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Adriano Correia UFG

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ARENDT E AGOSTINHO: NATALIDADE E POLÍTICA

Dr. Adriano Correia* [email protected]

Em uma carta a Karl Jaspers, de 1966, Hannah Arendt menciona o

seguinte: “estou reescrevendo meu Agostinho, em inglês, não em latim, e de

um modo que as pessoas que não tenham aprendido a taquigrafia filosófica

possam compreendê-lo. É estranho – esta obra está tão distante no passado,

por um lado; mas, por outro, ainda sou capaz de me reconhecer, por assim

dizer”1. A edição póstuma em inglês da obra revisada indica que Arendt esteve

a ponto de reescrevê-la, e possivelmente seja esta a razão de não ter levado a

sua revisão a cabo. Se nos lembrarmos, entretanto, que A condição humana já

havia sido publicada em 1958, talvez a nós não pareça tão estranho que

Arendt se reconheça em sua tese defendida cerca de trinta anos antes.

Agostinho é um dos personagens centrais de A condição humana. A despeito

de servir como fonte para a compreensão da alienação cristã e do concentrado

esforço dos pensadores cristãos por “encontrar um vínculo entre as pessoas

forte o suficiente para substituir o mundo”2, é pela compreensão do homem

como initium e pela compreensão do amor ao mundo e da natalidade que

Agostinho é mais caro a Arendt. Com efeito, Agostinho afirmou, em uma frase

que é seguramente a citação mais recorrente na obra publicada de Arendt, que

“para que houvesse um início o homem foi criado, sem que antes dele

ninguém o fosse ([Initium] ergo ut esset, creatus est homo, ante quem nullus

fuit)”3. Como espero poder tornar claro ao longo deste texto, o que Hannah

Arendt encontra em Agostinho, com e contra ele, é um modo de compreensão

da existência humana que desloca a centralidade da relação do homem com o

mundo da mortalidade para a natalidade.

Na introdução original à sua tese sobre O conceito de amor em

Agostinho, e mesmo na versão revisada dos anos 1960, Hannah Arendt afirma * Professor Adjunto da Universidade Federal de Goiás

1- HA-KJ, p. 622. 2- HC, p. 53. Cf. p. 73-4. 3- De civitate Dei, xii, 20, apud HC, p. 177. Esta frase aparece literalmente ainda em “What is freedom?”, BPF, p. 167; OR, p. 211; OT, p. 479; LM/W, p. 108.

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que as transformações no pensamento de Agostinho, mesmo em uma

progressiva acentuação do dogmatismo, nunca significaram um abandono das

suas preocupações filosóficas. Partindo deste pressuposto, ela julgou ser

possível interpretar Agostinho à margem de sua condição de teólogo e crente:

a subserviência dogmática à autoridade eclesiástica e das Escrituras será amplamente estranha a nossas análises, que não são, em princípio, de acordo com sua essência e significado, vinculadas dogmaticamente. Tal descolamento intencional de todos os elementos dogmáticos pode condenar a interpretação de um autor religioso, mas é relativamente fácil de justificar no caso de Agostinho [LA, p. 4].

Em suas palavras ainda:

nada do patrimônio filosófico da Antigüidade e da Antigüidade tardia que Agostinho assimilou nas diversas épocas da sua vida (…) nunca foi verdadeira e radicalmente eliminado do seu pensamento. A alternativa radical entre a reflexão filosófica pessoal e a obediência religiosa à fé, tal como a viveu o jovem Lutero, foi-lhe alheia. Apesar de se ter tornado um cristão crente e convicto (…), nunca perdeu completamente a impulsão do questionamento filosófico, e nunca o excluiu radicalmente do seu pensamento [AA, p. 12; cf. LM/W, p. 249].

Os críticos da tese de Arendt, já na época em que ela foi publicada,

apontavam justamente uma falha no encaminhamento do conteúdo e do

contexto explicitamente teológico da obra de Agostinho [LA, p. xvi], resultado

da seleção intencional que indiquei brevemente acima. Ela sempre o concebeu

como filósofo, “que se voltou para a religião em função de perplexidades

filosóficas”4 e tornou-se o primeiro filósofo cristão e talvez, para Arendt, o

único que os romanos jamais tiveram.

A estrutura da tese de Hannah Arendt, intitulada O conceito de amor em

Agostinho, é definida pela compreensão da temporalidade ou, mais

precisamente, pela relação entre as diversas formas do amor, o mundo e o

tempo. O amor, compreende Arendt, se apresenta fundamentalmente em

Agostinho como appetitus, como desejo (craving), a única definição dada por

ele. A essência do homem não pode ser definida, já que “ele sempre deseja

pertencer a algo fora dele e muda de acordo com isto”5, mas se há algo que

pode ser dito de sua natureza essencial é que ela carece de auto-suficiência.

4- LM/W, p. 248 da trad. bras. 5- LA, p. 18. Cf. p. 19 e p. 7.

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Tal definição do amor como desejo conduziria Agostinho a incongruências,

dentre as quais a mais fundamental a Arendt é a malograda tentativa de

derivar o amor ao próximo do amor compreendido como desejo, mobilizado

essencialmente pelo amor a si (amor sui), por querer ser feliz6, e pelo amor ao

mundo.

Hannah Arendt indica ainda o sentido do amor ao próximo compreendido

como um mandamento do Criador, apontando a dificuldade de se pensar o

amor ao próximo a partir do amor a Deus (amor Dei) e da fidelidade a seus

mandamentos, em cuja presença, em isolamento, um outro indivíduo se

tornaria meu próximo, na medida em que me preocupo com sua salvação7. A

questão, não obstante, é “como a pessoa na presença de Deus, isolada de

todas as coisas mundanas, é capaz de se interessar minimamente [at all] por

seu próximo”8. Para Arendt, apenas considerando, além da condição de

criaturas de Deus à sua imagem, também a co-presença dos indivíduos no

mundo e a partilha de um ancestral comum à espécie humana se pode

dissolver a aparente contradição na teoria agostiniana. Com efeito, não apenas

no amor a si ou no amor a Deus, mas ainda no amor aos homens é que se

pode pensar a relevância do próximo. Em suma, como veremos, sem

concepção alguma do amor mundi, não é possível pensar sem incongruências

a relevância do próximo.

O amor compreendido como desejo (appetitus) implica uma combinação

entre visar algo adiante e remontar a algo, entre o que se almeja e o que já se

sabe ser um bem no mundo. É ainda uma combinação entre buscar ter e

temer perder, entre possuir e estar seguro, em uma tensão que só se resolve

na morte que conduz à eternidade, em que não há o que aspirar ou temer

perder. Assim, diz Arendt, “o amor como desejo [craving] (appetitus) é

determinado por sua meta, e esta meta é a liberação do medo”9. A liberação

do medo só se dá quando se atualiza a fonte de todos os temores dos mortais

- com a morte, em suma. Com efeito, “o que se encontra no fim do caminho

que percorremos toda a nossa vida é a morte. Todo momento presente é

6- LA, p. 19 e 28. 7- LA, p. 112. 8- LA, p. 7. 9- LA, p. 11-12

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governado por esta iminência. A vida humana é sempre ‘não ainda’. Todo ‘ter’

é governado pelo medo, todo ‘não ter’ pelo desejo”10. Para Arendt, é mais uma

manifestação da dificuldade de conciliar as teses agostinianas o fato de que o

desejo movido pelo anseio da felicidade, só e apaziguado quando nos atinge a

morte, o nosso maior temor. Compreendida como a posse destemida de um

bem11, a felicidade sobre a Terra se mostra inatingível, pois “a vida feliz é a

vida que não podemos perder” e a vida sobre a Terra é, nas palavras de

Agostinho, “vida mortal” ou “morte vital”12. Para Hannah Arendt, “não há

dúvida que a morte, e não apenas o medo da morte, era a mais crucial

experiência na vida de Agostinho” e, junto ao temor do juízo de Deus, a razão

mesma de sua conversão13. Este temor, que faz a vida parecer um bem

elevado, se resolve não na posse segura da vida, que está fora do alcance dos

mortais, mas na aspiração por um presente sem futuro, pela eternidade:

um amor que busca algo seguro e disponível sobre a Terra é constantemente frustrado, porque tudo está condenado à morte. Nesta frustração, o amor se desvia e seu objeto torna-se uma negação, de modo que nada deve ser desejado exceto a liberação do medo. Um tal ausência de temor existe apenas na calma completa [experimentada na eternidade] que não pode mais ser abalada pelos eventos esperados no futuro14.

A vida humana no mundo, que segue para o nada, tem a morte em seu

horizonte, lança o homem em um impasse. A mortalidade faz brotar nele o

desejo da completude imperturbável que resulta, por seu turno, na aspiração

por uma vida feliz inalcançável sobre a Terra. A vida é o objeto último de todos

os desejos, mas a vida do homem mortal só se redime na negação de si

própria, de sua pertença a este mundo e de seu apego aos bens do mundo.

Em sua fuga da morte, o desejo de permanência se apega às próprias coisas que seguramente serão perdidas na morte. Este amor tem o objeto errado, que continuamente desaponta seu desejo. O amor correto consiste no objeto correto (...). O termo de Agostinho para este erro, o amor mundano, que se apega ao mundo e assim ao mesmo tempo o constitui, é cupiditas. Em

10- LA, p. 13. 11- Cf. LA, p. 10. 12- LA, p. 11. Cf. AGOSTINHO, Confissões, I, 6, p. 12 da trad. bras.. Em A cidade de Deus, XII, 20, p. 85 da trad. bras. (vol. II), Agostinho fala da vida como sendo repleta de misérias e acrescenta: “se é que na realidade merece o nome de vida esta, que antes é morte, tão profunda, que o amor a semelhante morte nos faz recear a morte, que nos livra dela”. 13- LA, p. 13. Cf. p. 14 e AGOSTINHO, Confissões, VI, 16, p. 104 da trad. bras.. 14- LA, p. 13.

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contraste, o amor correto busca a eternidade e o futuro absoluto. Agostinho chama este amor correto de caritas: a ‘raiz de todos os males é cupiditas, a raiz de todos os bens é caritas’15.

O que une ambos amores é o desejo (appetitus), o distintivo da

incompletude dos homens que, ademais, como indiquei, não estão em posse

do seu estar vivo nem seguros com as coisas que de fato possuem. Mas há

também o seguinte, segundo Arendt:

se Agostinho, como Plotino e semelhante aos estóicos, realmente sustenta que a coisa a ser amada é a ausência de medo, e então equaciona esta ausência de medo com a auto-suficiência, ele realmente não diz a mesma coisa, porque Agostinho nunca acreditou que tal ausência de medo ou auto-suficiência pudesse ser obtida pelo homem neste mundo, não importa o quanto ele possa distender todas as suas capacidades da mente e do espírito. É certo que o verdadeiro ser significa ‘não estar em carência’ [want] e a atitude correspondente seria a ausência de medo. No entanto, a qualidade específica do ser humano é precisamente um medo que nada pode remover16.

O que Agostinho põe em questão no amor como cupiditas, o amor deste

mundo, é a capacidade para suprimir a lacuna entre o amante e a coisa

amada; em suma, para ele, em vez da tranqüila felicidade na posse da coisa

amada, o amor ao mundo sempre malogra na satisfação do desejo. A

felicidade, “alcançada apenas quando a coisa amada torna-se um elemento

permanentemente inerente ao próprio ser de alguém”17, não pode se dar neste

mundo. Com efeito, lembra Arendt, “cupiditas deseja e torna-me dependente

de coisas que, em princípio, estão fora de meu controle”18, tanto as coisas do

mundo como a minha própria vida. O amor correto, caritas, é o desejo da

verdadeira vida, de não se perder a si próprio no mundo, o desejo de ligar-se à

plenitude de Deus e, assim, encontrar-se a si mesmo e livrar-se do medo.

Enquanto as coisas que eu desejo no mundo são externas a mim próprio,

lançam-me para fora de mim e em vista disto me escravizam, o amor a Deus

me conduz a mim próprio e me resgata da perecibilidade do mundo. Para

Agostinho, a despeito de também ser desejo, o amor como caritas liberta, na

medida em que promove uma liberação do mundo e um resgate de si. Quanto

15- LA, p. 17. Arendt cita AGOSTINHO, Commentaries on the Psalms 90, I, 8. No mesmo livro, em 31, 5, aparece a seguinte sentença: "Caritas diz : amor a deus e amor ao próximo; cupiditas diz: amor ao mundo e amor desta época (saeculum)". Cf. LA, p. 17, n. 37. 16- LA, p. 23. 17- LA, p. 19. 18- LA, p. 20.

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mais me retiro em mim mesmo e recolho meu self da “dispersão e distração do

mundo”, mais me torno uma questão para mim mesmo [quaestio mihi factus

sum]19. Cabe notar, entretanto, que “a vida é posta no mundo pelo

nascimento, e, morrendo, deixa novamente o mundo em que viveu. A procura

de si tem, pois, duas linhas diretoras: a vida pode interrogar-se se

relacionando com a sua origem ou no fim da sua existência”20.

O que Agostinho espera de Deus, diz Arendt, é uma resposta à questão ‘quem sou eu?’ – a certeza do que toda a filosofia anterior tinha dado por certo (...) Agostinho foi capaz de encontrar a si próprio apenas porque Deus era seu auxiliador. Autodescoberta e descoberta de Deus coincidem, porque pela retirada em mim mesmo eu cessei de pertencer ao mundo. Esta é a razão pela qual Deus vem então em meu auxílio. Em certo sentido eu já pertenço a Deus21.

Quando amo a Deus, amo o objeto correto de meu desejo e meu amor.

Ao buscar Deus, encontramos o que nos falta, uma essência eterna. Para

Agostinho, Deus é então o bem supremo, “o único verdadeiro correlato do

desejo”22. Quando ama este bem supremo, o homem ama ainda “o verdadeiro

objeto de todo amor próprio, sua própria essência”, que se põe em agudo

contraste com a existência humana, sujeita ao tempo e às mudanças da vida

originária, provindo do não-ser e se esvaindo ainda no não-ser, pois, de acordo

com isto, lembra Arendt,

na medida em que o homem existe, ele não é (...) A espécie correta de amor-próprio (amor sui) não ama o si-mesmo [self] presente, que segue em direção à morte, mas aquele que o fará viver para sempre. Quando o homem começa a buscar por seu si-mesmo essencial nesta vida presente, ele primeiro descobre que está condenado a morrer e que é mutável (mutabilis). Ele encontra existência em vez de essência, e a existência não é confiável23.

Arendt realça na sua interpretação de Agostinho o fato de que nele a

afirmação da vida equivale a uma negação da vida presente. O bem inerente à

essência da vida exige que o homem “transcenda e mesmo negue a vida, uma

vez que toda vida mundana é determinada por seu oposto, pela morte, que é

seu fim inerente e natural. Assim, o verdadeiro fim ou meta da vida tem de ser

19- LA, p. 24. 20- AA, p. 84-85. 21- LA, p. 25. 22- LA, p. 26. 23- LA, p. 26.

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separado da vida mesma e sua presente realidade existencial. A verdadeira

meta da vida está sendo projetada em um futuro absoluto”24. O amor como

caritas instaura o futuro como o tempo próprio a uma vida verdadeira. Isto

implica que a vida presente deve ser negligenciada em vista de um futuro

absoluto que se constitui como a meta última da presente existência mundana

do homem. “O próprio desejo, diz Arendt, é um estado de esquecimento”25. No

amor, o amante esquece de si mesmo, deslocando-se para o objeto amado.

Este “trânsito é o esquecimento”26. Em caritas, o amor que anseia por Deus

desloca o amante para a eternidade futura, transcende a temporalidade e faz

esquecer a própria mortalidade do homem. Assim, não apenas o mundo, mas

a própria natureza humana que é transcendida no amor a Deus.

Na primeira parte de sua tese, Arendt examina as implicações da

compreensão do amor como desejo para a interpretação agostiniana da

condição humana e da relação do homem com Deus, o mundo e o próximo.

Enquanto desejo, o amor sempre presentifica o futuro, que é o seu tempo mais

próprio. Compreendido como caritas, ou amor a Deus, antecipa a eternidade,

por assim dizer; como cupiditas, ou amor ao mundo, afirma a temporalidade e

a mutabilidade do homem, antecipando, desse modo, a morte. Na segunda

parte de sua tese, Arendt volta-se sobre uma nova constelação, ocupando-se

com as definições e implicações da relação Criador/criatura. Nesta nova

constelação há um evidente deslocamento da antecipação do futuro no amor

como desejo para a recordação do passado na referência ao Criador. Este

deslocamento, entretanto, não é uma inteira ruptura.

Quando a felicidade é projetada no futuro absoluto, é garantida por uma espécie de passado absoluto, uma vez que o conhecimento dela, que está presente em nós, possivelmente não pode ser explicada por experiência alguma neste mundo. A possibilidade de tal recordação é tornada plausível por uma análise do modo como a memória opera em geral […]. Portanto, é a natureza da memória transcender a experiência presente e guardar o passado, assim como é a natureza do desejo transcender o presente e estender-se em direção ao futuro27.

A vida feliz, não obstante, não consiste em uma mera evocação do passado,

24- LA, p. 27. 25- LA, p. 28. 26- LA, p. 29. Cf. p. 30. 27- LA, p. 47.

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mas toma parte no presente inspira nossos desejos e expectativas em relação

ao futuro, e apenas em vista disto ela pode tornar-se o guia supremo dos

esforços humanos. Quando antecipo o futuro no desejo de encontrar Deus ou a

vida feliz, percorro o espaço de minha memória, que “desfaz o passado” e “o

transforma em uma possibilidade futura”28. Em suma, o amor compreendido

como desejo exige a memória, que nos indica o caminho de um passado

transmundano de onde provém a nossa concepção de vida feliz, e o que nos

conduz à recordação não é o desejo da vida feliz, “mas a procura da origem da

existência, a procura por Aquele que ‘me fez’”29. Isto faz com que o absoluto

futuro se converta em um passado extremo, alcançável apenas através da

memória.

A dependência do desejo com relação à noção de vida feliz implica,

portanto, de acordo com Arendt, uma dependência mais profunda com relação

ao Criador. Em última instância, está em questão o fato de que a felicidade

que o homem deseja e que deve determinar sua conduta não pode ser

vivenciada nesta vida terrena, o que implica que o próprio significado da

existência humana não pode ser encontrado na condição humana tal como a

conhecemos a vivenciamos, mas apenas por uma remissão ao Criador e ao

momento da criação. A questão que me torno para mim mesmo, quando

indago sobre minha própria origem, encontra uma resposta na fonte imortal de

minha existência mortal. De modo análogo, diz Arendt, “todo ato particular de

amor recebe seu significado, sua raison d’être, neste ato de remeter [referring

back] ao início original, porque esta fonte, em que as razões são sempiternas

(rationes sempiternae), contêm a ‘razão’ última e imperecível de todas as

manifestações perecíveis da existência”30. Assim, retornar à própria origem

equivale a retornar ao Criador, o que faz com que o homem ame em si próprio

a criação de Deus. Mais que isto, “o próprio fato de que o homem não fez a si

próprio, mas foi criado, implica que a significação da existência humana se

encontra fora dela e a antecede. Ser criado (creatum esse) significa que a

essência e a existência não são idênticas”31. Uma vez lançado no mundo, o

28- LA, p. 48. 29- LA, p. 49. 30- LA, p. 50. 31- LA, p. 50-51.

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homem é marcado permanentemente pelo devir, pela permanente mudança, e

em vista disto se distancia do verdadeiro ser. Uma vez que vem a existir, o

homem nunca retorna ao nada; não obstante, a existência humana nunca é

verdadeiramente e é em vista disto que a busca pelo próprio ser é sempre uma

referência ao criador, que “é um elemento constitutivo da existência humana e

indiferente à conduta humana”32. A perecibilidade e a temporalidade são as

marcas de todas as coisas criadas, mas “apenas os homens, que sabem que

nasceram e que morrerão, realizam sua temporalidade em sua própria

existência”. Em suma, nas criaturas a essência sempre precede a existência,

pois “uma vez que toda a criação é, mas não era, ela tem um começo. E tudo

que começa existe no modo do devir”33.

De qualquer modo, distintamente de toda outra criatura, o homem pode,

através da memória, retornar ao Criador e encontrar a verdade sobre si

próprio, dependente de sua relação com o Criador – pela memória o Criador se

faz presente na criatura. Consoante ao que examinamos acima sobre a relação

Criador/criatura, que constitui a segunda parte da tese de Arendt, podemos

compreender a razão de este ser o primeiro contexto em que Arendt se

demora, na revisão dos anos 1960, no conceito de natalidade (que na

dissertação original era desenvolvido claramente apenas na terceira parte, que

lida com a vida social). Em sua interpretação de Agostinho, Arendt sustenta

que

o fato decisivo determinante do homem como um ser consciente e rememorador é o nascimento ou a ‘natalidade’, isto é, o fato de que ingressamos no mundo através do nascimento. O fato decisivo determinante do homem como um ser desejante foi a morte ou a mortalidade, o fato de que temos de deixar o mundo com a morte. Medo da morte e inadequação da vida são as fontes do desejo. Em contraste, gratidão pela vida ter sido dada de algum modo [at all] é a fonte da recordação, pois a vida é estimada mesmo na miséria […] O que em última instância alivia o medo da morte não é a esperança ou o desejo, mas recordação e gratidão34.

Quando pensa inicialmente em nomear amor mundi a obra A condição

humana, Hannah Arendt assinala que a mobiliza a gratidão pelo mundo. Nesta

32- LA, p. 53. 33- LA, p. 54. 34- LA, p. 51-52.

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obra, ela indica, sobre o começo do mundo e do homem, que “de acordo com

Agostinho, os dois eram tão diferentes que ele empregou uma palavra

diferente para indicar o início que é o homem (initium), designando o início do

mundo principium, que é a tradução padrão para o primeiro verso bíblico.

Como pode ser visto em De civitate Dei, XI, 32, a palavra principium portava,

para Agostinho, um significado muito menos radical”35. Os anjos, por exemplo,

precediam o início do mundo, e o início do mundo e do tempo precedeu o início

do homem, pois os homens foram criados no mundo e no tempo, sujeitos ao

movimento e à mudança –“a criatura é determinada temporalmente pelo fato

de se tornar”36. No capítulo em que Agostinho afirma que o homem é um

início, o que está em questão para ele é a necessidade de refutar a tese ímpia

de que as almas sempre retornam às misérias e aos trabalhos da vida, por um

lado, e, por outro, afirmar a possibilidade de que Deus insira novidade no

mundo, sem com isto violar a ordem do universo. De acordo com Agostinho,

se, porém, tal novidade não entra na ordem das coisas, regida pela divina Providência, mas se deve à pura causalidade, pergunto: onde se acham tais circuitos determinados e medidos que excluem toda novidade, porque sempre repetem coisas que já existiram? E, se essa novidade não está fora da ordem da Providência, quer a alma haja sido enviada, quer haja caído por si mesma, podem suceder coisas novas que nem antes existiram nem são estranhas à ordem do universo37.

Com efeito, diz ele, não se pode negar que Deus possa fazer coisas novas.

Uma vez que a libertação do homem em Deus é definitiva, é necessário que se

conceba a possibilidade de que tenham início novos homens. Deus gerou o

homem como uma criatura que não apenas vive no tempo, mas que é

essencialmente temporal. A Arendt importa notar que

o início que foi criado com o homem impediu que o tempo e o universo criado com o um todo de girar eternamente em ciclos sobre si mesmo de um modo despropositado e sem que algo novo jamais acontecesse. Portanto, foi por causa da novitas, em certo sentido, que o homem foi criado. Uma vez que o homem pode saber, ser consciente de e lembrar seu ‘início’ ou sua origem, ele é capaz de agir como um iniciador e representar (enact) a estória da humanidade38.

35- HC, p. 177. 36- AA, p. 73. 37- AGOSTINHO, A cidade de Deus, XII, 21, p. 87 da trad. bras. 38- LA, p. 55.

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A questão é, portanto, como um Deus eterno pode criar coisas novas; e a

resposta de Agostinho é que foi “necessário criar o Homem separado de todas

as outras criaturas e acima delas” para que pudesse haver novidade.

Ainda que o próprio conceito natalidade não tenha sido desenvolvido na

tese sobre Agostinho, todo o contexto em que o tema se desenrola

posteriormente já se encontra delineado, a ponto de a própria autora

acrescentar o termo nas revisões feitas na década de 1960, como vimos.

Quando examina o conceito agostiniano de mundo – “determinado pela

interpretação especificamente cristã do cosmos, segundo a qual o mundo é um

mundo humano constituído pelo homem”39 –, Arendt indica o quanto em

Agostinho o que está em questão para o cristão é que a interrogação sobre seu

ser o conduz necessariamente a exilar-se do mundo, pois a resposta à questão

sobre quem ele é sempre o conduz ao criador. Com efeito, o fato de ser do

mundo pelo nascimento não obsta “a possibilidade de não querer estar em

casa no mundo, e de assim manter incessantemente em aberto a relação

retrospectiva com o Criador”40. Isto não apenas porque a pergunta do homem

pelo seu ser o remete ao momento da sua criação e ao criador, mas também

porque a constituição do mundo pelo homem implica o amor ao mundo

(dilectio mundi). O mundo, para Agostinho, é tanto a criação de Deus, o céu e

a Terra, quanto aqueles que habitam e amam o mundo. Por isto, “ser um

estrangeiro no mundo, para o cristão, é apenas uma possibilidade, pois o

natural é estar em casa no mundo”41. Desse modo, o acosmismo do cristão

fica evidente quando se observa, nas palavras de Arendt, que

o homem faz o mundo e faz-se a si mesmo pertencendo ao mundo” e “o que advém pela nossa vontade é conduzido pelo amor do mundo (dilectio mundi), pelo que o mundo, a fabrica Dei, torna-se a pátria totalmente natural do homem. A própria vida que se instala naquilo que é dado pela criação onde toma lugar nascendo faz da criação o mundo por este meio42.

O homem só se sente em casa no mundo quando também faz o mundo;

todavia, não basta construir o mundo para superar a estranheza do homem,

pois apenas o amor ao mundo permite ao homem fazer do mundo

39- AA, p. 75 da trad. port. 40- AA, p. 80 da trad. port. 41- AA, p. 105 da trad. am. (033357) 42- AA, p. 79 da trad. port.

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explicitamente a sua pátria. Apenas nesse momento, diz Arendt, “o homem e o

mundo se tornam mundanos”43.

Somente adotando o mundo como pátria […] a criatura funda o mundo (mundus). Por oposição a este encontrar-se-já-lá (invenire) de que a criatura depende em todo o fazer (facere), existe o ato livre de criar e de eleger, que pertence a Deus. Como o fabricare próprio à criatura depende do invenire, está aí a expressão de estranheza específica na qual se encontra para ela o mundo na sua interioridade como sendo já um deserto44.

Se nos inserimos no mundo como estranhos através do nascimento,

nesse mundo mundano ou humano, dirá Arendt em A condição humana, o

homem só se insere por palavras e atos; “e esta inserção é como um segundo

nascimento, no qual confirmamos e assumimos o fato simples [naked] de

nosso aparecimento físico original”45. Ainda que se possa notar que a

mundanidade do mundo só é possível “quando o fazer e o amar do homem se

tornam autônomos, independentes do puro ser criado”46, o primeiro

nascimento que é esta primeira aparição no mundo é, naturalmente, prévio a

todo amor ao mundo. O nascimento nos põe como entes em um mundo já

dado e faz do homem inescapavelmente um ser do mundo. Esse ser do mundo

precede qualquer amor ao mundo e conserva toda a possibilidade de tornar-se

mundano (amante do mundo). Não obstante, aquela inserção no mundo

humano, por palavras e atos, não nos é imposta pela necessidade, como no

trabalho, nem desencadeada pela utilidade, como na obra, uma vez que “ela

pode ser estimulada pela presença de outros a cuja companhia podemos

desejar nos juntar, mas nunca é condicionada por eles; seu impulso surge do

começo que veio ao mundo quando nascemos e ao qual respondemos quando

começamos algo novo por nossa própria iniciativa”47.

Quando mais tarde examina o papel da Vontade na relação do homem

com o mundo, no segundo volume de A vida do espírito, Arendt volta a refletir

sobre o tema do amor. Antes de tudo, nem o amor nem a fraternidade

substitui o mundo que une e separa os homens; todavia, o homem está pronto

para a ação apenas quando estabelece com o mundo, compreendido como o

43- AA, p. 81 da trad. port. 44- AA, p. 80 da trad. port. 45- HC, p. 189 da trad. bras. 46- AA, p. 81 da trad. port. 47- HC, p. 177.

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artifício humano e também como a comunidade dos homens, uma relação sob

o signo do amor mundi. O permanente conflito entre o querer (velle) e o não-

querer (nolle), inerente à vontade, só cessa na ação. Para que se dê a ação,

entretanto, a própria vontade cessa de querer e começa a agir. A Vontade

transforma-se então em Amor e desse modo soluciona seus conflitos. O Amor,

que ao contrário da vontade e do desejo não se extingue quando atinge seus

objetivos, permite aos homens o deleite prolongado. Assim, do mesmo modo

que “os homens não vêm a ser justos por saberem o que é justo, mas por

amarem a justiça”48, eles agem por amor ao mundo (amor mundi). O amor é

pré-condição da ação.

O que Hannah Arendt assume é justamente que o mundo só se torna um

lugar habitável e a convivência suportável e desejável se assumirmos por amor

ou gratidão a responsabilidade por ele e se por amizade e respeito interagimos

com nossos pares. Sem isto, o mundo converte-se em um deserto, como

indicamos acima e como ela assinala na conclusão de As origens do

totalitarismo. Em suma, é em uma alegre disposição para com o ser/estar no

mundo e para com o ser/estar com os outros que se pode vislumbrar

possibilidades menos sombrias para os nossos tempos. Ela lembra que os

gregos davam àquela humanidade (humaneness) “que se alcança no diálogo

da amizade o nome de philanthropia, ‘amor ao homem’, uma vez que se

manifesta em uma disposição para partilhar o mundo com outros homens”49.

Assim, diz Arendt, “o prazer, que é fundamentalmente a consciência mais

intensa da realidade, surge de uma abertura apaixonada ao mundo, do amor

ao mundo”50 (amor mundi). O amor faz com que a Vontade diga sim ao mundo

e aos homens. Com efeito, comenta Arendt, “não há maior afirmação de algo

ou de alguém do que amar este algo ou alguém, isto é, do que dizer: quero

que sejas – Amo: Volo ut sis”51. Amor mundi converte-se então em “quero que

o mundo persista” e o amor aos homens em quero que persistam. A ação

afirma o mundo. Ao agir, o indivíduo confirma o desejo de que o mundo e os

48- LM/W, p. 104; p. 263 da trad. bras. 49- MDT, “On humanity in dark times: thoughts about Lessing”, p. 25. 50- MDT, “On humanity in dark times: thoughts about Lessing”, p. 6 (grifos meus). 51- LM/W, p. 104, citado da p. 263 da trad. bras. A referência a esta afirmação de Agostinho aparece em uma carta de Heidegger a Hannah Arendt, de 13 de maio de 1925. Cf. HA-MH, p. 23 da trad. bras.

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outros persistam.

Na terceira parte de sua tese, escrita sessenta e cinco anos antes,

quando examina a vida em sociedade (vita socialis), Arendt sustenta que, para

Agostinho, além de nos lançar no mundo, o nascimento (generatione) nos

insere em uma comunidade com os outros homens cujo vínculo fundamental é

o parentesco que nos une por gerações no passado até Adão. Aqui cada

homem não é mais criatura apenas, mas também membro do gênero humano,

co-partícipe do delito originário, cometido sem a intervenção do Criador –

a sua origem própria confunde-se com o início do mundo no pecado original de Adão. É, ao mesmo tempo, a origem do pecado e da queda, pois a sua proveniência é determinada pelo nascimento (generatio) e não pela criação (creari). O mundo não é mais o estranho por excelência onde cada um foi atirado pela criação, mas um mundo que, pelo parentesco na generatione, é sempre já familiar, e ao qual cada um pertence desde a origem52.

Em suma, ligamo-nos ao mundo como estranhos pelo nascimento como

criaturas e sentimo-nos em casa no mundo pela generatione que

historicamente nos remete ao delito originário. Por conseguinte, dividimos

também com Adão a condição de criaturas e com ele partilhamos a capacidade

de instaurar no mundo possibilidades novas, ainda que de queda, pois o

Criador nos concebeu a sua semelhança, como iniciadores.

Para Arendt, as fortes articulações antipolíticas do Cristianismo primitivo

e a doutrina agostiniana do livre arbítrio e mesmo da predestinação não devem

nos induzir ao equívoco de ignorar o significado político da contribuição

agostiniana, na medida em que Agostinho foi tanto cristão quanto romano.

Neste momento de sua obra ele teria traduzido a experiência política central da

Antigüidade Romana, a de que “a liberdade enquanto início torna-se manifesta

no ato de fundação”. Com efeito, em A Cidade de Deus Agostinho concebe a

liberdade “não como uma disposição humana interior, mas como um caráter da

existência humana no mundo” – trata-se de “equiparar a aparição do homem

no mundo ao surgimento da liberdade no universo”53. Antes dele, o poeta

romano Virgílio, em seu poema político mais famoso (Quarta Écloga), já havia

afirmado “o caráter divino do nascimento enquanto tal” e acreditado, nas

52- AA, p. 160 da trad. port. 53- BPF, p. 167 (p. 216 e 215-6 da trad. bras.).

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palavras de Arendt, “que a salvação potencial do mundo encontra-se

justamente no fato de que a espécie humana regenera-se sempre e

constantemente”54. O que está em questão é que “no nascimento de cada

homem, o começo inicial é reafirmado, porque em cada ocasião algo novo se

insere em um mundo já existente que continuará a existir depois de cada

morte individual. Porque é um começo, o homem pode começar; ser humano e

ser livre são a mesma coisa. Deus criou o homem para introduzir no mundo a

capacidade de começar: a liberdade”55.

O início faz surgir algo novo e também imprevisível, que não pode ser

deduzido de qualquer evento que o tenha precedido, nem operar na

antecipação do futuro. Ele instaura uma ruptura na seqüência da

previsibilidade cotidiana, assim como na temporalidade que teve seu começo

simultâneo ao começo do mundo. “O novo sempre aparece na forma de um

milagre”, do inesperado, diz Arendt, e este milagre se traduz no fato de que o

início que é o homem remete, nos termos do pensamento agostiniano, ao

momento originário de criação dos homens, mas é renovado historicamente a

cada novo nascimento. De cada novo homem se pode esperar o inesperado e o

improvável, e isto é possível “apenas porque cada homem é único, de modo

que com cada nascimento algo singularmente novo vem ao mundo”56. Assim,

todo ato interrompe o automatismo dos processos históricos que deixados à

sua própria sorte tendem a reproduzir o automatismo da natureza. É, portanto,

um milagre, ainda que não da perspectiva do agente. Ainda que possamos

fazer notar as “improbabilidades infinitas” que ocorrem na natureza, é a

história que é repleta de eventos e de interrupções de processos pela iniciativa

humana, pela ação. Se considerarmos novamente a improvável cadeia de

eventos naturais sobre a qual se assenta nossa existência, poderemos falar

aqui também de milagre. Cabe ressaltar, todavia, que os eventos da história,

ao contrário dos processos naturais, se caracterizam como milagres dos quais

conhecemos a autoria: “são homens que os realizam – homens que, por terem

recebido o duplo dom da liberdade e da ação, podem fundar uma realidade por

54- LM/W, p. 212, citado da p. 345 da trad. bras. CONFERIR OR, sobre o mesmo tema. 55- BPF, p. 167. 56- HC, p. 178. Cf. BPF, p. 169.

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si próprios”57.

Cada ação afirma a singularidade do agente, mas ao mesmo tempo

reafirma as condições humanas da natalidade e da pluralidade. Se

concebermos a ação como o começo que deflagra uma nova série de eventos,

mas que não pode ser deduzido de eventos precedentes, compreenderemos

porque a pluralidade contida no nascimento é a condição prévia (conditio sine

qua non) da vida política e também porque a pluralidade, reafirmada em cada

ação, é a própria razão de ser (conditio per quam) da política. Ainda que o

trabalho, a fabricação e a ação estejam intimamente conectados com a

natalidade – na medida em que cada atividade se engaja a seu modo na tarefa

de guarnecer e preservar o mundo “para o constante influxo de recém-

chegados que nascem no mundo como estrangeiros”58 –, apenas a ação

partilha com a natalidade da novidade radical de ser início. Além disto, como a

ação só se efetiva no espaço público, também sob este aspecto reafirma e

renova a primeira aparição no mundo que foi o nascimento. Assim, a

pluralidade e a singularidade que cada nascimento renova e cada ação

reafirma estabelecem um inusitado vínculo entre a reprodução natural da

espécie humana e o âmbito político.

Para Hannah Arendt, com efeito, há um vínculo estreito entre natalidade,

novidade, espontaneidade, ação e liberdade. Desse modo, a novidade de cada

nascimento conserva as infinitas possibilidades que renovam a promessa de

perseverança da pluralidade entre os homens. Pela mesma razão, qualquer

ruptura na relação entre natalidade e espontaneidade representa um risco que

pode minar as possibilidades mais remotas da política. Tais ligações,

mormente aquela entre natalidade e política, como são estabelecidas em A

condição humana, estão na própria base da compreensão da identificação da

ação com a liberdade. Arendt sustenta então que está inscrita na própria

condição humana, assim como na especificidade da renovação persistente da

espécie humana, uma indispensável condição prévia (conditio sine qua non) da

política.

A capacidade de iniciar que atesta que ser humano e ser livre é a mesma

57- BPF, p. 171 (p. 220 da trad. bras.). 58- HC, p. 9.

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coisa, não comporta integralmente, entretanto, o significado político da ação.

Hannah Arendt lembra que o grego, assim como o latim (agere/gerere), possui

duas palavras completamente diferentes para a ação: archein e prattein.

Archein significa começar, liderar e governar, enquanto que Prattein significa

atravessar, realizar e acabar. Desse modo, é como se a ação se dividisse em

duas partes, “o começo, feito por uma só pessoa e a realização, na qual muitos

se associam ‘conduzindo’ e ‘acabando’, levando até o fim o

empreendimento”59. Aquele que inicia só é capaz de realizar o que propõe com

o auxílio de seus pares. De modo análogo, a liberdade da vontade não se

converte em liberdade política sem o agir em conjunto.

Em última instância, estes dois significados da palavra ‘ação’ acabam por

explicitar que a problemática relação entre o caráter natural do nascimento e o

caráter político da ação, não se efetiva sem a mediação da interação em um

espaço público. Com efeito, a natalidade, “o fenômeno pré-político por

excelência”, como lembra Paul Ricoeur60, anuncia a novidade que é a aparição

de cada criança no mundo e indica que este recém-chegado porta em si a

espontaneidade, mas não faz dele naturalmente um ser político. Desse modo,

quando realça o significado da natalidade para a política, Arendt não retorna à

definição aristotélica do homem como um animal político. A natalidade, como a

mais remota pré-condição da política, jamais deixa, entretanto, de ser um

fenômeno pré-político. O nascimento instaura a possibilidade de agir, apenas o

amor ao mundo pode tornar a ação uma efetividade. A ação decorre do amor

mundi.

A relação entre nascimento e ação, entre natureza e política, mediada

ainda por insights religiosos, não deixou de incomodar vários estudiosos da

obra de Hannah Arendt. Ela sempre se esforçou, todavia, por explicitar o

quanto a esfera política e as atividades que ela comporta representam uma

espécie de segunda natureza, que não mais presta contas ao caráter

meramente biológico da existência. Com efeito, a liberdade política se afirma

como tal somente quando se dá a passagem, por assim dizer, do biológico ao

biográfico (do zoé ao bíos).

59- HC, p. 189. 60- “Pouvoir et violence”, in: Politique et pensée – Colloque Hannah Arendt, p. 164.

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Voltando a seguir Agostinho, Arendt afirma que as criaturas vivas foram

criadas no plural, enquanto membros de espécies, “ao contrário do homem,

que foi criado no singular e continuou a ‘propagar-se a partir de indivíduos’”61.

Para a definição do humano e para o problema da liberdade o fato de que o

homem nasce como indivíduo é mais significativo que o de nascer como um

membro da espécie. Em termos políticos, a pluralidade humana não é obra da

multiplicação da espécie, mas tem antes um início temporal e se realiza

quando em uma comunidade, “em algum momento no tempo e por alguma

razão, um grupo de pessoas tenha vindo a pensar sobre si mesmo como um

‘Nós’”62. Ao contrário dos outros animais, o homem sabe que teve um começo

e que terá um fim e em vista disto experimenta o seu próprio começo como o

começo do seu fim. Como os gregos, Agostinho poderia concluir que a

mortalidade é o emblema da existência humana e denominar os homens de

“os mortais”. Para Hannah Arendt, todavia, se ele tivesse aprofundado suas

especulações acerca do fato de que “todo homem, sendo criado no singular, é

um novo começo em virtude de seu nascimento (…), teria definido os homens

não à maneira dos gregos, como mortais, mas como ‘natais’, e teria definido a

liberdade da Vontade não como liberum arbitrium, a escolha livre entre querer

e não querer (nilling), mas como a liberdade de que fala Kant na Crítica da

Razão Pura”63, como início absoluto. Do mesmo modo, “se Kant tivesse

conhecido a filosofia da natalidade de Agostinho, provavelmente teria

concordado que a liberdade da espontaneidade relativamente absoluta não é

mais embaraçosa para a razão humana do que o fato de os homens nascerem

– continuamente recém-chegados a um mundo que os precede no tempo. A

liberdade de espontaneidade é parte inseparável da condição humana”. Em

61- LM/W, p. 109, citado da p. 266 da trad. bras. 62- LM/W, p. 202, citado da p. 337 da trad. bras. 63- LM/W, p. 266-7 da trad. bras. Kant, na nota à terceira antinomia, em um trecho que Hannah Arendt citou em várias ocasiões, afirma de fato o seguinte: “Se agora (por exemplo) me levanto da minha cadeira de modo inteiramente livre e sem influência necessariamente determinante das causas naturais, então neste evento inicia-se absolutamente uma nova série juntamente com suas conseqüências naturais até o infinito, se bem que quanto ao tempo esse evento seja somente a continuação de uma série precedente. Pois esta resolução e esta ação, absolutamente não se encontram na seqüência de simples efeitos naturais, e não são uma simples continuação deles; antes, as causas naturais determinantes cessam completamente com respeito a esse evento, antes de tal resolução: tal evento, de fato, segue-se àquelas causas, mas não resulta delas, e em virtude disso tem que ser denominado – na verdade não quanto ao tempo, mas com respeito à causalidade – um início absolutamente primeiro de uma série de fenômenos”. Crítica da razão pura, B478, p. 65-66 da trad. bras. (vol. II).

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suma, nascer é já ser capaz de instaurar novidade no mundo através da ação

e, assim, atualizar a liberdade. Os homens, como entes do mundo, são

politicamente não seres para a morte, mas permanentes afirmadores da

singularidade que o nascimento inaugura.

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