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O MEIO AMBIENTE COMO DIREITO DIFUSO E A SUA PROTEÇÃO COMO EXERCÍCIO DE CIDADANIA Adriano Stanley Rocha Souza * RESUMO O presente trabalho tem por fim analisar a evolução legislativa pela qual passou a questão do meio ambiente. Cuidaremos de demonstrar que a preocupação ambiental somente surge no Brasil à partir da década de 60 e, mesmo assim, devido às pressões internacionais que o mundo todo passou a sofrer, principalmente, após a criação do Clube de Roma, em 1972. Fator de primordial importância na evolução da proteção do meio ambiente no Brasil, foi a sua elevação a “bem de uso comum do povo”, ou seja: a sua elevação a bem jurídico. E, mais que isto, o tratamento que recebeu da Constituição da República como sendo um bem de interesse difuso. Somando-se a este tratamento, que a Constituição da República presta ao meio-ambiente, às poderosas Ação Popular e a Ação Civil Pública, abriu-se a possibilidade de que a defesa do meio ambiente não fique adstrita ao Ministério Público, mas transcenda a todos aqueles que desejarem exercer a sua defesa, o que contribuiria para maior fiscalização e zelo com a questão ambiental. Infelizmente, entretanto, a grande maioria do povo brasileiro ainda não tomou a consciência de que, ao cuidar daquilo que pertence a todos, estaremos cuidando do que é nosso. Que este trabalho ajude na conscientização da necessidade de se proteger o meio ambiente de maneira coletiva. PALAVRAS CHAVE MEIO-AMBIENTE; CONSTITUIÇÃO; AÇÃO CIVIL PÚBLICA; AÇÃO POPULAR; CIDADANIA * Mestre e Doutor em Direito Processual pela PUC MINAS Professor de Pós-graduação nos níveis de Mestrado e Doutorado em Direito Privado na PUC MINAS Professor de graduação de Direito Civil na PUC MINAS e UNIFEMM 4059

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  • O MEIO AMBIENTE COMO DIREITO DIFUSO E A SUA PROTEO COMO

    EXERCCIO DE CIDADANIA

    Adriano Stanley Rocha Souza*

    RESUMO

    O presente trabalho tem por fim analisar a evoluo legislativa pela qual passou a

    questo do meio ambiente.

    Cuidaremos de demonstrar que a preocupao ambiental somente surge no Brasil

    partir da dcada de 60 e, mesmo assim, devido s presses internacionais que o mundo

    todo passou a sofrer, principalmente, aps a criao do Clube de Roma, em 1972.

    Fator de primordial importncia na evoluo da proteo do meio ambiente no Brasil,

    foi a sua elevao a bem de uso comum do povo, ou seja: a sua elevao a bem

    jurdico. E, mais que isto, o tratamento que recebeu da Constituio da Repblica como

    sendo um bem de interesse difuso. Somando-se a este tratamento, que a Constituio da

    Repblica presta ao meio-ambiente, s poderosas Ao Popular e a Ao Civil Pblica,

    abriu-se a possibilidade de que a defesa do meio ambiente no fique adstrita ao

    Ministrio Pblico, mas transcenda a todos aqueles que desejarem exercer a sua defesa,

    o que contribuiria para maior fiscalizao e zelo com a questo ambiental.

    Infelizmente, entretanto, a grande maioria do povo brasileiro ainda no tomou a

    conscincia de que, ao cuidar daquilo que pertence a todos, estaremos cuidando do que

    nosso. Que este trabalho ajude na conscientizao da necessidade de se proteger o

    meio ambiente de maneira coletiva.

    PALAVRAS CHAVE

    MEIO-AMBIENTE; CONSTITUIO; AO CIVIL PBLICA; AO POPULAR;

    CIDADANIA

    * Mestre e Doutor em Direito Processual pela PUC MINAS Professor de Ps-graduao nos nveis de Mestrado e Doutorado em Direito Privado na PUC MINAS Professor de graduao de Direito Civil na PUC MINAS e UNIFEMM

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  • ABSTRACT

    The present paper aimed at analyzing the legislative evolution which the environment

    has been through.

    It is demonstrated that the concern about the environment came into focus in the 60s in

    Brazil. It happened due to international pressure which was over the whole world,

    mainly after the establishment of Club of Rome in 1972.

    The most relevant factor in favor of the evolution of actions to protect the environment

    in Brazil was its elevation to status of social welfare , which means that there is now

    an environmental policy. Moreover, the treatment it received, from the Republic

    Constitution, as a diffuse interest issue/matter.

    It has opened the possibility of defending the environment, not restricted to Public

    Prosecution, but it goes beyond to everyone who wishes to act in defense of it, which

    contributes to better and more intense environmental inspection.

    Unfortunately, most Brazilian citizens are still not aware of the care that should be taken

    to the environment as a whole, if doing so it will directly reflect on everyones.

    We hope this paper help people to be conscious of the need to protect the environment

    in a collective approach.

    KEY-WORDS

    ENVIRONMENT; CONSTITUTION; PUBLIC CIVIL ACTION; PUBLIC ACTION;

    CITIZENSHIP

    1. A evoluo das normas ambientais no Brasil

    Enfim, a comunidade jurdica nacional se desperta da letargia de que era

    dominada ao longo da sua histria no que se refere preocupao de um dos maiores

    patrimnios nacionais: o meio ambiente.

    At a promulgao da Constituio da Repblica de 1988, as normas

    relativas proteo ambiental eram escassas. Eram regras secundrias nas autorizaes

    e licenas administrativas outorgadas, onde se confundiam como meros requisitos ao

    licenciamento, como se fossem uma variante do Direito Administrativo.

    4060

  • Quando muito, eram normas infra-constitucionais elaboradas em

    diferentes perodos da histria nacional, com preocupaes dspares e desarmnicas,

    cada qual cuidando da proteo de recursos naturais diferentes, no se podendo falar na

    existncia de um conjunto de normas legais com a mesma filosofia, que tivessem por

    escopo a preservao do meio ambiente como um todo, que levassem em considerao

    toda a complexidade que peculiar matria.

    Tal despreocupao com a questo ambiental encontra explicao em

    fatores de variados matizes: cientfico, poltico, econmico e, at mesmo, sociolgico.

    At o incio do sculo passado ainda vigia o pensamento, herdado de

    sculos anteriores (em especial do final do sculo XIX), de que o desenvolvimento

    material das sociedades era o valor supremo a ser almejado. Desconsiderava-se por

    completo a possibilidade de que o processo industrial pudesse conter em si algum

    malefcio, fruto do lixo industrial, que fosse capaz de prejudicar a natureza. Natureza

    esta, que sendo compreendida pelos homens daquela poca como uma ddiva, talvez

    fosse capaz de absorver, de forma integral, todos os resduos que as atividades

    industriais viessem a produzir, sem que com isto sofresse qualquer conseqncia.

    Seguramente, a inexistncia de problemas ambientais agudos, quela

    poca, levava os homens a um entendimento generalizado de que a natureza seria

    capaz de absorver materiais txicos lanados ao meio ambiente, e, por um mecanismo

    natural (talvez mgico?!), o equilbrio seria mantido de maneira automtica1.

    A comunidade cientfica foi a primeira a perceber a urgncia em se

    adotar medidas de proteo ao meio ambiente a fim de se preservar o planeta e, por

    conseguinte, a espcie humana. Ainda assim, tal despertar se dera somente depois da

    segunda metade do sculo XX, mais precisamente aps 1960, quando as comunidades

    cientficas nacional e internacional intensificaram as suas atividades no sentido de

    conscientizar os povos dos riscos e dos prejuzos que o planeta j havia experimentado e

    ainda estava a suportar2.

    A despeito do vanguardismo que os movimentos ambientalistas

    representaram poca, a tomada desta conscincia j fora, de certa forma, tardia,

    1 SOARES, Guido Fernando Silva. Direito Internacional do Meio Ambiente. Emergncia, Obrigaes e

    Responsabilidades. So Paulo. Ed. Atlas. 2001. p. 35 2 BARACHO JNIOR, Jos Alfredo de Oliveira. Responsabilidade Civil por Dano ao Meio Ambiente.

    Belo Horizonte. Ed. Del Rey. p. 175

    4061

  • levando-se em conta a grande destruio e, em alguns casos, a perda total de muitos

    ecossistemas inteiros, de todas as partes do globo.

    Somente depois de intenso trabalho de conscientizao pblica3, levada a

    cabo por comunidades inteiras de cientistas e ambientalistas, alguns pases se

    despertaram para a necessidade de se criar mecanismos hbeis a proteger os seus

    ecossistemas. Merece destaque, neste perodo, os trabalhos realizados pelo chamado

    Clube de Roma, como um indicador da preocupao de cientistas, industriais e

    empresrios com o meio ambiente4.

    No caso brasileiro, tal conscincia s veio a ganhar maior fora no final

    do sculo XX, com a promulgao da Constituio da Repblica de 1988, que destinou

    um captulo inteiro ao Meio Ambiente (Captulo VI, do Ttulo VIII).

    Com este tratamento constitucional, teve incio no Brasil, finalmente, a

    preocupao poltica com a questo ambiental.

    Pela primeira vez na histria constitucional brasileira, os constituintes

    voltavam suas atenes para temas que at ento eram reservados aos ambientalistas,

    bilogos, gelogos, e outros doutores das cincias naturais.

    Tal destaque constitucional matria ambiental, contudo, s foi possvel,

    ou mesmo provocado, graas aos nveis de industrializao e econmico em que j se

    encontrava o Brasil no incio da dcada de 80. Isto porque, como bem salientado nas

    palavras de Jos Alfredo de Oliveira Baracho Jnior:

    A discusso de problemas ambientais s possvel em uma sociedade industrializada, seja porque nelas a organizao de interesses metaindividuais se torna vivel, seja porque os

    3 Resultado de tal conscientizao, e como reflexo das exigncias da opinio pblica internacional,

    em 1972, a ONU convocaria a citada conferncia em Estocolmo, tida como um dos marcos do Direito Internacional do Meio Ambiente, especialmente dedicada ao Meio Ambiente Humano, da qual resultaria a instituio, no sistema das Naes Unidas, do Programa das Naes Unidas para o Meio Ambiente, o Pnuma, entidade com sede em Nairbi, capital do Qunia.

    SOARES, Guido Fernando Silva. Direito Internacional do Meio Ambiente. Emergncia, Obrigaes e Responsabilidades. So Paulo. Ed. Atlas. 2001. p. 37

    4 O Clube de Roma financiou o trabalho Limites do Crescimento (Limits to growth), tambm conhecido como Relatrio Meadows, produzido por uma equipe de especialistas do Massachusetts Institute of Tecnology MIT, no qual se buscava apontar a extenso e a natureza dos principais problemas ambientais, utilizando-se um modelo ciberntico da realidade do planeta. O documento causou grande impacto, tomando-se uma referncia do movimento ambientalista na dcada de 704. BARACHO JNIOR, Jos Alfredo de Oliveira.Op. cit. p. 175

    4062

  • problemas ambientais se tornam mais acentuados com a industrializao.

    Quando os problemas ambientais se apresentaram de forma grave para a sociedade moderna, o Brasil ainda estava em um processo incipiente de industrializao, e os interesses metaindividuais que estavam sendo organizados diziam respeito s relaes de trabalho. Alm disso, a massa de pessoas excludas do processo de modernizao da sociedade brasileira era muito grande para ser desconsiderada, o que tornava prioritria no Brasil a preocupao com o desenvolvimento.5

    Portanto, no errado dizer que a questo ambiental, no Brasil, somente

    encontrou campo frtil aps superadas as barreiras da industrializao e do

    desenvolvimento econmico nacionais.

    Alis, outro fator preponderante para o trato constitucional da matria

    ambiental refere-se, exatamente, ao contedo econmico que a moderna sociedade

    capitalista descobriu no meio ambiente aps a segunda metade do sculo XX. Este

    contedo foi outro fator que despertou na classe poltica brasileira a necessidade de

    resguardar aquele que um dos maiores patrimnios ecolgicos do mundo.

    Note-se que, no obstante a importncia do meio ambiente como

    elemento essencial vida, o fator decisivo para a incluso do meio ambiente como

    matria constitucional foi a percepo, pela classe poltica brasileira, de que o meio

    ambiente estava ganhando espao privilegiado na sociedade moderna, assumindo papel

    de destaque no cenrio econmico: o petrleo verde (numa aluso crise do petrleo

    sofrida pelo mundo na dcada de 70, em que este fora o recurso natural mais visado,

    como ocorre hoje com o meio ambiente).

    importante destacar por fim, que as mudanas ocorridas na conscincia

    nacional foram alm do trato constitucional e do aumento de normas atinentes matria.

    Houve mesmo, uma mudana de mentalidade no trato com o meio ambiente:

    A forma como as normas brasileiras protegiam os

    elementos naturais at a dcada de 70 considerava o meio ambiente como recurso, ou seja, como um meio para a obteno de finalidades humanas.

    5 Idem. p. 179

    4063

  • Bastante ilustrativas do paradigma daquela poca so as palavras de Pereira, que na dcada de 50 escreveu uma obra na qual analisava o primeiro Cdigo Florestal:

    A importncia das florestas para a vida humana tem sido ressaltada, em copiosa literatura, atravs dos tempos. Ningum ignora j hoje que onde no h florestas as condies favorveis de vida se reduzem ao mnimo, em face da extenso e do volume consumido da matria-prima que elas oferecem: a madeira. Da a necessidade de uma atividade florestal plena, capaz de entreter o rendimento das florestas altura das solicitaes da indstria. Com o incremento das normas ambientais no Brasil, o

    meio ambiente deixou de ser tratado como recurso.6

    Esta conscientizao levou o legislador brasileiro construo de

    mecanismos jurdicos hbeis a proteger o seu patrimnio ambiental. Dentre estes

    mecanismos, destaque-se a Lei de Crimes Ambientais (Lei n 9.605 de 12 de fevereiro

    de 1998), no mbito criminal, bem como a instituio da responsabilidade civil objetiva

    (no mbito cvel), pelos danos cometidos ao meio ambiente.

    1.1. O meio ambiente na Constituio de 1988: bem (jurdico) de uso comum do povo

    Coroando a evoluo da conscincia de preservao ambiental pela qual

    passou o Brasil a partir da dcada de 60, a Constituio da Repblica de 1988 confere

    ao meio ambiente o status de BEM JURDICO.

    Assim dispe a Constituio da Repblica em seu artigo 225, caput:

    Art. 225 - Todos tm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Pblico e coletividade o dever de defend-lo e preserv-lo para as presentes e futuras geraes (grifos nossos)7.

    Com efeito, pela primeira vez na histria legislativa brasileira o meio

    ambiente reconhecido como um bem, dotado de valor econmico e social, e cuja

    6 BARACHO JNIOR, Jos Alfredo de Oliveira. Op. cit. p. 183 7 BRASIL. Constituio da Repblica Federativa do Brasil. 29. ed. atual. e ampl. So Paulo. Saraiva.

    2002

    4064

  • proteo e preservao so confiadas, textualmente, ao Poder Pblico e a toda a

    coletividade. Vale destacar ainda a expresso para as presentes e futuras geraes,

    numa singular e louvvel preocupao do legislador constitucional em garantir ao meio

    ambiente uma proteo tal que transcenda os limites temporais.

    A classificao do meio ambiente como sendo um bem jurdico no

    mera questo conceitual. Ganha conotao prtica de alta relevncia processual quando

    compreendida sob o prisma da teoria geral do Direito onde: s aquilo que a ordem

    jurdica reconhece como sendo bem8, pode ser objeto de direito. E s o objeto de direito

    pode ser objeto das relaes jurdicas.

    Portanto, enquanto o meio ambiente no era compreendido como bem

    jurdico, mas simplesmente como algo sem qualquer valorao econmica (como o

    amor, a saudade, a natureza, etc.), ou como um fator externo vida humana; como uma

    espcie de ddiva oferecida aos homens (entendimento este que perdurou at meados

    do sculo XX, como visto alhures)9, o mesmo no era considerado como objeto de

    direito, ficando assim, fora das relaes jurdicas.

    Conseqncia direta de tal fato era a grande fragilidade a que eram

    expostas as questes ambientais no Brasil j que, no sendo o meio ambiente

    considerado um bem em si, no poderia ser objeto de direitos. E, no sendo objeto de

    direitos, ningum poderia exercer a sua proteo por faltar a este interessado uma das

    condies da ao, a saber: a possibilidade jurdica do pedido. Como pedir a proteo

    jurdica de algo que no tutelado pelo direito?

    No estamos dizendo que o meio ambiente era desprovido de qualquer

    instrumento para sua proteo. Como j dito acima, at a promulgao da Constituio

    de 1988 existiam vrias normas de proteo aos mais diversos recursos naturais: Cdigo

    8 So bens jurdicos, antes de tudo, os de natureza patrimonial. Tudo que se pode integrar no nosso

    patrimnio um bem, e objeto de direito subjetivo. So os bens econmicos. Mas no somente estes so objeto de direito. A ordem jurdica envolve ainda outros bens inestimveis economicamente, ou insuscetveis de se traduzirem por um valor pecunirio. No recebendo, embora, esta valorao financeira, e por isso mesmo no integrando o patrimnio do sujeito, so suscetveis de proteo legal. Bens jurdicos sem expresso patrimonial esto portas adentro do campo jurdico; o estado de filiao, em si mesmo, no tem expresso econmica; o direito ao nome, o poder sobre os filhos no so suscetveis de avaliao. Mas so bens jurdicos, embora no-patrimoniais. Podem ser, e so, objeto de direito. Sobre eles se exerce, dentro dos limites traados pelo direito positivo, o poder jurdico da vontade, e se retira da incidncia do poder jurdico da vontade alheia. PEREIRA, Caio Mrio da Silva. Iinstituies de Direito Civil. Rio de Janeiro. Forense. 1991. p. 272

    9 SOARES, Guido Fernando Silva. Direito Internacional do Meio Ambiente. Emergncia, Obrigaes e Responsabilidades. So Paulo. Ed. Atlas. 2001. p. 37

    4065

  • de guas, Cdigo Florestal, o Estatuto da Terra, dentre outros. Entretanto, tais normas

    tinham por objeto a proteo de recursos naturais especficos e no o meio ambiente

    como um todo, como hoje o concebemos.

    E, ainda assim, eram normas que visavam proteo dos recursos

    naturais, como j acima comentado, antes no sentido de se garantir que tais recursos

    no fossem de tal forma agredidos a ponto de se ameaar as atividades econmicas

    deles dependentes (estas sim, objeto direto da proteo legal), do que necessariamente

    proteg-los como O BEM em si mesmo considerado. Ou seja: protegiam-se os recursos

    naturais como meio para se proteger as atividades econmicas destes dependentes.

    Portanto, o bem jurdico que aquelas normas ambientais visavam a proteger era mais as

    atividades econmicas que o meio ambiente em si mesmo.

    Tome-se por exemplo, o decreto n 23.777 de 23.01.1934 que

    regularizava o lanamento de resduos industriais das usinas aucareiras nas guas

    fluviais. Este decreto, em seus artigos 1 e 2 dispem o seguinte:

    Art. 1 - Fica estabelecida a obrigatoriedade do lanamento dos resduos industriais das usinas aucareiras nos rios principais, longe das margens, em lugar fundo e correntoso.

    Art. 2 - Quando no seja possvel o cumprimento do disposto no artigo anterior, ficam as mesmas usinas aucareiras obrigadas a adotar tanques de depurao, podendo, ento, proceder ao escoamento do lquido depurado nos pequenos cursos d'gua, nas lagoas ou em quaisquer guas paradas. (grifos nossos)

    No h como negar que tais artigos j demonstram uma certa

    preocupao com a preservao dos recursos hdricos prximos s usinas aucareiras.

    Entretanto, tal preservao constituiria mero meio para se proteger um bem principal: a

    atividade aucareira, j que, o comprometimento dos recursos hdricos prximos s

    usinas, fatalmente, implicaria na paralisao destas.

    Note-se que os artigos supra referidos preocupavam-se antes, em definir

    como seria a descarga dos subprodutos da atividade aucareira que, necessariamente,

    preservar os recursos hdricos, j que o pargrafo 2 chegava mesmo a permitir que o

    lquido depurado fosse jogado nas lagoas ou em quaisquer guas paradas, no

    4066

  • demonstrando o legislador qualquer preocupao quanto possibilidade de que tais

    lagoas ou guas paradas se tornassem fossas a cu aberto.

    Vide, ainda, o Cdigo de guas (Decreto 24.643, de 10 de julho de

    1934). Esta legislao dispunha acerca da proteo dos recursos hdricos isoladamente

    considerados, com conotao altamente econmica. Tome-se, por exemplo, o artigo 73

    deste diploma legal:

    Art. 73. Se o prdio simplesmente banhado pela corrente e as guas no so sobejas, far-se- a diviso das mesmas entre o dono ou possuidor dele e o do prdio fronteiro, proporcionalmente a extenso dos prdios e as suas necessidades.

    Pargrafo nico. Devem-se harmonizar, quanto possvel, nesta partilha, os interesses da agricultura com os da indstria; e o juiz ter a faculdade de decidir "ex-bono et aequo" (grifos nossos).

    Ou ainda, os artigos 109 a 112 do mesmo diploma legal:

    Art. 109. A ningum lcito conspurcar ou contaminar as guas que no consome, com prejuzo de terceiros.

    Art. 110. Os trabalhos para a salubridade das guas

    sero executados custa dos infratores, que, alm da responsabilidade criminal, se houver, respondero pelas perdas e danos que causarem e pelas multas que lhes forem impostas nos regulamentos administrativo.

    Art. 111. Se os interesses relevantes da agricultura ou da

    indstria o exigirem, e mediante expressa autorizao administrativa, as guas podero ser inquinadas, mas os agricultores ou industriais devero providenciar para que as se purifiquem, por qualquer processo, ou sigam o seu esgoto natural (grifos nossos).

    Art. 112. Os agricultores ou industriais devero indenizar

    a Unio, os Estados, os Municpios, as corporaes ou os particulares que pelo favor concedido no caso do artigo antecedente, forem lesados (idem).

    ntida, na leitura dos artigos supra mencionados, a preocupao do

    legislador, quela poca, em proteger os recursos hdricos como meio de se proteger as

    4067

  • atividades econmicas deles dependentes. Tanto assim o que, textualmente o

    legislador prev que, se os interesses relevantes da agricultura ou da indstria o

    exigirem, e mediante expressa autorizao administrativa, as guas podero ser

    inquinadas, caso em que, ficariam os agricultores ou industriais que assim

    procedessem, simplesmente obrigados a indenizar os lesados.

    Desconsiderava o legislador quela poca, por completo, os efeitos

    deletrios e muitas vezes irremediveis, de valor econmico inestimvel, que tais

    inquinaes poderiam causar ao meio ambiente como um todo. No previa ali o

    legislador, que pudesse ocorrer o que hoje vem ocorrendo em muitos lugares de nosso

    pas, de forma avassaladora, por conseqncia, exatamente, da poluio desmedida de

    nossas guas: a falta deste lquido em condies mnimas de consumo para as

    necessidades mais bsicas do ser humano.

    Somente com a Constituio de 1988, fruto do movimento ambientalista

    que passou a marcar o Brasil a partir da dcada de 70, que o meio ambiente passou a

    ser considerado como UM BEM JURDICO EM SI, constitudo pelo complexo de

    recursos naturais na formao do ecossistema indispensvel vida terrestre, levando o

    legislador a se conscientizar da necessidade de se criar normas de proteo efetivamente

    ambientais, ou seja, com o objetivo de se proteger o ecossistema em si, e no uma

    atividade econmica deste dependente. Ao ser o meio ambiente tratado como BEM

    JURDICO, conseqncia prtica surge: passa a ser objeto de direitos. Por conseguinte,

    so criados instrumentos hbeis a conferir efetiva proteo ao meio ambiente.

    No menos significante para a incrementao da proteo ao meio

    ambiente brasileiro a expresso BEM DE USO COMUM DO POVO, empregada no

    texto constitucional, em seu artigo 225.

    Consideram-se bens de uso comum do povo todos aqueles destinados

    ao uso do povo sem nenhuma restrio, a no ser a da boa conduta, nos termos da lei,

    ou dos costumes, principalmente quanto moral pblica e aos bons costumes.10 Ou

    ainda, segundo Maria Sylvia Di Pietro: Consideram-se bens de uso comum do povo

    aqueles que, por determinao legal ou por sua prpria natureza, podem ser utilizados

    10 FARIA, Edmur Ferreira de. Curso de Direito Administrativo Positivo. Belo Horizonte. Ed. Del Rey, 1999, 2 ed. p. 401

    4068

  • por todos em igualdade de condies, sem necessidade de consentimento

    individualizado por parte da administrao11

    So exemplos de bens pblicos os mares, florestas, o ar, rios, praias, ruas,

    praas, estradas, etc.

    Os bens de uso comum do povo constituem uma das modalidades dos

    chamados bens do domnio pblico do Estado, que encontra nos chamados bens de uso

    especial, sua segunda modalidade.

    Por se tratarem de bens que podem ser utilizados por qualquer pessoa do

    povo, coletiva ou individualmente, esta utilizao se reveste em tpico direito

    constitucional que, pela indeterminao dos agentes que podem exerc-lo, recebe o

    nome de DIREITO DIFUSO. A esta modalidade de direito, constitucionalmente

    assegurado, o legislador tratou de criar instrumentos eficazes para a garantia de seu

    exerccio, como se ver nos tpicos adiante.

    E, na medida em que o meio ambiente classificado, no texto

    constitucional, como sendo um bem de uso comum do povo, a conseqncia imediata

    de tal classificao a de que o meio ambiente se constitui como um tpico direito

    difuso, merecendo as garantias e defesas a este reservadas, como veremos no item 2.3

    infra.

    2. A FUNO AMBIENTAL DA PROPRIEDADE: A EVOLUO DO DIREITO DE PROPRIEDADE COMO INSTRUMENTO DE PROTEO DO MEIO AMBIENTE

    O Direito, como fato social que , encontra-se em permanente mutao,

    ao sabor dos ventos ideolgicos de cada poca.

    J vimos acima que, em outros tempos, o que ditava as normas

    ambientais, por exemplo, era mais a preocupao em se manter os recursos naturais

    indispensveis industrializao, do que necessariamente a preservao de um meio

    ambiente sadio.

    Considerando-se que uma das dimenses do direito de que este seja

    instrumento a ser utilizado para o controle das massas sociais, visando a garantir um

    mnimo de condies existenciais da vida em sociedade, valendo-se, para isto, da 11 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 5. ed. So Paulo Ed. Atlas, 1994, p. 427

    4069

  • imposio de normas de conduta, imprescindvel, para que possamos compreender o

    esprito que norteou a elaborao destas, conhecermos o tempo em que foram

    elaboradas, bem como as correntes ideolgicas que orientavam a sociedade poca.

    conveniente ainda, que no nos esqueamos que, seja no Poder

    institudo pela via democrtica, ou no Poder institudo pela fora, em qualquer dos

    casos, inevitavelmente, ser este Poder quem ditar as normas legais. Portanto,

    sociologicamente, no incorreto afirmarmos que o Direito o instrumento utilizado

    pelo Poder dominante para a imposio de sua ideologia.

    O que legitima ento o Poder democraticamente institudo o fato de que

    este espelha a manifestao ideolgica da maioria (ou ao menos deveria espelhar),

    enquanto que o Poder institudo pela fora, a manifestao ideolgica de uma minoria.

    A transformao pela qual passou o Direito de Propriedade no nosso

    ordenamento jurdico um exemplo que ilustra de maneira singular a procedncia do

    acima exposto.

    Atendendo nossa sugesto de analisarmos as correntes ideolgicas

    vigentes poca da elaborao das normas, a fim de que conheamos o seu esprito,

    passemos a analisar em que conjuntura se encontrava a sociedade brasileira quando da

    elaborao do nosso Cdigo Civil de 1916, que tratava do Direito de Propriedade nos

    seus artigos 524 e segs.

    O globo, no incio do sculo XX, respirava em toda a sua intensidade os

    vapores da Revoluo Industrial, iniciada na Inglaterra no final do sculo XIX. quela

    poca, vigia entre os pases ocidentais a filosofia do laissez faire, cone do pensamento

    liberal (herana da Revoluo Francesa), que encontrou no capitalismo emergente das

    indstrias, campo propcio para o seu crescimento. Crescimento, este, que culminou

    com o fortalecimento do ideal capitalista nos governos de muitos Pases. Dentre estes, o

    Brasil.

    quela poca, havia ainda muito pouco tempo em que o Brasil deixara a

    condio de Imprio para se tornar Repblica (1889).

    A ordem jurdica encontrava-se em intenso perodo de transio. No

    mbito do direito privado, por exemplo, o Brasil elaborava o seu primeiro Cdigo Civil,

    cuja construo levara quase um sculo, culminando assim, com a revogao das

    4070

  • chamadas Ordenaes (codificao portuguesa aplicada no Brasil desde a sua fase

    imperial)12.

    O primeiro Cdigo Civil brasileiro, ento, fora elaborado na

    efervescncia do movimento industrial; no pice da construo do novo capitalismo

    mundial; sob a gide de uma filosofia de Estado liberal. Liberalismo este alis, que

    marcou os pases ocidentais no incio do sculo XX.

    Diante disto, no difcil chegarmos concluso que o nosso Cdigo

    Civil de 1916 tratava-se de um documento legal de cunho altamente privatstico, em que

    desconsiderava por completo a presena do Estado nas relaes privadas, tendo

    prevalncia o princpio da vontade privada em detrimento do interesse pblico.

    E o direito de propriedade, pelo contedo econmico imediato que lhe

    intrnseco, seguramente foi um dos que recebeu, por parte de nossos legisladores,

    adeptos quela filosofia liberal, a maior preocupao. Cuidou o legislador ptrio

    daquela poca em assegurar o patrimnio particular, revestindo-o de instrumentos legais

    poderosos, hbeis a conferir ao proprietrio o direito de usar, gozar, fruir, dispor e

    reivindicar de sua propriedade, como bem lhe aprouvesse, sem qualquer limitao ou

    condio externa, encontrando limites, portanto, apenas em sua vontade. O artigo 524

    daquele diploma legal constitua, assim, a pedra filosofal sobre a qual foi construdo

    todo o sistema de proteo ao direito de propriedade.

    O direito de propriedade que foi apresentado sociedade brasileira pelo

    Cdigo Civil de 1916 representava desta forma, o ideal liberal daquela poca, onde o

    que interessava era a proteo ao patrimnio particular, de modo que o proprietrio

    pudesse contar com instrumentos eficazes o bastante para garantir-lhe toda a

    tranqilidade no gozo de seus bens. Ainda que tal gozo implicasse na destruio da

    propriedade imobiliria, por exemplo, no desmatamento de grandes reas, na derrubada

    de rvores, na caa de animais, etc. Se esta era a vontade do particular, era este o direito,

    ento, que deveria ser protegido.

    Note-se que no havia naquele diploma qualquer referncia a limitaes

    ao direito de propriedade. E este era tratado unicamente no mbito do Direito Civil.

    Nem a Constituio da Repblica vigente quela poca, nem qualquer outra que se

    seguiu (com exceo da Constituio da Repblica de 1988) tratava do Direito de 12 Op. cit. p. 60

    4071

  • Propriedade, o que resultava em que tal direito sempre fosse tratado essencialmente

    como instituto do direito privado.

    O pensamento liberal, entretanto, foi aos poucos perdendo foras.

    Comeava a ficar claro que a ausncia absoluta do Estado nas relaes civis

    representava, em muitos casos, prejuzos, ou ao menos riscos, para a parte que, por

    motivos econmicos, polticos ou de qualquer outra ordem, fosse hipossuficiente em

    relao outra.

    Aps a segunda metade do sculo XX, conforme j discutido no item 1.1

    do presente captulo, o globo comeava a vivenciar uma nova mudana. Tiveram incio,

    naquele perodo, movimentos sociais por todo o mundo (no por coincidncia que a

    evoluo da conscincia ambiental tambm eclode neste momento). Surgem novas

    categorias de direitos: so os direitos sociais, ou de terceira gerao, representados pelos

    direitos coletivos e difusos, que trataremos no item 2.1.2. infra.

    Nossa atual Constituio foi elaborada justamente no pice deste

    momento de preocupao com o social. Por mais uma vez, a influncia da ideologia de

    um momento histrico marcou o ordenamento legal: a nossa Constituio da Repblica

    (chamada de Constituio Cidad, pelo constituinte Ulysses Guimares), marcada pelo

    seu alto cunho social; pela preocupao com o coletivo.

    E o texto constitucional de 1988 chamou para si a responsabilidade de

    tutelar o direito de propriedade. Isto porque, nas palavras de ROXANA CARDOSO:

    O direito de propriedade, em sua concepo clssica, tem-se mostrado muitas vezes inadequado para os anseios da sociedade atual. Com a evoluo dos direitos e a emergncia de categorias como os direitos coletivos e difusos, os interesses da sociedade como um todo, mesmo que seus titulares no possam ser individualmente identificados, devem prevalecer sobre os interesses particulares que, desta forma, precisam ser adaptados s caractersticas deste momento histrico. (BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. Funo Ambiental da Propriedade. So Paulo. Ed. Revista dos Tribunais. 1998. Vol. 9, p. 68)

    Disto resulta que atualmente no se pode mais conceber a propriedade

    como sendo um regime jurdico meramente subordinado ao Direito Civil. Ao contrrio:

    4072

  • (...) em verdade, o regime jurdico da propriedade tem seu fundamento na Constituio. Esta garante o direito de propriedade, desde que ela atenda a sua funo social (art. 5, XXII e XXIII). (...) Significa isso que o Direito Civil j no disciplina mais a propriedade, mas to somente regula as relaes civis a ela pertinentes. Assim, s valem no mbito das relaes civis as disposies do Cdigo Civil que estabelecem as faculdades de usar, gozar e dispor de bens (art. 524), a plenitude da propriedade (art. 525), o carter exclusivo e ilimitado do domnio (art. 527), etc. (grifos nossos). (SILVA, Jos Afonso da. Direito Urbanstico Brasileiro. P. 62)

    Ou ainda:

    Com o advento da Constituio da Repblica de 1988 o direito de propriedade deixa de ter sua regulamentao exclusivamente privatista, baseada no Cdigo Civil, e passa a ser um direito privado de interesse pblico, sendo as regras para o seu exerccio determinadas pelo Direito Pblico e pelo Direito Privado. Este processo de publicizao do direito de propriedade fundamental para a implementao da legislao referente proteo do meio ambiente, que impe limites ao exerccio daquele direito. (BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. Funo Ambiental da Propriedade. So Paulo. Ed. Revista dos Tribunais. 1998. Vol. 9, p. 69)

    Note-se, portanto, que a Constituio tratou de instituir limites quele

    direito que o Cdigo Civil garantia como pleno ao seu titular. A Constituio de 88

    garante a propriedade, desde que esta atenda a sua funo social. Assim, no pode mais

    o proprietrio gozar de sua propriedade at o ponto de trazer prejuzos coletividade.

    H de se atender a sua funo social. E um dos matizes da funo social da propriedade

    a chamada funo ambiental da propriedade, resguardada no artigo 170, III de nossa

    Constituio. Valendo-nos mais uma vez das palavras de ROXANA CARDOSO:

    Ao se tentar demonstrar o contedo da funo ambiental da propriedade, esta considerada como um elemento da funo social da propriedade, que um conceito anterior e de alcance mais amplo que a funo atribuda quele instituto advinda da necessidade de manuteno de um meio ambiente equilibrado. Embora estas duas categorias no sejam antagnicas ao contrrio, so complementares - , tem-se a funo ambiental da propriedade como uma caracterstica

    4073

  • marcante da Constituio de 1988, que considera a problemtica ambiental parte da social e vice-versa.

    (...) a sociedade contempornea, com suas necessidades de manuteno de um meio ambiente equilibrado e da implantao de um modelo de desenvolvimento sustentvel, vem transformando, aos poucos, a concepo privatista do direito de propriedade em direo propriedade como sendo um direito-dever (op. cit. p. 67)

    V-se, portanto, que a funo ambiental da propriedade constitui o

    prprio contedo deste direito.

    Diante da preocupao de se garantir a proteo do meio ambiente, a

    propriedade um dos institutos jurdicos que mais claramente afetado pela legislao

    ambiental13. O clssico conceito de propriedade vem sofrendo alteraes para que este

    direito seja compatvel com a preocupao ambiental. Prova maior disto o novo trato

    que o Cdigo Civil dedicou matria.

    Tendo sido elaborado e entrando em vigor em perodo histrico marcado

    pelas mesmas preocupaes sociais que marcaram a nossa Constituio de 1988, o novo

    Cdigo Civil, em vigor desde 10 de janeiro de 2003, deu novo tratamento ao direito de

    propriedade, recepcionando o trato constitucional.

    Cuidou o novo Cdigo Civil, em seu artigo 1228, de remodelar o antigo

    artigo 524 do Cdigo Civil de 1916, ao acrescentar cinco pargrafos de cunho

    eminentemente restritivo ao direito de propriedade. Note-se, portanto, que o artigo 1228

    do novo Cdigo Civil traz em seu bojo a preocupao com o social que no existia no

    artigo 524 do antigo Cdigo, impondo limitaes ao direito de propriedade,

    absolutamente impensveis quela poca. Dentre tais limitaes, se encontra a

    ambiental, no 1 do artigo 1228.

    Tal tratamento, definitivamente, retira do direito de propriedade o cunho

    privatstico que lhe marcava no antigo ordenamento civil e lhe confere ares mais sociais,

    em sintonia com o texto constitucional.

    2.1. Os Direitos difusos e coletivos e a proteo ao meio ambiente

    13 BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. Funo Ambiental da Propriedade. So Paulo. Ed. Revista dos Tribunais. 1998. Vol. 9, p. 68

    4074

  • Dentre vrios fatores que fortaleceram a ecloso da preocupao

    ambiental no Brasil e possibilitaram o seu crescimento nos mais diversos setores da

    sociedade brasileira, ganha destaque a construo jurdica dos chamados DIREITOS ou

    INTERESSES METAINDIVIDUAIS ou TRANSINDIVIDUAIS, lanados no plano

    constitucional brasileiro por intermdio do artigo 129, III da Constituio da Repblica

    de 1988 e conceituados legalmente na Lei nmero 8.078/90, em seu artigo 81, incisos I,

    II e III, nos seguintes termos:

    Art. 81 - A defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vtimas poder ser exercida em juzo individualmente, ou a ttulo coletivo.

    Pargrafo nico. A defesa coletiva ser exercida quando se tratar de:

    I - interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste cdigo, os transindividuais, de natureza indivisvel, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstncias de fato;

    II - interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos deste cdigo, os transindividuais, de natureza indivisvel de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrria por uma relao jurdica base;

    III - interesses ou direitos individuais homogneos, assim entendidos os decorrentes de origem comum (grifos nossos).

    2.1.1. O meio ambiente como direito difuso e sua tutela na Constituio da Repblica de 1988

    A Constituio brasileira de 1988 reconheceu o meio ambiente como

    sendo um interesse difuso, ou seja: interesse que pertence a todos os homens,

    independentemente do grupo, rgo ou associao a que pertena. Prova disso o

    local de insero das normas atinentes ao meio ambiente na Constituio da

    Repblica: Ttulo VIII Da Ordem Social (arts. 193 a 232). Ora. Se importa ordem

    social, coletivo 14 (vale lembrar aqui, que o autor desta nota considera os termos

    coletivo e difuso como sinnimos).

    Para esta classe de direitos/interesses (os metaindividuais), justamente

    por serem manifestao da vontade geral, o legislador infra-constitucional j havia 14 MORAES, Lus Carlos Silva de. Curso de Direito Ambiental. So Paulo. Ed. Atlas. 2001, p. 15

    4075

  • criado, anteriormente Constituio de 88, instrumento de defesa dotado de singular

    poder para a sua proteo, e que atribua legitimidade para o seu exerccio a todas as

    entidades que, de uma forma ou de outra, representassem a vontade da coletividade.

    Trata-se da AO CIVIL PBLICA, recepcionada pela Constituio da Repblica, em

    especial, no artigo 129, inciso III, que atribui ao Ministrio Pblico a funo

    institucional de promover a Ao Civil Pblica, para a proteo do meio ambiente e de

    outros interesses difusos.

    2.1.2. A defesa dos interesses difusos como exerccio da cidadania

    Por se tratar de categoria de direitos relativamente recente em nossa

    histria nacional, os interesses metaindividuais so vistos, pela maioria dos cidados

    comuns, de forma distorcida e, por que no dizer, equivocada.

    Via de regra, o cidado comum no se v titular de um interesse

    metaindividual. No que diz respeito, especificamente aos direitos coletivos, a idia que

    vigora no senso comum a de que estes interesses devem ser defendidos e exercidos

    por associaes de classe, sindicatos, associao de moradores, Ministrio Pblico, etc.,

    Enfim, entes despersonificados, que no o indivduo ou o Estado, mas jamais pelo

    cidado comum.

    Tal ponto de vista, inegavelmente, se constitui em libi perfeito para

    encobrir a natural acomodao do cidado comum no que tange proteo de seus

    interesses/direitos.

    Ora. Se esta acomodao, em alguma medida, tem o fundamento de sua

    existncia na natureza dos interesses coletivos (pelo fato de que a legitimidade do

    exerccio e da defesa destes direitos est ligada idia de entes coletivos organizados), a

    mesma acomodao no pode viger no que diz respeito aos direitos/interesses difusos.

    Estes, por sua prpria natureza, so direitos em que o fim especfico perseguido no se

    encontra vinculado a qualquer grupo determinado/determinvel de pessoas mas, ao

    contrrio, encontra-se difuso; espalhado, entre todos os brasileiros. Este fim especfico,

    portanto, poder ser perseguido por vrias pessoas, individual ou coletivamente, sem

    que tenha de haver, para tanto, qualquer vinculao a este ou aquele grupo, rgo ou

    associao.

    4076

  • Felizmente, h alguns anos vem crescendo em nosso pas a

    conscientizao do cidado de que, exigir os seus direitos individuais constitui-se no

    prprio exerccio da cidadania. E, quanto mais pleno o exerccio da cidadania, mais

    forte se constitui o Estado.

    Entretanto, o exerccio da cidadania plena encontra obstculo na noo

    deficiente que o cidado comum possui da largueza de seus direitos, que os entende

    apenas enquanto na rbita individual.

    O conceito de Direitos Difusos sequer conhecido pelo cidado comum.

    Que dir, ento, o meio de exerc-los?

    Entender, portanto, o que vem a ser um interesse difuso e saber como

    exerc-lo, constitui passo imprescindvel para o fortalecimento do prprio Estado por

    mos de seu povo.

    No que tange, especificamente ao meio ambiente, absolutamente

    necessrio que este seja compreendido como sendo um direito de todos, que deve ser

    defendido por qualquer cidado, independentemente de grupos ou associaes,

    distribuindo entre a sociedade o peso do trabalho que, hoje em dia, recai apenas nos

    ombros do Ministrio Pblico. No por ser o nico legitimado a exercer a proteo do

    Meio Ambiente, mas por simples ausncia de sujeitos que tambm chamem para si tal

    prerrogativa.

    absolutamente necessrio que se crie a conscincia de que a defesa do

    Meio Ambiente se constitui na defesa de nosso maior patrimnio e de nosso prprio

    Estado e que, por isto mesmo, a sua proteo se constitui em direito-dever irrenuncivel

    de cada um.

    Afinal, como dispe o artigo 225 da Constituio da Repblica:

    Todos tm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Pblico e coletividade O DEVER DE DEFEND-LO E PRESERV-LO para as presentes e futuras geraes (grifos nossos).

    H nisso, ento, um poder-dever do Estado e dos cidados,

    cooperativamente.

    4077

  • A Ao Popular e Ao Civil Pblica no podem (por inrcia dos

    cidados brasileiros) constiturem em instrumentos poderosos de combate s mazelas da

    sociedade, de uso exclusivo do Ministrio Pblico.

    Urge a necessidade da populao brasileira acordar de sua letargia

    secular, arregaarem suas mangas e, EFETIVAMENTE, defender o nosso maior

    patrimnio: o nosso meio ambiente.

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