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Adriana Martins - Dissertação - Final
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FUNDAO GETULIO VARGAS
CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAO DE HISTRIA CONTEMPORNEA DO BRASIL CPDOC
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA, POLTICA E B ENS CULTURAIS
MESTRADO PROFISSIONAL EM BENS CULTURAIS E PROJETOS SOCIAIS
PARQUE NACIONAL SERRA DA CAPIVARA Patrimnio Cultural da Humanidade
APRESENTADA POR
ADRIANA MARIA FERREIRA MARTINS
PROFESSOR ORIENTADOR ACADMICO DRA. LUCIA MARIA LIPPI DE OLIVEIRA
Rio de Janeiro, Agosto 2011.
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FUNDAO GETULIO VARGAS
CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAO DE HISTRIA CONTEMPORNEA DO BRASIL CPDOC
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA, POLTICA E B ENS CULTURAIS
MESTRADO PROFISSIONAL EM BENS CULTURAIS E PROJETOS SOCIAIS
PARQUE NACIONAL SERRA DA CAPIVARA Patrimnio Cultural da Humanidade
APRESENTADA POR
ADRIANA MARIA FERREIRA MARTINS
Rio de Janeiro, Agosto 2011.
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FUNDAO GETULIO VARGAS
CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAO DE HISTRIA CONTEMPORNEA DO BRASIL CPDOC
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA, POLTICA E B ENS CULTURAIS
MESTRADO ACADMICO EM HISTRIA, POLTICA E BENS CUL TURAIS
PROFESSOR ORIENTADOR ACADMICO LUCIA MARIA LIPPI DE OLIVEIRA
ADRIANA MARIA FERREIRA MARTINS
PARQUE NACIONAL SERRA DA CAPIVARA Patrimnio Cultural da Humanidade
Dissertao de Curso apresentada ao Centro de Pesquisa e Documentao de Histria Contempornea do Brasil CPDOC como requisito parcial para a obteno do grau de
Mestre em Bens Culturais e Projetos Sociais.
Rio de Janeiro, Agosto 2011.
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Letcia, minha filha. Que esse trabalho possa ajudar a despertar o seu amor pelos estudos. A Tiago, meu marido, sempre imprescindvel.
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AGRADECIMENTOS
Esse trabalho s foi concretizado graas colaborao de muitas pessoas.
Gostaria de particularizar alguns dos meus sinceros agradecimentos:
- professora Lcia Lippi, pela orientao sempre estimulante e cuidadosa;
- aos demais professores do CPDOC: ngela Maria de Castro Gomes, Marieta de
Moraes Ferreira, Joo Marcelo Maia, Paulo Fontes, Marcelo Milano, Mariana
Cavalcanti e Verena Alberti, pelas reflexes e por compartilharem seu imenso
conhecimento social e cultural;
- ao professor Adauto Arajo, pela leitura atenta do texto e pelas grandes contribuies
ao meu trabalho;
- aos meus entrevistados, cujos testemunhos foram valiosos;
- aos colegas da turma de mestrado, que tornaram esse percurso ainda mais agradvel;
- aos colegas da Petrobras que muito me incentivaram a realizar esse curso;
- Rosa Trakalo, pela pacincia e ateno com que forneceu todas as informaes
solicitadas sobre o Parque;
- Nide Guidon, no s pelo tempo e pela disposio dedicados s entrevistas, mas,
principalmente, pelo seu exemplo de vida.
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Ao longo da vida, descobri que quem realiza, quem empreende, paga um preo muito caro: torna-se mais facilmente criticvel, simplesmente porque deu a cara tapa. Por isso, muitos preferem ter uma relao apenas burocrtica com a vida. Ledo engano! A felicidade demanda coragem. De um jeito ou de outro. E se a coragem tem nome, ento ele deve ser Nide Guidon.
Walter Neves
SUMRIO
RESUMO .......................................................................................................................... 2 ABSTRACT ...................................................................................................................... 3 INTRODUO ................................................................................................................ 4 1 PATRIMNIO HISTRICO E ARQUEOLGICO NO BRASIL ....................... 10
1.1 Perspectivas do Patrimnio .............................................................................. 10 1.1.1 Rodrigo Melo Franco de Andrade ............................................................ 12 1.1.2 Alosio Magalhes .................................................................................... 16
1.2 Perspectivas da Arqueologia ............................................................................ 20 1.2.1 Insero da arqueologia no universo do patrimnio ................................. 22 1.2.2 Gesto do patrimnio arqueolgico .......................................................... 27 1.2.3 Patrimnio arqueolgico e poltica cultural .............................................. 33
2 PARQUE NACIONAL SERRA DA CAPIVARA ................................................ 40 2.1 Retrospecto ....................................................................................................... 40 2.2 Criao ............................................................................................................. 49 2.3 Fundao Museu do Homem Americano ......................................................... 54 2.4 Estrutura ........................................................................................................... 62 2.5 Potencial Turstico ........................................................................................... 74 2.6 Relacionamento com a comunidade ................................................................. 89 2.7 Oramento ........................................................................................................ 99
3. ATORES ................................................................................................................... 101 3.1 Nide Guidon ................................................................................................. 101
3.1.1 A misso: primeiras visitas ..................................................................... 106 3.1.2 Moradores ............................................................................................... 109 3.1.3 As ocupaes e a caa ............................................................................. 118 3.1.4 Pesquisadores .......................................................................................... 127 3.1.5 Crticos .................................................................................................... 136 3.1.6 Parceiros .................................................................................................. 143
CONCLUSO .............................................................................................................. 158 BIBLIOGRAFIA .......................................................................................................... 174 ENTREVISTAS E DEPOIMENTOS PARA ESTE TRABALHO .............................. 177 FILME EM DVD .......................................................................................................... 178
RESUMO
O presente trabalho tem como objetivo analisar o Parque Nacional Serra da
Capivara desde sua criao situao atual a fim de compreender as razes que at hoje
impedem o seu pleno funcionamento. Para tanto, foram analisados aspectos anteriores
constituio do Parque, desde as primeiras expedies da Misso Franco-Brasileira no
Piau, at itens como infraestrutura, equipamentos e potencial turstico oferecidos pelo
Parque atualmente. Aliado a esse estudo, foram colhidos depoimentos, entre eles, de
alguns dos atores diretamente envolvidos no desenvolvimento do Parque. O resultado
um panorama histrico que explica as circunstncias que fazem do Parque Nacional
Serra da Capivara Patrimnio Cultural da Humanidade.
Palavras-chave: Parque Nacional Serra da Capivara; Patrimnio Cultural; Piau;
Nide Guidon; Arqueologia.
ABSTRACT
The scope of this work is to make an analysis of Serra da Capivara National Park,
covering the period from its foundation to today aiming to understand the main issues
that impact park full development. For that, different aspects were analyzed, including
the situation before parks creation, since French-Brazilian firsts expeditions in Piau,
and items like infrastructure, equipments, touristic potential currently offered by the
park. Combined with this study, testimonies were collected, among them, from the actors
directing involved with park development. The result is a historical panorama which
explains the circumstances that make Serra da Capivara National Park a UNESCO
World Heritage Site.
Keywords: Serra da Capivara National Park; Cultural Heritage; Piau; Nide
Guidon; Archeology.
INTRODUO
O objeto de estudo o Parque Nacional Serra da Capivara (PNSC). Criado em
1979, ele est localizado no sudeste do Estado do Piau. Foi inscrito como patrimnio
cultural da humanidade pela Organizao das Naes Unidas para a Educao, a
Cincia e a Cultura - UNESCO em 1991 e foi tombado pelo Instituto do Patrimnio
Histrico e Artstico Nacional - IPHAN em 1993. Ele pode ser considerado como o
maior conjunto de stios arqueolgicos do mundo com pintura rupestre numa regio
tropical de vegetao de caatinga.
A caatinga um tipo de vegetao que ocupa 11% do territrio nacional e 70% do
Estado do Piau. O PNSC, com seus aproximadamente 130.000 hectares, a nica
Unidade de Conservao do pas destinada preservao desse bioma, extremamente
importante pela sua biodiversidade, mas que corre srio risco de extino.
A criao do Parque, localizado a 20 km do municpio de So Raimundo Nonato
(PI), est associada s primeiras pesquisas arqueolgicas na regio, iniciadas em 1973
pela arqueloga Nide Guidon que liderava equipe multidisciplinar de especialistas da
Misso Franco-Brasileira. A histria do Parque permite entender uma certa inverso: ter
sido primeiro reconhecido como patrimnio cultural da humanidade e s depois ter sido
tombado pelo rgo nacional, o IPHAN.
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A regio como um todo apresenta aspectos arqueolgicos bastante significativos e
teve em outras pocas a presena de povos indgenas que foram dizimados pelos
colonizadores portugueses. O Parque foi declarado como Patrimnio Cultural da
Humanidade pela UNESCO em funo do acervo arqueolgico ali encontrado. As
aproximadamente 30 mil pinturas rupestres retratam aspectos do dia-a-dia dos
habitantes daquela regio, como sexo, guerra, cenas domsticas, rituais e cerimnias em
meio a imponentes cnions, encostas e formaes rochosas. Mais de 1400 stios j
foram cadastrados. No stio do Boqueiro da Pedra Furada foram feitas as mais antigas
dataes que atestam a presena do homem no continente americano entre 50.000 e
60.000 anos antes do presente1, ao contrrio do que diz a arqueologia ortodoxa que
avalia que a chegada do homem ao continente ocorreu h cerca de 12 mil anos.
Em sua origem subordinado Diretoria de Ecossistemas do Instituto Brasileiro do
Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renovveis (IBAMA) da Secretaria do Meio
Ambiente, antigo Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF), continua,
hoje, sob responsabilidade do Ministrio do Meio Ambiente atravs do Instituto Chico
Mendes de Conservao da Biodiversidade (ICMBio) rgo do Ministrio destinado a
cuidar das Unidades de Conservao do pas. Na prtica, o Instituto mantm um
escritrio em So Raimundo Nonato e responsvel pela segurana e vigilncia do
Parque. Mantm 28 funcionrios responsveis pela vigilncia armada e 21 funcionrios
responsveis pela preveno de fogo.
Dessa forma, a gesto do Parque de responsabilidade do ICMBio que tem
acordo de cooperao tcnica com a FUMDHAM Fundao Museu do Homem
1 Antes do presente AP uma datao muito utilizada na Arqueologia. A designao presente convencionada a partir de 1950 e refere-se descoberta do mtodo do Carbono 14 em 1949.
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Americano da FUMDHAM Fundao Museu do Homem Americano - entidade da
sociedade civil, cientfica, filantrpica, sem fins lucrativos e cadastrada no Conselho
Nacional de Assistncia Social. Ela foi criada em 1986 pelos pesquisadores da
cooperao cientfica bi-nacional (Frana-Brasil). Sua diretora-presidente Nide
Guidon. A FUMDHAM atua formalmente ligada s instituies dos governos federal,
estadual e municipal. Na rea de pesquisa e desenvolvimento, mantm parcerias com
instituies como Fundao Oswaldo Cruz - FIOCRUZ, Universidade Federal do Piau,
Universidade Federal de Pernambuco e Museu de Arqueologia e Etnologia da
Universidade de So Paulo (MAE-USP).
Por situar-se em zona extremamente carente, onde as pessoas enfrentam as
dificuldades tpicas das regies semi-ridas do nordeste brasileiro, a constituio do
Parque e a criao da FUMDHAM contriburam sensivelmente para a melhoria das
condies de vida das populaes locais, embora ainda haja muitas melhorias a fazer.
Diante dessa situao e do grande potencial do Parque, ele pode vir a constituir um plo
de desenvolvimento com vocao nacional e internacional. Todo investimento em
infraestrutura foi feito atravs de parcerias internacionais e ele hoje referncia nas
Amricas. Contudo, apenas 14 mil pessoas por ano visitam o Parque, sendo que ele tem
capacidade para receber pelo menos trs milhes de turista ao ano. A taxa de ingresso
de R$10,00 e esse montante enviado integralmente para Braslia. Os recursos
repassados pelo governo federal so irregulares e o acesso ao Parque ainda muito
difcil.
O interesse pelo tema deve-se experincia profissional da autora que
acompanhou, de 2004 a 2010, projetos da rea de patrimnio e, entre eles, o projeto do
Parque Nacional Serra da Capivara pela Gerncia de Patrocnios Culturais da Petrobras.
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Nesse perodo de patrocnio continuado da Petrobras ao projeto foi possvel avaliar a
importncia cultural do Parque e tambm sua fragilidade econmica, uma vez que o
governo federal no destina recursos permanentes para o seu funcionamento. As
atividades bsicas de manuteno do Parque so realizadas a partir da captao de
recursos advindos de renncia fiscal junto iniciativa privada atravs da Lei Federal de
Incentivo Cultura Lei Rouanet.
Grande parte do que j se escreveu sobre o objeto em questo est relacionado a
estudos de Biologia ou de Cincias Naturais em geral, como por exemplo: infeco e
morbidade da doena de Chagas na regio; estudo da vegetao de caatinga; estudo da
flora especfica etc. Boa parte dos trabalhos de pesquisa realizados no Parque, bem
como diversos artigos sobre ele esto disponveis na Revista Fundhamentos publicada
pela FUMDHAM. Outros trabalhos existem relacionados pr-histria; usos da gua e
sua relao com a sade da populao no entorno do Parque; estilos tecnolgicos da
cermica na pr-histria; conflitos e prticas territoriais; processo de constituio do
Parque; atividade ecoturstica no Parque.
O trabalho aqui apresentado procurou trazer outras vises sobre o processo de
institucionalizao do Parque. Espera-se que possa contribuir como um registro de sua
histria e servir de instrumento para superao das dificuldades, polticas e econmicas,
que ainda o assolam e que podem estar relacionadas a uma poltica pblica de cultura
para a rea de patrimnio arqueolgico com abrangncia interministerial.
Estudos sobre poltica cultural, patrimnio e bens culturais, com foco em questes
como identidade nacional e construo do conceito de nao, foram tratados no
primeiro captulo. Na mesma ocasio, fez-se referncia a alguns aspectos relativos
Arqueologia: conceitos, atividade e panorama de bens arqueolgicos tombados.
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O segundo captulo refere-se apresentao do Parque Nacional Serra da
Capivara. A inteno explicitar aspectos naturais, paisagsticos, culturais e histricos
do Parque. O captulo traz consideraes de pesquisadoras que acompanharam o
processo de demarcao da rea do Parque e desapropriaes, bem como aspectos
relativos ao universo rural dos camponeses dos povoados vizinhos ao PNSC.
A infraestrutura turstica e os equipamentos disponveis no Parque so
explicitados ainda no captulo dois, acompanhados de consideraes sobre o seu
potencial turstico. Com base no inegvel valor patrimonial do Parque, o Ministrio do
Turismo solicitou estudo do potencial turstico nacional e internacional do Parque
Nacional Serra da Capivara Rede de Patrimnio, Turismo e Desenvolvimento
Sustentvel (IBERTUR) e Universidade de Barcelona. Esse estudo foi realizado nos
anos de 2005, 2006 e 2007 e concludo em 2008. Foi feito diagnstico e caracterizao
dos atrativos do Parque a fim de propor seu posicionamento como destino internacional
e traar linhas estratgicas para sua promoo. Detalhes desse estudo so enriquecidos
com reportagens publicadas sobre o assunto tambm no segundo captulo.
O terceiro captulo, denominado Atores, procura explicar a participao de
indivduos, comunidades e instituies na histria do Parque. A sesso inicia com um
traado breve da trajetria de vida de Nide Guidon, a primeira a desenvolver estudos
cientficos sobre a regio onde hoje se encontra o Parque. A partir de sua chegada foram
criadas a Misso Arqueolgica Franco-Brasileira no Piau, a Fundao Museu do
Homem Americano (FUMDHAM) e as parcerias necessrias ao desenvolvimento do
PNSC. No seria possvel falar de atores sem mencionar as comunidades do entorno do
Parque: modos de vida, primeiros contatos com os pesquisadores, resistncia criao
do Parque, envolvimento com os projetos desenvolvidos pela FUMDHAM etc.
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As pesquisas desenvolvidas na regio e a prpria constituio do Parque Nacional
Serra da Capivara foram, e ainda so, alvo de crticas e de discusses acadmicas que
tambm foram registradas nesse terceiro e ltimo captulo. Contudo, a maior
contribuio dessa sesso est em procurar demonstrar a superao das dificuldades e os
avanos e conquistas j obtidos naquela regio, no serto do Piau.
Por fim, a concluso faz um apanhado dos pontos principais desenvolvidos nesse
trabalho. Espera-se tambm, em ltima anlise, que esse trabalho possa servir de
subsdio para novas pesquisas sobre o tema.
1 PATRIMNIO HISTRICO E ARQUEOLGICO NO BRASIL
1.1 Perspectivas do Patrimnio
Antes de se traar o panorama histrico das polticas de preservao do
patrimnio no Brasil convm citar o antroplogo Nestor Garcia Canclini (1994, p. 97):
Se verdade que o patrimnio serve para unificar uma nao, as desigualdades na sua
formao e apropriao exigem que se estude tambm como espao de luta material e
simblica entre as classes.... Ainda segundo ele, o patrimnio cultural serve como
recurso para produzir as diferenas entre os grupos sociais e a hegemonia dos que
gozam um acesso preferencial produo e distribuio dos bens.
O Brasil foi, na Amrica Latina, pioneiro na institucionalizao da proteo aos
bens culturais. Essa poltica teve concretude durante o Estado Novo, que se estendeu
pelo perodo de 1937 a 1945. Foram intelectuais vinculados ao movimento modernista
que, na dcada de 1930, assumiram a tarefa de trazer esse tema para a esfera da
administrao pblica. Era macia a presena de intelectuais em diferentes rgos do
Estado Novo.
Nesse perodo, esse grupo passa a direcionar sua atuao para o mbito do Estado
e passa a identific-lo como a representao mxima da nao, da ordem e da unidade.
Houve ento o aumento das atividades do Estado no campo da cultura, que, de
11
acordo com Velloso (2003), aparece como o ncleo organizatrio mais slido do
regime. Com a criao do Ministrio da Educao e da Sade quase imediatamente aps
a Revoluo de 1930, o Estado mostrou-se preocupado com a reorganizao da
sociedade e com a formao de uma cultura erudita atravs da educao formal. Para
tomar a frente desse Ministrio foi designado Gustavo Capanema, que o dirigiu de 1934
a 1945. No campo da propaganda, procurava-se mostrar como o Estado Novo
representava a continuidade da Revoluo de 1930 e, esta, por sua vez, a renovao
iniciada com o movimento modernista de 1922. Esse movimento conseguiu converter
valores da nossa cultura no cosmopolita at ento tidos como negativos, em positivos.
O Estado era considerado Novo porque era nacional, rejeitava a cpia, valorizava a
descoberta do Brasil, buscava, assim, legitimidade. O controle dos meios de
comunicao era utilizado para orientar as manifestaes da cultura popular.
Aqui, resumidamente, interessa fazer algumas consideraes sobre capital
simblico e legitimidade, segundo Bourdieu, para melhor compreender como se dava
essa busca por legitimao feita pelo Estado. Para Bourdieu (2001 apud Carvalho;
Vieira, 2007), campo social composto pela posio dos atores e a posio de cada ator
definida pela quantidade e valor do capital que detm e que pode ser convertido, no
campo, em capital simblico. Por sua vez, capital simblico no se caracteriza pela
posse de um recurso ou propriedade especfica, mas pelo reconhecimento desse recurso
pelos demais atores sociais e pelo valor dado por esses atores a esse capital em
particular. Um indivduo deve deter uma quantidade mnima de propriedades, como
reconhecimento, talento, habilidades, para poder ser visto como um ator legtimo.
A poltica do Governo Vargas no perodo do Estado Novo tinha origem num
campo ideolgico partilhado pelos intelectuais. O liberalismo no Brasil era visto como
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sinnimo de prticas oligrquicas, fraude eleitoral e abuso de poder por parte dos
estados economicamente mais fortes. Dessa forma, era necessrio um estado mais
autoritrio, com atuao firme. Ao cercar-se de intelectuais em seus quadros funcionais,
o Estado passa a defender a funo social do intelectual, chamando-o a participar dos
destinos do pas. Eles passam a ser os intermedirios na relao entre o governo e o
povo.
Contudo, a proposta de construo de um patrimnio histrico e artstico
nacional, apoiada no governo federal pelo ministro Gustavo Capanema, no era
percebida como uma necessidade pela sociedade brasileira daquela poca, mas sim,
exclusivamente pelo meio intelectual. Para os pioneiros do Servio do Patrimnio
Histrico e Artstico Nacional (SPHAN), era preciso criar uma conscincia nacional de
valores culturais que desse suporte ao desenvolvimento de instrumentos legais
reconhecidos como eficientes e legtimos para garantia de bens culturais seriamente
ameaados de extino ou degradao. A ideia de formar uma conscincia nacional
reforava a noo de homogeneidade no campo cultural, que era vista como forma de
assegurar a organizao do regime e invalidar as demais manifestaes culturais tidas
como prejudiciais ao interesse da nao.
1.1.1 Rodrigo Melo Franco de Andrade
A primeira fase do SPHAN, chamada fase herica, se estendeu por 31 anos (de
1936 a 1967) sob a direo de Rodrigo Melo Franco de Andrade. Membro da elite
mineira, Rodrigo fez curso de Direito no Rio de Janeiro, em Belo Horizonte e em So
Paulo, e compunha o grupo de modernistas mineiros do Ministrio de Capanema, como
13
Carlos Drummond de Andrade e Pedro Nava. Assim, o SPHAN era um rgo
subordinado ao Ministrio da Educao e Sade, cuja premissa maior era a
constituio da nacionalidade, esta deveria ser a culminao de toda a ao pedaggica
do Ministrio, em seu sentido mais amplo (Schwartzman, Bomeny, Costa, 2000, p.157).
Segundo esses autores, h trs aspectos preponderantes nesse esforo de nacionalizao.
O primeiro seria dar um contedo nacional educao e para tanto foi escolhida a
vertente do ufanismo, do culto s autoridades e da exaltao do catolicismo brasileiro. O
segundo aspecto era a padronizao, que conferia o ideal de homogeneizao e de
centralidade. O terceiro era o da erradicao das minorias tnicas, lingusticas e
culturais que haviam constitudo o Brasil.
Tais aspectos marcaram tambm os intelectuais do SPHAN, principais artcifes da
elaborao da ideia do que seria um patrimnio cultural nacional. Foram eles que
convenceram as elites da importncia da preservao do passado religioso luso-
brasileiro. A atuao do SPHAN se dava atravs do mecanismo de tombamento
inventrio - dos remanescentes da arte colonial ameaados pela urbanizao, saque e
comercializao. Em sua atividade inventariante houve, pode-se dizer, obsesso pela
esttica, pela ideia de originalidade e pela catalogao dos monumentos. O estilo mais
valorizado era o barroco, depois o neoclssico, o moderno e, por ltimo, o ecltico.
Uma vez que se fazia apologia ao autntico, recusava-se a cpia caracterstica do estilo
neocolonial e a mistura proposta pelo ecletismo. O barroco mineiro passou a ser o
smbolo considerado mais original do Brasil colnia.
O decreto de 20 de novembro de 1937 definia patrimnio histrico e artstico
nacional como o conjunto de bens mveis e imveis existentes no pas, quer por sua
vinculao a fatos memorveis, quer por seu excepcional valor arqueolgico ou
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etnogrfico, bibliogrfico ou histrico. Como essas categorias so imprecisas, no
mapeamento dos bens tombados que se encontra o significado atribudo a elas. O Rio de
Janeiro foi o estado onde a prtica do SPHAN teve maior impacto inicial: j no primeiro
ano, 78 bens foram tombados, representando 56% do que seria tombado at o ano de
1967. Na definio de Silvana Rubino (1996, p. 98) Os fatos memorveis presentes
nos primeiros bens tombados remetem a eventos e personagens ilustres. Ela refere-se
ao tombamento das casas onde nasceram ou viveram Gregrio de Matos, Jos
Bonifcio, a marquesa de Santos e Rui Barbosa. E os episdios histricos eleitos foram
a Inconfidncia Mineira, as misses jesuticas gachas, a expulso dos holandeses de
Pernambuco e a presena do Imprio no Rio de Janeiro representado pelo Pao
Imperial, Quinta da Boa Vista, Palcio do Catete. O conjunto eleito representado por
um pas extremamente catlico, urbano, patriarcal, ordenado por intendncias, casas de
cmara e cadeias e habitado por personalidades ilustres vai ao encontro da ideologia do
Estado Novo de construo de uma nao forte e unificada.
Ainda segundo Rubino (1996), a geografia do passado nacional parece estar
concentrada em estados vinculados a ciclos econmicos quando se verifica que as
maiores porcentagens de monumentos tombados esto, nessa ordem, em Minas Gerais,
no Rio de Janeiro, na Bahia (que abrigou a primeira capital do Brasil), em Pernambuco
e, com apenas 6% do total de bens tombados, em So Paulo. Rubino (1996, p. 102) tem
uma explicao para o baixo nmero de tombamentos nesse estado separatista, que
nunca foi corte e tampouco teve riquezas coloniais:
A inexistncia do sculo XX paulista apaga os rastros das massas de imigrantes que substituram a mo-de-obra escrava nas fazendas de caf. O ciclo econmico que prosperou na Primeira Repblica esquecido e, junto com ele, paradoxalmente, a intensa experincia urbano-industrial que permitiu capital paulista abrigar um movimento de arte moderna...
15
Na verdade, o conjunto dos bens tombados desenha um mapa de densidades
discrepantes no s nas diversas regies, mas tambm nos perodos e tipos de bens. O
barroco mineiro foi sacralizado como ndice de primordialidade (Santos, 1996, p.85) e
mais de 54% dos bens tombados do sculo XVIII. Para o poeta e um dos fundadores
do modernismo brasileiro, Mrio de Andrade, o sculo da opulncia mineira a causa
da carncia paulista. Aos olhos dele, a misria artstica tradicional paulista foi
consequncia do progresso ocasionado pelo caf.
A ideologia estado-novista pretendia criar um homem novo, construdo a partir do
binmio educao e trabalho, capaz de ter conhecimento e tcnica para vivenciar o
futuro. Essa ideologia sobre o resgate do passado para lan-lo ao futuro apresenta
contedo simblico consoante com a proposta dos modernos. Mas Mrio de Andrade
defendia um resgate histrico anterior ao sculo XVIII. Por solicitao de Rodrigo Melo
Franco de Andrade, Mrio elabora seu anteprojeto descrevendo o conceito de
patrimnio e o modo como se daria a atuao da, por ele denominada, SPAN -
Secretaria de Patrimnio Artstico Nacional, e prope o exame da diversidade artstica
existente no pas, mencionando categorias de bem cultural tangvel e no-tangvel. Sua
proposta estava de acordo com uma das questes centrais da criao do SPHAN: igualar
o Brasil s naes civilizadas. E tinha-se no Brasil justamente o que era cobiado na
Europa: o folclore e a arte etnogrfica.
Contudo, no perodo de consolidao do SPHAN a alteridade interessava menos
como princpio ordenador do trabalho de preservao do que possveis similitudes
(Rubino, 1996, p. 103), por isso o anteprojeto de Mrio de Andrade foi deixado de lado.
Caso a prtica do SPHAN tivesse cumprido uma disposio mais etnogrfica, a
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preservao que marcou a histria do barroco no Brasil poderia ter trazido itens mais
exticos.
H aspectos positivos e negativos desse perodo a apontar segundo Maria Ceclia
Londres Fonseca (1996). De positivo, ressalta-se um nmero considervel de bens
culturais tombados. De outro lado, contudo, j no final dos anos 60, o trabalho do
SPHAN havia alcanado pouca visibilidade social. Alm disso, segundo a autora, desde
os anos 50, com a industrializao e a difuso de valores do desenvolvimento,
resultantes da poltica modernizadora do Governo Juscelino Kubitschek, ficou mais
ntida a distncia entre o que ento era apresentado como os interesses da nao (em
termos de metas econmicas) e os valores culturais que o SPHAN se dispunha a
preservar.
1.1.2 Alosio Magalhes
A partir da conjuntura acima mencionada, a atuao do SPHAN foi considerada
inadequada aos novos tempos. Para a administrao federal, era preciso sincronizar o
pas com os novos parmetros internacionais de preservao de bens culturais definidos
por organismos internacionais. Uma estratgia de reformulao e reforo de sua atuao
se deu a partir de 1965, quando o SPHAN passa a adotar as recomendaes da
UNESCO Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura.
Esse rgo j se preocupava com a expanso das prticas patrimoniais e ampliao dos
referenciais de proteo ao patrimnio mundial, cultural e natural. Com essa estratgia,
o SPHAN, a partir dos anos 80, procurar demonstrar que interesses de preservao e de
desenvolvimento podiam no ser conflitantes, como veremos mais frente.
17
A intelectualidade, comprometida com mudanas sociais nos anos 60, passou a
considerar o carter eminentemente tcnico do SPHAN como alienado das questes
polticas. J no regime militar, passada a fase mais dura da represso, o campo da
cultura passou a ser objeto de ateno especial, tanto como recurso ideolgico para a
legitimao de um projeto nacional quanto para reorganizar a esfera cultural (...)
produzindo um discurso (...) em nome de conceitos como pluralidade cultural e
desenvolvimento cultural (Fonseca, 1996, p. 155). Os conceitos de identidade e do
que viria a constituir a imagem nacional passavam, assim, a ser reelaborados.
Interessante constatar que, na dcada de 1970, o perodo histrico da Primeira
Repblica foi incorporado ao acervo do SPHAN. O hoje centenrio Teatro Municipal e
o Museu Nacional de Belas Artes, prdios eclticos pouco adequados viso
nacionalista do Estado Novo, s foram inscritos em 1973. O que passou a acontecer no
foi simplesmente a aceitao do ecletismo como uma manifestao arquitetnica vlida,
mas uma ampliao da perspectiva histrica, levando at reconceituao de valores
artsticos. A ao limitada do SPHAN a nvel federal comeou a mudar tambm nos
anos 70, quando o Ministrio da Educao passou a orientar os estados no sentido de
realizar uma ao supletiva federal na rea de preservao dos bens culturais,
induzindo a criao de rgos estaduais de preservao.
Dos anos 70 em diante, mas principalmente nos anos 80, emergiu na sociedade
uma conscincia preservacionista voltada para o meio ambiente, cujas razes no
estavam na ao do Estado, mas junto comunidade cientfica e sendo difundido por
organizaes no-governamentais. desse perodo o pedido de tombamento de alguns
morros do Rio de Janeiro, como o Po de Acar e de uma figueira no bairro Jardim
18
Botnico. Ou seja, o tombamento, mesmo o natural, continuou sendo o instrumento
mais conhecido como recurso para proteo de bens em geral.
tambm nessa poca que surge a expresso patrimnio cultural no-
consagrado para designar aqueles bens que at ento no integravam o universo do
patrimnio histrico e artstico nacional. Trata-se das produes dos indgenas, dos
negros, dos imigrantes e das populaes rurais. Em termos prticos, alm do Programa
de Cidades Histricas criado em 1973 com vistas a rentabilizar a preservao e a
restaurao de bens patrimoniais, tanto em termos econmicos como sociais, teve incio
a preservao de bens culturais como integrante dos planos de desenvolvimento
econmico do governo.
Criou-se, em 1975, por Alosio Magalhes, entre outros, o Centro Nacional de
Referncia Cultural (CNRC), voltado para a cultura enraizada no fazer popular. De
1975 a 1979 havia quatro programas de atividades do CNRC: artesanato, levantamentos
socioculturais, histria da tecnologia e da cincia no Brasil e levantamentos de
documentao sobre o pas. Alosio Magalhes, alm de ter estudado Direito em Recife
e museologia em Paris, era designer e artista plstico reconhecido por diversos
trabalhos, e os projetos exaltados por ele estavam pouco relacionados ao que era
entendido como patrimnio na fase herica; ele valorizava especialmente a capacidade
de inveno dos artesos. A proposta na realidade era retomar o projeto de Mrio de
Andrade e as criaes artsticas coletivas, ampliando o conceito de patrimnio, como
veremos adiante.
De 1979 a 1982, Alosio Magalhes assume a direo de todo o sistema federal de
cultura. Durante o perodo de regime militar, houve um reforo de utilizao da cultura
19
como fator de integrao nacional sob o lema Diversidade na unidade. Ou seja, o pas
em seu todo era diversificado, mas a unidade nacional no descartava necessariamente a
diversidade. Rubim (2007) explicita bem o que significou esse novo perodo em termos
de construo da identidade. O nacional refora a identidade frente ao que vem do
exterior, enquanto o popular atua no reforo no interior do pas. O lema da diversidade
na unidade chancela a ao governamental na cultura, dando-lhe aspecto de
neutralidade, de guardio da identidade brasileira definida historicamente.
Nessa linha, em 1982, foram tombados os primeiros testemunhos da cultura afro-
brasileira: o Terreiro da Casa Branca, em Salvador, Bahia, e a Serra da Barriga, em
Unio dos Palmares, Alagoas. Segundo Fonseca (1996), eles representaram um marco
na histria da poltica federal de preservao no Brasil. Esses tombamentos, mais do
que a preservao dos bens, significavam simblica e politicamente, a incluso do
movimento negro no patrimnio cultural nacional. A miscigenao revela uma
realidade sem contradies, j que o resultado do encontro entre as culturas passa por
cima das possveis divergncias, e acaba por qualificar a cultura brasileira como
democrtica, harmnica, sincrtica e plural (RUBIM, 2007, p.43). O tombamento da
Casa Branca, entretanto, provocou intensos debates junto aos setores tcnicos do
SPHAN, pois eles julgavam que esse bem, devido a suas caractersticas e ao seu uso,
no apresentava requisitos necessrios para tombamento. Apesar disso, prevaleceram os
argumentos polticos na votao pelo Conselho Consultivo daquele rgo. Os registros
de pedidos de tombamento de bens representativos de vrias correntes de imigrantes
tambm surgem nos anos 80.
Para os tcnicos do SPHAN, mesmo a proteo de bens de cultura popular era
incompatvel com o estatuto do tombamento, pois expressam valores de outra ordem
20
que no as concepes cultas de histria e de arte. Deveriam, segundo eles, ser
protegidos apenas por seu valor etnogrfico. Foi justamente em contraposio a essa
viso que se orientou o trabalho desenvolvido pelo CNRC, chamando ateno para os
direitos desses grupos at ento marginalizados, em harmonia com a luta pela anistia e
pelas diretas-j, em andamento na dcada de 80. Porm, os bens de fato tombados
dentro dessa perspectiva foram muito poucos, menos de meia dzia.
Fonseca (1996) faz um balano tambm desse perodo. Houve, sem dvida,
alguma democratizao da poltica federal de preservao, com a ampliao do conceito
de patrimnio, maior participao da sociedade nos pedidos de tombamento, alterao
na composio e atribuies do Conselho Consultivo do SPHAN e diversificao dos
quadros tcnicos do rgo.
Por outro lado, apesar da criao de rgos estaduais e municipais de preservao,
os processos decisrios continuavam muito centralizados e restritos s reas mais
tcnicas. O processo de julgamento dos pedidos de tombamento j era muito demorado
e o tombamento permanecia como nico instrumento para a preservao.
1.2 Perspectivas da Arqueologia
A arqueologia a cincia que estuda as sociedades do passado a partir dos
vestgios materiais que elas deixaram. Os locais onde esses vestgios se concentram so
chamados de stios arqueolgicos. O trabalho do arquelogo se desdobra em vrias
etapas e muitas vezes se beneficia das informaes vindas de outros campos do saber,
como, por exemplo, a geologia, a histria, a antropologia, a biologia, a fsica ou a
qumica.
21
No Brasil, o curso de graduao em arqueologia comeou a ser ministrado
recentemente. A primeira instituio a oferec-lo foi a Estcio de S, no Rio de Janeiro,
ainda na dcada de 80, porm, o curso j no mais oferecido pela Instituio. Depois
foi retomado pela Universidade Federal do Vale do So Francisco em 2005 e a primeira
turma do curso, denominado Arqueologia e Conservao do Patrimnio, foi formada em
2009. O curso tambm ministrado na sede da Fundao Museu do Homem Americano,
em So Raimundo Nonato, PI. H outras quatro universidades que passaram a oferecer
essa formao. So elas: Universidade Federal de Pernambuco, Universidade Federal do
Piau, Universidade Federal de Sergipe, Universidade Federal de Gois e Universidade
Federal de Pelotas, no Rio Grande do Sul. At ento, para se tornar um arquelogo, era
necessrio fazer um curso de graduao na rea de humanidades ou de geocincias e em
seguida fazer a ps-graduao em arqueologia. Os cursos de mestrado e doutorado em
arqueologia reconhecidos pela CAPES so ministrados pelo Museu de Arqueologia e
Etnologia da Universidade de So Paulo (MAE-USP), pela Universidade Federal do Rio
de Janeiro (UFRJ) e pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
Ainda hoje a profisso de arquelogo no reconhecida. Havia um projeto de lei
pedindo a regulamentao da profisso que foi apresentado ao Congresso ainda no
Governo Fernando Henrique Cardoso. Ele, porm, no foi aprovado sob a alegao de
que no havia curso de formao em Arqueologia no pas. Essa situao, na verdade, no
deixa de ser contraditria, pois, ao mesmo tempo em que exigida a presena de
arquelogos em determinados projetos, como ser visto adiante, no h legislao no
pas que reconhea esses profissionais. Agora, com esses novos cursos, o projeto ser
novamente reencaminhado esfera competente.
22
Como ilustrao, pode-se dizer que a criao do Parque Nacional Serra da
Capivara foi orientada pela verificao da importncia arqueolgica material daquela
rea e no contexto do movimento ambientalista, reforada pelas caractersticas daquela
biodiversidade.
1.2.1 Insero da arqueologia no universo do patrimnio
Segundo o site do Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional (IPHAN),
http://portal.iphan.gov.br/portal/montarPaginaSecao.do;jsessionid=AD6EA8D69507F75
26B43CD85A63B2E83?id=12944&retorno=paginaIphan todos os stios arqueolgicos
so definidos e protegidos pela lei n. 3924/61 e so considerados bens patrimoniais da
Unio sob a responsabilidade do IPHAN. O tombamento de bens arqueolgicos feito,
excepcionalmente, por interesse cientfico ou ambiental. Cerca de 19 mil stios
arqueolgicos j foram atualmente identificados pelo IPHAN. So tombados
(http://portal.iphan.gov.br/portal/montarDetalheConteudo.do?id=15826&sigla=Institucio
nal&retorno=detalheInstitucional - atualizado em janeiro de 2011), segundo consulta ao
site em abril de 2011:
06 colees arqueolgicas: do Museu da Escola Normal Justiniano da
Serra, Fortaleza CE (tombamento em 1941); do Museu Paraense Emlio
Goeldi, Belm PA (tombamento em 1940); do Museu Coronel David
Carneiro, Curitiba PR (tombamento em 1941); do Museu Paranaense,
Curitiba PR (tombamento em 1941); de Balbino de Freitas, Rio de
Janeiro RJ (tombamento em 1948); de Joo Alfredo Rohr, Florianpolis
SC (tombamento em 1986);
23
02 reas com conjuntos de stios pr-coloniais2 de arte rupestre: Parque
Nacional Serra da Capivara, So Raimundo Nonato PI (tombamento em
1994); Ilha do Campeche, Florianpolis SC (tombamento em 2001);
01 monumento arqueolgico de arte rupestre: Itacoatiaras do Rio Ing,
Ing PB (tombamento em 1944);
03 stios pr-coloniais: Lapa da Cerca Grande, Matozinhos MG
(tombamento em 1962); Sambaqui da Barra do Rio Itapitangui, Canania
SP (tombamento em 1955); Sambaqui do Pinda, So Lus MA
(tombamento em 1940);
04 stios do perodo histrico: Remanescentes do Povo e Runas da Igreja
de So Miguel, So Miguel das Misses RS (tombamento em 1938),
Serra da Barriga ou Repblica dos Palmares, Unio dos Palmares AL
(tombamento em 1986), Stio Santo Antnio das Alegrias, So Lus MA
(tombamento em 1981); Runas da Igreja Matriz de Vila Bela da
Santssima Trindade, Vila Bela da Santssima Trindade MT
(tombamento em 1988);
01 rea de valor etnogrfico e arqueolgico: reas Sagradas do Alto
Xingu Kamukuak e Sagihengu (MT), cujos stios arqueolgicos so
associados ao ritual de furao de orelha e ao incio do ritual do Kuarup
dos ndios Waur e Kalapalo do Alto Xingu3.
2 A FUMDHAM utiliza o conceito de stios pr-histricos. 3 Esse ltimo bem, ao contrrio dos demais, no aparece no site do Arquivo Central do IPHAN (http://www.iphan.gov.br/ans/inicial.htm), por isso no foi possvel identificar o ano do seu tombamento.
24
Em consultas anteriores ao mesmo site, os remanescentes do Quilombo do
Ambrsio, em Ibi MG apareciam como bem tombado em 2002. Na ltima consulta,
em abril de 2011, esse bem no mais citado.
O Patrimnio material protegido pelo IPHAN com base em legislaes especficas
composto por um conjunto de bens culturais classificados segundo sua natureza nos
quatro Livros do Tombo: arqueolgico, etnogrfico e paisagstico; histrico; belas artes;
e das artes aplicadas. Eles esto divididos em bens imveis, como ncleos urbanos, stios
arqueolgicos e paisagsticos e bens individuais; e bens mveis, como colees
arqueolgicas, acervos museolgicos, documentais, bibliogrficos, arquivsticos,
videogrficos, fotogrficos e cinematogrficos.
Percebe-se que o universo de bens arqueolgicos tombados representa um
percentual reduzido se comparado com a totalidade de tombamentos. Segundo pesquisa
no Arquivo Central do IPHAN pela internet (http://www.iphan.gov.br/ans/inicial.htm) o
total de bens tombados em cada um dos livros :
Livro arqueolgico, etnogrfico e paisagstico: 119 bens;
Livro histrico: 557 bens;
Livro de belas artes: 682 bens;
Livro das artes aplicadas: 4 bens.
Os dezessete bens arqueolgicos tombados esto inscritos nos trs primeiros livros
de tombo citados e representam 1,25% do total considerando-se todos os bens tombados
nos quatro livros. Essa insignificante presena do patrimnio arqueolgico protegido j
existia nos primeiros tempos de atuao do rgo.
25
Como j citado, Rodrigo Melo Franco esteve frente do SPHAN do perodo de
1936 a 1967. Esse foi um perodo em que se consolidou a noo de patrimnio cultural
consagrando-se basicamente o passado religioso luso-brasileiro. O conjunto eleito para
tombamento naquela poca representava um pas extremamente catlico, urbano e
patriarcal. Sem dvida, embora o decreto de 1937 que institua o SPHAN citasse como
patrimnio histrico e artstico nacional bens de excepcional valor arqueolgico ou
etnogrfico, bibliogrfico ou histrico, o patrimnio arqueolgico de fato no se
enquadrava no imaginrio de patrimnio cultural que estava sendo delineado.
De fato, no perodo de 1938 a 1967, foram tombados 756 bens. Apenas dez deles
so bens arqueolgicos, o que representa 1,32% do total. Curiosamente esses mesmos
dez bens arqueolgicos tombados no perodo de Rodrigo Melo Franco so mais da
metade (58,82%) dos tombados at hoje.
Alosio Magalhes, fundador do Centro Nacional de Referncia Cultural, de 1975,
e diretor de todo o sistema federal de cultura nos anos de 1979 a 1982, tentou, em sua
gesto, retomar de certa forma aspectos do anteprojeto de criao do SPHAN elaborado
por Mrio de Andrade em 1936. Segundo Portella (2005, p.22) o anteprojeto de Mrio de
Andrade uma espcie de boa sntese das reflexes modernistas de Mrio e seus
companheiros de 22 somadas s discusses sobre patrimnio at ento realizadas, no
pas e no exterior. Mas o que mais impressiona, segundo o mesmo autor, a forma
como Mrio transforma a ampla questo do patrimnio em algo objetivo e fundamental.
A definio de Patrimnio Artstico Nacional seria, conforme Captulo II do
Anteprojeto: Todas as obras de arte pura ou de arte aplicada, popular ou erudita,
nacional ou estrangeira, pertencentes aos poderes pblicos, a organismos sociais e a
particulares nacionais, a particulares estrangeiros, residentes no Brasil. Ao Patrimnio
26
Artstico Nacional pertencem exclusivamente as obras de arte que estiverem inscritas,
individual ou agrupadamente, nos quatro livros de tombamento adiante designados
(Portella, 2005, p. 23).
Essencialmente, a definio dessas artes d forma noo de patrimnio proposta
por Mrio. Essas obras deveriam pertencer a pelo menos uma das seguintes categorias:
arte arqueolgica; arte amerndia; arte popular; arte histrica; arte erudita nacional; arte
erudita estrangeira; artes aplicadas nacionais; artes aplicadas estrangeiras.
Entretanto, segundo Miceli a generosidade etnogrfica da proposta andradina
revelou-se descompassada das circunstncias daquele momento, ao passo que a
entronizao do barroco firmou-se como a pedra de toque da poltica preservacionista
(Miceli, 1987 apud Portella, 2005, p. 26). Com certeza, Rodrigo Melo Franco assumiu a
tarefa de preservar o que parecia ser mais urgente: salvar monumentos profundamente
atingidos pela runa e que ameaam perecer completamente. Depois de mais de 30 anos
de esforos nesse sentido, Alosio Magalhes decide transpor o conceito de patrimnio
histrico ao adotar, apoiado em Mrio de Andrade, a noo de bens culturais e
incorporar o bem ecolgico, a tecnologia, a arte e o saber fazer.
No se pode deixar de citar a grande contribuio de Alosio Magalhes no que diz
respeito ao registro dos atos de inventividade do povo brasileiro e incorporao da
cultura dos negros, dos imigrantes e das populaes rurais. Contudo, especificamente
sobre a proteo de stios arqueolgicos, apenas um foi tombado de 1979 a 1982. A
morte prematura de Alosio em 1982 impede que possamos imaginar sua poltica
referente proteo de stios arqueolgicos caso permanecesse frente dos rgos de
patrimnio.
27
Dessa forma, como j citado, dos dezessete bens arqueolgicos hoje tombados, dez
deles foram inscritos em Livros de Tombo durante a gesto de Rodrigo Melo Franco de
Andrade frente ao SPHAN. O restante foi tombado no perodo de redemocratizao do
Brasil, quando o foco era justamente o esvaziamento das funes do Estado, a instituio
do estado-mnimo e a diminuio dos investimentos pblicos na rea da cultura com
delegao dessa funo iniciativa privada atravs da regulamentao e do
aprimoramento das leis de incentivo. Mesmo o Governo Lula, que procurou redefinir e
fortalecer o papel do Ministrio da Cultura, pouco ou muito pouco parece ter feito a
favor do patrimnio arqueolgico nacional.
1.2.2 Gesto do patrimnio arqueolgico
Atualmente, a Arqueologia entendida como o estudo das sociedades humanas do
passado com vistas compreenso de suas origens e desenvolvimento. Os restos de
cultura material so mais uma documentao do que uma coleo de objetos mais ou
menos valiosos; em vista disso, sua conservao e gesto adequadas devem constituir um
dos pontos principais das polticas governamentais. (Gamble, 2002)
Em termos de gesto, tem-se, no Brasil, o artigo 27 da lei 3924/61, o qual
determina que o DPHAN, atual IPHAN, manter um cadastro dos monumentos
arqueolgicos do Brasil. (Souza, 2006) Nesse cadastro, sero registradas todas as jazidas
manifestadas, de acordo com o disposto na lei, bem como das que se tornarem
conhecidas por qualquer via. Dessa forma se d o registro dos bens arqueolgicos pelo
Cadastro Nacional de Stios Arqueolgicos CNSA.
28
J o SGPA Sistema de Gerenciamento do Patrimnio Arqueolgico foi criado
em 1997 com o objetivo de estabelecer padres nacionais no mbito da identificao dos
stios, das colees arqueolgicas e do registro da documentao arqueolgica
produzida, subsidiando aes de gerenciamento, em atendimento lei acima
mencionada. Esse sistema est dividido em mdulos, entre eles o prprio CNSA, que
conta atualmente com mais de 17.500 fichas de stios. Demais mdulos so o Inventrio
Nacional das Colees Arqueolgicas (INCA), Projetos e Relatrios de Pesquisa
Arqueolgica PPA/RPA e ainda, Banco de Portarias de Arqueologia BPA.
(http://portal.iphan.gov.br/portal/montaPaginaSGPA.do)
Em termos mais prticos, uma atividade que tem se fortalecido, segundo Souza
(2006), o atendimento a denncias, por parte da comunidade, referentes ao
descobrimento de possveis stios arqueolgicos ou destruio ou dano ocorrido em
patrimnio arqueolgico. Essa dinmica nos indica que a populao, a cada dia, se
apropria mais do seu patrimnio e tem conhecimento de sua existncia (2006, p. 152).
A autora evidencia, contudo, a falta de agilidade do IPHAN em atender a todas essas
solicitaes e sugere outras providncias a fim de contribuir para o trabalho do rgo,
como: atentar para a evoluo, no mundo e na sociedade brasileira, acerca da viso
arqueolgica; unificar entendimentos e prticas realizadas pelas superintendncias
regionais e formular polticas institucionais no sentido de dotar a Arqueologia Histrica
de mais normas e procedimentos legais que a viabilizem em sua plenitude.
Em outro artigo, Bastos (2006, p. 159) resume bem qual seria o propsito de
atuao do IPHAN atualmente e destaca mais uma atribuio ao rgo, a educao
patrimonial:
29
centrar sua ateno na fiscalizao do cumprimento da lei, e no fomento de aes de valorizao e revitalizao do patrimnio arqueolgico, como forma no s de justificar socialmente a atuao dos arquelogos, mas tambm legitimar as condutas do Estado, possibilitando, principalmente, atravs da implantao de projetos de educao patrimonial, a ampliao da cidadania cultural.
O Guia Bsico de Educao Patrimonial elaborado por Horta em 1999 e citado por
Bastos em seu artigo introduz o que deve ser um projeto de educao patrimonial para
ser incorporado nos processos de salvamento arqueolgico. A educao patrimonial trata
de um processo permanente e sistemtico de trabalho educacional centrado no
Patrimnio Cultural Arqueolgico como fonte primria de conhecimento e
enriquecimento individual e coletivo (2006, p. 158). A partir da experincia e do
contato direto com as evidncias e manifestaes da cultura, em todos os seus mais
diversos aspectos, sentidos e significados, o trabalho de educao patrimonial busca
levar crianas e adultos a um processo ativo de conhecimento, apropriao e valorizao
de sua herana cultural, capacitando-os para melhor usufruto desses bens e propiciando a
gerao e produo de novos conhecimentos, gerando, assim, um processo permanente
de criao cultural.
Conhecimento crtico e apropriao consciente pelas comunidades do seu
patrimnio so fatores indispensveis no processo de preservao sustentvel desses
bens, assim como no fortalecimento dos sentimentos de identidade e cidadania (Bastos
apud Horta, 2006, p. 158). Bastos afirma que a educao patrimonial deve ser entendida
como um instrumento de alfabetizao cultural que possibilita ao indivduo fazer uma
leitura do mundo levando-o compreenso do universo sociocultural e da trajetria
histrico-temporal em que est inserido. Esse processo leva ao reforo da autoestima de
indivduos e comunidades e valorizao da cultura brasileira.
30
O dilogo permanente sempre implcito num processo educacional estimulante e
facilitador da comunicao e interao entre as comunidades e os agentes responsveis
pela preservao e estudo dos bens culturais. Dessa forma, h troca de conhecimentos e
promoo de parcerias para a proteo e a valorizao desses bens.
Mas h dificuldade de se reverter uma situao em princpio negativa para o
patrimnio, pois so raras as possibilidades de alterao dessa realidade. Ou seja, a
implantao dos grandes projetos desenvolvimentistas, que acarretam impactos
permanentes sobre esse patrimnio, aliada falta de compreenso da populao,
constitui-se, hoje e sempre, em uma das principais causas de destruio. Transformar
esta situao em uma situao da qual o patrimnio se beneficie a grande tarefa que se
impe, segundo Bastos.
Apesar disso, o autor informa que exemplos de participao da comunidade e de
educao patrimonial j so comuns em determinados locais do pas e aponta o turismo
arqueolgico como uma alternativa de preservao que representa fonte permanente de
recursos, empregos e envolvimento comunitrio. Nesse contexto, ele cita o Parque
Nacional Serra da Capivara e destaca:
A explorao do turismo arqueolgico no Piau apresenta-se hoje como um importante veculo de desenvolvimento socioeconmico do Estado, ao mesmo tempo em que poder se transformar em um potencial campo de pesquisas para o conhecimento da pr-histria americana, bem como para as cincias ambientais. O exemplo do Parque Nacional Serra da Capivara, na regio do municpio de So Raimundo Nonato no Piau, um exemplo vivo, eficiente e bem sucedido de como o turismo ecolgico pode e deve ser aproveitado como fonte de cidadania cultural, saber e desenvolvimento socioeconmico. No poderamos deixar aqui de registrar o importante trabalho efetuado pela pesquisadora Nide Guidon que, frente da Fundao Museu do Homem Americano, foi a grande mentora deste que o mais importante trabalho de turismo arqueolgico do Brasil, e que tem enfrentado dificuldades hoje em funo da poltica de assentamentos de terras no entorno imediato ao Parque... (Bastos, 2006, p. 161).
31
Dentro dessa abordagem, segundo ele, turismo arqueolgico uma alternativa de
preservao que deve ser levada em considerao sempre que possvel, pois fonte
permanente de recursos, empregos e envolvimento comunitrio, alm de exigir constante
manuteno da base dos recursos culturais arqueolgicos, categoria chamada de turismo
ecolgico autossustentvel, pois procura, sobretudo, preservar o objeto de visitao
(2006, p.161).
Como ilustrao, citado o Plano Diretor de Desenvolvimento Turstico e
Arqueolgico do Piau desenvolvido pelo governo daquele Estado em 2000. Nele,
acentua-se que o turismo arqueolgico pode ser desenvolvido de diferentes maneiras.
Uma delas a explorao feita atravs da visitao de uma determinada regio que tenha
sido habitada pelo homem pr-histrico, desde que ela esteja preparada para esse fim, ou
de forma a permitir ao turista participar de uma atividade de pesquisa arqueolgica, seja
durante uma das etapas do trabalho de campo, como prospeco, que a busca de stios,
ou no decorrer de uma escavao arqueolgica. Estas atividades devem obrigatoriamente
ser acompanhadas por um arquelogo e o nmero de participantes deve ser limitado at
o limite de capacidade de suporte de cada regio ou conjunto de stios a serem visitados.
Para a elaborao de propostas ou planos de turismo arqueolgico, o Plano Diretor
de Desenvolvimento Turstico e Arqueolgico do Piau apresentou como condicionantes:
preparao dos stios arqueolgicos com as indispensveis aes de
conservao;
implantao de estruturas para recepo dos visitantes;
construo e reparao de vias de acesso com saneamento das suas
margens, na maioria das vezes utilizadas indevidamente;
32
implantao de servios de saneamento bsico, de assistncia mdica e de
comunicao, onde se fizerem necessrios;
preparao de recursos humanos para monitoramento dos stios e
atendimento ao pblico visitante;
aes de educao patrimonial, visando chamar a ateno para a
importncia dos stios arqueolgicos, campanhas educativas, seminrios,
palestras, ao ordenada de divulgao;
estudos arqueolgicos, projetos arquitetnicos com especificaes prprias
para cada stio;
aes de mobilizao destinadas a atingir as instituies, organizaes no-
governamentais e a sociedade em geral para uma parceria atravs de
acordos, convnios, termos de cooperao e comodatos, dentre outras
formas de cooperao;
ordenao legal das parcerias, envolvendo direitos e obrigaes, que, se
possvel, devem ser contempladas nas legislaes federal, estaduais e
municipais.
Sem dvida, boa parte dos itens citados j foi providenciada, no caso do Parque
Nacional Serra da Capivara (PNSC), como ser visto adiante. A partir disso, a questo
que se impem : se h evidncias de que o turismo ecolgico e a educao patrimonial
trazem benefcios reais e imprescindveis para o desenvolvimento econmico e social de
vrias comunidades, por que no h, no pas, e no PNSC especialmente, uma poltica
33
voltada para isso com programas permanentes e atuantes capazes de mudar essa
realidade?
1.2.3 Patrimnio arqueolgico e poltica cultural
Na linha da pergunta formulada acima, fundamental falar sobre preservao de
patrimnio arqueolgico e polticas pblicas para cultura.
O patrimnio arqueolgico constitudo por objetos fsicos, restos materiais de
atividade cultural, e seu contexto. Esses vestgios so componentes da cultura material,
aquele segmento do universo fsico que socialmente apropriado pelo homem e que
engloba objetos, utenslios, a natureza transformada em paisagem. Nas palavras do
historiador Ulpiano Bezerra de Menezes (1984, p. 34), os artefatos devem ser
compreendidos como produtos de relaes sociais e como vetores dessas mesmas
relaes. O renomado historiador apresenta trs motivaes que justificam a
preservao do patrimnio arqueolgico. A primeira estaria baseada na razo cientfica
uma vez que os restos fsicos so essenciais para o conhecimento cientfico. A
arqueologia brasileira, segundo ele, tem condies de fornecer uma parcela aprecivel de
contribuio para o entendimento da dimenso temporal do homem. Isto se deve a um
dilatado perodo de ocorrncia, que permite acompanhar os fenmenos de longa durao,
e grande diversidade de ambientes em que os vestgios so encontrados, o que permite
extrair um conjunto amplo de variveis.
A segunda seria uma razo afetiva, a noo do homem como pertencente a um
espao; relao de pertencimento a um territrio j h muito habitado. A informao
arqueolgica, dando a medida da ao e do trabalho humano, confere espcie de selo de
34
dignidade ao espao presente. Trilha de identificao que produz qualidade na vivncia.
(Menezes, 1984, p. 36) A ltima seria a razo poltica relacionada cidadania e, dessa
forma, extremamente importante quando se fala em preservao. Boa parte do
patrimnio arqueolgico brasileiro tem desaparecido em virtude da ao natural, eroso,
interveno de amadores, realizao de grandes obras, como barragens e estradas, mas o
principal veculo de destruio a explorao econmica. possvel citar como
exemplos a extrao de calcrio que ocasionou danos irreparveis a pinturas, gravuras e
sinalizaes rupestres em diversos pontos do pas, assim como os projetos agro-
pecurios.
Segundo o autor, essa situao, reflexo de comportamento corrente no campo do
patrimnio cultural em geral, grave sobretudo porque sintoma de uma sociedade
desequilibrada, marcada por relaes assimtricas. Por isso, a preservao uma
bandeira que se impe em todos os domnios e tambm, adequadamente, no
arqueolgico, como uma forma de reapropriao, pelo cidado, daqueles bens de alcance
social e dos quais ele foi expropriado pelas diversas formas de domnio e explorao.
(Menezes, 1984, p. 36)
Por muito tempo, a limitao dos instrumentos disponveis de acautelamento teve
como consequncia produzir uma compreenso restritiva do termo preservao, que
acaba sendo entendido exclusivamente como tombamento, como explica Maria Ceclia
Londres Fonseca, uma das pesquisadoras que mais contribuiu para a anlise do
patrimnio no Brasil. Entretanto, existe hoje um contexto favorvel ampliao do
conceito de patrimnio cultural e maior abrangncia das polticas pblicas de
preservao, muito em razo da criao do decreto n 3.551 de 2000 que instituiu o
35
Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial como integrante do patrimnio cultural
brasileiro.
De certa forma, a autora indica algumas pistas para se compreender a funo do
patrimnio e as polticas pblicas. Segundo ela (2003, p. 64), preciso pensar na
produo de patrimnios culturais no apenas como a seleo de edificaes, stios e
obras de arte que passam a ter proteo especial do Estado, mas, em termos do que diria
Michel Foucault, como uma formao discursiva, que permita mapear contedos
simblicos com vistas a descrever a formao da nao e constituir a identidade
cultural brasileira. Embora as polticas de patrimnio, tal como estruturadas hoje,
estejam longe de cumprir esses objetivos.
Seria necessrio ter como base critrios de representatividade para que diferentes
grupos sociais pudessem se reconhecer nesse repertrio, bem como mudar os
procedimentos a fim de abrir espaos para a participao da sociedade no processo de
construo e de apropriao do seu patrimnio cultural. Ou seja, a noo ampliada de
patrimnio no mbito da poltica pblica deve envolver novos atores, buscar novos
instrumentos de preservao e de promoo, bem como formular polticas
transformadoras.
Essa ampliao da noo de patrimnio pode ser considerada tambm como mais
um dos efeitos da globalizao, pois, segundo Fonseca (2003, p.70), ter aspectos de sua
cultura, at ento considerada por olhares externos como tosca, primitiva ou extica,
reconhecidos como patrimnio mundial, contribui para inserir um pas ou um grupo
social na comunidade internacional, com benefcios no s polticos, mas tambm
econmicos.
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Poltica cultural atualizada, diz a pesquisadora Lia Calabre, chefe do Setor de
Estudos de Poltica Cultural da Casa de Rui Barbosa, uma das fundaes do Ministrio
da Cultura, deve reconhecer a existncia da diversidade de pblicos, com vises e
interesses diferenciados, que compem a contemporaneidade. A base para um novo
modelo de gesto est no reconhecimento da diversidade cultural dos distintos agentes
sociais e na criao de canais de participao democrtica. Numa democracia
participativa, por sua vez, a cultura deve ser encarada como expresso de cidadania. A
cidadania democrtica e cultural contribui para a superao de desigualdades e para o
reconhecimento das diferenas existentes entre os sujeitos em suas dimenses social e
cultural.
Calabre (2007) aponta tambm especificamente para o caso brasileiro no qual se
encontram rgos responsveis pela gesto cultural nos diversos nveis de governo. Em
todos eles est presente o problema da carncia de recursos e por isso fundamental
definir as relaes que podem e devem ser estabelecidas entre os variados rgos
pblicos de gesto cultural nos nveis federal, estadual e municipal, e destes com outras
reas governamentais, com as instituies privadas e com a sociedade civil. Segundo a
autora, existe uma srie de competncias legais comuns entre a Unio, os estados e os
municpios. Dentre elas pode-se destacar a funo de proteger os documentos, as obras e
outros bens de valor histrico, artstico e cultural, os monumentos, as paisagens naturais
e os stios arqueolgicos. Uma das consequncias visveis disso a existncia de uma
srie de instituies, como museus, centros culturais, galerias, sob a administrao
indistinta da Unio, dos estados e dos municpios, a maioria delas sem nenhuma
interface entre si. Tambm no existe lugar que centralize essas informaes e permita
ao governo um real conhecimento da atual situao.
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Para que as polticas pblicas sejam mais eficazes, Isaura Botelho, diretora do
Centro de Estudos da Amrica Latina no Memorial da Amrica Latina, afirma a
importncia de informaes centralizadas e de pesquisas socioeconmicas na rea da
cultura. Botelho (2001) defende uma formulao mais incisiva de polticas pblicas, as
quais, para serem eficazes, precisam de mecanismos capazes de mapear no s o
universo da produo, mas tambm o da recepo nesse terreno. E afirma que, a cultura,
em sentido lato, exige a articulao poltica efetiva de todas as reas da administrao,
uma vez que alcanar o plano do cotidiano requer o comprometimento e a atuao de
todas elas de forma orquestrada, j que est se tratando, aqui, de qualidade de vida.
(Botelho, 2001, p. 75)
H outra questo bastante relacionada ao tema central desse projeto e tambm
apontada por Botelho. Trata-se dos equvocos que ocorrem quando os poderes pblicos,
por escassez de recursos ou omisso deliberada, deixam as decises sobre o que se
produz em termos de arte e cultura nas mos dos setores de marketing das empresas.
Assim, o mercado e as relaes mundanas tornam-se preponderantes, ao invs de serem
um complemento do financiamento pblico. (2001, p. 73) O financiamento a projetos
assumiu o primeiro plano do debate no pas j na dcada de 1990 enquanto que, para
Botelho, o financiamento da cultura no pode ser analisado independente das polticas
culturais. O financiamento deve ser determinado pela poltica e no o contrrio.
Sem dvida o financiamento um dos mais poderosos mecanismos para a
consecuo de polticas pblicas j que permite interferir de forma direta na soluo de
problemas ou no estmulo de determinadas atividades com impactos relativamente
previsveis. Contudo, para que um sistema efetivo de financiamento s atividades
culturais funcione obrigatrio que se estabelea uma poltica pblica encarregada de
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reger as parcerias, tanto entre reas de governo quanto entre as instncias administrativas
- municipal, estadual e federal.
Como toda poltica pblica, as polticas culturais tambm necessitam prever, em seu planejamento, as suas fontes e mecanismos de financiamento. No entanto, a clareza quanto s prioridades e s metas a serem alcanadas em curto, mdio e longo prazos que possibilitar a escolha de estratgias diversificadas e adequadas para o financiamento das atividades artsticas e culturais. (Botelho, 2001, p. 78)
Por fim, tanto Botelho (2001) quanto Calabre (2007) tm perspectivas comuns do
que deve ser feito em termos de polticas culturais. Entre essas perspectivas possvel
citar a realizao de pesquisas peridicas sobre prticas e consumos culturais; defender a
diversidade cultural como elemento fundamental para a continuao da existncia das
prprias sociedades; promover maior abertura no intercmbio cultural internacional;
tratar as manifestaes culturais como parte do patrimnio de um povo e integrar aes
de maneira interministerial.
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Figura 1: Vista Geral da Serra da Capivara Foto Acervo FUMDHAM
2 PARQUE NACIONAL SERRA DA CAPIVARA
2.1 Retrospecto
Trata-se de paisagem diversificada, recortada na rocha, com vales dentrticos muito
estreitos, alm de boqueires fundos e tambm estreitos (Figuras 2 e 3). Essas fendas
(Figura 1) na chapada apresentam abrigos de morfologia diversificada que acumulam a
gua da chuva nos perodos de seca e aproveitada pela fauna local. O clima da regio
hoje semi-rido. Duas estaes bem definidas provocam grandes mudanas na paisagem.
A vegetao exuberante na estao de chuvas, com temperaturas agradveis. J na
poca da seca, a folhagem, antes exuberante, torna-se retorcida e coberta de espinhos e
um mato cinza cobre a regio. Pessis explica que o semi-rido de hoje, contudo, nem
sempre foi assim.
H cerca de 9.000 anos, comeou o processo de diminuio das chuvas, iniciando-se uma gradativa transformao da regio, at ento caracteriza pelo seu clima tropical-mido. Esse processo foi iniciado por uma transformao provocada por causas naturais, em nvel planetrio, uma mudana no regime de ventos e correntes martimas que aconteceu no momento da transio entre o Pleistoceno e o Holoceno. (...) Existem, ainda hoje, vestgios dessa primeira vegetao tropical-mida que podem ser achados nas profundezes dos canyons... O Parque Nacional Serra da Capivara est situado no domnio morfolgico das caatingas, no qual uma vez por ano acontece o milagre visual da metamorfose da paisagem, lembrando como foi a regio antes do incio do processo de desertificao. Iguais aos ritos da cultura humana, os ritos da natureza so a memria de sua evoluo. (Pessis, 2003, p. 30)
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Figura 2: Entardecer na Serra da Capivara Foto Acervo FUMDHAM
Figura 3: Rocha com inclinao negativa na Serra da Capivara Foto Acervo FUMDHAM
As condies climticas tropical-midas, precedentes ao clima semi-rido atual,
garantiram os recursos alimentares para uma fauna de grande porte e, em sua maioria,
herbvora. Os vestgios sseos mais comumente achados nas escavaes so de
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preguias gigantes, tigres dentes-de-sabre e tatus gigantes, entre outros. H evidncias
arqueolgicas da presena humana na regio do Parque h 500 sculos. Dessa forma, sua
implantao teria ocorrido durante o mesmo perodo climtico tropical-mido das
espcies da megafauna. Ainda que em grande parte herbvoras, essas espcies de grande
porte constituam uma limitao para a sobrevivncia das populaes humanas. A
coexistncia s foi possvel com base num comportamento humano bem organizado e
pautado, transmitido de gerao em gerao.
Essas formas de organizao marcaram o incio da vida social pr-histrica, a partir da qual evoluram as modalidades de organizao em face da transformao do meio (...). Elas utilizaram o espao de forma diferenciada, segundo as caractersticas das diferentes pocas em que viveram, das necessidades e dos recursos disponveis. (Pessis, 2003, pg. 41)
Alm de Anne Marie Pessis, outra autora tambm se debruou sobre a histria
daquela regio, no sudeste do Piau. Emlia Pietrafesa de Godoi analisou o universo rural
dos camponeses dos povoados de Limoeiro, So Pedro, Barreiro Grande e Barreirinho,
localizados prximo ao municpio de So Raimundo Nonato. O texto de Godoi, de 1998,
ratificado pela fala de Nivaldo Coelho, morador de Barreirinho e um dos primeiros
guias contratados pela Misso Franco-Brasileira. Ele conta, no vdeo Piau Entocado,
que um dos primeiros homens a chegar regio, vaquejando, chamava-se Vitorino. Ele
teria sido uma das primeiras pessoas a encontrar os ndios ou caboclos brabos que
habitavam aquelas tocas e faziam aquelas pinturas nas rochas. Depois que um dos filhos
de Vitorino foi morto pelos ndios, ele foi a Oieiras - municpio que serviu de capital do
Piau at o ano de 1851 - pedir armamentos ao governo que, posteriormente, cedeu a
Vitorino vasta rea, at ento ocupada pelos ndios. Nessa regio, conta Nivaldo, foram
encontrados machadinhos e inmeras peas em cermica. De acordo com as pesquisas
43
desenvolvidas na Serra da Capivara, a cermica surge naquela regio por volta de 9.800
anos e h 6.000 certamente j estava difundida em todo o territrio.
Emlia de Godoi complementaria dizendo que os camponeses daqueles povoados
se pensam como famlia descendente de Vitorino. Segue citao de outro morador,
retirada do artigo de Godoi (1998, p. 98), bastante ilustrativa da histria da regio:
O primeiro homem que entrou aqui e que produziu a grande famlia se chamava Vitorino. Ento foi ele quem situou aqui. E a, o que certo, que esta beirada de serra era cheio de ndio nesse tempo. ndio quer dizer que caboclo brabo, voc sabe, os ndio. E a, os ndio mataram um filho dele...mataram um filho dele em despique da morte de um co. A ele encostou bem nessa beirada de serra, era morada deles. Ele encostou pra a e arrastou o bacamarte...os bichos correram e ele ps bagao deles a, aqui e acol, matando, at quando desterrou eles daqui. E ento, nessa ocasio, o governo deu a ele esta terra e este mundo ficou dele. E ento, ele comeou a produzir a grande famlia. (Seu Z Lopes, 95 anos)
A autora chama ateno para um dado importante de significado simblico: na
representao sertaneja do mundo natural o cachorro classificado na esfera domstica.
A partir de falas como essa, Godoi reconhece semelhanas entre elementos da histria da
origem destes povoados. Ela cita o corgrafo Aires de Casal que, em 1817, na sua
descrio do Piau conta que, por volta de 1760, na parte meridional daquele Estado,
apareceu um grupo indgena que obrigou muitos brancos a abandonarem suas fazendas
de criao. Eram chamados de Pimenteiras e ocupavam as cabeceiras dos rios Piau e
Gurguia. As hostilidades comearam justamente em vingana da morte de um co que
os brancos lhes mataram por ocasio de uma caada ocorrida prximo ao rio Gurguia.
De acordo com a pesquisa de Godoi, acontecimento como esse deve ter se dado ao final
do sculo XVIII, pois h registros de que a guerra contra os ndios Pimenteiras comeou
em 1776 e terminou em 1784. Os Pimenteiras teriam reaparecido mais tarde, em 1807,
44
na cabeceira do rio Piau, quando, por dois anos seguidos foram duramente combatidos e
completamente exterminados.
No Registro Paroquial de terras de 1855, as terras dos povoados em questo,
originalmente fazenda Vrzea Grande, resultam de uma concesso feita pelo governo em
1829, quer dizer, bem mais tarde da ocorrncia dos fatos acima narrados. Mas, segundo
Godoi, foi essa a histria que os sertanejos elegeram para que fosse a histria deles:
uma histria de violncia que, alis, poderia bem ter se passado, pois, quela poca,
organizar expedies para capturar, expulsar e mesmo exterminar os ndios era uma das
maneiras de aquisio de terras como concesso do governo. (1998, p.100)
H passagens no texto da autora nas quais fica clara a atribuio, por parte dos
camponeses, de autoria das pinturas rupestres (Figuras 4, 5, 6, 7, 8 e 9) pelos ndios,
como por exemplo:
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Figura 4) Pintura Rupestre - Toca da Bastiana Foto Acervo FUMDHAM
As secas de antigamente obrigavam os sertanejos a subirem a serra e os aproximavam assim desse espao selvagem e de todas as referncias de uma alteridade absoluta: as onas, as serpentes e os ndios. Minha av se abrigou perto da grunga. Eles estavam longe da gua, ento eles foram perto da grunga passar a seca at que chovesse, eles se abrigaram na toca, me contou dona Zenaide. Ora, na representao camponesa do espao as tocas so morada de ona e elas so igualmente identificadas como pertencendo aos ndios tocas de caboclo, pois acreditam que as pinturas rupestres encontradas em muitas delas foram feitas pelos ndios. (1998, p. 104)
As grungas so os canyons - valas profundas onde se pode encontrar gua mesmo
nos perodos mais secos, e tocas so abrigos sob rocha.
No entanto, Godoi retrata bem, no trecho abaixo, o quanto a herana indgena
desvalorizada:
46
As narraes sobre a origem da grande famlia correspondem ao que a memria coletiva desses camponeses selecionou e que funciona como paradigma que d origem aos seus direitos sobre aquelas terras e que os situa na vida cotidiana. Ele era um vio muito destemido, desterrou os ndio daqui tudo tomou conta, situou e deixou isso aqui. Agora que semeou de dono, de ns tudo a da procedncia dele toda. Da Barragem pra c tudo do tronco vio do Vitorino; nao de gente do Vitorino. Uma nao de gente por oposio aos ndios os bichos -, sempre expulsos para espaos selvagens e para um tempo fora da histria, como se disse antes: aqui tem uma velha que conta do incio do mundo. Pensados atravs de uma categoria definitivamente no-humana, os ndios so desta forma eliminados da rvore genealgica desses camponeses. (1998, p. 102)
Sobre a economia na regio, vale acrescentar que, do final do sculo XIX at
meados do sculo XX, o sudeste do Piau experimentou a expanso do desenvolvimento
da manioba. Essa atividade marcou de forma relevante a regio onde hoje est situado
o Parque Nacional Serra da Capivara, pois acelerou o processo de imigrao, promoveu
a abertura de fazendas e povoados e tambm propiciou novos usos das tocas,
anteriormente usados como lugares de descanso, cemitrios, rituais e como suporte para
as pinturas rupestres.
As tocas foram utilizadas como alternativa de moradia para os maniobeiros que
viviam em pssimas condies de vida. Algumas foram usadas de forma mais
permanente, outras como rancharia ou como depsito de secagem da manioba. Nas
dcadas de 1970 e 1980, durante a decadncia da manioba, as caractersticas
econmicas da regio, que engloba hoje o PNSC, continuaram assentadas na pecuria e
na agricultura de subsistncia do milho, do feijo e da mandioca. (Borges, 2007, pg.65)
Hoje, h vestgios materiais dispersos sobre uma extensa rea, protegidos pela
ausncia de grandes obras pblicas ou da agricultura mecanizada. A maior parte dos
stios arqueolgicos tem suas paredes rochosas cobertas de pinturas rupestres vestgios
de prtica realizada durante milnios. O nmero de pinturas descobertas, cerca de 30 mil,
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permite ter ideia da quantidade de trabalhos realizados ao longo dos sculos e do nmero
ainda maior de registros grficos que desapareceram.
Figura 5) Pintura Rupestre do Parque Nacional Serra da Capivara Foto Acervo FUMDHAM
Figura 6) Pintura Rupestre do Parque Nacional Serra da Capivara Foto Acervo FUMDHAM
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Figura 7) Pintura Rupestre do Parque Nacional Serra da Capivara Foto Adriana M. F. Martins
Figura 8) Pintura Rupestre do Parque Nacional Serra da Capivara - Foto Adriana M. F. Martins
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Figura 9) Nicho - Boqueiro da Pedra Furada Acervo FUMDHAM
2.2 Criao
No corao do chamado Polgono das Secas, onde o serto semi-rido se torna mais severo, onde a caatinga se funde com o cerrado e as irregularidades climticas do Nordeste se fazem sentir com mais fora, existe uma fronteira geolgica, ponto de encontro entre os planaltos, localmente chamados chapadas, que formam uma cadeia contnua de serras, e uma plancie antiqussima, que forma a depresso perifrica do mdio So Francisco, o mais importante rio do Nordeste. O contato entre as duas formaes marcado por uma cuesta, imensa linha de paredes verticais de rara beleza. Conhecidas como Serra da Capivara, essas chapadas marcam o limite do Parque Nacional, que toma seu nome e que ocupa uma superfcie de 130.000 ha na bacia sedimentar Maranho-Piau (Pessis, 2003, p. 27).
O Parque Nacional Serra da Capivara est localizado no sudeste do Estado do
Piau e ocupa rea dos municpios de So Raimundo Nonato, Joo Costa, Coronel Jos
Dias e Brejo do Piau. So Raimundo Nonato a maior dessas cidades, com mais de 30
mil habitantes, e est a aproximadamente 30 km do Parque. Ele totaliza 129.140
hectares e um permetro de 214 km. A distncia que o separa da capital do Estado,
50
Teresina, de 503 km por uma estrada (via BR 343 e PI 140) em pssimo estado de
conservao (Figura 10). Outro acesso se d a partir da cidade de Petrolina, em
Pernambuco. Petrolina dispe de um aeroporto operado por duas companhias areas e
est a 313 km do Parque. A estrada de acesso (BR 235), porm, tambm est
pessimamente conservada.
Figura 10) PI 140 Foto Andr Pessoa
Situa-se em zona extremamente carente onde as pessoas enfrentam as dificuldades
tpicas das regies semi-ridas do nordeste brasileiro. Desde a colonizao, o territrio
que hoje ocupa o Parque foi utilizado pelas populaes vizinhas para caar, plantar e
cortar madeira. Essa populao, extremamente pobre e sem praticamente nenhuma fonte
de trabalho que no seja a explorao dos recursos naturais, vive na rea de
Preservao Permanente, num espao limtrofe de 10 km de largura. Em 2008, o
Ministrio do Turismo do Brasil solicitou Rede de Patrimnio, Turismo e
Desenvolvimento Sustentvel (IBERTUR) e Universidade de Barcelona o
51
desenvolvimento de um Programa de Turismo Sustentvel que inclua a proposio de
um Plano de Ao para o Desenvolvimento Integrado da Bacia do Parnaba. (2008,
pg.13), As informaes analisadas nesse documento confirmam que o Piau apresenta
um baixo nvel de desenvolvimento humano. Entre suas principais limitaes est a
inexistncia de saneamento ambiental para a melhoria das condies de salubridade do
meio fsico, de sade e de bem-estar da populao.
Situao ainda mais grave que essa foi a encontrada em 1975. Naquele ano, aps
trs meses de trabalho de terreno na rea arqueolgica de So Raimundo Nonato, a
equipe de especialistas da Misso Arqueolgica Franco-Brasileira do Piau
cooperao cientfica binacional - fez um balano dos trabalhos realizados e das
mudanas perceptveis nos ecossistemas regionais, assim como das mudanas
verificadas na estrutura socioeconmica local. A Universidade de So Paulo (USP) era a
instituio representante do Brasil na Misso; j pela Frana o representante era o
Ministrio das Relaes Exteriores. Levando-se em considerao a importncia dos
stios arqueolgicos, seu grande nmero, variedade e qualidade dos vestgios, alm da
beleza da paisagem, da especificidade da cobertura vegetal e do potencial turstico, os
pesquisadores dessas duas instituies decidiram que era necessrio levar todas essas
questes, agravadas pelo impacto destruidor da presena humana cada vez mais
presente, ao conhecimento das autoridades.
Dessa forma, no dia 05 de junho de 1979, foi assinado o decreto n 83.548, da
Presidncia da Repblica, publicado no Dirio Oficial da Unio de 06 de junho de 1979,
criando o Parque Nacional Serra da Capivara. Segundo o Plano de Manejo do Parque
Nacional Serra da Capivara, aprovado pela Secretaria do Meio Ambiente da Presidncia
da Repblica em 1994, a finalidade da criao desse Parque Nacional foi fornecer os
52
instrumentos jurdicos que permitissem garantir uma proteo adequada a uma rea na
qual se encontra a maior concentrao de stios pr-histricos do pas. (Plano de
Manejo, Braslia,1994)
O plano de manejo de um parque nacional um instrumento terico e operacional
destinado a organiz-lo segundo suas caractersticas e de acordo com as finalidades que
orientaram a sua criao. O objetivo fornecer as bases de organizao e a estratgia
para coordenar a proteo do meio ambiente, do patrimnio cultural e a utilizao da
rea. Ele identifica tambm as aes prioritrias para que os objetivos definidos sejam
alcanados. A meta principal do plano de manejo do Parque Nacional Serra da Capivara
recuperar o estado de equilbrio entre proteo do patrimnio cultural e os aspectos
ecolgicos do Parque de forma ainda a criar condies para que ele seja um plo de
turismo ecolgico explorado eficientemente.
Sua criao esteve ligada s questes de preservao do meio ambiente especfico
e do patrimnio cultural existente. As principais motivaes foram:
ambientais: paisagens variadas nas serras, vales e plancie, com vegetao
de caatinga. A caatinga um tipo de vegetao que ocupa 11% do territrio
nacional e 70% do Estado do Piau. O Parque Nacional Serra da Capivara,
com seus quase 130.000 hectares, a nica unidade de conservao do pas
destinada preservao desse bioma, extremamente importante pela sua
biodiversidade, mas que corre srio risco de extino;
culturais: maior concentrao de stios arqueolgicos atualmente conhecida
nas Amricas, a maioria com pinturas e gravuras rupestres, nos quais se
encontram vestgios extremamente antigos da presena do homem (entre
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50.000 e 60.000 anos antes do presente). Abrange grande quantidade de
abrigos distribudos nas chapadas, nos baixes e nos boqueires. Neles, os
grupos humanos da pr-histria, mediante pinturas e gravuras, registraram
fatos, ideias e mitos componentes de diversas identidades culturais que ali
coabitaram e se sucederam durante mais de 400 sculos;
tursticas: pontos de observao privilegiados de paisagens de grande
beleza natural. Possui alto potencial para o turismo cultural e ecolgico,
constituindo uma alternativa de desenvolvimento para a regio, cujos
recursos naturais so l