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8/17/2019 Dissertação Martins CD
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
RAPHAEL MARTINS DE MARTINS
“ENTRE O PENSAR E O VIVER”: um estudo sobre a cidade como espaço estratégico
da luta de classes
RIO DE JANEIRO
2014
8/17/2019 Dissertação Martins CD
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Raphael Martins de Martins
“ENTRE O PENSAR E O VIVER”: um estudo sobre a cidade como espaço estratégicoda luta de classes
01 Volume
Dissertação de Mestrado apresentada aoPrograma de Pós-Graduação da Escola de
Serviço Social da Universidade Federal do Riode Janeiro como requisito parcial à obtençãodo título de Mestre em Serviço Social.
Orientador: Prof. Dr. Mauro Luís Iasi
Rio de Janeiro2014
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Raphael Martins de Martins
“ENTRE O PENSAR E O VIVER”: um estudo sobre a cidade como espaço estratégico
da luta de classes
Dissertação de Mestrado apresentada aoPrograma de Pós-Graduação da Escola deServiço Social da Universidade Federal do Riode Janeiro como requisito parcial à obtençãodo título de Mestre em Serviço Social.
Aprovada em: 14/04/2014
_________________________________________Prof. Dr. Mauro Luís Iasi (UFRJ)
_________________________________________Prof. Dr. Emérito José Paulo Netto (UFRJ)
_________________________________________Profa. Dra. Sônia Lúcio Rodrigues de Lima (UFF)
_________________________________________
Profa. Dra. Maria Helena Rauta Ramos (UFRJ)
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RESUMO
MARTINS, Raphael Martins de. “Entre o pensar e o viver”: um estudo sobre a cidade
como espaço estratégico da luta de classes. Rio de Janeiro, 2014. Dissertação (Mestrado
em Serviço Social) – Escola de Serviço Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Rio de Janeiro, 2014.
Esta dissertação visa apreender os “mecanismos cegos” de reprodução
ininterrupta da segregação socioespacial, ou seja, as causas econômicas determinantes, e
as relações sociais determinantes do processo de produção do espaço no modo de
produção capitalista. Lançando mão do materialismo histórico-dialético, busca-seapreender tais causas tanto em sua legalidade quanto em sua manifestação histórica,
apreendendo, portanto, sua peculiaridade. A análise de momentos determinantes da
produção capitalista do espaço no Brasil, destacadamente do espaço “reservado” aos
trabalhadores pobres, por meio de pesquisa bibliográfica, permitiu não só desvelar os
intitulados “mecanismos cegos”, como também compreender o papel histórico
desempenhado pelo Estado, no sentido de sua promoção. Decididamente a atuação do
Estado burguês fortalece o processo de segregação socioespacial, não se justificando, portanto, a insistência de movimentos sociais urbanos e “ pesquisadores críticos” em
depositar no aparelho estatal suas esperanças e energias no sentido da transformação de
nosso “quadro urbano”, por demais alarmante. Por revelar que a contradição fundante
da segregação socioespacial não é outra que aquela determinante ao modo de produção
capitalista em sua totalidade, qual seja: a contradição entre a produção social e a
apropriação privada (cujo núcleo central é a contradição capital/trabalho), este trabalho
revela também a causa fundamental do processo de segregação socioespacial e as
condições de sua superação, assim como seu sujeito. Daí se revelar ser a cidade o
espaço estratégico da luta de classes.
Palavras-chave: Direito à cidade. Produção do espaço. Segregação socioespacial.
Reforma urbana. Movimentos sociais urbanos.
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RÉSUMÉ
MARTINS, Raphael Martins de. “Entre la pensée e la vie”: un étude sur la ville
comme un espace stratégique de la lutte des classes. Rio de Janeiro, 2014. Memoire
(Master en Service Social) – Ecole de Service Social, Université Fédérale de Rio de
Janeiro, 2014.
Ce travail vise à capturer les “mécanismes aveugles” de reproduction
ininterromptue de la ségregation socio-spatiale, c´est à dire, les causes économiques
determinantes, et les rapports sociaux déterminants du processus de production de
l’espace dans le mode de production capitaliste. Quand on adopte le matérialismehistorique-dialectique, on cherche à appréhender telles causes, et à la fois sa “légalité”
et sa manifestation historique, en montrant ainsi sa spécificité. L’ analyse des moments
determinants de la production capitaliste de l’espace dans le Brésil, et en particulier de
l’espace “reservé” aux travailleurs pauvres, à traves la recherche bibliographique, a
permis de réveler non seulement les “mécanismes aveugles”, mais aussi de comprendre
le rôle historique joué par l’Etat, au sens de sa promotion. C'est certain, le rôle de l’Etat
bourgeois renforce le processus de ségregation socio-spatiale; par consequence on ne justifie pas l’insistence des mouvements sociaux urbains et “chercheurs critiques” en
mettent leurs esperances et leurs energies dans l' appareil d'Etat, dans le sense de la
transfomation du “cadre urbain” trop alarmant. Ce travail démontre que la contradiction
à l’origine de la ségrégation socio-spatiale n’est autre que celle déterminante au mode
de production capitaliste dans sa totalité, quelqu’elle soit : la contradiction entre la
production sociale et l’appropriation privée (dont le noyau central est la contradiction
capital/travail). Cette dissertation révéle également la cause fondamentale du processus
de ségrégation socio-spatiale et les conditions de leur surmonté, aussi bien que leur
sujet. A partir de là, la ville se révéle comme l’espace stratégique de la lutte des classes.
Mots-clés: Droit à la ville. Production de l'espace. Ségrégation socio-spatiale. Réforme
urbaine. Mouvements sociaux urbains.
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SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO 09INTRODUÇÃO – questões de método 17
PRIMEIRA PARTE – um inventário do fenômeno 39
1 Do risco a que correm nossas cidades 39
2 A formação da favela da Rocinha ou a pesquisa 72
de um espaço urbano singular a partir da produção do espaço
3 Da formação ininterrupta da periferia e da favela e de sua 103
funcionalidade ao processo de industrialização e urbanização
capitalista do Brasil
SEGUNDA PARTE – chaves analíticas para o estudo da cidade: em busca 139
da essência ou das determinações primeiras da segregação socioespacial e
da explosão urbana
4 A centralidade do consumo nas proposições sobre o urbano de 145
Manuel Castells ou a insuperável superação da
segregação socioespacial
5 O quiproquó da espoliação urbana: a renda fundiária urbana 205
6 Henri Lefebvre: da teoria da produção do espaço ao direito à cidade 247
CONSIDERAÇÕES FINAIS 364
REFERÊNCIAS 375
FONTES 395
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AGRADECIMENTOS
Nestes longos dias dedicados a elaboração deste trabalho de dissertação não
foram poucos aqueles que gentilmente me estenderam a mão. Desde minha família e
meus antigos camaradas do Ceará, aos novos amigos feitos nesta imensa e tão sedutora
quanto cruel cidade do Rio de Janeiro. Minha gratidão, especialmente:
Ao meu pai (Israel) e irmãos (Hilário, Pavla e Talma) que apoiaram material
e afetivamente as idas e vindas deste “cabra” que estuda o urbano, mas se emociona
com a volta para o sertão. Especialmente à minha mãe (Fátima) que, além de tudo,
compartilhou e apoiou cotidianamente, ainda que de longe, meus estudos e minha
estadia no Rio e em Castelhanos.
À Carol que comigo viveu estes últimos anos e compartilhou sua vida,
praticando o verdadeiro significado da palavra companheirismo. Que leu meu trabalho
por muitas vezes, procurou textos, estudou comigo e me apoiou de todas as formas
possíveis. Que ajudou a suportar o peso destes dias marcados pelo isolamento e pela
dúvida.
Ao meu orientador e camarada Mauro Luís Iasi que acreditou no meu
trabalho, no meu “método” de pesquisa e me concedeu toda a liberdade para que
perseguisse caótico e intuitivamente meu objeto. E, assim, ao me perder pelas tortuosas
veredas da vida e da teoria, me encontrasse. E porque sem a profundidade e radicalidade
de seu pensamento, de nossas sessões peripatéticas e, principalmente, sem sua paciência
e generosa disponibilidade em sanar minhas dúvidas no momento mesmo em que
surgiam, esta dissertação não seria possível.
À minha amiga Maria Helena Rauta Ramos que fraternalmente me acolheu
em sua casa (na bela praia de Castelhanos) e me abriu as portas de sua vida. Que me
introduziu nos estudos acerca da dinâmica da renda fundiária definida em O Capital ena crítica a Manuel Castells. Que realizou uma crítica precisa ao meu próprio
posicionamento diante daqueles que eu pretendia superar.
A José Paulo Netto que, desde o primeiro momento, apoiou e sustentou a
importância e validade teórico-política desta dissertação. Pela leitura atenta, a
camaradagem e pelo muito que com ele aprendi.
À minha amiga Adelaide Gonçalves que varou noites corrigindo textos
meus quando tentava introduzir-me nas pesquisas acadêmicas, que sempre me apoiou e praticou comigo a mais autêntica camaradagem.
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Aos amigos da “comunidade”, sempre solícitos e compreensivos (Sâmbara,
Magda, Anna, Veronique, Silvia, Dani e Pedro). Que me apoiaram, comigo debateram
assuntos mil de modo entusiasmado e irônico e que me acolheram quando o processo de
anomia social desta imensa cidade me ameaçava liquidar.
Aos meus amigos e camaradas que compreenderam minha ausência e
sempre me apoiaram: Mônica, Cezar, Emmanuel, Michael, Roger, Talita, Marcos,
Ercilia, Manu, Gabriel e Daiane. A estes o meu coração ainda agradece e clama, não só
pelo que fizemos, e sim, principalmente, pelo que ainda podemos fazer juntos.
Aos amigos que me motivaram e muito contribuíram ainda no processo
preparatório para a seleção de mestrado: João Pedro Stédile, Renato Roseno, Marildo
Menegat, Ítalo, Paula, Yazid e Josi.
Àqueles que me receberam no Rio ainda em meus primeiros meses: Beth,
Gabriela, Vinícius e Scheilla.
Aos meus amigos e companheiros de longa data, Vanda, Misael, Elvira,
Raquel, Marta e Regina que ajudaram a suportar estes anos difíceis.
Ao professor Expedito Passos que me introduziu nos estudos do método
marxista e com quem muito aprendi.
Ao meu primo Martins que me mostrou a miséria e as injustiças na Rocinha
e que praticou comigo a velha solidariedade nordestina, compartilhada pelos
conterrâneos que se encontram na cidade grande, longe de casa.
Aos sempre solícitos e lutadores servidores da UFRJ, destacadamente
Fernanda e Fábio.
Às professoras Sara Granemann e Sônia Lúcio, exemplos de resistência
radical e impenitente, que, com suas observações perspicazes, ajudaram-me a romper
limites.
A Rodrigo e Felippe, novos amigos e companheiros nesta luta (que tambémé teórica) por outro mundo possível.
A todos os companheiros da Unidade Classista – luta por moradia, do
Movimento dos Conselhos Populares (MCP), do Movimento dos Trabalhadores Rurais
Sem Terra (MST) e do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST). Ao grito de
rebeldia da Comuna 17 de Abril. Aos camaradas que reconstroem de forma
revolucionária nosso “operador político”.
Por fim, agradeço o apoio material recebido do CNPq e da FAPERJ, sem oqual não seria possível a elaboração deste trabalho.
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Parte da sociedade exige da outra um tributo pelo direitode habitar a terra, pois de modo geral na propriedadefundiária se inclui o direito do proprietário de explorar osolo, as entranhas da terra, o ar e, por conseguinte, o queserve para conservar e desenvolver a vida.
Karl Marx, O Capital (2008b).
Os indivíduos considerados isoladamente apenas
formam uma classe na medida em que se veemobrigados a sustentar uma luta comum contra outraclasse, pois de outro modo eles mesmos se enfrentamuns aos outros, hostilmente, no terreno da concorrência.
Karl Marx e Friedrich Engels,A Ideologia Alemã (2007).
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APRESENTAÇÃO
O esforço dedicado à pesquisa e elaboração deste trabalho é motivado pelo
desejo de contribuir com o necessário processo de “reformulação” e de “reorganização”dos movimentos sociais urbanos no Brasil. Partiu-se de uma suposição: a crise dos
movimentos sociais urbanos se deve não só aos obstáculos encontrados em seu
desenvolvimento, como também à sua própria conformação. Portanto, a teoria que
fundamentou a concepção hegemônica, que balizou e contribuiu para dar forma a tais
movimentos no Brasil teve um peso e, por conseguinte, responsabilidade sobre o seu
devir.
Como não poderia deixar de ser, em se tratando de um estudo no campo domarxismo, introduzo este trabalho com considerações acerca do método de apreensão
do real, na tentativa de realizar a aproximação ao objeto da pesquisa. Valho-me,
especialmente, de Marx e de Engels, de alguns de seus mais destacados intérpretes, qual
seja, György Lukács e Henri Lefebvre, assim como do excelente trabalho escrito pelo
professor José Paulo Netto (2011).
Na primeira parte desta dissertação, trata-se de um inventário do fenômeno,
isto é, da crise urbana, da manifestação particular da “questão social” no que dizrespeito à produção capitalista da cidade no Brasil; ou seja, almeja-se, por meio de
pesquisa bibliográfica de autores, dos mais diversos matizes, apreender o objeto em sua
manifestação histórica, em sua forma aparente.
Na segunda parte, contudo, busca-se, por meio, principalmente, da
apropriação de autores clássicos, apreender as determinações (essenciais) que enformam
a chamada “questão urbana”. Ou seja, lança-se mão de conceitos que permitem, não
descrever singularidades históricas, mas explicar a crise urbana; que possibilitem
desvelar as determinações fundantes da produção social da cidade no capitalismo.
Por entender que a segregação socioespacial se constitui na principal
expressão da negação do direito à cidade, naquilo que leva à sua explosão (e, em
decorrência, pode mergulhar a humanidade numa nova crise civilizatória manifestada
historicamente na forma de barbárie), adoto como “fio condutor” deste trabalho a busca
pela apreensão de como se conforma a segregação socioespacial no Brasil (seus
determinantes), tanto em sua aparência como em sua essência, em sua historicidade e
legalidade.
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No intuito de se alcançar os objetivos do presente estudo, foi realizada
pesquisa de caráter bibliográfico, lançando-se mão, para o empreendimento de análise
histórica e teórica de fenômenos relacionados ao tema central deste estudo, da análise de
conteúdo das obras elencadas; e documental, ao valer-se de publicações oficiais
provenientes de órgãos diretamente vinculados ao “aparelho estatal”. Realizou-se
pesquisa de natureza qualitativa, tendo em vista a análise e o encadeamento dialético
dos determinantes sociais do processo de produção capitalista do espaço, objetivando
apreendê-lo em sua legalidade e em seu movimento, por meio da apropriação de
conceitos que expressem de modo sintético o real.
Pormenorizando, na primeira parte desta dissertação, situo grandes linhas de
investigação acerca da luta por transformações urbanas no Brasil, adotando como ponto
de partida o balanço realizado por Ermínia Maricato em seu O impasse da política
urbana no Brasil (2011), e, compreendendo que o grande risco pelo qual passam as
nossas maiores cidades é o de sua quase completa favelização ou periferização, entendo
necessário recuar no tempo, ao ato inicial de formação da favela. O trabalho
historiográfico de Sidney Chalhoub, Cidade Febril – cortiços e epidemias na corte
imperial (2006), indica o caminho. Eis o primeiro capítulo. Nele se apresentam dados
de realidade, descreve-se a situação de nossas cidades, na tentativa de quantificar a
grandeza de nossos problemas; dimensiona-se e situa-se no tempo e no espaço o nosso
drama urbano.
Assim, inicio o inventário pelo balanço realizado por aquela que entendo ter
sido a mais destacada ideóloga da concepção hegemônica do chamado “movimento pela
reforma urbana no Brasil”. Exponho, para o leitor, o essencial do balanço realizado por
Ermínia Maricato tanto porque não o considero falso en tout (pois contribui na
elaboração do inventário), como porque acredito se tornar mais claro para o leitor
porque esta concepção não pode contribuir teoricamente com o processo de tomada deconsciência, por parte dos movimentos sociais urbanos, dos principais obstáculos à
efetivação do direito à cidade, posto que este referencial ideológico não desvele as reais
causas (determinações) da segregação socioespacial. Ao substituir a análise das relações
capitalistas (ou seja, da legalidade do modo capitalista de produção) pela crítica dualista
do processo de produção dos espaços de residência da classe trabalhadora1, Maricato (e
1
Manifestada, como chama atenção Maria Helena Rauta Ramos (informação verbal), em sua chaveinterpretativa: cidade legal versus cidade ilegal, cidade formal versus cidade informal. Não se trata,contudo, de negar o uso desta chave, mas sim de não considerá-la central, assim como Francisco de
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todos aqueles que com ela comungam) imerge de tal modo nos aspectos jurídicos,
técnicos e políticos que não mais lhe é possível apreender a essência do processo,
condena-se à crítica do aparente. Almejo, com isso, preservar o que esta concepção
apresenta de verdadeiro, de real. Busco, contudo, ultrapassar seus limites. Recorro,
assim, a uma frutífera conduta da tradição marxista (desde O capital), na qual não se
realiza a crítica apriorística de autores predecessores ou divergentes, mas se busca,
lançando mão de um método, superá-los.
No segundo capítulo, apresento o processo histórico de produção da
moradia na Rocinha em sua relação com a produção da cidade e o tratamento que lhe é
dispensado pelo Estado em diferentes momentos históricos. A excelente pesquisa de
Gerônimo Leitão, Dos barracos de madeira aos prédios de quitinetes: uma análise do
processo de produção da moradia na favela da Rocinha, ao longo de cinquenta anos
(2009), se constitui em referencial do capítulo. Neste se revelam possibilidades abertas
para a compreensão da favela, ao se adotar como categoria analítica central o processo
de produção do espaço, e não a reprodução da força de trabalho. Esta deve ser
considerada, mas aquela se revela mais rica e determinante, ainda mais quando
articulada com esta. Tem-se assim uma amostra de como se dá a urbanização dos locais
“reservados” à classe trabalhadora. O estudo de nossa maior favela permite
compreender, em seus aspectos gerais, o processo de produção de parte considerável do
espaço urbano nacional, a peculiar forma de urbanização do Brasil. Neste capítulo,
também se apresenta a emergência do chamado mercado informal e como impacta a
ocupação e transformação da favela.
No terceiro capítulo, problematizo algumas das políticas públicas
formuladas para fazer frente ao histórico processo de segregação socioespacial a que é
submetida a classe trabalhadora no Brasil. Ao descrever algumas experiências de
formação e, posterior, ur banização de “comunidades pobres”, mostra-se a inocuidade detal iniciativa, sua ineficiência, caso se objetive combater a segregação socioespacial.
Carlos Nelson Ferreira dos Santos, em seu extraordinário Velhas novidades nos modos
de urbanização brasileiros (1981a), ao indicar como chave explicativa da força do
fenômeno de periferização da cidade a relação que se estabelece entre custo zero e custo
infinito, oferece-nos os instrumentos analíticos que nos permitem compreender os
Oliveira, em seu Crítica à razão dualista (2003) , não nega a existência do “arcaico”, o que ele nega é sua
dualidade em relação ao “moderno”. Esta chave ajuda a entender as diferenças entre os espaços dascidades segregadas, contudo a legalidade primeira a ser observada é a das relações sociais de produçãocapitalistas, organizadora da totalidade social.
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mecanismos cíclicos de reprodução dos loteamentos periféricos e das favelas. Eles se
revelam inerentes ao nosso processo de urbanização. Lanço mão da obra de Francisco
de Oliveira, especialmente A economia brasileira: crítica à razão dualista (2003) e O
Estado e o urbano no Brasil (s/d)2, para situar a favela e o loteamento periférico no
processo histórico de constituição do espaço urbano nacional. Concluo aí que suas
existências se dão por necessidade histórica, mais precisamente, por necessidade de
acumulação de capital, imprescindível à industrialização do Brasil. Daí se revelarem
questionáveis concepções que partem da definição de “exclusão social” ou de “arcaico”
(de sobrevivência do arcaico). A favela e o loteamento periférico são frutos da
modernidade. Resultam da necessidade de acumulação de capital num país que se insere
de determinado modo no mercado mundial e na divisão internacional do trabalho. Eles
se constituem na forma urbana que possibilita reduzir o custo da força de trabalho e
urbanizar boa parte do tecido urbano de nossas cidades sem que para tal sejam gastos
vultosos recursos. Apresentam-se como determinados por nossa particularidade
histórica. Nesse sentido, é realizada a crítica aos “acadêmicos críticos” que, ao não
realizarem a crítica resoluta do processo de reprodução e acumulação de capital, não
percebem que o terrível drama da pobreza urbana foi funcional ao desenvolvimento do
capitalismo no Brasil.
Verifica-se, neste momento do processo de desenvolvimento do capitalismo
no Brasil (ou seja, de seu desenvolvimento industrial e de sua urbanização), um
fenômeno diferente daquele classicamente apontado pelos diversos autores marxistas
quanto à análise do processo de desenvolvimento industrial de tipo capitalista nos países
centrais. A redução, no interior do processo de trabalho, da parte relativa ao trabalho
necessário não se dá apenas pela introdução de novas técnicas e tecnologias no processo
de produção dos bens necessários à reprodução da força de trabalho (no caso, a
habitação); a redução do tempo de trabalho necessário ocorre principalmente pelorebaixamento da qualidade de tais bens. Sendo assim, trata-se sim de produção de mais-
valia relativa, uma vez que há a diminuição do valor da força de trabalho, portanto, do
tempo de trabalho necessário. Como se pode deduzir da passagem abaixo, na qual José
Paulo Netto e Marcelo Braz explicam a produção clássica de mais-valia relativa:
Quando não dispõem de condições políticas que lhes permitam aampliação da jornada de trabalho, os capitalistas tratam de encontrarmeios e modos de reduzir , no seu interior, a parte relativa ao trabalho
2 Também publicado em: OLIVEIRA (1982).
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necessário: se se mantém um limite para a jornada (por exemplo: oitohoras), o que se reduz no tempo de trabalho necessário se acresce notempo de trabalho excedente. Com essa alternativa, tem-se aprodução de mais valia-relativa. A redução do tempo de trabalhonecessário implica que se reduza o valor da força de trabalho, ou seja,que caia o valor dos bens necessários à sua reprodução (alimentação,vestuário, habitação etc.); esse resultado se obtém com a redução dotempo de trabalho necessário à produção dos bens consumidos pelostrabalhadores, mediante a introdução de inovações tecnológicas e oaproveitamento das conquistas científicas na sua elaboração. Assim, odesenvolvimento das forças produtivas, potenciando a produtividadedo trabalho, contribui para o aumento do tempo de trabalho excedentesem ampliação da jornada – e contribui, pois, para o acréscimo doexcedente apropriado pelo capitalista. Compreende-se, então, por queo capitalista, pressionado pela resistência operária a não prolongar a jornada, se interesse pelo desenvolvimento do conjunto das forças produtivas: ele encontra aí mais uma condição para aumentar o
excedente (NETTO; BRAZ, 2011, p. 109).
Por conseguinte, na análise da produção de mais-valia relativa, deve-se
observar a relação entre trabalho necessário e trabalho excedente, com o aumento deste
sendo resultado da diminuição do valor de força de trabalho. A magnitude da taxa de
mais-valia (m’) é fornecida pela relação entre trabalho necessário e trabalho excedente;
tal magnitude “é, decorrentemente, a taxa de exploração do trabalho pelo capital:
” (NETTO; BRAZ, 2001, p. 107). No entanto, não se deve identificar taxa de
mais-valia com taxa de lucro (p): “esta se calcula considerando-se a relação entre mais-
valia e investimento total de capital (capital constante e capital variável):
”
(NETTO; BRAZ, 2011, p. 107).
Para o caso de incremento tecnológico em determinada indústria, o que
ocorre não é o aumento da taxa de mais-valia via produção de mais-valia relativa, mas
sim mais-valia extra resultante não do aumento da exploração da força de trabalho dessa
indústria, mas de ganho em relação aos concorrentes do mesmo ramo industrial;
portanto, o industrial inovador se apropria, no momento da distribuição, de um
percentual que caberia, a princípio, aos capitalistas das indústrias que não realizaram tal
inovação; assim, no momento da circulação, o capitalista inovador se apropria de um
percentual maior do total de mais-valia produzida porque seu produto apresenta um
valor menor:
O capitalista que aplica o modo de produção aperfeiçoado apropria-se portanto de maior parte da jornada de trabalho para o mais-trabalho do
que os demais capitalistas no mesmo ramo. Ele faz individualmente oque o capital, na produção da mais-valia relativa, faz em conjunto.
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Mas, por outro lado, aquela mais-valia extra desaparece tão logo segeneraliza o novo modo de produção, pois com isso a diferença entreo valor individual das mercadorias produzidas mais baratas e seu valorsocial desvanece. A mesma lei da determinação do valor pelo tempode trabalho, que se fez sentir ao capitalista com o novo método naforma de ter que vender sua mercadoria abaixo de seu valor social,impele seus competidores, como lei coercitiva da concorrência, aaplicar o novo modo de produção. Portanto, o processo inteiro só afetafinalmente a taxa geral de mais-valia se o aumento da força produtivado trabalho atingiu ramos de produção, portanto barateou mercadorias,que entram no círculo dos meios de subsistência necessários econsequentemente constituem elementos do valor da força de trabalho(MARX, 1985d, p. 253).
Ora, se o processo de produção capitalista na indústria apresenta diferença
quanto à forma de incremento da produção de mais-valia, sua consequência, ou seja, a
forma de pauperização será também diferente; mais diretamente, busco chamar atenção
para o fato de que houve no Brasil (devido à sua peculiar forma de urbanização – com o
decisivo papel da favela e do loteamento periférico) um processo de pauperização
absoluta dos trabalhadores resultante de uma forma também peculiar de incremento da
mais-valia relativa. O processo, por conseguinte, dá-se de forma diferente do que
ocorreu nos países clássicos, posto que, no nosso caso, o processo de produção de mais-
valia relativa não resultou em pauperização relativa, mas sim em pauperização absoluta,
contrariando a tendência geral:
Em qualquer dos casos, o que está em questão é o aumento daexploração da força de trabalho. No entanto, do ponto de vista dassuas consequências, essas formas se distinguem: quando o incrementodo excedente se dá através da produção absoluta de mais-valia,verifica-se a tendência a uma pauperização absoluta dostrabalhadores; quando predomina a produção de mais valia relativa, oque ocorre geralmente é uma pauperização relativa dos trabalhadores – estes, apesar da exploração, não têm os seus padrões de vidaaviltados (registrando-se, mesmo, ganhos em vários dos itens que
configuram o seu nível de vida) (NETTO; BRAZ, 2011, p. 110).
Portanto, em se tratando de crítica marxista, a forma de incremento de mais-
valia não pode ser analisada por meio de um esquema binário, mas sim examinando
dialeticamente os elementos do processo, mais exatamente, a forma como se dá a
relação trabalho necessário/trabalho excedente3. Porém, vale salientar: a explicação
apresentada do processo transpassado na primeira metade do século XX não pode ser
3 Como nos ensinam José Paulo Netto e Marcelo Braz, ao explicitarem o exposto por Marx em O Capital.
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reproduzida tal qual para o tempo atual, visto ter se diversificado os lócus das indústrias
e da própria classe operária4.
A segunda parte desta dissertação terá como escopo a dimensão teórico-
metodológica. Por ser considerada a concepção teórica que mais influenciou o
pensamento crítico acerca do urbano no Brasil, centro minha análise no que considerei o
melhor de Manuel Castells. Sua teoria acerca do papel do urbano no capitalismo foi
tomada como pressuposto teórico, metodológico e político por muitos dos “acadêmicos
críticos” que refletiram acerca do urbano no Brasil. É nesta teoria que se podem
encontrar os referenciais teóricos que limitaram, na “saída”, a concepção crítica
hegemônica acerca da compreensão do urbano no Brasil. A análise de suas obras, assim
como sua crítica (no sentido de sua superação), constitui o quarto capítulo desta
dissertação. Sua chave analítica fundamental, a saber, a cidade como locus de
reprodução da força de trabalho é apresentada e criticada.
No capítulo quinto, recorro a Marx e Engels para explicar os “mecanismos
cegos” de promoção da segregação socioespacial. Tomando como base o estudo destes
autores, compreende-se porque boa parte das políticas públicas formuladas no intuito de
combater a segregação socioespacial se transforma em seu contrário. Entende-se por
que a urbanização de certa comunidade resulta na expulsão das camadas mais
pauperizadas da classe trabalhadora ali residentes. Engels nos revelou, em seu clássico
Contribuição ao problema da Habitação (1976), o método de renovação urbana
utilizado pela burguesia, o “método Haussmann”, no intuito de adequar as cidades ao
novo momento do desenvolvimento histórico, a saber, o da consolidação das relações
sociais de produção capitalistas. Ao estudar o processo clássico de renovação urbana
(Paris), Engels analisou a constituição do preço dos imóveis (ou de seus aluguéis);
revelou-nos o segredo de sua valorização abrupta. Não obstante, foi Marx, no livro III,
d’O Capital , quem explicou a constituição da renda da terra. Eis o mistério dasegregação socioespacial, a causa última dos “mecanismos cegos” aqui analisados.
Neste capítulo, não se trata de apreender particularidades, e sim as relações sociais
inerentes ao capitalismo, trata-se de apreendê-lo enquanto universalidade.
Contudo, por considerar insuficiente reduzir o espaço urbano ao locus de
reprodução da força de trabalho (Manuel Castells), lanço mão da obra de Henri
4 Contudo, entendo ser essa relação de exploração (manifestada pela análise da relação entre trabalho
necessário/trabalho excedente) válida para toda relação capital/trabalho, não somente para o processo de produção industrial; a diferença está na posição ocupada em relação aos momentos de reprodução docapital (produção, circulação, consumo e distribuição).
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Lefebvre. Este autor indica outro caminho que possibilita compreender a dinâmica do
capitalismo, a saber, a reprodução das relações sociais de produção. Entendo ser a
cotidianidade (analisada por Lefebvre) que gesta as condições necessárias à reprodução
das relações sociais de produção capitalistas. Outro fenômeno, no entanto, permite a
reprodução do capital, a saber, a produção do espaço. Neste passo, os estudos de David
Harvey são imprescindíveis. Esta dissertação também não abdica de aprofundar a
investigação no que concerne à relação mercado mundial e cidade (e dessa forma
apreender a contribuição de Henri Lefebvre ao marxismo, à sua capacidade de atualizar-
se diante do devir histórico). Principalmente, no que diz respeito à produção do espaço e
distribuição da mais-valia em escala global. Compreender como se dá a produção e
distribuição da mais valia e como o capitalismo mundializado remodela as cidades
significa entender as possibilidades, resultantes de novas contradições, abertas às classes
e frações das classes subalternas em luta pelo direito à cidade, por outro mundo
possível. Neste capítulo, busca-se relacionar a cidade à totalidade da vida social, ao
modo de produção capitalista e à complexa sociedade burguesa. Trata-se, aqui, de
realizar o movimento de aproximação ao todo real em sua complexidade; de relacionar
a cidade à totalidade da vida social. Eis o sexto capítulo.
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INTRODUÇÃO – questões de método
A presente dissertação objetiva investigar, por meio da análise de uma pesquisa bibliográfica, os “mecanismos cegos” que promovem a segregação
socioespacial, a negação do direito à cidade à classe trabalhadora. Tendo em vista, no
entanto, que esses “mecanismos cegos” não se constituem em entidades místicas, pois
são resultantes, no plano do fenômeno, de certa legalidade estruturadora da produção e
organização do espaço urbano, faz-se necessário apreender as relações sociais
determinantes. Objetiva-se, portanto, investigar as relações sociais estruturadoras do
espaço urbano, desvelar o que há por trás dos “mecanismos cegos” que invariavelmente
transformam conquistas urbanísticas em negação do direito à cidade, ou seja, num
contexto de grandes cidades constituídas, em parte considerável de seus territórios, por
favelas, subúrbios e loteamentos periféricos, constata-se que, ao se promover melhorias
da infraestrutura urbana (em geral, pelo Estado) numa certa comunidade, ocorre a
expulsão de seus moradores mais pobres para áreas com menor grau de urbanização,
transformando a “questão urbana” numa problemática quase que insolúvel no Brasil.
Verifica-se um círculo vicioso em que a política pública, apontada por muitos como o
meio adequado para fazer frente a essa situação, não consegue superar. Por que as
tradicionais reivindicações dos movimentos sociais urbanos não encontram na
intervenção estatal a solução adequada dos problemas que assolam as comunidades por
eles representadas? Que mecanismos são esses que impedem o avanço de nossas
cidades? Mais do que isso, que impulsionam o processo de favelização dos espaços
onde vive a classe trabalhadora, fragmenta e esmigalha o espaço urbano, em suma, que
levam a explosão das cidades em periferias? Que impõem aos pobres locais em que só
se identificam vestígios da vida propriamente urbana? Como se manifestam na história
de nossa República, a qual se confunde com a história de nossa urbanização e
industrialização, com a da ascensão das relações sociais de produção capitalistas ao
primeiro plano? Em suma, o presente trabalho busca analisar historicamente esses
“mecanismos cegos” e, por trás deles (entendendo-os como pertencendo ao plano do
fenômeno) as relações sociais determinantes (a essência), estruturadoras da realidade
urbana.
Os movimentos sociais urbanos no Brasil enfrentam, entre tantos desafios,alguns que põem em risco sua própria existência como movimentos sociais. Como
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exemplos, podem-se citar a desintegração e fragmentação das comunidades organizadas
e a “integração” de suas conquistas (terra ou moradia) nos mecanismos de reprodução
do capital.
No caso da “integração” se verifica a “institucionalização” das comunidades
nos dispositivos de mercado (compra e venda de imóveis, renda proveniente de aluguel)
por meio de mecanismos que se apresentam em diferentes situações. No caso das
ocupações de terras urbanas, logo que se configura a possibilidade de conquista da
posse da terra, observa-se uma inversão dos sinais da luta; começa a atividade de
compra e venda de “lotes”, par cela dos moradores que lutaram e conquistaram
coletivamente a posse do terreno tenta vender “sua parte” para terceiros. O que provoca
uma maior dificuldade para a defesa dessa forma de luta e possibilita a criminalização
dos movimentos e dos “sem-teto” por parte da mídia, dos proprietários de terrenos e dos
governos. Estes últimos veem nesses atos uma oportunidade não de negar em absoluto a
efetivação do direito à moradia, mas sim de integrá-lo com subalternidade, com
subordinação.
Outro mecanismo se verifica quando os ocupantes, ao não conquistarem a
posse do terreno, conseguem que o Estado lhes forneça moradia em conjuntos
habitacionais. De posse do imóvel, parte dos moradores inicia igual processo de
“repasse” das moradias.
Situação diversa se observa em outro momento na vida de uma comunidade;
quando já “estabelecida” (sem risco de despejo imediato), ela se organiza para
conseguir “melhorias” quanto à infraestrutura e equipamentos sociais. Quando consegue
ser atendida, depara-se com uma situação que também põe em questão a atuação dos
movimentos e inviabiliza a constituição da comunidade. Trata-se, neste caso, da
chamada “expulsão branca”: o Estado investe significativa quantia na melhoria da
infraestrutura e dos equipamentos sociais num determinado bairro e esse investimentotem como consequência o aumento do valor da terra, impulsionado pelos mecanismos
de especulação imobiliária. Os moradores conquistam coletivamente melhores
condições de vida, porém, no ato da conquista, selam um destino: a retirada mais ou
menos rápida do local.
Essa situação se agrava ainda mais quando o Estado, no intuito de alcançar
sucesso em seu objetivo de “expulsar” as famílias trabalhadoras de áreas valorizadas ou
a se valorizar, legaliza suas posses, isto é, atribui-lhes valor jurídico, transforma-as em proprietárias. O simples título de propriedade eleva o valor do imóvel, posto que passe a
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circular não somente no mercado informal como também no formal, ou seja, expande
suas possibilidades de uso (valor de uso). Além do que, geralmente, essa transformação
da natureza jurídica da ocupação dessas áreas é acompanhada de investimentos públicos
no sentido de promover sua urbanização. Esse modo menos abrupto de promover a
“expulsão” das famílias tra balhadoras mais pauperizadas é utilizado corriqueira e
sistematicamente pela burguesia e seu Estado, como chama atenção David Harvey:
Se há populações de baixa renda em terras de alto valor, uma dasestratégias é dar títulos de propriedade aos moradores dessas áreas,sob o argumento da regularização fundiária e da garantia da moradia. Não sei como isso ocorre no Brasil, mas um dos projetos em favelas, periferias e outras áreas pobres tem sido essa concessão de títulos de propriedades. Porque propriedade o capital pode comprar. Assimcomeça um processo de reocupação dessas áreas e sua consequentegentrificação (HARVEY apud NOBREGA, 2013).
Porquanto, explicitarei, no decorrer desta dissertação, quão ineficientes são
as medidas propostas por concepções marcadas pelo compromisso de reformar nossas
cidades, de nelas integrar a classe trabalhadora. Contudo, o objeto principal de crítica
não é a concepção teórica que hegemoniza a produção crítica acerca da compreensão do
urbano no Brasil, mas a própria “ordem do capital”. Não me limitarei a realizar uma
crítica estritamente política de suas propostas, almejo demostrar a impossibilidade de
sua realização. Não obstante, esta dissertação também não deixa de se apresentar como
uma crítica contra o capital e seu Estado; a crítica exposta aqui não é mais do que um
meio, que tem na superação das relações sociais capitalistas o seu fim: “A crítica já não
é fim em si, mas apenas um meio; a indignação é o seu modo essencial de sentimento, e
a denúncia a sua principal tarefa” (MARX, 1989b, p. 80, grifo do autor).
As políticas públicas que visam à urbanização de nossas favelas e periferias
resultam impreterivelmente na expulsão dos mais pobres, na promoção da segregação
socioespacial. Eis a hipótese que abalizou todo este trabalho. Tal hipótese é constatada
no estudo do percurso histórico de nossa urbanização; sua veracidade, demonstrada.
Este trabalho não só a descreve, como a explica. Ao cabo desta dissertação, espero não
restar dúvidas (em se tratando da luta pelo direito à cidade) de que o mercado e o
Estado burguês constituem-se em parte substanciosa do problema, de modo algum passa
por eles a solução de nossos graves problemas propriamente urbanos. Para tanto, do
ponto de vista metodológico, obriga-se a qualquer estudo do urbano situar seu objeto
em relação ao todo, à totalidade em toda a sua complexidade. Não sendo aceitável,
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portanto, a redução da crítica à “cidade do capital” a um mero inventário de suas
debilidades sociais, de suas injustiças mais gritantes. A análise exige a apreensão do real
por meios de conceitos, do desenvolvimento de uma teoria social capaz de apreendê-lo
em seu movimento, em suas múltiplas determinações:
A simples descrição do caos ou do mal-estar urbanos, à maneira deuma fenomenologia, não poderia, por outro lado, convir a esse métodoe a essa orientação. Pode-se tratar somente de uma análise,empregando conceitos, desenvolvendo-se em uma teoria, visando àexposição global do processo (LEFEBVRE, 2001, p. 171).
O estudo da literatura acerca do processo de formação das favelas,
subúrbios e loteamentos periféricos me levou a seguinte conclusão: foram funcionais ao
processo de industrialização e urbanização do Brasil. De forma alguma, tratou-se deexclusão (em sentido estrito). Mas sim de espoliação. De um processo que, desde o fim
da escravidão no Brasil, adotou como pressuposto a segregação socioespacial. Negou à
massa trabalhadora o acesso ao urbano propriamente, à centralidade, em suma, o direito
à cidade. Contudo, essa foi a forma que não somente permitiu a indústria (em
desenvolvimento) pagar baixíssimos salários (visto que o preço da moradia não
compunha o valor da força de trabalho), mas também foi a forma encontrada para que as
cidades brasileiras se constituíssem em gigantescas aglomerações urbanas. Isso mesmo,a classe trabalhadora construiu nos “dias de folga”, a maior parte do tecido urbano de
nossas cidades. Essa foi a forma finalmente encontrada. Lançou-se mão de um grau de
exploração incomensurável. Portanto, a análise do processo de urbanização brasileira
não pode deixar de adotar como referencial historiográfico o duplo papel assumido pela
favela e o loteamento periférico: constituíram-se como espaços mais apropriados para a
reprodução da força de trabalho ao mais baixo valor possível; e como topos de um
processo peculiar de produção do espaço urbano. Processo este que não deixou de gerar
renda, renda da terra para os proprietários de imóveis que se beneficiaram duplamente:
com a valorização das áreas centrais em virtude da abertura de avenidas e normatização
do tipo de atividades que poderiam ser desenvolvidas (sem os cortiços); e com a
valorização de terras, antes consideradas rurais, urbanizadas seja pelo Estado (em razão
do poder de mobilização e pressão dos trabalhadores) seja pelos próprios trabalhadores,
em seus degradantes trabalhos de fim de semana. Este trabalho mostra também como se
desenvolveu esse duplo processo de exploração da força de trabalho. Dupla exploração
tão-somente inteligível se relacionada às condições de industrialização e urbanização do
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Brasil. A apreensão desse processo somente se mostra inteligível se lançarmos mão do
materialismo histórico-dialético, uma vez que, a um só tempo, nos permite compreender
a urbanização enquanto processo histórico5; revela o centro desse processo (o momento
determinante como sendo o processo de produção, industrial e do espaço urbano – nos
quais o processo de trabalho, portanto, a exploração da força de trabalho pelo capital,
ocupa papel de destaque); e possibilita apreender o processo de urbanização em sua
contradição: formação de centros e dispersão em periferias; planejamento urbano e
fragmentação em propriedades privadas; o trabalho materializado na terra promove sua
urbanização e, ao elevar o valor da terra, resulta na expulsão das camadas mais
pauperizadas da classe trabalhadora para áreas ainda mais distantes dos centros urbanos.
Tal processo se revela desde o início, desde o “bota-a baixo” de Barata Ribeiro (1892-3)
e da Reforma de Pereira Passos no Rio (1903-6). Seu marco inicial não é outro que a
destruição do cortiço “Cabeça de porco” (1893). Eis nosso marco referencial,
combinado com a Guerra de Canudos (1896-7). Desses dois momentos, aparentemente
separados, resultaram nossa mais antiga favela e nosso modelo de reforma urbana.
No entanto, para que os movimentos sociais urbanos possam fazer frente
aos mecanismos que os enfraquecem, é preciso analisar os meios de reprodução do
capital. É preciso compreender a essência no processo de reprodução do capital, e não
na aparência do fenômeno. Esta dissertação se apresenta com o propósito de analisar os
mecanismos desenvolvidos pelo capitalismo que têm posto em xeque as lutas e a
existência dos movimentos sociais urbanos.
Caso não se queira que as políticas sociais se revertam invariavelmente em
mecanismos de institucionalização, adaptação e negação das classes subalternas como
sujeito de sua própria história; se não se objetiva reforçar procedimentos que visam o
controle do cotidiano e, consequentemente, da vida dos indivíduos, é preciso nos
apropriarmos criticamente de um método e de um conjunto categorial que nos permitaidentificar as estratégias e os interesses de determinadas políticas públicas. A efetivação
de direitos sociais nos chamados países desenvolvidos revela que, ao mesmo tempo em
que as classes subalternas conseguem avanços em suas condições de vida, intensifica-se
o processo de institucionalização e de adequação dessas mesmas classes aos interesses e
instituições das classes dominantes. O problema desse processo de institucionalização é
que nele “o Estado tende a se tornar fator de inovação e não o movimento”, como nos
5 “Não se pode conceber o mundo como um conjunto de coisas acabadas, mas como um conjunto de processos” (ENGELS apud NETTO, 2001, p. 31, grifo do autor).
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chamou atenção o jovem Manuel Castells (2000, p. 532), enfraquecendo a organização
social, retirando seu protagonismo, esvaziando-a, por fim, negando o protagonismo dos
sujeitos coletivos.
Como os movimentos sociais urbanos podem fazer frente a esses poderosos
meios de reprodução do capital que resultam na destruição da vida urbana e na
segregação socioespacial das classes subalternas? Que orientação prática pode ser
adotada pelos movimentos sociais urbanos, posto que os mecanismos de reprodução do
capital não se efetivem por meio da ação de um sujeito social específico, mas de uma
estratégia que encontra no Estado o núcleo organizador e centralizador necessário a sua
implementação? Como os movimentos sociais urbanos, articulados com outras forças
sociais e políticas, podem fazer frente aos mecanismos que promovem a dissociação dos
elementos constitutivos da vida urbana, ou seja, que as cidades se segreguem ainda mais
e se precipitem na barbárie, na perda do sentido de vida coletiva?
O objetivo principal deste trabalho é apreender as causas fundamentais da
segregação socioespacial, não só aquelas que a análise logo revela quando da crítica da
intervenção estatal (ou seja, quais frações do capital se beneficiam), como
principalmente, os “mecanismos cegos” inerentes à reprodução do capital, às relações
sociais de produção capitalistas. Trata-se, portanto, de apreender, por meio da análise
histórica e da pesquisa teórica, a legalidade da produção e organização da cidade, assim
como seu papel em relação ao modo de produção capitalista (em sentido lato).
Apreende-se, portanto, a cidade como totalidade, mas também como particularidade
(campo mediador 6); o capitalismo (cuja legalidade é dada pelas relações sociais de
6 A definição de campo mediador está diretamente ligada ao caráter ontológico da teoria social marxista:não se deve analisar de forma apriorística o real, mas observar concretamente sua constituição (LUKÁCS,1968, p. 113). Conforme Lukács, o exame da particularidade (como mediadora entre o singular e o
universal) é que permite não incorrer no subjetivismo (em que a singularidade é acentuada) ou nodogmatismo (em que a ênfase recai sobre a universalidade). A particularidade, portanto, é o ponto centralque permite a ligação entre o objetivo e o subjetivo (LUKÁCS, 1968, p. 283-4). Na análise crítica dasociedade, o particular representa “a expressão lógica de mediação entre os homens singulares e asociedade” (LUKÁCS, 1968, p. 93). Para o marxismo, a realidade social apresenta-se em um devirhistórico permanente, contudo, para que esse devir histórico do real seja apreendido pela consciência é preciso que se estabeleça corretamente a dialética do universal e do particular, isso para que se percebamas transformações históricas adotando como base as determinações e contradições intrínsecas ao próprioreal. Cabe à “ciência da história” descrever sem preconceitos esquemáticos e com exatidão, as relaçõesem que o universal e o particular convertem-se um no outro, ou que o universal se dilate e anule o particular, ou que, ao contrário, o anterior particular desenvolva-se a ponto de transforma-se emuniversalidade. Apenas a análise concreta pode perceber as relações da dialética do universal e do particular como contradições concretas do devir do próprio real (LUKÁCS, 1968, p. 92). A dialética do
universal e do particular, não obstante, somente pode ser apreendida corretamente na análise concreta dasituação concreta: “[...] nele [Marx], trata-se sempre de esclarecer a forma concreta de sua relação, caso por caso, em uma determinada situação social, com respeito a uma determinada relação da estrutura
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produção capitalistas) como universalidade; e a sociedade burguesa como totalidade
mais complexa, como “um complexo constituído por complexos”, isto é, uma totalidade
concreta “constituída por totalidades de menor complexidade” (NETTO, 2011 , p. 56,
grifo do autor). Portanto, a análise exige apreender o desenvolvimento da totalidade
social em sua legalidade7 e historicidade.
Para tanto, é preciso apropriar-se de instrumentos teóricos e metodológicos
que possibilitem a apreensão da chamada “questão urbana”. Trata-se, antes de mais, de
uma exigência da pesquisa, ou seja, faz-se necessário apreender uma teoria e certo
método de investigação.
Sendo assim, lanço mão da produção historiográfica, como também da
estritamente teórica, pois somente assim se pode compreender o desenvolvimento do
urbano no Brasil em seu devir histórico. Um trabalho desta natureza exige a apreensão
do urbano em toda sua complexidade: a análise deve ser capaz de estudar essa fração da
totalidade do real tanto em seu aspecto fenomênico (manifestado na aparência urbana de
nossas cidades, o conteúdo do urbano), como também em sua essência (ou seja, deve ser
capaz de compreender as relações sociais determinantes à produção do espaço urbano, à
forma urbana). Não obstante, exige-se localizar o urbano em relação ao processo de
reprodução do capital em seus diversos momentos (produção, circulação, consumo e
distribuição). O que exige compreender a contradição capital/trabalho em relação ao
espaço urbano, mais precisamente a produção do espaço. Sendo assim, faz-se necessário
apreender o movimento da forma e do conteúdo da produção do espaço urbano
brasileiro, com destaque especial para a produção do espaço urbano carioca8. Somente
relacionando-o à totalidade, é que se pode apreender o papel do Estado em relação à
produção do espaço urbano e à reprodução da força de trabalho.
Os limites do Estado, sua conformação enquanto expressão das relações
sociais capitalistas e da correlação de forças entre as classes e suas frações, assim como
econômica, como também – o que é decisivo – de descobrir em que medida e em que direção astransformações históricas modificam esta dialética” (LUKÁCS, 1968, p. 91-2).7 Legalidade no sentido de determinações tendenciais constitutivas, estruturadoras de uma totalidade. Aanálise concreta deve ser capaz de apreender a legalidade de cada totalidade em sua especificidade: “Cabeà análise de cada um dos complexos constitutivos das totalidades esclarecer as tendências que operamespecificamente em cada uma delas” (NETTO, 2011, p. 57).8 Foi na capital de nossa recém-proclamada República e, até então, centro econômico do país que selançou mão pela primeira vez, no Brasil, do método burguês de renovação urbana. Assim como há maisde um século, é na cidade do Rio de Janeiro que se intenta implementar o projeto mais radical eambicioso de reestruturação do espaço urbano no Brasil, de “atualização do tecido urbano” em
conformação com o “novo” projeto burguês para as cidades. Reestruturação esta decorrente dareestruturação do processo produtivo. Na cidade do Rio de Janeiro também se constituiu não somentenossa mais antiga favela (Providência), como também a maior de nosso país, a Rocinha (IPP, 2013, p.17).
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a sua possibilidade em assegurar direitos sociais às massas trabalhadoras, não serão
analisados direta e sistematicamente nesta dissertação. Em razão dos limites desta
dissertação, não foi possível tratar, com o necessário rigor, da “questão” do Estado, da
particularidade da formação social brasileira e dos desafios impostos aos movimentos
sociais urbanos com o aprofundamento das chamadas renovações urbanas. Por agora,
trata-se de apreender as relações sociais determinantes ao processo de produção do
espaço e de reprodução social da vida na cidade.
O leitor não anseie por encontrar nesta dissertação uma crítica sistemática
da concepção reformista que balizou a crítica política, acadêmica e militante ao
desenvolvimento urbano capitalista que promoveu a segregação socioespacial e à
exploração da força de trabalho no Brasil. Dada a diversidade, multiplicidade e riqueza
da produção teórica que daí emergiu, adota-se uma posição mais prudente. Realizei,
quando muito, críticas pontuais. Preocupei-me mais em aprender com alguns de seus
mais destacados representantes do que em criticá-los. Em muitos casos, seus legados
são positivos e manifestam valor histórico inegável9. Contudo, não me furtei ao dever
de ir aos fundamentos, ao estudo daquele que certamente foi o autor que mais
influenciou o pensamento crítico brasileiro acerca do urbano, a saber, Manuel Castells.
Ao expor e criticar o melhor de Manuel Castells, ou seja, os aspectos mais ricos e
sofisticados da concepção teórica por ele formulada10, busquei apresentar ao leitor o
fulcro do que não à toa influenciou mais de uma geração de pesquisadores brasileiros; e
que, sem sombra de dúvida, constitui o ponto de partida de boa parte das pesquisas e
das propostas de políticas públicas formuladas em amplo espectro ideopolítico (da
chamada extrema esquerda ao centro, de alguns dos elementos mais radicais da classe
trabalhadora aos mais moderados de nossa classe dominante). Essa concepção
hegemônica de reforma urbana que orientou as mais diversas pesquisas e lutas em nosso
país, que formulou o arcabouço ideopolítico que possibilitou o enredamento de boa
9 “A oposição entre a descrição de uma parte da história e a história como processo unitário não se baseianuma simples diferença de amplitude, como é o caso da distinção entre as histórias particulares e ahistória universal, mas numa oposição entre métodos, uma oposição entre pontos de vista. A questão dacompreensão unitária do processo histórico surge necessariamente com o estudo de cada época e de cadasetor parcial, entre outras coisas. E é aqui que se revela a importância decisiva da concepção dialética datotalidade, pois é inteiramente possível que alguém compreenda e descreva de forma correta os principais pontos de um acontecimento histórico, sem que por isso seja capaz de compreender esse mesmoacontecimento naquilo que ele realmente representa, em sua verdadeira função no interior do conjuntohistórico ao qual pertence, isto é, sem compreendê-la no interior da unidade do processo histórico”
(LUKÁCS, 2003, p. 82-3).10 De modo algum, centrei-me em seus aspectos e formulações mais questionáveis, certamenteinfluenciadas por sua formação estruturalista.
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parte dos movimentos sociais urbanos nas mais diversas e “desempoderadas”
conferências políticas realizadas nos grandes centros urbanos e nos confins desse
imenso país não tem, contudo, neste jovem Castells (como se verá) sua fonte
justificadora. Dessa ilusão “ participacionista”, a eminente promessa espanhola não
compartilhava. No entanto, encontra-se em sua produção teórica, o ponto de partida
teórico-metodológico que possibilitou a conformação dessa concepção hegemônica de
reforma urbana, crítica ao modo como o Brasil se urbanizou.
Portanto, busco a superação da concepção hegemônica acerca da
interpretação e formulação críticas do urbano no Brasil. Conservo seus elementos de
verdade; mas critico o que considero falso, a saber, seu ponto de partida, seu
fundamento teórico, em suma, sua chave analítica, a base de todo o seu “edifício
teórico”.
Não se trata de modo algum de separar o racional do real, a forma do
conteúdo. O pensamento dialético exige que se analise o real (móvel, múltiplo, diverso,
contraditório) em seu “movimento e em sua vida, mas refletido, ‘informado’, tornado
claro e consciente” (LEFEBVRE, 1987, p. 171). A forma não acrescenta nada ao
conteúdo. Seu estudo não revela o natural ou o humano, o objetivo ou o histórico. Sem
ela, contudo, não há produto humano, não se concebe história ou sociedade.
Um esclarecimento se impõe: se utilizo autores de diversos matizes
ideopolíticos e teórico-metodológicos é porque busco apreender o urbano em seus
diferentes aspectos, procuro aproximar-me ao máximo do que há de múltiplo neste
objeto. Não se almeja engrossar as fileiras do ecletismo 11, mas destacar singularidades,
pinçar detalhes, não se limitar aos aspectos determinantes, não se restringir às grandes
causas econômicas e sociais; mas também reparar naqueles que, apesar de
apresentarem-se como relativamente menores, são reveladores de uma época, de um
momento histórico e de uma tática específica, muitas vezes “cirúrgica”. Afinal, a análisenão revela um sistema (“fechado”), mas necessidades históricas, lutas entre contrários,
táticas e estratégias, além de ideias e objetivos. A aparência constitui-se em
manifestação da essência, é partícipe desta; o fenômeno é reflexo12 da essência. Em
qualquer pesquisa (tratando-se de dialética), o imediato, o fenômeno é o ponto de
partida; de modo algum, contudo, constitui-se em seu termo (LEFEBVRE, 1987, p.
11 O que exige referenciar a investigação numa teoria social . Assim, convertem-se em possibilidades
analíticas e de investigação elementos tematizados por autores de orientações teóricas diversas.12 Reflexo aqui se relaciona a “algo fugaz, transitório, rapidamente negado e superado pela essência mais profunda” (LEFEBVRE, 1987, p. 217).
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218). Por isso, o conhecimento teórico exige o estudo do fenômeno e da essência, a
formulação de uma teoria da essência e do fenômeno. A essência se realiza por meio da
aparência; sem esta, aquela não toma parte no real (LEFEBVRE, 1987, p. 219). Que não
reste dúvida: a razão de ser do fenômeno deve ser buscada na essência, e não no
fenômeno antecedente. No entanto, somente se pode relacionar certo fenômeno à sua
causa essencial se captadas as mediações; assim se pode compreender esta aparência
fenomênica como manifestação necessária, em razão de uma causa essencial, a um
determinado momento do desenvolvimento histórico:
Por um lado, trata-se, portanto, de destacar os fenômenos de sua formadada como imediata, de encontrar as mediações pelas quais eles podem ser relacionados ao seu núcleo e à sua essência e nela
compreendidos; por outro, trata-se de compreender o seu caráter e asua aparência de fenômeno, considerada como sua manifestaçãonecessária. Essa forma é necessária em razão de sua essência histórica,do seu desenvolvimento no campo da sociedade capitalista. Essa dupladeterminação, esse reconhecimento e essa superação simultânea do serimediato, constitui justamente a relação dialética (LUKÁCS, 2003, p.75-6).
O pensamento dialético ascende do imediato ao conceito, aproximando-se
do real como concreto pensado. Trata-se de um processo de conhecimento que consiste
em aproximações sucessivas, por meio de conceitos, da representação ideal domovimento do real, nas palavras de Lukács, de “formas do ser, determinação da
existência” (LUKÁCS, 1979, p. 28).
Os fenômenos sociais só podem ser compreendidos em suas relações
recíprocas, sob determinadas relações sociais, em sua totalidade. O conhecimento deve
compreender tanto o caráter histórico (portanto, transitório) de um fenômeno quanto sua
função na totalidade social13. Por isso, conclui Lukács, a concepção dialética da
totalidade é a única a compreender a realidade como devir social.
13 György Lukács chama atenção para a necessidade de se articular corretamente lógica e história naapreensão do ser social. O grande filósofo marxista recorre a Friedrich Engels para explicitar tal relação.O método lógico não é mais do que a representação (da ordem da consciência) de categorias histórico-sociais (da ordem objetiva da r ealidade), contudo despojado da contingência e da forma histórica: “Nossaexposição parte da posição dos clássicos do marxismo sobre a relação entre lógica e história. Nossaanálise de Marx já indicou de que modo ele concebeu esta conexão. Mas Engels fornece uma síntese palpável dos seus princípios em sua rescensão à Contribuição à crítica da economia política: ‘O únicométodo indicado era o lógico. Mas este não é, na realidade, senão o método histórico, despojado apenasda sua forma histórica e das contingências perturbadoras. Ali onde começa a história deve começar
também a cadeia do pensamento e o desenvolvimento ulterior desta não será mais do que a imagemreflexa, em forma abstrata e teoricamente consequente, da trajetória histórica; uma imagem reflexacorrigida, mas corrigida de acordo com as leis que fornece a própria trajetória histórica; e assim, cada
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A um risco, então, se sujeita esta dissertação: perder-se na imensa massa de
fatos, de intervenções urbanísticas e de tentativas de interpretá-los. No entanto, esta
dissertação tem um fio condutor, um ideal se manifesta em todo o seu corpo: ao
acompanhar traços gerais do processo histórico de produção do espaço urbano brasileiro
(sem a pretensão de saturá-lo), ao precisar as categorias centrais ao movimento de
reprodução ideal do real; busco apropriar-me de arcabouço teórico-metodológico,
necessário à realização da crítica radical da produção e organização do espaço urbano,
sob o império das relações sociais capitalistas. Afinal, como ensina Lukács, “os fatos só
se tornam fatos por meio da elaboração de um método” (LUKÁCS , 2003, p. 70). O que
implica, a um só tempo, aperceber-se das condições de sua superação, desvelar (em toda
a sua radicalidade) seus aspectos negativos, seus momentos contraditórios. O que exige
apreender o movimento e sua contradição, desvelar as leis universais e necessárias
(jamais eternas e imutáveis) balizadoras do real e do pensamento do real; leis a princípio
abstratas que se revelam concretas ao dar forma ao real, ao movimento do real. Os
objetos, em contradição, só podem ser compreendidos se entendermos que eles estão
submetidos a determinadas relações sociais.
A análise dialética exige que o pensamento se ponha em movimento,
acompanhe a transição, a passagem do movimento do real, siga o percurso de suas
etapas. O pensamento, portanto, é “relação com o real e com suas próprias etapas
percorridas: pensamento da relação e relações descobertas e, depois, pensadas”
(LEFEBVRE, 1987, p. 178, grifo do autor). Os processos de análise, a separação dos
momentos, são “momentos do pensamento vivo” (LEFEBVRE, 1987, p. 178). Se o
progresso do real ocorre por meio de contradições (elas forçam o movimento),
tornando-se necessário, ao pensamento, apreendê-las também em seu movimento (posto
que as próprias contradições igualmente estejam em movimento – marcha das
contradições), faz-se necessário estabelecer a relação entre as contradições; faz-semister descobrir a “relação e a unidade entre elas”, determinar “as contradições em sua
unidade e o movimento que as atravessa” (LEFEBVRE, 1987, p. 178), em uma frase,
determinar a unidade dos contraditórios. Isso porque, como afirma Lukács, o próprio
“desenvolvimento social é uma unidade de contradições, viva e dinâmica, é a
ininterrupta produção e reprodução destas contradições” (LUKÁCS, 1992a, p. 128).
fator pode ser estudado no ponto de desenvolvimento em que atingiu sua plena maturidade, sua formaclássica’” (LUKÁCS, 1968, p. 100).
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Portanto, as contradições do real devem ser compreendidas em seu desenvolvimento
histórico.
Contudo, não se pode deixar de distinguir as contradições principais das
secundárias, as fundamentais das periféricas, as relações dominantes das subordinadas,
enfim, o que há de mais e de menos essencial: “relações e manifestações mais ou menos
profundas da essência” (LEFEBVRE, 1987, p. 218). Para que se apreendam as relações
determinantes e fundamentais, deve-se captar o fenômeno característico, essencial e ir
deixando de lado os outros fenômenos. Daí a importância da análise (que divide,
separa), posto seja o fenômeno “infinitamente mais rico” que a essência: ele a contém
“e, além dela, a relação com a totalidade do devir (com o movimento inteiro do
universo)” (LEFEBVRE, 1969, p. 171). Daí a importância fundamental e necessária da
razão; esta “une, agrupa, esforça-se por encontrar o conjunto e a relação” (LEFEBVRE,
1987, p. 171). Primeiramente, portanto, distinguem-se “os factos, as formas, os aspectos
e os momentos dum desenvolvimento”; em seguida, reconstitui-se o conjunto,
“determinando as ligações internas que existem entre esses elementos” (LEFEBVRE,
1969, p. 190).
A história do desenvolvimento da cidade no Brasil, de sua urbanização,
coincide com a do desenvolvimento de certo modo de produção. A expansão e
ampliação de suas relações sociais características, induzidas pelo crescimento das forças
produtivas, marcam o salto qualitativo de nosso devir histórico. As cidades estão no
epicentro desse processo; elas se constituem em seu locus. Por conseguinte, o estudo da
cidade encontra no desenvolvimento do processo de reprodução das relações sociais de
produção capitalistas a sua chave analítica, o segredo de seu devir. Daí se tornar
necessário um método regressivo-progressivo (MARTINS, 1996), ou seja, que conceba
o movimento de pesquisa do objeto histórico do presente ao passado (no intuito de
explorar suas possibilidades), para regressar ao presente (mas enriquecido pela análise econhecimento do momento anterior), sendo capaz de destacar as diferenças e de indicar
as continuidades, tendo apreendido os saltos históricos e a marcha das contradições. O
estudo do particular permite ao pensamento reproduzir as transformações do real
percebendo sua nova especificidade, as características específicas aos distintos
momentos históricos do desenvolvimento do real14. Permite a ampliação do conceito
14
Para Marx, “todo período histórico tem suas próprias leis” (MARX apud NETTO, 2011, p. 24). Daí setornar imprescindível não transpor leis das chamadas ciências naturais – que apresentam “certaconstância” (LUKÁCS, 2003, p. 74) – para a análise da história. O método de análise da história não pode
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universal em sua concreticidade. Esse método, intrínseco a noção de formação
econômico-social, permite compreender não somente o desenvolvimento desigual e as
“sobrevivências na estrutura capitalista de formações e estruturas anteriores”
(LEFEBVRE apud MARTINS, 1996, p. 17), como também o que não se constitui como
tal.
A favela brasileira, como se tornará claro no decorrer da exposição, não
representa a sobrevivência do arcaico, do atrasado em nossa formação econômico-
social, mas, juntamente com o loteamento periférico, constitui parcela significativa da
forma própria de urbanização do país. A favela e o loteamento periférico foram
funcionais ao nosso processo de urbanização e industrialização. O capitalismo, aqui,
deles necessitava para desenvolver-se. A eles reservou a classe trabalhadora em
formação. A análise da história desvela esse processo em germe e o revela como
tendência geral de nossa urbanização, como locus das massas trabalhadoras em nossas
cidades. Não deixando, contudo, de captar o imprevisto, as favelas na Zona Sul do Rio:
ao mesmo tempo, funcionais (lócos de morada das frações da classe trabalhadora
empregadas nos chamados serviços15 e na indústria da construção civil) e indesejadas
deixar de considerar justamente seu caráter social (histórico), ou seja, que a história dos homens difere da
história natural, visto que fizeram uma e não a outra (MARX, 2004b, p. 08). Marx, por conseguinte, nãose dedica à pesquisa da produção em geral, e sim “da produção em um grau determinado dodesenvolvimento social, da produção de indivíduos sociais”, isto é, “de uma determinada época histórica”(MARX, 2008c, p. 239). Assim, em seu prefácio da primeira edição d’O Capital , Marx afirma que “afinalidade última desta obra é descobrir a lei econômica do movimento da sociedade moderna” (MARX,1985a, p. 13). Advindo daí consequências revolucionárias no sentido da transformação da ordem socialque claramente motivaram a pesquisa de Marx exposta em O Capital, visto este expressar: “À medida quetal crítica representa, além disso, uma classe, ela só pode representar a classe cuja missão histórica é aderrubada do modo de produção capitalista e a abolição final das classes – o proletar iado” (Marx, 1985a, p. 18). Em Marx, a sociedade, ou melhor, os homens organizados em classes sociais são sujeitos dahistória e da teoria que interpreta esta história: “Do mesmo modo que em toda ciência histórica e socialem geral é preciso ter sempre em conta, a propósito do curso das categorias econômicas, que o sujeito,nesse caso, a sociedade burguesa moderna, está dado tanto na realidade efetiva como no cérebro”
(MARX, 2012a, p. 260-1). Apesar de não fazerem-na conforme sua vontade: “Os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem segundo a sua livre vontade, em circunstâncias escolhidas por eles próprios, mas nas circunstâncias imediatamente encontradas, dadas e transmitidas pelo passado” (MARX,2009b, p. 207). Fazem-na sob determinadas condições, em parte sob o peso de condições herdadas do passado (destacadamente, o grau anterior de desenvolvimento das forças produtivas), mas sobcircunstâncias inteiramente renovadas, ou seja, a estrutura social transformada radicalmente, tratando-sede uma nova totalidade que emergiu da anterior, mas que não se confunde com ela: “A história nada maisé do que o suceder-se de gerações distintas, em que cada uma delas explora os materiais, os capitais e asforças de produção a ela transmitidas pelas gerações anteriores; portanto, por um lado ela continua aatividade anterior sob condições totalmente alteradas e, por outro, modifica com uma atividadecompletamente diferente as antigas condições” (MARX; ENGELS, 2012b, p. 147). Insiste, Marx, que asformações sociais devem ser estudadas em sua realidade concreta (em sua especificidade): não se devetomar uma relação social de produção determinada por uma relação geral, natural e intemporal – não
histórica (MARX, 2004b, p. 64).15 Serviço, na definição de Marx, “nada mais que o efeito útil de um valor de uso, seja da mercadoria, sejado trabalho” (MARX, 1985d, p. 159).
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(ao perturbarem a paisagem e a organização espacial planejada para excluírem
exatamente a classe trabalhadora; este aspecto tido como “inconveniente”, abordado
como “efeito colateral” momentâneo). O que de modo algum, desobriga-me a afirmar e
a reiterar que a forma como boa parte desta massa trabalhadora “ganhou a vida” e
“assegurou sua morada” se deu de modo não propriamente capitalista. No entanto, foi
funcional ao desenvolvimento do capitalismo. O que estou afirmando é que a favela é
própria ao modo como o capitalismo se desenvolveu entre nós, à particularidade de
nossa formação econômico-social. A favela, em específico, não tem nenhuma referência
no passado, nas formas e estruturas anteriores. A favela e o loteamento periférico se
constituíram no modo possível de concentração das massas trabalhadoras na cidade,
conditio sine qua non para nossa industrialização, visto se tratar de um país de
industrialização tardia.
O materialismo histórico-dialético possibilita fazer a distinção, a transição
de relações dominantes de um espaço para outro, do campo para a cidade. Capta a
diferença estabelecida entre capital, trabalho e terra nesses dois espaços tão distintos,
envolvidos em temporalidades outrora tão díspares. Este método revela a intervenção de
particularidades diferenciadas, portanto, realidades diversas; mas também sua unidade,
como momentos do mesmo processo de universalização das relações intrínsecas ao
capitalismo; assim como, as singularidades (as massas trabalhadoras no campo e na
cidade). Permite, em suma, reconstruir uma história: a história da luta de classes, das
contradições dela propulsoras. Destarte, é possível compreender cada momento da nossa
formação econômico-social como um todo, mas um todo que faz parte de um conjunto
mais amplo, de uma totalidade mais vasta, que se apresenta em um devir histórico
ininterrupto:
Para Marx, o desenvolvimento da sociedade e a sua históriaconstituem um todo (uma ‘totalidade’); mas cada momento dahistória, cada regime ou modo de produção constitui também umconjunto, um todo (ou uma ‘totalidade’) que é necessário estudar emsi mesmo, sem o separar do desenvolvimento total (LEFEBVRE,1969, p. 190, grifo do autor).
Em se tratando de marxismo, os momentos do todo devem ser analisados
em seu devir, o momento posterior explica o anterior:
Assim, a formação econômico-social é para Marx um todo, um
conjunto. O devir é um todo, a tal ponto que os estádios posteriores dodesenvolvimento (e os conceitos que nos permitem conhecê-los)
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esclarecem os momentos precedentes (LEFEBVRE, 1969, p. 192,grifo do autor).
Contudo, mais um esclarecimento se faz necessário: não se trata ainda, nesta
dissertação, de uma exposição, ou seja, de uma reprodução ideal do movimento real do
todo concreto (síntese de muitas determinações); em linguagem marxista, não se lançou
mão do método de exposição, nos rigorosos termos definidos por Marx (1985b, p. 20).
Isso por um motivo, que se impõe como obstáculo do qual não se pode desviar, a saber,
não se alcançou ainda o urbano em toda a sua complexidade, como um “todo concreto”
(LEFEBVRE, 1969, p. 191); a pesquisa impõe sua continuidade.
O pensamento dialético inicia quando se começa a formular conceitos
capazes de representar idealmente o real. Sendo assim, o momento da análise exige o
movimento do imediato, do fenômeno ainda pobre em determinações à descoberta das
relações essenciais (diferenciando as menos das mais essenciais); do todo caótico aos
conceitos mais simples, do concreto idealizado (pobre em determinações) a “abstrações
mais tênues até atingirmos determinações as mais simples” (MARX, 2012a, p. 254).
Chamo atenção do leitor para o movimento no processo de análise: vai da
“representação caótica do todo” às abstrações mais débeis; destas se busca atingir as
determinações as mais simples. O movimento do pensamento vai do singular ao
universal, e deste retorna ao singular (LUKÁCS, 1968, p. 109). Posto que, como
esclarece Lenin, por um lado, o “universal só existe no singular, através do singular” e,
por outro lado, “todo singular é (de um modo ou de outro) universal” (LUKÁCS, 1968,
p. 109).
O pensamento dialético (rigoroso, “cientificamente exato”) exige que o
pensamento realize o movimento de retorno, do abstrato ao concreto, do particular ao
geral, do encadeamento lógico das categorias as mais simples às mais complexas. Isso
porque o “concreto é concreto porque é a síntese de muitas determinações, isto é,
unidade do diverso” (MARX, 2012a, p. 255). Tão-somente assim, pode-se superar a
“representação caótica de um todo” e alcançar a representação ideal de uma “rica
totalidade de determinações e relações diversas” (MARX, 2012a, p. 254), diferenciando
as fundamentais das secundárias.
Essa maneira de proceder do pensamento, que se eleva do abstrato ao
concreto, consiste no método rigoroso e correto que permite ao pensamento se apropriar
do concreto. Tão-somente assim, pode-se, em seguida, reproduzi-lo como concreto pensado. Do seguinte modo, Marx resume o movimento do pensamento:
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No primeiro método, a representação plena volatiliza-se emdeterminações abstratas, no segundo, as determinações abstratasconduzem à reprodução do concreto por meio do pensamento(MARX, 2012a, p. 255).
No entanto, adverte Marx que de “modo nenhum” o processo da gênese do próprio concreto coincide com o processo do segundo método. O próprio processo de
produção do real é o ponto de partida efetivo do processo de formação do concreto.
Contudo, para que ele possa ser apreendido pelos homens, faz-se necessário lançar mão
de um método. Afinal, como ensina Marx (2008b, p. 1080), “toda ciência seria
supérflua se houvesse coincidência imediata entre a aparência e a essência das coisas” 16.
Método este que tão-somente pode ser concebido como sendo intrínseco ao objeto,
formulado a partir do próprio objeto. Não se trata de “aplicar ” categorias formuladas a priori, de constituir um rol de definições (de “operar ” por definições), de apegar-se a
um conjunto de regras formais (NETTO, 2011, p. 52). O método, desenvolvido desde
Marx, extrai as categorias do movimento social real: “as categorias exprimem portanto
formas de modo de ser, determinações de existência” (MARX, 2012a, p. 261). Cada
totalidade deve ser apreendida em sua especificidade, suas tendências constitutivas lhes
são próprias, do contrário não se trataria de uma totalidade: “as tendências operantes
numa totalidade lhe são peculiares e não podem ser transladadas diretamente a outras
totalidades” (NETTO, 2011, p. 56).
Por conseguinte, se o estudo da cidade como espaço da luta de classes
somente pode ser aprendido em sua essência por meio de uma concepção teórico-
metodológico, esta deve ser concebida tomando como referência o próprio objeto:
16 Exclusivamente a título de ilustração, chamo atenção para a importância do método dialético para a
compreensão do que ocorre atualmente em nossas cidades. Mais precisamente, refiro-me a um tema emvoga e amplamente discutido, em todas as esquinas, pontos de encontro e concentração espalhados portodo o país, pelas mais diferentes classes e camadas sociais, a saber, as chamadas obras da Copa. A princípio, passa-se para o cidadão comum a informação de que vultosos volumes de recursos públicosestão sendo “mal investidos” em obras, exigidas pela FIFA, cujo “legado” é questionável. Os númerosrealmente impressionam: apenas com o “custo dos estádios”, estimativa oficial aponta que serão gastosR$ 8,9 bilhões, bem acima dos R$ 2,6 bilhões previstos no primeiro levantamento técnico elaborado pelaFIFA em 2007 (CHADE, 2014). Ora, isso é só a aparência do que realmente ocorre. No decorrer destadissertação (apesar da Copa do Mundo e suas contestações não se constituírem em objeto deste trabalho),almejo que o leitor se convença de que tais investimentos têm muito pouco a ver com a realização de umevento pontual (ainda que se trate de um “megaevento”). Passados alguns anos, “todos” se darão contadisso. Contudo, verifica-se, ainda hoje, que boa parte dos movimentos contestatórios (no mais amploespectro político) continua a lutar co