Dissertação Martins CD

Embed Size (px)

Citation preview

  • 8/17/2019 Dissertação Martins CD

    1/401

     

    UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

    RAPHAEL MARTINS DE MARTINS

    “ENTRE O PENSAR E O VIVER”: um estudo sobre a cidade como espaço estratégico

    da luta de classes

    RIO DE JANEIRO

    2014

  • 8/17/2019 Dissertação Martins CD

    2/401

     

    Raphael Martins de Martins

    “ENTRE O PENSAR E O VIVER”: um estudo sobre a cidade como espaço estratégicoda luta de classes

    01 Volume

    Dissertação de Mestrado apresentada aoPrograma de Pós-Graduação da Escola de

    Serviço Social da Universidade Federal do Riode Janeiro como requisito parcial à obtençãodo título de Mestre em Serviço Social.

    Orientador: Prof. Dr. Mauro Luís Iasi

    Rio de Janeiro2014

  • 8/17/2019 Dissertação Martins CD

    3/401

     

  • 8/17/2019 Dissertação Martins CD

    4/401

     

    Raphael Martins de Martins

    “ENTRE O PENSAR E O VIVER”: um estudo sobre a cidade como espaço estratégico

    da luta de classes

    Dissertação de Mestrado apresentada aoPrograma de Pós-Graduação da Escola deServiço Social da Universidade Federal do Riode Janeiro como requisito parcial à obtençãodo título de Mestre em Serviço Social.

    Aprovada em: 14/04/2014

     _________________________________________Prof. Dr. Mauro Luís Iasi (UFRJ)

     _________________________________________Prof. Dr. Emérito José Paulo Netto (UFRJ)

     _________________________________________Profa. Dra. Sônia Lúcio Rodrigues de Lima (UFF)

     _________________________________________

    Profa. Dra. Maria Helena Rauta Ramos (UFRJ)

  • 8/17/2019 Dissertação Martins CD

    5/401

     

    RESUMO

    MARTINS, Raphael Martins de. “Entre o pensar e o viver”: um estudo sobre a cidade

    como espaço estratégico da luta de classes. Rio de Janeiro, 2014. Dissertação (Mestrado

    em Serviço Social) –  Escola de Serviço Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro,

    Rio de Janeiro, 2014.

    Esta dissertação visa apreender os “mecanismos cegos” de reprodução

    ininterrupta da segregação socioespacial, ou seja, as causas econômicas determinantes, e

    as relações sociais determinantes do processo de produção do espaço no modo de

     produção capitalista. Lançando mão do materialismo histórico-dialético, busca-seapreender tais causas tanto em sua legalidade quanto em sua manifestação histórica,

    apreendendo, portanto, sua peculiaridade. A análise de momentos determinantes da

     produção capitalista do espaço no Brasil, destacadamente do espaço “reservado” aos

    trabalhadores pobres, por meio de pesquisa bibliográfica, permitiu não só desvelar os

    intitulados “mecanismos cegos”, como também compreender o papel histórico

    desempenhado pelo Estado, no sentido de sua promoção. Decididamente a atuação do

    Estado burguês fortalece o processo de segregação socioespacial, não se justificando, portanto, a insistência de movimentos sociais urbanos e “ pesquisadores críticos”  em

    depositar no aparelho estatal suas esperanças e energias no sentido da transformação de

    nosso “quadro urbano”, por demais alarmante. Por revelar que a contradição fundante

    da segregação socioespacial não é outra que aquela determinante ao modo de produção

    capitalista em sua totalidade, qual seja: a contradição entre a produção social e a

    apropriação privada (cujo núcleo central é a contradição capital/trabalho), este trabalho

    revela também a causa fundamental do processo de segregação socioespacial e as

    condições de sua superação, assim como seu sujeito. Daí se revelar ser a cidade o

    espaço estratégico da luta de classes.

    Palavras-chave: Direito à cidade. Produção do espaço. Segregação socioespacial.

    Reforma urbana. Movimentos sociais urbanos.

  • 8/17/2019 Dissertação Martins CD

    6/401

     

    RÉSUMÉ

    MARTINS, Raphael Martins de. “Entre la pensée e la vie”: un étude sur la ville

    comme un espace stratégique de la lutte des classes. Rio de Janeiro, 2014. Memoire

    (Master en Service Social)  –  Ecole de Service Social, Université Fédérale de Rio de

    Janeiro, 2014.

    Ce travail vise à capturer les “mécanismes aveugles” de reproduction

    ininterromptue de la ségregation socio-spatiale, c´est à dire, les causes économiques

    determinantes, et les rapports sociaux déterminants du processus de production de

    l’espace dans le mode de production capitaliste. Quand on adopte le   matérialismehistorique-dialectique, on cherche à appréhender telles causes, et à la fois sa “légalité”

    et sa manifestation historique, en montrant ainsi sa spécificité. L’ analyse des moments

    determinants de la production capitaliste de l’espace dans le Brésil, et en particulier de

    l’espace “reservé”  aux travailleurs pauvres, à traves la recherche bibliographique, a

     permis de réveler non seulement les “mécanismes aveugles”, mais aussi de comprendre

    le rôle historique joué par l’Etat, au sens de sa promotion. C'est certain, le rôle de l’Etat

     bourgeois renforce le processus de ségregation socio-spatiale; par consequence on ne justifie pas l’insistence des mouvements sociaux urbains et “chercheurs critiques”  en

    mettent leurs esperances et leurs energies dans l' appareil d'Etat, dans le sense de la

    transfomation du “cadre urbain” trop alarmant. Ce travail démontre que la contradiction

    à l’origine de la ségrégation socio-spatiale n’est autre que celle déterminante au mode

    de production capitaliste dans sa totalité, quelqu’elle soit : la contradiction entre la

     production sociale et l’appropriation privée (dont le noyau central est la contradiction

    capital/travail). Cette dissertation révéle également la cause fondamentale du processus

    de ségrégation socio-spatiale et les conditions de leur surmonté, aussi bien que leur

    sujet. A partir de là, la ville se révéle comme l’espace stratégique de la lutte des classes.

    Mots-clés: Droit à la ville. Production de l'espace. Ségrégation socio-spatiale. Réforme

    urbaine. Mouvements sociaux urbains.

  • 8/17/2019 Dissertação Martins CD

    7/401

     

    SUMÁRIO

    APRESENTAÇÃO 09INTRODUÇÃO –  questões de método 17

    PRIMEIRA PARTE –  um inventário do fenômeno 39

    1 Do risco a que correm nossas cidades 39

    2 A formação da favela da Rocinha ou a pesquisa 72

    de um espaço urbano singular a partir da produção do espaço

    3 Da formação ininterrupta da periferia e da favela e de sua 103

    funcionalidade ao processo de industrialização e urbanização

    capitalista do Brasil

    SEGUNDA PARTE –  chaves analíticas para o estudo da cidade: em busca 139

    da essência ou das determinações primeiras da segregação socioespacial e

    da explosão urbana

    4 A centralidade do consumo nas proposições sobre o urbano de 145

    Manuel Castells ou a insuperável superação da

    segregação socioespacial

    5 O quiproquó da espoliação urbana: a renda fundiária urbana 205

    6 Henri Lefebvre: da teoria da produção do espaço ao direito à cidade 247

    CONSIDERAÇÕES FINAIS 364

    REFERÊNCIAS 375

    FONTES 395

  • 8/17/2019 Dissertação Martins CD

    8/401

     

    AGRADECIMENTOS

     Nestes longos dias dedicados a elaboração deste trabalho de dissertação não

    foram poucos aqueles que gentilmente me estenderam a mão. Desde minha família e

    meus antigos camaradas do Ceará, aos novos amigos feitos nesta imensa e tão sedutora

    quanto cruel cidade do Rio de Janeiro. Minha gratidão, especialmente:

    Ao meu pai (Israel) e irmãos (Hilário, Pavla e Talma) que apoiaram material

    e afetivamente as idas e vindas deste “cabra” que estuda o urbano, mas se emociona

    com a volta para o sertão. Especialmente à minha mãe (Fátima) que, além de tudo,

    compartilhou e apoiou cotidianamente, ainda que de longe, meus estudos e minha

    estadia no Rio e em Castelhanos.

    À Carol que comigo viveu estes últimos anos e compartilhou sua vida,

     praticando o verdadeiro significado da palavra companheirismo. Que leu meu trabalho

     por muitas vezes, procurou textos, estudou comigo e me apoiou de todas as formas

     possíveis. Que ajudou a suportar o peso destes dias marcados pelo isolamento e pela

    dúvida.

    Ao meu orientador e camarada Mauro Luís Iasi que acreditou no meu

    trabalho, no meu “método” de pesquisa e me concedeu toda a liberdade para que

     perseguisse caótico e intuitivamente meu objeto. E, assim, ao me perder pelas tortuosas

    veredas da vida e da teoria, me encontrasse. E porque sem a profundidade e radicalidade

    de seu pensamento, de nossas sessões peripatéticas e, principalmente, sem sua paciência

    e generosa disponibilidade em sanar minhas dúvidas no momento mesmo em que

    surgiam, esta dissertação não seria possível.

    À minha amiga Maria Helena Rauta Ramos que fraternalmente me acolheu

    em sua casa (na bela praia de Castelhanos) e me abriu as portas de sua vida. Que me

    introduziu nos estudos acerca da dinâmica da renda fundiária definida em O Capital  ena crítica a Manuel Castells. Que realizou uma crítica precisa ao meu próprio

     posicionamento diante daqueles que eu pretendia superar.

    A José Paulo Netto que, desde o primeiro momento, apoiou e sustentou a

    importância e validade teórico-política desta dissertação. Pela leitura atenta, a

    camaradagem e pelo muito que com ele aprendi.

    À minha amiga Adelaide Gonçalves que varou noites corrigindo textos

    meus quando tentava introduzir-me nas pesquisas acadêmicas, que sempre me apoiou e praticou comigo a mais autêntica camaradagem.

  • 8/17/2019 Dissertação Martins CD

    9/401

     

    Aos amigos da “comunidade”, sempre solícitos e compreensivos (Sâmbara,

    Magda, Anna, Veronique, Silvia, Dani e Pedro). Que me apoiaram, comigo debateram

    assuntos mil de modo entusiasmado e irônico e que me acolheram quando o processo de

    anomia social desta imensa cidade me ameaçava liquidar.

    Aos meus amigos e camaradas que compreenderam minha ausência e

    sempre me apoiaram: Mônica, Cezar, Emmanuel, Michael, Roger, Talita, Marcos,

    Ercilia, Manu, Gabriel e Daiane. A estes o meu coração ainda agradece e clama, não só

     pelo que fizemos, e sim, principalmente, pelo que ainda podemos fazer juntos.

    Aos amigos que me motivaram e muito contribuíram ainda no processo

     preparatório para a seleção de mestrado: João Pedro Stédile, Renato Roseno, Marildo

    Menegat, Ítalo, Paula, Yazid e Josi.

    Àqueles que me receberam no Rio ainda em meus primeiros meses: Beth,

    Gabriela, Vinícius e Scheilla.

    Aos meus amigos e companheiros de longa data, Vanda, Misael, Elvira,

    Raquel, Marta e Regina que ajudaram a suportar estes anos difíceis.

    Ao professor Expedito Passos que me introduziu nos estudos do método

    marxista e com quem muito aprendi.

    Ao meu primo Martins que me mostrou a miséria e as injustiças na Rocinha

    e que praticou comigo a velha solidariedade nordestina, compartilhada pelos

    conterrâneos que se encontram na cidade grande, longe de casa.

    Aos sempre solícitos e lutadores servidores da UFRJ, destacadamente

    Fernanda e Fábio.

    Às professoras Sara Granemann e Sônia Lúcio, exemplos de resistência

    radical e impenitente, que, com suas observações perspicazes, ajudaram-me a romper

    limites.

    A Rodrigo e Felippe, novos amigos e companheiros nesta luta (que tambémé teórica) por outro mundo possível.

    A todos os companheiros da Unidade Classista  –   luta por moradia, do

    Movimento dos Conselhos Populares (MCP), do Movimento dos Trabalhadores Rurais

    Sem Terra (MST) e do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST). Ao grito de

    rebeldia da Comuna 17 de Abril. Aos camaradas que reconstroem de forma

    revolucionária nosso “operador político”.

    Por fim, agradeço o apoio material recebido do CNPq e da FAPERJ, sem oqual não seria possível a elaboração deste trabalho.

  • 8/17/2019 Dissertação Martins CD

    10/401

     

    Parte da sociedade exige da outra um tributo pelo direitode habitar a terra, pois de modo geral na propriedadefundiária se inclui o direito do proprietário de explorar osolo, as entranhas da terra, o ar e, por conseguinte, o queserve para conservar e desenvolver a vida.

    Karl Marx, O Capital (2008b). 

    Os indivíduos considerados isoladamente apenas

    formam uma classe na medida em que se veemobrigados a sustentar uma luta comum contra outraclasse, pois de outro modo eles mesmos se enfrentamuns aos outros, hostilmente, no terreno da concorrência.

    Karl Marx e Friedrich Engels,A Ideologia Alemã (2007).

  • 8/17/2019 Dissertação Martins CD

    11/401

    9

    APRESENTAÇÃO

    O esforço dedicado à pesquisa e elaboração deste trabalho é motivado pelo

    desejo de contribuir com o necessário processo de “reformulação” e de “reorganização”dos movimentos sociais urbanos no Brasil. Partiu-se de uma suposição: a crise dos

    movimentos sociais urbanos se deve não só aos obstáculos encontrados em seu

    desenvolvimento, como também à sua própria conformação. Portanto, a teoria que

    fundamentou a concepção hegemônica, que balizou e contribuiu para dar forma a tais

    movimentos no Brasil teve um peso e, por conseguinte, responsabilidade sobre o seu

    devir.

    Como não poderia deixar de ser, em se tratando de um estudo no campo domarxismo, introduzo este trabalho com considerações acerca do método de apreensão

    do real, na tentativa de realizar a aproximação ao objeto da pesquisa. Valho-me,

    especialmente, de Marx e de Engels, de alguns de seus mais destacados intérpretes, qual

    seja, György Lukács e Henri Lefebvre, assim como do excelente trabalho escrito pelo

     professor José Paulo Netto (2011).

     Na primeira parte desta dissertação, trata-se de um inventário do fenômeno,

    isto é, da crise urbana, da manifestação particular da “questão social” no que dizrespeito à produção capitalista da cidade no Brasil; ou seja, almeja-se, por meio de

     pesquisa bibliográfica de autores, dos mais diversos matizes, apreender o objeto em sua

    manifestação histórica, em sua forma aparente.

     Na segunda parte, contudo, busca-se, por meio, principalmente, da

    apropriação de autores clássicos, apreender as determinações (essenciais) que enformam

    a chamada “questão urbana”. Ou seja, lança-se mão de conceitos que permitem, não

    descrever singularidades históricas, mas explicar a crise urbana; que possibilitem

    desvelar as determinações fundantes da produção social da cidade no capitalismo.

    Por entender que a segregação socioespacial se constitui na principal

    expressão da negação do direito à cidade, naquilo que leva à sua explosão (e, em

    decorrência, pode mergulhar a humanidade numa nova crise civilizatória manifestada

    historicamente na forma de barbárie), adoto como “fio condutor” deste trabalho a busca

     pela apreensão de como se conforma a segregação socioespacial no Brasil (seus

    determinantes), tanto em sua aparência como em sua essência, em sua historicidade e

    legalidade.

  • 8/17/2019 Dissertação Martins CD

    12/401

    10

     No intuito de se alcançar os objetivos do presente estudo, foi realizada

     pesquisa de caráter bibliográfico, lançando-se mão, para o empreendimento de análise

    histórica e teórica de fenômenos relacionados ao tema central deste estudo, da análise de

    conteúdo das obras elencadas; e documental, ao valer-se de publicações oficiais

     provenientes de órgãos diretamente vinculados ao “aparelho estatal”. Realizou-se

     pesquisa de natureza qualitativa, tendo em vista a análise e o encadeamento dialético

    dos determinantes sociais do processo de produção capitalista do espaço, objetivando

    apreendê-lo em sua legalidade e em seu movimento, por meio da apropriação de

    conceitos que expressem de modo sintético o real.

    Pormenorizando, na primeira parte desta dissertação, situo grandes linhas de

    investigação acerca da luta por transformações urbanas no Brasil, adotando como ponto

    de partida o balanço realizado por Ermínia Maricato em seu O impasse da política

    urbana no Brasil   (2011), e, compreendendo que o grande risco pelo qual passam as

    nossas maiores cidades é o de sua quase completa favelização ou periferização, entendo

    necessário recuar no tempo, ao ato inicial de formação da favela. O trabalho

    historiográfico de Sidney Chalhoub, Cidade Febril  –   cortiços e epidemias na corte

    imperial  (2006), indica o caminho. Eis o primeiro capítulo. Nele se apresentam dados

    de realidade, descreve-se a situação de nossas cidades, na tentativa de quantificar a

    grandeza de nossos problemas; dimensiona-se e situa-se no tempo e no espaço o nosso

    drama urbano.

    Assim, inicio o inventário pelo balanço realizado por aquela que entendo ter

    sido a mais destacada ideóloga da concepção hegemônica do chamado “movimento pela

    reforma urbana no Brasil”. Exponho, para o leitor, o essencial do balanço realizado por

    Ermínia Maricato tanto porque não o considero falso en tout (pois contribui na

    elaboração do inventário), como porque acredito se tornar mais claro para o leitor

     porque esta concepção não pode contribuir teoricamente com o processo de tomada deconsciência, por parte dos movimentos sociais urbanos, dos principais obstáculos à

    efetivação do direito à cidade, posto que este referencial ideológico não desvele as reais

    causas (determinações) da segregação socioespacial. Ao substituir a análise das relações

    capitalistas (ou seja, da legalidade do modo capitalista de produção) pela crítica dualista

    do processo de produção dos espaços de residência da classe trabalhadora1, Maricato (e

    1

      Manifestada, como chama atenção Maria Helena Rauta Ramos (informação verbal), em sua chaveinterpretativa: cidade legal versus cidade ilegal, cidade formal versus  cidade informal. Não se trata,contudo, de negar o uso desta chave, mas sim de não considerá-la central, assim como Francisco de

  • 8/17/2019 Dissertação Martins CD

    13/401

    11

    todos aqueles que com ela comungam) imerge   de tal modo nos aspectos jurídicos,

    técnicos e políticos que não mais lhe é possível apreender a essência do processo,

    condena-se à crítica do aparente. Almejo, com isso, preservar o que esta concepção

    apresenta de verdadeiro, de real. Busco, contudo, ultrapassar seus limites. Recorro,

    assim, a uma frutífera conduta da tradição marxista (desde O capital), na qual não se

    realiza a crítica apriorística de autores predecessores ou divergentes, mas se busca,

    lançando mão de um método, superá-los.

     No segundo capítulo, apresento o processo histórico de  produção da

    moradia na Rocinha em sua relação com a produção da cidade e o tratamento que lhe é

    dispensado pelo Estado em diferentes momentos históricos. A excelente pesquisa de

    Gerônimo Leitão,  Dos barracos de madeira aos prédios de quitinetes: uma análise do

     processo de produção da moradia na favela da Rocinha, ao longo de cinquenta anos

    (2009), se constitui em referencial do capítulo. Neste se revelam possibilidades abertas

     para a compreensão da favela, ao se adotar como categoria analítica central o  processo

    de produção do espaço, e não a reprodução da força de trabalho. Esta deve ser

    considerada, mas aquela se revela mais rica e determinante, ainda mais quando

    articulada com esta. Tem-se assim uma amostra de como se dá a urbanização dos locais

    “reservados” à classe trabalhadora. O estudo de nossa maior favela permite

    compreender, em seus aspectos gerais, o processo de produção de parte considerável do

    espaço urbano nacional, a peculiar forma de urbanização do Brasil. Neste capítulo,

    também se apresenta a emergência do chamado mercado informal e como impacta a

    ocupação e transformação da favela.

     No terceiro capítulo, problematizo algumas das políticas públicas

    formuladas para fazer frente ao histórico processo de segregação socioespacial a que é

    submetida a classe trabalhadora no Brasil. Ao descrever algumas experiências de

    formação e, posterior, ur  banização de “comunidades pobres”, mostra-se a inocuidade detal iniciativa, sua ineficiência, caso se objetive combater a segregação socioespacial.

    Carlos Nelson Ferreira dos Santos, em seu extraordinário Velhas novidades nos modos

    de urbanização brasileiros (1981a), ao indicar como chave explicativa da força do

    fenômeno de periferização da cidade a relação que se estabelece entre custo zero e custo

    infinito, oferece-nos os instrumentos analíticos que nos permitem compreender os

    Oliveira, em seu Crítica à razão dualista (2003) , não nega a existência do “arcaico”, o que ele nega é sua

    dualidade em relação ao “moderno”. Esta chave ajuda a entender as diferenças entre os espaços dascidades segregadas, contudo a legalidade primeira a ser observada é a das relações sociais de produçãocapitalistas, organizadora da totalidade social.

  • 8/17/2019 Dissertação Martins CD

    14/401

    12

    mecanismos cíclicos de reprodução dos loteamentos periféricos e das favelas. Eles se

    revelam inerentes ao nosso processo de urbanização. Lanço mão da obra de Francisco

    de Oliveira, especialmente  A economia brasileira: crítica à razão dualista (2003) e O

     Estado e o urbano no Brasil (s/d)2, para situar a favela e o loteamento periférico no

     processo histórico de constituição do espaço urbano nacional. Concluo aí que suas

    existências se dão por necessidade histórica, mais precisamente, por necessidade de

    acumulação de capital, imprescindível à industrialização do Brasil. Daí se revelarem

    questionáveis concepções que partem da definição de “exclusão social” ou de “arcaico”

    (de sobrevivência do arcaico). A favela e o loteamento periférico são frutos da

    modernidade. Resultam da necessidade de acumulação de capital num país que se insere

    de determinado modo no mercado mundial e na divisão internacional do trabalho. Eles

    se constituem na forma urbana que possibilita reduzir o custo da força de trabalho e

    urbanizar boa parte do tecido urbano de nossas cidades sem que para tal sejam gastos

    vultosos recursos. Apresentam-se como determinados por nossa particularidade

    histórica. Nesse sentido, é realizada a crítica aos “acadêmicos críticos” que, ao não

    realizarem a crítica resoluta do processo de reprodução e acumulação de capital, não

     percebem que o terrível drama da pobreza urbana foi funcional ao desenvolvimento do

    capitalismo no Brasil.

    Verifica-se, neste momento do processo de desenvolvimento do capitalismo

    no Brasil (ou seja, de seu desenvolvimento industrial e de sua urbanização), um

    fenômeno diferente daquele classicamente apontado pelos diversos autores marxistas

    quanto à análise do processo de desenvolvimento industrial de tipo capitalista nos países

    centrais. A redução, no interior do processo de trabalho, da parte relativa ao trabalho

    necessário não se dá apenas pela introdução de novas técnicas e tecnologias no processo

    de produção dos bens necessários à reprodução da força de trabalho (no caso, a

    habitação); a redução do tempo de trabalho necessário ocorre principalmente pelorebaixamento da qualidade de tais bens. Sendo assim, trata-se sim de produção de mais-

    valia relativa, uma vez que há a diminuição do valor da força de trabalho, portanto, do

    tempo de trabalho necessário. Como se pode deduzir da passagem abaixo, na qual José

    Paulo Netto e Marcelo Braz explicam a produção clássica de mais-valia relativa:

    Quando não dispõem de condições políticas que lhes permitam aampliação da jornada de trabalho, os capitalistas tratam de encontrarmeios e modos de reduzir , no seu interior, a parte relativa ao trabalho

    2 Também publicado em: OLIVEIRA (1982).

  • 8/17/2019 Dissertação Martins CD

    15/401

    13

    necessário: se se mantém um limite para a jornada (por exemplo: oitohoras), o que se reduz no tempo de trabalho necessário se acresce notempo de trabalho excedente. Com essa alternativa, tem-se aprodução de mais valia-relativa. A redução do tempo de trabalhonecessário implica que se reduza o valor da força de trabalho, ou seja,que caia o valor dos bens necessários à sua reprodução (alimentação,vestuário, habitação etc.); esse resultado se obtém com a redução dotempo de trabalho necessário à produção dos bens consumidos pelostrabalhadores, mediante a introdução de inovações tecnológicas e oaproveitamento das conquistas científicas na sua elaboração. Assim, odesenvolvimento das forças produtivas, potenciando a produtividadedo trabalho, contribui para o aumento do tempo de trabalho excedentesem ampliação da jornada  –   e contribui, pois, para o acréscimo doexcedente apropriado pelo capitalista. Compreende-se, então, por queo capitalista, pressionado pela resistência operária a não prolongar a jornada, se interesse pelo desenvolvimento do conjunto das forças produtivas: ele encontra aí mais uma condição para aumentar o

    excedente (NETTO; BRAZ, 2011, p. 109).

    Por conseguinte, na análise da produção de mais-valia relativa, deve-se

    observar a relação entre trabalho necessário e trabalho excedente, com o aumento deste

    sendo resultado da diminuição do valor de força de trabalho. A magnitude da taxa de

    mais-valia (m’) é fornecida pela relação entre trabalho necessário e trabalho excedente;

    tal magnitude “é, decorrentemente, a taxa de exploração do trabalho pelo capital:

    ” (NETTO; BRAZ, 2001, p. 107). No entanto, não se deve identificar taxa de

    mais-valia com taxa de lucro (p): “esta se calcula considerando-se a relação entre mais-

    valia e investimento total de capital (capital constante e capital variável):

    (NETTO; BRAZ, 2011, p. 107).

    Para o caso de incremento tecnológico em determinada indústria, o que

    ocorre não é o aumento da taxa de mais-valia via produção de mais-valia relativa, mas

    sim mais-valia extra resultante não do aumento da exploração da força de trabalho dessa

    indústria, mas de ganho em relação aos concorrentes do mesmo ramo industrial;

     portanto, o industrial inovador se apropria, no momento da distribuição, de um

     percentual que caberia, a princípio, aos capitalistas das indústrias que não realizaram tal

    inovação; assim, no momento da circulação, o capitalista inovador se apropria de um

     percentual maior do total de mais-valia produzida porque seu produto apresenta um

    valor menor:

    O capitalista que aplica o modo de produção aperfeiçoado apropria-se portanto de maior parte da jornada de trabalho para o mais-trabalho do

    que os demais capitalistas no mesmo ramo. Ele faz individualmente oque o capital, na produção da mais-valia relativa, faz em conjunto.

  • 8/17/2019 Dissertação Martins CD

    16/401

    14

    Mas, por outro lado, aquela mais-valia extra desaparece tão logo segeneraliza o novo modo de produção, pois com isso a diferença entreo valor individual das mercadorias produzidas mais baratas e seu valorsocial desvanece. A mesma lei da determinação do valor pelo tempode trabalho, que se fez sentir ao capitalista com o novo método naforma de ter que vender sua mercadoria abaixo de seu valor social,impele seus competidores, como lei coercitiva da concorrência, aaplicar o novo modo de produção. Portanto, o processo inteiro só afetafinalmente a taxa geral de mais-valia se o aumento da força produtivado trabalho atingiu ramos de produção, portanto barateou mercadorias,que entram no círculo dos meios de subsistência necessários econsequentemente constituem elementos do valor da força de trabalho(MARX, 1985d, p. 253).

    Ora, se o processo de produção capitalista na indústria apresenta diferença

    quanto à forma de incremento da produção de mais-valia, sua consequência, ou seja, a

    forma de pauperização será também diferente; mais diretamente, busco chamar atenção

     para o fato de que houve no Brasil (devido à sua peculiar forma de urbanização –  com o

    decisivo papel da favela e do loteamento periférico) um processo de pauperização

    absoluta dos trabalhadores resultante de uma forma também peculiar de incremento da

    mais-valia relativa. O processo, por conseguinte, dá-se de forma diferente do que

    ocorreu nos países clássicos, posto que, no nosso caso, o processo de produção de mais-

    valia relativa não resultou em pauperização relativa, mas sim em pauperização absoluta,

    contrariando a tendência geral:

    Em qualquer dos casos, o que está em questão é o aumento daexploração da força de trabalho. No entanto, do ponto de vista dassuas consequências, essas formas se distinguem: quando o incrementodo excedente se dá através da produção absoluta de mais-valia,verifica-se a tendência a uma  pauperização absoluta dostrabalhadores; quando predomina a produção de mais valia relativa, oque ocorre geralmente é uma pauperização relativa dos trabalhadores –   estes, apesar da exploração, não têm os seus padrões de vidaaviltados (registrando-se, mesmo, ganhos em vários dos itens que

    configuram o seu nível de vida) (NETTO; BRAZ, 2011, p. 110).

    Portanto, em se tratando de crítica marxista, a forma de incremento de mais-

    valia não pode ser analisada por meio de um esquema binário, mas sim examinando

    dialeticamente os elementos do processo, mais exatamente, a forma como se dá a

    relação trabalho necessário/trabalho excedente3. Porém, vale salientar: a explicação

    apresentada do processo transpassado na primeira metade do século XX não pode ser

    3 Como nos ensinam José Paulo Netto e Marcelo Braz, ao explicitarem o exposto por Marx em O Capital. 

  • 8/17/2019 Dissertação Martins CD

    17/401

    15

    reproduzida tal qual para o tempo atual, visto ter se diversificado os lócus das indústrias

    e da própria classe operária4.

    A segunda parte desta dissertação terá como escopo a dimensão teórico-

    metodológica. Por ser considerada a concepção teórica que mais influenciou o

     pensamento crítico acerca do urbano no Brasil, centro minha análise no que considerei o

    melhor de Manuel Castells. Sua teoria acerca do papel do urbano no capitalismo foi

    tomada como pressuposto teórico, metodológico e político por muitos dos “acadêmicos

    críticos” que refletiram acerca do urbano no Brasil. É nesta teoria que se podem

    encontrar os referenciais teóricos que limitaram, na “saída”, a concepção crítica

    hegemônica acerca da compreensão do urbano no Brasil. A análise de suas obras, assim

    como sua crítica (no sentido de sua superação), constitui o quarto capítulo desta

    dissertação. Sua chave analítica fundamental, a saber, a cidade como locus  de

    reprodução da força de trabalho é apresentada e criticada.

     No capítulo quinto, recorro a Marx e Engels para explicar os “mecanismos

    cegos” de promoção da segregação socioespacial. Tomando como base o estudo destes

    autores, compreende-se porque boa parte das políticas públicas formuladas no intuito de

    combater a segregação socioespacial se transforma em seu contrário. Entende-se por

    que a urbanização de certa comunidade resulta na expulsão das camadas mais

     pauperizadas da classe trabalhadora ali residentes. Engels nos revelou, em seu clássico

    Contribuição ao problema da Habitação  (1976), o método de renovação urbana

    utilizado pela burguesia, o “método Haussmann”, no intuito de adequar as cidades ao

    novo momento do desenvolvimento histórico, a saber, o da consolidação das relações

    sociais de produção capitalistas. Ao estudar o processo clássico de renovação urbana

    (Paris), Engels analisou a constituição do preço dos imóveis (ou de seus aluguéis);

    revelou-nos o segredo de sua valorização abrupta. Não obstante, foi Marx, no livro III,

    d’O Capital , quem explicou a constituição da renda da terra. Eis o mistério dasegregação socioespacial, a causa última dos “mecanismos cegos” aqui analisados.

     Neste capítulo, não se trata de apreender particularidades, e sim as relações sociais

    inerentes ao capitalismo, trata-se de apreendê-lo enquanto universalidade.

    Contudo, por considerar insuficiente reduzir o espaço urbano ao locus  de

    reprodução da força de trabalho (Manuel Castells), lanço mão da obra de Henri

    4 Contudo, entendo ser essa relação de exploração (manifestada pela análise da relação entre trabalho

    necessário/trabalho excedente) válida para toda relação capital/trabalho, não somente para o processo de produção industrial; a diferença está na posição ocupada em relação aos momentos de reprodução docapital (produção, circulação, consumo e distribuição).

  • 8/17/2019 Dissertação Martins CD

    18/401

    16

    Lefebvre. Este autor indica outro caminho que possibilita compreender a dinâmica do

    capitalismo, a saber, a reprodução das relações sociais de produção. Entendo ser a

    cotidianidade (analisada por Lefebvre) que gesta as condições necessárias à reprodução

    das relações sociais de produção capitalistas. Outro fenômeno, no entanto, permite a

    reprodução do capital, a saber, a produção do espaço. Neste passo, os estudos de David

    Harvey são imprescindíveis. Esta dissertação também não abdica de aprofundar a

    investigação no que concerne à relação mercado mundial e cidade (e dessa forma

    apreender a contribuição de Henri Lefebvre ao marxismo, à sua capacidade de atualizar-

    se diante do devir histórico). Principalmente, no que diz respeito à produção do espaço e

    distribuição da mais-valia em escala global. Compreender como se dá a produção e

    distribuição da mais valia e como o capitalismo mundializado remodela as cidades

    significa entender as possibilidades, resultantes de novas contradições, abertas às classes

    e frações das classes subalternas em luta pelo direito à cidade, por outro mundo

     possível. Neste capítulo, busca-se relacionar a cidade à totalidade da vida social, ao

    modo de produção capitalista e à complexa sociedade burguesa. Trata-se, aqui, de

    realizar o movimento de aproximação ao todo real em sua complexidade; de relacionar

    a cidade à totalidade da vida social. Eis o sexto capítulo.

  • 8/17/2019 Dissertação Martins CD

    19/401

    17

    INTRODUÇÃO –  questões de método

    A presente dissertação objetiva investigar, por meio da análise de uma pesquisa bibliográfica, os “mecanismos cegos” que promovem a segregação

    socioespacial, a negação do direito à cidade à classe trabalhadora. Tendo em vista, no

    entanto, que esses “mecanismos cegos” não se constituem em entidades místicas,  pois

    são resultantes, no plano do fenômeno, de certa legalidade estruturadora da produção e

    organização do espaço urbano, faz-se necessário apreender as relações sociais

    determinantes. Objetiva-se, portanto, investigar as relações sociais estruturadoras do

    espaço urbano, desvelar o que há por trás dos “mecanismos cegos” que invariavelmente

    transformam conquistas urbanísticas em negação do direito à cidade,  ou seja, num

    contexto de grandes cidades constituídas, em parte considerável de seus territórios, por

    favelas, subúrbios e loteamentos periféricos, constata-se que, ao se promover melhorias

    da infraestrutura urbana (em geral, pelo Estado) numa certa comunidade, ocorre a

    expulsão de seus moradores mais pobres para áreas com menor grau de urbanização,

    transformando a “questão  urbana”  numa problemática quase que insolúvel no Brasil.

    Verifica-se um círculo vicioso em que a política pública, apontada por muitos como o

    meio adequado para fazer frente a essa situação, não consegue superar. Por que as

    tradicionais reivindicações dos movimentos sociais urbanos não encontram na

    intervenção estatal a solução adequada dos problemas que assolam as comunidades por

    eles representadas? Que mecanismos são esses que impedem o avanço de nossas

    cidades? Mais do que isso, que impulsionam o processo de  favelização  dos espaços

    onde vive a classe trabalhadora, fragmenta e esmigalha o espaço urbano, em suma, que

    levam a explosão das cidades em  periferias? Que impõem aos pobres locais em que só

    se identificam vestígios da vida propriamente urbana? Como se manifestam na história

    de nossa República, a qual se confunde com a história de nossa urbanização e

    industrialização, com a da ascensão das relações sociais de produção capitalistas ao

     primeiro plano? Em suma, o presente trabalho busca analisar historicamente esses

    “mecanismos cegos” e, por trás deles (entendendo-os como pertencendo ao plano do

    fenômeno) as relações sociais determinantes (a essência), estruturadoras da realidade

    urbana.

    Os movimentos sociais urbanos no Brasil enfrentam, entre tantos desafios,alguns que põem em risco sua própria existência como movimentos sociais. Como

  • 8/17/2019 Dissertação Martins CD

    20/401

    18

    exemplos, podem-se citar a desintegração e fragmentação das comunidades organizadas

    e a “integração” de suas conquistas (terra ou moradia) nos mecanismos de reprodução

    do capital.

     No caso da “integração” se verifica a “institucionalização” das comunidades

    nos dispositivos de mercado (compra e venda de imóveis, renda proveniente de aluguel)

     por meio de mecanismos que se apresentam em diferentes situações. No caso das

    ocupações de terras urbanas, logo que se configura a possibilidade de conquista da

     posse da terra, observa-se uma inversão dos sinais da luta; começa a atividade de

    compra e venda de “lotes”, par cela dos moradores que lutaram e conquistaram

    coletivamente a posse do terreno tenta vender “sua parte” para terceiros. O que provoca

    uma maior dificuldade para a defesa dessa forma de luta e possibilita a criminalização

    dos movimentos e dos “sem-teto” por parte da mídia, dos proprietários de terrenos e dos

    governos. Estes últimos veem nesses atos uma oportunidade não de negar em absoluto a

    efetivação do direito à moradia, mas sim de integrá-lo com subalternidade, com

    subordinação.

    Outro mecanismo se verifica quando os ocupantes, ao não conquistarem a

     posse do terreno, conseguem que o Estado lhes forneça moradia em conjuntos

    habitacionais. De posse do imóvel, parte dos moradores inicia igual processo de

    “repasse” das moradias.

    Situação diversa se observa em outro momento na vida de uma comunidade;

    quando já “estabelecida” (sem risco de despejo imediato), ela se organiza para

    conseguir “melhorias” quanto à infraestrutura e equipamentos sociais. Quando consegue

    ser atendida, depara-se com uma situação que também põe em questão a atuação dos

    movimentos e inviabiliza a constituição da comunidade. Trata-se, neste caso, da

    chamada “expulsão branca”: o Estado investe significativa quantia na melhoria da

    infraestrutura e dos equipamentos sociais num determinado bairro e esse investimentotem como consequência o aumento do valor da terra, impulsionado pelos mecanismos

    de especulação imobiliária. Os moradores conquistam coletivamente melhores

    condições de vida, porém, no ato da conquista, selam um destino: a retirada mais ou

    menos rápida do local.

    Essa situação se agrava ainda mais quando o Estado, no intuito de alcançar

    sucesso em seu objetivo de “expulsar” as famílias trabalhadoras de áreas valorizadas ou

    a se valorizar, legaliza suas posses, isto é, atribui-lhes valor jurídico, transforma-as em proprietárias. O simples título de propriedade eleva o valor do imóvel, posto que passe a

  • 8/17/2019 Dissertação Martins CD

    21/401

    19

    circular não somente no mercado informal como também no formal, ou seja, expande

    suas possibilidades de uso (valor de uso). Além do que, geralmente, essa transformação

    da natureza jurídica da ocupação dessas áreas é acompanhada de investimentos públicos

    no sentido de promover sua urbanização. Esse modo menos abrupto de promover a

    “expulsão” das famílias tra balhadoras mais pauperizadas é utilizado corriqueira e

    sistematicamente pela burguesia e seu Estado, como chama atenção David Harvey:

    Se há populações de baixa renda em terras de alto valor, uma dasestratégias é dar títulos de propriedade aos moradores dessas áreas,sob o argumento da regularização fundiária e da garantia da moradia. Não sei como isso ocorre no Brasil, mas um dos projetos em favelas, periferias e outras áreas pobres tem sido essa concessão de títulos de propriedades. Porque propriedade o capital pode comprar. Assimcomeça um processo de reocupação dessas áreas e sua consequentegentrificação (HARVEY apud NOBREGA, 2013).

    Porquanto, explicitarei, no decorrer desta dissertação, quão ineficientes são

    as medidas propostas por concepções marcadas pelo compromisso de reformar nossas

    cidades, de nelas integrar a classe trabalhadora. Contudo, o objeto principal de crítica

    não é a concepção teórica que hegemoniza a produção crítica acerca da compreensão do

    urbano no Brasil, mas a própria “ordem do capital”.  Não me limitarei a realizar uma

    crítica estritamente política de suas propostas, almejo demostrar a impossibilidade de

    sua realização. Não obstante, esta dissertação também não deixa de se apresentar como

    uma crítica contra o capital e seu Estado; a crítica exposta aqui não é mais do que um

    meio, que tem na superação das relações sociais capitalistas o seu fim: “A crítica já não

    é fim em si, mas apenas um meio; a indignação é o seu modo essencial de sentimento, e

    a denúncia a sua principal tarefa” (MARX, 1989b, p. 80, grifo do autor).

    As políticas públicas que visam à urbanização de nossas favelas e periferias

    resultam impreterivelmente na expulsão dos mais pobres, na promoção da segregação

    socioespacial. Eis a hipótese que abalizou todo este trabalho. Tal hipótese é constatada

    no estudo do percurso histórico de nossa urbanização; sua veracidade, demonstrada.

    Este trabalho não só a descreve, como a explica. Ao cabo desta dissertação, espero não

    restar dúvidas (em se tratando da luta pelo direito à cidade) de que o mercado e o

    Estado burguês constituem-se em parte substanciosa do problema, de modo algum passa

     por eles a solução de nossos graves problemas propriamente urbanos. Para tanto, do

     ponto de vista metodológico, obriga-se a qualquer estudo do urbano situar seu objeto

    em relação ao todo, à totalidade em toda a sua complexidade. Não sendo aceitável,

  • 8/17/2019 Dissertação Martins CD

    22/401

    20

     portanto, a redução da crítica à “cidade do capital” a um mero inventário de suas

    debilidades sociais, de suas injustiças mais gritantes. A análise exige a apreensão do real

     por meios de conceitos, do desenvolvimento de uma teoria social capaz de apreendê-lo

    em seu movimento, em suas múltiplas determinações:

    A simples descrição do caos ou do mal-estar urbanos, à maneira deuma fenomenologia, não poderia, por outro lado, convir a esse métodoe a essa orientação. Pode-se tratar somente de uma análise,empregando conceitos, desenvolvendo-se em uma teoria, visando àexposição global do processo (LEFEBVRE, 2001, p. 171).

    O estudo da literatura acerca do processo de formação das favelas,

    subúrbios e loteamentos periféricos me levou a seguinte conclusão: foram funcionais ao

     processo de industrialização e urbanização do Brasil. De forma alguma, tratou-se deexclusão (em sentido estrito). Mas sim de espoliação. De um processo que, desde o fim

    da escravidão no Brasil, adotou como pressuposto a segregação socioespacial. Negou à

    massa trabalhadora o acesso ao urbano propriamente, à centralidade, em suma, o direito

    à cidade. Contudo, essa foi a forma que não somente permitiu a indústria (em

    desenvolvimento) pagar baixíssimos salários (visto que o preço da moradia não

    compunha o valor da força de trabalho), mas também foi a forma encontrada para que as

    cidades brasileiras se constituíssem em gigantescas aglomerações urbanas. Isso mesmo,a classe trabalhadora construiu nos “dias de folga”, a maior parte do tecido urbano de

    nossas cidades. Essa foi a forma finalmente encontrada. Lançou-se mão de um grau de

    exploração incomensurável. Portanto, a análise do processo de urbanização brasileira

    não pode deixar de adotar como referencial historiográfico o duplo papel assumido pela

    favela e o loteamento periférico: constituíram-se como espaços mais apropriados para a

    reprodução da força de trabalho ao mais baixo valor possível; e como topos  de um

     processo peculiar de produção do espaço urbano. Processo este que não deixou de gerar

    renda, renda da terra para os proprietários de imóveis que se beneficiaram duplamente:

    com a valorização das áreas centrais em virtude da abertura de avenidas e normatização

    do tipo de atividades que poderiam ser desenvolvidas (sem os cortiços); e com a

    valorização de terras, antes consideradas rurais, urbanizadas seja pelo Estado (em razão

    do poder de mobilização e pressão dos trabalhadores) seja pelos próprios trabalhadores,

    em seus degradantes trabalhos de fim de semana. Este trabalho mostra também como se

    desenvolveu esse duplo processo de exploração da força de trabalho. Dupla exploração

    tão-somente inteligível se relacionada às condições de industrialização e urbanização do

  • 8/17/2019 Dissertação Martins CD

    23/401

    21

    Brasil. A apreensão desse processo somente se mostra inteligível se lançarmos mão do

    materialismo histórico-dialético, uma vez que, a um só tempo, nos permite compreender

    a urbanização enquanto processo histórico5; revela o centro desse processo (o momento

    determinante como sendo o processo de produção, industrial e do espaço urbano  –  nos

    quais o processo de trabalho, portanto, a exploração da força de trabalho pelo capital,

    ocupa papel de destaque); e possibilita apreender o processo de urbanização em sua

    contradição: formação de centros e dispersão em periferias; planejamento urbano e

    fragmentação em propriedades privadas; o trabalho materializado na terra promove sua

    urbanização e, ao elevar o valor da terra, resulta na expulsão das camadas mais

     pauperizadas da classe trabalhadora para áreas ainda mais distantes dos centros urbanos.

    Tal processo se revela desde o início, desde o “bota-a baixo” de Barata Ribeiro (1892-3)

    e da Reforma de Pereira Passos no Rio (1903-6). Seu marco inicial não é outro que a

    destruição do cortiço “Cabeça de porco”  (1893). Eis nosso marco referencial,

    combinado com a Guerra de Canudos (1896-7). Desses dois momentos, aparentemente

    separados, resultaram nossa mais antiga favela e nosso modelo de reforma urbana.

     No entanto, para que os movimentos sociais urbanos possam fazer frente

    aos mecanismos que os enfraquecem, é preciso analisar os meios de reprodução do

    capital. É preciso compreender a essência no processo de reprodução do capital, e não

    na aparência do fenômeno. Esta dissertação se apresenta com o propósito de analisar os

    mecanismos desenvolvidos pelo capitalismo que têm posto em xeque as lutas e a

    existência dos movimentos sociais urbanos.

    Caso não se queira que as políticas sociais se revertam invariavelmente em

    mecanismos de institucionalização, adaptação e negação das classes subalternas como

    sujeito de sua própria história; se não se objetiva reforçar procedimentos que visam o

    controle do cotidiano e, consequentemente, da vida dos indivíduos, é preciso nos

    apropriarmos criticamente de um método e de um conjunto categorial que nos permitaidentificar as estratégias e os interesses de determinadas políticas públicas. A efetivação

    de direitos sociais nos chamados países desenvolvidos revela que, ao mesmo tempo em

    que as classes subalternas conseguem avanços em suas condições de vida, intensifica-se

    o processo de institucionalização e de adequação dessas mesmas classes aos interesses e

    instituições das classes dominantes. O problema desse processo de institucionalização é

    que nele “o Estado tende a se tornar fator de inovação e não o movimento”, como nos

    5  “Não se pode conceber o mundo como um conjunto de coisas acabadas, mas como um conjunto de processos” (ENGELS apud NETTO, 2001, p. 31, grifo do autor).

  • 8/17/2019 Dissertação Martins CD

    24/401

    22

    chamou atenção o jovem Manuel Castells (2000, p. 532), enfraquecendo a organização

    social, retirando seu protagonismo, esvaziando-a, por fim, negando o protagonismo dos

    sujeitos coletivos.

    Como os movimentos sociais urbanos podem fazer frente a esses poderosos

    meios de reprodução do capital que resultam na destruição da vida urbana e na

    segregação socioespacial das classes subalternas? Que orientação prática pode ser

    adotada pelos movimentos sociais urbanos, posto que os mecanismos de reprodução do

    capital não se efetivem por meio da ação de um sujeito social específico, mas de uma

    estratégia que encontra no Estado o núcleo organizador e centralizador necessário a sua

    implementação? Como os movimentos sociais urbanos, articulados com outras forças

    sociais e políticas, podem fazer frente aos mecanismos que promovem a dissociação dos

    elementos constitutivos da vida urbana, ou seja, que as cidades se segreguem ainda mais

    e se precipitem na barbárie, na perda do sentido de vida coletiva?

    O objetivo principal deste trabalho é apreender as causas fundamentais da

    segregação socioespacial, não só aquelas que a análise logo revela quando da crítica da

    intervenção estatal (ou seja, quais frações do capital se beneficiam), como

     principalmente, os “mecanismos cegos” inerentes à reprodução do capital, às relações

    sociais de produção capitalistas. Trata-se, portanto, de apreender, por meio da análise

    histórica e da pesquisa teórica, a legalidade da produção e organização da cidade, assim

    como seu papel em relação ao modo de produção capitalista (em sentido lato).

    Apreende-se, portanto, a cidade como totalidade, mas também como particularidade

    (campo mediador 6); o capitalismo (cuja legalidade é dada pelas relações sociais de

    6 A definição de campo mediador está diretamente ligada ao caráter ontológico da teoria social marxista:não se deve analisar de forma apriorística o real, mas observar concretamente sua constituição (LUKÁCS,1968, p. 113). Conforme Lukács, o exame da particularidade (como mediadora entre o singular e o

    universal) é que permite não incorrer no subjetivismo (em que a singularidade é acentuada) ou nodogmatismo (em que a ênfase recai sobre a universalidade). A particularidade, portanto, é o ponto centralque permite a ligação entre o objetivo e o subjetivo (LUKÁCS, 1968, p. 283-4). Na análise crítica dasociedade, o particular representa “a expressão lógica de mediação entre os homens singulares e asociedade” (LUKÁCS, 1968, p. 93). Para o marxismo, a realidade social apresenta-se em um devirhistórico permanente, contudo, para que esse devir histórico do real seja apreendido pela consciência é preciso que se estabeleça corretamente a dialética do universal e do particular, isso para que se percebamas transformações históricas adotando como base as determinações e contradições intrínsecas ao próprioreal. Cabe à “ciência da história” descrever sem preconceitos esquemáticos e com exatidão, as relaçõesem que o universal e o particular convertem-se um no outro, ou que o universal se dilate e anule o particular, ou que, ao contrário, o anterior particular desenvolva-se a ponto de transforma-se emuniversalidade. Apenas a análise concreta pode perceber as relações da dialética do universal e do particular como contradições concretas do devir do próprio real (LUKÁCS, 1968, p. 92). A dialética do

    universal e do particular, não obstante, somente pode ser apreendida corretamente na análise concreta dasituação concreta: “[...] nele [Marx], trata-se sempre de esclarecer a forma concreta de sua relação, caso por caso, em uma determinada situação social, com respeito a uma determinada relação da estrutura

  • 8/17/2019 Dissertação Martins CD

    25/401

    23

     produção capitalistas) como universalidade; e a sociedade burguesa como totalidade

    mais complexa, como “um complexo constituído por complexos”, isto é, uma totalidade

    concreta “constituída por totalidades de menor complexidade” (NETTO, 2011 , p. 56,

    grifo do autor). Portanto, a análise exige apreender o desenvolvimento da totalidade

    social em sua legalidade7 e historicidade.

    Para tanto, é preciso apropriar-se de instrumentos teóricos e metodológicos

    que possibilitem a apreensão da chamada “questão urbana”. Trata-se, antes de mais, de

    uma exigência da pesquisa, ou seja, faz-se necessário apreender uma teoria e certo

    método de investigação.

    Sendo assim, lanço mão da produção historiográfica, como também da

    estritamente teórica, pois somente assim se pode compreender o desenvolvimento do

    urbano no Brasil em seu devir histórico. Um trabalho desta natureza exige a apreensão

    do urbano em toda sua complexidade: a análise deve ser capaz de estudar essa fração da

    totalidade do real tanto em seu aspecto fenomênico (manifestado na aparência urbana de

    nossas cidades, o conteúdo do urbano), como também em sua essência (ou seja, deve ser

    capaz de compreender as relações sociais determinantes à produção do espaço urbano, à

    forma urbana). Não obstante, exige-se localizar o urbano em relação ao processo de

    reprodução do capital em seus diversos momentos (produção, circulação, consumo e

    distribuição). O que exige compreender a contradição capital/trabalho em relação ao

    espaço urbano, mais precisamente a produção do espaço. Sendo assim, faz-se necessário

    apreender o movimento da forma e do conteúdo da produção do espaço urbano

     brasileiro, com destaque especial para a produção do espaço urbano carioca8. Somente

    relacionando-o à totalidade, é que se pode apreender o papel do Estado em relação à

     produção do espaço urbano e à reprodução da força de trabalho.

    Os limites do Estado, sua conformação enquanto expressão das relações

    sociais capitalistas e da correlação de forças entre as classes e suas frações, assim como

    econômica, como também  –   o que é decisivo  –   de descobrir em que medida e em que direção astransformações históricas modificam esta dialética” (LUKÁCS, 1968, p. 91-2).7 Legalidade no sentido de determinações tendenciais constitutivas, estruturadoras de uma totalidade. Aanálise concreta deve ser capaz de apreender a legalidade de cada totalidade em sua especificidade: “Cabeà análise de cada um dos complexos constitutivos das totalidades esclarecer as tendências que operamespecificamente em cada uma delas” (NETTO, 2011, p. 57).8  Foi na capital de nossa recém-proclamada República e, até então, centro econômico do país que selançou mão pela primeira vez, no Brasil, do método burguês de renovação urbana. Assim como há maisde um século, é na cidade do Rio de Janeiro que se intenta implementar o projeto mais radical eambicioso de reestruturação do espaço urbano no Brasil, de “atualização do tecido urbano” em

    conformação com o “novo” projeto burguês para as cidades. Reestruturação esta decorrente dareestruturação do processo produtivo. Na cidade do Rio de Janeiro também se constituiu não somentenossa mais antiga favela (Providência), como também a maior de nosso país, a Rocinha (IPP, 2013, p.17).

  • 8/17/2019 Dissertação Martins CD

    26/401

    24

    a sua possibilidade em assegurar direitos sociais às massas trabalhadoras, não serão

    analisados direta e sistematicamente nesta dissertação. Em razão dos limites desta

    dissertação, não foi possível tratar, com o necessário rigor, da “questão” do Estado, da

     particularidade da formação social brasileira e dos desafios impostos aos movimentos

    sociais urbanos com o aprofundamento das chamadas renovações urbanas. Por agora,

    trata-se de apreender as relações sociais determinantes ao processo de produção do

    espaço e de reprodução social da vida na cidade.

    O leitor não anseie por encontrar nesta dissertação uma crítica sistemática

    da concepção reformista que balizou a crítica política, acadêmica e militante ao

    desenvolvimento urbano capitalista que promoveu a segregação socioespacial e à

    exploração da força de trabalho no Brasil. Dada a diversidade, multiplicidade e riqueza

    da produção teórica que daí emergiu, adota-se uma posição mais prudente. Realizei,

    quando muito, críticas pontuais. Preocupei-me mais em aprender com alguns de seus

    mais destacados representantes do que em criticá-los. Em muitos casos, seus legados

    são positivos e manifestam valor histórico inegável9. Contudo, não me furtei ao dever

    de ir aos fundamentos, ao estudo daquele que certamente foi o autor que mais

    influenciou o pensamento crítico brasileiro acerca do urbano, a saber, Manuel Castells.

    Ao expor e criticar o melhor de Manuel Castells, ou seja, os aspectos mais ricos e

    sofisticados da concepção teórica por ele formulada10, busquei apresentar ao leitor o

    fulcro do que não à toa influenciou mais de uma geração de pesquisadores brasileiros; e

    que, sem sombra de dúvida, constitui o ponto de partida de boa parte das pesquisas e

    das propostas de políticas públicas formuladas em amplo espectro ideopolítico (da

    chamada extrema esquerda ao centro, de alguns dos elementos mais radicais da classe

    trabalhadora aos mais moderados de nossa classe dominante). Essa concepção

    hegemônica de reforma urbana que orientou as mais diversas pesquisas e lutas em nosso

     país, que formulou o arcabouço ideopolítico que possibilitou o enredamento de boa

    9 “A oposição entre a descrição de uma parte da história e a história como processo unitário não se baseianuma simples diferença de amplitude, como é o caso da distinção entre as histórias particulares e ahistória universal, mas numa oposição entre métodos, uma oposição entre pontos de vista. A questão dacompreensão unitária do processo histórico surge necessariamente com o estudo de cada época e de cadasetor parcial, entre outras coisas. E é aqui que se revela a importância decisiva da concepção dialética datotalidade, pois é inteiramente possível que alguém compreenda e descreva de forma correta os principais pontos de um acontecimento histórico, sem que por isso seja capaz de compreender esse mesmoacontecimento naquilo que ele realmente representa, em sua verdadeira função no interior do conjuntohistórico ao qual pertence, isto é, sem compreendê-la no interior da unidade do processo histórico”

    (LUKÁCS, 2003, p. 82-3).10  De modo algum, centrei-me em seus aspectos e formulações mais questionáveis, certamenteinfluenciadas por sua formação estruturalista.

  • 8/17/2019 Dissertação Martins CD

    27/401

    25

     parte dos movimentos sociais urbanos nas mais diversas e “desempoderadas” 

    conferências políticas realizadas nos grandes centros urbanos e nos confins desse

    imenso país não tem, contudo, neste jovem Castells (como se verá) sua fonte

     justificadora. Dessa ilusão “ participacionista”, a eminente promessa espanhola não

    compartilhava. No entanto, encontra-se em sua produção teórica, o ponto de partida

    teórico-metodológico que possibilitou a conformação dessa concepção hegemônica de

    reforma urbana, crítica ao modo como o Brasil se urbanizou.

    Portanto, busco a superação da concepção hegemônica acerca da

    interpretação e formulação críticas do urbano no Brasil. Conservo seus elementos de

    verdade; mas critico o que considero falso, a saber, seu ponto de partida, seu

    fundamento teórico, em suma, sua chave analítica, a base de todo o seu “edifício

    teórico”.

     Não se trata de modo algum de separar o racional do real, a forma do

    conteúdo. O pensamento dialético exige que se analise o real (móvel, múltiplo, diverso,

    contraditório) em seu “movimento  e em sua vida, mas refletido, ‘informado’, tornado

    claro e consciente”  (LEFEBVRE, 1987, p. 171). A forma não acrescenta nada ao

    conteúdo. Seu estudo não revela o natural ou o humano, o objetivo ou o histórico. Sem

    ela, contudo, não há produto humano, não se concebe história ou sociedade.

    Um esclarecimento se impõe: se utilizo autores de diversos matizes

    ideopolíticos e teórico-metodológicos é porque busco apreender o urbano em seus

    diferentes aspectos, procuro aproximar-me ao máximo do que há de múltiplo neste

    objeto. Não se almeja engrossar as fileiras do ecletismo 11, mas destacar singularidades,

     pinçar detalhes, não se limitar aos aspectos determinantes, não se restringir às grandes

    causas econômicas e sociais; mas também reparar naqueles que, apesar de

    apresentarem-se como relativamente menores, são reveladores de uma época, de um

    momento histórico e de uma tática específica, muitas vezes “cirúrgica”. Afinal, a análisenão revela um sistema (“fechado”), mas necessidades históricas, lutas entre contrários,

    táticas e estratégias, além de ideias e objetivos. A aparência constitui-se em

    manifestação da essência, é partícipe desta; o fenômeno é reflexo12  da essência. Em

    qualquer pesquisa (tratando-se de dialética), o imediato, o fenômeno é o ponto de

     partida; de modo algum, contudo, constitui-se em seu termo (LEFEBVRE, 1987, p.

    11  O que exige referenciar a investigação numa teoria social . Assim, convertem-se em possibilidades

    analíticas e de investigação elementos tematizados por autores de orientações teóricas diversas.12  Reflexo aqui se relaciona a “algo fugaz, transitório, rapidamente negado e superado pela essência mais profunda” (LEFEBVRE, 1987, p. 217).

  • 8/17/2019 Dissertação Martins CD

    28/401

    26

    218). Por isso, o conhecimento teórico exige o estudo do fenômeno e da essência, a

    formulação de uma teoria da essência e do fenômeno. A essência se realiza por meio da

    aparência; sem esta, aquela não toma parte no real (LEFEBVRE, 1987, p. 219). Que não

    reste dúvida: a razão de ser do fenômeno deve ser buscada na essência, e não no

    fenômeno antecedente. No entanto, somente se pode relacionar certo fenômeno à sua

    causa essencial se captadas as mediações; assim se pode compreender esta aparência

    fenomênica como manifestação necessária, em razão de uma causa essencial, a um

    determinado momento do desenvolvimento histórico:

    Por um lado, trata-se, portanto, de destacar os fenômenos de sua formadada como imediata, de encontrar as mediações pelas quais eles podem ser relacionados ao seu núcleo e à sua essência e nela

    compreendidos; por outro, trata-se de compreender o seu caráter e asua aparência de fenômeno, considerada como sua manifestaçãonecessária. Essa forma é necessária em razão de sua essência histórica,do seu desenvolvimento no campo da sociedade capitalista. Essa dupladeterminação, esse reconhecimento e essa superação simultânea do serimediato, constitui justamente a relação dialética (LUKÁCS, 2003, p.75-6).

    O pensamento dialético ascende do imediato ao conceito, aproximando-se

    do real como concreto pensado. Trata-se de um processo de conhecimento que consiste

    em aproximações sucessivas, por meio de conceitos, da representação ideal domovimento do real, nas palavras de Lukács, de “formas do ser, determinação da

    existência” (LUKÁCS, 1979, p. 28).

    Os fenômenos sociais só podem ser compreendidos em suas relações

    recíprocas, sob determinadas relações sociais, em sua totalidade. O conhecimento deve

    compreender tanto o caráter histórico (portanto, transitório) de um fenômeno quanto sua

    função na totalidade social13. Por isso, conclui Lukács, a concepção dialética da

    totalidade é a única a compreender a realidade como devir social.

    13  György Lukács chama atenção para a necessidade de se articular corretamente lógica e história naapreensão do ser social. O grande filósofo marxista recorre a Friedrich Engels para explicitar tal relação.O método lógico não é mais do que a representação (da ordem da consciência) de categorias histórico-sociais (da ordem objetiva da r ealidade), contudo despojado da contingência e da forma histórica: “Nossaexposição parte da posição dos clássicos do marxismo sobre a relação entre lógica e história. Nossaanálise de Marx já indicou de que modo ele concebeu esta conexão. Mas Engels fornece uma síntese palpável dos seus princípios em sua rescensão à Contribuição à crítica da economia política: ‘O únicométodo indicado era o lógico. Mas este não é, na realidade, senão o método histórico, despojado apenasda sua forma histórica e das contingências perturbadoras. Ali onde começa a história deve começar

    também a cadeia do pensamento e o desenvolvimento ulterior desta não será mais do que a imagemreflexa, em forma abstrata e teoricamente consequente, da trajetória histórica; uma imagem reflexacorrigida, mas corrigida de acordo com as leis que fornece a própria trajetória histórica; e assim, cada

  • 8/17/2019 Dissertação Martins CD

    29/401

    27

    A um risco, então, se sujeita esta dissertação: perder-se na imensa massa de

    fatos, de intervenções urbanísticas e de tentativas de interpretá-los. No entanto, esta

    dissertação tem um fio condutor, um ideal se manifesta em todo o seu corpo: ao

    acompanhar traços gerais do processo histórico de produção do espaço urbano brasileiro

    (sem a pretensão de saturá-lo), ao precisar as categorias centrais ao movimento de

    reprodução ideal do real; busco apropriar-me de arcabouço teórico-metodológico,

    necessário à realização da crítica radical da produção e organização do espaço urbano,

    sob o império das relações sociais capitalistas. Afinal, como ensina Lukács, “os fatos só

    se tornam fatos por meio da elaboração de um método” (LUKÁCS , 2003, p. 70). O que

    implica, a um só tempo, aperceber-se das condições de sua superação, desvelar (em toda

    a sua radicalidade) seus aspectos negativos, seus momentos contraditórios. O que exige

    apreender o movimento e sua contradição, desvelar as leis universais e necessárias

    (jamais eternas e imutáveis) balizadoras do real e do pensamento do real; leis a princípio

    abstratas que se revelam concretas ao dar forma ao real, ao movimento do real. Os

    objetos, em contradição, só podem ser compreendidos se entendermos que eles estão

    submetidos a determinadas relações sociais.

    A análise dialética exige que o pensamento se ponha em movimento,

    acompanhe a transição, a passagem do movimento do real, siga o percurso de suas

    etapas. O pensamento, portanto, é “relação  com o real e com suas próprias etapas

     percorridas: pensamento da relação e relações descobertas e, depois, pensadas”

    (LEFEBVRE, 1987, p. 178, grifo do autor). Os processos de análise, a separação dos

    momentos, são “momentos do pensamento vivo” (LEFEBVRE, 1987, p. 178). Se o

     progresso do real ocorre por meio de contradições (elas forçam o movimento),

    tornando-se necessário, ao pensamento, apreendê-las também em seu movimento (posto

    que as próprias contradições igualmente estejam em movimento  –   marcha das

    contradições), faz-se necessário estabelecer a relação entre as contradições; faz-semister descobrir a “relação e a unidade entre elas”, determinar “as contradições em sua

    unidade e o movimento que as atravessa” (LEFEBVRE, 1987, p. 178), em uma frase,

    determinar a unidade dos contraditórios. Isso porque, como afirma Lukács, o próprio

    “desenvolvimento social é uma unidade de contradições, viva e dinâmica, é a

    ininterrupta produção e reprodução destas contradições” (LUKÁCS, 1992a, p. 128).

    fator pode ser estudado no ponto de desenvolvimento em que atingiu sua plena maturidade, sua formaclássica’” (LUKÁCS, 1968, p. 100).

  • 8/17/2019 Dissertação Martins CD

    30/401

    28

    Portanto, as contradições do real devem ser compreendidas em seu desenvolvimento

    histórico.

    Contudo, não se pode deixar de distinguir as contradições principais das

    secundárias, as fundamentais das periféricas, as relações dominantes das subordinadas,

    enfim, o que há de mais e de menos essencial: “relações e manifestações mais ou menos

     profundas da essência” (LEFEBVRE, 1987, p. 218). Para que se apreendam as relações

    determinantes e fundamentais, deve-se captar o fenômeno característico, essencial e ir

    deixando de lado os outros fenômenos. Daí a importância da análise (que divide,

    separa), posto seja o fenômeno “infinitamente mais rico” que a essência: ele a contém

    “e, além dela, a relação com a totalidade do devir (com o movimento inteiro do

    universo)” (LEFEBVRE, 1969, p. 171). Daí a importância fundamental e necessária da

    razão; esta “une, agrupa, esforça-se por encontrar o conjunto e a relação” (LEFEBVRE,

    1987, p. 171). Primeiramente, portanto, distinguem-se “os factos, as formas, os aspectos

    e os momentos dum desenvolvimento”; em seguida, reconstitui-se o conjunto,

    “determinando as ligações internas que existem entre esses elementos” (LEFEBVRE,

    1969, p. 190).

    A história do desenvolvimento da cidade no Brasil, de sua urbanização,

    coincide com a do desenvolvimento de certo modo de produção. A expansão e

    ampliação de suas relações sociais características, induzidas pelo crescimento das forças

     produtivas, marcam o salto qualitativo de nosso devir histórico. As cidades estão no

    epicentro desse processo; elas se constituem em seu locus. Por conseguinte, o estudo da

    cidade encontra no desenvolvimento do processo de reprodução das relações sociais de

     produção capitalistas a sua chave analítica, o segredo de seu devir. Daí se tornar

    necessário um método regressivo-progressivo (MARTINS, 1996), ou seja, que conceba

    o movimento de pesquisa do objeto histórico do presente ao passado (no intuito de

    explorar suas possibilidades), para regressar ao presente (mas enriquecido pela análise econhecimento do momento anterior), sendo capaz de destacar as diferenças e de indicar

    as continuidades, tendo apreendido os saltos históricos e a marcha das contradições. O

    estudo do particular permite ao pensamento reproduzir as transformações do real

     percebendo sua nova especificidade, as características específicas aos distintos

    momentos históricos do desenvolvimento do real14. Permite a ampliação do conceito

    14

     Para Marx, “todo período histórico tem suas próprias leis” (MARX apud NETTO, 2011, p. 24). Daí setornar imprescindível não transpor leis das chamadas ciências naturais  –   que apresentam “certaconstância” (LUKÁCS, 2003, p. 74) –  para a análise da história. O método de análise da história não pode

  • 8/17/2019 Dissertação Martins CD

    31/401

    29

    universal em sua concreticidade. Esse método, intrínseco a noção de formação

    econômico-social, permite compreender não somente o desenvolvimento desigual e as

    “sobrevivências na estrutura capitalista de formações e estruturas anteriores”

    (LEFEBVRE apud MARTINS, 1996, p. 17), como também o que não se constitui como

    tal.

    A favela brasileira, como se tornará claro no decorrer da exposição, não

    representa a sobrevivência do arcaico, do atrasado em nossa formação econômico-

    social, mas, juntamente com o loteamento periférico, constitui parcela significativa da

    forma própria de urbanização do país. A favela e o loteamento periférico foram

    funcionais ao nosso processo de urbanização e industrialização. O capitalismo, aqui,

    deles necessitava para desenvolver-se. A eles reservou a classe trabalhadora em

    formação. A análise da história desvela esse processo em germe e o revela como

    tendência geral de nossa urbanização, como locus das massas trabalhadoras em nossas

    cidades. Não deixando, contudo, de captar o imprevisto, as favelas na Zona Sul do Rio:

    ao mesmo tempo, funcionais (lócos de morada das frações da classe trabalhadora

    empregadas nos chamados serviços15 e na indústria da construção civil) e indesejadas

    deixar de considerar justamente seu caráter social (histórico), ou seja, que a história dos homens difere da

    história natural, visto que fizeram uma e não a outra (MARX, 2004b, p. 08). Marx, por conseguinte, nãose dedica à pesquisa da produção em geral, e sim “da produção em um grau determinado dodesenvolvimento social, da produção de indivíduos sociais”, isto é, “de uma determinada época histórica”(MARX, 2008c, p. 239). Assim, em seu  prefácio da primeira edição d’O Capital , Marx afirma que “afinalidade última desta obra é descobrir a lei econômica do movimento da sociedade moderna” (MARX,1985a, p. 13). Advindo daí consequências revolucionárias no sentido da transformação da ordem socialque claramente motivaram a pesquisa de Marx exposta em O Capital, visto este expressar: “À medida quetal crítica representa, além disso, uma classe, ela só pode representar a classe cuja missão histórica é aderrubada do modo de produção capitalista e a abolição final das classes  –  o proletar iado” (Marx, 1985a, p. 18). Em Marx, a sociedade, ou melhor, os homens organizados em classes sociais são sujeitos dahistória e da teoria que interpreta esta história: “Do mesmo modo que em toda ciência histórica e socialem geral é preciso ter sempre em conta, a propósito do curso das categorias econômicas, que o sujeito,nesse caso, a sociedade burguesa moderna, está dado tanto na realidade efetiva como no cérebro”

    (MARX, 2012a, p. 260-1). Apesar de não fazerem-na conforme sua vontade: “Os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem segundo a sua livre vontade, em circunstâncias escolhidas por eles próprios, mas nas circunstâncias imediatamente encontradas, dadas e transmitidas pelo passado” (MARX,2009b, p. 207). Fazem-na sob determinadas condições, em parte sob o peso de condições herdadas do passado (destacadamente, o grau anterior de desenvolvimento das forças produtivas), mas sobcircunstâncias inteiramente renovadas, ou seja, a estrutura social transformada radicalmente, tratando-sede uma nova totalidade que emergiu da anterior, mas que não se confunde com ela: “A história nada maisé do que o suceder-se de gerações distintas, em que cada uma delas explora os materiais, os capitais e asforças de produção a ela transmitidas pelas gerações anteriores; portanto, por um lado ela continua aatividade anterior sob condições totalmente alteradas e, por outro, modifica com uma atividadecompletamente diferente as antigas condições” (MARX; ENGELS, 2012b, p. 147). Insiste, Marx, que asformações sociais devem ser estudadas em sua realidade concreta (em sua especificidade): não se devetomar uma relação social de produção determinada por uma relação geral, natural e intemporal  –   não

    histórica (MARX, 2004b, p. 64).15 Serviço, na definição de Marx, “nada mais que o efeito útil de um valor de uso, seja da mercadoria, sejado trabalho” (MARX, 1985d, p. 159).

  • 8/17/2019 Dissertação Martins CD

    32/401

    30

    (ao perturbarem a paisagem e a organização espacial planejada para excluírem

    exatamente a classe trabalhadora; este aspecto tido como “inconveniente”, abordado

    como “efeito colateral” momentâneo). O que de modo algum, desobriga-me a afirmar e

    a reiterar que a forma como boa parte desta massa trabalhadora “ganhou a vida” e

    “assegurou sua morada” se deu de modo não propriamente capitalista. No entanto, foi

    funcional ao desenvolvimento do capitalismo. O que estou afirmando é que a favela é

     própria ao modo como o capitalismo se desenvolveu entre nós, à particularidade de

    nossa formação econômico-social. A favela, em específico, não tem nenhuma referência

    no passado, nas formas e estruturas anteriores. A favela e o loteamento periférico se

    constituíram no modo possível de concentração das massas trabalhadoras na cidade,

    conditio sine qua non  para nossa industrialização, visto se tratar de um país de

    industrialização tardia.

    O materialismo histórico-dialético possibilita fazer a distinção, a transição

    de relações dominantes de um espaço para outro, do campo para a cidade. Capta a

    diferença estabelecida entre capital, trabalho e terra nesses dois espaços tão distintos,

    envolvidos em temporalidades outrora tão díspares. Este método revela a intervenção de

     particularidades diferenciadas, portanto, realidades diversas; mas também sua unidade,

    como momentos do mesmo processo de universalização das relações intrínsecas ao

    capitalismo; assim como, as singularidades (as massas trabalhadoras no campo e na

    cidade). Permite, em suma, reconstruir uma história: a história da luta de classes, das

    contradições dela propulsoras. Destarte, é possível compreender cada momento da nossa

    formação econômico-social como um todo, mas um todo que faz parte de um conjunto

    mais amplo, de uma totalidade mais vasta, que se apresenta em um devir histórico

    ininterrupto:

    Para Marx, o desenvolvimento da sociedade e a sua históriaconstituem um todo  (uma ‘totalidade’); mas cada momento dahistória, cada regime ou modo de produção constitui também umconjunto, um todo (ou uma ‘totalidade’) que é necessário estudar emsi mesmo, sem o separar do desenvolvimento total (LEFEBVRE,1969, p. 190, grifo do autor).

    Em se tratando de marxismo, os momentos do todo devem ser analisados

    em seu devir, o momento posterior explica o anterior:

    Assim, a  formação econômico-social   é para Marx um todo, um

    conjunto. O devir é um todo, a tal ponto que os estádios posteriores dodesenvolvimento (e os conceitos que nos permitem conhecê-los)

  • 8/17/2019 Dissertação Martins CD

    33/401

    31

    esclarecem os momentos precedentes (LEFEBVRE, 1969, p. 192,grifo do autor).

    Contudo, mais um esclarecimento se faz necessário: não se trata ainda, nesta

    dissertação, de uma exposição, ou seja, de uma reprodução ideal do movimento real do

    todo concreto (síntese de muitas determinações); em linguagem marxista, não se lançou

    mão do método de exposição, nos rigorosos termos definidos por Marx (1985b, p. 20).

    Isso por um motivo, que se impõe como obstáculo do qual não se pode desviar, a saber,

    não se alcançou ainda o urbano em toda a sua complexidade, como um “todo concreto”

    (LEFEBVRE, 1969, p. 191); a pesquisa impõe sua continuidade.

    O pensamento dialético inicia quando se começa a formular conceitos

    capazes de representar idealmente o real. Sendo assim, o momento da análise exige o

    movimento do imediato, do fenômeno ainda pobre em determinações à descoberta das

    relações essenciais (diferenciando as menos das mais essenciais); do todo caótico aos

    conceitos mais simples, do concreto idealizado (pobre em determinações) a “abstrações

    mais tênues até atingirmos determinações as mais simples” (MARX, 2012a, p. 254).

    Chamo atenção do leitor para o movimento no processo de análise: vai da

    “representação caótica do todo” às abstrações mais débeis; destas se busca atingir as

    determinações as mais simples. O movimento do pensamento vai do singular ao

    universal, e deste retorna ao singular (LUKÁCS, 1968, p. 109). Posto que, como

    esclarece Lenin, por um lado, o “universal só existe no singular, através do singular” e,

     por outro lado, “todo singular é (de um modo ou de outro) universal” (LUKÁCS, 1968,

     p. 109).

    O  pensamento dialético (rigoroso, “cientificamente exato”) exige que o

     pensamento realize o movimento de retorno, do abstrato ao concreto, do particular ao

    geral, do encadeamento lógico das categorias as mais simples às mais complexas. Isso

     porque o “concreto é concreto porque é a síntese de muitas determinações, isto é,

    unidade do diverso”  (MARX, 2012a, p. 255). Tão-somente assim, pode-se superar a

    “representação caótica de um todo” e alcançar a representação ideal de uma “rica

    totalidade de determinações e relações diversas” (MARX, 2012a, p. 254), diferenciando

    as fundamentais das secundárias.

    Essa maneira de proceder do pensamento, que se eleva do abstrato ao

    concreto, consiste no método rigoroso e correto que permite ao pensamento se apropriar

    do concreto. Tão-somente assim, pode-se, em seguida, reproduzi-lo como concreto pensado. Do seguinte modo, Marx resume o movimento do pensamento:

  • 8/17/2019 Dissertação Martins CD

    34/401

    32

     No primeiro método, a representação plena volatiliza-se emdeterminações abstratas, no segundo, as determinações abstratasconduzem à reprodução do concreto por meio do pensamento(MARX, 2012a, p. 255).

     No entanto, adverte Marx que de “modo nenhum” o processo da gênese do próprio concreto coincide com o processo do segundo método. O próprio processo de

     produção do real é o ponto de partida efetivo do processo de formação do concreto.

    Contudo, para que ele possa ser apreendido pelos homens, faz-se necessário lançar mão

    de um método. Afinal, como ensina Marx (2008b, p. 1080), “toda ciência seria

    supérflua se houvesse coincidência imediata entre a aparência e a essência das coisas” 16.

    Método este que tão-somente pode ser concebido como sendo intrínseco ao objeto,

    formulado a partir do próprio objeto. Não se trata de “aplicar ” categorias formuladas a priori, de constituir um rol de definições (de “operar ” por definições), de apegar-se a

    um conjunto de regras formais (NETTO, 2011, p. 52). O método, desenvolvido desde

    Marx, extrai as categorias do movimento social real: “as categorias exprimem portanto

    formas de modo de ser, determinações de existência” (MARX, 2012a, p. 261). Cada

    totalidade deve ser apreendida em sua especificidade, suas tendências constitutivas lhes

    são próprias, do contrário não se trataria de uma totalidade: “as tendências operantes

    numa totalidade lhe são peculiares e não podem ser transladadas diretamente a outras

    totalidades” (NETTO, 2011, p. 56).

    Por conseguinte, se o estudo da cidade como espaço da luta de classes

    somente pode ser aprendido em sua essência por meio de uma concepção teórico-

    metodológico, esta deve ser concebida tomando como referência o próprio objeto:

    16 Exclusivamente a título de ilustração, chamo atenção para a importância do método dialético para a

    compreensão do que ocorre atualmente em nossas cidades. Mais precisamente, refiro-me a um tema emvoga e amplamente discutido, em todas as esquinas, pontos de encontro e concentração espalhados portodo o país, pelas mais diferentes classes e camadas sociais, a saber, as chamadas obras da Copa. A princípio, passa-se para o cidadão comum a informação de que vultosos volumes de recursos públicosestão sendo “mal investidos” em obras, exigidas pela FIFA, cujo “legado” é questionável. Os númerosrealmente impressionam: apenas com o “custo dos estádios”, estimativa oficial aponta que serão gastosR$ 8,9 bilhões, bem acima dos R$ 2,6 bilhões previstos no primeiro levantamento técnico elaborado pelaFIFA em 2007 (CHADE, 2014). Ora, isso é só a aparência do que realmente ocorre. No decorrer destadissertação (apesar da Copa do Mundo e suas contestações não se constituírem em objeto deste trabalho),almejo que o leitor se convença de que tais investimentos têm muito pouco a ver com a realização de umevento pontual (ainda que se trate de um “megaevento”). Passados alguns anos, “todos” se darão contadisso. Contudo, verifica-se, ainda hoje, que boa parte dos movimentos contestatórios (no mais amploespectro político) continua a lutar co