuterio no quartel na escola ldquoO objeto da revoluccedilatildeo meacutedica eacute doravante menos a doenccedila do que a sauacutede Donde o desenvolvimento de uma disciplina meacutedica apreciada desde o fim do seacuteculo XVIII na Inglaterra assim como na Franccedila a higienerdquo (E 2012 p463)
129
que sua atividade de inserccedilatildeo em um meio caracteriacutestico seu modo de vida escolhido ou imposto esporte ou trabalho contribui para dar forma seu fenoacutetipo ou seja para modificar sua estrutura morfoloacutegica e por conseguinte para singularizar suas capacidades Eacute neste ponto que um certo discurso [o da Higiene] encontra ocasiatildeo e justificativardquo (EM 2005 p42)
Mas tambeacutem mostrar que foi no uacuteltimo quarto deste seacuteculo que a concepccedilatildeo de
sauacutede passou a ser atrelada agraves funccedilotildees de adaptaccedilatildeo ao meio ambiente atraveacutes
do entendimento do organismo como um sistema aberto
Ao tratar desta questatildeo ele cita a teoria dos meios esboccedilada por Comte e
desenvolvida pelos meacutedicos positivistas da Sociedade de Biologia contemporacircnea
da constituiccedilatildeo da fisiologia como ciecircncia (cf EM 2005 p54) Alertando sobre o
quanto a associaccedilatildeo adaptaccedilatildeo e sauacutede pode ser problemaacutetica se natildeo for bem
esclarecida ele questiona primeiro sobre que tipo de relaccedilatildeo o organismo
estabelece com seu meio se eacute possiacutevel afirmar que eacute determiniacutestica e de sujeiccedilatildeo
e segundo se eacute possiacutevel transpor esta mesma ideia para a relaccedilatildeo dos indiviacuteduos
no meio social como sinocircnimo de normalidade
Em suas Novas reflexotildees sobre a ideia de adaptaccedilatildeo como sinocircnimo de
sauacutede Canguilhem diz que este conceito foi estendido a seu ver de modo
descabido da biologia mecanicista para a psicologia e a sociologia101 o que faz
com que deva ser utilizado do ponto de vista o mais criacutetico possiacutevel Isso porque a
101
Tambeacutem a sociologia tomando a ideia de doenccedila ou patologia social como sinal de uma adaptaccedilatildeo fracassada faz com que o normal social se traduza necessariamente como aderecircncia do grupo social agraves normas instituiacutedas garantidora de uma ordem ou estrutura social estaacutetica livre das crises revoluccedilotildees e conflitos de classe Le Blanc (2010b) esclarece que a genealogia do normal natildeo se limita para Canguilhem agrave medicina e agrave psicologia mas tambeacutem agrave sociologia Com efeito Canguilhem faz uma anaacutelise do pensamento de Durkheim em seu curso sobre as Regras do meacutetodo socioloacutegico e o reprova por transpor para a sociologia a tese da variaccedilatildeo quantitativa dos fenocircmenos normais e patoloacutegicos presente em Comte e Claude Bernard da ciecircncia fisioloacutegica para as ciecircncias humanas A seu ver Durkheim para elaborar uma ciecircncia do social capaz de identificar as ordens sociais normais e patoloacutegicas tambeacutem recorre a uma concepccedilatildeo de normalidade quantitativa a partir da qual o normal eacute o equivalente agrave meacutedia e o tipo social meacutedio o frequente Aleacutem da ideia abstrata de tipo meacutedio Canguilhem coloca em questatildeo a ideia de conservaccedilatildeo das estruturas sociais normais como um ideal Para ele natildeo haacute estaacutetica social que natildeo sob o fundo de uma dinacircmica social Isto eacute natildeo haacute na sociedade uma tendecircncia agrave conservaccedilatildeo de uma normalidade social pois esta concepccedilatildeo conservadora transforma as normas sociais em estruturas do social e apresenta uma noccedilatildeo de normal social como algo jaacute constituiacutedo um dado como se fosse possiacutevel definir uma noccedilatildeo de normalidade preacutevia agraves decisotildees normativas da proacutepria sociedade Sobre uma anaacutelise detalhada da criacutetica de Canguilhem ao pensamento socioloacutegico de Durkheim confira LE BLANC G Canguilhem et la vie humaine Op Cit
130
definiccedilatildeo psicossocial do normal a partir do adaptado implica uma concepccedilatildeo de
sociedade mecanizada na qual os indiviacuteduos estatildeo submetidos a seus
determinismos Por outro vieacutes sem precisar com isso ser considerado anarquista
ele acredita que definir a anormalidade a partir da inadaptaccedilatildeo social significa
tentar naturalizar uma atitude de subordinaccedilatildeo do indiviacuteduo em relaccedilatildeo a seu meio
social identificando como anormal qualquer atitude contestatoacuteria
ldquoDefinir a anormalidade a partir da inadaptaccedilatildeo social eacute aceitar mais ou menos a ideacuteia de que o indiviacuteduo deve aderir agrave maneira de ser de determinada sociedade e portanto adaptar-se a ela como a uma realidade que seria ao mesmo tempo um bemrdquo (NP 1990 p257)
Ora se a partir de sua biologia vitalista o organismo natildeo estaacute jogado em um meio
ao qual ele deve se dobrar analogamente quando nos referimos agrave condiccedilatildeo dos
indiviacuteduos no meio social esta tambeacutem natildeo deve ser de sujeiccedilatildeo ou passividade
Nesta mesma direccedilatildeo reflexiva interessado sobretudo nas apropriaccedilotildees
sociopoliacuteticas e econocircmicas desta teoria no artigo ldquoLe vivant et son milieurdquo da
coletacircnea La connaissance de la vie Canguilhem esclarece que a teoria
cartesiana da formaccedilatildeo das estruturas orgacircnicas antecede agrave explicaccedilatildeo
mecanicista dos movimentos do organismo no meio segundo a qual o meio do
comportamento coincide com o meio geograacutefico e este com o meio fiacutesico (cf CV
1985 p141) Como exemplo deste tratamento determinista ou mais precisamente
mecanicista das relaccedilotildees entre vivente e meio ele cita Jacques Loeb que
generalizando as conclusotildees de suas pesquisas sobre o fototropismo animal
considera que todo movimento dos organismos eacute forccedilado pelo meio e a atividade
reflexa como resposta a um estiacutemulo fiacutesico elementar eacute o modelo explicativo de
todas as condutas do vivente ldquoeste cartesianismo exorbitante eacute
incontestavelmente ao mesmo tempo que o darwinismo a origem dos postulados
da psicologia behavioristardquo (CV 1985 p140)
Com efeito Watson apresenta o objetivo programaacutetico da psicologia como a
pesquisa analiacutetica das condiccedilotildees de adaptaccedilatildeo do vivente ao meio pela produccedilatildeo
experimental das relaccedilotildees entre excitaccedilatildeo e resposta Considerando que o
131
determinismo das relaccedilotildees entre estiacutemulo e resposta eacute fiacutesico em sua teoria a
consciecircncia eacute simplesmente anulada ou abolida como ilusoacuteria O meio se encontra
investido de todos os poderes sua potecircncia domina e ateacute mesmo abole a
hereditariedade e a constituiccedilatildeo geneacutetica Sendo o meio um dado natildeo se espera
do organismo mais do que dele foi recebido ldquoa situaccedilatildeo do vivente seu ser no
mundo eacute uma condiccedilatildeo ou mais exatamente um condicionamentordquo (CV 1985
p140)
Acompanhando o trabalho de Friedmann102 sobre o maquinismo industrial
Canguilhem lembra que Albert Weiss tomando a biologia como uma fiacutesica
dedutiva propotildee uma teoria eletrocircnica do comportamento humano aperfeiccediloando
as teses da psicologia behaviorista em sua aplicaccedilatildeo na induacutestria Afirmando a
tese do condicionamento do vivente ao meio fiacutesico geral de acordo com Weiss
restaria apenas aos psicoteacutecnicos prolongar os estudos analiacuteticos das reaccedilotildees
humanas agraves teacutecnicas tayloristas de cronometragem dos movimentos tomando o
homem como uma maacutequina reagindo a outras maacutequinas neste caso num ldquonovo
meiordquo o do trabalho
No artigo ldquoMachine et organismerdquo Canguilhem novamente tambeacutem traz o
problema da apropriaccedilatildeo da filosofia mecanicista pelas teorias econocircmicas e
sociais capitalistas A questatildeo agora posta eacute se a teoria do animal-maacutequina ao
justificar a exploraccedilatildeo da natureza pelo homem e a utilizaccedilatildeo teacutecnica do animal
tambeacutem nos obriga a justificar a exploraccedilatildeo do homem pelo homem e seu uso
como instrumento de trabalho Neste contexto ele traz a concepccedilatildeo mecanicista
de universo da vida como uma Weltanschaung bourgeoise e novamente cita a
obra de Friedmann na qual mostra que eacute com Taylor e com os primeiros teacutecnicos
102
Georges Philippe Friedmann (1902-1977) eacute considerado um dos fundadores da sociologia do trabalho Em suas obras se destacam a criacutetica agrave organizaccedilatildeo cientiacutefica do trabalho (OCT) a consideraccedilatildeo do fator humano no processo produtivo a partir da anaacutelise da situaccedilatildeo dos trabalhadores submetidos ao trabalho fragmentado e repetitivo na sociedade industrial Foi um intelectual marxista proacuteximo do partido comunista e partiacutecipe da resistecircncia francesa Leitor de Leibniz Espinosa e Marx suas principais obras satildeo La Crise du Progregraves (1936) Problegravemes Humains du Machinisme Industriel (1946) Villes et Campagne Civilisation Urbaine et Civilisation Rurale en France (1953) Ougrave va le Travail Humain (1954) Problegravemes de lAmeacuterique Latine - Traiteacute de sociologie du travail (1962) Le Travail en Miettes Speacutecialisation et loisirs (1964) Fin du Peuple Juif (1966) Sept Eacutetudes sur lHommes et la Technique (1966) La Puissance et la Sagesse (1970) Villes et Campagnes (1971)
132
da racionalizaccedilatildeo dos movimentos que o organismo humano eacute alinhado ao
funcionamento das maacutequinas A racionalizaccedilatildeo no trabalho se traduziria entatildeo
por uma mecanizaccedilatildeo do organismo visando agrave eliminaccedilatildeo dos movimentos inuacuteteis
do ponto de vista do rendimento considerado como funccedilatildeo matemaacutetica de certo
nuacutemero de fatores (cf CV 1985 p126)
Em seu artigo Meio e normas do homem no trabalho Canguilhem elogia
Friedmann por pensar as questotildees da racionalizaccedilatildeo teacutecnica e do maquinismo por
diferentes pontos de vista mecacircnico bioloacutegico psicoloacutegico e socioloacutegico e por
fazecirc-lo com uma preocupaccedilatildeo eacutetica inscrita numa filosofia humanista Ele nota que
na obra Problegravemes humains du machinisme industriel (1946) sua intenccedilatildeo eacute
denunciar a ilusatildeo cientificista de deduzir todo progresso humano a partir do
conhecimento cientifico e a tecnicista de comandaacute-lo a partir do industrialismo Por
fim seu pensamento acaba por se configurar como uma etnografia social ou uma
etologia do homo faber nas sociedades modernas tecnicamente caracterizadas
pelo uso da eletricidade como forccedila motriz e economicamente pela tendecircncia
imperialista do capitalismo bancaacuterio
Segundo Canguilhem nesta obra Friedmann ultrapassa a atitude analiacutetica
e mecanicista no estudo do homem no trabalho e reconhecendo a originalidade
dos valores humanos - mas sem empunhar a bandeira espiritualista - deixa clara
sua preocupaccedilatildeo eacutetica de transformar efetivamente a condiccedilatildeo humana Por uma
perspectiva revolucionaacuteria entatildeo natildeo negando sua posiccedilatildeo poliacutetica de criacutetica agrave
estrutura econocircmica das sociedades capitalistas ele se empenha em mostrar as
insuficiecircncias metoacutedicas e doutrinaacuterias da racionalizaccedilatildeo em seu intento de tratar
o homem como seu objeto e da organizaccedilatildeo cientiacutefica do trabalho por concebecirc-lo
como uma maacutequina
Com efeito Friedmann parte do pressuposto de que o racionalismo
entendido como o privileacutegio de um meacutetodo de matematizaccedilatildeo da experiecircncia e
que a racionalizaccedilatildeo tal como a concebeu Taylor acabou por significar a
submissatildeo do homem agrave razatildeo e natildeo o reino da razatildeo no homem
133
ldquoE de fato deve se ao mesmo tempo para justificar o empreendimento do taylorismo conceber o homem como uma maacutequina a engatar corretamente com outras maacutequinas e como o ser vivo simplificado nos seus interesses e reaccedilotildees em consideraccedilatildeo com o meio ateacute natildeo conhecer outros estimulantes atrativos e repulsivos senatildeo lsquoo afago e o chicotersquo Aqui como acolaacute estaacute o absurdo do pleno poder da loacutegicardquo (MNHT 2001 p111)
De modo extensivo entendendo que eacute necessaacuterio pensar o trabalho em sua
forma contemporacircnea tanto nas sociedades capitalistas quanto nas socialistas
ele apresenta o sentido da racionalizaccedilatildeo para aleacutem da preocupaccedilatildeo teacutecnica
mostrando que ela natildeo pode ser vista apenas como um meio para o alcance de
determinados fins de uma empresa na medida em que fundamentalmente se
remete aos fins de uma sociedade econocircmica ldquoA racionalizaccedilatildeo cessa entatildeo de
aparecer como um absoluto teacutecnico Eacute preciso recolocaacute-la para dela compreender
o sentido no seu meio histoacuterico sua estrutura socialrdquo (MNHT 2001 p113)
Assim acreditando que a psicoteacutecnica e a organizaccedilatildeo cientiacutefica do
trabalho natildeo satildeo neutras e que natildeo haacute uma racionalizaccedilatildeo mas vaacuterias
racionalizaccedilotildees Friedman desloca sua discussatildeo sobre o estudo do homem no
trabalho para uma reflexatildeo sobre os fins de uma sociedade econocircmica e as
mudanccedilas que opera na natureza das coisas e do proacuteprio homem - mudanccedilas que
a seu ver pedem uma decisatildeo sobre princiacutepios e conduta poliacutetica a adotar pois
entre o maacuteximo de rendimento e de lucro e o optimum de desabrochamento das
potencialidades humanas eacute necessaacuterio escolher (cf MNHT 2001 p113)
Em resumo Friedmann procura desfazer a ilusatildeo tecnicista que consiste
em atrelar o homem agrave maacutequina e tratar um e outro sob um mesmo ponto de vista
estritamente meacutetrico e quantitativo Ainda apontar os limites de certa visatildeo
psicoteacutecnica que apesar de reconhecer no trabalho humano um fenocircmeno
orgacircnico e natildeo mecacircnico o reduz ao aspecto bioloacutegico e psicoloacutegico do fator
humano individual Ainda denunciar a estreiteza de visatildeo da psicossociologia da
empresa que substitui a consideraccedilatildeo das reaccedilotildees mentais do operaacuterio isolado
pela pesquisa das reaccedilotildees mentais do grupo operaacuterio nas relaccedilotildees industriais
mas que isola a empresa da estrutura social Com isso para Canguilhem ele toca
e nos faz tocar no acircmago socioloacutegico do problema das relaccedilotildees do homem no
134
trabalho a anaacutelise psicoteacutecnica do trabalho na linha de montagem mais do que um
fato teacutecnico eacute um fato psicoloacutegico e mais do que ambos um fato social (cf
MNHT 2001 p113)
Mas o que interessa aqui destacar eacute que a intenccedilatildeo de Canguilhem ao
estudar a obra de Friedmann expondo a criacutetica que faz agrave Taylor e agrave psicoteacutecnica
de C S Myers e E Mayo eacute pensar a relaccedilatildeo do homem com o meio e a questatildeo
das normas humanas
ldquoQueriacuteamos mais especialmente centrar o conjunto de outras consideraccedilotildees sobre a fisiologia do trabalho o ambiente do trabalho a adaptaccedilatildeo das maacutequinas ao homem as relaccedilotildees industriais em torno de duas questotildees mais amplas e segundo noacutes fundamentais a das relaccedilotildees do homem e do meio e a questatildeo da determinaccedilatildeo e da significaccedilatildeo das normas humanasrdquo (MNHT 2001 p114)
Abordando o problema das relaccedilotildees do homem com o meio social atraveacutes
da questatildeo da adaptaccedilatildeo do trabalhador a seu meio de trabalho ele contesta o
ponto de vista da psicologia da reaccedilatildeo ou do comportamento pela reduccedilatildeo que faz
do meio do trabalho ao meio fiacutesico e da condiccedilatildeo do trabalhador ao
condicionamento de um ser vivo no meio geograacutefico
ldquoDo ponto de vista do biologista ou do psicoacutelogo behaviorista este novo meio como o meio natural se decompotildee em uma soma de excitantes de natureza fiacutesica aos quais o ser vivo reage segundo mecanismos analiticamente desmontaacuteveis que a estrutura do organismo daacute a chaverdquo (MNHT 2001 p114)
Seguindo uma concepccedilatildeo mecanicista de fisiologia Taylor acreditava ser
possiacutevel assimilar o trabalho humano a um jogo de mecanismos inanimados fazer
com que os movimentos dos operaacuterios dependessem inteiramente e unicamente
do movimento da maacutequina regulada segundo as exigecircncias do maior rendimento
econocircmico Aleacutem disso da mesma forma que behavioristas como Watson e Albert
Weiss defendiam o poder determinante do meio ele tambeacutem julgava que o
operaacuterio em suas relaccedilotildees com o meio fiacutesico e social no interior da empresa
deveria reagir sem iniciativa pessoal a uma soma de estimulaccedilotildees movimentos
135
mecacircnicos e ordens hieraacuterquicas dos quais ele natildeo poderia escolher nem a
qualidade nem a intensidade nem a frequecircncia
Para contestar os exageros mecanicistas de Jacques Loeb e Watson
Canguilhem cita autores que mostram que o animal natildeo reage por uma soma de
reaccedilotildees moleculares a um meio que pode ser decomposto em elementos
excitantes mas reage a ele como um todo a um ambiente apreendido como um
complexo no qual os movimentos satildeo tomados como regulaccedilotildees para as
necessidades que os comandam e para as quais o uso dos sentidos eacute essencial
ldquoO meio soacute pode impor algum movimento a um organismo quando este organismo se propotildee primeiro ao meio conforme certas orientaccedilotildees proacuteprias Uma reaccedilatildeo imposta eacute uma reaccedilatildeo patoloacutegica Os psicoacutelogos da escola Gestalt (principalmente Koffka) dissociaram dois aspectos do meio o meio de comportamento eacute uma escolha operada pelo ser vivo no interior do meio fiacutesico ou geograacutefico Com Von Uexkuumlll e Goldstein os biologistas acabam de compreender que o proacuteprio do ser vivo eacute de criar o seu meiordquo (MNHT 2001 p116)
Ademais ao tratar tambeacutem do tema da significaccedilatildeo das normas humanas
Canguilhem nota que se a razatildeo eacute considerada a norma das normas eacute natural
que o conceito de normalizaccedilatildeo seja apresentado como sinocircnimo de
racionalizaccedilatildeo Eacute tambeacutem esperado que uma racionalizaccedilatildeo de inspiraccedilatildeo
cientificista procure determinar objetivamente atraveacutes de procedimentos
experimentais as normas de rendimento teacutecnico de modo a indicar para certo
trabalho o uacutenico e melhor meacutetodo a seguir the one best way (cf MNHT 2001
p117) Por este crivo os motivos da resistecircncia operaacuteria agrave racionalizaccedilatildeo satildeo
qualificados de irracionais isto eacute de anormais a questatildeo das aptidotildees individuais
e coletivas satildeo negligenciadas e todo operaacuterio que natildeo se dobra a norma
empresarial deve ser demitido
ldquoCertamente na condiccedilatildeo de mecanizar o homem e de mecanizar o tempo negligenciando sistematicamente o caraacuteter riacutetmico de atividade de um ser vivo qualquer pode-se estabelecer a norma de rendimento de um determinado operaacuterio pela medida do tempo miacutenimo praticado por diferentes operaacuterios para cada elemento de uma tarefa decomposta O inconveniente eacute esta norma natildeo ter nenhuma significaccedilatildeo concreta para um indiviacuteduo tomado em sua totalidade bio-psicoloacutegica de sua existecircnciardquo (MNHT 2001 p118)
136
Todavia Canguilhem mostra que o primeiro problema que aparece ao
tentarmos racionalizar o trabalho eacute o de escolher a norma que seraacute imposta como
norma geral ou meacutedia a todos os operaacuterios empregados em uma mesma tarefa
Pois assim como natildeo existe uma racionalizaccedilatildeo mas racionalizaccedilotildees natildeo haacute
uma norma mas normas referenciadas a pluralidade de valores dos quais nos
termos de Friedmann irrompe uma onda de realidades psiacutequicas morais e sociais
(cf MNHT 2001 p118)
Ele tambeacutem percebe que eacute a falta de significaccedilatildeo das normas no trabalho
que ao fim das contas gera as patologias relacionadas a ele As normas
capitalistas suplantando as normatividades individuais e tolhendo as
potencialidades humanas levam o operaacuterio agrave insatisfaccedilatildeo pelo esvaziamento do
sentido atribuiacutedo a seu trabalho Isso somado agrave monotonia da tarefa e ao incentivo
das relaccedilotildees competitivas entre os trabalhadores acaba por se transformar em
fonte de sofrimento Ou seja eacute o conjunto de fatores alienantes relacionados agrave
proacutepria estrutura organizacional da empresa a bem dizer associada ao modo de
produccedilatildeo capitalista o que torna o ambiente de trabalho adoecedor
Por isso na esteira de Friedmann Canguilhem considera as reaccedilotildees de
resistecircncia operaacuteria agrave mecanizaccedilatildeo taylorista como reaccedilotildees de defesa bioloacutegica e
tambeacutem social e ambas como sinocircnimo de sauacutede Atraveacutes delas o operaacuterio deixa
de se sentir objeto para se perceber sujeito em seu meio de trabalho o qual
modela a partir de suas proacuteprias normas O meio normal de trabalho enfim eacute
aquele que os operaacuterios instituem a partir de seus proacuteprios valores103 Destarte se
103
Nesta mesma direccedilatildeo Le Blanc (2010b) argumenta que eacute tendo em vista as dificuldades produzidas por uma compreensatildeo das alienaccedilotildees sociais que Canguilhem recorre a Friedmann para formular sua perspectiva social Para o autor de Problegravemes humains du machinisme industriel a loacutegica industriosa do capitalismo realizada no taylorismo submete os homens agraves normas e ao ritmo de trabalho Portanto a adaptaccedilatildeo do vivente ao trabalho exige sua adaptaccedilatildeo agraves maacutequinas e impotildee a ele uma forma econocircmica maior o liberalismo da sociedade industrial (cf LE BLANC 2010b p248) A importacircncia da anaacutelise de Friedmann para Canguilhem eacute apresentar a relaccedilatildeo do homem com o meio do trabalho natildeo em termos de determinaccedilatildeo mas de resistecircncia sobretudo de resistecircncia da subjetividade aos efeitos do trabalho e de sua dissoluccedilatildeo no meio socioeconocircmico Assim o termo resistecircncia assume uma significaccedilatildeo essencial na experiecircncia da subjetividade Ela natildeo se submete agraves normas teacutecnicas impostas pela racionalizaccedilatildeo econocircmica o que pode conduzir a uma nova revoluccedilatildeo nas relaccedilotildees do homem com a maacutequina Pois eacute a maacutequina agora que deve
137
Canguilhem se diferencia de Friedmann por defender o primado do vital sobre o
mecacircnico e dos valores sobre a vida e natildeo o primado do humano sobre o
mecacircnico e do social sobre o humano de modo mais fundamental uma mesma
ideia os une
ldquoA ilusatildeo capitalista estaacute em acreditar que as normas capitalistas satildeo definitivas e universais sem pensar que a normatividade natildeo pode ser um privileacutegio O que Friedmann chama de lsquoliberaccedilatildeo do potencial do indiviacuteduorsquo natildeo eacute outra coisa que esta normatividade que faz para o homem o sentido de sua vidardquo (MNHT 2001 p117)
Vemos assim que em seu artigo Meio e normas do homem no trabalho
atraveacutes da anaacutelise da obra de Friedmann Canguilhem faz uma criacutetica agrave
mecanizaccedilatildeo do trabalhador realizada pelo taylorismo agrave psicoteacutecnica e agrave
psicossociologia do trabalho em seu compromisso com o rendimento e lucro e natildeo
com o desenvolvimento do potencial dos trabalhadores Todavia na base de sua
criacutetica estaacute a reduccedilatildeo que a psicologia do comportamento faz do meio do trabalho
ao meio fiacutesico a qual o trabalhador deve necessariamente se adaptar meio este
supostamente separado do contexto social mais amplo mas que em verdade o
espelha e o sustenta Ou seja estaacute o seu embate com o behaviorismo visto por
ele como uma teacutecnica de submissatildeo e de adaptaccedilatildeo passiva dos indiviacuteduos ao
meio social
De modo mais incisivo em Qursquoest que la Psychologie e Le cerveau et la
penseacutee ele critica o behaviorismo seus pressupostos e apropriaccedilotildees pela
educaccedilatildeo economia e principalmente pela poliacutetica revelando seu uso para
identificaccedilatildeo de comportamentos opositivos normalizaccedilatildeo e controle do
pensamento e manutenccedilatildeo de toda sorte de sistemas poliacuteticos com destaque aos
conservadores e repressivos Se aproximando dos pensamentos de Espinosa e
Nietzsche e tambeacutem da perspectiva socialista libertaacuteria de Noam Chomsky ele
coloca em questatildeo a suposta unidade da psicologia e mostra como ela acabou
por se configurar como uma tecnologia do poder uma teacutecnica utilizada para
se adaptar agraves normas bioloacutegicas e psicoloacutegicas do homem e natildeo o contrario (cf LE BLANC 2010b p248) Op cit
138
normalizaccedilatildeo do pensamento e instrumentalizaccedilatildeo do homem isto eacute para sua
brutalizaccedilatildeo104
Com efeito nos seus Eacutetudes dacuteHistoire et de Philosophie des Sciences
Canguilhem diz o quatildeo embaraccedilosa aos psicoacutelogos eacute a pergunta Qursquoest que la
Psychologie porque ela remete agrave questatildeo sobre o que fazem e aonde querem
chegar fazendo o que fazem Ainda de saiacuteda questiona se a eficaacutecia da
psicologia se deve agrave aplicaccedilatildeo de uma ciecircncia como querem alguns ou ela eacute tatildeo
mal fundamentada que natildeo passaria de uma filosofia sem rigor uma eacutetica sem
exigecircncia e uma medicina sem controle por conjugar saberes advindos de
diferentes matrizes teoacutericas referenciais eacuteticos diversos sem a devida criacutetica (do
padre do educador do chefe do juiz etc) e por se voltar as trecircs classes de
doenccedilas mais ininteligiacuteveis e menos curaacuteveis as nervosas mentais e
dermatoloacutegicas
Entendendo que este questionamento natildeo eacute impertinente nem inuacutetil
Canguilhem pergunta se teria razatildeo Daniel Lagache ao afirmar que a unidade da
psicologia seria encontrada numa definiccedilatildeo possiacutevel de uma teoria geral da
conduta siacutentese da psicologia experimental da psicoacuteloga cliacutenica da psicanaacutelise
da psicologia social e da etnologia105 Contestando este ponto de vista ele vecirc
104
Braunstein (2004) esclarece que se nos escritos canguilhemianos a introspecccedilatildeo eacute criticada como filosofia da inaccedilatildeo o behaviorismo eacute criticado como filosofia da brutalizaccedilatildeo Esta hostilidade de Canguilhem em relaccedilatildeo agrave brutalizaccedilatildeo proacutepria agrave psicologia do comportamento pode ser atribuiacuteda agrave influecircncia de seus dois mestres Alain e Bergson Para Alain o psicoacutelogo eacute o ldquomestre da submissatildeordquo que imobiliza o espiacuterito e o impossibilita de agir Jaacute Bergson defende que a ciecircncia natildeo deve tratar o vivente como inerte sendo necessaacuterio evitar uma ldquofiacutesica do espiacuteritordquo Como a filosofia da vida mostra que o vivente cria suas proacuteprias normas e pode se opor ao meio a filosofia da accedilatildeo humana afirma que o vivente humano pode recusar o dado e impor suas proacuteprias normas no meio social No uacuteltimo periacuteodo de sua obra inspirado na terminologia de Foucault ele reformula sua criacutetica agrave brutalizaccedilatildeo e fala em serviccedilo dos saberes pelos poderes Os poderes estatildeo interessados em nosso poder de pensar eles visam agrave normalizaccedilatildeo do pensamento Daiacute a importacircncia central da criacutetica canguilhemiana agrave psicologia posto que ela assimilada ao behaviorismo define o vivente como o resultado necessaacuterio de um estiacutemulo vindo do meio ideia utilizada pelos poderes para realizar o controle social Por isso a psicologia eacute para ele a anti-filosofia por excelecircncia Cf BRAUNSTEIN J-F La critique canguilhemienne de la psychologie Estudos e Pesquisas em Psicologia UERJ RJ vol 4 ndeg 2 2004
105 De modo mais preciso Canguilhem acredita que Lagache se embaraccedila ao tentar unificar o
naturalismo da psicologia experimental e o humanismo da psicologia cliacutenica ateacute porque a primeira eacute caracterizada por seu meacutetodo e a segunda por seu objeto A seu ver esta fusatildeo mais parece um ldquopacto de coexistecircncia paciacuteficardquo no interior da psicologia do que uma real unificaccedilatildeo de seu domiacutenio ldquoA unidade da psicologia eacute aqui procurada em sua definiccedilatildeo possiacutevel como teoria geral da
139
nesta definiccedilatildeo mais um pacto de coexistecircncia paciacutefica que uma unidade Isso
porque se o estatuto de ciecircncia estaacute relacionado agrave clareza de seu objeto mas
ainda mais ao rigor de seu meacutetodo considerando que o objeto da psicologia eacute o
homem o problema estaria em saber se eacute possiacutevel encontrar uma unidade em
seu domiacutenio apesar de tal disparidade metodoloacutegica
Diante disso para saber se haveria de fato uma unidade de projeto na
psicologia ele se potildee a esboccedilar a histoacuteria de sua constituiccedilatildeo em sua relaccedilatildeo
com a histoacuteria das ciecircncias e da filosofia empreitada que a miscelacircnea atual de
disciplinas psicoloacutegicas justificaria No final desta tarefa o que ele encontra satildeo
trecircs diferentes entendimentos sobre a psicologia a saber como ciecircncia natural
como ciecircncia da subjetividade esta subdividida em fiacutesica do sentido externo
ciecircncia do sentido interno e ciecircncia do sentido iacutentimo e por fim como ciecircncia das
reaccedilotildees e do comportamento106 Ao analisar cada uma destas vertentes nota que
conduta siacutentese da psicologia experimental da psicologia cliacutenica da psicanaacutelise da psicologia social e da etnologia Mas quando se olha de perto podemos dizer que esta unidade parece mais um pacto de coexistecircncia paciacutefica acordado entre profissionais do que a uma essecircncia loacutegica obtida pela descoberta de uma constante numa variedade de casosrdquo (E 1989 p366) De acordo com Carol amp Plats (2008) Lagache defende uma psicologia que ele denomina de humanista baseada no modelo cliacutenico e que estuda o homem total e concreto na situaccedilatildeo Em nome da unidade da psicologia ele apresenta o meacutetodo cliacutenico e experimental como complementares poreacutem como bem expocircs Canguilhem havia bons motivos para pensar que sua intenccedilatildeo era meramente conciliatoacuteria motivada por questotildees poliacuteticas Como seu meacutetodo sofria oposiccedilatildeo por parte dos psiquiatras ele natildeo queria perder o apoio dos psicoacutelogos experimentalistas O exemplo da tentativa de unificaccedilatildeo das diferentes culturas da psicologia mostra o quanto questotildees poliacuteticas subjazem e interferem na escolha e elaboraccedilatildeo das teorias cientiacuteficas embora seus defensores aleguem autonomia imparcialidade e neutralidade Cf CARROY J PLAS R Reflexotildees histoacutericas sobre as culturas da psicologia [Trad Dener Luiacutes da Silva] Pesquisas e Praacuteticas psicossociais 3(1) Satildeo Joatildeo del-Rei ag 2008
106 Para traccedilar este percurso Canguilhem vai de Aristoacuteteles a Freud passando por Galeno
Descartes Wundt Woflf Maine de Biran Kant Pinel Royer-Collard Esquirol Ribot Janet e outros Ao estudar a psicologia como ciecircncia natural ele lembra que em seu Tratado Da alma Aristoacuteteles coloca o corpo natural e organizado que possui uma vida em potecircncia como objeto da fiacutesica e a alma como forma do corpo vivente e natildeo como substacircncia separada da mateacuteria Ao estudaacute-la como ciecircncia da subjetividade ele nota que a psicologia continua sendo uma fiacutesica mas natildeo no sentido dos antigos mas uma fiacutesica matemaacutetica de responsabilidade dos fiacutesicos mecanicistas do XVII Se a nova fiacutesica eacute um caacutelculo a psicologia tende a imitaacute-la Isto eacute se Descartes em suas Regras para a direccedilatildeo do espiacuterito propotildee a reduccedilatildeo das diferenccedilas qualitativas entre os dados sensoriais a uma diferenccedila geomeacutetrica a psicologia passa a ser uma fiacutesica matemaacutetica do sentido externo Jaacute como ciecircncia do sentido interno originada nas Meditaccedilotildees cartesianas identificada a uma ciecircncia da consciecircncia de si ela acabou por se constituir como uma psicologia racional fundada sobre a intuiccedilatildeo de um eu substancial Jaacute como ciecircncia do sentido iacutentimo ela se ancora no fato de que se ateacute aquele momento a relaccedilatildeo entre o psiacutequico e o fiacutesico havia sido formulada como somato-psiacutequica agora se converte em psico-somaacutetica dada a inversatildeo operada pela noccedilatildeo de inconsciente Assim se se identifica psiquismo e
140
enquanto nas duas primeiras eacute possiacutevel identificar certa ideia de homem como
alma ou sujeito forma natural ou consciecircncia de interioridade quando se estuda
os fundamentos da psicologia do comportamento a ideia que se extrai eacute a de
ferramenta Entatildeo pergunta
ldquoMas enfim qual o sentido deste instrumentalismo agrave segunda potecircncia O que empurra ou inclina os psicoacutelogos a converter-se entre os homens em instrumentos de uma ambiccedilatildeo de tratar o homem como instrumentordquo (E 1989 p378)
Com efeito ao relatar a histoacuteria da psicologia como ciecircncia das reaccedilotildees e
do comportamento Canguilhem apresenta as razotildees cientiacutefica teacutecnica e
econocircmica e poliacutetica de seu advento A primeira estaria relacionada agrave constituiccedilatildeo
de uma biologia como ciecircncia das relaccedilotildees entre organismos e meios e a
derrocada da ideia de existecircncia de um reino humano separado a segunda ao
desenvolvimento da sociedade industrial agrave atenccedilatildeo ao caraacuteter industrioso da
espeacutecie humana e ao fim da dignidade do pensamento especulativo e a terceira
estaria vinculada ao fim da crenccedila nos valores de privileacutegio social e na difusatildeo do
igualitarismo o que acarretou uma mudanccedila no papel do Estado frente agrave
sociedade e nas prerrogativas civis e militares A partir disso ele encontra a
origem da psicologia do comportamento ligada a um fenocircmeno proacuteprio das
sociedades modernas a peritagem entendida em um sentido amplo enquanto
determinaccedilatildeo das competecircncias e rastreio das simulaccedilotildees
Ainda ao investigar seus fundamentos teoacutericos percebe que dentre os
diferentes tipos de estudos psicoloacutegicos a psicologia do comportamento eacute a mais
incapaz de exibir com clareza seu projeto instaurador
consciecircncia recorrendo agrave autoridade de Descartes o inconsciente eacute de ordem fiacutesica Se se pensa que o psiacutequico pode ser inconsciente que ele natildeo eacute apenas o que estaacute escondido mas o que se esconde o que escondemos a psicologia passa a ser a natildeo apenas a ciecircncia da intimidade mas das ldquoprofundezas da almardquo Por fim no seacuteculo XIX ao lado da psicologia como patologia nervosa e mental como fiacutesica do sentido externo como ciecircncia do sentido interno e do sentido iacutentimo nasce uma psicologia que se quer uma ciecircncia objetiva das atitudes reaccedilotildees e comportamentos Eacute precisamente a esta que Canguilhem direciona sua maior criacutetica por estar desvinculada de qualquer filosofia ou ideia de homem isto eacute de uma antropologia (cf E 1989 p380)
141
ldquoSe entre os projetos instauradores de certos tipos anteriores de psicologia alguns podem passar por contrassensos filosoacuteficos aqui ao contraacuterio como toda relaccedilatildeo com uma teoria filosoacutefica estaacute refutada a questatildeo eacute a de saber de onde tal investigaccedilatildeo psicoloacutegica pode retirar seu sentidordquo (E 1989 p376-377)
Assim partindo da criacutetica nietzschiana agrave psicologia inglesa presente na
Genealogia da moral Canguilhem explica que se o utilitarismo implica a ideia de
utilidade para o homem o instrumentalismo traz a ideia de homem como meio de
utilidade Assim Nietzsche tem razatildeo ao dizer que os psicoacutelogos querem ser os
ldquoinstrumentos ingecircnuos e precisosrdquo do estudo do homem se esforccedilando para
chegar a um conhecimento objetivo e determiniacutestico dos seus comportamentos ndash
se natildeo mais o determinismo proacuteprio agrave fiacutesica newtoniana um determinismo
estatiacutestico assentado sobre os resultados da biometria
ldquoAs investigaccedilotildees sobre as leis de adaptaccedilatildeo e da aprendizagem sobre a relaccedilatildeo entre aprendizagem e aptidotildees sobre a detecccedilatildeo e a medida de aptidotildees sobre as condiccedilotildees de rendimento e da produtividade (quer se trate de indiviacuteduos ou de grupos) ndash pesquisas inseparaacuteveis de suas aplicaccedilotildees em seleccedilatildeo ou orientaccedilatildeo ndash admitem todas um postulado impliacutecito comum a natureza do homem eacute ser um instrumento sua vocaccedilatildeo eacute ser posto em seu lugar em sua tarefardquo (E 1989 p378)
Em resumo para Canguilhem o problema eacute que a psicologia da reaccedilatildeo e
do comportamento dos seacuteculos XIX e XX acreditou ser independente da filosofia
separando-se de toda especulaccedilatildeo sobre uma ideia de homem Os psicoacutelogos se
transformaram em uma elite coorporativa de especialistas investidos por eles
mesmos de sua proacutepria missatildeo de serem os managers das relaccedilotildees do homem
com o homem Alheios agraves condiccedilotildees histoacutericas e sociais em que satildeo chamados a
aplicar suas teacutecnicas a eles natildeo interessa saber qual seraacute a utilizaccedilatildeo de seus
relatoacuterios ou diagnoacutesticos natildeo sendo este assunto de psicoacutelogo
Sendo assim restaria ao homem submetido a uma prova de teste mostrar
repugnacircncia ao ser ldquotratado como insetordquo por algueacutem que se julga superior a ele
acreditando ter autoridade para lhe dizer quem ou o que eacute e o que deve fazer (cf
E 1989 p378) Mas ao filoacutesofo com certo cinismo caberia perguntar ao
psicoacutelogo a que tende a psicologia para saber o que ela eacute e como um conselho de
orientaccedilatildeo dizer a ele que quando se sai da Sorbonne pela rua Saint Jacques eacute
142
possiacutevel pegar dois caminhos um que leva ao Panteatildeo e outro agrave delegacia de
poliacutecia (cf E 1989 p381)
Em Le cerveau et la penseacutee ainda refletindo sobre os caminhos e
descaminhos trilhados pela psicologia Canguilhem destaca suas apropriaccedilotildees
poliacuteticas seu uso como teacutecnica de controle do pensamento Com efeito ele inicia
sua conferecircncia dizendo que haacute um nuacutemero cada vez maior de poderes
interessados em nossa faculdade de pensar e que este interesse natildeo eacute
puramente teoacuterico mas poliacutetico porque nele reside a intenccedilatildeo de fazer com que
pensemos como querem que pensemos Agora ao lado da referecircncia ao conluio
de certas empresas de informaacutetica como a IBM107 com o Terceiro Reich a
psicologia comportamental aparece como uma teacutecnica que objetiva em uacuteltima
anaacutelise a normalizaccedilatildeo do pensamento
Querendo evidenciar as apropriaccedilotildees sociais e poliacuteticas das teorias
cientiacuteficas ao inveacutes de situar a questatildeo ceacuterebro e pensamento na histoacuteria dos
seres vivos ele opta por inscrevecirc-la na histoacuteria da cultura iniciando seu exame
pelo seacuteculo XIX contexto do embate do positivismo com o espiritualismo atraveacutes
da teoria das localizaccedilotildees cerebrais Isto eacute ele escolhe iniciar sua reflexatildeo pela
anaacutelise da obra Anatomie et physiologie du systegraveme nerveux em geacuteneacuteral et du
cerveau em particulier (1810) na qual Gall em oposiccedilatildeo agrave teoria dos metafiacutesicos
espiritualistas da substancialidade ontoloacutegica da alma apresenta a ideia da
inerecircncia das qualidades morais e dos poderes intelectuais ao ceacuterebro isto eacute a
teoria dos hemisfeacuterios cerebrais como a sede da faculdades de pensar
Destacando tambeacutem a frenologia de Spurzheim e a de seus disciacutepulos nota
que antes dela acreditava-se que Descartes era pensador um autor responsaacutevel
por seu sistema filosoacutefico Agora ele eacute portador de um ceacuterebro pensante que
explica por sua configuraccedilatildeo tudo o que fez e pensou Na visatildeo frenoloacutegica
Descartes eacute portador de um ceacuterebro que pensa sob o nome de Reneacute Descartes e
107
Certamente Canguihem se refere ao apoio teconoloacutegico da IBM agrave Hitler no decorrer de boa parte da Segunda Guerra Atraveacutes de seus programas de identificaccedilatildeo catalogaccedilatildeo e seleccedilatildeo especialmente da tecnologia Hollerith de cartotildees perfurados a Alemanha nazista foi capaz de automatizar a perseguiccedilatildeo aos judeus e organizar o trabalho forccedilado nos campos de concentraccedilatildeo
143
o cogito natildeo eacute mais o efeito das faculdades intelectuais reflexivas mas da
faculdade que percebe as accedilotildees que estatildeo em noacutes
ldquoEm suma a partir da imagem do cracircnio de Descartes o saacutebio frenologista conclui que todo Descartes biografia e filosofia estaacute num ceacuterebro que eacute preciso dizer seu ceacuterebro o ceacuterebro de Descartes jaacute que conteacutem a faculdade de perceber as accedilotildees que estatildeo nelerdquo (CP 1993 p17)
Mas se o Ego pensante eacute uma ilusatildeo e se as expressotildees eu penso eu sinto natildeo
satildeo formas corretas de se expressar e que seria preciso dizer isso pensa em mim
isso sente em mim cabe perguntar como do eu penso pode advir o isso pensa
que o fisiologista indica e descreve como o ceacuterebro
Ele ainda lembra que a frenologia como uma cranioscopia baseada na
correspondecircncia entre o conteuacutedo e o continente entre a configuraccedilatildeo dos
hemisfeacuterios e a forma do cracircnio foi aplicada como instrumento para orientaccedilatildeo e
seleccedilatildeo profissional e ateacute mesmo para fins de escolha matrimonial Ela serviu
posteriormente como base para a elaboraccedilatildeo do primeiro mapa topograacutefico
cerebral convertido depois em teacutecnicas de psicocirurgia como a lobotomia
Destarte se ele escolhe iniciar sua anaacutelise pela teoria das localizaccedilotildees cerebrais e
da frenologia eacute porque Gall e Spurzheim natildeo deixaram de afirmar o alcance
praacutetico de suas teorias na aacuterea da pedagogia do rastreamento de atitudes na
identificaccedilatildeo de aptidotildees ndash chamada mais tarde de orientaccedilatildeo ndash da medicina e da
esfera da seguranccedila na prevenccedilatildeo da delinquecircncia
ldquoDestacamos novamente a rapidez com a qual o conhecimento suposto das funccedilotildees do ceacuterebro eacute investido em teacutecnicas de intervenccedilatildeo como si a teoria fosse congenitalmente suscitada por um interesse praacuteticordquo (CP 1993 p14)
Fazendo referecircncia agrave obra De lrsquointelligence de Hypollite Taine ele nota
tambeacutem que paralelamente ao desenvolvimento das pesquisas em neurologia
cerebral a psicologia animada por elas tornou-se natildeo mais do que uma sombra
da fisiologia ao tentar elucidar a partir das localizaccedilotildees cerebrais os processos
psiacutequicos como se as representaccedilotildees estivessem armazenadas nas ceacutelulas
144
nervosas108 Para contestar tal associaccedilatildeo Canguilhem cita Pierre Janet para
quem eacute um exagero vincular a psicologia ao estudo do ceacuterebro Isso porque o
pensamento natildeo eacute funccedilatildeo de nenhum oacutergatildeo em particular mas um processo de
conjunto do indiviacuteduo tomado como um todo
ldquoO que noacutes chamamos ideia de fenocircmenos da psicologia eacute um comportamento de conjunto de todo indiviacuteduo tomado em seu conjunto Noacutes pensamos com nossas matildeos assim como com nosso ceacuterebro noacutes pensamos com nosso estocircmago noacutes pensamos como um todo Natildeo eacute necessaacuterio separar um do outro A psicologia eacute a ciecircncia do homem inteiro natildeo uma ciecircncia do ceacuterebro Esse eacute um erro psicoloacutegico que tem feito muito mal durante muito tempordquo (CP 1993 p15-16)
Tambeacutem porque o autor de La penseacutee inteacuterieure et ses troubles esclarece que o
conceito de alienaccedilatildeo mental natildeo eacute primeiramente um termo psicoloacutegico mas
antes de tudo uma categoria utilizada pela poliacutecia ldquoA palavra louco eacute portanto um
termo policialrdquo (CP 1993 p16) Por isso para ele a posiccedilatildeo de Janet em mateacuteria
de patogenia e terapecircutica eacute tatildeo contestadora quanto a de um adepto da
antipsiquiatria pois quando deixamos de acreditar no reducionismo do psiacutequico ao
aparelho neurocerebral nos tornamos tatildeo ceacuteticos quanto eles em relaccedilatildeo agrave
eficiecircncia de um internamento quase carceraacuterio daqueles categorizados
socialmente como loucos
A partir do questionamento sobre o que eacute pensar entatildeo Canguilhem reflete
sobre a possibilidade de que ele seja identificado agrave funccedilatildeo de ceacuterebro anaacutelogo a
um computador Ele explica que a metaacutefora do ceacuterebro computador se justificaria
na medida em que se entende como pensamento as operaccedilotildees da loacutegica o
caacutelculo o raciociacutenio ldquoRazatildeo ratio deriva etimologicamente de reor calcularrdquo (CP
1993 p18) No entanto isso natildeo excluiria a necessidade de uma motivaccedilatildeo
preacutevia para o pensar e natildeo explicaria a capacidade reflexiva do pensamento de
108
Ironicamente sobre os primoacuterdios da psicologia cientiacutefica Politzer comenta que eacute na tentativa de criaccedilatildeo de uma psicologia ldquosem almardquo que comeccedila a migraccedilatildeo dos aparelhos dos laboratoacuterios de fisiologia para os de psicologia ldquoQuanto orgulho Quanta alegria Os psicoacutelogos tecircm laboratoacuterios e publicam monografias Acabam-se as disputas verbais calculemos Puxam-se os logaritmos pelo cabelo e Ribot calcula o nuacutemero de ceacutelulas cerebrais para saber se podem abrigar todas as ideacuteias Nasce a psicologia cientiacuteficardquo (POLITZER 1998 p38) Cf POLITZER G Criacutetica dos fundamentos da psicologia a psicologia e a psicanaacutelise Op cit
145
voltar-se para si mesmo Assim natildeo sem ironia ele problematiza Considerando
que o homem eacute um inventor de maacutequinas de onde viria sua motivaccedilatildeo para
construir outra maacutequina Seria o computador cerebral capaz de entender a si
proacuteprio de refletir sobre sua proacutepria natureza Poderia ele escrever sua
autobiografia na falta de sua autocriacutetica
Acreditando que a analogia entre o ceacuterebro e uma maacutequina
computadorizada eacute enganosa Canguilhem contesta o uso do modelo maquinal
para explicaacute-lo e o uso da linguagem da informaacutetica para elucidar seu
funcionamento (recepccedilatildeo de estiacutemulos transmissatildeo e desvio de sinais
elaboraccedilatildeo de respostas e registro de operaccedilotildees) Ainda recusando a associaccedilatildeo
do ceacuterebro ao pensamento ele elogia bioacutelogos como Franccedilois Jacob e Michel
Jouvet reticentes em deduzir a consciecircncia de uma ciecircncia do ceacuterebro isto eacute de
uma neurociecircncia
Mas mais do que defender a impossibilidade de traduccedilatildeo dos processos da
consciecircncia em termos neurobioloacutegicos de modo fundamental o que Canguilhem
quer desvendar eacute o interesse que estaacute por traacutes da metaacutefora da assimilaccedilatildeo do
ceacuterebro a um computador o porquecirc a ideia de maquinaria eletrocircnica do
pensamento tem sido habilmente transformada em lugar comum publicitaacuterio no
estaacutegio industrial da informaacutetica
ldquoComo poderiacuteamos estar contra um computador se nosso ceacuterebro eacute ele mesmo um computador O computador em sua proacutepria casa Por que natildeo se jaacute temos um computador em cada um de noacutes Um modelo de pesquisa cientiacutefica foi convertido em maacutequina de propaganda ideoloacutegica com dois fins prevenir ou desarmar a oposiccedilatildeo a um meio de regulaccedilatildeo automatizada das relaccedilotildees sociais dissimular a presenccedila de tomadores de decisatildeo que estatildeo por traacutes do anonimato de uma maacutequinardquo (CP 1993 p21)
Para desconstruir entatildeo a ideia de assimilaccedilatildeo possiacutevel do ceacuterebro a uma
maacutequina em uacuteltima anaacutelise para fazer frente aos fins relacionados a seu uso
ideoloacutegico ele recorre agrave capacidade criadora inventiva do pensamento Afirma
que pensar envolve criaccedilatildeo e a maquinaria cerebral estaacute limitada a relacionar
146
dados sob a limitaccedilatildeo de um programa ldquoInventar eacute criar informaccedilatildeo Perturbar
haacutebitos do pensamento o estado estacionaacuterio de um saberrdquo (CP 1993 p21)
Ele argumenta que se fosse possiacutevel assimilar o ceacuterebro a uma maacutequina
eletrocircnica seria tambeacutem possiacutevel entender atraveacutes de uma explicaccedilatildeo fiacutesico-
quiacutemica como o ceacuterebro eacute capaz de inventar o que natildeo ocorre Embora natildeo
negue o benefiacutecio real que certas drogas psicotroacutepicas tecircm oferecido a indiviacuteduos
com certas doenccedilas mentais como a esquizofrenia ou nervosas como a doenccedila
de Parkinson julga que apesar da existecircncia de efeitos felizes dos mediadores
quiacutemicos das perspectivas abertas por certas descobertas da
neuroendocrinologia natildeo parece ter chegado o tempo de acreditar do mesmo
modo que Cabanis que o ceacuterebro vai secretar pensamento assim como o fiacutegado
secreta a biacutelis (cf CP 1993 p23)109
Eacute precisamente no contexto desta discussatildeo que Canguilhem coloca em
questatildeo a psicologia entendida como estudo do comportamento se eacute que ainda
ela pode ser chamada de psicologia Isso porque ela exclui qualquer referecircncia ao
pensamento e agrave consciecircncia interessando-se pelo ceacuterebro apenas como uma
ldquocaixa pretardquo onde apenas as entradas e saiacutedas satildeo levadas em conta Mais do
que isso porque em suas teacutecnicas de condicionamento ela se utiliza de
dispositivos de aprendizagem baseados no estiacutemulo-resposta erro-castigo
correccedilatildeo-recompensa O problema eacute que seja no condicionamento pavloviano
109
Varela (1993) focando o problema da relaccedilatildeo entre a neurociecircncia e a psicologia apresenta brevemente como se deu o desenvolvimento das pesquisas sobre o ceacuterebro dos anos 70 ateacute as mais recentes e como hoje se pensa o mental como uma propriedade emergente das propriedades cognitivas Acreditando que a aproximaccedilatildeo entre o pensamento e as propriedades cognitivas mais gerais natildeo eacute quimeacuterica mas a origem de um programa construtivo ele coloca entatildeo a questatildeo se as ideias de Canguilhem natildeo estariam hoje caducas diante do programa cognitivista computacional Agora o problema do paradoxo da reflexividade colocado por Canguilhem ndash como pode o ceacuterebro escrever sua proacutepria teoria ndash este quebra-cabeccedilas da relaccedilatildeo entre a emergecircncia do pensamento a partir de agentes cognitivos mais simples e a experiecircncia do ponto de vista do sujeito ele mesmo seu mundo vivido isto eacute da exterioridade do mecanismo com a interioridade da experiecircncia vivida eacute ainda uma questatildeo controversa que vai alimentar os debates da proacutexima deacutecada Ele concorda com a atitude de Canguilhem de natildeo cair na tentaccedilatildeo do reducionismo mecanicista dos fisicalistas fisicalizantes mas tambeacutem natildeo quer resvalar na completa inacessibilidade do ponto de vista dos psicanalistas psicanalizantes A seu ver os filoacutesofos deveriam dialogar com os cientistas para natildeo caiacuterem nem no reducionismo nem na inefabilidade achando outra via entendida por ele como um caminho meacutedio mais satisfatoacuterio Cf VARELA FJ ldquoLe cerveau et la penseacuteerdquo In BADIOU A (et al) Georges Canguilhem Philosophe historien des sciences Actes du colloque (6 7 8 deacutecembre 1990) Paris Albin Michel 1993
147
seja no skinneriano ou instrumental em ambos os casos haacute uma confusatildeo entre
aprendizagem e condicionamento e uma extrapolaccedilatildeo indevida dos resultados
obtidos por experimentaccedilatildeo com outros animais para o homem aleacutem da
identificaccedilatildeo do meio controlado ao meio social
Segundo Canguilhem o uso destas teacutecnicas de orientaccedilatildeo ou
direcionamento dos indiviacuteduos no meio social o condicionamento de seu
comportamento atraveacutes de uma distribuiccedilatildeo manifesta ou velada de recompensas
tem servido como meio de conservaccedilatildeo de diferentes tipos de estruturas
sociopoliacuteticas110 estando certos aqueles que notando seu uso generalizado
dizem que condicionamento e descondicionamento lavagem cerebral e camisa-
de-forccedila quiacutemica natildeo satildeo privileacutegio de paiacutes nenhum (cf CP 1993 p25)
Acreditando que numa sociedade repressora ou conservadora a equaccedilatildeo
pensamento = ceacuterebro tem servido de base para as teacutecnicas de normalizaccedilatildeo de
conduta ele concorda com Chomsky111 quando afirma que a crenccedila de que o
espiacuterito humano eacute vazio fornece uma justificativa para toda sorte de sistemas
110
Com efeito como mostra Le Blanc (2010b) para Canguilhem a psicologia constituiacuteda a partir da biologia do comportamento longe de aceder a um valor cientiacutefico real eacute investida de dispositivos econocircmicos e poliacuteticos ocupando um lugar especial na estrateacutegia liberal Ela faz a instrumentalizaccedilatildeo do homem adaptando-o a uma nova sociedade na qual o valor maior eacute o rendimento a utilidade e a eficaacutecia Como praacutetica de medida da capacidade adaptativa do homem ela natildeo eacute mais um conhecimento do homem mas uma praacutetica destinada a fazecirc-lo instrumento utensiacutelio de um corpo poliacutetico que luta por sua manutenccedilatildeo Ela eacute entatildeo uma disciplina do homem uma praacutetica de controle com vistas a uma melhor integraccedilatildeo social ldquoa normalidade eacute o efeito da praacutetica disciplinar a serviccedilo das normas sociaisrdquo (LE BLANC 2010b p162-163) Ou seja a psicologia instrumental de orientaccedilatildeo adaptativa eacute uma praacutetica disciplinar voltada para a melhor inserccedilatildeo possiacutevel do homem na sociedade moderna o que a faz uma teacutecnica normalizadora uma praacutetica de seleccedilatildeo social uma poliacutecia do espiacuterito (cf LE BLANC 2010b p166-168) Cf LE BLANC G Canguilhem et la vie humaine Op Cit
111 Canguilhem acompanha Chomsky em sua criacutetica ao behaviorismo mas natildeo deixa de
apresentar as implicaccedilotildees do inatismo linguiacutestico Chomsky acredita que a competecircncia linguumliacutestica estaacute relacionada com a determinaccedilatildeo geneacutetica das capacidades cerebrais Por isso ele concorda com Descartes e Leibniz filoacutesofos que defenderam o inatismo dos princiacutepios racionais Atraveacutes disso Chomsky quer fazer oposiccedilatildeo agrave Skinner natildeo soacute agrave teoria exposta na obra Verbal Behavior mas as suas teses poliacuteticas expostas em Beyond Freedom and Dignity No entanto como salientam seus opositores o inatismo do poder intelectual defendido por Chomsky pode se transformar num argumento em favor do elitismo servindo de justificativa das relaccedilotildees sociais desiguais De acordo com Canguilhem a questatildeo colocada no contexto de embate entre o empirismo e o inatismo eacute que se a teoria da disposiccedilatildeo inicial para aprender deve ser associada a uma programaccedilatildeo geneacutetica deveriam ser tambeacutem os fundamentos da poliacutetica procurados nos ceacuterebros Ou seja o problema aqui posto eacute o da possibilidade de escaparmos ao determinismo das capacidades e disposiccedilotildees humanas tanto do a priori da determinaccedilatildeo geneacutetica quanto do a posteriori da determinaccedilatildeo pelo meio social
148
autoritaacuterios e que isso desenvolvido ao extremo ndash como foi em Skinner - acabaria
numa espeacutecie de esquema fascista
Fazendo oposiccedilatildeo agrave ideia de meio social mecanizado ele entende que o
essencial do meio social eacute ser um sistema de significaccedilotildees e que natildeo podemos
admitir que a aprendizagem e o sentido atribuiacutedo pelos homens agraves coisas e aos
outros seja o resultado de um simples adestramento por condicionamento
Refletindo sobre a relaccedilatildeo ceacuterebro-pensamento-linguagem diz que a
aprendizagem da linguagem natildeo se daacute por um condicionamento que desemboca
num viacutenculo duraacutevel entre um significante um significado e um referente A
linguagem humana eacute essencialmente uma funccedilatildeo semacircntica cujas explicaccedilotildees do
tipo fisicalista nunca chegaram a dar conta Pois o sentido natildeo eacute uma relaccedilatildeo
entre mas uma relaccedilatildeo com ldquoEis porque ele escapa a qualquer reduccedilatildeo que tente
aprisionaacute-lo numa configuraccedilatildeo orgacircnica ou mecacircnicardquo (CP 1993 p27)
Em suma a linguagem remete a um pensar e na experiecircncia do
pensamento cada palavra ou discurso tem uma cor simboacutelica diferente Eacute o
homem que atribui sentido a seu proacuteprio mundo e a relaccedilatildeo de sentido na
linguagem natildeo se reduz a uma relaccedilatildeo fiacutesica ou a sistemas de elementos no
ceacuterebro do locutor e de seu interlocutor Eacute preciso levar em conta os desvios e
entorses de sentido nesta relaccedilatildeo O homem pode brincar com o sentido desviaacute-
lo simulaacute-lo mentir criar armadilhas Como disse Michel Jouvet ldquouma maacutequina
natildeo pode enganar nem tampouco se enganar Em outras palavras uma maacutequina
natildeo eacute capaz de maquinaccedilotildeesrdquo (CP 1993 p33)
Assim o Eu aparece na filosofia em decorrecircncia do fato de que o mundo eacute
nosso proacuteprio mundo Mas este Eu natildeo eacute o psicoloacutegico correlato agrave ilusatildeo de uma
interioridade psiacutequica ndash jaacute que do ponto de vista filosoacutefico natildeo haacute contradiccedilatildeo em
reconhecer uma subjetividade sem interioridade Eacute um Eu que podemos chamar
de concreto que estaacute no mundo numa situaccedilatildeo de presenccedila-observaccedilatildeo
reivindicada pelo seu pensamento
149
ldquoPensar eacute o exerciacutecio do homem que exige a consciecircncia de si na presenccedila ao mundo natildeo como representaccedilatildeo do sujeito Eu mas como sua reivindicaccedilatildeo pois essa presenccedila eacute vigilacircncia e mais exatamente observaccedilatildeordquo (CP 1993 p29)
Segundo Canguilhem eacute na filosofia de Espinosa que a funccedilatildeo subjetiva da
presenccedila-observaccedilatildeo eacute mais manifesta assim como a defesa da liberdade de
pensar Porque o Eu espinosano eacute um Eu que reivindica diante do poder do
soberano de regular tudo o que diz respeito aos cidadatildeos o direito de cada um
pensar o que quer e dizer o que pensa Se Descartes se defendeu da acusaccedilatildeo
de criacutetico poliacutetico dizendo apenas querer reformar seus proacuteprios pensamentos e
procurou se afastar de indiviacuteduos com ldquohumor confuso e inquietordquo e com tendecircncia
agrave oposiccedilatildeo Espinosa natildeo hesitou em tomar posiccedilatildeo e insurgir-se contra o que
chama de uacuteltimos baacuterbaros
ldquoEm suma esta filosofia que refuta e recusa os fundamentos da filosofia cartesiana o cogito a liberdade em Deus e no homem esta filosofia sem sujeito muitas vezes assimilada a um sistema materialista esta filosofia vivida por um filoacutesofo que pensou e imprimiu em seu autor a forccedila necessaacuteria para se insurgir contra o fato consumado A filosofia deve dar conta de tal forccedilardquo (CP 1993 p30-31)
Destarte se a atitude de Espinosa de sair de sua casa apoacutes o assassinato de seu
amigo republicano por orangistas e de pregar cartazes com as palavras ultimi
barbarorum nas paredes da cidade estaacute em conformidade com sua filosofia da natildeo
submissatildeo a de Descartes de se afastar dos espiacuteritos que tendem agrave oposiccedilatildeo
tambeacutem estaacute
A seu ver a filosofia de Espinosa nos convida a sair de nossa reserva e a
se opor a toda intervenccedilatildeo em nosso ceacuterebro ndash entendido como o regulador vivo
de nossas accedilotildees no mundo e na sociedade - que tenha por objetivo nos privar de
nossos gestos de engajamento A partir dela sentimos a necessidade de sairmos
de uma posiccedilatildeo de conformismo ante uma realidade determinada que se coloca
como fato consumado e transformaacute-la
Assim na vereda espinosana Canguilhem acredita que a filosofia natildeo pode
deixar de erguer-se contra uma psicologia que se quer objetiva instruindo outras
150
ciecircncias sobre nossas funccedilotildees intelectuais e dispondo suas aquisiccedilotildees teoacutericas
para serem exploradas pela pedagogia pela economia e finalmente pela
poliacutetica112 Quanto agrave filosofia sua funccedilatildeo natildeo eacute aumentar o rendimento do
pensamento mas lembrar-lhe do sentido de seu poder
ldquoAtribuir agrave filosofia a tarefa especiacutefica de defender o Eu como reivindicaccedilatildeo inalienaacutevel da presenccedila-observaccedilatildeo eacute reconhecer que ela natildeo tem outro papel senatildeo o da criacutetica Aleacutem disso esta tarefa de negaccedilatildeo natildeo eacute negativa pois a defesa de uma reserva eacute a preservaccedilatildeo das condiccedilotildees de possibilidade de saiacutedardquo (CP 1993 p31)
Portanto como Politzer apostando numa subjetividade sem interioridade113
Canguilhem apresenta uma psicologia filosoacutefica que defende a ideia de um Eu
concreto material que valora e cria suas proacuteprias normas mas que natildeo se
identifica nem a uma substacircncia pensante nem ao ceacuterebro114 Sobre este embora
112
Segundo Braunstein (2004) Canguilhem quer elaborar uma teoria da subjetividade sem cogito e para ele Espinosa eacute a prova viva de que uma filosofia com este caraacuteter natildeo conduz agrave inaccedilatildeo ou ao fatalismo Enquanto Descartes filoacutesofo do cogito pede prudecircncia em poliacutetica Espinosa se coloca publicamente em defesa da liberdade do pensamento Assim o que Canguilhem chama de psicologismo eacute um uso exorbitante do cogito que pode conduzir agrave aceitaccedilatildeo e agrave submissatildeo Por isso Canguilhem insiste na inspiraccedilatildeo espinosista de Cavaillegraves e persiste em compreender seu ldquoestilo singular de accedilatildeo de resistecircnciardquo Ele eacute um filoacutesofo da accedilatildeo sem cogito Canguilhem ainda denuncia o sociologismo dos socioacutelogos puros (Comte Marx e Durkheim) que pretendem se mover no mundo dos fatos se esquecendo da significaccedilatildeo dos valores e que caem na tentaccedilatildeo de tratar o homem como um mecanismo que pode ser dominado do exterior no momento em que se conhece suas leis Mas se Canguilhem salva alguns socioacutelogos como Baugleacute e Halbwachs eacute difiacutecil citar um psicoacutelogo que para ele natildeo caia em um psicologismo Cf BRAUNSTEIN J-F La critique canguilhemienne de la psychologie Estudos e Pesquisas em Psicologia UERJ RJ vol 4 ndeg 2 2004
113 Ainda segundo Braunstein (2007) por ser a teoria da subjetividade de Canguilhem baseada
numa filosofia sem sujeito e sem cogito ele aplaude a criacutetica severa que Politzer desenvolve agrave tese da vida interior Ele destaca a influecircncia da psicologia concreta de Politzer para o pensamento canguilhemiano embora note que Canguilhem natildeo foi tatildeo generoso com Watson como foram Politzer e mesmo Foucault por ter ele colocado em questatildeo a ldquoilusatildeo da subjetividaderdquo (cf Braunstein 2007 p71) Cf BRAUNSTEIN J-F Psychologie et milieu Eacutethique et histoire des sciences chez Georges Canguilhem In BRAUNSTEIN J-F (org) Histoire des sciences et politique du vivant Paris Presses Universitaires de France ndash PUF 2007
114 Como mostra Le Blanc (2010b) Canguilhem entende que uma psicologia somente eacute possiacutevel
na medida em que integrada a uma antropologia quer dizer a uma filosofia Uma psicologia antropoloacutegica ou filosoacutefica se opotildee a uma psicologia instrumental entendida como ficccedilatildeo filosoacutefica falsificaccedilatildeo eacutetica e uma perversatildeo da medicina Ele entende que a psicologia eacute um exerciacutecio de compreensatildeo dos valores humanos Assim ao inveacutes de se desligar da filosofia ela deveria se colocar ao lado dos valores espontacircneos e muacuteltiplos do vivente humano da pluralidade das normas elaboradas pelas diferentes subjetividades Por isso no capiacutetulo ldquoLogique et psychologierdquo do curso Les normes et le normal (1942-1943) ele defende uma psicologia compreensiva da toleracircncia Afirma que toda psicologia eacute no fundo compreensatildeo das normas mas compreensatildeo
151
possa tecirc-lo como um regulador da atividade pensante corpoacuterea acredita que ele
natildeo seja a sede do pensamento como querem os neurofisiologistas nem anaacutelogo
ao computador como desejam alguns neurocientistas
Sua psicologia parte de uma concepccedilatildeo de pensar como atividade natildeo
controlaacutevel porque espontacircnea e inventiva capaz de realizar subversotildees
normativas Subversotildees das quais a loucura eacute o melhor testemunho pois
evidencia a possibilidade da desordem Daiacute o temor da desrazatildeo por parte dos
poderes sociopoliacuteticos instituiacutedos e a necessidade de confinamento do louco no
Hospital psiquiaacutetrico e sua normalizaccedilatildeo isso eacute sua reidentificaccedilatildeo ao tipo social
normal a ser obtida atraveacutes das praacuteticas meacutedico-psicoloacutegicas
Natildeo obstante malgrado os dispositivos meacutedico-psiquiaacutetricos e psicoloacutegicos
o poder natildeo tem total gerecircncia sobre o pensamento porque a ele eacute sempre
possiacutevel subverter a ordem mental instituiacuteda pois haacute uma potecircncia poliacutetica
revolucionaacuteria interna imanente proacutepria agrave vida Isso quer dizer que a potecircncia
(potentia) nunca se submete integralmente ao poder (potestas) Revoluccedilotildees satildeo
possiacuteveis bioloacutegicas psicoloacutegicas e sociais entendidas como uma subversatildeo
uma transformaccedilatildeo radical da ordem instituiacuteda Agraves vezes para garantirmos a
sauacutede bioloacutegica existencial e social eacute preciso operar revoluccedilotildees em noacutes e nos
meios em que vivemos
Assim entendemos que atraveacutes de seu pensamento meacutedico-filosoacutefico
Canguilhem quer se opor agraves tentativas de transformaccedilatildeo do meio social em meio
controlado de identificaccedilatildeo da sauacutede agrave adaptaccedilatildeo passiva agraves normas sociais
preestabelecidas e agraves praacuteticas meacutedico-psicoloacutegicas que buscam transformar os
indiviacuteduos no homem meacutedio normal mediocrizado muito aqueacutem de suas
potencialidades reativas e normativas Por isso de Friedmann ele elogia a recusa
da identificaccedilatildeo do meio social ao meio fiacutesico e dele extrai um entendimento de
sauacutede como liberaccedilatildeo da potecircncia de resistecircncia e de reaccedilatildeo dos trabalhadores
tolerante e concreta do conflito espontacircneo das normas Ela eacute entatildeo descritiva pois daacute conta dos conflitos no jogo das normas produzidas pelo homem e natildeo prescritiva reduzindo o jogo das normas a uma uacutenica norma (cf LE BLANC 2010b p154) Op cit
152
agraves condiccedilotildees opressivas do meio do trabalho reprodutor das relaccedilotildees do meio
social mais amplo
Com Foucault ele compartilha a criacutetica agrave psicologia do comportamento
como poliacutecia dos anormais e agrave medicina social higienista como dispositivo de
controle da sauacutede das populaccedilotildees e de normalizaccedilatildeo da vida cotidiana115 Dele
ainda toma a criacutetica ao Hospital psiquiaacutetrico como dispositivo de normalizaccedilatildeo dos
loucos de adaptaccedilatildeo por correccedilatildeo comportamental quando possiacutevel e quando
natildeo de exclusatildeo definitiva dos desviantes do meio social com vistas agrave defesa da
ordem social instituiacuteda
Jaacute para se opor agrave psicologia do comportamento aliada agrave neurociecircncia e agrave
psiquiatria bioloacutegica pautadas na ideia de identificaccedilatildeo do pensamento ao ceacuterebro
e deste a um computador mero receptor e organizador de dados eacute agrave Espinosa
que ele recorre pois nele encontra uma criacutetica ao cogito cartesiano e uma
115
Satildeo tantas as interlocuccedilotildees entre Canguilhem e Foucault que as aproximaccedilotildees entre seus pensamentos tecircm sido foco de estudo de vaacuterios autores Interessado nos pontos de convergecircncia mas tambeacutem de divergecircncia existentes entre eles Le Blanc (2010b) nota que Foucault natildeo acredita ser mais possiacutevel se reportar agrave vida sem considerar a sua apropriaccedilatildeo epistemoloacutegica e poliacutetica Isso porque estamos sempre submetidos aos dispositivos de poder e agraves ordens de discurso particulares configurados por uma episteme subjacente As normas sociais assim compreendidas mecanizam o sistema social impossibilitando o indiviacuteduo de escapar dos processos normalizadores Jaacute Canguilhem atribui a todas atividades humanas uma vivacidade proacutepria que natildeo pode ser integralmente capturada pelos dispositivos sociais existindo sempre uma possibilidade de resistecircncia e de sublevaccedilatildeo de escape agraves normas sociais impostas e aos efeitos do poder ldquoA invenccedilatildeo natildeo eacute para Foucault um dado da vida ordinaacuteria A renovaccedilatildeo das normas a capacidade de todo homem lsquodestruir normas e instituir novasrsquo natildeo se vecirc em Foucault salvo em raras experiecircncias histoacutericas de elevaccedilatildeo () A filosofia da vida ordinaacuteria de Canguilhem culmina numa normatividade de erracircncia absoluta A vida por sua erracircncia conquista a possibilidade de fazer acontecer outras normas A vida social natildeo estaacute definitivamente fechadardquo (LE BLANC 2010b p283-284) Em outro escrito Le Blanc (2010a) afirma que a sociedade disciplinar moderna eacute definida por Foucault como uma sociedade das normas Elas passam pelos corpos e pelos espiacuteritos natildeo havendo como escapar deste jogo normativo O indiviacuteduo jamais se libera das normas Jaacute para Canguilhem a mecanizaccedilatildeo da vida social cria e fixa margens mas haacute zonas de vida na qual o sujeito cria suas proacuteprias normas Existe entatildeo ao lado da normatividade vital uma normatividade que consiste na livre confrontaccedilatildeo entre as normas sociais jaacute existentes e as normas valorizadas individualizadas do sujeito social Haacute portanto no sujeito simultaneamente o assujeitamento agraves normas jaacute sedimentadas e a subjetivaccedilatildeo destas mesmas normas (cf LE BLANC 2010a p 86) Ou seja as normas sociais natildeo escapam agrave loacutegica criadora do vivente Vemos entatildeo que o problema eacute que nas sociedades totalitaacuterias haacute um estreitamento destas margens e a diminuiccedilatildeo das possibilidades de criaccedilatildeo de contra-normas e micro-normas o que faz com que os indiviacuteduos se pareccedilam cada vez mais dada a diminuiccedilatildeo dos processos de singularizaccedilatildeo e a imposiccedilatildeo de uma identidade coletiva Cf LE BLANC G Canguilhem et les normes 2
a ed Paris Presses Universitaires de France - PUF 2010a LE BLANC G Canguilhem
et la vie humaine Paris QuadrigePUF 2010b
153
associaccedilatildeo do pensamento ao aumento da potecircncia do corpo ideia coerente com
sua filosofia da natildeo submissatildeo agrave exterioridade da resistecircncia agrave servidatildeo e agrave
impotecircncia e que pressupotildee uma tomada de posiccedilatildeo eacutetico-poliacutetica por parte do
filoacutesofo em defesa da liberdade de pensar e de agir no mundo
Com isso Canguilhem quer mostrar que para que a cliacutenica seja meacutedica ou
psicoloacutegica deixe de ser uma teacutecnica de controle e normalizaccedilatildeo dos indiviacuteduos
ela precisa abandonar o modelo maquinal de corpo que o apresenta como
matematizaacutevel e passiacutevel de ser dominado em seus processos atraveacutes de normas
externas e se nortear pela noccedilatildeo de totalidade corpomente e por outra
concepccedilatildeo de sauacutede associada agrave capacidade de reaccedilatildeo e de resistecircncia da vida
e a sua liberdade de valorar e criar suas proacuteprias normas Aleacutem disso ela precisa
de outra orientaccedilatildeo eacutetico-poliacutetica por parte dos profissionais que a realizam em
recusa ao papel de agentes de controle social a eles atribuiacutedo Ateacute porque como
entende a ampliaccedilatildeo histoacuterica do espaccedilo no qual se exerce o controle
administrativo da sauacutede dos indiviacuteduos desembocou na atualidade numa
Organizaccedilatildeo Mundial da Sauacutede (cf EM 2005 p43)
Em resumo pela perspectiva canguilhemiana para que a cliacutenica deixe de
ser um dispositivo de normalizaccedilatildeo ela precisa acompanhar o movimento
espontacircneo da vida respeitando suas normas imanentes Para tanto seria
necessaacuteria uma mudanccedila na racionalidade meacutedica o que exigiria do profissional
uma reflexatildeo filosoacutefica sobre as teorias que fundamentam suas praacuteticas o que
inclui necessariamente o desvelamento de seu caraacuteter eacutetico-poliacutetico-ideoloacutegico
Sendo assim a forma pela qual a cliacutenica pode ser revitalizada na
atualidade segundo a racionalidade meacutedico-filosoacutefica vitalista de Canguilhem eacute o
que em seguida iremos apresentar
154
CAPIacuteTULO IV
A revitalizaccedilatildeo da cliacutenica
Eacute quando lutamos pela vida que ela nos dota de maior forccedila
Partindo do pressuposto de que a criacutetica que Canguilhem faz aos
fundamentos teoacutericos e ideoloacutegicos da medicina cientiacutefica moderna eacute profiacutecua natildeo
soacute para a filosofia mas tambeacutem para a medicina a proposta deste capiacutetulo eacute o
resgatar os elementos conceituais apresentados nos capiacutetulos anteriores para
apresentar a medicina-filosoacutefica canguilhemiana como uma nova racionalidade em
sauacutede capaz de operar uma revitalizaccedilatildeo da cliacutenica transformando-a em
dispositivo de resistecircncia agraves praacuteticas de normalizaccedilatildeo neste campo
Em nosso entender apresentando uma concepccedilatildeo de medicina que natildeo
assentada numa ciecircncia bioloacutegica do normal mas numa ciecircncia das situaccedilotildees
bioloacutegicas consideradas normais Canguilhem opera uma subversatildeo no
pensamento meacutedico na medida em que coloca o doente como indiviacuteduo
concreto e natildeo a doenccedila como entidade nosoloacutegica abstrata no centro das
praacuteticas de cuidado em sauacutede E se defendemos a originalidade de seu
pensamento e a relevacircncia de suas proposiccedilotildees natildeo eacute somente porque contribui
para o renascimento da arte da cura em tempos de tecnociecircncia mas tambeacutem
porque ele consegue abrir novos horizontes teoacutericos e eacuteticos para a formaccedilatildeo e
pesquisa em sauacutede na atualidade
Tendo em vista que ainda nos encontramos no mesmo registro de
pensamento da modernidade ou seja ainda natildeo nos livramos de uma leitura
mecanicista da vida e de um racionalismo de laboratoacuterio na definiccedilatildeo do normal e
do patoloacutegico o vitalismo canguilhemiano pode contribuir para uma nova viragem
paradigmaacutetica no pensamento meacutedico natildeo apenas por colocar em questatildeo seus
fundamentos teoacutericos a insuficiecircncia dos modelos mecacircnicos para a
compreensatildeo dos fenocircmenos vitais mas tambeacutem por desvelar seu substrato
ideoloacutegico de controle da vida em seus sentidos bioloacutegico existencial e social
155
De modo mais preciso a proposta canguilhemiana de realizaccedilatildeo de uma
criacutetica da razatildeo meacutedica praacutetica apontando para a necessidade de superaccedilatildeo da
racionalidade fisiopatoloacutegica que ocasionou uma desvitalizaccedilatildeo ou quase morte
da cliacutenica e seu apelo agrave necessidade de resgatar seu sentido primeiro o de
inclinar-se ou voltar-se ao leito do doente pode a nosso ver contribuir para a
proposiccedilatildeo de outro logos outro ethos e outra praacutexis para a cliacutenica seja ela
meacutedica psicoloacutegica ou outra livrando-a de injunccedilotildees ideoloacutegicas de controle sobre
a vida
Com efeito nos Eacutetudes dacuteHistoire et de Philosophie des Sciences ao tratar
do poder e dos limites da racionalidade em medicina Canguilhem fala da
necessidade de uma renovaccedilatildeo no pensamento meacutedico e coloca a criacutetica agrave
medicina racional como primeiro passo a ser dado para a invenccedilatildeo de novos
modelos de racionalidade neste campo ao mesmo tempo teoacuterico e praacutetico eacutetico e
poliacutetico Natildeo obstante alerta que a criacutetica natildeo deve resvalar nem na adesatildeo agrave
antimedicina nem na retomada da teoria hipocraacutetica da natura medicatrix
advogadas por charlatatildees e propagandistas da autocura mas sim culminar na
invenccedilatildeo de uma nova racionalidade meacutedica que ciente dos limites da atual
tambeacutem seja capaz de superar as limitaccedilotildees da antiga
ldquonatildeo haveria portanto no amaacutelgama ideoloacutegico em questatildeo algum nuacutecleo de positividade digno de ser retido e reconhecido como apelo a uma renovaccedilatildeo da racionalidade capaz de superar a limitaccedilatildeo da antigardquo (E 1989 p404)
Assim eacute procurando deixar claro que sua criacutetica aos fundamentos da medicina de
seu tempo natildeo resvala no irracionalismo por querer se afastar da ideologia dos
partidaacuterios da nostalgia naturista e da utopia libertaacuteria que toma por oportunista e
perigosa que Canguilhem faz questatildeo de reiterar que seu resultado natildeo deve
significar a defesa da autogestatildeo em sauacutede ou o renascimento de magias
terapecircuticas (cf E 1989 p401)
Destarte apesar de acreditar na necessidade de invenccedilatildeo de novos
modelos de cuidado em sauacutede Canguilhem natildeo deprecia o valor de uma
racionalidade meacutedica jaacute que a renovaccedilatildeo que deseja que ocorra natildeo se
156
caracteriza nem como uma satanizaccedilatildeo da medicina cientiacutefica nem como um
recuo um retorno a medicinas preacute-racionais Portanto eacute evitando realizar uma
criacutetica banal agrave medicina que percebe estar muito em voga no seu tempo que ele
apresenta outra proposta de racionalidade meacutedica que natildeo a da medicina
cientiacutefica moderna filha ou herdeira da medicina racional ativa e operativa
A criacutetica de Canguilhem se direciona entatildeo a uma determinada forma de
racionalidade que orienta a praacutetica meacutedica a biomeacutedica moderna - mecanicista
logo reducionista normalizadora e portanto controladora ou gestora da vida
cotidiana Em contraposiccedilatildeo a ela sua filosofia desenha outra racionalidade em
medicina de orientaccedilatildeo vitalista e inspiraccedilatildeo hipocraacutetica que coloca em questatildeo a
ideia de medicina como ciecircncia das doenccedilas e resgata a noccedilatildeo de medicina como
arte da cura como teacutecnica que prolonga a atividade hedocircnica proacutepria agrave vida
Tendo por pressuposto outra concepccedilatildeo de vivente que natildeo a maquinal e
de normalidade e de patologia que natildeo a cientiacutefico-experimental o fundamento da
arte meacutedica que propotildee eacute a ancoragem numa determinada concepccedilatildeo de vida
inscrita num pensamento vitalista materialista poreacutem antimecanicista e
antiteleoloacutegico que se coloca sob o signo da potecircncia e da resistecircncia da
liberdade criatividade e espontaneidade de seus fenocircmenos e que possibilita
uma compreensatildeo do normal e do patoloacutegico associada a sua capacidade
valorativa e normativa proacutepria Eacute portanto distinguindo normatividade de
normalizaccedilatildeo ndash entendida como imposiccedilatildeo de normas externas - que ele
consegue propor uma praacutetica meacutedica orientada pelo respeito agraves diversas formas
de vida a seus ritmos e normas e aos diferentes modos sociais de exerciacutecio da
vida cotidiana
Assim como jaacute apresentado se em sua anaacutelise filosoacutefica da vida
Canguilhem apresenta o vivente identificado a uma totalidade orgacircnica com
tendecircncia agrave autoconservaccedilatildeo por auto-organizaccedilatildeo e com sentido vital singular na
qual a qualidade de seus processos se saudaacuteveis ou patoloacutegicos somente podem
ser pensados a partir da relaccedilatildeo que estabelece com seu meio bioloacutegico (milieu) o
vivente humano em sua especificidade nela figura como uma totalidade orgacircnica
157
consciente dotada de sentido existencial produto e produtora do meio
sociocultural (entourage) no qual se encontra e que pode ter sua potecircncia elevada
ou diminuiacuteda de acordo com a qualidade das relaccedilotildees que nele tece
Tambeacutem como vimos no contexto de sua discussatildeo sobre as relaccedilotildees
entre as normas vitais e sociais Canguilhem apresenta uma reflexatildeo sobre as
ligaccedilotildees existentes entre a poliacutetica e a forma de organizaccedilatildeo das praacuteticas de
hospitalizaccedilatildeo fazendo referecircncia a um poder sociomeacutedico Aqui esclarece que a
imposiccedilatildeo de uma norma ideal pelas praacuteticas institucionais de sauacutede tem por
resultado a normalizaccedilatildeo de corpos e mentes por ser condiccedilatildeo necessaacuteria agrave
manutenccedilatildeo de determinado status quo social Por isso a medicina social de
tradiccedilatildeo higienista eacute definida por ele como um dispositivo estatal de controle da
sauacutede dos coletivos e a psiquiatria bioloacutegica e a psicologia comportamental como
instrumentos de diminuiccedilatildeo da potecircncia do pensamento e de normalizaccedilatildeo das
condutas sociais desviantes dado o objetivo de adaptabilidade passiva presente
nos procedimentos e nas abordagens meacutedicas psicoloacutegicas e psicossocioloacutegicas
Portanto se em biologia Canguilhem assume uma postura integrista ao
inscrever o vivente humano como individualidade concreta num meio
sociocultural (entourage) a partir de uma orientaccedilatildeo possibilista ele nos coloca a
questatildeo de em que medida a mecanizaccedilatildeo da vida social pode favorecer o
aparecimento de diversas patologias associadas agraves formas como se datildeo as
relaccedilotildees em sociedade e quais seriam as formas possiacuteveis de enfrentaacute-las Aleacutem
disso ele tambeacutem nos coloca o problema de quanto haacute de ideologia de domiacutenio
em nossas teorias e praacuteticas de sauacutede e do efeito inverso que as praacuteticas
operadas pelo conjunto das instituiccedilotildees sanitaacuterias podem causar acarretando natildeo
a potencializaccedilatildeo mas a minimizaccedilatildeo da potecircncia de resistecircncia dos indiviacuteduos
Agora neste capiacutetulo mostraremos que a racionalidade meacutedica vitalista
desenhada a partir do pensamento de Canguilhem pode trazer contribuiccedilotildees agrave
formaccedilatildeo teoacuterica agrave praacutetica assistencial e pesquisa em sauacutede abrindo outros
horizontes teoacuterico-metodoloacutegicos e eacutetico-poliacuteticos para cliacutenica menos estreitos do
que os colocados pela racionalidade biomeacutedica moderna
158
Sem querer atribuir a Canguilhem mais do que realmente quis realizar se
falamos na possibilidade de delineamento de outra racionalidade em sauacutede a
partir de uma anaacutelise do conjunto dos seus escritos eacute porque a reflexatildeo que faz
sobre os conceitos de vida normal e patoloacutegico bem como sobre a produccedilatildeo do
saber e exerciacutecio do poder meacutedicos na atualidade mais do que uma contribuiccedilatildeo
aos estudos sobre histoacuteria e filosofia das ciecircncias da vida oferece agrave medicina
elementos para o redimensionamento de suas accedilotildees num campo onde logos
ethos e praacutexis satildeo indissociaacuteveis Mas antes de apresentarmos os contornos da
racionalidade meacutedica proposta por ele eacute necessaacuterio compreendermos o que ele
considera criticaacutevel na racionalidade cientiacutefico-moderna em seus campos teoacuterico-
praacutetico e eacutetico-poliacutetico criacutetica que daacute sentido ao resgate que faz da tradiccedilatildeo
meacutedico-filosoacutefica vitalista
Nos Eacutetudes dacuteHistoire et de Philosophie des Sciences Canguilhem
esclarece que a medicina como atividade teacutecnica eacute um fenocircmeno das sociedades
industriais e tem a ver com uma escolha de caraacuteter poliacutetico na medida em que
comporta uma tomada de posiccedilatildeo impliacutecita ou expliacutecita sobre o futuro da
humanidade a estrutura da sociedade as instituiccedilotildees de higiene e seguridade
social o ensino da medicina e a profissatildeo meacutedica (cf E 1989 p383-384) Com
isso ele mostra que uma revisatildeo da razatildeo meacutedica praacutetica natildeo eacute soacute uma questatildeo
de ordem teoacuterico-epistemoloacutegica ou teacutecnico-cientiacutefica mas tambeacutem eacutetico-poliacutetica
ou ideoloacutegica na medida em que as praacuteticas de sauacutede sejam elas individuais ou
coletivas natildeo satildeo neutras tendo uma estreita relaccedilatildeo com os poderes econocircmico
e militar de uma naccedilatildeo
Assim ao realizar uma oposiccedilatildeo agrave desvalorizaccedilatildeo da vida encontrada na
teoria mecanicista de corpo e agrave desindividualizaccedilatildeo do vivente singular que ocorre
no meio mecanizado e consequentemente agraves praacuteticas meacutedicas que daiacute
decorrem ele natildeo somente estaacute fazendo uma escolha teoacuterico-epistemoloacutegica
mas ao mesmo tempo estaacute tomando uma posiccedilatildeo de caraacuteter eacutetico-poliacutetico Ou
seja ao colocar em questatildeo o poder da racionalidade da medicina cientiacutefica
159
moderna isto eacute o modelo biomeacutedico moderno e seus campos de exerciacutecio teoacuterico
e praacutetico que ele identifica como o laboratoacuterio e o hospital Canguilhem estaacute
tambeacutem colocando em questatildeo a ideologia subjacente a ele ou seja o valor
moderno de controle ou domiacutenio da vida que o orienta e que encontrou por
exemplo na psiquiatria bioloacutegica nas pesquisas ou experimentaccedilotildees cientiacuteficas
com humanos nas medidas profilaacuteticas e eugecircnicas do nazismo sua mais
completa efetivaccedilatildeo116
Em nossa leitura entatildeo ao desvelar a ideologia de controle subjacente agraves
praacuteticas de sauacutede da atualidade toda sua obra passa a ter tambeacutem um caraacuteter ou
uma dimensatildeo poliacutetica Com efeito em seu Ensaio sobre alguns problemas 116
Sendo assim acompanhamos Ferraz (1994) quando a partir de uma chave de leitura neopragmaacutetica entende que Canguilhem construiu uma epistemologia regional para medicina na qual ficam claras as particularidades dos fundamentos e das regras de accedilatildeo deste campo de saber e que ao colocar valor da vida como motor da terapecircutica realizou uma virada de 180 graus na tradiccedilatildeo meacutedica cientificista No entanto discordamos dele quando ao investigar as teses principais de O Normal e o Patoloacutegico atribui agrave Canguilhem a ideia de que o valor da vida deriva da normatividade vital como capacidade que a vida possui em si de determinar na consciecircncia os valores e juiacutezos fundamentais agrave sobrevivecircncia do ser humano porque as normas jaacute existiriam previamente numa espeacutecie de protolinguagem agrave espera de chegarem agrave consciecircncia humana Aos olhos do autor ao apresentar a normatividade vital como uma instacircncia preacute-linguiacutestica que expressa a intencionalidade da vida ele atribui agrave racionalidade universal humana uma espeacutecie de racionalidade preacutevia que informaria quais os criteacuterios de julgamento da vida qual a natureza dos mesmos e quais os fundamentos que temos para afirmar o valor da vida Fazendo do valor da vida um fato Canguilhem delegaria a responsabilidade de defesa da vida a uma razatildeo vital a uma espeacutecie de juiacutezo superior da vida segundo o qual nossos valores humanos deveriam coincidir porque seriacuteamos apenas representantes desta forccedila transcendental Segundo o comentador a entrega da defesa da vida a uma racionalidade preacute-humana poderia ganhar ldquocontornos moacuterbidosrdquo O pensamento canguilhemiano poderia representar uma ldquoreediccedilatildeo do nazismordquo pois alguns setores da sociedade poderiam tentar decifrar com fidelidade quais seriam os objetivos ou intenccedilotildees da vida e definir a partir disso qual raccedila grupo ou naccedilatildeo seria a mais fiel expressatildeo da normatividade vital justificando o direito sobre a vida dos menos capacitados Ao retirar a definiccedilatildeo dos valores da tradiccedilatildeo e colocar na vida ele justificaria crenccedilas e praacuteticas racistas ldquocolocar tal responsabilidade para a lsquolinguagem das reaccedilotildees vitaisrsquo eacute despolitizar o valor da vidardquo (FERRAZ 1994 p22) Em nossa leitura antagocircnica a do autor Canguilhem natildeo afirma que as normas estatildeo latentes a espera de manifestaccedilatildeo Tambeacutem para ele natildeo haacute como definir a normatividade vital pois ela natildeo se identifica a uma norma orgacircnica ideal mas agrave capacidade de o vivente instituir normas Na perspectiva canguilhemiana natildeo haacute uma norma orgacircnica que possa se transformar em diretriz para a teacutecnica terapecircutica visando o estabelecimento de um comportamento normativo pois cada vivente tem a sua medida Ou seja uma norma saudaacutevel somente pode ser referenciada a um indiviacuteduo concreto singular portanto natildeo pode ser universalizada O mesmo vale para a norma patoloacutegica Ao contraacuterio do comentador acreditamos que todo esforccedilo canguilhemiano estaacute voltado para afirmar a singularidade das normas e para mostrar como eacute natildeo somente doentio mas politicamente perigoso definir qual seria a normatividade ideal e impocirc-la como regra No entanto trocando a afirmaccedilatildeo da normatividade por justificaccedilatildeo da normalizaccedilatildeo o autor eacute quem deu ao pensamento de Canguilhem contornos moacuterbidos Cf FERRAZ C H O valor da vida como fato uma critica neopragmatica agrave epistemologia da vida de Georges Canguilhem Rio de Janeiro Seacuterie Estudos em Sauacutede Coletiva UERJIMS 1994
160
relativos ao normal e ao patoloacutegico ele jaacute criticava a concepccedilatildeo de sauacutede como
norma ideal e adaptaccedilatildeo passiva ao meio pela ideia de submissatildeo a ela
associada e apresentava outra na qual inscrevia a capacidade de resistecircncia na
vida mesma mostrando que todo vivente humano tem a capacidade de subverter
uma ordem instituiacuteda e criar outra mais saudaacutevel para si nos acircmbitos bioloacutegico
existencial e tambeacutem social A partir disso redesenhando a cliacutenica meacutedica ele daacute
o primeiro passo para o que mais tarde se colocaria de modo mais expliacutecito como
sua criacutetica ao modelo biomeacutedico moderno e agraves praacuteticas de normalizaccedilatildeo dele
derivadas pela funccedilatildeo social a qual se prestam
Destarte eacute por entender que a medicina traduzida por seu discurso
instituiccedilotildees e suas praacuteticas pode se transformar num dispositivo social de
normalizaccedilatildeo conveniente a um regime de Estado totalitaacuterio que precisa realizar o
controle dos indiviacuteduos propagando normas de vida nos acircmbitos bioloacutegico
existencial e social que ele propotildee outra racionalidade meacutedica assentada no
respeito agrave liberdade dos indiviacuteduos de criar suas proacuteprias normas sejam elas
vitais ou sociais
De fato como vimos em suas Novas Reflexotildees referentes ao normal e ao
patoloacutegico Canguilhem apresenta os meios teacutecnicos de sauacutede ao lado dos da
educaccedilatildeo como um dos braccedilos normalizadores do Estado Isto eacute associando as
ideias de mecanizaccedilatildeo da vida social e normalizaccedilatildeo ele mostra que a
racionalizaccedilatildeo e a planificaccedilatildeo dos meios teacutecnicos de sauacutede estatildeo em estreita
relaccedilatildeo com os interesses beacutelicos e econocircmicos dos regimes totalitaacuterios tanto de
esquerda quanto de direita Tambeacutem em seus Escritos sobre a medicina ele fala
em vida social normalizada e sua relaccedilatildeo com os interesses sociopoliacuteticos na
regulaccedilatildeo das condiccedilotildees do exerciacutecio da vida a ser realizado por um tipo
especiacutefico de organizaccedilatildeo sanitaacuteria (cf EM 2005 p62-63)
Portanto eacute sobretudo em vista da funccedilatildeo social que as praacuteticas de sauacutede
assumiram na atualidade que a racionalidade meacutedica que propotildee inclui outro
logos outro ethos e outra praacutexis isto eacute outro pensamento sobre a vida que natildeo o
mecanicista outra eacutetica que natildeo elaborada a partir de princiacutepios abstratos
161
consegue fazer uma defesa laica da vida na medida em que sustenta valores que
a vida mesma coloca como positivos para si e um diferente procedimento
metodoloacutegico pautado na observaccedilatildeo e na escuta da vida no respeito a seu
tempo de reaccedilatildeo espontacircnea e no incentivo a sua capacidade de resistecircncia
advinda de sua potecircncia normativa proacutepria
De modo mais preciso eacute por se opor aos processos de mecanizaccedilatildeo da
vida de normalizaccedilatildeo dos indiviacuteduos e agrave gestatildeo soacutecio-poliacutetica meacutedica da vida
cotidiana que Canguilhem desenha uma racionalidade meacutedica que apesar de
dialogar com a perspectiva naturista da tradiccedilatildeo meacutedica hipocraacutetica por tambeacutem
apostar na capacidade de autodefesa da vida e na idiossincrasia do doente
apresenta uma loacutegica proacutepria norteada pela noccedilatildeo de resistecircncia vital nos acircmbitos
bioloacutegico existencial e social
Com efeito em nosso trabalho de leitura sistematizaccedilatildeo e anaacutelise do
conjunto de seus escritos notamos que desde seu Essai sur quelques problegravemes
concernant le normal et le pathologique ao colocar em questatildeo a tese da
diferenccedila quantitativa entre o normal e o patoloacutegico ele jaacute apresentava as
principais diretrizes de outra loacutegica para a praacutetica e eacutetica meacutedicas com vistas agrave
configuraccedilatildeo de uma cliacutenica centrada no indiviacuteduo concreto norteada pelas
noccedilotildees de valor e sentido vitais117 Mas eacute em seus Escritos sobre a Medicina e
nos seus Eacutetudes dacuteHistoire et de Philosophie des Sciences na seccedilatildeo Meacutedecine
que de modo mais aprofundado ele opera sua criacutetica ao caraacuteter antinaturalista das
praacuteticas de sauacutede derivadas do modelo biomeacutedico moderno traduzido por ele
como desconsideraccedilatildeo da singularidade normativa individual e remata os
117
Por isso concordamos com Le Blanc (2010a) para quem a liccedilatildeo eacutetica de Canguilhem eacute a seguinte ldquoage de tal forma que multiplique a vida em si e ao redor de sirdquo A eacutetica se encontra em correspondecircncia com a vida porque o valor se inscreve no cerne mesmo dela Da vida ao valor natildeo se opera uma separaccedilatildeo porque a vida mesma eacute valor Natildeo obstante enquanto a vida eacute posiccedilatildeo inconsciente de valor o sujeito eacutetico pode colocar conscientemente seus valores seguindo os valores imanentes da vida Isso daacute agrave eacutetica todo seu peso como valorizaccedilatildeo da vida-valor Em sua especificidade o modo de ser eacutetico do meacutedico eacute uma resposta agraves possibilidades negativas que a vida pode afirmar a dor a doenccedila e a morte Quer dizer o ser eacutetico do meacutedico se realiza em seu constante confronto com os sofrimentos individuais Sendo assim o meacutedico se comporta de maneira eacutetica porque ele tenta reagir agraves diminuiccedilotildees locais de vida ldquoum ato eacutetico eacute sempre a resposta que a vida inventa no sujeito contra sua destruiccedilatildeo possiacutevelrdquo (LE BLANC 2010a p102) Op cit
162
contornos de sua racionalidade meacutedico-filosoacutefica vitalista fazendo uso dela para
debater temas atuais sobre o ensino a eacutetica e a praacutetica meacutedicas118
Sobre a intenccedilatildeo canguilhemiana eacute certo que como ele mesmo afirma no
prefaacutecio de seu Ensaio nesta obra ele natildeo se imbuiu da tarefa de apresentar uma
nova racionalidade em medicina a ponto de ocasionar uma renovaccedilatildeo
metodoloacutegica neste campo
ldquose a medicina dever renovada cabe aos meacutedicos a honra e o risco de fazecirc-lo Tivemos poreacutem a ambiccedilatildeo de contribuir para a renovaccedilatildeo de certos conceitos metodoloacutegicos retificando sua compreensatildeo pela influecircncia de uma certa concepccedilatildeo meacutedica Que natildeo se espere portanto desta obra mais do que quisemos dar A medicina eacute frequentemente a presa e a viacutetima de uma certa literatura pseudo-filosoacutefica cujos autores cumpre dizer muitas vezes satildeo os proacuteprios meacutedicos e da qual a medicina e a filosofia raramente tiram algum proveitordquo (NP 1990 p16)
Mas se em seu Ensaio sua intenccedilatildeo ao especular filosoficamente alguns
dos meacutetodos e conquistas da medicina natildeo foi dar alguma liccedilatildeo ou fazer um
julgamento de valor sobre a atividade meacutedica tendecircncia que nota ser comum na
literatura meacutedico-filosoacutefica de seu tempo em seus Escritos sobre a medicina ele
diz ter chegado o tempo de uma criacutetica que possa dar agrave medicina cientiacutefica a
consciecircncia de seus poderes e limites e que com isso consiga diminuir a
presunccedilatildeo do poder meacutedico fruto de um saber experimental que negligencia o
118
Cammelli (2006) nota que Canguilhem quer pensar a atualidade a partir do que podemos chamar de loacutegica da resistecircncia e lembra que para ele um conjunto de escritos se torna obra quanto assume uma funccedilatildeo operatoacuteria de desestabilizaccedilatildeo de um saber instituiacutedo ganhando assim relevacircncia teoacuterico-praacutetica ldquoJogando com a palavra podemos dizer que no seu caso obra vale mais como verbo do que como substantivo O escrito filosoacutefico natildeo deve ser uma lsquoobrarsquo mas alguma coisa que lsquooperarsquo algo que opera deslocamentos e efeitos de verdade no interior de um saber atualrdquo (CAMMELLI 2006 p19) Assim atraveacutes de seus estudos de epistemologia da biologia e da medicina Canguilhem quer mostrar que ao tempo em que a biologia fascista reduz o vivente a uma simples maacutequina sujeita a leis cientiacuteficas a poliacutetica fascista reduz o corpo social a um objeto bioloacutegico controlaacutevel mediante teacutecnicas guiadas pela ciecircncia como a medicina e a nova ciecircncia geneacutetica Estendendo o controle para todos os aspectos da vida da populaccedilatildeo o fascismo transforma o meacutedico numa figura-chave da biopoliacutetica pois operando a partir das noccedilotildees de meacutedia e meio eacute ele que normaliza a populaccedilatildeo levando-a agrave indiferenccedila agrave impotecircncia e agrave obediecircncia automaacutetica transformando o indiviacuteduo num sujeito doacutecil que se conforma passivamente agraves condiccedilotildees externas Sua obra entatildeo operando como um dispositivo teoacuterico-praacutetico que coloca em questatildeo os conceitos de meacutedia e meio ndash noccedilotildees a partir das quais se estrutura o poder biopoliacutetico do nazi-fascismo - denota natildeo soacute um engajamento epistemoloacutegico-poliacutetico mas provoca tambeacutem um impacto no acircmbito teacutecnico-cientiacutefico neste caso na biologia e na medicina fazendo-as rever seus objetivos e meacutetodos Cf CAMMELLI M ldquoLogiche della resistenzardquo In CANGUILHEM G Il fascismo e i contadini Bologna Il Mulino 2006
163
que chama de a priori orgacircnico de oposiccedilatildeo agrave lei da degradaccedilatildeo (cf EM 2005
p69) Isto eacute acredita ser o momento em que os meacutedicos devem reconhecer os
limites da racionalidade meacutedico-cientiacutefica moderna assumindo que no acircmbito do
exerciacutecio praacutetico de sua arte eacute necessaacuterio considerar que para a obtenccedilatildeo da cura
deve haver uma colaboraccedilatildeo entre o saber experimental e o natildeo-saber propulsivo
da vida (cf EM 2005 p69)
Na contramatildeo do pensamento meacutedico hegemocircnico da atualidade vendo
sentido em falar de natureza mesmo na era da farmacodinacircmica industrial do
imperialismo laboratorial e do tratamento eletrocircnico da informaccedilatildeo diagnoacutestica ele
resgata da medicina vitalista a confianccedila no poder de cura espontacircneo da vida
Natildeo obstante de modo a deixar clara a exata medida de sua adesatildeo agrave tradiccedilatildeo
meacutedica vitalista ele critica a proliferaccedilatildeo de uma literatura meacutedico-filosoacutefica de
inspiraccedilatildeo naturista que por falta de lucidez teoacuterica ou mesmo por maacute-feacute defende
a tese da confianccedila praacutetica no poder curativo da natureza apenas por descreacutedito agrave
medicina cientiacutefica
ldquoFoi a antipsiquiatria quem deu a partida e a antimedicalizaccedilatildeo a seguiu Muito antes das exortaccedilotildees de Ivan Illich agrave recuperaccedilatildeo pelos indiviacuteduos pela regularidade de sua sauacutede agrave autogestatildeo de sua cura e agrave reivindicaccedilatildeo de sua morte as repercussotildees da psicanaacutelise e da psicossomaacutetica no niacutevel de vulgarizaccedilatildeo proacuteprio agrave miacutedia popularizaram a ideia de uma conversatildeo do doente almejaacutevel e possiacutevel em seu proacuteprio meacutedico Acreditou-se inventar quando na realidade se retomava o tema milenar do meacutedico de si mesmordquo (EM 2005 p66)
Entendendo que a trivialidade conceitual deste tipo de literatura eacute bem pior
que o pensamento meacutedico fundamentado unicamente em conhecimentos proacuteprio
aos das ciecircncias fiacutesicas diz que este tipo de oferta terapecircutica serve sobretudo
para exploraccedilatildeo financeira de doentes insatisfeitos ou decepcionados com o que
consideram negligecircncia ou falta por parte dos meacutedicos No entanto tambeacutem
percebe que natildeo eacute por acaso que a tese do meacutedico de si mesmo e a ideia de
sauacutede retornada agraves suas fontes permanecem presentes nos manuais de sauacutede e
nas obras de medicina domeacutestica Ele acredita que se por um lado este tipo de
literatura alimenta uma arte meacutedica mal fundamentada ou interessada em
164
enganar por outro representa tambeacutem uma reaccedilatildeo sincera de compensaccedilatildeo
diante das crises da terapecircutica
ldquona realidade a literatura medica de inspiraccedilatildeo naturista permaneceu permanece e permaneceraacute sem duacutevida por muito tempo ainda dividida entre duas intenccedilotildees ou duas motivaccedilotildees reaccedilatildeo sincera de compensaccedilatildeo quando das crises da terapecircutica utilizaccedilatildeo astuciosa do desarvoramento dos doentes para a venda de qualquer electuaacuterio de Orvieto mesmo que sob a forma de impressordquo (EM 2005 p19)
Entretanto malgrado o crescimento da oferta e da adesatildeo dos doentes a
terapecircuticas natildeo cientiacuteficas ele vecirc apenas um esboccedilo de revisatildeo de ordem
profissional ainda tiacutemido e confuso em resposta aos protestos naturistas Nota
haver ateacute mesmo uma indiferenccedila ou hostilidade da grande maioria dos meacutedicos
para com os movimentos de contestaccedilatildeo da racionalidade meacutedica vigente no
interior mesmo da profissatildeo
Pela mesma perspectiva nos Eacutetudes dacuteHistoire et de Philosophie des
Sciences eacute procurando deixar claro que sua intenccedilatildeo natildeo eacute atribuir agrave medicina
cientiacutefica a culpa por todas as morbidades modernas que ele faz questatildeo de
rechaccedilar trabalhos que ao propagarem teses como a da expropriaccedilatildeo da sauacutede e
da iatrogenia em nada contribuem para a renovaccedilatildeo da racionalidade meacutedica
atual A seu ver contestar a racionalidade meacutedica em seu campo de exerciacutecio natildeo
significa aderir agrave tendecircncia radical de proposiccedilatildeo de uma desmedicalizaccedilatildeo da
sociedade nem inscrever seus argumentos num amaacutelgama de banalidades que
aglutina o discurso da qualidade de vida o naturismo agroalimentar e alguns
subprodutos da psicanaacutelise Isto eacute para ele afirmar que a racionalidade meacutedica
deve reconhecer seus limites natildeo significa colocar em questatildeo a legitimidade da
medicina mas apenas expor sua obrigaccedilatildeo de mudar de registro (cf E 1989
p401)
Ainda na mesma obra ao tratar do poder e dos limites da racionalidade em
medicina Canguilhem explica que a ambiccedilatildeo de uma medicina racional remonta
ao seacuteculo XVII como projeto e ao XVIII como programa nascendo quando os
meacutedicos franceses e italianos acreditaram poder fundar sob os princiacutepios da
165
mecacircnica cartesiana e galileana uma medicina praacutetica na qual a eficaacutecia seria
dada pela aplicaccedilatildeo de um conhecimento tido por certeiro No seacuteculo XIX
identificada a uma medicina experimental a medicina racional toma
definitivamente a precedecircncia procurando suplantar definitivamente o empirismo
meacutedico Eacute Claude Bernard quem diante dos problemas postos ao exerciacutecio praacutetico
da medicina afirma que o empirismo como o oposto do racionalismo difere
essencialmente da ciecircncia Para ele a ciecircncia estaria fundada sobre o
racionalismo dos fatos e a ciecircncia meacutedica seria aquela que explicaria racional e
experimentalmente as doenccedilas para prever seu curso e modificaacute-lo De acordo
com sua racionalidade cientiacutefico-experimental eacute necessaacuterio fazer a ciecircncia do
curar em oposiccedilatildeo agrave arte ou empirismo de curar (cf E 1989 p394)
Na seccedilatildeo dedicada agrave ideia de medicina experimental segundo Claude
Bernard Canguilhem nota que ela aparece como uma declaraccedilatildeo de guerra agrave
medicina hipocraacutetica empiacuterica expectante e observacional ao partir da ideia de
que dominar cientificamente a natureza conquistaacute-la em proveito do homem deve
ser a atitude fundamental do meacutedico experimentador ldquoa ideia de medicina
experimental a dominaccedilatildeo cientiacutefica da natureza viva eacute o hipocratismo invertidordquo
(E 1989 p132) Na perspectiva bernardiana a experimentaccedilatildeo meacutedica deve ser
fundada no conhecimento preacutevio das leis fisioloacutegicas de modo a melhor conhecer
a natureza e a partir disso agir para dominar os fenocircmenos patoloacutegicos em clara
oposiccedilatildeo agrave atitude passiva contemplativa e meramente descritiva dos
hipocraacuteticos ldquopara sair do empirismo e merecer o nome de ciecircncia essa
experimentaccedilatildeo meacutedica deve ser fundada no conhecimento das leis vitais
fisioloacutegicas ou patoloacutegicasrdquo (E 1989 p133)
Com efeito conseguindo responder a todas as exigecircncias do programa
racionalista por comportar leis e postular o determinismo de seu objeto de todas
as disciplinas a fisiologia experimental eacute a que mais tende a contestar o paradigma
naturista hipocraacutetico pois eacute ela que defende a ideia de identidade dos estados
normal e patoloacutegico e a possibilidade de dela deduzir uma teacutecnica de restauraccedilatildeo
do organismo a partir de uma norma fundada em razotildees Seguindo este princiacutepio
para a obtenccedilatildeo da cura bastaria ao meacutedico conhecer as doenccedilas identificar
166
seus sintomas e etiologia para a partir daiacute prescrever a medicaccedilatildeo absolutamente
eficaz e a profilaxia certeira
ldquoo adveacuterbio lsquoabsolutamentersquo e o adjetivo lsquocerteirorsquo satildeo aqui prova desta racionalidade bernardiana que por exaltaccedilatildeo do determinismo refuta e ridiculariza a introduccedilatildeo em medicina de conceitos e de procedimentos de ordem probabiliacutestica e estatiacutesticardquo (E 1989 p396)
Assim ao deduzir uma conduta terapecircutica do conhecimento fisioloacutegico Claude
Bernard une efetivamente a cliacutenica e o laboratoacuterio Mas mais do que isso
consegue atribuir agrave medicina um poder social ateacute entatildeo desconhecido por ela
advindo da importacircncia atribuiacuteda agrave ciecircncia e suas aplicaccedilotildees nas sociedades
industriais do XIX (cf E 1989 p140)
Tambeacutem na Ideologia e racionalidade nas ciecircncias da vida Canguilhem
avalia que a histoacuteria da medicina dos uacuteltimos seacuteculos se apresenta como uma
sucessatildeo de revisotildees conceituais e de tratamento dos fenocircmenos patoloacutegicos
notando que as racionalidades meacutedicas foram construiacutedas por processo de
rupturas e invenccedilotildees ldquoNatildeo eacute preciso ser hegeliano para admitir que tambeacutem na
medicina os caminhos da histoacuteria raramente satildeo direitosrdquo (I 1981 p52) Aqui ao
tratar do processo de constituiccedilatildeo da racionalidade biomeacutedica moderna ele
apresenta os deslocamentos que foram necessaacuterios a sua constituiccedilatildeo A
mudanccedila de locus de intervenccedilatildeo meacutedica do leito do doente situado em seu lugar
de vida cotidiana ao leito do hospital implicou numa alteraccedilatildeo na forma de
investigaccedilatildeo do fenocircmeno patoloacutegico do meio humano como campo dos
acontecimentos ao meio controlado isto eacute da experiecircncia vivida ao experimento
laboratorial e por conseguinte do homem doente agrave doenccedila do animal cobaia
Este novo modelo meacutedico fundamentado no conhecimento baseado na
coleccedilatildeo de fatos e na elaboraccedilatildeo de leis confirmadas pela experiecircncia ocasionou
uma mudanccedila na maneira de ver a relaccedilatildeo entre patologia e fisiologia e a
elucidaccedilatildeo experimental desta relaccedilatildeo acabou por acarretar numa nova maneira
de agir na cliacutenica Agora o conhecimento cientiacutefico deve ser convertido em
terapecircuticas efetivas (cf I 1981 p57) Assim em recusa aos antigos meacutetodos
167
terapecircuticos hipocraacuteticos os meacutedicos passaram a seguir entatildeo a recomendaccedilatildeo
de Brown de natildeo confiar nas forccedilas da natureza ldquoEacute preciso estimular ou debilitar
Natildeo podemos permanecer na inaccedilatildeo Natildeo devemos confiar nas forccedilas da
naturezardquo (I 1981 p49)
Aleacutem disso inscrevendo esta discussatildeo na problemaacutetica da histoacuteria das
ciecircncias e recorrendo aos conceitos de corte epistemoloacutegico de Bachelard e de
revoluccedilotildees cientiacuteficas de Kuhn ele nota que o discurso metodoloacutegico bernardiano
aliando teoria e progresso crescimento cientiacutefico sem sobressaltos e revoluccedilotildees
determinismo e accedilatildeo eficaz como seu resultado apresenta todos os componentes
de uma ideologia meacutedica que se encontra em relaccedilatildeo manifesta com a ideologia
progressista da sociedade industrial europeia em meados do seacuteculo XIX que ao
mesmo tempo em que negava o progresso social sem ordem devido ao caraacuteter
antirrevolucionaacuterio do periacuteodo tambeacutem reivindicava a dependecircncia da teacutecnica em
relaccedilatildeo agrave ciecircncia (cf I 1981 p60)
Foi com este espiacuterito que Claude Bernard empreendeu a defesa da
fisiologia como ciecircncia fundadora de uma medicina verdadeiramente cientiacutefica e
progressiva ateacute porque as teorias cientiacuteficas das quais ela seria a aplicaccedilatildeo
seriam em si mesmas progressivas ou abertas Daiacute suas duas foacutermulas a fixar ldquoO
experimentador nunca sobrevive a si proacuteprio ele estaacute sempre ao niacutevel do
progressordquo e ldquoCom teoria natildeo haacute revoluccedilotildees A ciecircncia cresce gradualmente e sem
sobressaltosrdquo O problema identificado por Canguilhem eacute que a reivindicaccedilatildeo
permanente que Claude Bernard faz do uso do meacutetodo experimental acabou por
significar a limitaccedilatildeo interna de sua proacutepria teoria meacutedica Isso porque se a praacutetica
natildeo ultrapassa a teoria sendo apenas a aplicaccedilatildeo de um conhecimento cientiacutefico
preacute-estabelecido torna-se impossiacutevel qualquer revoluccedilatildeo na teacutecnica e por
conseguinte a obtenccedilatildeo de qualquer conhecimento advindo dela
ldquoEm resumo o conceito de teoria sem revoluccedilatildeo que Claude Bernard tomou como fundamento soacutelido de sua metodologia natildeo eacute mais do que um indiacutecio da limitaccedilatildeo interna de sua proacutepria teoria meacutedicardquo (I 1981 p60)
168
Em seus Escritos sobre a medicina novamente tratando da diferenccedila entre
as medicinas expectante e cientiacutefica Canguilhem esclarece que Brown acreditava
poder resumir em duas palavras o imperativo da atividade meacutedica ldquoEacute preciso
estimular ou debilitar Inaccedilatildeo nunca Natildeo confiem na forccedila da naturezardquo A seu ver
esta era a consequecircncia necessaacuteria de certa concepccedilatildeo de corpo na qual a vida
era considerada um estado forccedilado e o corpo inteiramente subordinados agraves
potecircncias externas Isto eacute para uma medicina ativa que tem por fundamento a
ideia de corpo inerte doacutecil manipulaacutevel e inteiramente submetido ao entorno a
praacutetica meacutedica deve se dar atraveacutes de intervenccedilotildees eficazes propiciando uma
melhora ou restituiccedilatildeo de um estado de sauacutede que o doente natildeo conseguiria obter
por seus proacuteprios meios ldquoPara o corpo inerte medicina ativa () Para o corpo
dinacircmico medicina expectanterdquo (EM 2005 p12) Para uma medicina expectante
pautada na ideia de corpo dinacircmico dotado de uma capacidade espontacircnea de
conservaccedilatildeo de sua estrutura e de regulaccedilatildeo de suas funccedilotildees a arte meacutedica deve
fazer a medida do poder da natureza uma avaliaccedilatildeo de suas forccedilas e a partir
disso laisser faire a natureza ou intervir para sustentaacute-la ou ajudaacute-la ou ainda
renunciar agrave intervenccedilatildeo quando a doenccedila eacute mais forte do que a natureza (cf EM
2005 p15)
Em resumo o fundamento da medicina hipocraacutetica eacute o de que a natureza eacute
a primeira conservadora da sauacutede por ser a primeira formadora do organismo (cf
EM 2005 p13) Sendo assim o primeiro meacutedico eacute uma atividade interior a ele de
compensaccedilatildeo dos deacuteficits e de estabelecimento do equiliacutebrio rompido Por
extensatildeo em sua praacutetica o meacutedico deve fazer uma observaccedilatildeo atenta e fiel das
reaccedilotildees e performances do organismo em estado de doenccedila de modo a
compreender seus dispositivos de seguranccedila contra os riscos e sua relaccedilatildeo com o
meio119 A partir disso contar com a autofarmacopeacuteia orgacircnica com as
substacircncias liberadas pelo organismo com funccedilatildeo de remeacutedio confiando que a
119
Na coletacircnea La connaissance de la vie no artigo ldquoAspects du vitalismerdquo Canguilhem esclarece que a teoria hipocraacutetica da natura medicatrix daacute mais importacircncia agrave reaccedilatildeo do organismo e sua defesa do que agrave identificaccedilatildeo da causa moacuterbida Segundo ela importa mais prever o curso da doenccedila do que determinar sua causa A terapecircutica eacute feita mais de prudecircncia que de audaacutecia porque a natureza eacute o primeiro dos meacutedicos O vitalismo meacutedico portanto eacute a traduccedilatildeo de uma confianccedila do vivente na vida ldquoAssim vitalismo e naturismo satildeo indissociaacuteveisrdquo (CV 1985 p86)
169
natureza tambeacutem colaboraraacute com os remeacutedios que prescreveu Natildeo obstante
nenhum texto hipocraacutetico chega a descrever a natureza como infaliacutevel ou
onipotente O hipocratismo constatava que as forccedilas da natureza satildeo limitadas
pois haacute momentos em que elas cedem e o meacutedico em respeito a elas tambeacutem
deve ceder (cf EM 2005 p17)
Tambeacutem defendendo a introduccedilatildeo da ideia de natureza no pensamento e
na praacutetica meacutedicas Canguilhem coloca em questatildeo tanto a ideia de corpo inerte
quanto a de poder ilimitado da medicina fundadoras de uma terapecircutica que por
excesso de ativismo acaba por colaborar inclusive com o proacuteprio mal na medida
em que procurando entravar as iniciativas espontacircneas da natureza enfraquece
as reaccedilotildees de autodefesa do organismo (cf EM 2005 p14) Ou seja a seu ver a
ideia de que a natureza soacute fala se for bem interrogada e que quando age
responde com um paroxismo de que natildeo se deve aceitar da natureza tudo o que
ela diz da maneira como ela diz e tambeacutem o que ela faz se por um lado estaacute
certa ao identificar os limites de um hipocratismo de estrita obediecircncia - verificado
no caso das doenccedilas autoimunes em que a autodefesa se transforma em ataque -
por outro ao instaurar a desconfianccedila nos poderes curativos da vida natildeo faz mais
do que perturbar a relaccedilatildeo entre meacutedico e natureza fazendo com que entre eles
natildeo mais haja cooperaccedilatildeo mas um embate (cf EM 2005 p20)
Desta forma afirmar que a arte meacutedica deve se pautar na escuta e na
observaccedilatildeo da natureza natildeo quer dizer que ela aja sempre na exata medida do
necessaacuterio Todavia tal fato natildeo nos leva a uma medicina anti-hipocraacutetica porque
mesmo nos casos de reaccedilatildeo orgacircnica de defesa desmedida haacute a afirmaccedilatildeo do
poder curativo da natureza embora compreendido em seus limites (cf EM 2005
p 16) Por isso eacute importante esclarecer que mesmo filiado agrave tradiccedilatildeo meacutedica dos
antigos no que tange agrave consideraccedilatildeo da ideia de natureza na praacutetica meacutedica120
120
Eacute importante notar que Canguilhem embora resgate a ideia de natureza ele procura se afastar dos mais diferentes discursos ideoloacutegicos sobre ela como o dos naturistas arcaizantes que pregam em resposta aos problemas ecoloacutegicos decorrentes do desenvolvimento da sociedade industrial o retorno a uma ordem anterior mais harmocircnica entre o homem e o mundo natural Em ldquoLa question de lrsquoeacutecologie la technique ou la vierdquo ele critica as reivindicaccedilotildees anti-tecnoloacutegicas dos naturistas as quais associa agrave propaganda de produtos ldquobioloacutegicosrdquo e do turismo em regiotildees rurais Ainda esclarece que a ideia de natureza tem sido usada no contexto sociopoliacutetico para moderar a
170
Canguilhem procura deixar claro que a racionalidade meacutedica vitalista que propotildee
natildeo significa nem a retomada do naturismo hipocraacutetico embora dele tome a
confianccedila no poder de cura da vida nem o abandono do sentido de verdade da
ciecircncia malgrado a tendecircncia ao cientificismo ou racionalismo exacerbado da
atividade cientiacutefica transposto para o campo meacutedico Isto eacute ela natildeo se traduz nem
pelo ceticismo epistemoloacutegico ou niilismo terapecircutico da antimedicina nem pela
confianccedila desmedida no saber-poder meacutedico proacutepria da medicina cientiacutefica
moderna
Para contestar a racionalidade meacutedica cientiacutefico-experimental os meacutedicos
natildeo precisam fazer uma apologia da teacutecnica ou arte da cura identificada a um
hipocratismo ao gosto do dia com base numa moral humanista ou personalista
difusa nem assumir uma atitude radical de desconsiderar as contribuiccedilotildees das
pesquisas de base cientiacutefico-experimental para o exerciacutecio praacutetico da medicina
como as da imunologia da geneacutetica e da biologia molecular sobre o patrimocircnio
geneacutetico e a idiotipia que comprovam a ideia de individualidade bioloacutegica (cf EM
2005 p31)121 Ciente dos poderes e limites da racionalidade biomeacutedica moderna
eles natildeo precisam deixar de incorporar em suas praacuteticas o que a ciecircncia trouxe de
avanccedilos para a terapecircutica sobretudo no que tange ao conhecimento objetivo das
doenccedilas seu diagnoacutestico e medicaccedilotildees mas devem considerar que a eficaacutecia da
intervenccedilatildeo iraacute advir do exerciacutecio mesmo da teacutecnica meacutedica do saber que o
exerciacutecio praacutetico da medicina proporciona sobretudo no que concerne agrave
identificaccedilatildeo do normal e do patoloacutegico para um indiviacuteduo concreto entendendo
dominaccedilatildeo e a degradaccedilatildeo proacuteprias ao desenvolvimento das sociedades industriais em qualquer regime poliacutetico Ao investigar as diferentes ideologias e a finalidade poliacutetica dos discursos sobre a natureza como o eco-fascismo o eco-marxismo e o eco-capitalismo das sociedades liberais ele nota a estreita relaccedilatildeo existente entre eles e os interesses de planificaccedilatildeo e crescimento econocircmico de uma naccedilatildeo Ao expor entatildeo os diferentes discursos ideoloacutegicos sobre a natureza o que ele percebe eacute um amaacutelgama ideoloacutegico que vai do mea culpa liberal ao anticapitalismo marxista-maoiacutesta do naturismo arcaizante agrave contestaccedilatildeo hippie do romantismo ao regionalismo Cf CANGUILHEM G ldquoLa question de lrsquoeacutecologie la technique ou la vierdquo In DAGOGNET F Consideacuterations sur lrsquoideacutee de nature Paris Vrin 2000
121 Tambeacutem nos Eacutetudes ele fala da importacircncia da chamada patologia molecular para a
identificaccedilatildeo de predisposiccedilotildees geneacuteticas agrave rejeiccedilatildeo de hetero-enxertos e a certas afecccedilotildees por corroborar a ideia de individualidade bioloacutegica (cf E 1989 p405)
171
que a desindividualizaccedilatildeo da doenccedila eacute um meacutetodo de pesquisa cientiacutefica e natildeo de
intervenccedilatildeo cliacutenica
De modo mais preciso tal como apresenta nos seus Eacutetudes dacuteHistoire et de
Philosophie des Sciences para realizar a criacutetica ao cientificismo meacutedico ele natildeo
quer nem retomar o hipocratismo tradicional nem defender o naturismo
antirracionalista ou selvagem defendido pelos teoacutericos da antimedicina Segundo
ele uma coisa eacute considerar a forccedila da natureza no processo de cura outra eacute
deixar o doente a proacutepria sorte postura vinculada agrave ideologia do liberalismo
poliacutetico Isto eacute uma coisa eacute respeitar o tempo de resposta orgacircnica ao mal agindo
tecnicamente em conformidade a ela outra eacute deixar a natureza agir em livre curso
como se a teacutecnica natildeo intencional da vida prescindisse da teacutecnica meacutedica
intencional humana ldquoSe a humanidade se deu uma medicina eacute porque natildeo podia
dispensaacute-lardquo (E 1989 p385) Outra ainda eacute desconsiderar a importacircncia dos
conhecimentos cientiacuteficos para as praacuteticas meacutedicas embora elas natildeo se resumam
a mera aplicaccedilatildeo das ciecircncias puras ou fundamentais das quais se beneficia
Assim se a questatildeo natildeo eacute dispensar a teacutecnica meacutedica intencional humana
e nem os conhecimentos advindos da pesquisa cientiacutefico-experimental o
problema apresentado por Canguilhem desde seu Ensaio eacute que partir do momento
que a medicina como teacutecnica ou arte da cura se tornou uma ciecircncia das doenccedilas
houve uma mudanccedila no entendimento do patoloacutegico agora definido por meacutetodos
cientiacutefico-experimentais e por conseguinte nas praacuteticas meacutedicas A partir de uma
concepccedilatildeo de corpo maquiacutenico inerte e indiferente ou passivo e apaacutetico a sauacutede
passou a partir definiccedilotildees positivas a se identificar a um estado orgacircnico ideal
definido em condiccedilotildees experimentais determinadas a doenccedila foi tomada como
uma variaccedilatildeo quantitativa para menos deste e a cura como uma restituiccedilatildeo da
norma vital anterior da qual o organismo tinha se afastado As consequecircncias
disso foram a desconsideraccedilatildeo da heterogeneidade ou da diferenccedila qualitativa
existente entre os fenocircmenos normais e patoloacutegicos associada agrave tendecircncia agrave
mensuraccedilatildeo desses estados segundo um padratildeo de normalidade - seja
aritmeacutetico seja estatiacutestico ndash base de uma terapecircutica pensada pela perspectiva do
reparo (cf NP 1990 p217)
172
Como mostra em seus Escritos sobre a medicina tal racionalidade meacutedica
levou agrave reduccedilatildeo anatomofisioloacutegica do patoloacutegico traduzida pela
desindividualizaccedilatildeo da doenccedila e agrave identificaccedilatildeo da cliacutenica a praacuteticas de
normalizaccedilatildeo dos processos vitais dado o enquadramento da normalidade em
criteacuterios matemaacuteticos e sua imposiccedilatildeo como regra de sauacutede Transposta a mesma
loacutegica para o acircmbito populacional a desconsideraccedilatildeo da individualidade da
doenccedila se acentuou ainda mais quando da extensatildeo dos procedimentos meacutedicos
preventivos e curativos para o conjunto da sociedade a partir das medidas
higienistas com vistas agrave normalizaccedilatildeo coletiva ldquoO higienista se esmera em gerir
uma populaccedilatildeo Ele natildeo tem de se haver com indiviacuteduos Sauacutede puacuteblica eacute uma
denominaccedilatildeo contestaacutevel Salubridade conviria melhorrdquo (EM 2005 p44) Isto eacute
com o higienismo e o advento da hospitalizaccedilatildeo a noccedilatildeo de individualidade se
dissolveu no coletivo e as doenccedilas passaram a se remeter mais agrave medicina que
ao mal experienciado pelo paciente
ldquoO tratamento hospitalar das doenccedilas em uma estrutura social regulamentada contribuiu para desindividualizaacute-las ao mesmo tempo em que a anaacutelise cada vez mais artificial de suas condiccedilotildees de aparecimento extraiu sua realidade da representaccedilatildeo cliacutenica inicialrdquo (EM 2005 p 28)
Desde entatildeo o meacutedico terapeuta que exercia diversas partes da medicina
atualmente chamado cliacutenico geral perdeu seu prestiacutegio e autoridade em benefiacutecio
dos meacutedicos engenheiros especialistas nas diversas partes de um corpo-maacutequina
(cf EM 2005 p28) Mudado o local de investigaccedilatildeo da doenccedila do leito do doente
para o laboratoacuterio o doente passou a ser caracterizado pela doenccedila e a doenccedila
deixou de ser o feixe de sintomas apresentado de modo espontacircneo por ele Os
sintomas da doenccedila o diagnoacutestico etioloacutegico o prognoacutestico e a decisatildeo
terapecircutica passaram a ser sustentados natildeo mais pelo interrogatoacuterio ou
investigaccedilatildeo cliacutenica mas por pesquisas experimentais e exames laboratoriais e o
doente deixou de ser o sujeito de sua doenccedila para ser objeto
O meacutedico passou a realizar seu diagnoacutestico natildeo mais a partir da
observaccedilatildeo dos sintomas espontacircneos mas atraveacutes do exame de sinais
173
provocados A consulta passou a consistir na interrogaccedilatildeo de um banco de dados
de ordem semioloacutegica e etioloacutegica de um computador e a formulaccedilatildeo de um
diagnoacutestico a depender de uma avaliaccedilatildeo de informaccedilotildees estatiacutesticas Com o
deslocamento do local de observaccedilatildeo e anaacutelise das estruturas orgacircnicas suspeitas
para o laboratoacuterio de exames fiacutesicos e quiacutemicos a doenccedila passou a ser localizada
no oacutergatildeo no tecido na ceacutelula no gene na enzina e identificada na sala de
autoacutepsia (cf EM 2005 p24-26)
Pelo mesmo vieacutes em O normal e o patoloacutegico Canguilhem critica o uso do
modelo maquinal e o meacutetodo analiacutetico para a compreensatildeo do vivente e tambeacutem
os meacutedicos que consideram o organismo como uma maacutequina cujo rendimento
deve ser medido (cf NP 1990 p92) A seu ver de modo errocircneo a anaacutelise
anatocircmica e fisioloacutegica dissocia o organismo em oacutergatildeos e funccedilotildees elementares
tentando situar a doenccedila ao niacutevel das condiccedilotildees parciais da estrutura total ou do
comportamento de conjunto Conforme progride a anaacutelise a doenccedila eacute colocada ao
niacutevel do oacutergatildeo tecido ou ceacutelula ou seja procura-se numa parte um problema
levantado pelo organismo inteiro
ldquoEacute por essa razatildeo que achamos contrariamente a todos os haacutebitos meacutedicos atuais que eacute medicamente incorreto falar em oacutergatildeos doentes tecidos doentes ceacutelulas doentesrdquo (NP 1990 p188)
Assim recusando a ideia de que o corpo eacute um conjunto de partes como eacute
uma maacutequina ele resgata da tradiccedilatildeo hipocraacutetica a concepccedilatildeo totalizante e natildeo
localizante do patoloacutegico segundo a qual a doenccedila natildeo estaacute em alguma parte do
homem mas em todo ele e eacute toda dele ldquoa doenccedila existe natildeo somente para o
homem mas para qualquer ser vivo soacute existe doenccedila do todo orgacircnicordquo (NP
1990 p182-183) Natildeo sendo uma mera somatoacuteria de ceacutelulas e oacutergatildeos o indiviacuteduo
eacute um todo e somente como um todo pode ou natildeo ser considerado doente
ldquoProcurar a doenccedila ao niacutevel da ceacutelula eacute confundir o plano da vida concreta ndash em que a polaridade bioloacutegica estabelece a diferenccedila entre a sauacutede e a doenccedila ndash e o plano da ciecircncia abstrata em que o problema recebe uma soluccedilatildeordquo (NP 1990 p183)
174
Acreditando que sauacutede e doenccedila satildeo conceitos vulgares e natildeo cientiacuteficos
para ele a atividade meacutedica tem como centro o doente e seus julgamentos de
valor Portanto para elaborar um diagnoacutestico o meacutedico natildeo pode prescindir da
escuta e da observaccedilatildeo cliacutenicas Por isso ele julga haver um equiacutevoco quando
algueacutem fala em patologia objetiva ou em meacutetodos objetivos de investigaccedilatildeo
diagnoacutestica achando que apenas a observaccedilatildeo anatocircmica e histoloacutegica o teste
fisioloacutegico ou o exame bacterioloacutegico satildeo suficientes para realizar o diagnoacutestico da
doenccedila sem nenhum interrogatoacuterio ou exploraccedilatildeo cliacutenica
ldquoum microscoacutepio um termocircmetro um caldo de cultura natildeo podem conhecer uma medicina que o meacutedico porventura ignore Fornecem apenas um resultado Este resultado natildeo tem por si nenhum valor diagnoacutestico Para fazer um diagnoacutestico eacute preciso observar o comportamento do doenterdquo (NP 1990 p185)
Assim questionando a ideia de que eacute necessaacuterio desindividualizar a doenccedila
para compreender o fenocircmeno patoloacutegico ele apresenta outra racionalidade que
recusa este princiacutepio principal caracteriacutestica da racionalidade biomeacutedica moderna
pautada na elucidaccedilatildeo cientiacutefico-experimental do patoloacutegico isto eacute numa
patologia objetiva e propotildee outra forma de pensar na qual a doenccedila eacute antes de
tudo um pathos subjetivo e mais do que um acometimento bioloacutegico eacute uma
ameaccedila a uma existecircncia individual um drama na histoacuteria de um indiviacuteduo
concreto que vecirc mudadas suas relaccedilotildees de conjunto com seu meio (entourage)
Por esta perspectiva para individualizar a doenccedila natildeo haacute como prescindir da
relaccedilatildeo meacutedico-doente estabelecida na cliacutenica pois eacute neste momento que o
meacutedico entra em contato com o indiviacuteduo completo e concreto que sente um mal-
estar e que vivencia a anguacutestia suscitada pela doenccedila (cf NP 1990 p65)
Por outra via entatildeo guardando de Hipoacutecrates sua confianccedila na capacidade
de autodefesa da vida (vis medicatrix naturae) sua concepccedilatildeo totalizante da
doenccedila e o caraacuteter empiacuterico-observacional e relacional de sua arte meacutedica
Canguilhem apresenta uma racionalidade meacutedica vitalista proacutepria que considera a
dimensatildeo axioloacutegica da vida quer dizer que tem por base a ideia de que o
entendimento do normal e do patoloacutegico deve ser buscado na experiecircncia que os
175
homens tecircm de suas relaccedilotildees de conjunto com o meio (cf NP 1990 p65) Por
esta perspectiva individualizar a doenccedila eacute tomaacute-la como pathos de um indiviacuteduo
concreto em seu meio consciente de sua situaccedilatildeo favoraacutevel ou desfavoraacutevel na
existecircncia122
Com efeito em seu Ensaio sobre alguns problemas relativos ao normal e
ao patoloacutegico acompanhando Goldstein para quem para a compreensatildeo do ser
doente (Kranksein) eacute preciso considerar que a doenccedila eacute um abalo e uma ameaccedila
agrave existecircncia e que por isso sua definiccedilatildeo exige como ponto de partida a noccedilatildeo de
ser individual Canguilhem afirma que a sauacutede aleacutem de um comportamento
bioloacutegico eacute um sentimento de seguranccedila na vida uma maneira de abordar a
existecircncia com uma sensaccedilatildeo natildeo apenas de possuidor mas tambeacutem de criador
de novas normas vitais ldquoa palavra valere que deu origem a valor significa em
latim passar bemrdquo (NP 1990 p163) Jaacute a doenccedila eacute um comportamento de valor
negativo que para o vivente humano concreto em atividade polarizada com seu
meio chega agrave consciecircncia como um passar mal (cf NP 1990 p163)
Na mesma direccedilatildeo em La connnaissance de la vie no artigo ldquoLe normal et
le pathologiquerdquo ao tratar da singularidade individual ele novamente esclarece
que ela natildeo se refere a um tipo preestabelecido mas se remete a diferentes
organizaccedilotildees para as quais a validade ou seja seu valor se identifica a seu ecircxito
de permanecer na vida ldquoAqui estaacute o sentido profundo de identidade atestado
pela linguagem entre valor e sauacutede valere em latim eacute passar bem [bien porter]rdquo
(CV 1985 p159) Ainda mais uma vez citando o pensamento de Goldstein
122
Em vista disso Scofano amp Luz (2008) veem uma aproximaccedilatildeo possiacutevel entre os pensamentos de Canguilhem e Samuel Hahnemann (1755-1843) fundador da homeopatia Segundo as autoras Hahnemann descreveu a doenccedila como um desequiliacutebrio do organismo como um todo carregando a marca da afecccedilatildeo individual Da mesma forma Canguilhem afirma que os sintomas soacute tecircm sentido dentro de seu contexto especiacutefico e expressa um distuacuterbio global Hahnemann daacute agrave sauacutede uma definiccedilatildeo positiva como o estado de equiliacutebrio da forccedila vital entendida como uma qualidade essencial da mateacuteria que compotildee os seres vivos e que corresponde a uma concepccedilatildeo de vitalismo que entende o vivo como totalidade auto-organizada Canguilhem definiu seu vitalismo como o simples reconhecimento da originalidade da vida sobre a mateacuteria inanimada e descreveu a vida como uma polaridade dinacircmica Neste contexto a doenccedila eacute vista como uma forma de obrigar o organismo a buscar um novo equiliacutebrio para manter a homeostase Por esta perspectiva sauacutede e cura satildeo partes integrantes da auto-organizaccedilatildeo dos seres vivos e a dicotomia do processo sauacutededoenccedila eacute mero artefato linguiacutestico Cf SCOFANO D LUZ MT Vitalism and vital normativeness Hahnemann and Canguilhem Int J High Dilution Res 7(24)140-146 2008
176
corrobora sua afirmaccedilatildeo do Ensaio de que a adaptaccedilatildeo a um meio pessoal eacute um
dos pressupostos fundamentais da sauacutede e como evento subjetivamente
experimentado pelo paciente eacute mais uma apreciaccedilatildeo de valor do que algo a ser
medido ou exposto objetivamente (cf CV 1985 p164)
Assim eacute se apropriando de teorias como a de Espinosa Nietzsche
Simondon Politzer e Goldstein que Canguilhem compotildee sua concepccedilatildeo de vida
como potecircncia123 e de vivente humano como indiviacuteduo concreto que natildeo se
resume ao sujeito da modernidade124 pois se define como uma totalidade
orgacircnica consciente para a qual a doenccedila comportamento bioloacutegico de valor vital
negativo adquire tambeacutem sentido existencial negativo125 Recorrendo agrave ideia
espinosana de esforccedilo do vivente para manter-se na vida e nietzschiana de vida
como potecircncia criadora de valores que busca superaccedilatildeo ou expansatildeo e natildeo
123 Na construccedilatildeo da concepccedilatildeo canguilhemiana de vida Macherey (2009) destaca as contribuiccedilotildees de Bachelard Bergson e Espinosa A noccedilatildeo de erro e o conceito de valor vital negativo satildeo trabalhados a partir de Bachelard a ideia de esforccedilo espontacircneo de todo vivente para manter-se na vida o movimento polarizado da vida que permite ao vivente desenvolver ao maacuteximo isso que nele eacute ser ou existir tecircm inspiraccedilatildeo bergsoniana mas tambeacutem se aproxima da noccedilatildeo espinosana de conatus (cf MACHEREY 2009 p100)
124 Atraveacutes de sua criacutetica ao sujeito moderno transparente a si mesmo que pretende o domiacutenio de
tudo o que eacute de si mesmo e do mundo Canguilhem antecipa o que Ferry amp Renaut (1988) definem como o anti-humanismo hiperboacutelico da filosofia francesa contemporacircnea dos anos 6070 representada entre outros por Foucault Lacan Derrida Deleuze e Althusser e caracterizada pela proclamaccedilatildeo da morte do homem como sujeito metafiacutesico abstrato atemporal e autocircnomo pela recorrecircncia agrave histoacuteria por ldquooacutedio ao universalrdquo e pela identificaccedilatildeo do humanismo moderno a uma ideologia burguesa Com efeito ao trocar a noccedilatildeo de homem pela de vivente humano como totalidade orgacircnica consciente singular dotada de potecircncia normativa e depois pela de indiviacuteduo concreto historicizado produtor de valores e normas sociais Canguilhem compartilha com esta geraccedilatildeo a afirmaccedilatildeo das diferenccedilas individuais ou idiossincrasias a criacutetica agraves normalizaccedilotildees e a defesa de uma eacutetica libertaacuteria que recusa uma concepccedilatildeo universalista de ethos baseado na lei e nos valores universais Mas com isso ele tambeacutem teraacute de se a ver com o fato de que a criacutetica ao sujeito e a promoccedilatildeo do indiviacuteduo a defesa do direito absoluto agrave heterogeneidade colocam no horizonte o individualismo exacerbado da sociedade de consumo e que uma concepccedilatildeo individualista de ethos exclui a possibilidade de se falar em direitos humanos Cf FERRY L RENAUT A Pensamento 68 ensaio sobre o anti-humanismo contemporacircneo [trad Roberto Markeson amp Nelci do Nascimento Gonccedilalves] Satildeo Paulo Ensaio 1988
125 Para Badiou (1993) nem substancial nem transcendental nem psicoloacutegico o sujeito para
Canguilhem eacute o vivente singular centro a partir do qual emergem norma e sentido ldquorsquoHumanidadersquo eacute entatildeo o nome geneacuterico de todo sujeito vivente singularrdquo (BADIOU 1993 p302) Entatildeo se por vezes Canguilhem fala em Sujeito este soacute pode ser o sujeito vivente singular insatisfeito com seu sentido que vive em constantes deslocamentos (deacuteplacement) em relaccedilatildeo a si mesmo isto eacute um sujeito livre para se deslocar um sujeito historicizado no verdadeiro sentido do termo (cf BADIOU 1993 p304) Cf BADIOU A Y a-t-il une theacuteorie du sujet chez Georges Canguilhem In BADIOU A (et al) Georges Canguilhem Philosophe historien des sciences Actes du colloque (6 7 8 deacutecembre 1990) Op cit
177
conservaccedilatildeo de seu estado de forccedilas e ainda tomando de Simondon a noccedilatildeo de
indiviacuteduo vivente como sistema metaestaacutevel rico em potenciais e de processo de
individuaccedilatildeo como devir de potencialidades do ser ele remata sua ideia de
indiviacuteduo concreto como um todo potencial em processo contiacutenuo de auto-
organizaccedilatildeo fiacutesica e psiacutequica constituiacutedo e constituinte de seu meio capaz de
reagir a o que lhe ameaccedila atraveacutes do exerciacutecio de sua liberdade de valorar e criar
normas
De modo mais preciso como vimos a partir de seu pensamento bioloacutegico
vitalista materialista antimecanicista e antiteleoloacutegico ele define os organismos
como sistemas autorreguladores vivos com tendecircncia agrave autoconservaccedilatildeo por
superaccedilatildeo caracterizados pela espontaneidade e pela liberdade de valorar seus
comportamentos criar e infringir suas proacuteprias normas O vivente humano como
potecircncia normativa e valorativa na sua especificidade aparece dotado de sentido
bioloacutegico e existencial singular apresentando a capacidade de transformar o meio
ao mesmo tempo vital e social em que vive e de adaptar-se ativamente a ele
Portanto ele natildeo se resume a uma individualidade bioloacutegica ou fiacutesico-quiacutemica
estaacutetica mas aparece como uma totalidade individual concreta em contiacutenuo
processo de auto-organizaccedilatildeo somaacutetica e psiacutequica produto e produtora do meio
ecoloacutegico geograacutefico histoacuterico e sociocultural em que se encontra
Com efeito em O normal e o patoloacutegico Canguilhem adota uma concepccedilatildeo
de vida como potecircncia dinacircmica de superaccedilatildeo no campo somaacutetico e psiacutequico (cf
NP 1990 p90) Isso explica porque ao definir a medicina como uma arte da cura
enraizada na vida ele diz ser o meacutedico natildeo um cientista mas um artiacutefice que tem
por mateacuteria a vida humana concreta natildeo inerte e apaacutetica da tradiccedilatildeo mecanicista
submetida agrave orientaccedilatildeo normativa externa mas dinacircmica e criadora em constante
devir e portanto natildeo determinada e matematizaacutevel mas sim dotada de uma
estrutura histoacuterica tanto quanto histoloacutegica (cf NP 1990 p164) Caracterizada
pela processualidade e pela indeterminaccedilatildeo de seus acontecimentos a ela eacute
possiacutevel subverter uma ordem instituiacuteda e criar novas ordens para si mesma Eacute
por esta mesma perspectiva que ele afirma ser tambeacutem o meio bioloacutegico infiel
ldquonada acontece por acaso mas tudo ocorre sob a forma de acontecimento Eacute
178
nisso que o meio eacute infiel Sua infidelidade eacute exatamente seu devir sua histoacuteriardquo
(NP 1990 p159)
O fato de a vida ser atividade polarizada e criadora esclarece tambeacutem
porque Canguilhem diz ser a sauacutede uma maior normatividade isto eacute uma maior
capacidade de reaccedilatildeo e de instituiccedilatildeo de normas o que daacute ao vivente uma maior
possibilidade de enfrentamento agraves infidelidades do meio (milieu) Ainda que ela eacute
a indeterminaccedilatildeo inicial da capacidade do indiviacuteduo de instituir novas normas
bioloacutegicas Assim considerando que a vida estaacute habitualmente aqueacutem de suas
possibilidades ele considera ser a sauacutede em casos de necessidade de reaccedilatildeo e
de defesa por parte do vivente o poder de ir aleacutem de sua capacidade presumida
ldquoAssim como haacute um seguro psicoloacutegico que natildeo representa presunccedilatildeo haacute um
seguro bioloacutegico que natildeo representa excesso e que eacute a sauacutederdquo (NP 1990 p160)
Assim a sauacutede natildeo eacute a adoccedilatildeo e conservaccedilatildeo de uma norma orgacircnica tida
por ideal mas um guia regulador das possibilidades de reaccedilatildeo do vivente ao que
lhe ameaccedila Aleacutem disso a possibilidade de abusar da sauacutede faz parte da sauacutede o
que mostra que a ameaccedila da doenccedila eacute um dos elementos constitutivos dela
ldquoestar em boa sauacutede eacute poder cair doente e se recuperar eacute um luxo bioloacutegicordquo (NP
1990 p160) Como capacidade de superar crises a sauacutede mais do que natildeo
adoecer eacute conseguir se recuperar Daiacute o sentido da doenccedila paradoxal do homem
normal que se origina da permanecircncia do estado satildeo que nasce da existecircncia
quase incompatiacutevel com a doenccedila Como uma inquietaccedilatildeo por ter permanecido
normal o homem pode sentir uma necessidade de testar sua sauacutede jaacute que ele soacute
se sente satildeo quando sua sauacutede o abandona quando consegue frear um processo
de adoecimento que os outros levariam ateacute o fim quando potildee agrave prova sua
confianccedila bioloacutegica em si mesmo e se certifica de seu poder de recuperaccedilatildeo ldquoO
homem dito satildeo natildeo eacute portanto satildeo Sua sauacutede eacute o equiliacutebrio conquistado agrave custa
de rupturas incoativasrdquo (NP 1990 p 261)
Assim notando que a noccedilatildeo de sauacutede absoluta estaacute associada a de tipo
ideal e esta articulada ao desejo de existecircncia de um ser divino perfeito
Canguilhem adverte que a sauacutede contiacutenua sim eacute um fato anormal pois a doenccedila
179
eacute prevista para o organismo embora seja um estado contra o qual eacute preciso lutar
jaacute que para o vivente a persistecircncia na vida eacute a norma (cf NP 1990 p107)
Entendendo tambeacutem que o vivente natildeo se limita a seu organismo pois ele estaacute
inserido em um meio e que sua sauacutede estaacute estreitamente relacionada com a
qualidade das trocas que estabelece com ele na oacuteptica canguilhemiana
normalidade natildeo eacute sinocircnimo de adaptaccedilatildeo passiva mas o poder se realizar
melhor num ambiente o que demanda reatividade e criatividade vitais
indispensaacuteveis a uma atividade transformadora reciacuteproca (cf NP 1990 p73)
Tendo em vista a dimensatildeo axioloacutegica da sauacutede e da doenccedila ele diz que o
homem soacute se sente em boa sauacutede e destaca o que eacute precisamente a sauacutede
quando se sente mais do que adaptado ao meio e agraves suas exigecircncias isto eacute
quando se sente normativo ou seja capaz de seguir novas normas de vida (cf
NP 1990 p 161) Sendo assim para o vivente humano como um julgamento de
valor a sauacutede eacute traduzida por bem-estar vida longa capacidade de reproduccedilatildeo
de trabalho fiacutesico resistecircncia agrave fadiga ausecircncia de dor sentir o corpo o menos
possiacutevel uma agradaacutevel sensaccedilatildeo de existir126 Jaacute a doenccedila eacute algo nocivo
indesejaacutevel porque tambeacutem desvalorizado num dado meio social ldquomais do que a
opiniatildeo dos meacutedicos eacute a apreciaccedilatildeo dos pacientes e das ideias dominantes do
meio social que determina o que se chama lsquodoenccedilarsquordquo (cf NP 1990 p93) Isso
porque a representaccedilatildeo social da doenccedila eacute tambeacutem fator constitutivo do
patoloacutegico considerando que o estado de mal pode ser agravado pela ausecircncia
de uma atividade possiacutevel e de um papel social condigno ao enfermo (cf NP
1990 p108)
Por isso Canguilhem diz acreditar ser aleacutem do corpo entendido como
conjunto de oacutergatildeos e suas funccedilotildees que se deve olhar para julgar o que eacute normal e
patoloacutegico jaacute que a normalidade apenas poderaacute ser definida a partir da relaccedilatildeo do
indiviacuteduo com seu meio Assim considerando que sauacutede tem a ver com esta
relaccedilatildeo para saber se houve cura eacute necessaacuterio considerar como o indiviacuteduo vive 126
Canguilhem aqui entra em concordacircncia com Karl Jaspers quando em sua Psychopathologie geacuteneacuterale expotildee as dificuldades se para chegar a uma determinaccedilatildeo meacutedica do normal e da sauacutede por serem antes de tudo conceitos vulgares ou julgamentos de valor relativos agrave existecircncia (cf NP 1990 p93)
180
e se relaciona pois mesmo que sua atividade residual tenha ficado reduzida apoacutes
o episoacutedio da doenccedila o que importa eacute a satisfaccedilatildeo que ele demonstra com a
possibilidade de retorno a suas atividades cotidianas habituais Isso porque
quando se trata de normas humanas essas normas satildeo determinadas como
possibilidades de agir de um indiviacuteduo num situaccedilatildeo social e natildeo como funccedilatildeo de
um organismo encarado como um mecanismo vinculado a um meio bioloacutegico ou
fiacutesico-quiacutemico (milieu) Se o meio humano eacute um campo de experiecircncias e
empreendimentos a sauacutede passa a ser a quantidade de energia que o indiviacuteduo
dispotildee para delimitaacute-lo e estruturaacute-lo (cf NP 1990 p259) Desta forma a soacute cura
pode ser traduzida pelo aumento das possibilidades de accedilatildeo ou como diria
Espinosa como aumento da potecircncia de agir dos indiviacuteduos em seu meio
(entourage) o que pede natildeo soacute mudanccedilas normativas individuais mas tambeacutem da
normatividade social
Tambeacutem em seus Escritos sobre a Medicina em recusa a ideia de corpo
estaacutetico e objetivado tal como apresentado pela perspectiva mecanicista
Canguilhem apresenta uma concepccedilatildeo de corpo dinacircmico e subjetivo jaacute que
rechaccedila a distinccedilatildeo substancial entre res cogitans e res extensa127 Novamente
ele defende a ideia de que de que as funccedilotildees orgacircnicas de autorregulaccedilatildeo estatildeo
intimamente ligadas agraves funccedilotildees de adaptaccedilatildeo ao meio ambiente e que esta
relaccedilatildeo natildeo eacute de sujeiccedilatildeo passiva (cf EM 2005 p54-55) A maacute sauacutede eacute a
restriccedilatildeo das margens de seguranccedila orgacircnica a limitaccedilatildeo do poder de toleracircncia e
de compensaccedilatildeo agraves agressotildees do meio ambiente (cf EM 2005 p43) Aqui
considerando as noccedilotildees de patrimocircnio geneacutetico e resistecircncia orgacircnica apresenta
todo vivente humano como um organismo individual dotado de um sistema proacuteprio
de autodefesa
127
Eacute importante notar que com a noccedilatildeo de corpo subjetivo atraveacutes de uma adjetivaccedilatildeo Canguilhem escapa da mera justaposiccedilatildeo de termos como vemos nas palavras psicossomaacutetico somatopsiacutequico ou biopsicoloacutegico Em seus Eacutetudes dacuteHistoire et de Philosophie des Sciences no artigo ldquoPuissance et limites de la rationaliteacute em meacutedecinerdquo ao tratar da questatildeo mentecorpo ele diz que mesmo os adeptos da medicina psicossomaacutetica se contentam com a justaposiccedilatildeo de termos mantendo implicitamente nesta construccedilatildeo semacircntica o problema da relaccedilatildeo entre o somaacutetico e o psiacutequico (cf E 1989 p408)
181
ldquoo conceito de homem recobre com uma falsa aparecircncia de identidade especiacutefica organismos individuais providos de diferentes poderes de resistecircncia agraves agressotildees por sua ascendecircnciardquo (EM 2005 p27)
Por esta perspectiva o vivente humano como individualidade bioloacutegica natildeo pode
ser pensado como um universal mas somente como um singular128 que
consegue resistir ao que lhe ameaccedila adaptando-se ativamente ao meio devido a
sua capacidade de resistecircncia proacutepria
Mas mais do que considerar que os viventes humanos satildeo singulares
quanto agraves capacidades de resistecircncia orgacircnica individualizar a doenccedila eacute inscrevecirc-
la na histoacuteria de um indiviacuteduo concreto para o qual a doenccedila natildeo eacute apenas uma
alteraccedilatildeo anatomofisioloacutegica mas uma provaccedilatildeo no sentido afetivo do termo pois
ela o coloca diante da finitude e da impotecircncia para fazer frente agraves exigecircncias de
seu meio de vida (entourage) Isto eacute se todo ser vivo eacute um organismo singular
cuja sauacutede exprime a qualidade dos poderes que o constituem o vivente humano
em sua especificidade como indiviacuteduo concreto consciente eacute o uacutenico que tem a
capacidade de avaliar e de representar a si mesmo estes poderes de exerciacutecio e
seus limites Para este sauacutede eacute o sentimento de uma capacidade de ultrapassar
capacidades iniciais de fazer com que o corpo faccedila o que parecia natildeo prometer
inicialmente (cf EM 2005 p43)
Jaacute a doenccedila como fato bioloacutegico universal e no vivente humano como
prova existencial eacute o que desperta questionamentos sobre a precariedade de
suas estruturas orgacircnicas ldquoas doenccedilas satildeo instrumentos da vida por meio dos
quais o ser vivo quando se trata do homem se vecirc obrigado a se reconhecer
mortalrdquo (EM 2005 p33) Em resumo a doenccedila eacute um drama inevitaacutevel a ser vivido
pelo homem em algum momento de sua existecircncia inclusive por tornaacute-lo
consciente de sua finitude
128
Eacute o que faz Cammelli (2006) dizer que para Canguilhem a humanidade soacute pode ser as diferentes formas de vida cada qual com sua singularidade Logo ele questiona a noccedilatildeo de Humanidade defendida pelos marxistas pois haacute somente a existecircncia singular (cf CAMMELLI 2006 p43) Op cit
182
ldquoAs doenccedilas do homem natildeo satildeo somente limitaccedilotildees de seu poder fiacutesico satildeo dramas de sua histoacuteria A vida humana eacute uma existecircncia um ser-aiacute para um devir natildeo preordenado na obsessatildeo de seu fim Portanto o homem eacute aberto agrave doenccedila natildeo por sua condenaccedilatildeo ou sina mas por sua simples presenccedila no mundordquo (EM 2005 p62)
Como a doenccedila nunca seraacute excluiacuteda da experiecircncia humana Canguilhem
concorda com a ideia de Cornillot de que a sauacutede absoluta estaacute em contradiccedilatildeo
com a dinacircmica proacutepria dos sistemas bioloacutegicos (cf EM 2005 p 64) Aqui ao
dizer que a doenccedila eacute um episoacutedio inevitaacutevel e que o risco da doenccedila eacute inerente ao
gozo da sauacutede ele aproxima sua concepccedilatildeo de sauacutede a de Nietzsche pra quem a
grande sauacutede eacute o poder absorver e de vencer as tendecircncias moacuterbidas o poder pocircr
agrave prova todos os valores e todos os desejos (cf EM 2005 p64) Ainda reafirma
sua ideia de que estar saudaacutevel natildeo significa estar fixado em uma uacutenica norma129
e que cura natildeo eacute o retorno a um estado de normalidade preacutevio
ldquoA vida do indiviacuteduo eacute desde a origem reduccedilatildeo dos poderes da vida Porque a sauacutede natildeo eacute uma constante satisfaccedilatildeo mas o a priori do poder de dominar situaccedilotildees perigosas esse poder eacute usado para dominar perigos sucessivos A sauacutede depois da cura natildeo eacute a sauacutede anterior A consciecircncia luacutecida do fato de que curar natildeo eacute retornar ajuda o doente em sua busca de um estado de menor renuacutencia possiacutevel liberando-o da fixaccedilatildeo ao estado anteriorrdquo (EM 2005 p70)
Lembrando tambeacutem que Nietzsche por recusar a distinccedilatildeo substancial
cartesiana considerava o corpo uma grande razatildeo da qual proviria toda verdade
Canguilhem afirma que a sauacutede como verdade do corpo natildeo pode ser referida a
uma explicaccedilatildeo por teoremas Aleacutem disso a cura natildeo pode ser assimilada a um
efeito necessaacuterio de uma relaccedilatildeo meacutedico-doente de tipo mecacircnico concebida
como a de um teacutecnico competente com um mecanismo perturbado (cf EM 2005
p60) A definiccedilatildeo de sauacutede inclui a referecircncia da vida orgacircnica ao prazer e agrave dor
experimentados pelo indiviacuteduo que o discurso meacutedico acredita poder descrever
na terceira pessoa Mas a dor e o prazer satildeo sempre de algueacutem (cf EM 2005
p45) Ela eacute condiccedilatildeo a priori latente vivida em um sentido propulsivo de
129
Em La connaissance de la vie no artigo ldquoLe normal et le pathologiquerdquo ao tratar das doenccedilas mentais Canguilhem define a fixaccedilatildeo normativa como o proacuteprio estado patoloacutegico ldquoQuem quereria sustentar em mateacuteria de psiquismo humano que o anormal natildeo obedece as normas Ele talvez seja anormal porque obedece demaisrdquo (CV 1985 p 168)
183
realizaccedilatildeo de toda atividade escolhida ou imposta (cf EM 2005 p58) Por
oposiccedilatildeo as doenccedilas satildeo crises orgacircnicas das funccedilotildees de autoconservaccedilatildeo e
tambeacutem crises no esforccedilo para defender valores e razotildees de viver (cf EM 2005
p32) Por isso ele acredita que seja qual for o interesse do estudo das doenccedilas
suas variedades e histoacuteria ele natildeo pode eclipsar o interesse pelas tentativas de
compreensatildeo do papel e do sentido da doenccedila na experiecircncia humana
Todavia percebe que a partir do momento em que a sauacutede passou a dizer
respeito a um homem participante de uma comunidade social ou profissional o
sentido existencial da doenccedila desapareceu Seu sentido foi ocultado pelas
exigecircncias de uma contabilidade na medida em que passou a dizer mais respeito
ao deacuteficit orccedilamentaacuterio de uma instituiccedilatildeo do que o viver a doenccedila para o doente
Tambeacutem a sauacutede passou a ser objeto de um caacutelculo ldquoDesde entatildeo conhecemos o
checkuprdquo (EM 2005 p42) Com a multiplicaccedilatildeo dos hospitais organizados para
funcionar como maacutequinas de curar a atenccedilatildeo concedida por um meacutedico particular
a um doente particular se perdeu num espaccedilo cada vez mais preenchido por
equipamentos e regulamentos sanitaacuterios (cf EM 2005 p61) A imagem do
meacutedico haacutebil e atento de quem os doentes esperam a cura foi pouco a pouco
ocultada pela de agentes executando instruccedilotildees de um aparelho de Estado
encarregado de velar pelo direito agrave sauacutede de cada cidadatildeo em reacuteplica aos
deveres que a coletividade assume para o bem de todos (cf EM 2005 p56) Por
isso hoje ainda estamos longe de uma sauacutede medida por meio de aparelhos de
uma sauacutede livre natildeo condicionada natildeo contabilizada que natildeo eacute objeto para
aquele que se diz ou crecirc especialista da sauacutede (cf EM 2005 p44)
Natildeo sendo a cura o retorno a uma norma orgacircnica anterior Canguilhem
tambeacutem acredita que ela natildeo eacute mero efeito da terapecircutica prescrita como em
geral se ensina nas escolas meacutedicas Primeiro porque a vis medicatrix naturae
age como intermediaacuteria no processo de cura na medida em que a vida mesma
quando ameaccedilada reage criando novas normas para si Como jaacute mostrava
Hipoacutecrates nem todos os doentes tratados se curam e alguns doentes se curam
sem meacutedico (cf EM 2005 p12) Segundo porque a relaccedilatildeo intersubjetiva
meacutedico-doente interfere no processo de cura fato atestado pelo uso do meacutetodo
184
placebo e pelo poder de presenccedila do meacutedico assimilado ao do medicamento
ldquoDoravante em se tratando de remeacutedios a maneira de os dar vale mais por
vezes do que o que eacute dadordquo (EM 2005 p50) Natildeo obstante ele percebe que as
faculdades preparam mal os alunos pois fazem com que acreditem que a cura se
determina exclusivamente por intervenccedilotildees de ordem fiacutesica ou fisioloacutegica
desconsiderando a importacircncia da relaccedilatildeo ativa positiva ou negativa da relaccedilatildeo
meacutedico-doente considerada resiacuteduo arcaico de magia ou de fetichismo
A seu ver a cura eacute um acontecimento que se daacute na relaccedilatildeo entre meacutedico e
doente que nem sempre se daacute sem desentendimentos ou descompassos Ou
seja para o meacutedico do ponto de vista objetivo a cura eacute o resultado de um
tratamento validado pela enquete estatiacutestica de seus resultados mas haacute nela um
elemento subjetividade em referecircncia agrave avaliaccedilatildeo que o doente faz de seu proacuteprio
estado Haacute indiviacuteduos que apesar de objetivamente curados ainda se sentem
doentes e outros que embora ainda doentes sentem-se e comportam-se como
se estivessem curados (cf EM 2005 p60) Sendo assim o meacutedico deveria
compreender que a demanda de seus clientes pode ser apenas a de conservar
sua disposiccedilatildeo de viver sem se preocupar se os testes objetivos satildeo positivos ou
concordantes Por isso tambeacutem do ponto de vista da praacutetica meacutedica deveria valer
mais o vivido pelo sujeito vivo do que o que diz a ciecircncia do fisiologista
ldquoEacute que a sauacutede e a cura resultam de um gecircnero de discurso diferente daquele por meio do qual se aprende o vocabulaacuterio e a sintaxe nos tratados de medicina e nas conferecircncias de cliacutenicardquo (EM 2005 p59)
Em vista disso Canguilhem recorre agrave Goldstein para quem a relaccedilatildeo
meacutedico-doente natildeo eacute uma situaccedilatildeo baseada unicamente num conhecimento do
tipo da causalidade mas um debate entre duas pessoas no qual uma quer ajudar
a outra a adquirir uma estruturaccedilatildeo tatildeo conforme possiacutevel a sua essecircncia e que
portanto a tarefa do meacutedico se aproxima a do pedagogo na medida em que ele
age como um conselheiro ou guia do doente no difiacutecil caminho da cura (cf EM
2005 p64-66) Tambeacutem entendendo que a relaccedilatildeo meacutedico-doente natildeo eacute de
simples ordem instrumental de causalidade entre o gesto terapecircutico e seu
185
resultado ele contesta a ideia de que eacute possiacutevel realizar um diagnoacutestico sem a
observaccedilatildeo e a escuta do doente Aproximando a atividade meacutedica a do exegeta
propotildee entatildeo um procedimento metodoloacutegico que por influecircncia do pensamento
freudiano130 aposta na relaccedilatildeo meacutedico-paciente como integrante do processo de
cura e na interpretaccedilatildeo do sentido do sintoma para cada doente em particular
ldquoMeu meacutedico eacute aquele que aceita de modo geral que eu o instrua sobre aquilo que soacute eu estou fundamentado para lhe dizer ou seja o que meu corpo anuncia como sintoma e cujo sentido natildeo me claro Meu meacutedico eacute aquele que aceita que eu veja nele um exegeta antes de vecirc-lo como um reparadorrdquo (EM 2005 p45)
Tendo em vista tambeacutem que o entendimento sobre o patoloacutegico direciona a
terapecircutica Canguilhem destaca a importacircncia do conhecimento de seus tipos e
causas Segundo ele as doenccedilas podem ser hereditaacuterias congecircnitas ocasionais
causadas pela relaccedilatildeo do indiviacuteduo com seu meio ecoloacutegico e a seu grupo social
de vida Elas tecircm uma distribuiccedilatildeo geograacutefica e se datildeo segundo a forma das
relaccedilotildees sociais proacuteprias agraves populaccedilotildees afetadas Desta forma para compreender
sua gecircnese eacute necessaacuterio ir aleacutem de seus aspectos anatomofisioloacutegicos Todavia
embora concorde com a criacutetica ao extremismo das teorias meacutedicas enfeudadas
pelo pasteurismo e pela bioquiacutemica molecular que atribuem agraves doenccedilas
unicamente uma etiologia anatomofisioloacutegica ele tambeacutem potildee em questatildeo o que
chama de psicologismo e sociologismo na explicaccedilatildeo da gecircnese do patoloacutegico
bem como as taumaturgias de inspiraccedilatildeo psicoloacutegica e psicossocioloacutegica (cf EM
2005 p30-31)
130
Entendendo que a importacircncia da relaccedilatildeo meacutedico-paciente jaacute estava presente na medicina hipocraacutetico-galecircnica na Ideologia e racionalidade nas ciecircncias da vida Canguilhem lembra o que Freud disse sobre a medicina antiga de que o tratamento psicoloacutegico era praticamente o uacutenico de que se dispunha pois a pessoa do meacutedico era o remeacutedio principal para os doentes cuja doenccedila era em muitos casos uma intensa anguacutestia (cf I 1981 p53) Em seus Escritos sobre a medicina ele nota que a reatualizaccedilatildeo da importacircncia da relaccedilatildeo meacutedico-paciente no processo de cura deve ser creditada agrave psicanaacutelise ldquoPortanto natildeo haacute razatildeo em nos surpreender ao constatar que os meacutedicos os primeiros a considerar a cura como problema e assunto de interesse satildeo em sua maioria psicanalistas ou homens para quem a psicanaacutelise existe como instacircncia de questionamento sobre sua praacutetica e seus pressupostos ()rdquo (EM 2005 p51) Vemos assim que Canguilhem elogia Freud natildeo apenas porque seu pensamento mais se aproximou do caraacuteter axioloacutegico valorativo dos fenocircmenos vitais por incluir as noccedilotildees de conflito e polaridade na anaacutelise dos fenocircmenos psiacutequicos inconscientes mas tambeacutem por questotildees de meacutetodo por colocar a relaccedilatildeo analista-analisando como procedimento central da cliacutenica psicanaliacutetica
186
Com efeito ele questiona se devemos reconhecer apenas causalidades de
ordem socioloacutegica no aparecimento e no curso das doenccedilas ou se eacute o caso de
atribuir agrave doenccedila e agrave cura um caraacuteter psicoloacutegico como se elas fossem
exclusivamente obras do inconsciente131 No primeiro caso se as doenccedilas
derivassem apenas do bloqueio das estruturas sociais de comunicaccedilatildeo os
remeacutedios decorreriam apenas de disciplinas socioloacutegicas No segundo
dependeriam apenas de uma iniciativa de ordem psiacutequica jaacute que a apariccedilatildeo da
doenccedila neste caso decorreria de um fracasso de conduta ou de uma conduta de
fracasso (cf EM 2005 p 51-52) Acreditando na complexidade dos fatores que
concorrem para a emergecircncia do patoloacutegico ele questiona a validade de qualquer
reducionismo quando da determinaccedilatildeo da causa das doenccedilas e tambeacutem da
terapecircutica a ser indicada ldquoEm mateacuteria de reducionismo em terapecircutica o
psicologismo valeria mais do que o fisiologismordquo (EM 2005 p68)
Natildeo obstante embora acredite que eacute abusivo atribuir a todas as doenccedilas
uma gecircnese social Canguilhem afirma que devemos reconhecer a relaccedilatildeo entre
os modos de vida e a multiplicaccedilatildeo das situaccedilotildees patoloacutegicas Haacute sim doenccedilas
nas quais se deve levar em conta o status social do doente e a representaccedilatildeo que
o indiviacuteduo tem dele Por exemplo as que adveacutem da percepccedilatildeo que o indiviacuteduo
tem de seu niacutevel de inserccedilatildeo numa hierarquia de ordem profissional e cultural do
pouco reconhecimento social de suas potencialidades Assim o fato de o doente
viver a doenccedila como uma degradaccedilatildeo uma desvalorizaccedilatildeo social e natildeo apenas
como sofrimento ou reduccedilatildeo de comportamento deve ser considerado como um
dos componentes da proacutepria doenccedila O abandono de origem psicossocial pode
causar esgotamento orgacircnico propiciar a eclosatildeo de doenccedilas infecciosas e mais
ainda de afecccedilotildees relacionadas ao sistema neuroendoacutecrino como fadiga crocircnica 131
Sobre o aspecto psicoloacutegico na gecircnese e cura das doenccedilas nos Eacutetudes dacuteHistoire et de Philosophie des Sciences Canguilhem diz concordar que a consciecircncia do doente tem o poder de potencializar ou reprimir a eficaacutecia de um medicamento mas natildeo eacute o caso de atribuir ao Ccedila o poder de provocar e curar doenccedilas como defendia o meacutedico austriacuteaco Georg Groddeck pioneiro da medicina psicossomaacutetica Aqui ele novamente elogia Freud por ser mais racional e natildeo querer tratar doenccedilas como o cacircncer unicamente atraveacutes de tratamentos psicoloacutegicos e concorda com Paul Schilder autor que tem sua obra situada na intersecccedilatildeo de duas linhas de pensamento a de Freud e a de Goldstein esclarecida pela psicologia da Gestalt e pela fenomenologia para quem o aspecto psicoloacutegico da medicina eacute importante mas eacute necessaacuterio natildeo exagerar (cf E 1989 p406-408)
187
uacutelcera gastrointestinal e doenccedilas de adaptaccedilatildeo como o stress (cf EM 2005
p62)
Destarte embora ele critique a psicologia meacutedica que considera a doenccedila
como uma complacecircncia do doente ou uma situaccedilatildeo-refuacutegio ele natildeo nega o seu
fator psicoloacutegico Ele nota tambeacutem que nomear a doenccedila agrava os sintomas pelo
risco da exclusatildeo social que daiacute adveacutem tanto quanto pelo receio da consumaccedilatildeo
orgacircnica Ou seja a reaccedilatildeo de anguacutestia diante da ideia que o meio (entourage) da
pessoa doente faraacute da doenccedila tambeacutem pode ser fator agravante do seu estado de
mal
ldquoEncontramo-nos aqui na fronteira nebulosa entre a medicina somaacutetica e a medicina psicossomaacutetica ela proacutepria assediada pela psicanaacutelise Aqui o inconsciente estaacute em questatildeo tal como as teacutecnicas proacuteprias para fazecirc-lo falar a fim de saber lhe responderrdquo (EM 2005 p30)
Sobre a terapecircutica desde seu Ensaio sobre alguns problemas relativos ao
normal e ao patoloacutegico ele jaacute advertia que na ausecircncia de um modelo ideal eacute o
vivente singular que deve fornecer a norma de sua atividade restauradora quando
se trata da sauacutede humana a medida ou o criteacuterio de normalidade e anormalidade
deve ser procurado na histoacuteria de cada um (cf NP 1990 p259) Com isso a
terapecircutica deve ser definida como uma atividade normativa que visa agrave cura de
um indiviacuteduo concreto consciente quer dizer como uma accedilatildeo voltada agrave
emergecircncia de uma nova ordem vital traduzida por ele como um voltar a passar
bem Aleacutem disso jaacute alertava os meacutedicos sobre a artificialidade da identificaccedilatildeo da
doenccedila a um conjunto de sintomas e da busca da causa dos efeitos sintomaacuteticos
nos mecanismos funcionais parciais somadas agrave ignoracircncia de suas complicaccedilotildees
e ao esquecimento de aquilo que os torna patoloacutegicos eacute sua relaccedilatildeo de inserccedilatildeo
na totalidade indivisiacutevel de um comportamento individual (cf NP 1990 p65)
Tambeacutem jaacute considerava que para a compreensatildeo do patoloacutegico eacute
necessaacuterio ir aleacutem de sua base anatomofisoloacutegica ateacute porque em alguns casos
pode nem haver uma lesatildeo orgacircnica identificada como causa da doenccedila Exemplo
disso o fenocircmeno da dor-doenccedila mostra que eacute necessaacuterio admitir que a dor
188
possa ter um sentido vital sem que tenha um oacutergatildeo especiacutefico de referecircncia que
tenha um valor enciclopeacutedico de informaccedilatildeo do tipo topograacutefico ou funcional Mais
do que um impulso nervoso percorrendo um feixe de nervos sendo resultante de
um conflito do indiviacuteduo com seu meio ela eacute um fenocircmeno global que soacute tem
sentido ao niacutevel da individualidade humana concreta
ldquoParece-nos de importacircncia capital que o meacutedico proclame que o homem faz sua dor ndash como faz uma doenccedila ou como faz seu luto ndash em vez de dizer que ele recebe ou sofre essa dor Inversamente considerar a dor como uma impressatildeo recolhida num ponto do corpo e transmitida ao ceacuterebro eacute supor que ela seja toda constituiacuteda como tal sem qualquer relaccedilatildeo com a atividade do paciente que a senterdquo (NP 1990 p72-73)
Tambeacutem jaacute criticava a superficialidade das prescriccedilotildees meacutedicas pautadas
no desconhecimento das condiccedilotildees socioeconocircmicas de vida do doente
ldquoAs prescriccedilotildees do bom senso meacutedico satildeo tatildeo familiares que nelas natildeo se procura nenhum sentido profundo E no entanto eacute aflitivo e difiacutecil obedecer ao meacutedico que diz ldquoPoupe-serdquo ldquoEacute faacutecil dizer para me cuidar mas tenho minha casa para cuidarrdquo dizia por ocasiatildeo de uma consulta no hospital uma dona-de-casa que natildeo tinha nenhuma intenccedilatildeo irocircnica ou semacircntica de dizer esta frase Uma famiacutelia significa a eventualidade de um marido ou de um filho doente da calccedila rasgada que eacute preciso remendar agrave noite quando o menino estaacute na cama jaacute que ele soacute tem uma calccedila de ir longe comprar o patildeo se a padaria proacutexima estiver fechada por infraccedilatildeo aos dispositivos regulamentares etc Cuidar-se como eacute difiacutecil quando se vivia sem saber a que horas se comia sem saber se a escada era iacutengreme ou natildeo sem saber o horaacuterio do uacuteltimo bonde porque se a hora tivesse passado voltava-se a peacute para casa mesmo que fosse longerdquo (NP 1990 p158-159)
Ainda aconselhava o meacutedico a recorrer a uma terapecircutica judiciosa natildeo
agindo intempestivamente sobre um comportamento orgacircnico por exemplo a
febre hipertensatildeo ou mesmo algumas alteraccedilotildees no psiquismo entendendo que
elas podem inclusive ser necessaacuterias ao processo de cura (cf NP 1990 p157)
Recomendava ter em vista quando de suas indicaccedilotildees terapecircuticas higiecircnicas e
dieteacuteticas os haacutebitos humanos relacionados aos gecircneros niacuteveis e ritmos de vida
Natildeo havendo como universalizar procedimentos a adotar um relativismo
terapecircutico considerando que cada indiviacuteduo singular vive a seu modo no seu
meio que tambeacutem expressa haacutebitos de vida coletiva
189
ldquoJaacute que as normas fisioloacutegicas definem natildeo tanto uma natureza humana mas sobretudo haacutebitos humanos relacionados com os gecircneros de vida os niacuteveis de vida e os ritmos de vida qualquer regra dieteacutetica deve levar em conta esses haacutebitosrdquo (NP 1990 p133)
Novamente em suas Novas Reflexotildees referentes ao normal e ao
patoloacutegico ele volta a afirmar que para o meacutedico fazer um diagnoacutestico natildeo basta
realizar teses de laboratoacuterio e medidas eacute preciso estudar tambeacutem o meio fiacutesico e
social a nutriccedilatildeo o modo e as condiccedilotildees de trabalho a situaccedilatildeo econocircmica e a
educaccedilatildeo das diferentes classes sociais (cf NP 1990 p243)
Portanto desde seu Ensaio colocando em questatildeo a tese de que o estado
patoloacutegico seria apenas uma variaccedilatildeo quantitativa do estado normal Canguilhem
jaacute mostrava os principais contornos de sua racionalidade meacutedico-filosoacutefica vitalista
norteadora de uma praacutetica cliacutenica centrada no indiviacuteduo concreto atravessada
pelas noccedilotildees de sentido e valor vitais Tambeacutem jaacute ensejava sua criacutetica ao modelo
biomeacutedico moderno de orientaccedilatildeo materialista mecanicista e reducionista e aos
meacutetodos diagnoacutesticos e praacuteticas terapecircuticas dele derivadas Ou seja desde este
escrito ele jaacute apontava os limites de uma racionalidade meacutedica que troca a
experiecircncia vivida pelo experimento e que considera o doente natildeo como sujeito
de sua dor-doenccedila mas como objeto de anaacutelise e reparaccedilatildeo incapaz de se
pronunciar sobre seu mal
Mas eacute nos seus Escritos sobre a medicina que ele deixa mais claro o que
significa adotar uma racionalidade meacutedica vitalista ancorada numa patologia
subjetiva referenciada a um indiviacuteduo concreto De modo a natildeo ser acusado de
irracionalista em ldquoAs doenccedilasrdquo ele mostra estar ciente de que haacute doenccedilas que natildeo
se acessa passando pelo doente e que satildeo desconhecidas pelo cliacutenico observador
de sinais espontacircneos ou fabricados (cf EM 2005 p27) Ou seja ele natildeo quer
que o meacutedico abra matildeo do uso dos meacutetodos objetivos de investigaccedilatildeo diagnoacutestica
e se oriente exclusivamente pelo ponto de vista do doente O que ele critica eacute que
os exames que deveriam servir para o meacutedico se certificar do diagnoacutestico agora
satildeo o uacutenico meio de realizaacute-lo e seus resultados o uacutenico referencial de conduccedilatildeo
190
do tratamento em desconsideraccedilatildeo da forma como o indiviacuteduo identifica o que o
faz sofrer e como qualifica sua existecircncia
Todavia eacute principalmente em seus Eacutetudes dacuteHistoire et de Philosophie des
Sciences na seccedilatildeo Meacutedecine que Canguilhem faz uma apresentaccedilatildeo da
racionalidade meacutedico-cientiacutefica moderna pautada numa patologia objetiva base
de uma nosologia abstrata Sem desconsiderar as contribuiccedilotildees desta
racionalidade para a eliminaccedilatildeo das doenccedilas e para o aumento da expectativa de
vida ele procura apontar suas limitaccedilotildees e os problemas por ela gerados como o
excesso de ativismo meacutedico a medicalizaccedilatildeo crescente da populaccedilatildeo e os
dilemas eacuteticos relacionados agrave audaacutecia terapecircutica que as novas teacutecnicas meacutedicas
e ciruacutergicas incitam
Aleacutem disso ele tenta responder agraves provaacuteveis objeccedilotildees a sua racionalidade
como o subjetivismo na definiccedilatildeo do patoloacutegico e mostrar que seu pensamento
meacutedico-filosoacutefico apesar de estar centrado no indiviacuteduo natildeo inviabiliza praacuteticas de
sauacutede puacuteblica ou de modo mais preciso de salubridade puacuteblica mas apenas
aponta o problema da manutenccedilatildeo nelas da ideologia higienista de controle da
sauacutede das populaccedilotildees ao tempo em que natildeo deixaram de monitorar
comportamentos coletivos e de querer normalizaacute-los impondo regras higiecircnicas
dieteacuteticas e modos padronizados de vida saudaacutevel
Com efeito em ldquoO estatuto epistemoloacutegico da medicinardquo ele procura
responder agrave objeccedilatildeo de que sua criacutetica agrave medicina cientiacutefica resvalaria num
irracionalismo e tenta esclarecer o que significa exatamente dizer que em sua
praacutetica o meacutedico deve jogar o jogo da vida Aqui apoacutes apresentar o processo de
desindividualizaccedilatildeo da doenccedila como a principal caracteriacutestica da pesquisa
cientiacutefica do patoloacutegico e fazer uma distinccedilatildeo entre medicina como aplicaccedilatildeo de
uma ciecircncia e como ciecircncia aplicada conclui que ancorada numa ciecircncia da vida
a medicina natildeo perderia seu estatuto epistemoloacutegico ainda que natildeo identificada agrave
aplicaccedilatildeo das ciecircncias puras ou fundamentais das quais se beneficia No terreno
da indeterminaccedilatildeo e da contingecircncia trabalhando com a vida ela se colocaria
mais no campo da probabilidade do que da certeza Assim conservando o rigor
191
teoacuterico dos conhecimentos que empresta para a realizaccedilatildeo de seu projeto
terapecircutico sem deles ser escrava a medicina nada perderia de sua dignidade ao
transgredir eventualmente o saber advindo da pesquisa cientiacutefica-experimental (cf
E 2012 p 468)
No artigo ldquoPuissance et limites de la rationaliteacute em meacutedecinerdquo como que
respondendo agrave objeccedilatildeo de que sua criacutetica agrave noccedilatildeo de patologia objetiva eacute
irracional esclarece que se defende uma patologia subjetiva eacute na medida em que
o meacutedico natildeo pode ignorar a queixa do doente e a representaccedilatildeo subjetiva das
causas de seu mal
ldquoEacute necessaacuterio admitir que o doente eacute mais do que um terreno singular no qual a doenccedila se enraiacuteza ele eacute mais que um sujeito gramatical qualificado por um atributo emprestado da nosologia do momento O doente eacute um Sujeito capaz de expressatildeo que se reconhece como Sujeito em tudo que apenas se pode designar por possesivos sua dor e a representaccedilatildeo que ele faz dela sua anguacutestia sua esperanccedila e seus sonhosrdquo (E 1989 p408-409)
Ou seja Canguilhem apenas acredita que o meacutedico natildeo pode ignorar o ponto de
vista do sujeito assistido mesmo quando este diz estar com uma doenccedila e ele natildeo
encontra objetivamente doenccedila alguma Mesmo que ela lhe pareccedila uma ilusatildeo
ela deve ser reconhecida em sua autenticidade Ele deve sempre levar em conta a
opiniatildeo do doente sobre seu mal mesmo que por vezes tenha que substituir a
representaccedilatildeo que faz dele pelo que a ciecircncia reconhece como a verdade de sua
doenccedila Aleacutem disso Canguilhem ressalta que do mesmo modo que natildeo eacute possiacutevel
anular a dimensatildeo subjetiva da experiecircncia vivida pelo doente tambeacutem natildeo haacute
como homogeneizar e uniformizar a atenccedilatildeo e a atitude do meacutedico para com ele
dada sua singularidade constitucional
Em ldquoTherapeutique Experimentation Responsabiliteacuterdquo considerando o
caraacuteter empiacuterico da cliacutenica meacutedica ele fala do espiacuterito antifiacutesico que anima as
praacuteticas meacutedicas na atualidade no sentido de negaccedilatildeo da natureza (physis) ou
de modo mais preciso das normas singulares de sauacutede e tal ou tal doente A seu
ver em decorrecircncia da desnaturaccedilatildeo (deacute-naturation) do corpo humano a
medicina chega ateacute mesmo a despossuir o doente de sua existecircncia orgacircnica
192
proacutepria impondo normas anocircnimas julgadas superiores agraves individuais e
espontacircneas (cf E 1989 p384) Assim tendo em vista que eacute sempre na urgecircncia
que o meacutedico costuma tomar suas decisotildees e a individualizaccedilatildeo proacutepria agrave mateacuteria
da qual tratam que se presta mal ao conhecimento more geomeacutetrico ele defende
a necessidade de uma praacutetica meacutedica responsaacutevel que aceite experimentar de
modo a dar conta da singularidade de cada doente ldquouma medicina preocupada
com o homem em sua singularidade soacute pode ser uma medicina que experimentardquo
(E 1989 p389)
Acreditando entatildeo que tratar eacute em algum grau realizar uma experiecircncia
Canguilhem salienta que deve haver no meacutedico um senso de responsabilidade
moral e profissional rigorosamente sancionada ldquoReivindicar o dever da
experimentaccedilatildeo cliacutenica eacute aceitar todas as exigecircncias intelectuais e morais Ora
segundo nossa opiniatildeo elas satildeo esmagadorasrdquo (E 1989 p390) Para isso seria
necessaacuterio que as escolas meacutedicas ensinassem aos estudantes antes de
qualquer coisa suas atribuiccedilotildees e o sentido de sua tarefa futura Assim uma
verdadeira pedagogia deveria incluir obrigatoriamente uma propedecircutica meacutedica
especiacutefica na qual a psicologia e a deontologia meacutedicas se justificariam diante do
fato de que cuidar eacute sempre decidir em proveito da vida alguma experiecircncia (cf
E 1989 p391)
Contudo ele diz notar que com a hegemonia da racionalidade biomeacutedica
moderna o ensino meacutedico passou a privilegiar os aspectos teacutecnico-cientiacuteficos da
profissatildeo em detrimento da deontologia da consideraccedilatildeo dos aspectos
bioafetivos e psicossocioloacutegicos da doenccedila e da reflexatildeo sobre as condiccedilotildees
sociais e legais do exerciacutecio da praacutetica meacutedica na sociedade Ele diz ficar
estupefato com o fato de os cursos de medicina privilegiarem o ensino da
composiccedilatildeo quiacutemica da saliva e o ciclo vital das amebas intestinais das baratas de
cozinha e tratarem tatildeo pouco ou mesmo nem tratarem da psicossociologia da
doenccedila da psicologia do doente da significaccedilatildeo vital da doenccedila dos deveres do
meacutedico em relaccedilatildeo ao doente ndash e natildeo somente em relaccedilatildeo a seus colegas de
profissatildeo (E 1989 p390) Ele chega a ficar ateacute mesmo escandalizado com a
aplicaccedilatildeo de exames de seleccedilatildeo de alunos aptos para continuarem os estudos
193
meacutedicos nos quais os criteacuterios se resumem ao conhecimento de ciecircncias
fundamentais (fiacutesica quiacutemica biologia) e natildeo o sentido de responsabilidades de
sua tarefa futura e a essecircncia da atividade meacutedica - que eacute a defesa da vida (cf E
1989 p391)
Aleacutem disso ainda no mesmo escrito ao tratar da aceleraccedilatildeo das invenccedilotildees
teacutecnicas e da raacutepida incorporaccedilatildeo destas novidades na praacutetica meacutedica ele nota
primeiro que a crise mais aguda da medicina se daria hoje por conta da
diversidade de opiniotildees relativas agrave atitude e deveres do meacutedico diante das
possibilidades terapecircuticas abertas pelos resultados das pesquisas laboratoriais
pela produccedilatildeo de antibioacuteticos e vacinas intervenccedilotildees ciruacutergicas de restauraccedilatildeo
enxerto e proacutetese e aplicaccedilatildeo no organismo de corpos radioativos Colocando em
questatildeo os problemas da audaacutecia terapecircutica que as novas teacutecnicas meacutedicas e
ciruacutergicas possibilitam e a tecnocracia meacutedica expliacutecita de usar a experimentaccedilatildeo
terapecircutica em nome do direito que todo indiviacuteduo tem sobre seu organismo
Canguilhem sem querer adotar uma postura reacionaacuteria diz acreditar que a
medicina natildeo deve rejeitar em defesa da vida os benefiacutecios que estas inovaccedilotildees
trazem mas nos alerta sobre perigos de privilegiar as novidades em relaccedilatildeo ao
uso e sobretudo sobre os interesses coorporativos e econocircmicos que estatildeo por
traacutes da incorporaccedilatildeo delas ldquoNatildeo eacute somente a razatildeo que tem suas astuacutecias os
interesses tambeacutem tecircm as suasrdquo (E 1989 p384)
Na mesma direccedilatildeo em ldquoPuissance et limites de la rationaliteacute em meacutedecinerdquo
diz que a medicina eacute campo teoacuterico-praacutetico de produccedilatildeo de saber e de exerciacutecio
de poder no qual deveres e benefiacutecios estatildeo em jogo Com vaacuterias facetas para
os acadecircmicos ela eacute uma ciecircncia para os meacutedicos praacuteticos que atuam no hospital
uma teacutecnica para a sociedade um direito a ser reivindicado para o Estado e para
o laboratoacuterio farmacecircutico a aacuterea de escoamento de seus novos produtos
Aqui ele nota que a revoluccedilatildeo terapecircutica dada pela invenccedilatildeo da
farmacoterapia cientiacutefica e pela vulgarizaccedilatildeo das novidades organizada por
aqueles que a exploram gerou na sociedade um comportamento cultural de
impaciecircncia de cura e frenesi por inovaccedilotildees farmacoloacutegicas A crenccedila no
194
progresso da racionalidade meacutedica fez com que houvesse uma confusatildeo entre
valor de uso e uacuteltimo grito e uma cobranccedila cada vez maior da sociedade de
resolutividade por parte os serviccedilos de sauacutede puacuteblica com pouca toleracircncia em
relaccedilatildeo agrave impotecircncia meacutedica diante de certas doenccedilas O resultado disso foi a
conversatildeo do apelo pateacutetico em reivindicaccedilatildeo ou direito de ter sua sauacutede
garantida pelo Estado numa maior obstinaccedilatildeo terapecircutica e numa medicalizaccedilatildeo
crescente da populaccedilatildeo ldquoEacute incontestaacutevel que os imperativos da farmacovigilacircncia
em meacutedio e longo prazos podem ceder diante do entusiasmo e do interesserdquo (E
1989 p402-403)
Apontando o quanto a medicalizaccedilatildeo excessiva eacute nociva para a sauacutede por
fragilizar a resistecircncia orgacircnica natural sem contar a possibilidade da iatrogenia
Canguilhem diz acreditar que a questatildeo natildeo eacute desmedicalizar radicalmente a
sociedade mas agir com cautela dosando os riscos e benefiacutecios do uso dos
medicamentos e da realizaccedilatildeo dos atos ciruacutergicos Por exemplo ele natildeo nega que
o antibioacutetico seja a invenccedilatildeo mais revolucionaacuteria da histoacuteria da terapecircutica mas
aponta os riscos de natildeo eliminaccedilatildeo do agressor pelo medicamento e a
consequente ocorrecircncia de mutaccedilotildees que o tornaria mais resistente132
Vemos entatildeo como desde seu Ensaio Canguilhem faz uso de sua
racionalidade vitalista para operar sua criacutetica agrave medicina moderna e se inscrever
nos debates meacutedico-cientiacuteficos sobre a formaccedilatildeo pesquisa e praacuteticas em sauacutede
Colocando em cena problemas que ainda estatildeo longe de serem resolvidos seu
pensamento meacutedico-filosoacutefico por seu caraacuteter propositivo aponta algumas saiacutedas
e nos instiga a novas reflexotildees Sua discussatildeo sobre patologia objetiva e
subjetiva por exemplo antecipa as recentes discussotildees sobre a medicina
baseada em evidecircncias e a medicina baseada em narrativas assim como as
criacuteticas que faz ao hospital como lugar de objetivaccedilatildeo ou desindividualizaccedilatildeo do
132
Tambeacutem em seus Escritos sobre a medicina criticando o que chama de doenccedila obsessiva pela sauacutede ele igualmente trata do problema natildeo soacute do uso excessivo de antibioacuteticos que pode ter por consequecircncia o aparecimento de microacutebios ainda mais resistentes mas tambeacutem da praacutetica generalizada de vacinaccedilotildees Ainda fala que a multiplicaccedilatildeo de atos meacutedicos e ciruacutergicos nas sociedades industriais de alta tecnologia de proteccedilatildeo sanitaacuteria tambeacutem pode aumentar os riscos de fragilizaccedilatildeo dos mecanismos bioloacutegicos de resistecircncia agraves doenccedilas (cf EM 2005 p26-27)
195
doente e de tratamento no anonimato satildeo problemas que as poliacuteticas de
humanizaccedilatildeo dos serviccedilos de sauacutede ainda hoje procuram solucionar133 Mesmo
suas anaacutelises sobre o ambiente e as relaccedilotildees no trabalho tambeacutem nos parecem
atuais quando realizamos reflexotildees relativas agrave sauacutede fiacutesica e mental dos
trabalhadores
Aleacutem disso a questatildeo que coloca sobre os malefiacutecios do consumo abusivo
de medicamentos e do excesso de atos ciruacutergicos sem a devida consideraccedilatildeo dos
seus riscos de imediato nos remete ao elevado nuacutemero de cirurgias bariaacutetricas
realizadas no Brasil e ao uso exorbitante de medicamentos por mulheres
sobretudo os anorexiacutegenos e os ansioliacuteticos benzodiazepiacutenicos sem contar o
nuacutemero de crianccedilas que fazem uso de medicamentos para o controle do
comportamento devido a transtorno de deacuteficit de atenccedilatildeo com hiperatividade
(TDAH)134
133
Segundo Benevides amp Passos (2005) considerando que o Homem como imagem transcendental que paira como realidade separada tem sido a garantia da normalizaccedilatildeo da classificaccedilatildeo e da definiccedilatildeo de praacuteticas modeladoras e corretivas de tudo que se afasta ou se desvia dessa figura identificatoacuteria ideal o que se quer hoje entatildeo quando se fala em humanizaccedilatildeo dos serviccedilos de sauacutede soacute pode ser um novo humanismo que sirva de base para accedilotildees natildeo mais orientadas por uma noccedilatildeo idealizada do Homem mas comprometidas com a experiecircncia singular de qualquer homem em processo contiacutenuo de humanizaccedilatildeo Neste contexto Canguilhem pode contribuir com seu pensamento sobre a sauacutede como experiecircncia de criaccedilatildeo de si e de modos de viver tomando a vida em seu movimento de produccedilatildeo de normas e natildeo de assujeitamento a elas ldquoA contribuiccedilatildeo de Canguilhem (1978) para o debate acerca da normatividade da vida eacute indispensaacutevel Este autor nos indicou como a vida se define natildeo por uma assujeitamento a normas e sim por uma produccedilatildeo delas A distinccedilatildeo proposta entre normalidade e normatividade daacute a direccedilatildeo para este debate acerca do tema da humanizaccedilatildeo como experiecircncia concreta de um homem em processo de produccedilatildeo de si e de sua sauacutede Por humanizaccedilatildeo entendemos portanto menos a retomada ou revalorizaccedilatildeo da imagem idealizada do Homem e mais a incitaccedilatildeo a um processo de produccedilatildeo de novos territoacuterios existenciaisrdquo (Benevides amp Passos 2005 p570) Cf BENEVIDES R PASSOS E A humanizaccedilatildeo como dimensatildeo puacuteblica das poliacuteticas de sauacutede Ciecircnc sauacutede coletiva [online] 2005 vol10 n3 pp 561-571
134 Cada vez mais os diagnoacutesticos incidem sobre a infacircncia e a adolescecircncia patologizando
comportamentos proacuteprios a estas fases da vida sem a devida identificaccedilatildeo dos fatores contextuais familiares e culturais que os geram Como exemplo de acordo com o Manual Diagnoacutestico e Estatiacutestico de Transtornos Mentais ndash DSM IV (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders IV) no TDAH a hiperatividade pode manifestar-se por inquietaccedilatildeo ou remexer-se na cadeira por natildeo permanecer sentado quando deveria por correr ou subir excessivamente em coisas quando isto eacute inapropriado por dificuldade em brincar ou ficar em silecircncio em atividades de lazer por frequentemente parecer estar a todo vapor ou cheio de gaacutes ou por falar em excesso Os bebecircs e preacute-escolares com este transtorno diferem de crianccedilas ativas por estarem constantemente irrequietos e envolvidos com tudo agrave sua volta eles andam para laacute e para caacute movem-se mais raacutepido que a sombra sobem ou escalam moacuteveis correm pela casa e tecircm dificuldades em participar de atividades sedentaacuterias em grupo durante a preacute-escola As crianccedilas
196
Aleacutem disso atraveacutes da reflexatildeo que faz nos seus Eacutetudes sobre os jogos de
interesse que estatildeo por traacutes da proliferaccedilatildeo de diagnoacutesticos e suas medicaccedilotildees
dado o atrelamento da cliacutenica meacutedica agrave induacutestria farmacecircutica ele nos faz pensar
se hoje o profissional meacutedico natildeo se tornou um garoto-propaganda dos novos
produtos disponiacuteveis no mercado Chegamos a tal ponto de natildeo sabermos mais se
o remeacutedio prescrito eacute o mais apropriado para o doente ou para o par meacutedico-
induacutestria farmacecircutica ou mesmo se a doenccedila diagnosticada apareceu nas
classificaccedilotildees meacutedicas depois da invenccedilatildeo do medicamento ou seja se primeiro
ocorreu a descoberta da droga e somente depois a invenccedilatildeo cientiacutefica da
doenccedila135
Ainda a partir de suas reflexotildees sobre as pesquisas de ponta no campo
biomeacutedico sobre a rejeiccedilatildeo nos transplantes de oacutergatildeos e a possibilidade de
constituiccedilatildeo de um banco de viacutesceras disponiacuteveis agrave demanda noacutes nos
perguntamos se algumas pesquisas de fato visam o futuro da humanidade se
em idade escolar exibem comportamentos similares mas em geral com menor frequecircncia ou intensidade do que bebecircs e preacute-escolares Elas tecircm dificuldade para permanecer sentadas levantam-se com frequecircncia e se remexem ou sentam-se na beira da cadeira como que prontas para se levantarem Elas manuseiam objetos inquietamente batem com as matildeos e balanccedilam pernas e braccedilos excessivamente Com frequecircncia se levantam da mesa durante as refeiccedilotildees enquanto assistem televisatildeo ou enquanto fazem os deveres de casa falam em excesso e podem fazer ruiacutedos demasiados durante atividades tranquilas Em adolescentes e adultos os sintomas de hiperatividade assumem a forma de sensaccedilotildees de inquietaccedilatildeo e dificuldade para envolver-se em atividades tranquilas e sedentaacuterias Os indiviacuteduos com este transtorno tipicamente fazem comentaacuterios inoportunos interrompem demais os outros metem-se em assuntos alheios agarram objetos de outros pegam coisas que natildeo deveriam tocar e fazem palhaccediladas A impulsividade pode levar a acidentes (por ex derrubar objetos colidir com pessoas segurar inadvertidamente uma panela quente) e ao envolvimento em atividades potencialmente perigosas sem consideraccedilatildeo quanto agraves possiacuteveis consequecircncias (por ex andar de skate em um terreno extremamente irregular)
135 Segundo Caponi (2010) os recentes estudos sobre fisiologia do ceacuterebro base da atual neurociecircncia e da psiquiatria tecircm contribuiacutedo para a expansatildeo do uso de drogas psicotroacutepicas para um nuacutemero crescente de transtornos de humor e ansiedade Ela entende que o sonho de encontrar foacutermulas maacutegicas para resolver os problemas comportamentais ou cognitivos e para maximizar nosso potencial aumentou nos uacuteltimos anos acarretando em algo que Canguilhem natildeo podia prever o surgimento de novas patologias a partir da descoberta de novos psicotroacutepicos Acredita que poderiacuteamos repetir a mesma criacutetica de Canguilhem em O ceacuterebro e o pensamento sobre o valor das imagens de tomografia por emissatildeo ou ressonacircncia magneacutetica funcional para a compreensatildeo da sauacutede e da doenccedila mental Tambeacutem questionar a multiplicaccedilatildeo diagnoacutestica e uso abusivo de medicamentos para tratamento da depressatildeo TDAH (Transtorno de Deacuteficit de Atenccedilatildeo com Hiperatividade) e os chamados transtornos de ansiedade ofuscando ou ignorando as referecircncias necessaacuterias ao corpo subjetivo Cf CAPONI S Georges Canguilhem del cuerpo subjetivo a la localizacioacuten cerebral Salud Colectiva Buenos Aires 6(2)149-161 MayoAgosto 2010
197
querem responder agrave realizaccedilatildeo do velho sonho da medicina de conservaccedilatildeo e
bom uso da sauacutede como lembra Canguilhem ou se o interesse que estaacute por traacutes
delas natildeo eacute a possibilidade de mercantilizaccedilatildeo de seus resultados136
Sobre o ensino tanto em seus Escritos sobre a medicina quanto nos
Eacutetudes dacuteHistoire et de Philosophie des Sciences Canguilhem critica as escolas
meacutedicas que costumam desconsiderar a importacircncia da relaccedilatildeo meacutedico-doente e
dar privileacutegio aos estudos anatomofisioloacutegicos em detrimento de disciplinas que
abordam os aspectos filosoacuteficos psicoloacutegicos e socioantropoloacutegicos do processo
sauacutededoenccedila A seu ver a ultraespecializaccedilatildeo na formaccedilatildeo meacutedica natildeo apenas
fez com que o corpo fosse decomposto em partes e que fosse perdida a noccedilatildeo de
totalidade orgacircnica Tambeacutem a reduccedilatildeo anatomofisioloacutegica fez com que o doente
fosse descontextualizado de seu meio sociocultural de vida e que o meacutedico
perdesse de vista os fatores psicoloacutegicos sociais e ecoloacutegicos envolvidos na
gecircnese do patoloacutegico ignorando sua complexidade etioloacutegica Isso nos faz
questionar em que medida uma formaccedilatildeo centrada no laboratoacuterio e na sala de
anatomia habilita o profissional meacutedico a trabalhar com o vivente humano em sua
136 Tambeacutem Giroux (2010) entende que na atualidade o estatuto de doente estaacute cada vez mais ligado agraves possibilidades de tratamento e agraves descobertas e inovaccedilotildees da induacutestria farmacecircutica Daiacute sua questatildeo Se encontraacutessemos um tratamento para prolongar a vida e retardar o envelhecimento a velhice poderia ser considerada doenccedila A seu ver caracterizar um estado como patoloacutegico tem importantes consequecircncias sociais eacuteticas poliacuteticas e juriacutedicas pois tal categorizaccedilatildeo repercute no plano de investimentos e sobre a orientaccedilatildeo das pesquisas biomeacutedicas decide e justifica a adoccedilatildeo de terapecircuticas a concessatildeo de beneacuteficos e direitos especiacuteficos e no acircmbito judiciaacuterio tambeacutem decide a responsabilidade criminal Partindo da criacutetica ao conceito biomeacutedico de doenccedila realizada por Canguilhem ele tambeacutem pergunta se a definiccedilatildeo objetiva de doenccedila e da sauacutede natildeo teria alargado o campo da medicina e possibilitado o uso ideoloacutegico da noccedilatildeo de doente Ainda se haveria uma demarcaccedilatildeo natural entre o normal e o patoloacutegico tal como entende a biomedicina ou uma relatividade histoacuterica e social presidindo a categorizaccedilatildeo de um estado considerado normal ou patoloacutegico como querem os socioacutelogos historiadores antropoacutelogos filoacutesofos e mesmo alguns psiquiatras Ele acredita que haacute uma natureza construiacuteda ideoloacutegica e sociopoliacutetica pretensamente cientiacutefica e naturalista que seria usada para justificar de maneira disfarccedilada as exclusotildees sociais poliacuteticas ou morais ou ainda promover uma medicalizaccedilatildeo excessiva do domiacutenio da vida ndash na linguagem de Ivan Illich uma expropriaccedilatildeo da sauacutede e na de Foucault um biopoder Como Canguilhem ele acredita que a extensatildeo indefinida do domiacutenio da medicina e do campo do patoloacutegico eacute fortalecida pela definiccedilatildeo de sauacutede da Organizaccedilatildeo Mundial de Sauacutede (OMS) como completo estado de bem-estar fiacutesico mental e social Mas o que entender por completo bem-estar Natildeo residiria aiacute o sentido da proliferaccedilatildeo diagnoacutestica e da crescente medicalizaccedilatildeo da vida na atualidade Cf GIROUX E Apregraves Canguilhem deacutefinir la santeacute et la maladie Paris Presses Universitaires de France PUF 2010
198
integralidade e ainda ter um olhar criacutetico em relaccedilatildeo aos jogos de interesse
poliacuteticos e econocircmicos presentes no que chamamos de campo da sauacutede
Ademais seu pensamento levanta algumas questotildees sobre os dilemas
eacuteticos e a conduccedilatildeo das pesquisas envolvendo viventes humanos e natildeo humanos
pela perspectiva da chamada bioeacutetica137 Fazendo menccedilatildeo agrave cacotanaacutesia derivada
do excesso de ativismo terapecircutico por exemplo caracteriacutestica da obstinaccedilatildeo
terapecircutica em casos de terminalidade da vida138 ele daacute a entender que a
eutanaacutesia voluntaacuteria ou ateacute mesmo involuntaacuteria seria eticamente admissiacutevel
quando a vida natildeo mostrasse mais potecircncia ou forccedila de reaccedilatildeo e insistir em sua
manutenccedilatildeo apenas traria mais desgastes bioloacutegicos psicoloacutegicos e sociais do
que qualidade de vida ao doente Segundo Canguilhem isso evitaria o tormento
do doente em seus uacuteltimos momentos o que tornaria a morte ainda mais penosa
(cf E 1989 p402) Todavia eacute possiacutevel inferir a interdiccedilatildeo eacutetica da eutanaacutesia natildeo
voluntaacuteria visto que para a efetivaccedilatildeo da morte haveria a necessidade de aceite
natildeo coagido por parte do doente ou de seus familiares caso contraacuterio a accedilatildeo de
assemelharia agraves praacuteticas de extermiacutenio nazista
Pelo mesmo raciociacutenio o de consideraccedilatildeo do movimento da vida se
tomada em seu sentido exclusivamente bioloacutegico o argumento da potencialidade
valeria como justificativa para a interdiccedilatildeo da praacutetica do aborto ou mesmo do uso
de ceacutelulas-tronco embrionaacuterias em pesquisa e de descarte de embriotildees
congelados Ou seja seria possiacutevel inscrever esta questatildeo no contexto de uma
eacutetica laica de defesa da vida que para valorizaacute-la natildeo precisa sacralizaacute-la
137
Na entrevista a Franccedilois Bing e Jean-Franccedilois Braunstein no ano de 1996 quando questionado sobre sua posiccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave bioeacutetica em sua intenccedilatildeo de colocar freios na atividade cientiacutefica Canguilhem diz se surpreender ao ver seus trabalhos associados a este tema pois natildeo escreveu nada a este respeito Mas responde que natildeo eacute sistematicamente hostil a certas orientaccedilotildees de ordem bioeacutetica Ela o interessa quando eacute feita seriamente para evitar alguns excessos agrave confianccedila atribuiacuteda agrave biologia e agrave medicina para resolver algumas questotildees que satildeo mais de ordem eacutetica e poliacutetica do que de praacutetica meacutedica Cf CANGUILHEM G Entretien avec Georges Canguilhem In BING F BRAUNSTEIN J-F ROUDINESCO E (org) Actualiteacute de Georges Canguilhem Le normal et le pathologique Op cit
138 No vocabulaacuterio da bioeacutetica atual a cacotanaacutesia ou maacute morte eacute identificada agrave obstinaccedilatildeo
terapecircutica Portanto ela se opotildee agrave eutanaacutesia ou boa morte que se daria por provocaccedilatildeo (eutanaacutesia ativa) aceleraccedilatildeo (eutanaacutesia de duplo efeito) ou por omissatildeo proposital de cuidados meacutedicos (eutanaacutesia passiva ou ortotanaacutesia que significa a morte no tempo certo associada agrave filosofia dos cuidados paliativos)
199
recorrendo agrave eacutetica hipocraacutetica ou agrave moral cristatilde impliacutecita no princiacutepio primum non
nocere isto eacute que natildeo precisa lanccedilar matildeo das noccedilotildees metafiacutesico-religiosas de
Bem e de Mal para afirmar a existecircncia de valores negativos e positivos
apontados pela vida mesma Mas consideradas as dimensotildees existenciais e
sociais da vida humana a praacutetica do aborto poderia ser eticamente possiacutevel caso
a mulher consentisse mas jamais deveria ser praticado sem seu aceite como as
interrupccedilotildees eugecircnicas da gravidez por valores racistas sexistas e eacutetnicos a
exemplo das que foram realizadas durante o III Reich ou mesmo as feitas para
controle estatal da natalidade na China comunista
Ainda ao mudar o estatuto do animal apresentado por ele como vivente
natildeo humano mas como igualmente produtor de valores e normas portanto capaz
de qualificar sua existecircncia em algum acircmbito mesmo que ainda por noacutes
indefinido Canguilhem coloca em cena a problemaacutetica da experimentaccedilatildeo com
outros vivos sua eticidade e a questatildeo do especismo139 Como vimos na sua
perspectiva embora o vivente natildeo humano natildeo seja provido de linguagem ele
natildeo deixa de ser produtor de valor e de ter uma existecircncia dotada de sentido vital
ainda que a ciecircncia ignore sua dimensatildeo Aleacutem disso assim como em O normal e
o patoloacutegico em La connaissance de la vie no artigo ldquoLrsquoexperimentationrdquo ele potildee
em questatildeo a validade das pesquisas realizadas com animais visto que a
transposiccedilatildeo dos resultados obtidos com este tipo de experimentaccedilatildeo para o
homem natildeo eacute direta Desta forma conduzir pesquisas com animais exigiria
igualmente uma baliza eacutetica e ainda uma reflexatildeo criteriosa de sua necessidade
Aleacutem disso neste mesmo escrito ele aborda o problema da
experimentaccedilatildeo com humanos e as questotildees eacuteticas que ao redor desta questatildeo
gravitam ldquoo problema da experimentaccedilatildeo com humanos natildeo eacute mais um simples
problema de teacutecnica eacute um problema de valorrdquo (CV 1985 p38) Aqui aponta o
problema de delimitar a extensatildeo do conceito de experimentaccedilatildeo humana situado
no limite das intervenccedilotildees terapecircuticas e as teacutecnicas de prevenccedilatildeo higiecircnica e
139
A exemplo de outras posturas discriminatoacuterias como o sexismo e o racismo o especismo eacute entendido como a discriminaccedilatildeo por espeacutecie animal decorrente da maior importacircncia dada agrave vida humana em relaccedilatildeo agraves demais vidas
200
penal como a lobotomia e a esterilizaccedilatildeo legal Ao refletir sobre o criteacuterio de
legitimidade da experimentaccedilatildeo bioloacutegica com humanos sua transformaccedilatildeo em
cobaias experimentais lembra que historicamente indiviacuteduos desvalorizados como
socialmente desclassificados e fisiologicamente comprometidos foram utilizados
como material experimental a exemplo do que ocorrido no decorrer da II Guerra
Mundial com a retomada da antiga praacutetica de vivissecccedilatildeo de humanos
condenados agrave morte mas agora no contexto de deliacuterios racistas
Em vista disso Canguilhem diz acreditar que o problema de o homem
consentir ser objeto de seu proacuteprio saber se inscreve no debate sempre aberto
relativo ao homem como meio ou fim objeto ou pessoa e nos alerta sobre a
importacircncia do pesquisador respeitar a especificidade de seu objeto e conduzir
suas pesquisas experimentais a partir do valor de certo sentido de natureza
bioloacutegica (cf CV 1985 p38) Entendendo por natureza humana a vida concreta
em seus sentidos bioloacutegico existencial e social vemos que para ele a
consideraccedilatildeo por parte do pesquisador de que eacute necessaacuterio um consentimento por
parte daquele que seraacute sujeito de uma experimentaccedilatildeo deve passar a ser a
principal baliza eacutetica da pesquisa jaacute que assentada no valor ditado pela vida
mesma de liberdade de escolha e de resistecircncia do vivente humano ao que toma
como uma ameaccedila a sua existecircncia
Assim se mesmo o tratar eacute realizar uma experiecircncia tambeacutem na cliacutenica o
indiviacuteduo deve poder se expressar quanto agrave definiccedilatildeo de seu projeto terapecircutico e
agrave conduccedilatildeo de seu tratamento tendo a liberdade de recusar o que se contrapotildee a
seu desejo ou interesse Ademais se cada corpo subjetivo historicizado tem sua
verdade a experiecircncia do adoecimento vivida por um indiviacuteduo singular tambeacutem
pode ser fonte de conhecimentos verdadeiros dada a nova relaccedilatildeo entre physis
techneacute e episteme Quer dizer na cliacutenica o que a ciecircncia apresenta como verdade
do corpo natildeo pode sobrepujar o que o indiviacuteduo concreto traz como sua verdade
sua dor seu sofrimento seu mal Dado isso a partir de uma abordagem
qualitativa do adoecer humano centrada na escuta da fala do doente para a
realizaccedilatildeo do diagnoacutestico o meacutedico natildeo pode prescindir quando da realizaccedilatildeo da
anamnese de um meacutetodo de investigaccedilatildeo natildeo soacute da histoacuteria da doenccedila atual e
201
das pregressas mas de dados da histoacuteria de vida do indiviacuteduo que adoeceu natildeo
para patologizaacute-la desde seus primoacuterdios mas para contextualizar e compreender
as causas de seu processo de adoecimento
A partir deste mesmo ponto de vista no acircmbito da pesquisa em sauacutede
ganham destaque as metodologias de investigaccedilatildeo cliacutenico-qualitativas ndash tambeacutem
chamadas de meacutetodos compreensivo-interpretativos - que privilegiam as
narrativas pessoais ou histoacuterias de vida os sentidos e significaccedilotildees do adoecer
humano bem como os trabalhos de campo que aproximam o pesquisador da
realidade concreta de vida dos sujeitos pesquisados a fim de compreender a
multiplicidade de aspectos envolvidos em seu processo de adoecimento bem
como para identificar os recursos e suportes psicossociais com os quais podem
contar para enfrentaacute-los
Interessante notar que quando reflete sobre a complexidade etioloacutegica das
doenccedilas e dos motivos de seu agravamento embora Canguilhem diga que nem
todas as doenccedilas tem uma gecircnese social sabemos que assim como haacute doenccedilas
relacionadas ao ambiente natural ecoloacutegico haacute doenccedilas relacionadas agraves
condiccedilotildees precaacuterias de vida decorrentes da forma como uma dada sociedade se
organiza por exemplo haacute patologias especiacuteficas geradas por uma estratificaccedilatildeo
econocircmica perversa causadora de modos insalubres de vida e tambeacutem as
causadas pela maneira como se datildeo as relaccedilotildees entre os indiviacuteduos neste
contexto140 Ou seja as doenccedilas apresentam um panorama do que historicamente
faz os indiviacuteduos sofrerem e tambeacutem satildeo um retrato dos niacuteveis e dos modos de
vida da sociedade da qual faziam ou fazem parte
De fato as sociedades capitalistas liberais fixam padrotildees esteacuteticos e
socioeconocircmicos de vida que inalcanccedilaacuteveis para alguns acabam por se tornar
geradores de anguacutestia Por isso haacute inuacutemeras doenccedilas decorrentes da frustraccedilatildeo
das expectativas do indiviacuteduo quanto a sua inserccedilatildeo profissional e reconhecimento
140
O que daria certa razatildeo a Marx quando partindo da percepccedilatildeo da reproduccedilatildeo das relaccedilotildees de classe na vida familiar privada em sua anaacutelise sobre o suiciacutedio o apresenta como um entre os mil e um sintomas da luta social geral Cf MARX K Sobre o suiciacutedio (Trad Rubens Enderle e Francisco Fontanella) Satildeo Paulo Boitempo 2006
202
social exclusivamente causadas pela impossibilidade de sua identificaccedilatildeo a um
tipo social bem-sucedido Isso mostra que pode haver doenccedilas inclusive
fisioloacutegicas derivadas de um sofrimento psiacutequico deflagrado por questotildees de
ordem social atestando que pode haver tanto uma sociogecircnese das doenccedilas
psicoloacutegicas como nos quadros de ansiedade e nos transtornos de humor
(maniacuteacos depressivos e bipolares) como uma psicossociogecircnese das doenccedilas
fisioloacutegicas como exemplo nas doenccedilas derivadas do stress prolongado como as
gaacutestricas e cardiovasculares ou ateacute mesmo nos cacircnceres
Eacute certo que Canguilhem natildeo acredita que exista uma organizaccedilatildeo social
capaz de evitar o adoecimento jaacute que eacute normal ficar doente uma vez que se estaacute
vivo Tambeacutem que uma sociedade possa ser identificada a um organismo pois
nesta assimilaccedilatildeo o que domina eacute a ideia de diagnoacutestico de seus distuacuterbios
terapecircutica e medicaccedilatildeo para os males sociais mormente identificados aos
indiviacuteduos desviantes da norma (cf EM 2005 p74) No entanto se
reconhecermos a associaccedilatildeo entre os modos sociais de vida e a multiplicaccedilatildeo das
situaccedilotildees patoloacutegicas a questatildeo que se coloca eacute como a sociedade pode ser
organizada pelos seus membros de modo que favoreccedila maior qualidade de vida e
relaccedilotildees mais salutares sem que isso signifique a justificaccedilatildeo de praacuteticas sociais
de identificaccedilatildeo e patologizaccedilatildeo dos culpados de suas crises e dos abalos de sua
suposta harmonia e equiliacutebrio espontacircneos
Em suas Novas Reflexotildees e nos seus Escritos sobre a medicina ele
esclarece que apesar de uma sociedade ser organizada ela natildeo eacute orgacircnica no
sentido de uma ser caracterizada por uma auto-organizaccedilatildeo espontacircnea isto eacute
ela natildeo se estrutura sem nenhuma deliberaccedilatildeo por parte do conjunto de seus
membros Neste sentido nenhuma organizaccedilatildeo social pode ser naturalizada como
se sua finalidade fosse determinada riacutegida como a de uma maacutequina e suas leis
fossem inquestionaacuteveis como as fiacutesicas No entanto acredita que os fenocircmenos
da organizaccedilatildeo social podem imitar os da organizaccedilatildeo vital assim como
Aristoacuteteles dizia que a arte imitava a natureza ldquoA regulaccedilatildeo social tende para a
regulaccedilatildeo orgacircnica e a imitardquo (NP 1990 p226) Assim podemos ousar dizer que
pela perspectiva vitalista canguilhemiana uma sociedade pode metaforicamente
203
imitar um organismo saudaacutevel ao comportar uma diversidade de normas
socioculturais cambiantes e ensejar constantemente finalidades possiacuteveis141
Com efeito ainda no mesmo escrito associando os regimes totalitaacuterios agrave
mecanizaccedilatildeo da vida social e notando que a submissatildeo das partes ao todo a
massificaccedilatildeo e o determinismo das relaccedilotildees sociais - proacuteprios a uma sociedade na
qual os fins da coletividade satildeo rigorosamente planificados executados em
conformidade a um riacutegido programa sociopoliacutetico e que pede uma adaptaccedilatildeo
passiva dos indiviacuteduos a suas leis - afetam a sauacutede dos indiviacuteduos a exemplo da
alteraccedilatildeo da pressatildeo sanguiacutenea dos chineses sob o regime maoiacutesta ele
indiretamente aventa outras formas de organizaccedilatildeo sociopoliacutetica (cf NP 1990
p245)
Entendendo que uma organizaccedilatildeo social que tem por base a noccedilatildeo de
independecircncia ou autonomia das partes em relaccedilatildeo ao todo correlata ao
individualismo proacuteprio das sociedades democraacuteticas adeptas do modelo
sociopoliacutetico e econocircmico liberal de defesa dos interesses das liberdades civis
individuais por engendrar relaccedilotildees competitivas entre seus membros transformar
o corpo em propriedade e a sauacutede em mercadoria tambeacutem natildeo tem sido salutar
esta natildeo parece ser para ele a melhor resposta agrave desindividualizaccedilatildeo proacutepria aos
regimes totalitaacuterios142
141
Com efeito em ldquoLa question de lrsquoeacutecologie la technique ou la vierdquo Canguilhem critica a identificaccedilatildeo do meio propriamente humano conceito socioloacutegico e histoacuterico ao meio biofiacutesico pois ela procura dissimular a crise do sistema de relaccedilotildees econocircmicas de produccedilatildeo explicando-a atraveacutes de uma suposta ruptura no equiliacutebrio bioloacutegico (QE 2000 p187) O problema aqui exposto eacute o de que a naturalizaccedilatildeo do meio social acaba por justificar sistemas poliacuteticos e determinados modos de produccedilatildeo neste caso o capitalista Diante disso haacute duas saiacutedas possiacuteveis ou a incomensurabilidade entre natureza e cultura dada a legalidade natural e o indeterminismo das relaccedilotildees sociais ou a aproximaccedilatildeo entre elas possiacutevel pela existecircncia de uma normatividade vital que escapa ao determinismo da lei natural e que pode oferecer agrave vida social como sua extensatildeo maior liberdade e consequentemente maior dinamismo e flexibilidade em suas normas Assim trocando o conceito de natureza pelo de vida Canguilhem impede a naturalizaccedilatildeo do modo de produccedilatildeo capitalista de suas leis e das relaccedilotildees sociais que ele engendra abrindo a possibilidade de pensarmos outras formas de organizaccedilatildeo social de produccedilatildeo e de relaccedilotildees sociais mais condizentes com o movimento dinacircmico da vida logo mais saudaacuteveis Cf ldquoLa question de lrsquoeacutecologie la technique ou la vierdquo In DAGOGNET F Consideacuterations sur lrsquoideacutee de nature Op cit
142 Segundo Cammelli (2006) atraveacutes de sua gaya ciecircncia marxista-nietzschiana Canguilhem vecirc o
corpo social como composiccedilatildeo dinacircmica de potecircncias concretas e heterogecircneas por vezes contraditoacuterias em oposiccedilatildeo ao corpo social abstrato estaacutetico e indiferenciado do fascismo construiacutedo como uma maacutequina que apenas obedece a comandos Em oposiccedilatildeo a esta loacutegica e seu
204
Sendo assim podemos dizer que considerando a relaccedilatildeo existente entre
modelo sociopoliacutetico e econocircmico e o entendimento do que seja sauacutede e a
organizaccedilatildeo poliacutetico-administrativa das instituiccedilotildees que estatildeo encarregadas de
promovecirc-la pela oacuteptica canguilhemiana uma sociedade identificada a um
conjunto integrado de indiviacuteduos inter-relacionados e interdependentes menos
estratificada socioeconomicamente e que se modulasse menos por padrotildees ideais
e estereotipados esteacuteticos e de comportamento isto eacute que fosse mais flexiacutevel
quanto a suas formas e modos de vida mais aberta agrave autocriacutetica e agrave mudanccedila de
sua normatividade tenderia a ser menos adoecedora Nesse sentido eacute possiacutevel
falar em sociedades mais saudaacuteveis porque mais abertas agrave liberdade e agrave
criatividade normativas e orientadas pelo respeito agrave singularidade e agrave diversidade
das formas individuais e aos diferentes modos de vida cotidiana
Atraveacutes de sua perspectiva numa sociedade com este caraacuteter a medicina
abriria matildeo de ser um dos braccedilos normalizadores do Estado pois o meacutedico
resgataria sua vocaccedilatildeo para curar se recusando a assumir tarefas
regulamentadas de descoberta das pistas tratamento e de controle (cf EM 2005
p66) As instituiccedilotildees de sauacutede almejando normatividade e natildeo normalidade
deixariam de ser dispositivos sociais de imposiccedilatildeo de padrotildees e normas de vida e
se transformariam em dispositivos de resistecircncia agrave normalizaccedilatildeo e portanto
promotoras da potencializaccedilatildeo de indiviacuteduos e coletividades Para tanto os
diferentes profissionais que nelas desenvolveriam suas praacuteticas fariam suas
escolhas teoacuterico-metodoloacutegicas de modo reflexivo e criacutetico evitando os meacutetodos
normalizadores e conduziriam suas accedilotildees a partir de uma diretriz eacutetico-poliacutetica
pautada no respeito agrave vida
Assim explorando o caraacuteter propositivo de seu pensamento eacute possiacutevel
contestar a ideia de que Canguilhem privilegiaria um modelo assistencial
esquema biopoliacutetico e normalizante ele propotildee uma teoria do agir poliacutetico proacutepria diferente da do corpo social homogecircneo no qual eacute impensaacutevel e concretamente impraticaacutevel qualquer possibilidade de oposiccedilatildeo ao poder instituiacutedo Ou seja atraveacutes de sua loacutegica da resistecircncia ele sugere outras formas de resoluccedilatildeo dos conflitos que atravessam o corpo social pela via da liberaccedilatildeo da potecircncia de vida e natildeo da pulsatildeo de morte ou de indiferenciaccedilatildeo do fascismo Cf CAMMELLI M ldquoLogiche della resistenzardquo Op cit
205
individualista com ecircnfase na dimensatildeo curativa da doenccedila Segundo ele accedilotildees
de sauacutede puacuteblica de caraacuteter preventivo devem existir a exemplo das praacuteticas de
vacinaccedilatildeo e coexistir com as praacuteticas direcionadas agrave promoccedilatildeo da sauacutede
individual (cf E 1989 p411) No entanto ele alerta que as accedilotildees generalizadas
de promoccedilatildeo agrave sauacutede prevenccedilatildeo e tratamento de doenccedilas no acircmbito coletivo natildeo
resultaratildeo necessariamente um benefiacutecio a todos os indiviacuteduos considerando a
multiplicidade dos modos de vida e as diferentes idisossincrasias a exemplo das
reaccedilotildees adversas que alguns indiviacuteduos tecircm com as vacinas
Mas de modo mais fundamental eacute tendo em vista que o Estado tem poder
por meio dos serviccedilos de sauacutede puacuteblica sobre a sauacutede dos cidadatildeos que
Canguilhem salienta que os profissionais que neles trabalham devem ficar atentos
quanto agrave manutenccedilatildeo da ideologia de controle das populaccedilotildees em suas praacuteticas a
exemplo das accedilotildees sanitaacuterias higienistas herdadas da medicina social Pois a seu
ver assim como as praacuteticas de sauacutede voltadas para o indiviacuteduo as coletivas
tambeacutem natildeo devem se traduzir por accedilotildees de normalizaccedilatildeo daqueles grupos que
em sua diferenccedila ao transgredirem uma norma de comportamento social tido por
saudaacutevel natildeo satildeo vantajosos para o Estado (cf E 1989 p410)
Daiacute podemos inferir que as accedilotildees de sauacutede coletiva podem e devem
existir mas para que deixem de ser praacuteticas de controle da condiccedilatildeo fiacutesica e moral
da populaccedilatildeo elas precisam natildeo mais impor normas anocircnimas higiecircnicas e
dieteacuteticas ou inculcar padrotildees e modelos de vida saudaacutevel atraveacutes de campanhas
contra ou de conscientizaccedilatildeo pela chamada educaccedilatildeo popular em sauacutede
Seguindo outra diretriz teoacuterico-metodoloacutegica e eacutetico-poliacutetica se elas almejam
efetivamente promover ou produzir sauacutede puacuteblica devem respeitar os valores e as
diferentes formas de cuidado proacuteprias aos diferentes grupos de uma mesma
coletividade que natildeo eacute uma massa homogecircnea desprovida de saberes
tradicionais
Em termos praacuteticos se os profissionais que atuam nos serviccedilos de sauacutede
puacuteblica natildeo querem normalizar populaccedilotildees eles natildeo devem se orientar apenas
por estudos epidemioloacutegicos quantitativos e se basear na noccedilatildeo de evitaccedilatildeo dos
206
riscos agraves doenccedilas e na culpabilizaccedilatildeo dos indiviacuteduos acometidos por elas como
se eles atentassem contra a ordem social instituiacuteda Considerando as dimensotildees
socioeconocircmicas poliacuteticas e culturais relativas agraves condiccedilotildees de sauacutede da
populaccedilatildeo eles natildeo devem negligenciar os determinantes e os condicionantes
sociais da sauacutede e os aspectos ecoloacutegicos que impactam negativamente a vida
dos indiviacuteduos bem como respeitar o contexto sociocultural em que desenvolve
suas praacuteticas isto eacute os valores e normas a partir dos quais um dado grupo social
estrutura seus modos de vida cotidiana agindo em conjunto com ele com vistas agrave
criaccedilatildeo de meios mais saudaacuteveis propiciadores de qualidade de vida coletiva
Portanto para que o profissional de sauacutede natildeo mais assuma o papel de
normalizador tanto no acircmbito individual quanto coletivo eacute necessaacuterio que ele
atraveacutes de uma tomada de posiccedilatildeo natildeo somente teacutecnico-cientiacutefica mas eacutetico-
poliacutetica se recuse a fazer uso de meacutetodos de controle avaliativo do
comportamento e do estilo de vida dos indiviacuteduos e de procedimentos que
meramente corrigem e apassivam os indiviacuteduos assistidos
Resistir a assumir este papel de normalizador eacute natildeo cair no que
Canguilhem chama em Qursquoest que la Psychologie de automatismo da execuccedilatildeo
que ocorre quando o profissional de sauacutede aplica um meacutetodo sem se ter clareza
do que se faz fazendo o que se faz Isto eacute quando faz uso de procedimentos
teacutecnicos de modo acriacutetico sem levar em conta as circunstacircncias histoacutericas e os
meios sociais em que satildeo aplicados e mesmo suas implicaccedilotildees na vida dos
indiviacuteduos assistidos Por exemplo quando ele faz uso de teacutecnicas de mediccedilatildeo de
quociente de inteligecircncia (QI) que costumam ser usados para justificar processos
de estigmatizaccedilatildeo e exclusatildeo de indiviacuteduos com diferenccedilas cognitivas ou ainda
oferta tratamentos meramente corretivos para pessoas com restriccedilotildees
neuromotoras ou ainda recorre a meacutetodos coercivos nos casos de sofrimento
psiacutequico quase sempre aplicados em espaccedilos institucionais fechados
Parece entatildeo que a saiacuteda entatildeo que ele nos aponta eacute o questionamento
por parte dos profissionais de sauacutede sobre a funccedilatildeo social das instituiccedilotildees de
sauacutede para as quais trabalham se potencializaccedilatildeo ou normalizaccedilatildeo do corpo
207
subjetivo se promoccedilatildeo de sauacutede puacuteblica ou imposiccedilatildeo de haacutebitos e modos de vida
coletiva saudaacuteveis e tambeacutem sobre a validade dos meacutetodos que utilizam suas
finalidades e implicaccedilotildees uacuteltimas sobre os riscos do uso social do diagnoacutestico
para aleacutem dos fins de orientaccedilatildeo da terapecircutica e sobre a utilidade dos testes e
avaliaccedilotildees que com seus resultados quantitativos dizem pouco ou quase nada do
valor e do sentido do patoloacutegico na experiecircncia humana Ou seja uma reflexatildeo
sobre em que medida suas accedilotildees natildeo se traduzem por estrateacutegias sociais de
controle dos desviantes da norma servindo apenas para patologizar as
diferenccedilas
Com efeito em suas Novas reflexotildees referentes ao normal e ao patoloacutegico
ao tratar da questatildeo da correccedilatildeo dos erros geneacuteticos e da ciecircncia dos
geneticistas Canguilhem identifica a caccedila aos genes heterodoxos a uma
inquisiccedilatildeo geneacutetica e pergunta se a identificaccedilatildeo deles natildeo culminaria na privaccedilatildeo
da liberdade dos genitores suspeitos de os portarem de sua liberdade de gerar
Fazendo referecircncia ao Admiraacutevel mundo novo de Aldous Huxley ele jaacute
apresentava o problema do limite tecircnue existente entre a identificaccedilatildeo de
predisposiccedilotildees geneacuteticas a doenccedilas (medicina preditiva) o uso de tecnologias de
correccedilatildeo de doenccedilas de base genocircmica (terapias gecircnicas) e os meacutetodos nazistas
de discriminaccedilatildeo geneacutetica e extermiacutenio definidos hoje como neoeugenia143 Ou
143
Em sua conferencia em homenagem a Canguilhem Gros (1993) diz que com o desenvolvimento da engenharia geneacutetica foram desenvolvidas novas teacutecnicas de diagnoacutestico preacute-natal genotiacutepico tornando o feto um paciente do mesmo modo que uma crianccedila ou um adulto Hoje a dificuldade eacutetica deste trabalho reside natildeo apenas no fato de que na maior parte dos casos o tratamento para a doenccedila encontrada ainda natildeo existe mas sobretudo porque assistimos a um processo de deslizamento ou derrapagem na qual a intenccedilatildeo de cuidado pouco a pouco acaba por se transformar em eugenia Ele argumenta que a este niacutevel de precisatildeo na anaacutelise molecular do genoma a proporccedilatildeo de fetos com um traccedilo hereditaacuterio desfavoraacutevel pode vir a ser consideraacutevel A medicina preditiva iraacute inclusive tornar possiacutevel identificar fatores de risco a doenccedilas que costumam se manifestar tardiamente como Alzheimer esclerose diabetes cacircncer ou reumatismo O maior problema entatildeo seraacute decidir o que fazer com o indiviacuteduo que ainda natildeo estaacute doente mas corre o risco de vir a ser Assim a medicina preditiva se vecirc colocada entre o desejo de ver curadas as doenccedilas geneacuteticas e o eugenismo positivo que aspira agrave procriaccedilatildeo do indiviacuteduo ideal Jaacute apresentados por Canguilhem estes satildeo problemas gerados pelo fato de se examinar a doenccedila pelo prisma do reducionismo molecular e celular Qual disciplina vai fixar as fronteiras entre o normal e o patoloacutegico Como saber qual seria a boa ou a maacute mutaccedilatildeo Que atitude a moral social iraacute adotar diante de um mal gene Qual embriatildeo seria geneticamente conveniente O que fazer com o feto que natildeo estaacute em conformidade com os desejos expressos do casal Estes satildeo algumas das questotildees que a medicina geneacutetica preditiva teraacute de se a ver para que seu objetivo de diagnosticar tratar e curar as doenccedilas geneacuteticas natildeo resvale numa eugenismo de conveniecircncia Cf
208
seja ele jaacute colocava o problema da manipulaccedilatildeo geneacutetica e dos excessos em seu
uso para aleacutem das finalidades terapecircuticas144
ldquoImagina-se a vida de uma populaccedilatildeo natural como um saquinho de loto e cabe aos funcionaacuterios designados pela ciecircncia da vida verificar a regularidade dos nuacutemeros que ele conteacutem antes de se permitir aos jogadores tiraacute-los para coloca-los nos cartotildees Na origem deste sonho haacute a intenccedilatildeo generosa de poupar seres vivos inocentes e impotentes do peso atroz de representar os erros da vida Na meta de chegada deste sonho encontra-se a poliacutecia dos genes encoberta pela ciecircncia dos geneticistas No entanto natildeo se deve deduzir daiacute a obrigaccedilatildeo de adotar uma permissividade geneacutetica mas apenas a obrigaccedilatildeo de relembrar agrave consciecircncia meacutedica que sonhar com remeacutedios absolutos eacute muitas vezes sonhar com remeacutedios piores que o malrdquo (NP 1990 p255)
A questatildeo da manipulaccedilatildeo geneacutetica pede entatildeo natildeo somente um agudo
senso de responsabilidade eacutetica por parte daqueles que trabalham com medicina
preditiva e terapias gecircnicas mas tambeacutem uma reflexatildeo sobre o que significa tratar
indiviacuteduos morfogeneticamente diferentes Lembrando do elogio agrave diversidade que
faz quando de sua reflexatildeo sobre as diferentes formas de vida podemos concluir
que assistir a indiviacuteduos com alteraccedilotildees morfogeneacuteticas e restriccedilotildees neuromotoras
natildeo significa meramente corrigir e impor uma esteacutetica uma forma ideal mas sim
possibilitar o aumento de sua potecircncia de agir no seu grupo social de vida atraveacutes
de praacuteticas propiciadoras de desenvolvimento autocircnomo de atividades cotidianas -
voltadas natildeo apenas para a funccedilatildeo mas para a funcionalidade - e do uso de
GROS F Hommage agrave Canguilhem In BADIOU A (et al) Georges Canguilhem Philosophe historien des sciences Actes du colloque (6 7 8 deacutecembre 1990) Op cit
144 Para exemplificar isso Canguilhem diz que a geneacutetica passou a oferecer aos bioacutelogos a
possibilidade de conceber e de aplicar uma biologia formal e de superar as formas empiacutericas de vida criando seres experimentais segundo normas diferentes fazendo com que a norma do organismo coincida com a do caacutelculo do geneticista eugenista Segundo ele datam de 1910 as primeiras conferecircncias de HJ Muumlller geneticista ceacutelebre por suas mutaccedilotildees provocadas Muumlller advogava a obrigaccedilatildeo moral e social do homem de intervir sobre si mesmo para se elevar ao niacutevel intelectual mais alto isto eacute defendia a vulgarizaccedilatildeo do gecircnio por eugenia Tratava-se de um programa social que propunha como ideal a ser realizado uma coletividade sem classes sem desigualdades sociais em que as teacutecnicas de conservaccedilatildeo do material seminal e de inseminaccedilatildeo artificial permitiriam agraves mulheres educadas para se sentirem honradas com tal dignidade carregar em seu ventre os filhos de homens geniais como Lecircnin e Darwin Todavia o escrito do geneticista russo foi mal visto ateacute mesmo na URSS pois ele desconsiderou que a ideia de uma sociedade sem classes natildeo se harmoniza com a teoria da hereditariedade que confirma a desigualdade humana (cf NP 1990 p232-233)
209
recursos e tecnologias especiacuteficas por exemplo de comunicaccedilatildeo e mobilidade
colocadas a serviccedilo de processos inclusivos
Aleacutem de suas Novas Reflexotildees escritos como Le cerveau et la penseacutee e
Qursquoest que la Psychologie nos fazem pensar sobre a atual proliferaccedilatildeo de
diagnoacutesticos das chamadas doenccedilas mentais e sua identificaccedilatildeo cada vez mais
precoce bem como sobre sua identificaccedilatildeo a desordens neuroloacutegicas ou
geneacuteticas atraveacutes de uma leitura meramente orgacircnica dos fatores geradores de
sofrimento psiacutequico Isto eacute nos fazem questionar sobre quais os limites da
reduccedilatildeo anatomofisioloacutegica das doenccedilas mentais realizada pela psiquiatria
bioloacutegica ou biopsiquiatria e pela psicologia cognitivo-comportamental aliada agrave
neurociecircncia e sobre a eficaacutecia da resposta meramente medicamentosa quando
natildeo eletroconvulsiva (ECT) ao sofrimento psiacutequico Eles nos fazem pensar
tambeacutem sobre a existecircncia ainda hoje de praacuteticas de normalizaccedilatildeo travestidas do
cuidado em sauacutede validadas pelo poder sociopoliacutetico e meacutedico-cientiacutefico a
exemplo das accedilotildees higienistas policialescas como as internaccedilotildees involuntaacuterias e
compulsoacuterias de usuaacuterios de substacircncias psicoativas e a psiquiatrizaccedilatildeo das
problemaacuteticas sociais operada atraveacutes de diagnoacutesticos como de transtorno
desafiador opositivo145 e o uso da farmacologia comportamental em adolescentes
que cometeram atos infracionais em acordo aos pressupostos teoacutericos e
ideoloacutegicos do behaviorismo radical
Em outra trilha entatildeo defendendo a necessidade de escuta cliacutenica
interpretaccedilatildeo do sentido do sintoma e uma definiccedilatildeo de cura como satisfaccedilatildeo
subjetiva Canguilhem tambeacutem oferece outros paracircmetros metodoloacutegicos para a
assistecircncia em sauacutede mental Com efeito ao realizar sua criacutetica agrave psiquiatria
145
Segundo o Manual Diagnoacutestico e Estatiacutestico de Transtornos Mentais ndash DSM IV (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders IV) - que lista 297 patologias mentais - e a Classificaccedilatildeo Internacional de Doenccedilas - CID-10 a caracteriacutestica essencial do Transtorno Desafiador Opositivo eacute um padratildeo recorrente de comportamento negativista desafiador desobediente e hostil para com figuras de autoridade que persiste por pelo menos 6 meses e se caracteriza pela ocorrecircncia frequente de pelo menos quatro dos seguintes comportamentos perder a paciecircncia discutir com adultos desafiar ativamente ou recusar-se a obedecer a solicitaccedilotildees ou regras dos adultos deliberadamente fazer coisas que aborrecem outras pessoas responsabilizar outras pessoas por seus proacuteprios erros ou mau comportamento ser suscetiacutevel ou facilmente aborrecido pelos outros mostrar-se enraivecido e ressentido ou ser rancoroso ou vingativo
210
bioloacutegica e agrave psicologia do comportamento e sua concepccedilatildeo de sauacutede como
adaptaccedilatildeo passiva e submissatildeo ao meio ele apresenta outra concepccedilatildeo de sauacutede
psiacutequica e de cura associadas ao aumento da potecircncia do pensamento e agrave
superaccedilatildeo das determinaccedilotildees identitaacuterias impostas pelo meio social
Pela sua perspectiva neste campo a cura seria obtida atraveacutes do exerciacutecio
da capacidade de superaccedilatildeo de um processo criacutetico e pela emergecircncia de uma
nova normatividade com diferente sentido existencial positivamente qualificada
pelo indiviacuteduo e traduzida por uma satisfaccedilatildeo que soacute eacute acessada por aquele que a
vivencia natildeo podendo ser quantificada atraveacutes de instrumentos e meacutetodos
objetivos de anaacutelise Ainda se o sofrimento psiacutequico eacute o resultado de um embate
do indiviacuteduo com seu meio sociocultural (entourage) a cura como resoluccedilatildeo
saudaacutevel deste conflito tambeacutem se daria pela criaccedilatildeo de novas normas sociais
mais flexiacuteveis quanto ao acolhimento das diversas formas de organizaccedilatildeo
psiacutequica tomadas como expressatildeo das diferenccedilas subjetivas individuais146
Tambeacutem se considerarmos sua criacutetica agrave medicalizaccedilatildeo excessiva no
conjunto das praacuteticas de cuidado em sauacutede mental a medicaccedilatildeo passa a ser
entendida como um dos recursos terapecircuticos natildeo precisando ser prescrito
necessariamente em todos os casos e devendo ser utilizado com prudecircncia em
respeito ao tempo de resposta psiacutequica Caso contraacuterio o processo de reaccedilatildeo e
criaccedilatildeo de uma nova norma existencial pode ser obliterado pela remissatildeo imediata
do sintoma atraveacutes de recursos medicamentosos sem nenhum tipo de
interpretaccedilatildeo de seu sentido para o indiviacuteduo singular Com isso o medicamento
que deveria ser coadjuvante no processo de cura acaba por se transformar num
fixador normativo que ao inveacutes de promover sauacutede mental acaba favorecendo a
doenccedila do homem normalizado
146 Entendemos entatildeo que se Canguilhem elogia Foucault eacute porque ao ter proclamado a morte do homem moderno seu pensamento daacute abertura para se pensar em outras formas de humanidade Isto eacute ao afirmar o esgotamento do cogito ele abre outras possibilidades de se pensar a subjetividade a partir de diferentes modos de subjetivaccedilatildeo e de outras possibilidades de construccedilatildeo ou estetizaccedilatildeo do sujeito Cf CANGUILHEM G Mort de lrsquohomme ou eacutepuisement du cogito Op Cit
211
O indiviacuteduo inclusive poderia estar sofrendo com fato de estar fixado em
uma uacutenica norma e a experiecircncia da crise como momento de exacerbaccedilatildeo dos
sintomas poderia ser a oportunidade de constituiccedilatildeo de uma nova normatividade
psiacutequica e por conseguinte de um novo sentido existencial Ou seja com a
medicalizaccedilatildeo excessiva agindo como um normalizador psiacutequico o indiviacuteduo
acabaria por perder a oportunidade de se tornar mais normativo e portanto mais
saudaacutevel
Aleacutem disso lembrando que Canguilhem tambeacutem recusa o papel social do
hospital como espaccedilo de anaacutelise e vigilacircncia trazendo o hospiacutecio como caso
exemplar de controle seu pensamento tambeacutem acena para a necessidade de uma
mudanccedila nos modos de atenccedilatildeo em sauacutede mental natildeo somente praacutetica ou
metodoloacutegica mas tambeacutem eacutetico-poliacutetica orientada para a liberdade Isso porque
seguindo sua racionalidade nenhum indiviacuteduo pode ser prognosticado como
incapaz ou portador de uma doenccedila mental que justifique sua hospitalizaccedilatildeo
forccedilada e a privaccedilatildeo de sua liberdade de inserccedilatildeo no seu meio social de vida
ficando agrave mercecirc de uma alforria meacutedica a ser obtida pelo atestado de retorno de
sua sanidade Se como vimos a vida mesma natildeo se enquadra em uma camisa-
de-forccedila de leis ou de regras porque haveriacuteamos de tentar produzir sauacutede atraveacutes
deste tipo de procedimento
A nosso ver entatildeo seu pensamento sugere a valorizaccedilatildeo de meacutetodos ou
teacutecnicas em sauacutede mental que possibilitem a realizaccedilatildeo de uma escuta
qualificada visando o acolhimento do sofrimento da anguacutestia vivida por um
indiviacuteduo concreto com vistas agrave superaccedilatildeo do processo criacutetico instaurado pela
doenccedila e agrave emergecircncia de uma nova normatividade nos campos psiacutequico e
tambeacutem social Isso exige novas formas de organizaccedilatildeo da rede de serviccedilos de
atenccedilatildeo em sauacutede mental que garantam uma atenccedilatildeo de portas abertas e
tambeacutem uma tomada de posiccedilatildeo eacutetico-poliacutetica do profissional em relaccedilatildeo ao locus
onde suas praacuteticas seratildeo desenvolvidas como a recusa em atuar em instituiccedilotildees
nas quais o desejo e a liberdade dos indiviacuteduos natildeo sejam respeitados
212
De modo geral podemos afirmar que sua racionalidade vitalista melhor
condiz com formas de organizaccedilatildeo soacutecio-poliacutetica sanitaacuteria menos
hospitalocecircntricas constituiacutedas por uma rede de instituiccedilotildees de sauacutede abertas e
acessiacuteveis estrategicamente proacuteximas ao meio em que os indiviacuteduos vivem com
vistas ao aumento da pertinecircncia e consequentemente da eficaacutecia de suas accedilotildees
porque agora estariam socioculturalmente contextualizadas Isto eacute estaacute em
consonacircncia com a estruturaccedilatildeo de um conjunto inter-relacionado de serviccedilos
norteados pelo princiacutepio da integralidade em sauacutede que sejam multiprofissionais
possibilitando diaacutelogos inter e transdisciplinares organizados de modo que
consigam dar conta da emergecircncia das situaccedilotildees sem deixar de acolher o
sofrimento de modo individualizado e de construir projetos terapecircuticos singulares
direcionados para cada caso em particular Ou seja com um sistema de sauacutede
que mesmo em suas instituiccedilotildees hospitalares guarde o sentido primeiro da cliacutenica
de voltar-se ao leito do paciente de modo a romper o tratamento no anonimato
Eacute neste sentido entatildeo que defendemos que eacute por realizar uma oposiccedilatildeo agraves
praacuteticas de normalizaccedilatildeo em sauacutede nos acircmbitos individual e coletivo derivadas da
ainda hegemocircnica tradiccedilatildeo biomeacutedica moderna que a racionalidade vitalista
proposta por Canguilhem consegue contribuir com a medicina atual em seu
objetivo de produccedilatildeo de sauacutede Na medida em que deixa claro que a funccedilatildeo da
terapecircutica natildeo eacute o retorno agrave normalidade mas o incentivo agrave normatividade ela
traz outras orientaccedilotildees agrave formaccedilatildeo teoacuterica agrave praacutetica assistencial e mesmo para a
pesquisa em sauacutede conseguindo abrir outros horizontes teoacuterico-metodoloacutegicos e
eacutetico-poliacuteticos para a cliacutenica seja ela meacutedica psicoloacutegica ou outra transformando-
a num dispositivo de resistecircncia agrave mecanizaccedilatildeo da vida agrave normalizaccedilatildeo dos
indiviacuteduos e agrave gestatildeo sociopoliacutetica meacutedica da vida cotidiana
Em resumo na contramatildeo da racionalidade biomeacutedica mecanicista sua
racionalidade vitalista consegue subsidiar o desenvolvimento de praacuteticas
terapecircuticas natildeo orientadas pela ideia de sauacutede perfeita e tipo ideal que natildeo
tenham por objetivo a normalizaccedilatildeo de corpos e mentes mas o aumento da
normatividade e por conseguinte da potecircncia de resistecircncia vital dos indiviacuteduos
Ou seja eacute somente tendo como eixo de suas praacuteticas a vida como posiccedilatildeo de
213
valor e criaccedilatildeo de normas em suas dimensotildees bioloacutegica existencial e social e
uma ideia de sauacutede como potecircncia de superaccedilatildeo no acircmbito somaacutetico e psiacutequico e
tambeacutem como capacidade de transformar o meio em que se vive de modo que ele
engendre relaccedilotildees socioafetivas mais salutares que a cliacutenica pode ser
revitalizada natildeo mais se orientando pela ideologia de controle ou domiacutenio e se
desenredando assim das malhas da normalizaccedilatildeo das quais ainda hoje
acreditamos ela natildeo conseguiu se desvencilhar
214
CONCLUSAtildeO
Partimos da hipoacutetese de que era possiacutevel apresentar o que chamamos de
medicina filosoacutefica canguilhemiana como base para a formulaccedilatildeo de uma nova
racionalidade em sauacutede capaz de operar uma revitalizaccedilatildeo da cliacutenica
transformando-a em dispositivo de resistecircncia agraves praacuteticas de normalizaccedilatildeo Mas
considerando que Canguilhem natildeo se pocircs a tarefa de apresentaacute-la em um uacutenico
escrito nem de modo rematado para desenhaacute-la foi preciso realizar uma leitura
do conjunto de seus textos sobre medicina histoacuteria e filosofia das ciecircncias da vida
nos quais ele reflete sobre os principais conceitos que datildeo inteligibilidade agraves
praacuteticas de sauacutede - vida normal e patoloacutegico ndash e sobre a produccedilatildeo do saber e
exerciacutecio do poder meacutedicos de modo a extrair seus principais contornos
Com efeito no curso de nossa investigaccedilatildeo notamos que o pensamento
meacutedico-filosoacutefico canguilhemiano se encontra disperso no conjunto de seus
escritos e que para desenhaacute-lo seria necessaacuterio identificar as concordacircncias
conceituais e filiaccedilotildees teoacutericas impliacutecitas e expliacutecitas dentre as quais
destacamos entre outras Aristoacuteteles Hipoacutecrates Bichat Barthez Darwin
Espinosa Nietzsche Bergson Uexkuumlll Goldstein Simondon Politzer Vidal de la
Blanche Friedmann e Foucault Ainda vimos que apesar dele ter sido elaborado
no decorrer de mais de quatro deacutecadas Canguilhem manteacutem uma coerecircncia
teoacuterico-epistemoloacutegica de defesa do vitalismo em oposiccedilatildeo ao mecanicismo
claacutessico e ao reducionismo fiacutesico-quiacutemico
Mas tambeacutem e isso de modo mais fundamental percebemos que se ele
adere a esta tradiccedilatildeo meacutedico-filosoacutefica natildeo eacute somente por compartilhar com ela o
reconhecimento da originalidade do fenocircmeno vital mas eacute principalmente porque
ela se opotildee agrave ideologia de controle da natureza sustentada pela ciecircncia moderna
Ou seja se Canguilhem aposta numa racionalidade meacutedica vitalista ancorada na
capacidade de resistecircncia proacutepria agrave vida para a proposiccedilatildeo de outro logos outro
ethos e outra praacutexis para a cliacutenica natildeo eacute somente porque ela lhe parece
conceitualmente mais bem sucedida na explicaccedilatildeo da forma como se processam
215
os fenocircmenos vitais mas eacute principalmente porque ela pode nos livrar das
injunccedilotildees ideoloacutegicas de esquerda e direita de controle sobre a vida
Sendo assim eacute para fazer frente a um pensamento meacutedico de orientaccedilatildeo
materialista mecanicista e reducionista que fez com que a praacutetica cliacutenica ficasse
aprisionada num esquema de causa e efeito reduzindo a relaccedilatildeo meacutedico-paciente
a um automatismo de ordem instrumental que ele se inscreve na tradiccedilatildeo meacutedico-
vitalista Natildeo obstante apesar de se inscrever nesta tradiccedilatildeo atraveacutes de seu
vitalismo materialista antimecanicista Canguilhem elabora uma racionalidade
meacutedica singular que a despeito de tambeacutem apostar numa concepccedilatildeo de corpo
dinacircmico e na forccedila curativa da natureza (vis medicatrix naturae) por ele traduzida
pelas noccedilotildees de polaridade dinacircmica e normatividade vital possui caracteriacutesticas
proacuteprias
Atraveacutes de sua perspectiva vitalista materialista antimecanicista e
antiteleoloacutegica Canguilhem entende que ao contraacuterio de uma maacutequina o vivente
natildeo eacute uma soma de partes mas um todo natildeo apresenta uma finalidade
ontoloacutegica mas organiacutesmica ou operacional e apresenta um metabolismo
orientado para a autorreproduccedilatildeo e autoconservaccedilatildeo por autorregulaccedilatildeo
Tambeacutem julga que seus fenocircmenos natildeo podem ser reduzidos agraves leis da fiacutesico-
quiacutemica pois enquanto as leis satildeo invariaacuteveis e indiferentes as normas bioloacutegicas
satildeo variaacuteveis e flutuantes podendo receber valoraccedilotildees bioloacutegicas qualitativamente
opostas positivas ou negativas
Assim tomando a vida como mateacuteria capaz de valorar positiva e
negativamente seus proacuteprios comportamentos ele denuncia a desvalorizaccedilatildeo da
mateacuteria viva operada pela distinccedilatildeo substancial cartesiana que fez do corpo
incapaz de produccedilatildeo de linguagem e de valor e o apresenta como um todo
criador de normas e valores Com isso recusa a ideia de ineacutercia vital jaacute que o
vivente eacute capaz de reagir a tudo o que lhe ameaccedila sendo esta atividade reativa
polarizada e normativa a raiz da teacutecnica meacutedica que eacute primeiramente vital e
somente depois por extensatildeo humana
216
Tambeacutem pela mesma perspectiva aleacutem da ideia de ineacutercia vital
Canguilhem coloca em questatildeo a ideia de submissatildeo do vivente ao meio tambeacutem
de origem mecanicista Defendendo as noccedilotildees de reatividade vital e uma teoria de
constituiccedilatildeo reciacuteproca do vivente e seu meio obtida por adaptaccedilatildeo ativa para ele o
organismo natildeo estaacute jogado no meio ao qual tem que se dobrar Ao contraacuterio ele
estrutura seu meio tendo a si mesmo como centro de referecircncia A partir desta
teoria ateacute mesmo uma forma considerada anocircmala por apresentar uma diferenccedila
morfoloacutegica ou funcional pode ser considerada normal se num dado meio ela for
vitalmente vaacutelida isto eacute se conseguir ser normativa capaz de instituir novas
normas vitais quando da necessidade de superar as dificuldades que resultam de
uma alteraccedilatildeo de seu meio de vida
Desta forma sauacutede e doenccedila natildeo podem ser definidas como um estado
orgacircnico ideal e seu desvio mas como a capacidade ou natildeo de o vivente instituir
novas normas vitais quando de seu embate com seu meio de modo que o que
chamamos de vivente normal ou saudaacutevel natildeo eacute o que se manteacutem num estado
ideal de normalidade mas eacute o normativo aquele que consegue se ajustar ao
meio adaptando-se ativamente a ele seja alterando sua norma atual seja
alterando o meio tambeacutem este capaz de sofrer ajustes e modificaccedilotildees Por
oposiccedilatildeo o vivente anormal ou patoloacutegico eacute aquele que natildeo apresenta esta
capacidade de evitar ou corrigir comportamentos que lhe ameaccedilam pela
incapacidade criar novas normas vitais seja espontaneamente seja quando
instado a isso
Ademais se em sua anaacutelise filosoacutefica da vida Canguilhem apresenta o
vivente humano identificado a uma totalidade orgacircnica consciente com tendecircncia
agrave autoconservaccedilatildeo por auto-organizaccedilatildeo e com sentido vital e existencial singular
na qual a qualidade de seus processos se saudaacuteveis ou patoloacutegicos somente
podem ser pensados a partir da relaccedilatildeo que estabelece com seu meio
(entourage) ao estudar a relaccedilatildeo dos indiviacuteduos com seu meio social ele tambeacutem
daacute a sua reflexatildeo sobre a vida um tom explicitamente sociopoliacutetico Ele mostra que
quando falamos no vivente humano precisamos considerar tambeacutem sua potecircncia
imanente de criar normas sociais e de tambeacutem alteraacute-las quando isso se fizer
217
necessaacuterio Tambeacutem que haacute formas de organizaccedilatildeo sociopoliacutetica mais
adoecedoras do que outras por serem menos flexiacuteveis e normalizadoras fazendo
do corpo social uma massa alienada e apaacutetica
Sendo assim afirmamos que eacute com uma intenccedilatildeo de criacutetica filosoacutefica e
tambeacutem poliacutetica que desde seu Ensaio ele recusa o princiacutepio de
desindividualizaccedilatildeo da doenccedila principal caracteriacutestica da racionalidade biomeacutedica
moderna pautada na elucidaccedilatildeo cientiacutefico-experimental do patoloacutegico isto eacute
numa patologia objetiva que desconsidera que a doenccedila eacute antes de tudo um
pathos subjetivo que mais do que um acometimento bioloacutegico eacute uma ameaccedila a
uma existecircncia individual Isso porque entendemos que mais do que por seu
caraacuteter cientificamente equiacutevoco se ele objeta este princiacutepio eacute por ser a
homogeneizaccedilatildeo a indiferenciaccedilatildeo e a dissoluccedilatildeo das individualidades no meio
social uma caracteriacutestica dos regimes poliacuteticos repressivos e conservadores que
se sustentam atraveacutes da despotencializaccedilatildeo dos indiviacuteduos
Eacute portanto por oposiccedilatildeo aos pressupostos teoacuterico-epistemoloacutegicos mas
tambeacutem poliacutetico-ideoloacutegicos da racionalidade cientiacutefico-moderna que faz da
medicina uma ciecircncia das doenccedilas que reduz a vida a uma perspectiva
anatomofisioloacutegica desindividualiza o doente e o torna mero objeto de
intervenccedilatildeo que Canguilhem define a medicina como uma teacutecnica ou arte da cura
situada na confluecircncia de vaacuterias ciecircncias que deve se colocar a serviccedilo das
normas vitais individuais positivamente valoradas pelo sujeito doente e tomadas
por ele como sinocircnimo de sauacutede
De modo mais preciso eacute a partir de uma tomada de posiccedilatildeo teoacuterico-
epistemoloacutegica e tambeacutem eacutetico-poliacutetica que em seus Escritos sobre a medicina
ele diz ter chegado o tempo de uma criacutetica da razatildeo meacutedica praacutetica como
estrateacutegia para invenccedilatildeo de uma nova racionalidade em sauacutede que consiga fazer
frente ao modelo biomeacutedico moderno de base racionalista e cientiacutefico-
experimental associado agrave ideologia de domiacutenio e controle da natureza
caracteriacutestica da ciecircncia moderna e que encontrou na ideologia poliacutetica do nazi-
fascismo sua mais acabada expressatildeo
218
Segundo Canguilhem para furtar-se de tal orientaccedilatildeo ideoloacutegica o meacutedico
deve ter em vista que cada doente eacute uma totalidade individual consciente singular
e que portanto sua terapecircutica deve respeitar as diversas formas de vida seus
valores e normas e os diferentes modos sociais de vida cotidiana Caso contraacuterio
a medicina iraacute se transformar em um dispositivo social de normalizaccedilatildeo e o
meacutedico teraacute seu papel limitado ao de reparador de um suposto estado normal
ideal e adequado a um determinado tipo de sociedade
Assim eacute tecendo criacuteticas agrave medicina cientiacutefica moderna filha da medicina
racional e tambeacutem agrave psicologia cientiacutefica do comportamento como caso exemplar
de tecnologia poliacutetica de controle e normalizaccedilatildeo do pensamento por operar a
partir da ideia de indiviacuteduo condicionaacutevel e de sauacutede como adaptabilidade passiva
ao meio social que Canguilhem constroacutei sua racionalidade meacutedica assentada em
sua concepccedilatildeo de vida como mateacuteria dotada de potecircncia reativa e normativa
base para uma cliacutenica atravessada pelas noccedilotildees de sentido e valor que procura
fazer com que o profissional de sauacutede deixe de ser um agente de normalizaccedilatildeo de
corpos e mentes e passe a ser um incentivador da capacidade de resistecircncia da
vida
A partir destas consideraccedilotildees identificando textualmente os elementos
propositivos de seu pensamento meacutedico-filosoacutefico mostramos que sua
contribuiccedilatildeo para o ensino se daacute por exemplo a partir de sua proposta de
inclusatildeo de disciplinas nos curriacuteculos dos cursos da aacuterea meacutedica que abordem os
aspectos filosoacuteficos psicoloacutegicos e socioantropoloacutegicos do processo
sauacutededoenccedila e que mostrem a importacircncia da relaccedilatildeo meacutedico-doente no
processo de cura Aleacutem disso que a racionalidade meacutedica que propotildee fundamenta
um raciociacutenio cliacutenico que consegue abarcar a complexidade etioloacutegica das
doenccedilas e os jogos de forccedila ou poder presentes na produccedilatildeo de conhecimento
meacutedico-cientiacutefico e suas aplicaccedilotildees Ainda que ela daacute base para diferentes
praacuteticas assistenciais que natildeo visando agrave sauacutede perfeita e um modo de vida
supostamente ideal podem melhor obter o aumento da capacidade de resistecircncia
e a liberaccedilatildeo de potencialidades individuais e coletivas
219
Tambeacutem mostramos que seu pensamento meacutedico-filosoacutefico sugere tanto
na pesquisa cientiacutefica quanto na assistecircncia ao doente o uso de meacutetodos de
investigaccedilatildeo cliacutenico-qualitativos que somados agraves exigecircncias eacuteticas para o
desenvolvimento de pesquisas com viventes humanos e natildeo humanos impedem
o investigador de tratar o vivo como coisa brutalizando-o Aleacutem disso que ele daacute
abertura para refletirmos sobre outras formas de organizaccedilatildeo dos serviccedilos de
sauacutede que sejam estruturadas de modo a possibilitar o desenvolvimento de accedilotildees
individuais e coletivas natildeo orientadas pela ideologia do controle mas pela
confianccedila e respeito agrave vida o que exigiria tambeacutem outras formas de organizaccedilatildeo
social menos estratificadas e socioeconomicamente desiguais mais flexiacuteveis e
baseadas em relaccedilotildees mais solidaacuterias e por conseguinte menos competitivas e
adoecedoras
Concluiacutemos entatildeo que a racionalidade meacutedica vitalista desenhada a partir
do pensamento de Canguilhem pode trazer outras orientaccedilotildees agrave formaccedilatildeo teoacuterica
praacutetica assistencial e mesmo em pesquisa em sauacutede podendo abrir outros
horizontes teoacuterico-metodoloacutegicos e eacutetico-poliacuteticos para cliacutenica de modo a se
transformar em um dispositivo de resistecircncia agrave mecanizaccedilatildeo da vida e agrave
normalizaccedilatildeo dos indiviacuteduos e agrave gestatildeo sociopoliacutetica meacutedica da vida cotidiana Por
isso defendemos que eacute a partir de sua criacutetica agrave cliacutenica como dispositivo de
normalizaccedilatildeo que de forma construtiva o logos o ethos e a praacutexis que propotildee
pode contribuir para pocircr fim agraves praacuteticas de sauacutede tecnicamente normalizadoras
eticamente condenaacuteveis e politicamente conservadoras que julgamos ainda em
muito presentes na atualidade tanto no campo da sauacutede individual quanto na
coletiva
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