contribuiçoes de canguilhem e foucault para as praticas de saude

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    Mnemosine Vol.4, n2, p. 68-97 (2008) Artigos

    Clio-Psych Programa de Estudos e Pesquisas em Histria da Psicologia.

    Entre a normatividade e a normalidade: contribuies de G.Canguilhem e M. Foucault para as prticas de sade

    Between the normativity and the normality: contributionsof G. Canguilhem and M. Foucault for the health practices.

    Tatiana Ramminger

    _________________________________________________________

    Resumo:

    Nesse artigo discutimos a operacionalidade dos conceitos de normatizao e

    normalizao para pensar as prticas de sade no contexto da SadeColetiva. A Sade Coletiva pretende ser uma ruptura com a Sade Pblica,

    ao negar o monoplio do discurso cientfico e biolgico, incluindo as

    dimenses simblica, tica e poltica na discusso sobre as condies de

    sade da populao. Sendo assim, na primeira parte do artigo

    acompanhamos o nascimento da Sade Pblica, bem como a

    problematizao desse modelo pela Sade Coletiva. Em seguida,

    apresentamos duas importantes contribuies para essa desconstruo: asconsideraes em torno do normal e do patolgico, realizadas por G.

    Canguilhem e os estudos de M. Foucault sobre a disciplinarizao da

    sociedade moderna. Ao final, relacionamos diferentes concepes de sade

    com o pensamento de Canguilhem, no intuito de refletirmos sobre como a

    Sade Coletiva pode constituir prticas de ao coletivas que sejam tambm

    normativas e no apenas normalizadoras.

    Palavras-chave: Normatividade; Normalidade; Sade Coletiva_________________________________________________________

    Abstract:

    In this paper we discuss the uses of the concepts of normatization and

    normalization in order to think about the health practices in the context of

    the Collective Health. The Collective Health intends to be a break with the

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    Public Health, while denying the monopoly of the scientific and biological

    speech, including the symbolic, ethic and politics dimensions in the

    discussion on the health conditions of population. Being so, in the first part of

    the paper we accompany the birth of the Public Health, as well as the

    exposing of the problems of this model by the Collective Health. Next, we

    present two important contributions for this deconstruction: the

    considerations around the normal and the pathological, carried out for G.

    Canguilhem and the studies of M. Foucault on the disciplinarization of the

    modern society. At the end, we connect different conceptions of health with

    the thought of Canguilhem, in the intention of thinking about how the

    Collective Health can appoint practices of collective action that are also

    normativing and not only normalising.

    Key-words: Normativity; Normality; Collective Health.

    _____________________________________________________________

    Sade Coletiva: uma ruptura?

    Apesar da idia naturalizada de que a Sade Pblica e a Sade Coletiva

    so sinnimos, dado que ambas remetem impossibilidade de se pensar em

    uma sade individual sem considerar as condies sanitrias do espao

    social, temos boas razes para acreditar que essas expresses no se

    superpem, pois dizem respeito a diferentes modalidades de discurso, com

    fundamentos epistemolgicos diversos e com origens histricas particulares

    (BIRMAN, 2005:11)

    O movimento de luta pela reforma sanitria no Brasil caracterizou-se,

    sobretudo, por uma crtica s prticas consagradas da Sade Pblica e pela

    reivindicao de um outro conceito de sade que, para alm do biolgico,

    inclusse tambm a dimenso social na anlise do processo sade-doena.

    No entanto, para compreender o que esse movimento vislumbrava

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    transformar, comecemos delimitando o campo aqui designado como Sade

    Pblica.

    A Sade Pblica nasce junto com o Estado Moderno, como parte de uma

    nova racionalidade governamental. Ao contrrio das formas de governo do

    Feudalismo e do Absolutismo, o Estado na modernidade no uma casa,

    nem uma igreja, nem um imprio (FOUCAULT, 2007:20), mas uma

    realidade especfica e autnoma, independente da obedincia que deva a

    outros sistemas, como a natureza ou Deus. Da mesma forma, o governante

    no algum diferente dos demais (como o senhor feudal ou o rei), sendo a

    lei dos homens e no mais a lei divina que regula essa nova ordem. A

    poltica externa, que antes baseava-se na defesa e ampliao ilimitada do

    territrio, agora vale-se de todo um aparato diplomtico que respeita a

    pluralidade dos Estados, margem de qualquer tentativa de unificao do

    tipo imperial. Ao contrrio, a poltica interna no tem limites quando se trata

    do controle da populao, por ora valorizada como principal fonte de riqueza

    (FOUCAULT, 2006). Segundo essa razo do Estado, a limitao das relaes

    internacionais tem por correlato o ilimitado exerccio do Estado de polcia

    (FOUCAULT, 2007:23).

    Temos, assim, algumas condies de possibilidade para a emergncia da

    polcia mdica, ou da medicina social ou, finalmente, da sade pblica, que

    consolidou a medicina como discurso cientfico e verdadeiro sobre a sade

    das populaes. Rosen (1983) afirma que na Antigidade a relao entre as

    condies de sade e os fatores sociais no foi priorizada. Ao contrrio, na

    Renascena, essa relao toma importncia, marcando o incio, tanto para

    Rosen (1983), como para Foucault (1999), da medicina social, que tomou

    rumos diferentes, conforme o pas1.

    O contexto scio-poltico-econmico que afirmou a necessidade do

    estudo das relaes entre o estado de sade de uma populao e suas

    condies de vida foi o do mercantilismo2 e cameralismo3, cujo fim supremo

    era colocar a vida social e econmica a servio dos poderes polticos do

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    Estado. Para Foucault (1999), na Frana e na Inglaterra, o principal objetivo

    foi o controle em relao natalidade e morbi-mortalidade, somado

    preocupao em aumentar a populao, sem nenhuma interveno inicial

    efetiva ou organizada para elevar o seu nvel de sade. na Alemanha que

    se desenvolver, pela primeira vez, uma prtica mdica centrada na

    melhoria da sade da populao. Dentro do esquema cameralista, um

    conceito-chave em relao aos problemas de sade e doena a idia de

    police, derivada da palavra grega politeia. Caracteristicamente, a teoria e

    prtica da administrao pblica veio a ser conhecida como

    Polizeiwissenschaft (a science of police), e o ramo que trata com a

    administrao da sade recebeu o nome de Medizinalpolizei(medical police)

    (ROSEN, 1986:33).

    Com o tempo, a idia de polcia transformou-se cada vez mais em uma

    teoria e prtica da administrao pblica, que ganhou fora, sobretudo, na

    Alemanha. Ao final do sculo XVIII, os estados alemes, tanto no sistema de

    pensamento como no comportamento administrativo, j haviam incorporado

    como norma que ao Estado Absoluto cabiam todas as atividades para o bem-

    estar da populao. W.T. Rau, o primeiro a utilizar o termo polcia mdica,

    considerava que o mdico no deve se ocupar apenas do doente, mas

    tambm supervisionar a sade da populao. Por isso era importante

    regulamentar a polcia mdica, com a funo de regulamentar a educao

    mdica, supervisionar as farmcias e hospitais, prevenir epidemias,

    combater o charlatanismo e esclarecer o pblico(ROSEN, 1986:37). Assim,

    com a organizao de um saber mdico estatal, a normalizao da profisso

    mdica, a subordinao dos mdicos a uma administrao central e,

    finalmente, a integrao de vrios mdicos em uma organizao mdica

    estatal, tem-se uma srie de fenmenos inteiramente novos que

    caracterizam o que pode ser chamada a medicina de Estado (FOUCAULT,

    1999:84).

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    Para Rosen (1986), essa foi uma tentativa pioneira de considerar as

    questes de sade da vida comunitria, estimulando estudos futuros da

    relao entre as questes sociais, a sade e a doena. A Frana teve papel

    fundamental nessa teorizao, cunhando o termo medicina social4, que

    no parece ter por suporte a estrutura do Estado, como na Alemanha, mas

    um fenmeno inteiramente diferente: a urbanizao(FOUCAULT, 1999:85).

    A necessidade de constituir a cidade como unidade responde a

    interesses polticos e econmicos, na medida em que a cidade se torna um

    lugar importante para o mercado e para a produo, ao mesmo tempo em

    que o aparecimento de uma classe operria pobre (o proletariado) aumenta

    a tenso poltica entre os diferentes grupos que integram a cidade. a

    necessidade de controlar esta concentrao de uma grande populao em

    um s lugar que leva escolha de um modelo de interveno, que Foucault

    (1999) denomina o modelo da peste. Ele considera a existncia de dois

    grandes modelos de organizao mdica na histria europia: o modelo

    suscitado pela lepra e o modelo suscitado pela peste. No primeiro, o doente

    excludo fisicamente, mandado para fora da cidade, em uma tentativa de

    purificao do espao urbano. No segundo, as pessoas permanecem em suas

    casas, mas so meticulosamente observadas e vigiadas, em um

    esquadrinhamento e controle permanente dos indivduos, em um modelo

    mais prximo revista militar do que purificao religiosa. Enquanto a

    lepra pede distncia, a peste implica uma espcie de aproximao cada vez

    mais sutil do poder aos indivduos, correspondendo a uma inveno das

    tecnologias positivas de poder (FOUCAULT, 2002:58-9).

    Para Foucault (1999), a medicina social francesa do sculo XIX nada

    mais que uma variao sofisticada deste modelo da peste. E suas

    preocupaes, que tambm chegaram ao Brasil republicano, dizem respeito,

    sobretudo, s noes de salubridade e insalubridade, que esto relacionadas

    s condies do meio em que se vive e ao quanto este meio afeta a sade.

    Por isso a importncia das obras de saneamento, a abertura de avenidas

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    largas, a condenao de zonas de amontoamento. A medicina urbana no

    verdadeiramente uma medicina dos homens, corpos e organismos, mas uma

    medicina das coisas: ar, gua, decomposies, fermentos; uma medicina das

    condies de vida e do meio de existncia (FOUCAULT, 1999:92).

    Finalmente, na Inglaterra, o conceito de polcia mdica ou de medicina

    social, do modo como se desenvolveu na Alemanha ou na Frana,

    dificilmente poderia florescer, j que o liberalismo econmico era a doutrina

    prevalecente. Essa filosofia, ao pensar a harmonia perfeita entre o homem e

    a natureza, dificilmente considerava os aspectos sociais em suas anlises. No

    entanto, as conseqncias da Revoluo Industrial e da situao de vida

    precria dos trabalhadores, com excessiva mortalidade e morbidade, no

    tinham como passar despercebidas (ROSEN, 1986).

    Foucault (1999) chama ateno para o fato de que na Inglaterra, pas

    em que o desenvolvimento industrial e do proletariado foi o mais rpido e

    importante, que temos uma nova forma de medicina social e, no por acaso,

    aquela que prevaleceu na atualidade. Um cordo sanitrio autoritrio

    separa ricos e pobres nas cidades, onde a interveno mdica tanto uma

    maneira de auxiliar nas necessidades de sade dos pobres, quanto um

    controle que assegura a proteo das classes mais abastadas de possveis

    doenas e epidemias.

    Diferente da medicina urbana francesa ou da medicina de estado alem

    aparece, na Inglaterra, uma medicina que essencialmente um controle da

    sade e do corpo das classes mais pobres para torn-las mais aptas ao

    trabalho e menos perigosas s classes ricas (FOUCAULT, 1999:97). Essa

    frmula foi a que teve futuro, ligando a assistncia mdica ao pobre,

    controle da sade da fora de trabalho e esquadrinhamento geral da sade

    pblica (idem), com igualmente trs sistemas mdicos superpostos: uma

    medicina assistencial para os pobres e trabalhadores; uma medicina

    administrativa encarregada de problemas mais gerais e, finalmente, uma

    medicina privada que beneficia quem pode pagar. Mesmo que articulados de

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    maneira diferente, tratava-se (e trata-se!) de fazer funcionar esses trs

    sistemas.

    No Brasil, por exemplo (e em vrios pases da Amrica Latina, com

    poucas variaes), o atendimento em sade de responsabilidade do Estado

    esteve ligado carteira de trabalho (INAMPS), enquanto a sade pblica

    responsabilizava-se pelas grandes campanhas de vacinao, ao mesmo

    tempo em que o Estado financiava o setor privado da sade com suspeitos

    convnios. At mesmo o SUS Sistema nico de Sade , que se props a

    romper com esse modelo, preconizando o atendimento universal e integral,

    co-existe com os planos privados de sade, de certa forma tambm

    financiados pelo Estado5.

    Cabe destacar que esse tipo de interveno da sade pblica - mais do

    que um cuidado, um controle mdico da populao sempre suscitou

    resistncias. No Brasil, por exemplo, esse modelo, implantado com mais

    fora a partir da Primeira Repblica, com Oswaldo Cruz, resultou em

    importantes revoltas populares, como a revolta da vacina6. Como nos

    alerta Birman (2005), em nome da cincia tivemos a marginalizao de

    diferentes segmentos sociais, com a consolidao de prticas asspticas que,

    ao silenciarem consideraes de ordem simblica e histrica na leitura das

    condies de vida e sade das populaes, fazem crer que no existe uma

    escolha poltica, ideolgica e tica nas prticas sanitrias.

    Foi justamente tentando romper com esse discurso naturalista e

    pretensamente neutro da Sade Pblica que o movimento da reforma

    sanitria brasileiro e latino-americano props um outro campo que se

    ocupasse da sade no mais da massa informe da populao, mas dos

    sujeitos que compem um coletivo , a Sade Coletiva. Essa passagem do

    pblico para o coletivo descentra o lugar do Estado como espao

    hegemnico para a regulao da vida e da morte na sociedade, sendo que

    este no mais o plo nico na gesto do poder e dos valores,

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    reconhecendo-se o poder instituinte da vida social, nos seus vrios planos e

    instituies (BIRMAN, 2005:14).

    Desde a dcada de 1920, as cincias humanas introduzem, no territrio

    da sade, a problematizao de categorias como normal, anormal e

    patolgico, demonstrando o quanto esses conceitos esto encharcados de

    valores morais. Comea a ganhar fora o entendimento de que a sade

    marcada num corpo que simblico, onde est inscrita uma regulao

    cultural sobre o prazer e a dor, bem como ideais estticos e religiosos

    (BIRMAN, 2005:13). Assim, o campo terico da Sade Coletiva pretende ser

    uma ruptura com a concepo de Sade Pblica, ao negar o monoplio dos

    discursos biolgicos e incluir as dimenses simblica, tica e poltica na

    discusso sobre as condies de sade da populao, sendo a

    transdisciplinariedade sua marca constituinte (BIRMAN, 2005).

    Certamente duas importantes contribuies para essa passagem foram

    as consideraes em torno do normal e do patolgico, realizadas por G.

    Canguilhem, e os estudos de M. Foucault sobre a disciplinarizao da

    sociedade moderna. A seguir, apresentamos as principais idias desses

    autores em torno desses temas, buscando melhor compreender os conceitos

    de normatizao e normalizao (muitas vezes utilizados como sinnimos e

    superficialmente discutidos) e explorar como estes podem nos auxiliar na

    construo de outras prticas de sade.

    Georges Canguilhem: a sade como verdade do corpo

    Georges Canguilhem (1904-1995) insere-se na tradio da

    epistemologia francesa, que props um contraponto filosofia da cincia,

    criticando seu objetivo de determinar o conjunto de regras e tcnicas que

    devem nortear as pesquisas que se pretendem cientficas. Seu argumento

    que a filosofia no deveria se preocupar com o mtodo cientfico, mas sim

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    com a reflexo sobre as condies de possibilidade histricas para a

    produo de conhecimento (MACHADO, 1981). Por isso seria importante que

    o filsofo no se limitasse ao estudo de uma cincia enquanto objeto,

    simplesmente, mas que se aproximasse dos problemas humanos

    concretos, com a aprendizagem de uma matria exterior filosofia uma

    matria estrangeira , como foi, no caso de Canguilhem, o estudo da

    medicina (SCHWARTZ, 2003a): "A filosofia uma reflexo para a qual

    qualquer matria estranha serve, ou diramos mesmo para a qual s serve a

    matria que lhe for estranha" (CANGUILHEM, 2006:6). E ainda: "No

    necessariamente para conhecer melhor as doenas mentais que um

    professor de filosofia pode se interessar pela medicina. No , tambm,

    necessariamente para praticar uma disciplina cientfica. Espervamos da

    medicina justamente uma introduo a problemas humanos concretos"

    (idem).

    Sua obra mais conhecida, O normal e o patolgico, baseada em sua

    tese de doutoramento em medicina, concluda em 19437. A tese divide-se

    em duas partes, cada uma iniciada com uma pergunta, que o autor utiliza

    como fio condutor um fio de Ariadne que nos guia pelos labirintos do

    pensamento do filsofo. Por isso no nos perdemos em meio erudio de

    Canguilhem; ao contrrio, ele nos convida a acompanh-lo na desconstruo

    de conceitos essenciais da medicina, mostrando como muitos deles esto

    encharcados de valores morais.

    O primeiro fio que ele nos lana o seguinte: Seria o patolgico

    apenas uma modificao quantitativa do estado normal? Essa concepo,

    explica ele, considerando o patolgico uma mera variao quantitativa do

    normal, como que uma lente de aumento do normal, esteve no centro do

    nascimento da medicina moderna. Ele escolhe analisar as obras de um

    filsofo Augusto Comte e um cientista Claude Bernard porque esses

    autores desempenharam, semi-voluntariamente, o papel de porta-bandeira

    dessa forma de pensamento (CANGUILHEM, 2006:15).

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    Enquanto Comte definia o patolgico como simples prolongamento mais

    ou menos extenso dos limites de variao, quer superiores, quer inferiores,

    prprios de cada fenmeno do organismo normal (COMTE apud

    CANGUILHEM, 2006:23), Bernard concluiu que a sade e a doena no so

    dois modos que diferem essencialmente, sendo que entre as duas h

    apenas diferenas de grau: a exagerao, a desproporo, a desarmonia dos

    fenmenos normais constituem o estado doentio (BERNARD apud

    CANGUILHEM, 2006:38). Esse modo de compreender a relao entre sade

    e doena, embora tenha sido hegemnico no sculo XIX, permanece atual.

    comum, por exemplo, referir-se a idosos com algum grau de demncia ou a

    deficientes mentais adultos como se fossem crianas: Ele tem 25 anos, mas

    igual a uma criana!; ou vov agora como um beb! A forma de

    tratamento tambm inclui palavras no diminutivo, outra entonao de voz e

    negociaes semelhantes quelas que so utilizadas com crianas. Laudos

    mdicos valem-se de expresses como idade mental de 12 anos para

    descrever um adulto com deficincia. Da mesma forma, a loucura tambm

    costuma ser percebida como uma variao de grau do estado normal, desta

    vez no como uma diminuio, mas como uma exagerao de modos de

    pensar e sentir normais.

    No entanto, como coloca Canguilhem (2006:53), temerrio deduzir

    que a vida sempre idntica a si mesma na sade e na doena, pois a

    doena no apenas uma soma de sintomas, mas um outro modo de ser da

    totalidade do organismo. Uma criana de 12 anos, em fase de crescimento,

    totalmente diferente de um adulto com idade mental de 12 anos. Ambos

    podem ter um desenvolvimento mental semelhante, mas as situaes e

    expectativas que vivenciam so totalmente distintas e, enquanto a criana

    est em constante mudana, o doente tende a manter de modo obsessivo e

    s vezes exaustivo, as nicas normas de vida dentro das quais ele se sente

    relativamente normal (CANGUILHEM, 2006:141).

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    Por outro lado, esse outro modo de ser patolgico no porque o

    mdico o diz, mas porque o prprio sujeito que sofre percebe que vive um

    tipo de vida diferente do normal, algo que o incomoda e sentido como

    uma espcie de mal. Sendo assim, um fato s pode ser considerado

    patolgico em relao totalidade do organismo e levando em conta a

    experincia daquele que se sente doente, sendo que o estado patolgico

    no um simples prolongamento, quantitativamente variado, do estado

    fisiolgico, mas totalmente diferente (CANGUILHEM, 2006:56).

    Em que pesem as diferenas entre os dois autores analisados por

    Canguilhem Comte e Bernard -, ambos tm em comum, alm da

    concepo do patolgico como variao quantitativa do estado normal, a

    idia positivista fundamental de que o saber (ou a cincia) vem antes do agir

    (ou da tcnica), ou seja, a idia de que uma tcnica deve ser normalmente

    a aplicao de uma cincia (CANGUILHEM, 2006:64). Canguilhem, ao

    contrrio, vai defender no s uma concepo qualitativa de sade e doena,

    mas tambm que a medicina mais uma tcnica (a clnica) do que uma

    cincia (fisiologia)8. a clnica que deve informar os estudos tericos, e no

    o contrrio. E para auxili-lo nessa desconstruo, Canguilhem inclui nesse

    debate entre cientistas, um tcnico: o mdico Ren Leriche.

    Canguilhem considera que o maior valor da teoria de Leriche,

    independente de contradies ou crticas que se possam apontar, o fato

    de ser a teoria de uma tcnica, uma teoria para a qual a tcnica existe, no

    como uma serva dcil aplicando ordens intangveis, mas como conselheira e

    incentivadora, chamando a ateno para os problemas concretos (...)

    (CANGUILHEM, 2006:66). Diz Leriche (apud CANGUILHEM, 2006:57): A

    sade a vida no silncio dos rgos e, inversamente, a doena aquilo

    que perturba os homens no exerccio normal de sua vida e em suas

    ocupaes e, sobretudo, aquilo que os faz sofrer.

    Canguilhem concorda com Leriche, relacionando a sade inconscincia

    do prprio corpo, e a conscincia sensao dos limites, das ameaas, dos

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    obstculos sade (CANGUILHEM, 2006:57). Em escritos mais recentes9,

    Canguilhem reitera esse entendimento, comentando que vrios autores

    tambm estabeleceram essa ligao entre a sade, o silncio e a

    inconscincia: alm do j citado Leriche (dcada 1930), Valry (dcada

    1940), Michaux (dcada 1960) e, antes deles, Descartes (1649) o

    conhecimento da verdade como a sade da alma: quando a possumos,

    no pensamos mais nela; e Kant (1798) podemos nos sentir bem de

    sade, mas nunca podemos saber se estamos bem de sade (apud

    CANGUILHEM, 2005:37; 2006:205).

    Sendo assim, analisando a maneira com que importantes filsofos

    pensaram a questo da sade, Canguilhem (2005) conclui que no se pode

    saber, mas apenas sentir o que sade. Na medida em que est fora do

    campo do saber, relacionada experincia, a sade no pode ser um

    conceito cientfico, e por isso um conceito vulgar, o que no quer dizer

    trivial, mas simplesmente comum, ao alcance de todos (CANGUILHEM,

    2005:37). Concordando com Nietzsche, Canguilhem considera que a verdade

    no pode referir-se apenas a um valor lgico, fruto do juzo. A verdade

    habita a experincia, sendo a sade a verdade do corpo. H mais razo em

    teu corpo do que em tua melhor sabedoria (NIETZSCHE apud CANGUILHEM,

    2005:39).

    Guardemos essa idia de que a sade refere-se experincia de um

    corpo singular, e retomemos a leitura da mais importante obra de

    Canguilhem. A segunda parte de seu livro inicia com a seguinte pergunta:

    Existem cincias do normal e do patolgico?. Para respond-la, o filsofo

    empreende uma anlise semntica do termo normal, demonstrando que

    ele pode ser utilizado tanto para designar aquilo que encontrado mais

    frequentemente (fato), como aquilo que se deve ser (valor). Essas duas

    designaes, apesar de to diferentes, confundem-se e misturam-se,

    levando a que um carter comum adquira um valor de tipo ideal

    (CANGUILHEM, 2006:85). No caso da medicina, por exemplo, o que

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    considerado normal aquilo que tem maior freqncia estatstica, ou seja,

    um estado habitual dos rgos confundido com seu estado ideal.

    A cincia esfora-se em medir e quantificar modos de funcionamento do

    organismo, sendo que aqueles mais freqentes ou mais prximos da mdia

    so considerados normais. No entanto, para Canguilhem, essa equao

    est invertida, pois se determinados comportamentos so mais observados

    que outros, porque funcionaram melhor em determinado modo de vida.

    Assim, no a medicina, com suas freqncias estatsticas, que julga o que

    o normal; mas a vida em si mesma, em sua capacidade de instituir

    normas, de ser normativa. Ou seja: um trao humano no seria normal por

    ser freqente, mas seria freqente por ser normal, isto , normativo num

    determinado gnero de vida (CANGUILHEM, 2006:116).

    O normal no como mdia estatstica, generalizada por uma cincia;

    mas como normatividade, ancorada na experincia singular esta uma

    idia central na obra de Canguilhem e, por isso, importante destacar o que

    ele entende por normatividade. Literalmente, que a vida no indiferente

    s condies nas quais ela possvel, que a vida polaridade e, por isso

    mesmo, posio inconsciente de valor, em resumo, que a vida , de fato,

    uma atividade normativa. Em filosofia, entende-se por normativo qualquer

    julgamento que aprecie ou qualifique um fato em relao a uma norma, mas

    essa forma de julgamento est subordinada, no fundo, quele que institui as

    normas. No pleno sentido da palavra, normativo o que institui as normas. E

    nesse sentido que nos propomos a falar sobre uma normatividade

    biolgica10 (CANGUILHEM, 2006:86).

    Como esclarece MASSON (2004), Canguilhem define como polaridade

    dinmica da vida a necessidade permanente, para qualquer ser vivente, de

    fazer escolhas, o que inclui um julgamento de valor, considerando

    determinados modos de funcionamento como positivos e outros como

    negativos: viver , mesmo para uma ameba, preferir e excluir

    (CANGUILHEM, 2006:95). Nessa concepo, viver um debate entre

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    diferentes normas, em um processo dinmico e nunca previsvel, onde a vida

    no apenas submisso ao meio, mas tambm instituio de seu prprio

    meio, estabelecendo valores, no apenas no meio, mas tambm no prprio

    organismo. (CANGUILHEM, 2006:175).

    Seguindo essa lgica, Canguilhem vai discutir a confuso entre os

    termos anmalo e anormal, sendo o primeiro um termo descritivo aquilo

    que desigual e o segundo um termo valorativo aquilo que no segue a

    norma. A anomalia est relacionada a um desvio estatstico, algo inslito e

    no habitual, mas no necessariamente patolgico. A diversidade no

    doena (...). Patolgico implica pathos, sentimento direto e concreto de

    sofrimento e impotncia, sentimento de vida contrariada (CANGUILHEM,

    2006:96). A anomalia s ser patolgica se for sentida como um obstculo

    ou perturbao vida, ou seja, o que determina o patolgico no o desvio

    estatstico, mas o desvio normativo. A doena no est relacionada com o

    fato de ser diferente (anomalia) ou de uma ausncia de normas, mas com a

    incapacidade ou dificuldade de instituir normas que expandam a vida. E

    conclui: No existe fato que seja normal ou patolgico em si. A anomalia e a

    mutao no so, em si mesmas, patolgicas. Elas exprimem outras normas

    de vida possveis.Se essas normas forem inferiores - quanto estabilidade,

    fecundidade e variabilidade da vida - s normas especficas anteriores,

    sero chamadas patolgicas. Se, eventualmente, se revelarem equivalentes

    no mesmo meio ou superiores em outro meio sero chamadas

    normais. Sua normalidade advir de sua normatividade.O patolgico no a

    ausncia de norma biolgica, uma norma diferente, mas comparativamente

    repelida pela vida (CANGUILHEM, 2006:103).

    Para Canguilhem, essa norma repelida e considerada inferior por no

    tolerar desvio, ser incapaz de se transformar frente dinmica da vida, pois

    o normal viver num meio em que flutuaes e novos acontecimentos so

    possveis (CANGUILHEM, 2006:136). Aquilo que normal, por ser

    normativo em determinada situao, pode se tornar patolgico, em outro

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    contexto, se no puder se alterar. Sendo assim, o doente no anormal por

    uma ausncia de norma, mas por uma incapacidade de ser normativo

    (CANGUILHEM, 2006:138), ou seja, pela dificuldade em criar outras normas

    que dem conta de novos acontecimentos, insistindo em conservar uma

    norma que j no funciona mais.

    Agora podemos tentar ensaiar uma definio de sade e doena,

    seguindo o que prope Canguilhem, colocando suas reflexes em dilogo

    com outros conceitos e autores.

    Entre a Normatividade e a Normalidade: dilogo entre Canguilhem eFoucault

    Valendo-se das contribuies de Goldstein11, Canguilhem alerta que a

    doena no pode ser colocada apenas no lugar da negatividade, como aquilo

    que nada cria e transforma. A doena, embora seja uma reduo do

    potencial criativo, no deixa de ser uma vida nova, caracterizada por novas

    constantes fisiolgicas (CANGUILHEM, 2006:141). Sendo assim, elatambm no pode ser deduzida do normal, como um resduo do normal ou

    aquilo que sobreviveu destruio. Ao contrrio, em um primeiro momento,

    a doena aparece como uma necessidade de criao de outras normas frente

    s variabilidades da vida, mas esta necessidade experimentada de forma

    negativa (SERPA JR, 2001). A doena , assim, uma experincia de

    inovao positiva do ser vivo, e no apenas um fato diminutivo ou

    multiplicativo, no uma variao da dimenso da sade, mas uma novadimenso da vida (CANGUILHEM, 2006:138).

    A cura, para Canguilhem, acontece quando se consegue restabelecer a

    normatividade, ou seja, criar para si novas normas, por vezes superiores s

    antigas, no sentido de que tenham maior plasticidade frente

    imprevisibilidade da vida. No entanto, no se pode confundir restaurao da

    normatividade com um retorno ao que se era antes: a vida no conhece a

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    reversibilidade, mas admite reparaes que so inovaes fisiolgicas

    (CANGUILHEM, 2006:147).

    Assim, a sade, mais que um estado de equilbrio ou ausncia de

    enfermidade, poder ficar doente e recuperar-se, e ao superar as

    enfermidades converter-se em um corpo mais vlido(CAPONI, 1997:294).

    A sade uma margem de tolerncia s infidelidades do meio, e ser

    saudvel no apenas ser normal, mas ser normativo; no apenas possuir

    algo que valorizado, mas ser capaz de criar valor; no apenas ser portador,

    mas instaurador de normas vitais. O que caracteriza a sade a

    possibilidade de ultrapassar a norma que define o normal no momento, a

    possibilidade de tolerar infraes norma habitual e de instituir normas

    novas em situaes novas (CANGUILHEM, 2006:148).

    A sade est relacionada, ainda, com um sentimento de seguridade,

    em um duplo sentido: segurana no presente, e seguros para prevenir o

    futuro. E, ao contrrio do que algumas correntes filosficas e cientficas

    defendem, essa seguridade no est ligada a um instinto de conservao,

    onde o organismo evita confrontar-se com novas situaes esse instinto,

    segundo GOLDSTEIN (apud CANGUILHEM, 2006:150), no a lei geral da

    vida, e sim a lei de uma vida limitada. O organismo sadio, antes da

    conservao, procura realizar sua natureza em expanso, enfrentando os

    riscos que isso comporta. Sade , pois, possuir uma capacidade de

    tolerncia ou de seguridade que mais do que adaptativa (CAPONI, 1997:

    294).

    Em um primeiro momento, todos esses conceitos aparecem juntos

    (CANGUILHEM, 2006). Posteriormente, CANGUILHEM (2005) vai refinar essa

    concepo, a partir da distino entre sade comoestadodo corpo dado e

    sade comoexpressodo corpo produzido. O corpo dado est relacionado

    com o patrimnio gentico, o gentipo; enquanto o corpo produzido diz

    respeito aos modos de vida de cada um, seja por escolha ou imposio, ou

    ainda, ao fentipo.

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    Ao falar da sade como estado do corpo dado, o autor parece se referir

    capacidade do corpo adoecer, recuperar-se e, assim, tornar-se um corpo

    mais potente (CAPONI, 1997). O exemplo, citado por ele, o da vacina - o

    artifcio de uma infeco justamente calculada para permitir que o organismo

    se oponha, doravante, infeco selvagem (CANGUILHEM, 2005:43). Essa

    concepo, alerta Canguilhem, j era anunciada por Descartes12 - bem

    antes, portanto, das primeiras hipteses de Pasteur. A sade deficiente

    desse corpo dado, ao contrrio, seria uma limitao do poder de tolerncia

    e de compensao das agresses do meio ambiente, por alguma m

    formao orgnica, por exemplo (idem).

    J a sade como expresso do corpo produzido uma garantia

    vivenciada duplamente como uma garantia contra o risco e audcia para

    corr-lo. o sentimento de poder, sempre mais, ultrapassar capacidades

    iniciais. Canguilhem (2005) d o exemplo dos atletas, mas Caponi (1997)

    complementa que esse sentimento de superao tambm pode dizer da

    experincia de transformar um meio social adverso. A autora chama ateno

    de que, da mesma forma que certas patologias orgnicas contribuem para

    diminuir essa margem de tolerncia, existem vrias condies desfavorveis

    de existncia que devem ser consideradas na predisposio a doenas

    futuras, tais como condies precrias de moradia, alimentao, educao e

    trabalho.

    Aqui h de se considerar a relao entre sade e sociedade. As

    condies de vida impostas (falta de saneamento, alimentao etc.)

    remetem ao mbito pblico e nesse mbito que deveriam delinear-se

    estratgias de interveno - polticas de transformao dessas desigualdades

    que se definem como causas para diversas doenas. Por outro lado, os

    estilos de vida escolhidos por cada um remetem ao mbito do privado. Desde

    que a vida tornou-se preocupao poltica do Estado, no entanto, parece que

    o acento esteve mais na normalizao de condutas e estilos de vida, com a

    culpabilizao do indivduo, do que na transformao dessas limitaes

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    Entre a normatividade e a normalidade: contribuies de G. Canguilhem e M. Foucault

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    sociais de vida. Parece ser mais simples normalizar condutas do que

    transformar condies perversas de existncia (CAPONI, 1997:294).

    importante destacar, aqui, a diferena entre normatizao e

    normalizao. Em ambos os casos a norma est ligada a um julgamento de

    valor, de algo considerado como positivo ou negativo. Em um primeiro

    momento, Canguilhem toma o conceito de norma enquanto norma biolgica,

    entendendo a normatizao enquanto possibilidade de criao de normas

    que, mais que adaptao, permita a expanso da vida.

    Posteriormente, em um texto intitulado Do social ao vital, que integra

    a edio de 1966 de O normal e o patolgico, Canguilhem (2006) versar

    sobre o uso popular do termo normal. Normal o termo pelo qual o sculo

    XIX vai designar o prottipo escolar e o estado de sade orgnica, que

    exprime uma exigncia de racionalizao que se manifesta tambm na

    poltica e na economia e que levar, enfim, ao que se chamou, desde ento,

    de normalizao. A norma aqui social, externa, e est ligada a uma

    exigncia de unificar a variedade, uniformizar a disparidade. A normalizao,

    define ele, a expresso de exigncias coletivas cujo conjunto define, em

    determinada sociedade histrica, seu modo de relacionar sua estrutura, ou

    talvez suas estruturas, com aquilo que ela considera como sendo seu bem

    particular, mesmo que no haja uma tomada de conscincia por parte dos

    indivduos (CANGUILHEM, 2006:199-200).

    Ao longo desse artigo, Canguilhem (2006:206-08) considera que a

    normalizao uma experincia especificamente antropolgica ou cultural,

    citando vrios exemplos, tais como: a normalizao da lngua, na gramtica;

    a normalizao do trabalho; e a normalizao da sade das populaes,

    onde a norma aquilo que fixa o normal a partir de uma deciso

    normativa.

    Ao final, ele faz uma relao entre as normas vitais e as normas sociais,

    considerando a tendncia corrente de se comparar organismo e organizao.

    A primeira diferena diz respeito s regras de ajustamento, que na

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    organizao so exteriores ao complexo ajustado, e devem ser

    representadas e aprendidas. J no organismo vivo, essas regras de

    ajustamento das partes entre si so imanentes, presentes sem ser

    representadas, atuando sem deliberao nem clculo (CANGUILHEM, 2006:

    212). Conclui, assim, que embora a regulao social possa inspirar-se na

    regulao orgnica, est longe de ser como ela. Isso porque a regulao

    social o resultado de um antagonismo, um embate de solues paralelas e

    interesses distintos; ao passo que a regulao orgnica diz de uma

    integrao cada vez mais sofisticada do organismo com o meio.

    Segundo Roudinesco (2007), essa ampliao do conceito de norma e

    normal foi efeito da leitura do livro de Michel Foucault, O nascimento da

    clnica. Canguilhem conhecera Foucault em 1960, quando foi convidado para

    ser seu orientador em sua tese de doutoramento (Loucura e desrazo:

    histria da loucura na idade clssica). Diz Canguilhem (1996): Nunca neguei

    que fui conquistado de imediato. Aprendi a conhecer, melhor que antes,

    outra figura do anormal, distinta do patolgico orgnico. E Foucault me

    obrigou a reconhecer a existncia histrica de um poder mdico equvoco.

    (ROUDINESCO apud MASSON, 2004: 41). E agrega a prpria Roudinesco:

    Foucault substitua a concepo canguilheniana de uma norma produzida

    pela vida por uma noo de norma construda pela ordem social e portadora

    de normalizao. Ou seja, opunha uma normatividade social normatividade

    biolgica, uma arqueologia fenomenologia (ROUDINESCO, 2007:45).

    Por outro lado, ao definir o termo normalizao, em 1975, seja no

    curso que ministrava poca Os anormais seja no livro que lanou

    naquele mesmo ano Vigiar e Punir, FOUCAULT (1995; 2002) refere-se,

    explicitamente, a esse texto de Canguilhem (Do Social ao Vital).

    Resumindo as contribuies de Canguilhem, Foucault destaca trs delas: a

    referncia a um processo geral de normalizao social, poltica e tcnica no

    decorrer do sculo XVIII; a idia de que a norma no se define como uma lei

    natural, mas como uma pretenso de poder, que exige sua obedincia sob

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    mecanismos de coero; e o entendimento de que a norma tambm est

    ligada a uma tcnica positiva de interveno e de transformao, a uma

    espcie de poder normativo. E conclui: esse conjunto de idias que eu

    gostaria de tentar aplicar historicamente, essa concepo ao mesmo tempo

    positiva, tcnica e poltica de normalizao (FOUCAULT, 2002:62).

    Revel (2005:65) esclarece que a noo de norma, para Foucault,

    corresponde ao aparecimento da sociedade disciplinar e do bio-poder,

    diretamente relacionado ao nascimento da medicina social13, tal como j aqui

    explicitado. A emergncia desse aparelho de medicalizao coletiva (...)

    permite aplicar sociedade toda uma distino permanente entre o normal e

    o patolgico e impor um sistema de normalizao dos comportamentos e das

    existncias, dos trabalhos e dos afetos. No um sistema de punio, como

    na sociedade soberana, mas um sistema de correo, de transformao dos

    indivduos, atravs de tcnicas de normalizao, do qual fazem parte as

    escolas, as prises, as fbricas, os hospitais, entre outras organizaes.

    Aqui devemos destacar, ainda, a admirao mtua entre ambos os

    pensadores. Como aponta Roudinesco (2007:48), raro assistir um mestre

    remanejar sua teoria luz daquele que escolheu tornar-se seu aluno. Em

    1991, Canguilhem comenta que j se passaram trinta anos desde de seu

    primeiro contato com Foucault, mas que 1961 permanece e permanecer

    para mim o ano em que se descobriu um grande filsofo (CANGUILHEM

    apud ROUDINESCO, 2007:48). Por sua vez, o ltimo artigo de Foucault

    autorizado para publicao, dois meses antes de sua morte, justamente

    uma homenagem a Canguilhem e ao lugar que ele ocupa na histria do

    pensamento francs: em todo o debate de idias que precedeu ou sucedeu

    o movimento de 1968, fcil reencontrar o lugar daqueles que, direta ou

    indiretamente, haviam sido formados por Canguilhem (FOUCAULT,

    2005:353). Para Foucault (2005:364-5), Canguilhem um filsofo do erro,

    pois a partir do erro que ele coloca os problemas filosficos, os problemas

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    da verdade e da vida. Ou ainda: No limite, a vida da seu carter radical

    o que capaz de erro.

    Problematizando as prticas de sade: algumas contribuies deCanguilhem e Foucault

    Retomando nosso tema, uma grande contribuio de Canguilhem, como

    destacam alguns comentadores de sua obra (SERPA JR, 2001; CAPONI,

    1997), colocar a experincia singular e subjetiva do sujeito no centro da

    determinao das fronteiras entre o que normal e o que patolgico. Se asmais variadas prticas da rea da sade visam restabelecer o estado normal

    do organismo, no porque os cientistas o tenham determinado, mas

    porque ele visado pelo doente. So os doentes que deveriam julgar se no

    so mais normais ou se voltaram a ser. O essencial para o doente sair de

    um abismo de impotncia ou de sofrimento, onde voltar a ser normal

    significa retornar a uma atividade interrompida (ou equivalente), mesmo que

    essa atividade seja reduzida ou os comportamentos menos variados. A vidade qualquer ser vivo no reconhece as categorias de sade e doena, a no

    ser no plano da experincia provao no sentido afetivo do termo, e no no

    plano da cincia. A cincia explica a experincia, mas, nem por isso, a anula

    (CANGUILHEM, 2006: 149).

    J Foucault demonstra, de forma mais enftica, como se constroem

    discursos e prticas em torno daquilo que valorado como mais ou menos

    normal, em determinada sociedade; e como o nascimento das polticas deateno sade das populaes, mais que seu cuidado, visavam seu bom

    controle; mais do que a expanso da vida, objetivavam a adaptao a um

    determinado modelo de sociedade.

    Tambm poderamos compreender o trabalho de ambos os autores

    como modos de compreender a produo de sujeitos. Se para Canguilhem o

    acento est nas respostas normativas dos seres humanos, em um

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    para as prticas de sade.

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    entendimento de que o sujeito se constitui inventando e criando normas,

    para Foucault o interesse recai sobre a eficcia das normas sociais e em

    como os sujeitos so produzidos nas relaes de poder que, ao mesmo

    tempo em que o assujeitam, trazem em si a possibilidade de resistncia e

    transformao das normas. No entanto, alguns autores, como Le Blanc

    (2002), consideram que para Foucault a possibilidade de inveno de si ou

    a criao de modos mais belos e ticos de existncia parece ser uma

    situao rara e singular, ao passo que, para Canguilhem, a inveno um

    dado da vida ordinria. A inveno no prerrogativa do artista, mas

    condio de qualquer ser vivente - imprescindvel, alis, para a manuteno

    e expanso da vida.

    Le Blanc (2002:221) tambm chama ateno para o fato de que no se

    pode separar o social do vital, como se existisse uma normalizao externa

    adaptativa e uma normatizao interna expansiva. Sendo assim, a

    normalidade no se ope normatividade. Assim como a normalidade diz

    respeito tanto racionalizao das normas da sociedade como maneira

    especfica de cada sociedade se posicionar como sujeito de suas normas, a

    normatividade entendida como a capacidade no s subjetiva, mas

    tambm social, de incorporao de novas normas.

    Alm disso, a norma no pode ser pensada como autnoma,

    emancipada do sujeito, pois depende sempre de como valorada e

    interpretada. Toda norma dependente de uma perspectiva, que a razo

    mesma de sua apreciao e avaliao, onde cada sujeito seja individual

    ou coletivo afirma-se em relao s normas que institui ou contesta.

    Assim, a normalizao social instituda no priva a sociedade, grupo ou

    indivduo de sua capacidade normativa.

    Em que pesem esses apontamentos, consideramos que tanto para

    Canguilhem como para Foucault o limite entre o normal e o patolgico se

    torna impreciso, e s quem deveria determin-lo aquele que vive a

    experincia de uma vida diferente. Algum se torna doente somente em

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    relao a si mesmo, e no em relao a uma mdia ou a alguma freqncia

    estatstica, ou a algum comportamento esperado socialmente. O doente

    sente sua potncia diminuda em relao a si mesmo, e isto que deveria

    ser o ponto de ancoragem das prticas de sade (CANGUILHEM, 2006).

    No entanto, o que percebemos que o parmetro de sade est cada

    vez mais ligado ao que valorizado socialmente, e no experincia

    subjetiva e singular. Um corpo feminino, mesmo que saudvel em suas

    curvas, pode ser um problema, quando o modelo a ser seguido cada dia

    mais enxuto, esguio e andrgino. As frustraes e tristezas inerentes vida

    devem ser liquidadas do campo subjetivo, quando o ideal um corpo sempre

    bem disposto e feliz... E as crianas devem ser sempre, e cada vez mais

    cedo, acompanhadas e avaliadas, para que suas estripulias no impeam que

    realizem todas as (hiper)atividades que incluem, alm da escola, aulas de

    ingls, informtica, natao, bal - necessrias sua formao como futuro

    profissional de sucesso. E, claro, para todos esses desvios, temos no s

    um novo diagnstico, mas tambm uma medicao de ltima gerao: um

    pouco de anfetamina aqui, outro tanto de ritalina ali, e muita fluoxetina

    acol.

    Ao mesmo tempo, e tambm de forma crescente, a sade aparece

    relacionada ao auto-cuidado. Expresses como comportamento de risco,

    comuns ao campo da sade pblica, remetem culpabilizao e

    responsabilizao exclusiva dos indivduos por suas condies de vida, sade

    e adoecimento.

    Por outro lado, tanto Canguilhem como Foucault podem ser

    erroneamente interpretados em suas consideraes, como se ao falarem da

    importncia da experincia subjetiva, das infidelidades do meio, ou ainda ao

    criticarem a forma como o Estado tomou para si o papel do cuidado da sade

    das populaes, estivessem em defesa de prticas de sade voltadas apenas

    para o indivduo, pleiteando uma desejada omisso do Estado nesse campo.

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    Da mesma forma, como efeito desse dilogo, poderamos cair aqui na

    simples dicotomia entre normalizao social e normatividade biolgica,

    perguntando-nos se a sade, afinal, uma expresso da capacidade

    normativa de cada organismo ou um efeito das normas sociais. No entanto,

    como j vimos, o caminho mais complexo e no passa nem pelo

    paralelismo vertical nem pela causalidade horizontal, mas pela diagonal, ou

    ainda, pela transversal (SILVA, 2005).

    Caponi (1997) traz uma contribuio importante, relacionando diferentes

    concepes de sade com o pensamento de Canguilhem. O primeiro conceito

    que analisa aquele mais clssico, o qual considera a sade como um

    equilbrio. Esse conceito acaba se confundindo com a normalidade, no

    sentido descritivo, ou seja, como proximidade de uma mdia estatstica,

    perdendo-se o carter de normatividade e reduzindo o fenmeno da sade a

    um mecanismo adaptativo. um conceito restrito e negativo, na medida em

    que a sade entendida como ausncia de doena.

    Visando ampliar esse conceito de sade, a Organizao Mundial da

    Sade estabeleceu que a sade um completo estado de bem estar fsico,

    mental e social, e no mera ausncia de doena.Esse conceito, duramente

    criticado por diversos autores, entre eles Canguilhem (2005) e Dejours

    (1986), tambm se confunde com o conceito de normal, mas em seu

    sentido valorativo, j que a idia de bem-estar pode ser traduzida como

    aquilo que desejvel em determinado contexto. No momento em que se

    afirma que o bem-estar um valor (fsico, psquico e social), se reconhece

    como parte do mbito da sade tudo aquilo que em uma sociedade e em

    um momento histrico preciso, qualificamos de modo positivo (CAPONI,

    1997:299), julgando tudo que escapa disso como perigoso, indesejado e

    passvel de interveno. Alm disso, o conceito parece negar o conflito e a

    instabilidadeo (DEJOURS, 1986).

    Sendo assim, alm de valorizar a mera adaptao a modos de vida

    socialmente valorizados, esse conceito tende a condenar erros, fracassos ou

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    infidelidades, desconsiderando que a sade no pode ser pensada como

    ausncia de perturbaes, e sim como a possibilidade de enfrent-las. O

    conceito de bem-estar, tal como o conceito de equilbrio, limita o alcance da

    sade a esse mbito que prprio do conceito de normalidade, seja em

    termos de meios estatsticos e constantes funcionais, seja como valores que

    so sociais e historicamente construdos (CAPONI, 1997:301).

    Finalmente, o conceito cunhado pela reforma sanitria foi o de que a

    sade resultantes das condies de alimentao, habitao, educao,

    renda, meio ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade,

    acesso e posse de terra, e acesso aos servios de sade. Tambm no um

    conceito abstrato, que deve ser definido de acordo com o contexto histrico,

    devendo ser conquistada pela populao em suas lutas cotidianas

    (Relatrio da VIII Conferncia Nacional de Sade).

    Para Caponi (1997), nessa conceitualizao o que acaba se perdendo

    justamente a referncia singularidade biolgica ou subjetiva da doena, na

    medida em que so considerados apenas os valores sociais o bios no

    mencionado, nem sequer como um, entre todos os outros fatores, que

    podem influenciar na sade ou na doena. Embora o objetivo seja intervir

    em condies e ambientes perversos de vida, muitas vezes a ao do Estado

    corre o risco, como nas demais concepes, de funcionar como mera

    normalizao de comportamentos.

    Para a autora, em Canguilhem que podemos nos apoiar para pensar

    um outro conceito de sade, que no se restrinja nem ao inalcanvel

    equilbrio nem ao indeterminado bem estar e, tampouco, s injustas

    diferenas sociais. Se o conceito de sade se define por essa capacidade de

    tolerncia para com as infidelidades do meio e se se trata de um conceito

    relativo, no sentido de que existem pessoas mais ou menos saudveis em

    situaes concretas, ento podemos concluir que o mesmo deve ser

    estendido no s capacidade de auto-cuidado, assinalada por Canguilhem

    como elemento central, mas tambm deve contemplar, e de modo

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    privilegiado, todos esses determinantes sociais definidos na VIII Conferencia

    Nacional de Sade (CAPONI, 1997:304).

    Assim, na medida em que a sade implica no somente uma seguridade

    e tolerncia s infidelidades do meio, mas tambm a possibilidade de ampli-

    las, esta se torna uma tarefa ao mesmo tempo individual e coletiva, que

    inclui a transformao das condies sociais e singulares de vida (CAPONI,

    1997). Poderamos avanar considerando que a potncia normatizadora do

    corpo prejudicada (ou seja, a sade) nem tanto por ter que lidar com o

    erro ou acaso, mas principalmente por condies de vida adversas

    perfeitamente evitveis.

    Finalmente, o que gostaramos de destacar (embora parea bvio) que

    a mudana no conceito de sade no garante a transformao das prticas

    de sade. Fica o convite para que possamos questionar, em nossas aes

    cotidianas como trabalhadores/as de sade: como podemos constituir

    prticas de ao coletivas que sejam tambm normativas, e no apenas

    normalizadoras?; como uma poltica de Estado pode ir alm da

    individualizao culpabilizadora da populao que, ao mesmo tempo,

    desresponsabiliza o Estado de suas funes?; como apostar mais na potncia

    normatizadora da vida do que no poder normalizador sobre a vida?

    Tatiana RammingerDoutoranda Escola Nacional de Sade Pblica Srgio Arouca,

    Fundao Oswaldo [email protected]

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    1 Nunca fcil escolher um jeito de contar uma histria, ou parte dela, ou elegerinterpretaes. Segundo Hochman et alli (2004), a produo histrica sobre a sade pblicana Amrica Latina um mosaico de estudos, mas pode ser organizada em trs estilosnarrativos que buscam romper com a tradicional histria da medicina: uma histriabiomdica que procura compreender a relao entre a doena e o social; uma histria dasade pblica que focaliza o Estado e as relaes entre as instituies de sade e estruturaseconmicas, sociais e polticas, com forte perspectiva estruturalista, com ou sem vismarxista (Rosen, por exemplo); e, finalmente, uma histria sociocultural da doena e dasrelaes entre medicina, conhecimento e poder, muito influenciadas pelo marcointerpretativo de Foucault.2 A poltica mercantilista consiste essencialmente em aumentar a quantidade de populaoativa, a produo de cada indivduo, estabelecendo fluxos comerciais que possibilitem aentrada no Estado da maior quantidade possvel de moeda, permitindo o pagamento dosexrcitos e de tudo que assegure a fora real de um Estado em relao aos outros(aumentar a riqueza e os poderes nacionais) (FOUCAULT, 1999c).3 O termo cameralismo tem duas conotaes. De um lado, designa as idias que aparecempara explicar, justificar e orientar as tendncias e prticas centralizadoras em polticaadministrativa e econmica de uma monarquia absolutista. De outro lado, refere-se svrias tentativas, do mesmo perodo, para efetuar, em termos da emergente cincia polticae social, uma estimativa sistemtica do funcionamento dos vrios servios administrativos,como uma base para o treinamento de funcionrios pblicos (ROSEN, 1986:33).4 Conceito introduzido por J. Gurin, em 1848: Tnhamos tido j ocasio de indicar asnumerosas relaes que existem entre a medicina e os assuntos pblicos... Apesar destasabordagens parciais e no coordenadas que tnhamos tentado incluir sob rubricas tais como

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    polcia mdica, sade pblica e medicina legal, com o tempo estas partes separadas vierama se juntar em um todo organizado e atingir seu mais alto potencial sob a designao de

    medicina social, que melhor expressa seus propsitos (GURIN apud ROSEN, 1986:49).5 Exemplos desse financiamento indireto: procedimentos mais complexos e caros que noso cobertos pelos planos de sade privados e acabam sendo realizados pelo SUS; despesasmdicas que podem ser deduzidas do Imposto de Renda; hospitais filantrpicos querecebem financiamento pblico e no pagam impostos como os privados, mas escolhemclientela e procedimentos, chegando a manter estabelecimentos separados, um privado eoutro para o SUS.6 Reao da populao Lei da Vacina Obrigatria, promulgada em 31 de outubro de 1904,que permitia que brigadas sanitrias, acompanhadas de policiais, entrassem nas casas eaplicassem a vacina contra a varola, mesmo que contra a vontade, em todos daquelaresidncia. Foram duas semanas de intenso conflito nas ruas cariocas, at o governodeclarar estado de stio e suspender a obrigatoriedade da vacina. No entanto, omovimento foi contido logo em seguida e a vacinao macia e obrigatria da populao(pobre) teve prosseguimento.7 Roudinesco (2007:44) chama ateno para o fato de que a principal obra de Canguilhemteve quatro edies sucessivas: 1943, 1950 (aumentada com um prefcio), 1966 (com umaadvertncia e um novo captulo, que introduzia importantes modificaes obra) e 1972(um adendo com retificaes e notas complementares). Em outras palavras, durante trintaanos, nunca parou de modificar sua obra inaugural, como se, a cada novo acontecimento,buscasse torn-la conforme essa tica da inverso de norma que tanto marcara seunascimento.8 Embora a fisiologia seja um fundamento cientfico da disciplina mdica, apenas a clnica suscetvel de pr a fisiologia em contato com os indivduos concretos (ROUDINESCO,2007:37).9 Trata-se do artigo Do social ao vital, que integra a terceira parte da edio de 1966 de O

    normal e o Patolgico (CANGUILHEM, 2006), bem como do artigo A sade: conceito vulgare questo filosfica, originalmente publicado em 1990 (CANGUILHEM, 2005).10 PUTTINI & PEREIRA JUNIOR (2007:457) destacam que ao propor falar de umanormatividade biolgica, Canguilhem se pergunta se assim empresta s normas vitais umconceito humano; ou procura saber como a normatividade essencial se explica conscinciahumana. Sendo assim, o conceito de normatividade da vida se apresenta como sendotambm bivalente: seria um princpio ontolgico, intrnseco prpria vida, e tambm umprincpio epistemolgico, atribudo vida pelo ser humano. Para os autores, com o mesmoconceito (normatividade da vida), Canguilhem teria apontado para uma superao daoposio entre mecanicismo e vitalismo.11 Como nos explica Roudinesco (2007:36), Kurt Goldstein era psiquiatra e neurologista,tendo trabalhado nos campos da Primeira Guerra Mundial com os feridos da razo. Destaexperincia, ele concluiu que toda teoria deve apoiar-se em uma clnica, resultante daobservao direta do doente.12 Canguilhem (2005:43) cita uma entrevista de Descartes, em 1648, em Amsterd, ondeele diz confiar na retido do corpo e em seu objetivo de prolongar a vida, sendo que anatureza parece lanar o homem nas doenas apenas para que ele possa, ao super-las,tornar-se mais vlido.13

    Cabe explicitar que O Nascimento da Medicina Social, datado de 1975, foi o texto emque Foucault apresentou a idia de biopoltica, posterirmente melhor desenvolvida emHistria da Sexualidade I. Posteriormente, Foucault (2006) abandonar a noo de bio-poder, como um tipo de poder que se ocupou da vida dos indivduos e das populaes,preferindo o termo governamentalidade para definir um modelo que combina,astuciosamente, tcnicas de governo (a biopoltica, por exemplo) e tcnicas de si. No

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    para as prticas de sade.

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    binmio saber-poder, Foucault inclui a subjetividade, demonstrando como as polticas degoverno se estendem s formas de auto-regulao subjetiva.