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Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=285022054009 Red de Revistas Científicas de América Latina, el Caribe, España y Portugal Sistema de Información Científica Adriano Prosperi Uma discussão com Paolo Prodi Revista de História, núm. 160, junio, 2009, pp. 131-146, Universidade de São Paulo Brasil Como citar este artigo Fascículo completo Mais informações do artigo Site da revista Revista de História, ISSN (Versão impressa): 0034-8309 [email protected] Universidade de São Paulo Brasil www.redalyc.org Projeto acadêmico não lucrativo, desenvolvido pela iniciativa Acesso Aberto

Adriano Prosperi - Uma Discussão Com Paolo Prodi

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Adriano Prosperi - Uma Discussão Com Paolo Prodi

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  • Disponvel em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=285022054009

    Red de Revistas Cientficas de Amrica Latina, el Caribe, Espaa y Portugal

    Sistema de Informacin Cientfica

    Adriano Prosperi

    Uma discusso com Paolo Prodi

    Revista de Histria, nm. 160, junio, 2009, pp. 131-146,

    Universidade de So Paulo

    Brasil

    Como citar este artigo Fascculo completo Mais informaes do artigo Site da revista

    Revista de Histria,

    ISSN (Verso impressa): 0034-8309

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    Universidade de So Paulo

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    www.redalyc.orgProjeto acadmico no lucrativo, desenvolvido pela iniciativa Acesso Aberto

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  • Uma discUsso com Paolo Prodi1

    Adriano ProsperiProfessor da Scuola Normale Superiore di Pisa (Itlia)

    resumoO artigo prope uma crtica do livro de Paolo Prodi, recentemente traduzido para o portugus, Uma histria da justia. Alguns problemas so levantados, concernentes compreenso da justia como conjunto de normas mas tambm como ethos; ao conceito de revoluo com o qual opera Prodi, e ao problema da ruptura e da conti-nuidade; e ao lugar atribudo pelo autor Inquisio moderna.

    Palavras-chavePaolo Prodi: histria da justia histria da Igreja formas constitucionais intolerncia.

    abstractThe article proposes a critical appraisal of Paolo Prodis Una storia della giustizia, recently translated in Portuguese. Soma problems are evoked, concerning the notion of justice as a ensemble of rules as well as a ehtos; concerning the concept of revolution with which Paolo Prodi works, and the problem of rupture and continuity; and, finally, concerning the place given by the author to the modern Inquisition.

    KeywordsPaolo Prodi: history of justice Churchs history constitutional forms in-tolerance.

    1 Resenha crtica do livro de PRODI, Paolo. Una storia della giustizia. Dal pluralismo dei fori al moderno dualismo tra coscienza e diritto. Bolonha: Il Mulino, 2000 (trad. port.: Uma histria da justia. Do pluralismo dos foros ao dualismo moderno entre conscincia e direito. So Paulo: Martins Fontes, 2005), publicada em Storica, 17, ano VI, 2000, p. 85-100. Texto traduzido e publicado com a gentil permisso do autor, por Carlos Alberto de M. R. Zeron, professor do Departamento de Histria-FFLCH/USP.

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    O livro de Paolo Prodi, Uma histria da justia. Do pluralismo dos foros ao moderno dualismo entre conscincia e direito, bastante excepcional no panorama da produo historiogrfica qual estamos habituados. uma obra de pesquisa histrica realizada sobre fontes de primeira mo, mas tambm uma interpretao de todo o percurso histrico da cultura ocidental sob o ngu-lo de um problema de grande e atualssima importncia: a questo da justia, compreendida como conjunto de leis e de regras positivas capazes de restaurar a ordem social perturbada pelo crime, mas tambm como ethos, norma no es-crita que fala no interior das conscincias e consente individuar a culpa moral, o pecado. Sobre culpa, lei e memria fala-se e escreve-se difusamente; sobre isto escreveu recentemente, entre outros, Paul Ricoeur, propondo, entre outras coisas, pr uma distino preliminar entre culpa (culpabilit) poltica e culpa moral.2 Ao delito punido pela lei do Estado e culpa moral so comumente reservadas histrias diversas: ao lado da histria do direito como definio do crime, coloca-se a histria do processo de justificao como evacuao do pe-cado. No fcil compreender o nexo entre uma coisa e outra, a fronteira mvel com que o curso da histria uniu e distinguiu os dois campos. Em anos longn-quos, foi o grande telogo protestante Karl Barth quem colocou o problema da conexo entre justia (Recht) e justificao (Rechtfertigung). Barth influenciou todo o pensamento teolgico cristo nascido da crise dos anos trinta e da sada do totalitarismo nazista. Desde ento, a questo da culpa, da lei e da memria gravou-se em nosso horizonte e colocou problemas ao trabalho histrico. Mas os produtos daquela proposta dividiram-se segundo as tendncias profundas que separaram longamente mundo catlico e mundo protestante. Da tradio historiogrfica protestante resultou recentemente a publicao de uma histria da justia de Deus como doutrina teolgica da justificao do pecador.3 Da tradio historiogrfica do catolicismo italiano saiu, por outro lado, a proposta de Paolo Prodi de enfrentar, num mesmo quadro histrico, a histria da justia como conjunto que abraa pecados e crimes, sentido de culpa individual e demanda de justia social. A sua pesquisa nasce da convico de que h uma necessidade de voltar histria para buscar compreender a crise do sentido de justia e o vazio moral no qual operam os tribunais. H alguns anos, Duncan B.

    2 RICOEUR, Paul. La mmoire, lhistoire, loubli. Paris: Seuil, 2000.3 McGRATH, Alister E. Iustitia Dei. A history of the chrstian doctrine of justification. 1 ed. New York: Cambridge University Press, 1986. (2 ed. 1998).

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    Forrester, professor de teologia na Universidade de Edimburgo, defendeu que o problema da justia consistia no ter-se tornado um mundo de regras a serem observadas, mais do que um compromisso pessoal para o bom andamento da comunidade.4 Para corrigir o erro, ele sugeria refletir sobre a histria crist e sobre a teologia: uma teologia que, tendo suas razes na religio de um Deus injustamente condenado a morrer crucificado, no podia pela sua natureza limitar-se a bendizer a ordem poltica existente.

    Hoje, com a obra de Paolo Prodi, aquele auspcio foi traduzido na realidade de uma pesquisa vasta, original, digna de atenta leitura e reflexo. Prodi um mestre daquela historiografia, to pouco em moda hoje, que busca no passado a formulao das questes oriundas do engajamento civil e poltico nos pro-blemas do presente; um verdadeiro mestre, to claro e determinado em expor nos seus livros as suas ideias quanto aberto ao confronto das ideias alheias e ao direito dos demais de seguirem a prpria estrada. O seu percurso intelectual de estudioso um modelo de constncia e de inovao, ntido na sua lgica interna e capaz de abrir-se ao dilogo com grande liberdade intelectual. No o caso, aqui, de refazer o percurso que o conduziu dos interesses juvenis pela questo historiogrfica que era ento a da Reforma catlica e/ou Contrarreforma, at a grande e original pesquisa sobre a histria do juramento5 e sobre a histria da justia. Deve-se, ao contrrio, discutir sobre este livro. um livro que exigir um longo tempo de absoro: a obrigao de discuti-lo sria e atentamente tanto mais urgente quanto mais ameaa o perigo de uma celebrao evasiva e distrada, como uma via de escape sem riscos diante de uma obra protegida e abrigada na espessura da pesquisa e na profundidade das razes escondidas.

    Ela apresenta-se com um ttulo de enganosa modstia. Mas o leitor en-contra ali, alm de uma histria da justia, muitas outras histrias: inclusive e sobretudo uma histria da Igreja. Apenas, em lugar das mudanas de papas e cardeais, de conflitos doutrinais, de hereges e bruxas, aqui se oferece uma histria de como foi construda, ao longo dos vrios sculos, uma imponente realidade jurdica, moral, mas tambm poltica e religiosa, capaz de governar vastas massas humanas no plano espiritual e temporal. Por esta via, histria da

    4 FORRESTER, Duncan B. Christian justice and public policy. Cambridge/ New York: Cam-bridge University Press, 1997, p. 47. Sobre o vazio moral (moral vacuum) no qual operam os tribunais, ver p. 38.5 O autor refere-se aqui a outro livro de PRODI, Paolo. Il sacramento del potere: il giuramento politico nella storia costituzionale dellOccidente. Bologna: Il Mulino, 1992 [n.d.t.].

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    justia e histria da Igreja revelam o seu parentesco no passado histrico da tradio europeia ocidental.

    No presente, o tema da justia sempre problemtico e estimulante: a capa-cidade das instituies judicirias e da cultura jurdica de responder adequada-mente s questes de uma conscincia perplexa encontra-se em discusso hoje mais do que nunca. O problema apresenta-se cada vez mais frequentemente, em diferentes ocasies: hoje, chama-se condio do embrio, biogentica, ventre de aluguel; ontem e anteontem era a vez das clonagens, da ovelha Dolly, das doenas sexuais, da pedofilia e ainda outros. E havia ainda a privacy, a igual-dade de oportunidades, o direito dos menores: a cada vez, problemas de regras a serem escritas, de autoridades especiais a serem criadas, de escolhas morais a serem julgadas e sancionadas pela lei. Mesmo os historiadores viram-se e conti-nuam e ver-se cada vez mais frequentemente obrigados a elaborar seus cdigos de deontologia profissional sobre questes gravssimas o negacionismo, por exemplo mas tambm sobre aquelas infinitamente menos graves ( recente o caso de uma proposta de cdigo para o uso das fontes orais). Uma densa trama de normas legais chamada a cobrir todos os atos da vida cotidiana, numa disputa infinita entre a rgida argamassa normativa das leis e as perplexidades da moral, ou antes, das diversas morais em conflito. um processo de jurisdicionalizao que substitui em modo progressivo e sistemtico formas tradicionais de consenso difuso e de prticas extrajurdicas, inutilizando os ltimos traos daquele espao autnomo que a cultura do cristianismo europeu, herdeira da tradio jurdica romana e daquela religiosa do hebrasmo, reconheceu s questes morais. A raiz da conflituosidade repetidamente manifesta e da necessidade de acordar-se a cada vez sobre as questes, elaborando normas escritas como tratados entre potncias em luta, reside na presena simultnea, na sociedade, de opinies diversas e de escolhas morais que remetem a autoridades dessemelhantes e in-compatveis autoridades coletivas tais como religies e tradies, mas sempre e cada vez mais convices amadurecidas na cela solitria onde o indivduo fala consigo mesmo. Daqui deriva a natureza irremediavelmente problemtica das relaes entre moral e direito. O ato do juiz que estabelece que coisa licita e que coisa proibida aparece muitas vezes desoladamente arbitrrio, como que pairando num espao vazio, sem outro apoio a no ser aquele, precrio, dos cdigos. Pode-se ter esperana apenas na sua capacidade profissional de inclinar-se aos problemas das pessoas e da sociedade, de agir com prudncia e discrio, de escapar do poder corruptor da mdia. Inclusive porque, no lugar

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    das agncias de moral social que lhe eram familiares a religio e a poltica, as igrejas e os estados avana hoje como protagonista um poder econmico transbordante e incontrolado, capaz de um uso sistemtico e agressivo dos meios de comunicao de massa e, por esta via, novo legislador e construtor da mora-lidade coletiva, atravs do exerccio de uma espcie de direo da conscincia massificada. este o cenrio sobre o qual desemboca a reflexo de Prodi. As suas preocupaes esto dirigidas a um aspecto do futuro que j se encontra inscrito no nosso presente. Hoje, as normas de leis j se inclinam sobre um terreno de escolhas morais individuais que vemos frequentemente com um profundo incmodo abrir-se ao sofisma, ao debate, prtica discursiva dos tribunais, desenfreada e apressada subjetividade do ser humano que julga. O foro da conscincia no possui uma voz coletiva; em tempos no longnquos, na Itlia democrata-crist do catolicismo de Estado, havia quem o interpretava referindo-se ao senso comum (por exemplo, do pudor). Mas, honestamente, no existiam modelos persuasivos naquela ocasio, nem tampouco passveis de serem novamente propostos, hoje.

    Este o horizonte para quem se dispuser a ler esta histria da justia de Prodi, hoje: o precrio, incerto horizonte do cotidiano. Buscar conforto e luz na histria no coisa que se faa sem risco. A historiografia a italiana em particular no vive um perodo brilhante. O muro de Berlim deixou sob seus escombros a certeza de muitos e fez emergir protagonistas de pouco flego, comprometidos no jogo fcil, mas, a longo termo, tedioso, que consiste em virar as certezas de cabea para baixo e em rever os lugares comuns da perspectiva histrica. Mas as excees so sempre possveis; e esta o . Aqui, finalmente, o leitor encontra um grande livro de histria e de ideias, um livro que expe minuciosamente o seu ofcio de descobrir sob as moles ondulaes da paisagem atual as duras sedimentaes dos sculos. Dizer que um livro importante um risco de ser redutor diante da construo de grandes propores da pes-quisa, da importncia das questes enfrentadas, da densidade das mensagens. Aqui temos o fruto mais maduro e rico de uma pesquisa histrica que, aps ter explorado longamente a histria e os problemas do mundo catlico italiano, chega agora, pelos seus prprios caminhos, para um encontro que concerne em vrias maneiras ao nosso tempo. A questo presente concerne possibilidade de garantir-se diz Prodi a sobrevivncia da civilizao jurdica ocidental, sem a presena de normas morais, que so distintas e autnomas relativamente ao cdigo. No que tais normas no existam: mas a conscincia individual parece

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    a Prodi assustadoramente frgil e incerta, sem institutos, tradies, foras nas quais apoiar-se. A tendncia de regular as questes de uma moralidade perplexa recorrendo a leis e juzes, tornando a inchar o cdigo com normas sempre no-vas, parece um remdio inadequado e invariavelmente atrasado. O cdigo, a resposta napolenica adotada no Oitocentos pelos estados europeus, foi durante muito tempo a moral dos povos, o lugar onde a crena no progresso depositou nas leis civis a razo natural enquanto fundamento do direito. O cdigo subs-tituiu o pluralismo dos ordenamentos do mundo medieval, deixando-o diante da simplificada oposio entre um direito inevitavelmente imbricado com o poder nas suas formas velhas e novas, e uma norma moral que no consegue mais encontrar um territrio exterior conscincia. Percorrer novamente, na sua longa durao, toda a histria da justia significa, portanto, duas coisas: de um lado, substituir uma histria da antiga representao de uma luta de mo nica entre razo e superstio, entre luzes e trevas; de outro lado e isto dito muito claramente , significa excluir todo risco de nostalgia reacionria. O predomnio da lei positiva escrita e o seu monoplio por parte do Estado assinalaram um momento decisivo do processo de modernizao. Diante da crise do Estado e da reproposio do dualismo entre conscincia e lei positiva, a sada no pode ser aquela de voltar ao monoplio eclesistico medieval da justia; inclusive porque a Igreja que encarnou aquela antiga ordem encontra-se ela mesma diante de uma difcil encruzilhada, entre fora de opinio e sociedade fundada sobre regras.

    Ningum deve enganar-se, portanto, com relao aparente modstia do ttulo. Estamos aqui verdadeiramente diante de uma tentativa de escrever a histria da justia, no seu duplo aspecto: o sentido interior do mal e da culpa e a norma positiva para regular a vida social, a lei de Deus e aquela dos homens, a moral e a lei. uma histria, finalmente, de vastssimo flego e, ao mesmo tempo, de realizao atenta e artesanal, controlada e verificvel nos detalhes. O projeto inteiro concerne civilizao europeia, dos gregos at hoje; mas, neste projeto, o que toma corpo, apoiado sobre a base de uma pesquisa de primeira mo, , como j foi dito, a histria da Igreja crist ocidental. Aqui, a Igreja , afinal de contas, uma realidade no mais dividida entre o plano do poder e aquele das ideias, entre os sentimentos dos crentes e as prticas do vrtice. histria de uma pertena regida por regras, de uma realidade onde robustas instituies fundam e organizam a relao com Deus e com a sociedade.

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    Em epgrafe, a lei dada aos hebreus por Moiss citada junto Antgona de Sfocles, a herona destinada a morrer porque o deus que fala conscincia no tem lugar na polis grega. um envio simblico tradio hebraica e ao direito romano, as duas entidades que presidem a construo do robusto palco jurisdicional da Igreja medieval. Mas sobretudo o segundo que recita a parte do protagonista na reconstruo da nutrida pluralidade dos foros concebida pela cultura medieval e do modo pelo qual a estrutura e a cultura da Igreja deram a eles um fundamento orgnico. Infelizmente, o leitor deve amide dar crdito densidade das pginas de Prodi, sem presumir poder controlar os seus movimentos em um modo analtico. Isso corre sobretudo ali onde a sua anlise se detm nos caminhos medievais do direito, romano, cannico e comum, nos nexos e nas trajetrias entrecruzadas do direito civil e do direito cannico. O leitor que no tem familiaridade com a matria fica frequentemente com a impresso de assistir a verdadeiras demonstraes de maestria, sem estar al-tura de apreci-las plenamente. Mas culpa do leitor. o sinal de uma abertura entre a histria e o direito que pertence quelas lacunas a serem preenchidas na formao dos historiadores, da qual certamente Prodi encontra-se indene. A incorporao de materiais jurdicos alentados em um painel histrico que no de histria do direito, em um sentido estreitamente disciplinar, um mrito do autor. Aqui, o direito casado com a teologia fornece no apenas e no tanto a paisagem mental da poca, mas o terreno vivo do qual as instituies retiram o seu hmus. O olhar plana sobre uma longa durao de sculos, a partir do observatrio escolhido h algum tempo pela historiografia (sobretudo alem) que retomou a tradio apontada por Max Weber: aquele das formas constitu-cionais e do modo pelo qual, de revoluo em revoluo, exprimem e modelam os ordenamentos da sociedade no tempo. Somos convidados assim a buscar na histria do poder e da poltica, mais do que na economia, a fora motora da histria: e em forma de Igreja, isto , de um poder que se declara divino e no conhece limites, que o Estado entra em cena no Ocidente, como o escre-veu Harold J. Berman em um livro bastante inovador, Direito e revoluo. As origens da tradio jurdica ocidental, 1983. Na coleo de textos e estudos, o volume de Prodi encontra-se ao lado da traduo italiana (no integral, mas amplamente adaptada em funo do pblico italiano, conforme adverte o prefcio) do livro de Berman, e provvel que dali em diante encontremo-los associados como ttulos gmeos na literatura de referncia. Queremos contri-buir para que isto no ocorra sem qualquer discernimento. Que a obra secular

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    (iniciada em 1938) de um professor emrito de Harvard formado na escola de historiadores do direito e da sociedade de cultura anglo-saxnica (os nomes citados so aqueles de E. Rosenstock-Huessy, T. F. T. Plucknett e R. H. Tawney) seja diferente, em muitos aspectos, daquela de um historiador italiano formado na Universidade Catlica do Sagrado Corao, aluno de Giuseppe Dossetti, de Hubert Jedin e de Delio Cantimori, no poder certamente causar estranheza. Prodi declara em mais de uma ocasio referir-se obra de Berman e no h razo para duvidarmos disso. Basta o envio comum a Weber e a uma noo do direito como fato, mas sobretudo como ideia, como fenmeno material e ideal que nasce das estruturas e se difunde para cima e para baixo. Entre ambos, possvel notar uma preferncia de Berman pela teologia e de Prodi pelo direito: Berman fala de uma revoluo teolgica (na diviso entre razo e f) como uma companheira indispensvel daquela jurdica. Mas sobre o uso do con-ceito de revoluo, mais em geral, que se nota uma diferena. Prodi declara apropriar-se de uma ideia capital da obra de Berman: que a primeira revoluo ocidental foi a papal, iniciada por Gregrio VII e completada por Inocncio III e Bonifcio VIII. Mas j no modo como Prodi cita, parafraseando a obra de Berman, tem-se uma indicao do seu modo de interpret-la: para ele, o volume de Berman pe a revoluo papal, a reforma iniciada por Gregrio VII no sculo XI (...) na base do dinamismo constitucional que caracteriza toda a vida do Ocidente (p. 60). A revoluo torna-se uma reforma. As palavras so importantes no trabalho histrico; mas no apenas questo de palavras. Para Berman, o conceito de revoluo indica uma fratura violenta e profunda infligida pelo papado e pelo vrtice da Igreja crist na sistematizao do poder real e das doutrinas portanto, no plano real como no plano simblico , ali onde Prodi deixa de lado as revolues nas doutrinas e acentua os aspectos de continuidade, ou ao menos o carter de moto perptuo de um processo de inovao que, de alguma maneira, compartilha a mesma natureza da sntese de romanidade jurdica e de fermento evanglico cristo que, no seu resultado e no seu influxo contnuo e recproco, criaram o Ocidente. Por esta via, revoluo acaba sendo quase o sinnimo de continuidade: o que caracteriza o Ocidente e que qualifica a civilizao como continuamente mvel e revolucionria escreve na p. 112, ilustrando a sua leitura da proposta de Berman a dialtica entre estas instituies, quais sejam o direito cannico e o direito secular, a Igreja e o Estado, em concorrncia entre elas para normatizar a vida do homem. Uma continuidade revolucionria, uma revoluo contnua: o oximoro introduz uma

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    viso organicista do desenvolvimento histrico, no lugar de uma ideia aquela de Berman dominada pela descontinuidade.

    A diferena faz-se ainda mais evidente quando o discurso enfrenta um tema obrigatrio de qualquer histria da cultura jurdica europeia e do lugar que nela ocupam os direitos da conscincia: a Inquisio contra a heresia. Este o aspecto mais controverso da ao do papado medieval, aquele diante do qual a escolha oscila entre uma apologtica medievalisante e nostlgica mais ou menos embaraada e uma reivindicao mais ou menos apaixonada das conquistas das lutas religiosas do Quinhentos e da razo iluminista. Berman liberta-se rapidamente da questo: para ele, a presuno eclesistica de julgar a heresia e de puni-la com a pena de morte foi a virada revolucionria realiza-da por uma hierarquia eclesistica que, entre os sculos XI e XII, traou pela primeira vez uma ntida distino entre pecado e crime e conseguiu retirar astuciosamente das autoridades laicas a jurisdio sobre os pecados (p. 210). lapidar o seu juzo sobre o assunto: para ele, o recurso pena de morte para os herticos representou uma anomalia sobre a qual, ao final no sculo de-zesseis encalhou todo o modelo (p. 211). Em Prodi, o discurso cheio de nuances: a inquisio eclesistica sobre a heresia uma necessria fronteira externa da ao da Igreja e um instrumento interno de disciplina, um instru-mento racional e formalizado (p. 92), um progresso indubitvel com respeito era precedente, dos juzos de Deus, um ato de imposio da obedincia autoridade para quem a heresia concebida sobretudo como desobedincia ao poder legtimo. As suas razes e suas copas encontram-se alhures, so atribudas mais ao poder laico que quele eclesistico, mais tradio romana que quela crist: paradoxalmente, mas nem tanto observa Prodi , o procedimento in-quisitorial a parte do direito cannico mais dominada pelas normas do Corpus iuris civilis justiniano (p. 97). E no por acaso as inovaes de Inocncio III vm assinaladas como imediatamente assimiladas pela legislao anticlerical de Federico II. Quanto nova Inquisio quinhentista, a romana, ela quase no contribui neste projeto entretanto vasto: ela sumariamente julgada como um simples sobressalto daquela medieval. A cena da poca totalmente ocupada pelo conflito entre o Estado e a Igreja, em matria de uso do poder sobre as conscincias: o Estado vitorioso que se ocupa da construo de um sistema disciplinar, apropriando-se e estendendo o plano elaborado pela Igreja nos sculos precedentes. A soluo anglicana de substituio pura e simples do

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    titular supremo do poder, sem alteraes de outro gnero, julgada exemplar. E o mundo catlico italiano sai definitivamente de cena.

    Tudo isto bem compreensvel, ainda que no totalmente e nem sempre compartilhvel. O desenvolvimento histrico da Igreja catlica, da Contrarrefor-ma em diante, conduz ao receptculo do Conclio Vaticano I e de um embasti-lhamento dentro dos confins de uma rea aquela italiana longamente tutelada pelos riscos do mundo moderno, ao preo de um sistema fundado sobre a cenoura (a confisso) e o basto (a Inquisio). Deter-se sobre um silncio num livro to denso e rico pode parecer pouco generoso. Uma certa dose de esquematismo inevitvel em um percurso to certo e determinado no seu objetivo, de parte de quem no tem tempo para sobrestar-se em detalhes, porque tem em mente coisas mais importantes para dizer. Mas uma discusso de um livro importante como este deve colocar em primeiro plano os pontos de divergncia para ser til ao leitor e para corresponder vontade explcita do autor de estimular as ideias. Seja dito ento que, entretanto, a Inquisio medieval no foi apenas uma defesa nos confins do mundo cristo e no tinha modelos antigos que retomar. Como observou Arnaldo Momigliano, a intolerncia nasce com o cristianismo medieval; o mundo antigo no a havia conhecido. Ora, a luxuriante profuso de literatura jurdica e de institutos que estruturam o espao da lei moral e da relao com Deus est intrinsecamente ligada ao regime de cristandade como regime de intolerncia. Este aspecto, da intolerncia semeada pela Igreja crist, no tematizada aqui como deveria: inclusive porque no se tratou apenas de heresia crist, mas da relao com os outros, os judeus, os muulmanos. O sistema de penas e de tribunais descrito por Prodi teve uma funo essencial nos processos de excluso e deu vida a uma ainda mais grandiosa construo de identidades agressivas que marcam at hoje as caractersticas do Ocidente. Portanto, fazer nascer das instituies e da cultura do governo eclesistico a instncia da resposta ao senso de culpa e da justia ofendida alguma coisa que recorda a farmacopeia da medicina moderna, a qual em boa medida devia curar o mal que ela prpria provocava.

    Ter em conta a relao entre construo de identidades coletivas e processos de excluso ou de agresses no secundrio, contudo, com relao ao problema central do qual se fala. A moralidade do corpo social em regime de cristandade foi elaborada, cresceu e encontrou as suas instituies e regras em um contexto de fechamento (na Europa assediada) e de excluso dos diversos. E explodiu quando o corpo cristo dividiu-se internamente. Por isto, o problema da Inqui-

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    sio no secundrio. De qualquer maneira, difcil admitir que a Inquisio que renasce na Roma dos Quinhentos tenha sido apenas um sobressalto daquela medieval. As suas novidades institucionais, a sua complexa ao histrica, o exerccio de um controle sistemtico e capilar sobre as conscincias atravs da obrigatoriedade do vnculo entre confisso e Inquisio, introduzido por Paulo IV em 1559, so dados de uma realidade nova, adequados a uma situao em que se destroara completamente a base de formao de uma ideia comum de justia. Se o fundamento institucional e a cultura jurdica retomam elementos precedentes, fazem-no em uma situao e com uma inteno profundamente diversas, no interior da relao entre uma Igreja catlica ameaada interna e externamente e o resto do mundo cristo europeu. Para o vnculo institucional e obrigatrio entre confisso e Inquisio, eu usei um termo tribunais da conscincia que Prodi explicitamente recusa tomar em considerao, con-centrando sua ateno, por outro lado, sobre o modo pelo qual o Conclio de Trento operou com relao teoria e prtica da confisso. Por este caminho, os elementos de continuidade resultam bastante mais evidentes do que aqueles revolucionrios, de ruptura. Mas o fato de que a sociedade daquela poca e dos tempos seguintes no foi governada por padres tridentinos, e sim pelo papado e pelas congregaes romanas dominadas pelo Santo Ofcio, um dado aceito (e Prodi apresenta no seu livro uma grande quantidade de argumentos neste sentido). Na experincia histrica, as nuances dos decretos tridentinos contaram bem pouco; por outro lado, pesou bastante o ato de imprio papal que imps o deslocamento obrigatrio das confisses diante dos tribunais da Inquisio. Aquele ato significou instituir tribunais da conscincia, e no outro. Aqui, no possvel abrir-se a outras interpretaes, e oportuno explicit-lo. menos produtivo fazer emergir a polmica deslocada para um detalhe em si totalmente insignificante.6 A isto eu gostaria de acrescentar uma considerao

    6 A recusa da expresso tribunal da conscincia encontra-se formulada na p. 284. A divergncia de Prodi, em confronto comigo, vem assinalada na p. 285, n. 20, mas apenas naquilo que concerne interpretao da noo de disciplina no pensamento do polemista catlico Eck. Na realidade, no h qualquer divergncia. Como nota justamente Prodi, Johann Eck retoma a constituio do Conclio Lateranense IV no seu programa de um sistema de disciplina crist. Definir a ideia de Eck como uma disciplina plena de nuances humanistas e antiquisantes (Tribunali della coscienza, p. 266 n.) era uma banal observao de leitura, margem do seu tratado mais amplo sobre o assunto, De poenitentia et confessione, ao qual eu remetia e que contm muitas citaes de Ovdio, Sneca, Menandro e outros autores clssicos. Sobre a disciplina como instrumento de governo do povo, o mundo antigo podia ensinar coisas bem diversas, como o livro de Prodi o demonstra.

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    que nasce da experincia de uma pesquisa cujos resultados Prodi faz-me a honra de considerar fascinantes. Percorrendo as atas dos processos inquisitoriais e dos testemunhos espontneos ativados pelo mecanismo da confisso subordinada Inquisio, num fechamento do sistema que mostra toda a carga permeada de violncia que pesa sobre as conscincias, fiquei marcado pelos testemunhos que se podem recolher nos documentos inquisitoriais da percepo, da confisso e da inquisio. Indubitavelmente, os crentes fiaram-se plenamente em tais canais da justia da Igreja; mas houve um nmero impreciso e seguramente vasto de rebeldes, ou ao menos de pessoas que sofreram o seu peso intolervel. O sistema, visto na sua prtica, manifesta a degradao das normas jurdicas elaboradas e descritas com cristalina lucidez jurdica por canonistas e juristas em um acmulo de casos desajustados, dolorosos, de um peso quotidiano e duro. Eis o que eu queria destacar a propsito da questo da modernidade da Inquisio, da sua inscrio em um horizonte de garantias jurdicas e assim por diante. O livro de Prodi alarga enormemente o discurso aberto h alguns anos por John Tedeschi de um modo concreto e cauteloso, mas ao mesmo tempo decidido: em ambos os casos, a fonte dominante aquela das regras jurdicas, das instrues para confessores e para juzes. Todavia, se incorporarmos documentao as camadas sociais mais baixas e questionarmos qual percepo tinham daquele mundo da justia, encontramo-nos diante de uma imagem profundamente diversa.

    Muitos problemas abrem-se aqui e ser necessrio que os estudos hist-ricos esclaream-nos. Antigo e sempre atual , por exemplo, o problema das dimenses do dissenso e da dvida na poca da Reforma e da Contrarreforma. Como interpretar aquela paisagem de inimizades e hostilidades difusas nas parquias ps-tridentinas que surge na recolha de dados das visitas pastorais? Que a sociedade do Antigo Regime tivesse nos mecanismos de averso e na litigiosidade fcil uma caracterstica fundamental, e que deste ponto de vista a paisagem moral fosse muito diversa da disciplinada e compacta sociedade moderna quase um lugar comum historiogrfico. Mas verdade tambm que hostilidade horizontal interna ao corpo social soma-se, aps a Reforma e a Inquisio, uma hostilidade vertical potencial, uma oposio surda e silenciosa nos confrontos da religio oficial. A normativa medieval se abatia sobre uma populao que vivia pela primeira vez a experincia das diversas interpretaes do cristianismo em uma Europa devastada pelas guerras de religio. poss-vel, portanto, que, na prtica de governo, frmulas antigas cubram realidades completamente novas: se nas visitas pastorais se encontra um grande nmero

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    de casos de no cumprimento do preceito pascal, devemos contentar-nos com a explicao oficial (inimizade) ou no podemos imaginar tambm motivos inconfessveis de divergncia doutrinal?

    Mas intil continuar a percorrer sempre este mesmo caminho. A pesquisa de Prodi coloca-se sobre um percurso diferente, com respeito quele que fazia derivar a afirmao da liberdade de conscincia da experincia dilacerante do dissenso. No encontramos neste livro nem sequer o nome de Sebastiano Castellione; toda a matria vem resumida em um pargrafo dedicado ao cris-tianismo radical e colocada rapidamente sob o signo das utopias terrificantes de seitas para as quais basta enviar obra, decerto clssica, mas fundamentada em velhas pesquisas, de Ernst Troeltsch. O fato necessrio record-lo con-tinuamente que esta no uma histria da afirmao da ideia de tolerncia ou da liberdade de conscincia, mas uma histria da justia como norma que une a coletividade em torno de valores partilhados, sob o governo de insti-tuies que espelham e interpretam a pluralidade dos nveis e dos contextos. No esboo de Prodi, a liberdade de conscincia no concerne ao indivduo, no a afirmao heroica do indivduo isolado, mas a condio de uma cole-tividade que deve ser colocada em condies de ter valores morais comuns e partilhados de tal maneira que no exijam a interveno de leis escritas. Esta condio eis a anamnese histrica nasceu na Europa a partir da presena de uma polaridade de poderes. Daqui deriva o diagnstico desesperado de um Estado presente, sem sada e sem nostalgia. O percurso que o conduziu at aqui indagado no seguindo os sinais dos progressos da afirmao intelectual da conscincia individual, do direito heresia, mas aqueles dos ordenamentos jurdicos e das suas relaes com o poder, de um lado, e com a coletividade, de outro. genealogia da concepo moderna da inviolabilidade das conscincias individuais dedicaram-se as pesquisas de estudiosos como Francesco Ruffini e Delio Cantimori (e de seus alunos) sobre os herticos do Quinhentos: seus estudos iluminaram os traos residuais de quem, ento, reagindo aos poderes da Igreja e do Estado, aliados no combate ao crimen lesae maiestatis, colocou os fundamentos dos direitos das conscincias, de todos, atravs da paridade das crenas possveis e da recusa da violncia por motivos de convico religiosa. Trata-se de uma historiografia bem conhecida e familiar ao autor: mas aquele caminho foi conscientemente abandonado, porque no foi estimado frtil de respostas ao problema aqui colocado. A poca que vai da Reforma luterana aos nossos dias foi descrita pela historiografia liberal e filo-protestante, desde

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    h algum tempo, como o percurso em direo autonomia da conscincia in-dividual, no mais sujeita s imposies de nenhum tribunal externo. Era uma histria que comeava com a clebre resposta de Lutero a Carlos V: o vnculo interior do indivduo com a palavra de Deus era mais forte do que qualquer autoridade terrena. Desaparecia assim o poder da Igreja. Mas observa agora esta histria que parte de um ponto de vista substancialmente e profundamente catlico, sensvel norma moral como regra de comunidades inteiras, lugar de encontro entre exigncias difusas, elaboraes jurdicas, instituies , no o substitua a autonomia moral do indivduo e sim o poder do Estado, pronto para exigir um pertencimento sem nenhum limite. Apenas na luta entre Estado e Igreja ter-se-ia criado, portanto, o espao para o desenvolvimento da conscincia como expresso da responsabilidade moral, lugar de liberdade do indivduo e, sobretudo, do corpo social.

    A esta longa fase da histria medieval e moderna da justia, Prodi dedica captulos densos de doutrina jurdica e teolgica e, ao mesmo tempo, limpida-mente organizados, que tornam o seu livro uma obra de referncia fundamental. O quadro do processo de estruturao dos novos poderes no panorama europeu da idade moderna que aqui oferecido ntido e rico de ideias. Dele emergem os estados modernos e inclusive a Igreja de Roma que se organizou ela tambm como um Estado, ou procurou recuperar um poder supraestatal atravs das concordatas, somado a um prestgio de governo universalista. Com a Reforma protestante, o direito cannico e o sistema de tribunais eclesisticos (das cortes episcopais confisso) foram diversamente herdados e elaborados pelas igrejas europeias e pela cultura jurdica, filosfica e moral do mundo moderno, enquanto na Europa catlica o direito cannico feneceu e desapareceu, substitudo pelo direito pontifcio. A Reforma protestante foi a tentativa, da parte do poder dos prncipes, de substituir-se ao papado: uma tentativa que, como foi dito, atinge a sua forma perfeita com a Igreja Anglicana. Segundo Prodi, no foi a reao das conscincias crists contra o poder papal, mas o conflito entre poder eclesi-stico e poder estatal que permitiu que se abrisse um espao autnomo para as escolhas da conscincia. A criao de uma tica laica emerge da reflexo de Montaigne sobre o fundo da desiluso histrica diante do objetivo concreto da administrao estatal da justia, diante do tribunal do novo Estado teorizado por Jean Bodin (p. 356).

    Este o quadro. No seguiremos o autor adiante, na sua apaixonada pesqui-sa, da qual nasceu uma construo robusta e ricamente povoada, onde a tradio

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    do pensamento poltico e jurdico do mundo europeu moderno inteiramente percorrida, com a agressiva inquietao de quem busca as pistas de alguma coisa que j conhece. Citaremos um nico exemplo, notvel entre outros (e que sirva de alerta ao leitor no especialista), no restauro da leitura de Kant. Prodi assinala a existncia no pensamento do filsofo de uma sede de juzo tico-pblica no coincidente com a jurisdio estatal (p. 187). Entre a moral da conscincia individual e o campo da lei estatal, restava, portanto, inclusive para o filsofo do individualismo moderno, este espao da moralidade pblica como espao governado por um poder julgador.

    Estabelecido que este o terreno da pesquisa e da reconsiderao do pas-sado, bastar dizer que todo o livro se destaca admiravelmente no modo pelo qual o autor capaz de enfrentar sem temor fatos capitais da histria institu-cional e poltica, assim como da histria cultural da tradio europeia, luz de uma questo fortemente ancorada no presente, sem nostalgia pelo passado, sem respostas pr-confeccionadas para o futuro. Sem nostalgia: o passado de sociedades moralmente coesas nas quais um aperto de mos valia mais do que um contrato escrito pode parecer desejvel aos olhos de quem deve confiar rigidamente na norma do cdigo e preparar-se litigiosidade dos tribunais nas mnimas ocorrncias da vida. Mas aquele aperto de mos valia em uma sociedade fechada, hostil para os estrangeiros e para os diferentes: uma sociedade como aquela dos vilarejos italianos do Seiscentos que regulava, no mbito fechado do confessionrio, as matrias dos incestos e dos abusos sexuais que ocorriam entre as paredes domsticas, ou daquelas populaes bvaras do sculo XX cuja moralidade, segundo o nncio pontifcio, arriscava ser perturbada pela presena escandalosa das tropas negras francesas.7 Aquela sociedade fechada, refratria ao diverso, foi varrida e hoje estamos diante do problema de como reconstituir uma moralidade coletiva em condies de pluralismo e de multi-culturalidade. E a resposta no pode ser uma receita reacionria, do tipo que vem hoje proposta instrumentalmente por movimentos polticos racistas. Prodi faz bem em tomar um momento para um a parte com o leitor, onde explica com lmpida prosa que a passagem do pluralismo dos ordenamentos tpico do medievo ao moderno dualismo entre conscincia e direito positivo exclui (...)

    7 A partir do relatrio de Eugenio Pacelli, datado de 20 de abril de 1920, citado em Emma Fatto-rini, Germania e Santa Sede. Le nunziature di Pacelli tra la Grande guerra e la Repubblica di Weimar, Bolonha, 1992, p. 277-8.

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    qualquer nostalgia por um retorno a um pluralismo das fontes do direito, mas coloca com urgncia o problema da existncia de planos diversos de normas (...). O problema que temos diante de ns no aquele da recuperao de um mundo perdido, mas sim o da relao entre o direito, na sua relao inevitvel com o poder (qualquer que seja a forma que ele esteja tomando, atualmente) e a norma moral, entre o forum fori e o forum poli no circunscrito unicamente ao territrio interior da conscincia (p. 437-8). Este o problema: como resolv-lo, no cabe ao historiador diz-lo.

    Em um conto de Mark Twain, o protagonista consegue colocar as mos sobre a sua conscincia e despeda-la; deste momento em diante, leva uma vida pacfica e sem remorsos, entre um delito e outro. uma fbula que bem se adapta ao quadro histrico desta vasta e complexa histria da justia. Sem retirar nada amplitude do quadro desenhado e da sua carga inovadora num amplo territrio historiogrfico e civil, dir-se-ia que a histria do homem moderno, aqui descrita, assemelha-se histria narrada pelo escritor norte-americano.

    Recebido: agosto/2008 - Aprovado: fevereiro/2009