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Adson Luiz Vargas A PÁTRIA NO ALTAR - CLERO, RELIGIÃO E RESISTÊNCIA: o caso da Inconfidência Mineira

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Adson Luiz Vargas A PÁTRIA NO ALTAR - CLERO, RELIGIÃO E RESISTÊNCIA:

o caso da Inconfidência Mineira

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA

INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIA DA RELIGIÃO

A PÁTRIA NO ALTAR - CLERO, RELIGIÃO E RESISTÊNCIA:

o caso da Inconfidência Mineira

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião como requisito parcial à obtenção do título de mestre em Ciência da Religião por Adson Luiz Vargas. Orientadora: Prof.ª Dra. Beatriz Helena Domingues.

Juiz de Fora 2005

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TERMO DE APROVAÇÃO

Adson Luiz Vargas

A PÁTRIA NO ALTAR - CLERO, RELIGIÃO E RESISTÊNCIA: o caso da Inconfidência Mineira

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da

Universidade Federal de Juiz de Fora como requisito parcial à obtenção do título de mestre em

Ciência da Religião.

Aprovada em _____________________ pela banca examinadora constituída por:

Banca Examinadora:

Prof.ª Drª. Beatriz Helena Domingues (Orientadora)

_________________________________________________________________________ Prof. Dr. Zwinglio Mota Dias

_________________________________________________________________________ Prof. Dr. José Eustáquio Romão

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Para algumas mulheres fundamentais na minha vida: Hilda, Edna, Cidinha e Maria Vittória.

Em especial, a uma mulher, minha companheira, Cristiane.

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AGRADECIMENTOS

É corretíssimo afirmar que não teria sido possível escrever esta dissertação sem a

colaboração de diversas pessoas e instituições. Desde já agradeço a todos os que, direta ou

indiretamente, me ajudaram ao longo de tantos meses.

À minha companheira, Cristiane, por ter me convencido a entrar para o mestrado em

Ciência da Religião e ter feito algumas disciplinas do curso comigo.

Agradeço, de maneira muito especial, à minha orientadora Beatriz Helena Domingues, por

suas inestimáveis leituras, releituras, sugestões, comentários e, principalmente, sua dedicação, desde

quando este tema era apenas uma idéia na minha cabeça. Mais que orientadora, amiga, pois soube

me conduzir, de forma brilhante, nos primeiros passos da minha vida intelectual.

Aos professores e às professoras do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião

que grandemente contribuíram para a minha formação acadêmica, em especial, aos Professores Dr.

Marcelo Ayres Camurça e Dr Volney José Berkenbrock, sempre solícitos, e a Professora Drª Vitória

Peres de Oliveira, grande intelectual e educadora.

Ao professor e amigo Dr. Zwinglio Mota Dias, carinhosamente “Tio Zu”, que

acompanhou meu projeto de pesquisa desde o início e fez observações fundamentais na fase de

qualificação.

Ao Prof. Dr. José Eustáquio Romão, grande educador e, já algum tempo, para minha

satisfação, colega de trabalho, por ter aceitado, prontamente, fazer parte da banca examinadora.

Aos colegas de mestrado, na pessoa da Elam de Almeida Pimentel e do Paulo Quiosa. O

convívio foi muito gratificante.

As professoras Mariângela e Verônica, do Colégio Santa Catarina, pela ajuda e torcida.

Ao Paulinho e, agora, ao Antônio, sempre solícitos às minhas consultas na secretaria de

pós-graduação. Aos meus amigos de sempre, Patrícia Adriana Barbosa e Edson Ferrarezi,

companheiros de jornada profissional e, sobretudo, de copo. Suas dicas, sugestões e correções

foram fundamentais.

À minha família, enorme e gostosa família mineira, por entre churrascos, cervejas,

desentendimentos, afetos e muita música.

Ao CES – Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora, na pessoa de seu Diretor-

Administrativo, Prof.: José Ventura, pelo apoio às minhas pesquisas e incentivo ao meu crescimento

profissional nesta Instituição.

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RESUMO

As Minas Gerais do século XVIII eram fortemente marcadas pelo ouro e por diamantes;

pela superexploração dos escravos africanos; pela hierarquia social que dicotomizava pessoas entre

“homens-bons” (a elite colonial) e o restante da população (os desclassificados); por valores

religiosos do catolicismo ortodoxo e o pulsar da religiosidade popular; pela opulência convivendo

com a miséria extrema; pela permanente ameaça de empobrecimento dos mais ricos; pela contínua

rebeldia dos mais pobres; pela intensa espoliação colonial por parte da metrópole portuguesa; um

ambiente, enfim, sempre propício a motins e revoltas. A Igreja Católica, nessa estrutura colonialista,

colocava-se a serviço do Estado e aos padres caberia a obrigação de, não só se instruírem nas leis do

Evangelho, que ordenava a sujeição e a fidelidade à Coroa, mas de transmitirem aos povos este

preceito, mantendo-os como “fiéis vassalos”. Muitos clérigos, desta forma, se mostravam fiéis à

ortodoxia política e religiosa, tornado-se muito valiosos e zelosos em manter tais “povos em

sossego”. Contudo, muitos padres tiveram participações ativas em diversas rebeliões. Esses clérigos

eram vistos como elementos perturbadores e corrosivos pelos representantes da Coroa Portuguesa,

mas, para uma parcela significativa da população, padre era sinônimo de justiça, de esclarecimento,

alfabetização e de reação à injustiça e à opressão. No caso da Inconfidência Mineira, cinco clérigos

estiveram diretamente envolvidos naquela sedição. A proposta deste trabalho é elucidar a

participação desses “homens de batina”, suas inserções na realidade histórico-social mineira

setecentista, na medida em que idéias libertárias só ganham força quando há um ambiente

adequado, no caso, a superexploração da colônia; a importância das idéias iluministas; o exemplo

da independência norte-americana; o papel dos jesuítas na formação educacional-ideológica das

“gentes das Gerais” e as tradições político-culturais portuguesas, notadamente as idéias da Segunda

Escolástica, como as teorias corporativas de poder, que poderiam conduzir às sedições e até mesmo

ao regicídio. Esta dissertação aborda o universo filosófico-político e religioso dos padres envolvidos

na Conjuração Mineira de 1788-89 e, em que medida, tais concepções ideológicas os conduziram a

uma conspiração contra a Coroa portuguesa e a cometerem um crime de “lesa-majestade”.

Palavras-chave: Estrutura Colonial - Inconfidência Mineira - Padres - Iluminismo - Independência

dos Estados Unidos - Jesuítas - Rebeldia

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ABSTRACT

Minas Gerais in the XVIII century was sharply distinguished by gold and diamonds; by

overexploitation of African slaves; by a social hierarchy which established a dichotomy between

“the good-men” (the colonial elite) and the rest of the population (the unclassified ones); by

religious values of orthodox Catholicism and pulsating popular religiousness; by opulence living

side by side with extreme misery; by the constant risk of impoverishment of the rich; by continuous

rebellions of the poor; by colonial spoils taken by the Portuguese metropolis; a place, therefore,

always favorable to mutiny and revolts. The Catholic Church, in this colonial structure, served the

state and it would be the priests` obligation not only to teach the gospel, which ordered loyalty to

the crown, but also to pass this principle to the people, keeping them as “loyal vassals”. Many

clergymen were loyal to the political and religious orthodoxy, becoming very helpful and zealous in

keeping those peoples in peace. However, many priests participated actively in various rebellions.

Clergymen were seen as disturbing and corrosive elements by the Portuguese crown

representatives; but, for a significant part of the population, priest was a synonym of justice,

enligthtenment, literacy and reaction against injustice and oppression. In the case of Inconfidência

Mineira, five clergymen were directly involved in that sedition. The aim of this essay is to elucidate

the participation of these men in cassocks, their insertions in the historical-social reality in Minas

Gerais in the XVIII century, as freedom ideas can only become powerful when there is a proper

environment, in this case, the overexploitation of the colony, the importance of the Enligthtenment

ideas, the example of North-America independence, the Jesuit role in the educational-ideological

formation of Minas Gerais people and the Portuguese political-cultural traditions, especially the

ideas of the Second Scholastic, like the corporative power theories, which could lead to seditions

and even to regicide. This essay deals with the philosophical-political and religious universe of the

priests involved in Conjuração Mineira (1788-89) and how much these ideological concepts led

them to a conspiracy against the Portuguese crown and to commit a lese-majesty crime.

Key-words: Colonial Structure - “Inconfidência Mineira” – Priests – Iluminism – North-America Independence – Jesuits - Revolts

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................................................................ 9 CAPÍTULO 1 : RELIGIÃO E TRADIÇÕES HISTÓRICO-CULTURAIS LUSO-BRASILEIRAS ............................................................................................................................... 17 1.1 - Portugal e América Portuguesa: a Religião entre o mito e a ideologia ................................... 17 1.2 – A Segunda Escolástica e as Teorias Corporativas de Poder ................................................... 33 CAPÍTULO 2: MINAS GERAIS NO SÉCULO XVIII: OURO, OPRESSÃO E SONHOS DE LIBERDADE ................................................................................................................................... 46 2.1 – Minas Setecentistas: “O Espaço do Avesso” .......................................................................... 46 2.2 – Liberdade Ainda Que Tardia ................................................................................................... 63 CAPÍTULO 3: A BATINA CONTRA A COROA: O CLERO CONJURADO MINEIRO ........... 87 3.1 – O Clero e as Minas Rebeldes .................................................................................................. 87 3.2 – Padres Inconfidentes: O que anda nas Cabeças e nas Bocas? ................................................. 94 3.2.1 – Cônego Luís Vieira da Silva: “Malícias e temerárias maquinações de maldades” ....... 106 3.2.2 – Padre Carlos Correia de Toledo e Melo: “Conversações sacrílegas, danadas e pérfidos ajustes de levantes” ....................................................................................................................... 114 3.2.3 – Padre José da Silva e Oliveira Rolim: “Crimes, insultos e desordens é para todos hábil!” ............................................................................................................................................. 118 3.2.4 – Padre Manoel Rodrigues da Costa: “Suspeitosa fidelidade pois maliciosamente guardou segredo esperando sucesso do levante” .......................................................................................... 123 3.2.5 – Padre José Lopes de Oliveira: “Guardou o mais exato segredo em tudo o que sabia e silêncio é consentimento e aprovação tácita” ................................................................................ 129 CONCLUSÃO .............................................................................................................................. 131 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .......................................................................................... 136

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INTRODUÇÃO

“Que os brasileiros são bestas e estarão a trabalhar

toda a vida por manter maganos de Portugal.”

(Gregório de Matos - Poesia Satírica)

“ homens de idéias modernas coronéis, vigários, doutos,

finos ministros e poetas que fazem versos

e roubos.” (Cecília Meireles, 1979 – Romanceiro da Inconfidência)

Numa noite fria e chuvosa de dezembro de 1788, um mensageiro bateu à porta de uma

imponente e luxuosa residência na Rua de São José, em Vila Rica, então capital de Minas Gerais,

uma das mais importantes capitanias da América portuguesa. Lá dentro, o dono da residência, João

Rodrigues de Macedo, um dos membros mais ilustres e ricos da época do ouro, jogava cartas com o

igualmente rico, ilustre e poderoso juiz e poeta Inácio José de Alvarenga Peixoto. Era para este

último que o mensageiro trazia um bilhete com os seguintes dizeres: “Alvarenga. Estamos juntos, e

venha Vossa Mercê já. Amigo Toledo”.

Alvarenga Peixoto esperou a chuva passar e seguiu para a Rua Direita, rumo à casa do

Tenente-coronel Francisco de Paula Freire de Andrade, a principal autoridade militar da capitania,

depois do Capitão-general ou Governador. Lá estavam reunidos, além do anfitrião Freire de

Andrade, o jovem engenheiro José Álvares Maciel, o alferes de cavalaria Joaquim José da Silva

Xavier e dois padres: José da Silva de Oliveira Rolim e Carlos Correia de Toledo e Melo, o “Amigo

Toledo”, do bilhete.

Era uma reunião secreta, em que se planejava uma sedição para subtrair a capitania de

Minas à sujeição de Portugal. Essa não foi a única reunião. Encontros sucessivos ocorreram em

diferentes ocasiões e lugares, onde se debateram a situação de Minas Gerais, as possibilidades e

estratégias de um levante, formas de ruptura com Portugal e a organização de uma nova ordem

política e econômica para além do pacto ou exploração colonial.

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Em tais conventículos, aventou-se a possibilidade de ainda se manter o Brasil unido a

Portugal, talvez, até como sede do Império lusitano, mas com liberdades comerciais e o fim das

imposições mercantilistas.

Além destes cinco envolvidos diretamente, destacavam-se também outros personagens

proeminentes da sociedade de Minas Gerais, como o rico advogado e poeta Cláudio Manuel da

Costa, o cônego Luís Vieira da Silva, professor de filosofia no Seminário de Mariana e o ouvidor e

também poeta Tomás Antônio Gonzaga. Estes foram, inquestionavelmente, os mentores intelectuais

do movimento conhecido como Inconfidência Mineira.

Os inconfidentes mineiros estavam insatisfeitos, dentre outras coisas, com o arrocho da

política mercantilista imposto pela nossa metrópole. Isso fica claro na carta-denúncia de um dos

conspiradores, o Tenente-Coronel Francisco de Paula Freire de Andrade, para o Governador de

Minas – o Visconde de Barbacena – datada de 17 de maio de 1789:

(...) Meu Senhor, em dias do mês de janeiro [de 1789] vieram à minha casa o coronel Inácio José de Alvarenga [Peixoto], o alferes Joaquim José da Silva Xavier e o vigário Carlos Correia de Toledo [e Melo]; e depois de me haverem cumprimentado, passaram a tratar do estado atual deste país, das suas produções e dos motivos da total decadência em que se acha, e do quanto poderia ser se fosse habitado por outra qualquer nação que não fora a portuguesa, porém como a matéria não estimulasse a minha curiosidade a indagar o fim a que se dirigia, retiraram-se.[Grifos Nossos]1

A rigidez mercantilista; a idéia de que a Capitania de Minas Gerais era rica e que a

pobreza e decadência se deviam à exploração colonial; as ameaças das autoridades lusas de

investigar irregularidades nas distribuições de cargos e contratos, bem como as origens das fortunas

das elites coloniais; o cerco aos descaminhos do ouro e a idéia de se cobrar impostos atrasados

tornaram-se os desencadeadores do movimento sedicioso de 1788-89.

Nesse sentido, a Inconfidência Mineira combinou interesses pessoais, idealismos,

heroísmos, utopias, traições, temores, hesitações, covardias, lutas, expectativas com uma série de

influências e idéias, tais como o pensamento iluminista, o exemplo da independência das treze

colônias inglesas da América do Norte e as tradições político-culturais portuguesas, com destaque

para a Segunda Escolástica e sua teoria corporativa de poder.

O Iluminismo foi um amplo movimento de idéias cujas origens remontam ao século XVII

e que amadureceram no século XVIII, principalmente na Europa Ocidental. Os filósofos iluministas

1 ADIM - AUTOS de Devassa da Inconfidência Mineira.2. ed. Brasília: Câmara dos Deputados; Belo Horizonte: Imprensa Oficial de Minas Gerais, 1976 a 1983, vol. 1, p. 117.

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lutavam contra as “trevas da ignorância”, valorizavam a razão para a construção de uma nova

ordem social, na qual imperaria a liberdade – de pensamento e religião – e a participação política

dos cidadãos, negando os antigos valores do Absolutismo ou Antigo Regime, então predominante

em vários países europeus. O iluminismo surgiu como uma nova concepção das relações sociais, e a

classe burguesa, naquele momento, apresentava-se madura para assumir a hegemonia sobre os

demais segmentos sociais e tomar o poder.

Contudo, não podemos referir-nos ao Iluminismo como um movimento homogêneo.

Existira, na verdade, “iluminismos”, na medida que ele variou de país para país e, mesmo entre os

mais consagrados de seus pensadores – como Voltaire, Montesquieu e Rousseau – existiam

divergências teóricas significativas. Assim, o “século das luzes” foi, acima de tudo, um novo modo

de pensar, uma nova mentalidade ou mentalidades, uma atitude cultural e espiritual, por vezes

compartilhada por filósofos, burgueses, intelectuais e, até mesmo, por membros da nobreza, clero,

reis e rainhas.

Essa poderosa ideologia iria influenciar, no decorrer do século XVIII, a independência dos

Estados Unidos e a Revolução Francesa, bem como fornecer o respaldo ideológico para a atuação

de setores das elites coloniais latino-americanas na luta contra as metrópoles ibéricas.

Seria sob essa ótica que muitos pensadores iluministas eram lidos e comentados pelos

inconfidentes mineiros, notadamente, como veremos, o Abade Raynal, mas também Montesquieu,

Mably, Voltaire, Diderot, dentre outros. Os conjurados mineiros fizeram leituras muito particulares

de tais pensadores, à luz de sua própria realidade, dando-lhes, principalmente, um sentido anti-

colonial. Como não conspirar contra a Coroa após ler sobre o tema da liberdade em Diderot?

(...) Nenhum homem recebeu da natureza o direito de comandar os outros. A liberdade é um presente do céu, e cada indivíduo da mesma espécie tem o direito de gozar dela logo que goze da razão (...) Toda outra autoridade [exceto a paterna] vem duma outra origem, que não é a da natureza. Examinando-a bem, sempre se fará remontar a uma destas fontes: ou a força e a violência daquele que dela se apoderou; ou o consentimento daqueles que lhe são submetidos, por um contrato celebrado ou suposto entre eles e a quem deferiram a autoridade. O poder que se adquire pela violência não é mais que uma usurpação e não dura senão pelo tempo por que a força daquele que comanda prevalece sobre a daqueles que obedecem (...) O poder que vem do consentimento dos povos supõe necessariamente condições que tornem o seu uso legítimo e útil à sociedade, vantajoso para a República, e que o fixem e restrinjam entre limites; pois o homem não pode nem deve dar-se inteiramente e sem reserva a outro homem. (...)2

2 DIDEROT, Denis. Autoridade política. In: FREITAS, Gustavo de. 900 textos e documentos de História. v. III, Lisboa: Plátano, 1977, p. 22-23.

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É sobejamente conhecida também a influência que a independência das treze colônias da

América do Norte exerceu sobre os conjurados mineiros. Pressionados pelo excesso tributário

britânico, os colonos norte-americanos passaram a se unir contra a metrópole que, por sua vez,

intensificou a repressão. Reunidos em um Congresso na Filadélfia, em 1776, sob a liderança de

Thomas Jefferson, foi redigida a Declaração Unânime dos Treze Estados Unidos da América – a

Declaração de Independência:

(...) São verdades incontestáveis para nós: todos os homens nascem iguais; o Criador lhes conferiu certos direitos inalienáveis, entre os quais o de vida, o de liberdade e o de buscar a felicidade; para assegurar esses direitos se constituíram homens-governo cujos poderes justos emanam do consentimento dos governados; sempre que qualquer forma de governo tenda a destruir esses fins, assiste ao povo o direito de mudá-la ou aboli-la, instituindo um novo governo cujos princípios básicos e organização de poderes obedeçam às normas que lhes pareçam mais próprias para promover a segurança e a felicidade gerais. (...) Nós, os Representantes dos Estados Unidos da América, reunidos em Congresso plenário, tomando o juiz supremo do mundo como testemunha da retidão de nossas intenções em nome e por delegação do bom povo destas Colônias, afirmamos e declaramos solenemente: Que estas Colônias Unidas são, e devem ser de direito, Estados Independentes, que elas estão dispensadas de fidelidade à Coroa Britânica, e que todo vínculo político entre elas e o Estado da Grã-Bretanha está, e deve ser, inteiramente desfeito. (...)3

Os conjurados mineiros se deixaram empolgar com a independência das colônias inglesas

e as Leis Constitutivas dos Estados Unidos eram objeto de leituras, releituras e acalorados debates.

No entanto, uma outra grande influência está também presente e inspira os conjurados

mineiros – mais ligada a nossa matriz Ibérica – embora ainda muito pouco estudada ou mesmo

considerada como irrelevante: o papel dos jesuítas na formação intelectual das gentes das Gerais -

clérigos e leigos – visto que eles detinham especial monopólio da educação na colônia, em escolas e

seminários e, igualmente, durante muito tempo, em Portugal, na Universidade de Coimbra.

É importante salientar que a Igreja e seus membros deveriam dar suporte ideológico para

legitimar a colonização. A Igreja e o Estado, a batina e a Coroa, na maioria das vezes, irmanavam-

se, pois que, notadamente no mundo ibérico, Regnum e Sacerdotium se tornaram gládios unidos,

sob o regime do Padroado.

Nesse sentido, a Companhia de Jesus – a ordem mais atuante na América portuguesa –

assumiu, no mais das vezes, o papel de divulgadora da ortodoxia da fé católica e a principal

instituição articuladora e defensora do projeto colonial de exploração lusitana. Muitos jesuítas 3 Declaração Unânime dos Treze Estados Unidos da América, 1776. In: APTHEKER, Herbert. Uma Nova história dos Estados Unidos, a Revolução Americana. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1969, p. 72.

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foram os confessores e mentores intelectuais dos reis, mostrando claramente que a Igreja estava a

serviço do Estado e de seu projeto expansionista-colonialista.

Contudo, a própria Companhia de Jesus não era uma instituição homogênea, com todos os

seus membros afinados com a ortodoxia e tendo interesses e projetos sempre ligados ao Estado,

com vistas à manutenção da espoliação colonialista. Prova disso é que foram principalmente alguns

dos membros da Companhia de Jesus que desenvolveram e difundiram, no interior do sistema

teológico-filosófico que, no alvorecer da Idade Moderna, ficou conhecido como Segunda

Escolástica, teorias que previam o afastamento e mesmo a morte de reis tiranos.

Em linhas gerais, jesuítas como Juan de Mariana, Francisco Suárez, Luís de Molina,

Roberto Bellarmino, entre outros, retomando as idéias de São Tomás de Aquino, sustentaram que a

origem do Estado estava no consentimento dos povos – pacto social – e que os poderes do

governante deveriam ser limitados, para não dar margem a tiranias, viabilizando-se, assim, o bem-

comum.

O Padre Jesuíta Velasco, quando da posse de Dom João IV, Rei de Portugal, escreveu a

Justa Aclamação, onde claramente afirma que “(...) o poder dos reis está nos povos e repúblicas e

delas os receberam imediatamente. Que ainda depois de transferido o poder aos reis, podem os

povos o reassumir, quando lhes seja necessário para a sua conservação. Que os povos podem privar

da soberania os reis intrusos e tiranos, negando-lhes a obediência e submetendo-se a quem tenha

para reinar legítimo direito”.4 O jesuíta Francisco Suárez, ainda mais radical, alegava que, em caso

de abuso contra o interesse público, era legítimo não só a deposição de um rei tirânico, mas também

a sua execução quando com a aquiescência do papa e consentimento da comunidade.

Tal posicionamento assumido por alguns membros da Ordem de Cristo iria entrar em rota

de colisão com o poderoso Marquês de Pombal – Ministro de D. José I – que, na obra Dedução

Cronológica, responderia que:

(...) Como rei e senhor soberano na temporalidade, não reconhece, na Terra, superior, como protetor da Igreja e cânones sagrados nos meus reinos e domínios, para os fazer conservar em sua pureza; como outrossim, protetor da reputação e honra dos meus vassalos de qualquer estado e condição que sejam, para remover deles tudo quanto é injurioso, e como supremo magistrado, para manter a tranqüilidade pública da mesma Igreja e dos mesmos vassalos, em paz e sossego, removendo, dela e deles, tudo o que é opressão e violência, tudo o que pode dividir e perturbar neles a uniformidade de

4 Apud LIMA JR, Augusto de. História da Inconfidência de Minas Gerais. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 1996, p. 12.

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sentimentos que constituem a união cristã e a sociedade civil que à sombra do trono devem gozar de uma inteira e perpétua segurança etc.5

Para Pombal, como veremos, os jesuítas seriam “verdadeiros monstros”, pois

representavam uma grande ameaça aos seus intentos de manter o absolutismo monárquico em terras

lusitanas e o poder exclusivo nas áreas coloniais. A atuação dos jesuítas na América Portuguesa

como educadores e catequistas acabou sobrepondo a Companhia de Jesus sobre as demais ordens –

como os franciscanos e carmelitas – que atuavam na colônia. Especialmente o monopólio dos

“soldados de Cristo” na educação e o estabelecimento de missões, núcleos de povoamento de

indígenas que tinham como atividade econômica a agricultura e a pecuária, contribuíram para que

esses religiosos conquistassem poder político-econômico. Temendo a formação de um reino

paralelo ou um Império temporal Cristão no Brasil, independente da metrópole, a Coroa portuguesa

acabou decidindo pela expulsão dos jesuítas de Portugal e de todos os domínios lusitanos.

Interessa-nos discutir e analisar em que medida essas três grandes vertentes de influências

– o Iluminismo, a independência dos Estados Unidos e a atuação dos jesuítas com suas teorias

corporativas de poder, da Segunda Escolástica – encontraram ecos entre os conjurados mineiros de

1788-89.

A partir dessa questão, interessa-nos apontar e realçar a participação ativa de cinco

clérigos nesta sedição: o Cônego Luís Viera da Silva, o Padre Carlos Corrêa de Toledo e Melo, o

Padre José da Silva de Oliveira Rolim, o Padre Manuel Rodrigues da Costa e o Padre José Oliveira

Lopes. Ainda hoje se sabe muito pouco sobre o envolvimento dos referidos religiosos nesta

conspiração, caracterizada como crime de lesa-Majestade. Que motivações pessoais, formação

acadêmica e posturas ideológicas teriam levado esses homens de batina a romperem com a Coroa?

As lacunas sobre a participação e o destino dos cinco conjurados de batina remontam à

época das próprias devassas instauradas a mando da Rainha D. Maria I. Os Autos referentes aos

participantes não-eclesiásticos foram logo divulgados, tornando-se públicos. Contudo, a Augusta

Senhora determinou, também, que tudo sobre os padres envolvidos – seus testemunhos, defesas e

sentenças – ficassem no mais absoluto segredo, sendo que os mesmos deveriam ser remetidos a

Lisboa, sob segura prisão, a fim de que seus destinos fossem por ela determinados.

Toda a documentação referente aos réus eclesiásticos foi guardada pelo poderoso ministro

de D. Maria I, Martinho de Melo e Castro e, após a sua morte, ficou inacessível por 160 anos até ser

encontrada pelo historiador lusitano Ernesto Ennes, que passou a divulgar seu conteúdo a partir de 5 LIMA JR, Augusto de, op. cit., p. 12-13.

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1950. No Brasil, o acesso aos documentos referentes aos padres envolvidos na Inconfidência

Mineira só ocorreu a partir de 1952, quando de sua publicação pelo Anuário do Museu da

Inconfidência. 6

Cabe observar que o presente estudo não tem por objetivo analisar em profundidade a

Inconfidência Mineira de 1788-89, na medida em que, como veremos, ao longo de nossa História

diversos estudiosos já o fizeram com competência. Essa dissertação se propõe a explorar o universo

filosófico-político e religioso dos padres envolvidos no movimento, uma abordagem ainda carente

de reflexões e aprofundamentos e que poderá revelar uma trama diversa da que se consagrou, onde

figuras tidas como básicas na sedição “desapareçam” de cena, enquanto outras, hoje apagadas e/ou

pouco conhecidas, talvez ocupem seus lugares.

Assim, para melhor compreendermos a inserção e a participação dos clérigos na

Inconfidência Mineira, esta dissertação estrutura-se em três capítulos. No Capítulo 1 – “Religião e

Tradições histórico-culturais Luso-brasileiras” – procuramos elucidar aspectos da religião e

religiosidade do povo lusitano, onde o mito e a ideologia de um povo e dos seus governantes, como

escolhidos por Deus, remontam a antigas tradições judaico-cristãs. Na época moderna isso forjaria a

união entre a Igreja e a Coroa, bem como o próprio projeto de expansão ultramarina, com a

conseqüente conquista e colonização do Brasil, sendo, portanto, a base de nossa matriz

civilizacional.

Nesse mesmo capítulo, mostraremos como o papel dos jesuítas e da Segunda Escolástica

(com as teorias corporativas de poder) foram gerados e difundidos em Portugal, ocupando, por

longo tempo, um espaço relevante nas Universidades – notadamente em Coimbra e Évora – e

formando uma nova mentalidade, nos reinóis e em parte da elite da América Portuguesa, que

questionava o absolutismo monárquico e os abusos de poder que igualmente, como vimos, serviram

de inspiração para contestações da dominação lusitana nas Minas Gerais dos setecentos.

No Capítulo 2 - “Minas Gerais no século XVIII: ouro, opressão e sonhos de liberdade”,

traçamos as linhas gerais sobre a história da Capitania das Minas no século do ouro, seu

povoamento e formação, as condições econômicas, a opressão fiscalista metropolitana, as classes

sociais que compunham a paisagem mineira e as formas políticas de dominação para, em seguida,

abordarmos a Inconfidência Mineira com seus limites e alcances, alguns de seus principais

personagens, suas formas de vida, seus sonhos, lutas e destino, por vezes trágico, por vezes obscuro

e esquecido. 6 Ver ENNES, Ernesto. Anno de 1791/ Autos crimes/ juízo da comissão/ contra os reos ecclesiásticos da conjuração em Minas Gerais. Ouro: Preto: Anuário do Museu da Inconfidência; Ministério da Educação e Saúde, 1952.

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No Capítulo 3 – “A batina contra a Coroa: o clero conjurado mineiro”, analisamos o clero

rebelde das Minas Gerais, em especial homens de “batina preta”, que não mais se propunham a ser

“fiéis vassalos” do Estado e nem servirem para manter a dominação colonialista sobre as gentes das

Gerais. Nesta parte, especificamente no caso de nossos cinco personagens – os padres envolvidos na

Inconfidência de 1788-89 – suas vidas, formações acadêmicas, influências ideológicas, inserções na

realidade mineira dos setecentos, formas e estratégias de lutas serão abordadas. Veremos que, cada

um deles, à luz de sua própria realidade, atendeu ao apelo que o ex-jesuíta e pensador iluminista, o

Abade Raynal, fez aos clérigos, qual seja: lutar contra toda forma de tirania, opressão e espoliação

colonialista e que, para tanto, necessitavam entronizar a Pátria no Altar.

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CAPÍTULO 1 – RELIGIÃO E TRADIÇÕES HISTÓRICO-CULTURAIS

LUSO-BRASILEIRAS

1.1 – Portugal e américa portuguesa: a religião entre o mito e a ideologia

O que esperar de uma nação em que metade anda a procura do Messias e a outra metade à espera de D. Sebastião, morto há quase dois séculos? (Estrangeiro anônimo em Portugal – século XVIII)

A história de Portugal é história de salvação, é história sagrada. As caravelas portuguesas são de Deus, e nelas vão juntos os missionários e os soldados. (Eduardo Hoornaert – A Igreja no Brasil colônia)

Os outros homens, por intuição divina têm só a obrigação de ser católicos: o português tem a obrigação de ser católico e de ser apostólico. Os outros cristãos têm obrigação de crer a fé: o português tem obrigação de a crer e mais de a propagar. (Padre Antônio Vieira – Os Sermões)

E também as memórias gloriosas Daqueles reis que foram dilatando A fé, o Império, e as terras viciosas De África e de Ásia andaram devastando E aqueles por obras valorosas Se vão da lei da morte libertando (Camões – Os Lusíadas)

No ocaso da Idade Média e alvorecer dos tempos modernos europeus, os ventos que

sopravam as caravelas lusitanas “por mares nunca dantes navegados” estavam imbuídos de

concepções teológicas, messiânicas e de interesses político-econômicos.

No mundo ibérico, havia uma estreita ligação entre Igreja Católica e os Estados recém-

formados, uma vez que as duas instituições defendiam interesses comuns nas esferas religiosa,

política, ideológica e econômica.

A cobiça pelas riquezas e a paixão por Deus nunca estiveram em conflito. Esta

combinação de cobiça e devoção tem sido considerada a força motora principal dos portugueses.

Em Portugal, assistiu-se a um exemplo típico de união de esforços e interesses entre a Coroa, o

comércio e a religião, um estreito vínculo entre razões de Estado, motivações religiosas e postura

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dos homens de negócios que, com o tempo esses três propósitos, que antes se complementavam,

agora se fundiam.7

Essa fusão de interesses fica clara na visão do jesuíta Antônio Vieira, quando afirma que:

(...) o nosso comércio é apenas o das almas, e não temos outra forma de continuar nas boas graças do Senhor do Mundo que não seja a mais rigorosa e estreita observância desse preceito [mas] se não houvessem mercadores que fossem buscar a uma e outras Índias os tesouros da terra, quem havia de passar lá os pregadores que levavam os do céu? Os pregadores levam o Evangelho, e o comércio leva os pregadores. 8

Quando o navegante lusitano Vasco da Gama completa o famoso Périplo Africano,

chegando ao importante centro comercial de Calicute, nas Índias, em 1498, seu escrivão, Álvaro

Velho, também nos deixa um relato impressionante sobre a vinculação estreita entre o estímulo de

natureza religiosa e a essência econômica das expedições marítimas:

E ao outro dia, isso mesmo vieram estes barcos aos nossos navios, e o capitão-mor

mandou um dos degredados a Calecute; e aqueles com que ele ia levaram-no onde estavam dois

mouros de Tunes, que sabiam falar castelhano e genovês. E a primeira salva que lhe deram foi esta,

que se ao adiante segue:

E ao outro dia, isso mesmo vieram estes barcos aos nossos navios, e o capitão-mor mandou um dos degredados a Calecute; e aqueles com que ele ia levaram-no onde estavam dois mouros de Tunes, que sabiam falar castelhano e genovês. E a primeira salva que lhe deram foi esta, que se ao adiante segue: _ Ao diabo que te dou; que te trouxe cá? E perguntaram-lhe o que vínhamos buscar tão longe. E ele lhes respondeu: _Vimos buscar cristãos e especiaria.9

Desta forma, é difícil e improvável supor que a simples cobiça e a busca de grandes lucros

tenha sido o motor principal a impelir os portugueses a esses empreendimentos incrivelmente

árduos, perigosos e penosos que foram as expedições marítimas. Assim como o historiador Ernest

Jacob, estamos convencidos de que tais feitos, por sua magnitude, só são possíveis quando neles

existe também uma grande motivação moral, uma forte crença em uma idéia, em uma certeza de

missão divina:

7 BOXER, C.R. O império marítimo português:1415-1825. Lisboa: Edições 70, 1992, p.179. 8 VIEIRA, Padre Antônio. História do futuro. Lisboa: Imprensa Nacional/ Casa da Moeda, 1982, p. 321-322. 9 VELHO, Álvaro. Relação da primeira viagem à Índia pela armada chefiada por Vasco da Gama. In: GARCIA, José Manuel. (Org.). As viagens dos descobrimentos. Lisboa: Presença, 1983, p. 183.

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(...) que também ajude a vencer as situações mais difíceis que se apresentam e que empresta tenacidade e auto-superação. O fato de os portugueses terem tido esta fé ardente em sua missão e de terem realizado apesar de todas as dificuldades hoje dificilmente imagináveis, os tornou célebres para todos os tempos. 10

Assim, quando Pedro Álvares Cabral chegou em terras brasileiras, sua tripulação reuniu-se

para assistir a uma missa, pois que as viagens exploradoras dos portugueses aconteceram sob o

signo da cruz cristã.

Já na carta de Caminha podemos ver a preocupação com a catequização, pois os nativos

pareciam a ele “gente de tal inocência que, se nós os entendêssemos, e eles a nós, seriam logo

cristãos (...). Portanto, Vossa Alteza, que tanto deseja fazer crescer a santa fé católica, deve cuidar

da salvação deles...” 11. Também em Tomé de Souza, nosso primeiro governador-geral entre 1549-

1553, ficava claro que “a principal causa que me levou a povoar o Brasil foi que a gente do Brasil

se convertesse à nossa fé católica”. 12

A cristandade luso-brasileira, seguindo o raciocínio de Riolando Azzi 13, era um misto de

mito e de ideologia, onde a religião e a religiosidade devem ser encaradas como formas básicas de

compreensão do ser humano e do mundo, um conjunto de formas de conhecimento e de crenças que

ligam as experiências concretas das pessoas ao significado que elas lhes atribuem, ao sentido que

dão à vida e à morte. Contudo, no campo religioso, os homens não se limitam a reproduzir aquilo

que lhes foi ensinado ou imposto: eles, como indivíduos ativos e concretos, criam e recriam, de

acordo com suas experiências sociais, suas construções simbólicas.

É nesse sentido que devemos entender a matriz da religião /religiosidade no Brasil colônia,

tal qual encontrada no mundo ibérico. Na Espanha, mas de forma mais contundente em Portugal,

houve uma retomada do antigo mito de um povo eleito, de um povo escolhido. Segundo esse mito,

tudo teve início com as tribos de Israel e sua escolha por um Deus único e a crença na vinda de um

messias entre os descendentes desse povo. Com Jesus, surgiria o Cristianismo, de raízes judaicas,

mas se afastando e se contrapondo a elas, originando uma nova cosmovisão, a cristã, e um novo

mito, uma nova idéia ordenadora do mundo: a cristandade. Esse mito seria capaz de oferecer aos

homens uma finalidade para suas existências e um significado para o próprio universo.

10 JACOB, Ernest Gehard. A descoberta da África Sudoeste pelos portugueses. Revista de História, São Paulo, v. 29, nº 59, p. 39-51, jul./set,1964. 11 TUFANO, Douglas. A carta de Pero Vaz de Caminha. São Paulo: Moderna, 2000, p. 17. 12 Apud, HOORNAERT, Eduardo, et. al. História da Igreja no Brasil. 3. ed. São Paulo: Paulinas/ Petrópolis: Vozes. Tomo II/1, 1983, p. 24. 13 AZZI, Riolando. A cristandade colonial: mito e ideologia. Petrópolis: Vozes, 1987.

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Esse mito sobreviveria, com modificações, releituras e adaptações, à queda de Israel, à

perseguição ao povo judeu, à crise do Império Romano, às invasões bárbaras, a formação dos reinos

germânicos e no medievo, com a Igreja Católica tornando-se a mais poderosa das instituições,

cristalizar-se-ia enquanto poder e ideologia. Na passagem para a Idade Moderna, aportaria em terras

ibéricas.

Na formação do reino lusitano, a sacralização de D. Afonso Henriques revestiu-se de

lendas e tradições que confirmavam a monarquia lusa como de origem divina e seu povo como o

eleito por Deus. O cronista Fernão Lopes afirmava, categoricamente, que a Virgem Maria apareceu

para Afonso Henriques, ainda menino, e lhe marcou com um sinal divino, “por que meu filho quer

por ele destruir muitos inimigos da fé”.14 Segundo um cronista do século XVII, Frei Bernardo Brito,

o próprio Cristo, na batalha de Ourique, em 29 de outubro de 1152, apareceu em pessoa a Afonso

Henriques confiando a ele o trono lusitano e predestinando o povo português a ser o portador da

mensagem cristã, o porta-voz da mensagem de fé pelo mundo:

Não te apareci deste modo para acrescentar tua fé, mas fortalecer teu coração neste conflito, e fundar os princípios do teu reino sobre pedra firme. Confia, Afonso, porque não só vencerás esta batalha, mas todas as outras em que pelejares contra os inimigos da minha cruz. Acharás tua gente alegre e esforçada para a peleja, e te pedirá que entres na batalha com o título de Rei. Não ponhas dúvida, mas tudo quanto te pedirem lhes concede facilmente. Eu sou o fundador e destruidor dos Reinos e impérios, e quero em ti e teus descendentes fundar para mim um império; por cujo meio será o meu nome publicado entre as nações mais estranhas. 15

Essa mesma ideologia teve continuidade no mito do Sebastianismo, revivido após o fim da

União Ibérica (1580-1640) : o Rei Sebastião morreu na batalha de Alcacer-Quibir, mas o povo

lusitano – imbuído de seu messianismo – nunca perdeu as esperanças do retorno de seu rei, que os

livraria do jugo espanhol. Essa profecia para o povo luso se cumpriria, pelo menos em parte,

quando D. João IV é ungido como rei e restaura a nação portuguesa. Intensifica-se o mito e a

ideologia da predileção de Deus pelos reis e povo de Portugal.

Um monge agostiniano, Francisco da Trindade, no sermão de ação de graças proferido em

Coimbra, a 12 de dezembro de 1640, em homenagem a D. João IV afirmava que “... escolheu Deus

ao nosso Rei, como temos dito, cumprindo a promessa que tinha feito àquele seu grande amigo,

àquele seu grande cavaleiro, àquele seu valoroso rei D. Afonso Henriques: Respiciet et Videbit. E

14 Apud, AZZI, Riolando, op.cit, p. 17. 15 Apud, AZZI, Riolando. A cristandade colonial: um projeto autoritário. São Paulo: Paulinas, 1987b, p. 52.

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pois Deus escolheu ao nosso rei, será seu governo, governo do mesmo Deus” e a mesma idéia está

presente no apologista Vieira, que prometia um império do mundo a D. João IV pois assim ditavam

as profecias e as esperanças depositadas no “...exemplo de tal rei, e na liberalidade de tais vassalos,

para grande aumento da Fé, para grande glória da Igreja, para grande honra da Nação Portuguesa, e

ainda para grande opulência dos bens e de fortuna, com maior abundância dos bens de graça”. 16

A nação lusitana nascia, assim, como um Estado cristão, onde a sociedade civil e

comunidade de fiéis formavam uma só entidade, com a união de dois poderes, o civil e o

eclesiástico. Sacerdotium e regnum estavam unidos. Era a realização do plano de Deus que a cruz e

a espada, a batina e a coroa, o trono e o altar fossem indissolúveis. Os homens da Ibéria, no dizer de

Rubem Barboza Filho, possuíam uma identidade – uma “alma portuguesa” – que passava pelo papel

de defensio fidei, eram portadores de uma missão substantiva e universal que entrelaçava os reis, os

nobres, o clero e povo, em “uma fé que a todos envolvia”. 17

Os reis de Portugal foram considerados reis fidelíssimos, pessoas sagradas e patronas da

Igreja e isso se cristalizaria no regime do Padroado. O Jus Patronatus foi um instrumento no qual

Roma comprometeu os monarcas portugueses em sua missão religiosa. O rei era vigário de Cristo,

tinha uma missão sagrada, que era defender e manter a integridade da fé e a salvação de seu povo.

“O rei sintetiza em si este destino escolhido e abraçado pelo povo, ao mesmo tempo que se apropria

da vontade divina, afirmando-se como centro estabilizador, como cabeça da nação e condutor de

sua vida (...) [ele] é a própria autoridade espiritual, responsável pela Igreja, pela sua disciplina e

pelo destino eterno de cada um de seus súditos.” 18 O Padroado não tratava de simples atribuições

religiosas próprias da Igreja por parte dos reis, nem de usurpação real de direitos eclesiásticos, mas

um compromisso entre a Santa Sé e a Coroa, que remontam tempos medievais e que se consolidou

no século XV. Consistia, especificamente, no direito de administração dos negócios eclesiásticos,

concedidos pelos papas aos reis de Portugal, em reconhecimento pela luta contra os mouros infiéis –

na fase da Reconquista – e, mais tarde, contra as reformas protestantes.

As lutas contra os mouros haviam cimentado este espírito de cruzada que unia interesses

políticos, econômicos e religiosos. Mas, paralelamente a este sentimento religioso, certamente havia

o interesse em utilizar a Igreja na expansão marítima e na empresa colonial.

16 AZZI, Riolando, op. cit, p. 54. 17 BARBOZA FILHO, Rubem. Tradição e artifício: iberismo e barroco na formação americana. Belo Horizonte: Ed. UFMG / Rio de Janeiro: IUPERJ, 2000, p. 31. 18 Id. Ibidem, p. 235.

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As Grandes Navegações e as conquistas de espaços na África, Ásia e, principalmente nas

Américas, são a continuação da expansão territorialista da época das cruzadas e da fase da

Reconquista, expansão esta que legitima o rei – como distribuidor de justiça, riquezas, terras e

honrarias – com a incorporação de novos espaços para a expansão da fé e áreas econômicas a serem

exploradas.

Para manter seu poder, o rei necessitava preservar a antiga ordem, ligada à aristocracia e,

ao mesmo tempo, incorporar a emergente classe burguesa – sempre ávida de lucros –,

extremamente interessante ao projeto real de enriquecimento e fortalecimento do Estado, de sua

afirmação enquanto centro hegemônico, de sua posição enquanto ponto de equilíbrio e referência

em uma época de transição. Para viabilizar tal projeto, o Rei só dispunha de uma saída: a expansão

territorial, conquistando terras, povos e riquezas para poder redistribuí-las internamente. Quanto

mais ele distribuía – para os clérigos, nobres e a classe mercantil e manufatureira – maior era sua

legitimidade, mais ele se identificava como o análogo terreno de Deus, paternal e generoso.

Portugal, irá, portanto, se constituir na época moderna como uma sociedade sempre necessitada de

novas incorporações territoriais. Isso também estará presente na Espanha. Aliás, segundo Rubem

Barboza, “Espanha e Portugal ‘nascem’ para o mundo pela fome de espaço, e toda a sua evolução

estará marcada por esta obsessão: a expansão e o controle do espaço” 19, tudo isso visando manter o

delicado equilíbrio entre a modernidade e a tradição.

Portugal e Espanha se modernizam e se consolidam enquanto Estados Nacionais, sem abrir

mão da tradição, de seus traços medievais e sem um rompimento com a Igreja Católica. Pelo

contrário, regnum e sacerdotium são gládios unidos, ungindo Espanha e Portugal com um carisma

sagrado. Nesses países, segundo estudos mais recentes, o projeto ou modelo de modernidade não foi

nem melhor, incompleto ou pior que o da Europa Ocidental, foi alternativo e, em alguns aspectos,

pioneiro em termos de formulações teológicas, filosóficas e políticas. O Barroco Ibérico seria uma

matriz civilizacional com identidade própria. A Ibéria não recusa o moderno, mas busca

mecanismos e estratégias, por meio do comércio e das navegações, que lhe permitissem reiterar

uma estrutura social e um conjunto de valores próprios de sua tradição. As revoluções científicas,

políticas e religiosas em processo na Europa, entre os séculos XV e XVI, não seriam sentidas da

mesma maneira nas diversas regiões. Seriam marcadas pela heterogeneidade. O modelo de Estado

19 BARBOZA FILHO, Rubem, op. cit., p. 312.

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Moderno do Além-Pirineus, notadamente o inglês e o francês, tidos como “puros” não se instituiu

na Ibéria, mas ela não deixou de ser moderna, mesmo mantendo a tradição.20

Esse equilíbrio entre modernidade e tradição era possibilitado pelo Barroco, uma tentativa

de religar o temporal ao sagrado, de restaurar a estabilidade original e anterior ao tempo, de

sacralizar o poder e manter a ordem. Para tanto, o Barroco revigora a Igreja, fortalece sua hierarquia

e sua capacidade de controle das consciências, celebra o heroísmo, o compromisso com a fé cristã,

com o rei e a res pública. Em suma, “o barroco é a última tentativa realizada pela Ibéria para

preservar a ordem espacial, arquitetônica e hierárquica que a orientou desde o início da

reconquista”. 21

Um dos pilares do absolutismo ibérico se estabelece, de forma efetiva, por meio do

Padroado, que permite à Coroa exercer sua proteção e controle sobre a Igreja Católica, religião

oficial e única permitida na nação lusitana e suas colônias. O rei passaria a ser delegado da Santa

Sé, Grão-Mestre e administrador da Ordem de Cristo no espiritual e temporal, verdadeiro chefe da

Igreja em Portugal e na América Portuguesa. A razão do sucesso do Padroado está no fato de o

ethos cultural do povo ibérico, como vimos, ter sua medula no religioso, no místico, no messiânico. 22

Quando foi instituído o primeiro bispado no Brasil, por meio da Bula Super specula

militantis ecclesiae, em 25 de fevereiro de 1551, o papa Júlio III outorga a D. João III e seus

sucessores o direito ao Padroado, confirmando a total dependência e falta de autonomia da Igreja,

em Portugal e no além-mar, em relação ao Estado, como fica claríssimo no trecho abaixo:

(...) e declaramos que o direito de padroado existe e de apresentação existe com todo vigor, essência e eficácia em virtude de verdadeiras e totais fundação e dotação reais, e ao dito rei compete como Grão-mestre ou administrador, como igualmente lhe compete em virtude de verdadeira e total doação, e não poderá ela ser derrogada nem mesmo pela Santa Sé, sem

20 A esse respeito ver: BARBOZA FILHO, Rubem, op.cit.; DOMINGUES, Beatriz Helena. Algumas considerações sobre a relação entre modernidade, barroco e iluminismo no mundo ibérico. Rio de Janeiro: COPPE/UFRJ, 1996. Disponível em: <http://www.1a.utexas.edu/paisanothree/ BHDtext.html>, 2001. Acesso em 27 de setembro de 2004. Da mesma autora, disponível on-line, ver o artigo Algumas considerações sobre a relação entre Modernidade, Barroco e Iluminismo no mundo ibérico. 2001. Disponível em: <http://www.1a.utexas.edu/paisano/paisano_three/BHDtext.html>. Acesso em 27/09/2004. MORSE, Richard. O espelho de próspero: cultura e idéias nas Américas. São Paulo: Cia das Letras, 1988; SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno. São Paulo: Cia das Letras, 2003 e VILLALTA, Luiz Carlos. Reformismo ilustrado, censura e práticas de leitura: usos dos livros na América Portuguesa São Paulo: USP, (tese de Doutorado), 1999. 21 BARBOZA FILHO, R., op. cit., p. 337-355. 22 Sobre as origens e evolução do Padroado ver: BIDEGÁIN, Ana Maria. História dos cristãos na América Latina. Tomo I. Trad. Jaime A. Clasen. Petrópolis: Vozes, 1993; HOORNAERT, Eduardo. A igreja no Brasil colônia (1500-1800). 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994; READ, Piers Paul. Os templários. Trad. Marcos José da Cunha. Rio de Janeiro: Imago, 2001. VAINFAS, Ronaldo (Dir.). Dicionário do Brasil colonial (1500-1808). Rio de Janeiro: Objetiva, 2000.

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primeiro intervir o consentimento expresso de João, Rei e Grão-mestre, ou do administrador que então for... 23

Dessa forma, o Monarca, pessoa sagrada e protetor ou patrono da Igreja, colocou o clero

regular e secular na dependência e subordinação à Coroa e, nos primeiros séculos do período

colonial, os eclesiásticos se destacam como verdadeiros apologistas do poder real e seus

intransigentes defensores. A Igreja – quer no reino ou no Brasil – não se constituiu em um poder ao

lado do Estado, mas a serviço do Estado e, portanto, do projeto de dominação colonial. O “viver em

colônias” significava também estar integrado na cristandade portuguesa e expressar sua vida nos

moldes da tradição luso-católica. 24

Os homens de batina faziam parte da nobreza do reino e tinham como missão zelar pela

ortodoxia da fé, pela obediência dos súditos à política portuguesa, enquadrá-los como “fiéis

vassalos”, dentro do projeto de “dilatar a fé e o império”. Eram nomeados pelo reis e, desta forma,

sob o regime do Padroado, eram simples funcionários régios e devotos colaboradores. O clero

procurava incutir, no povo, o sentimento de obediência e sujeição às autoridades civis. O Estado

português, notadamente em sua relação com a América Portuguesa, deixa claro o papel da religião

“para conservar os povos em sossego”. Na Instrução para D. Fernando José de Portugal, Vice-rei

e Capitão-general de Mar e Terra do Estado do Brasil, datada de 1800, lê-se claramente que “a

religião, dada por Deus ao homem para sua consolação, é sem dúvida o melhor ou mais seguro

meio de conservar a tranqüilidade e a subordinação necessária para os povos...” [Grifos

Nossos].25 A ética Cristã estava, desta forma, condicionada e indissoluvelmente associada aos

interesses metropolitanos, de natureza política e econômica, para uma melhor e racional espoliação

das gentes e riquezas do Brasil.

Os interesses da coroa lusitana eram os mesmos interesses da Igreja romana em tempos de

crise advindas dos movimentos reformistas. Os anseios do Estado coincidiam com os do clero. A

Igreja estava, indubitavelmente, a serviço do trono português, era defensora do projeto colonial,

expressa na teologia do messianismo político-expansionista de Portugal. Os portugueses tinham

dois grandes objetivos ao colonizar o Brasil: um material e outro espiritual. A Igreja daria um

suporte religioso significativo dentro dessa perspectiva de expansão/exploração colonial. Não havia,

23 Apud, AZZI, Riolando, 1987b, op. cit., p. 23. 24 AZZI, Riolando, op. cit., p. 34-64. 25 Apud, NOVAIS, Fernando A. Portugal e Brasil na crise do sistema colonial. (1777-1808). São Paulo: Hucitec, 1989, p. 165.

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pelo menos no início, uma distinção clara entre sacerdote e soldado, pois ambos estavam a serviço

de uma causa divina, ambos empunhavam cruz e espada.

Para muitos religiosos não havia separação entre os interesses reais e os da Igreja, pois a

vida da Igreja dependia da do Estado. Opor-se ao Estado era se opor à Igreja. Defender o Estado era

defender a Igreja. A Igreja, na maioria das vezes, punha-se a serviço da opressão do Estado

metropolitano.26

Nesse contexto, a tarefa da Igreja era importantíssima, pois estava em suas mãos a

instrução e a doutrinação dos indivíduos. Esta doutrinação tinha como objetivos inculcar idéias de

obediência sem questionamentos, principalmente as de submissão ao poder real. A legitimação do

poder do soberano, edificada nas leis divinas, estava fundamentada na sujeição dos súditos às leis

humanas, emanadas pelo príncipe ou por ele aplicadas. A Igreja e o Estado sabiam que, se um

indivíduo não respeitasse as leis divinas, não respeitaria as leis humanas, e isso desestruturaria toda

a teoria absolutista de poder. Logo, a manutenção de uma estrutura dominante, no reino e colônia,

perpassava pela estrutura eclesiástica. 27

As festas, as procissões, o culto aos santos, as irmandades e outras manifestações

religiosas, estavam presentes no cotidiano dos colonos. Por força da lei, os súditos da Coroa

Portuguesa no Brasil deveriam ser católicos, respeitando os dogmas da Igreja e obedecendo à

autoridade religiosa dos sacerdotes. Mas na vivência cotidiana, as populações tinham dificuldades

em lidar com o delicado equilíbrio entre a fé e a vida, entre a ortodoxia e suas crenças e práticas

diárias – muita das vezes heterodoxas – que resistiam ou escapavam ao catolicismo oficial. Para

combater tais desvios ou crimes contra as “verdades da fé cristã” existiam as visitações eclesiásticas

internas e a ação dos agentes do Tribunal de Inquisição 28, enviados à colônia por Lisboa,

procuravam impedir o avanço do protestantismo, vigiar e punir seitas judaizantes, combater os

saberes eruditos que se contrapunham à ortodoxia cristã, perseguir manifestações culturais e

26 BIDEGÁIN, Ana Maria., op. cit., p. 293. 27 RODRIGUES, André Figueiredo. O clero e a conjuração mineira. São Paulo: Monografia apresentada à FAPESP como exigência da Bolsa de Iniciação Científica, 1997, p. 67. 28 A inquisição foi criada no século XIII pelo papa Gregório IX. Em Portugal foi oficializada em 1536 no reinado de D. João III e só extinta em 1821. No Brasil não foram criados, ao contrário da América espanhola, tribunais de Inquisição. A ação dos inquisidores na América portuguesa ficou vinculada ao Tribunal de Lisboa, recebendo visitações responsáveis pela investigação e pela transferência dos réus para a metrópole. A inquisição visitou o Nordeste em 1591, 1618 e 1627; o sul da colônia em 1605 e 1627; e a região do Pará entre 1763 e 1769. Para saber mais ver: NOVINSKY, Anita. Cristãos-novos na Bahia: 1624-1654. São Paulo: Perspectiva/ Ed. da Universidade de São Paulo, 1972; PRIORE, Mary del. Religião e religiosidade no Brasil colonial. São Paulo: Ática, 1997; SIQUEIRA, Sônia A. A inquisição. São Paulo: FTD, 1998; FRANCO, Sílvia Cintra & SANTANA, Sérgio Reinhardt. A inquisição Ibérica. São Paulo: Ática, 1998 e FERNANDES, Neusa. A inquisição em Minas Gerais no século XVIII. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2000.

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religiosas dos grupos populares rebeldes aos dogmas oficiais da Igreja, pois por baixo da

religiosidade oficial e ortodoxa, pulsavam também práticas e formas heterodoxas de ligação com o

sagrado: magias, feitiçarias, catolicismo popular de tradição lusitana – em si mesmo, simples,

espontâneo e afetivo – , amalgamando-se com a religiosidade africana e indígena, num sincretismo,

em uma numa nova síntese, que nem sempre as repressoras visitações, devassas eclesiásticas e o

Santo Ofício puderam conter.29

Também a Igreja procurava zelar pela moral e os costumes dos colonos, tentando conter,

na maioria das vezes sem sucesso, a bigamia, a prostituição, a blasfêmia, o concubinato, o incesto,

as relações homoeróticas, a pedofilia etc. À Igreja, vinculada como vimos ao Padroado, coube o

papel de tentar dar estabilidade à ordem colonial e entedia que tal estabilidade também passava por

uma política familiar cristã, baseada no matrimônio. 30

Riolando Azzi 31, usando categorias de análise gramscianas, muito acertadamente

qualificou os jesuítas como os intelectuais orgânicos da cristandade colonial e os mais expressivos

divulgadores do pensamento católico no Brasil colonial, buscando salvaguardar os ideais da

ortodoxia, pois assumiram, com freqüência, os propósitos normalizadores que a metrópole adotava

com relação à colônia, procurando disciplinar a população, manter a hierarquia social, justificar a

escravidão, neutralizar conflitos, enfim, manter “os povos em sossego” para uma eficiente política

fiscalista dentro do pacto colonial. Assim, os próprios jesuítas ou clero por eles formados, se

integravam cada vez mais no projeto colonizador lusitano e passaram, evidentemente, a utilizar os

próprios conhecimentos intelectuais, seja de natureza filosófica, seja teológica, para justificar, a

partir de suas escolas, missões e seminários, a própria ordem socioeconômica com a qual também

eles estavam intimamente comprometidos.

Esse comprometimento fica claro no jesuíta Antonil, quando afirmava a necessidade dos

colonos pagarem os devidos tributos à Coroa, pois do contrário, a sonegação, além de crime legal,

29 Muitas obras procuram desvendar aspectos da religiosidade popular em contraposição à religiosidade oficial. Dessas obras merecem destaque: MOTT, Luiz. Cotidiano e vivência religiosa: entre a capela e o calundu. In: NOVAIS, Fernando A. (Dir.). & SOUZA, Laura de Melo e. (Orgs.). História da vida privada na América portuguesa. São Paulo: Cia das Letras, 1997; SOUZA, Laura de Mello e. O diabo e a terra de Santa Cruz: Feitiçaria e religiosidade popular no Brasil colonial. São Paulo: Cia das Letras, 1986b e VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos pecados: Moral, sexualidade e Inquisição no Brasil. Rio de Janeiro: Campus, 1989. Idem, A heresia dos índios: Catolicismo e rebeldia no Brasil colonial. São Paulo: Cia das Letras, 1995. 30 Sobre a questão da religião, família e sexualidade ver: FIGUEIREDO, Luciano Raposo de Almeida. Barrocas famílias: vida familiar em Minas Gerais no século XVIII. São Paulo: Hucitec, 1997; ALGRANTI, Leila Mezam. Famílias e vida doméstica. In: NOVAIS, Fernando A. (Dir.). & SOUZA, Laura de Melo e. (Org.). História da vida privada no Brasil: cotidiano e vida privada na América portuguesa. São Paulo: Cia das Letras, 1997 e VAINFAS, Ronaldo. Moralidades brasílicas: deleites sexuais e linguagem erótica na sociedade escravista. Id. Ibid. 31 AZZI, Riolando, 1987a, op. cit., p. 143.

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era também uma falta de comprometimento religioso, uma falta moral, um crime de consciência.

Para ele, ser “um bom vassalo” é “ser um bom cristão” e que se deve pagar os quintos pois as leis

que cobravam os quintos não eram “puramente penais, mas dispositivas e morais, assim como são

as convencionais entre partes, que para maior firmeza admitem pena entre os contraentes para que

se guardem os contratos e as promessas de fazer ou de pagar qualquer dívida”. 32

Sem dúvida, os jesuítas se constituíram na ordem mais atuante no Brasil e os soldados de

Cristo estiveram presentes em todo o desenrolar da colonização, atuando em diversos campos,

como catequese, a educação – de clérigos ou da elite civil –, na fundação de vilas, na produção

literária e artística. Esse poder e incidência irão perdurar muito além de sua expulsão.

Além disso, os jesuítas formaram uma verdadeira potência econômica no Brasil colonial,

pois estima-se que:

(...) eles tinham fazendas com cem mil cabeças de gado só em Marajó, engenhos de açúcar e obtinham polpudos lucros na extração de cravo, cacau e canela; mais ainda, existia armazém no Colégio dos Jesuítas e as mercadorias lá reunidas, isentas de tributação e direitos alfandegários, eram comercializadas. Seria difícil dizer que tudo isso ocorria ad majorem Dei gloriam, ou seja, “Para maior glória de Deus”, alusão à frase inscrita no sinete que identificava a autoridade do geral da ordem... 33

Para se ter um pouco mais a idéia desse poder econômico, que aliás garantia à Ordem de

Cristo uma relativa autonomia em relação ao Padroado, os jesuítas possuíam, por exemplo, a

Fazenda Santa Cruz, no Rio de Janeiro, com 7.658 cabeças de gado, 1.140 cavalos e 700 escravos.

Os escravos aumentaram para 1.205 em 1768. 34

A Companhia de Jesus possuía também um contingente de pessoas impressionante e que

foi aumentando de ano para ano: Em 1549 chegaram os primeiros 6 jesuítas; em 1574, já eram 110,

sendo 14% formado por brasileiros; em 1610, 165 e 17% de brasileiros; 1654 eram 170 e o clero

nativo, 34%; 1698 atuavam no Brasil 304 jesuítas, sendo 37% jesuítas brasileiros; 1732, 362 e 45%

de nacionais e em 1757, 474 jesuítas e 44% desse contingente nascido no Brasil. 35

Serão os jesuítas, os principais responsáveis pela propagação da fé cristã e pela base onde

se erigiria toda a cultura e teologia colonial na América Portuguesa, principalmente nas missões, na

32 ANTONIL, André João. Cultura e opulência do Brasil [1711]. 3. ed. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1982, p. 178. 33 LOPEZ, Luiz Roberto. A inconfidência mineira. 2. ed. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 2000, p. 35. 34 HOORNAERT, E, et. al., 1984, op. cit., p. 40. 35 Ibid., p. 30.

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educação ministrada em seus colégios e seminários, nas pregações através de sermões e nos escritos

e correspondências deixados por eles.

Em relação aos nativos, a idéia inicial de fácil conversão estava ligada à compreensão dos

religiosos de que os índios seriam facilmente moldáveis, como uma cera, como um barro, como

uma tabula rasa, ou melhor, como uma pedra. O padre Vieira apresentou, em um de seus sermões,

essa idéia:

(...) Concedo-vos que esse índio bárbaro e rude, seja uma pedra: vede o que faz em uma pedra a arte. Arranca o estatutário uma pedra dessas montanhas, tosca, bruta, dura, informe, e depois que desbastou o mais grosso, torna o maço e o cinzel na mão, e começa a formar um homem, primeiro membro a membro, e depois feição por feição, até a mais miúda: ondeia-lhe os cabelos, alisa-lhe a testa, rasga-lhe os olhos, afila-lhe o nariz, abre-lhe a boca, avulta-lhe as faces, torneia-lhe o pescoço, estende-lhe os braços, espalma-lhe as mãos, divide-lhe os dedos, lança-lhe os vestidos: aqui desprega, ali arruga, acolá recama: e fica um homem perfeito, e talvez um santo, que se pode pôr no altar. 36

Essa perspectiva era comum desde os primeiros jesuítas, como o Padre Manuel da

Nóbrega ao afirmar que “... cá poucas letras bastam, porque é tudo papel branco e não há mais que

escrever à vontade; mas é muito necessária a virtude e o zelo de que essas criaturas conheçam ao

seu Criador e a Jesus Cristo seu Redentor”. 37

Mas com o tempo passaria a ser comum aos jesuítas o repúdio ao indígena e ao seu

comportamento idolátrico e a recusa de muitos em abraçar a “verdadeira fé”. A idéia de

inconvertibilidade dos índios começa a se proliferar, como podemos ver nesta fala do próprio

Manuel da Nóbrega: “... por demais é trabalhar com estes que são tão bestiais que não lhes entra no

coração cousa de Deus, estão tão encarniçados em tratar e comer, que nenhuma bem-aventurança

sabem desejar, pregar a estes é pregar em deserto de pedras.” 38 O próprio provincial dos jesuítas no

Brasil, o Padre Luís de Grã, em carta para Inácio de Loyola datada de 1553 vai mais além, ao dizer

que “... este gentio, padre, não se converte com lhe dar coisas da fé, nem com razões nem com

palavras de pregação...” 39

Assim, a visão dos “Soldados de Cristo” sobre os nativos foi mudando na medida em que

as missões volantes se mostraram arriscadas e infrutíferas. Na verdade, em suas próprias aldeias,

36 VIEIRA, Antônio. Os Sermões. “Sermão do Espírito Santo”. São Paulo: Difel, vol. V, 1968. p. 424. 37 NOBREGA, Manuel da. “Carta do Brasil ao Dr. Martín Azpilcueta Navarro”, Salvador 10 de agosto de 1549. In: NEVES, Luiz Felipe Baêta. O combate dos soldados de Cristo na terra dos papagaios. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1978, p. 54. 38 NÓBREGA, Manuel da. Diálogo da conversão do gentio. São Paulo: Tecnoprint, s/d, p. 25. 39 Idem, p. 20.

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muitas tribos até que recebiam bem os catequizadores, mas não acolhiam verdadeiramente a sua fé,

não abdicavam de suas próprias manifestações do sagrado e muito menos dos conselhos dos pajés.

Entre os religiosos jesuítas começa a surgir um novo processo para a conversão: afastar os índios de

suas aldeias e criar as missões e reduções. E mais, sem abandonar totalmente a idéia de converter os

nativos pelo convencimento, os inacianos introduziram a idéia de conversão pela força e medo, a

sujeição dos indígenas em aldeamentos dirigidos pelos padres, com auxílio da autoridade civil

(braço secular), pois “... talvez por medo se convertam mais depressa do que fazem por amor, tanto

vivem corrompidos nos costumes e afastados da verdade (...) por medo fazem tudo (...) e criação

com sujeição farão deles o que quiserem, o que não será possível com razão e argumentos”.40

Os jesuítas passaram a fazer distinção entre os índios: aqueles que poderiam aceitar a

conversão – por amor ou temor – e passariam a habitar as missões sob o comando dos padres e os

índios que recusariam tal estado de coisa. A estes últimos, a Guerra Justa e a escravização por parte

dos colonos, pois se tratavam do “mais vil e triste gentio do mundo”, como diria Anchieta.

Os soldados de Cristo não discutiam a validade da escravidão como forma de exploração

de trabalho, mas formas adequadas de se escravizar uma pessoa. A guerra justa, para se adquirir

mão-de-obra, era vista como uma guerra santa, desde que feita apenas sobre os indígenas que

recusassem a catequização e desde que os colonos não invadissem as aldeias missionárias. Isso de

fato não ocorreu, pelo contrário, diversas Bandeiras paulistas invadiram, destruíram e escravizaram

os índios dos aldeamentos, em busca de um gentio “pacificado”, pronto para o trabalho compulsório

e que tinham melhor preço no mercado interno da colônia.

Aliás, sobre essa questão do novo projeto missionário (o aldeamento) é muito interessante

a tese defendida, de forma perspicaz, por José Eisenberg 41, tendo por base, dentre inúmeras obras,

o “Diálogo sobre a Conversão do Gentio” e o “Plano Civilizador”, de Manuel da Nóbrega. Segundo

Eisenberg, os missionários jesuítas no Brasil, a partir dos aldeamentos, definiram o consentimento

dos governados, gerado pelo medo, como fonte de legitimidade do poder dos governantes. Além

disso, para justificarem a escravização voluntária (sic!) dos índios, os jesuítas substituíram a

interpretação dominicana de direito natural divino à liberdade e, portanto, inalienável, pelo direito

subjetivo ou faculdade humana, na qual uma pessoa podia alienar sua liberdade, segundo sua

vontade.

Mais tarde, os teólogos da mesma Cia de Jesus na Europa – Juan de Mariana e Luís de

Molina – a partir das experiências prévias e reais das missões jesuíticas no Brasil, introduziriam a 40 NÓBREGA, Manuel da, op. cit., p. 46. 41 EISENBERG, José. As missões jesuíticas e o pensamento moderno. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2000.

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idéia do sentimento do medo, exercendo papel central na produção do consentimento, que

legitimava a autoridade, e a idéia do direito subjetivo quanto à liberdade. Tais idéias antecipariam,

de forma surpreendente, as teorias contratualistas que só ganhariam relevo no século XVII com

Thomas Hobbes e Hugo Grotius.

A partir do contexto da ação missionária prática em terras do Brasil, buscando-se melhor

estratégia e justificação para a conversão do gentio, revela-se uma conexão com as bases de teorias

que, subseqüentemente, serão refinadas e sistematizadas por teólogos da Companhia de Jesus nas

universidades européias, principalmente Juan de Mariana e Luís de Molina, que formalizariam a

contribuição deles ao desenvolvimento do pensamento político no início da Idade Moderna.

Mas, num certo sentido, os jesuítas mantiveram uma posição, até que firme, contra a

escravização dos indígenas (formalmente condenada pelo papa Paulo III, em 1537, e legalmente

proibida pelo Estado lusitano em 1566), embora o mesmo não se possa dizer sobre os africanos.

Alguns clérigos até percebiam a violência do sistema escravocrata, mas, poucas vozes, contudo, se

levantavam contra ele, pois sabiam que o êxito do projeto colonial e a expansão da cristandade

dependiam do braço africano. O próprio Nóbrega justificava a necessidade de braços negros

(...) porque todos confessamos não poder viver sem alguns que busquem a lenha e água, e façam cada dia o pão, que se come, e outros serviços, que não é possível poderem-se fazer pelos irmãos, sobretudo sendo tão poucos, que seria necessário deixar as confissões e tudo o mais. 42

A Igreja, ciente que a economia colonial não se manteria sem o braço escravo,

desenvolveu toda uma teologia, baseada na Bíblia, para justificar a escravização africana. Essa

explicação teria três vertentes, não excludentes entre si: primeiramente a passagem entre os irmãos

Caim e Abel, onde, por inveja, o primeiro mata o segundo e “... O senhor pôs, então um sinal em

Caim para que ninguém, ao encontrá-lo o matasse” (Gn, 4:8-16). Este sinal seria a cor negra da pele

dos africanos. Os negros também, em uma segunda explicação, podiam ser descendentes de Cam,

filho de Noé que viu e zombou da nudez de seu pai embriagado e foi obrigado a ser escravo de seus

irmãos (Gn 9, 18-28). A terceira vertente está ligada à expulsão de Adão do Paraíso, também no

Gênesis, 3: 17-19, e a sua pena de ganhar o sustento com o suor de seu rosto, juntamente com sua

mulher e descendentes. A escravidão simbolizaria esta condenação divina nas sociedades coloniais.

42 Apud NEVES, Luiz Felipe Baêta. O combate dos Soldados de Cristo na terra dos papagaios. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1978, p. 89.

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A retirada dos africanos de seu continente era, para as justificativas que se elaboraram no

século XVII, um milagre da Providência Divina. Pela travessia, pelo batismo, pela própria

escravidão, o escravo se purgaria dos seus pecados, era trazido à luz da fé. O que poderia ser

entendido como injustiça e desumanidade, era na verdade uma graça. O jesuíta Antônio Vieira,

argumenta, com muita propriedade, esta visão:

(...) Oh se a gente preta tirada das brenhas da sua Etiópia, e passada ao Brasil, conhecera bem quanto deve a Deus, e a sua Santíssima Mãe por este que pode parecer desterro, cativeiro, e desgraça, e não é senão milagre, e grande milagre! Dizei-me: vossos pais, que nasceram nas trevas da gentilidade, e nela vivem e acabam a vida sem lume da fé, nem conhecimento de Deus, aonde vão depois da morte? Todos, como já credes e confessais, vão ao inferno, e lá estão ardendo e arderão por toda a eternidade. E perecendo todos eles, e sendo sepultados no inferno como Coré, vós, que sois seus filhos, vos salveis, e vades ao Céu? Vede se é grande milagre da providência e misericórdia divina... 43

Para Vieira, o fim da escravidão seria a total destruição do Brasil e ele sabia que

questionar o trabalho compulsório significava por em xeque todo o projeto colonial, no qual a

própria Igreja, dependente e parceira da Coroa, estava profundamente inserida. Por isso, ele buscava

recomendar paciência aos escravos e fazer com que eles entendessem e santificassem o regime a

que estavam submetidos:

(...) Não há trabalho nem gênero de vida no mundo mais parecido à cruz e à paixão de Cristo que o vosso trabalho em um destes engenhos. Bem-aventurados sereis vós se, compreendendo esta situação souberem aproveitar e santificar o trabalho. (...) Em um engenho sois imitadores de Cristo crucificado. Padeceis de um modo semelhante o mesmo que o Senhor padeceu na cruz. Cristo sem comer, e vós famintos. Cristo maltratado, e vós maltratados em tudo. Os ferros, as prisões, os açoites, os insultos, de tudo isso se compõe a vossa imitação. (...) Se vós souberdes aproveitar essa condição de escravos inspirando-se no exemplo e paciência de Cristo, eu vos prometo, primeiramente, que esses trabalhos se tornarão doces e, depois,que serão recompensados com a glória da ressurreição e a salvação eterna. 44

As poucas vozes discordantes advindas de círculos eclesiásticos contra o tráfico e a

escravização dos negros vieram também de dois jesuítas ainda no século XVI: Padre Gonçalo Leite

e Padre Miguel Garcia, ambos professores de filosofia no Brasil. Para Gonçalo Leite, nenhum

escravo, seja na África ou no Brasil, fora preso ou adquirido de forma legítima. Foi mais além, ao

dizer que “... sabe Deus quanta dor de coração isto escrevo, porque vejo os nossos padres confessar 43 VIEIRA, Antônio. Os Sermões. v. XI, “Sermão décimo quarto”. São Paulo: Difel, 1968, p. 301. 44 Id. Os Sermões. v. XIV. “Sermões do Rosário”. Rio de Janeiro: Agir, 1972, p.74.

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homicidas e roubadores da liberdade, fazenda e suor alheio, sem restituição de passado, nem

remédio dos males futuros, que da mesma sorte se cometem”. 45 Miguel Garcia seguia o mesmo

raciocínio ao afirmar que nenhum cativo da África ou do Brasil era obtido de forma lícita ou justa e,

também, condenava a posse de escravos por parte dos membros de sua própria ordem: “a multidão

de escravos que tem a Companhia nesta província [Bahia], particularmente neste colégio, é coisa

que de maneira nenhuma posso tragar, máxime por não poder entrar em entendimento serem

licitamente havidos”. 46 Nas teses de ambos, não estavam interessados nem a Companhia de Jesus e

nem o projeto colonizador da Coroa. Foram considerados inimigos da cristandade e Miguel Garcia

e Gonçalo Leite foram transferidos para Portugal, respectivamente, em 1583 e 1586.

Pelo exposto, podemos verificar que os jesuítas eram mais complexos do que pareciam.

Nem todos falavam e pensavam de forma homogênea. Alguns jesuítas zelavam pela ortodoxia, mas

outros compartilharam e mesmo inauguraram atitudes, comportamentos e idéias inovadoras e

contestatórias, se comparados a muitos de seus contemporâneos. Como nos diz Luiz Felipe Baêta

Neves, eles não eram:

(...) apenas aplicados pedagogos e professores que aceitaram formas violentas aplicadas por leigos (...), nem tampouco se afirma o oposto: que os jesuítas eram soldados que eventualmente vestiam batina. Os jesuítas não são nem mansos professores que vieram ensinar a civilização ao Brasil, nem são sanguinários guerreiros colonialistas. 47

Os jesuítas eram, simplesmente, filhos de uma época de transição, imbuídos de uma

verdade religiosa inabalável, um medo do demônio a cada esquina e que ansiavam pela vitória de

Deus.

Assim, é verdade que a religião, como vimos, era um suporte valioso para a sustentação da

Coroa e seus interesses colonialistas, mas, foram precisamente alguns de seus ministros que

passaram a ser elementos de sua contestação. A religião, de suporte da ordem e instrumento para a

conservação do “sossego dos povos”, começa a ser vista como roteiro de libertação, promovendo

“inquietações nas consciências”, pois “... a Sagrada Escritura, assim como dá o poder aos reis, para

castigar vassalos, o dá aos vassalos, para castigar os Reis”. 48 Foram justamente os religiosos que

acabaram “metendo na cabeça dos povos alguns discursos sediciosos” e não à toa foram vistos

como “elementos perturbadores e corrosivos” pelas autoridades metropolitanas. 45 Apud AZZI, Riolando, 1987b, op. cit., p.167. 46 Apud BERGMANN, M. Nasce um povo. Petrópolis: Vozes, 1978, p. 51. 47 NEVES, Luiz Felipe Baeta, op. cit., p. 70. 48 NOVAIS, Fernando A. 1989, op. cit., p. 173.

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Se é correto afirmar que a Companhia de Jesus, através de seus “soldados de Cristo”, dava

o suporte ideológico para a legitimação da colonização, o é também asseverar que, às vezes, seus

interesses e projetos foram antagônicos aos propósitos do Estado e seu projeto de espoliação

colonialista. Como nem todos os clérigos eram, antes de tudo, funcionários fiéis à Coroa e como

nem todos estavam convencidos da utilidade da união do projeto colonial e evangelizador, em toda

a história da Igreja brasileira colonial, persistiu um conflito permanente entre as autoridades civis –

representantes diretos ou indiretos da Coroa – e os clérigos.

Houve, portanto, vários momentos de conflitos entre padres da Igreja e autoridades da

colônia. Foi muito comum a participação de padres em diversas rebeliões coloniais. Que

motivações pessoais, formação acadêmica e posturas ideológicas conduziram a “batina contra a

Coroa”? Qual o papel dos jesuítas na formação intelectual da elite branca e grande parte do clero

secular estabelecido na colônia e, principalmente, em Minas Gerais? Que motivos levaram à rota de

colisão o poderoso Marquês de Pombal e os jesuítas? O que andava nas mentes, corações e bocas

dos homens de batinas? Por que muitos clérigos foram proibidos de se instalarem nas Gerais?

Para elucidarmos estas questões, temos de levar em conta que, na relação Portugal-Brasil

na crise do sistema colonial, a vertente de contestação envolvendo clérigos e civis bebeu de fontes

intelectuais diversas. Nas Minas Gerais do século XVIII, as idéias iluministas e o exemplo da

independência das treze colônias inglesas da América do Norte (1776) conjugaram-se com as

tradições histórico-culturais luso-brasileiras, com destaque para a Segunda Escolástica,

notadamente as teorias corporativas de poder, elaboradas e difundidas fundamentalmente por

jesuítas.

1.2 – A Segunda escolástica e as teorias corporativas de poder

Todo o governante digno do nome deve sempre agir para o bem da república e de acordo com a lei. Ele não está acima da comunidade, mas faz parte dela; está comprometido com suas leis e limitado por obrigação absoluta de visar ao bem comum em seu governo. (Jean Gerson - Religioso, teólogo e Chanceler da Universidade de Paris - De potestate ecclesiastica - Séc. XIV)

O consenso é indispensável sempre em todos os casos nos quais o povo transfere seus poderes a alguém, pelo bem da república. (Francisco de Vitória – Dominicano Espanhol e Professor de Teologia em Salamanca - De potestate civili - Século XVI)

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O poder do governante tem sempre que estar em concordância com a vontade, aprovação, arbítrio e beneplácito do povo. (Luis de Molina - Jesuíta e Professor de Humanidades e Teologia em Évora - De iustitia et iure libri sex - Séc. XVI)

... nunca se pode afirmar que um homem, na natureza das coisas, possua poder maior que o poder de qualquer outro... o poder político deve ser fruto da escolha humana e na natureza das coisas, o poder de organizar a república reside imediatamente na comunidade. O poder civil sob qualquer forma, para que seja justo e legítimo, deve resultar de uma concessão direta da comunidade, não podendo de outro modo ser mantido com legitimidade...Se o rei converte seu justo poder em tirania e seu governo se torne manifestamente pernicioso para toda a república, será legítimo que a comunidade faça uso de seu poder natural para defender-se. (Francisco Suárez - Jesuíta e Professor de Teologia em Coimbra - Defensio fidei catholicae - Século XVI)

Na época moderna, fundamentalmente por intermédio da atuação dos intelectuais e

teólogos da Companhia de Jesus, ocorreu uma releitura das idéias aristotélicas e dos ensinamentos

de Santo Tomás de Aquino, em um movimento que ficou conhecido como Neotomismo, Segunda

Escolástica ou Neo-Escolástica. Era um sistema teológico-filosófico típico do alvorecer da Idade

Moderna e que se manteve extremamente vigoroso até o final do século XVIII, notadamente nos

países ibéricos e em terras ibero-americanas.

Nesse sistema filosófico-teológico destacavam-se as concepções corporativas de poder 49

que, seguindo as idéias pactistas ou corporativas medievais, asseguravam que o poder advinha de

Deus, mas não transitava diretamente deste para as mãos do rei, passando, ao contrário, pela

mediação da comunidade. Assim, a sociedade política era uma criação humana e, não, estabelecida

e ordenada diretamente por Deus. Todas as repúblicas foram instituídas pelos cidadãos, com

objetivos puramente mundanos. Seria incorreto descrever a sociedade política como sendo dádiva

de Deus e, não, como uma invenção do próprio homem. 50 Um bom governo não poderia nunca

49 Sobre as teorias Corporativas ver: BARBOZA FILHO, R., op. cit.; CATÂO, Leandro. Jesuítas e as conjurações em Minas Gerais. Projeto de Pesquisa. Belo Horizonte: UFMG (mímeo), 2002; CHEVALLIER, Jean-Jacques. História do pensamento político. Tomo I - da cidade-estado ao apogeu do Estado-nação monárquico. Rio de Janeiro: Zahar, 1982; EISENBERG, José, op. cit.; HANSEN, João Adolfo. Razões de estado. In: NOVAES, Adalto. A crise da razão. São Paulo: Cia das Letras, 1996.; HESPANHA, Antonio Manuel (Coord.). História de Portugal: O Antigo Regime. Lisboa: Ed. Estampa, 1998; LIMA JR, Augusto de, op. cit.; MACEDO, Jorge Borges de. Formas e Premissas do Pensamento Luso-Brasileiro do século XVIII. Revista da Biblioteca Nacional, Lisboa, jan./jun. 1981; MIRANDA, Tiago Costa Pinto dos Reis. “Ervas de ruim qualidade”: a expulsão da Companhia de Jesus e a aliança anglo-portuguesa: 1750-1763. 1991. Dissertação (Mestrado) São Paulo: FFLCH-USP, 1991; MORSE, Richard M., op. cit.; SKINNER, Quentin. op. cit., TORGAL, Luís Reis. Ideologia política e teoria do Estado na Restauração. Coimbra: Biblioteca Geral da Universidade, 2 vols, 1981; VILLALTA, Luiz Carlos, 1999, op. cit.; Id. 1789-1808 O império luso-brasileiro e os Brasis. São Paulo: Cia das letras, 2000b. O historiador Villalta gentilmente nos enviou seu artigo “Liberdades Imaginárias”, a partir da conferência proferida por ele no Museu Nacional de Belas Artes, no dia 10 de outubro de 2000, dentro do curso A Invenção da Liberdade, promovido pela Prefeitura do Rio de Janeiro, Artepensamento e UFRJ, entre 25 de setembro a 31 de outubro de 2000. 50 SKINNER, Quentin, op. cit., p. 432.

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estar dissociado da ética e da moral cristã, corporificada no tema do bem comum, no qual o

interesse particular se funde harmoniosamente ao interesse geral. 51

Assim, alguns jesuítas, na qualidade de melhores representantes desse pensamento,

sustentavam que a origem do Estado estava no consentimento do povo e que os poderes do

governante deveriam ser limitados. Contra as “razões do Estado” se impunham as “razões do

Estado cristão”: em caso de abuso contra o interesse público, eram lícitas as rebeliões e sedições

para se depor um monarca. Outros jesuítas, como Francisco Suárez, propunham até mesmo, no

limite, o assassinato do tirano.

Desta forma, nessa concepção, o Estado seria originado de um “pacto social”, por meio do

qual a população em seu conjunto cederia todo o poder temporal ao rei que, por sua vez, teria como

incumbência viabilizar o “bem comum”. Caso o monarca ignorasse tal concepção, era legítimo à

comunidade o direito de depô-lo. A autoridade última deveria permanecer sempre nas mãos do

povo, pois a autoridade vem de Deus, mas, por intermédio do povo (a Deo per populum) e, assim, a

eleição do titular do poder, como também o tipo de regime e sua permanência no cargo, recaía,

necessariamente, sobre o mesmo povo.

A teoria política dos jesuítas, na virada dos séculos XVI-XVII, mostrava-se aberta a um

componente subjetivo (vontade humana) na determinação das leis, direitos, natureza do poder etc.

Os inacianos, portanto, anteciparam, em muito, a gênese do pensamento político moderno

– mais tarde cristalizada nas idéias de Hugo Grottius e Thomas Hobbes – além do fato de que, essa

escolástica jurídica dos inacianos, regou as primeiras sementes do liberalismo na Europa e foram,

mais tarde, recolhidas e reelaboradas por Jean-Jacques Rousseau.

Em suma, alguns jesuítas começaram defendendo a igualdade jurídica dos Estados e, indo

bastante longe para o seu tempo, sustentaram:

(...) que a origem do Estado estava no consentimento do povo e que os poderes do governante eram limitados; que em caso de abuso contra o interesse público, era lícito o assassinato do tirano pelo simples particular, publicamente ou às escondidas, se, convenientemente advertido pelos órgãos do povo, ele se obstinasse em sua má conduta. 52

Eles não punham em dúvida o princípio da autoridade dos chefes de Estado. Os reis

tinham, com certeza, a legitimidade do poder temporal, mas deviam submeter suas condutas

51 HANSEN, João Adolfo. Razões de estado. In: NOVAES, Adalto. A crise da razão. São Paulo: Cia das Letras, 1996, p. 141. 52 LIMA JR, Augusto de, op. cit., p. 10.

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políticas a uma perspectiva moral cristã (o direto poder do papa no gládio espiritual e poder indireto

no gládio temporal), às regras do direito natural e do direito dos povos. Estes teriam, além disso, o

direito de se levantarem não apenas contra os monarcas que não tivessem título legítimo, mas

também contra aqueles que rejeitassem as ordens de Deus ou até da Igreja romana e contra

governantes que faltassem grandemente ao cumprimento de suas obrigações.

Contudo, as próprias teorias aristotélico-tomistas deitavam raízes na Idade Média, quando

Tomás de Aquino (século XIII) buscava realizar uma síntese entre o aristotelismo-cristianismo e as

concepções medievais de lei, de governo e de res publica. Aquino visava utilizar verdades

filosóficas dentro do universo mental unificado pela fé, ou melhor, seu pensamento, como bem nos

mostra Padre Vaz, é uma teologia gerada pela conjugação de um duplo foco:

(...) a ciência de Deus comunicada pela revelação (teologia) e a ciência do homem alcançada pela reflexão autônoma (filosofia) e [desta forma] a originalidade de Santo Tomás consistiu em descobrir que o ponto de vista de Deus e o ponto de vista do homem podem realmente conjugar-se para dar origem a uma visão de mundo coerente e harmoniosa. 53

Um dos grandes méritos de Santo Tomás, como bem sintetizou Beatriz Domingues, foi

apostar não apenas na possibilidade de convivência, como na complementaridade da ciência para

iluminar a fé, de se erigir uma teologia utilizando instrumentos conceituais da razão grega, de se

demonstrar que o pensamento aristotélico não era incompatível com a doutrina cristã e que poderia

ser, pelo contrário, um grande e valioso aliado:

(...) Em suma, Tomás forneceu ao pensamento católico um sistema de tal forma completo, que tudo encontrava lugar e explicação. Onde a doutrina aristotélica, que até então era tida como completamente incompatível com a concepção cristã de mundo, parecia não só tornar-se compatível, mas ajudar a explicá-la. Onde, enfim, religião e filosofia (ciência) não eram duas verdades inconciliáveis: eram, pelo contrário, perfeitamente complementares, desde que respeitassem seus “campos” e os graus da hierarquia dos mundos possíveis aos quais diziam respeito. Este intrincar de teologia e filosofia foi decisivo para as formulações posteriores em filosofia natural. 54

O catolicismo jesuítico, com uma retomada do tomismo (que supunha a aceitação das

idéias de Aristóteles no campo do pensamento moral e político), foi, como vimos, de crucial 53 VAZ, Henrique C. de Lima. Escritos de Filosofia. Problemas de Fronteira. São Paulo: Loyola, 1986, p. 32. 54 DOMINGUES, Beatriz Helena. O aristotelismo medieval e as origens do pensamento científico moderno. In.: LOCUS : Revista de História. Juiz de Fora: Núcleo de História Regional/ EDUFJF, 1996, p. 40.

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importância para se desenvolver a moderna teoria do Estado. As idéias contidas na Suma Teológica

de Santo Tomás de Aquino tornaram-se, no século XVI, o eixo da restauração e modernização da

teologia na Ibéria, que teve repercussões, dentre outros campos, na política e nas teorias do direito.

Na Baixa Idade Média, notadamente a partir do século X, já se exortava o rei a ser justo e

a nomear administradores justos. A realeza era sinônimo de justiça; a tirania era injustiça. A

autoridade não poderia ser irresponsável ou arbitrária. O rei era obrigado a fazer justiça pois era um

administrador e encarado como servo dessa mesma justiça. 55

O inglês John de Salisbury, teórico medieval (1115-1180) tinha ódio violento contra a

tirania. Sua obra Policraticus (O Governante), de 1159, seria a mais notável obra de teoria política

antes de Tomás de Aquino, na qual o próprio “Doutor Angélico” fundamentaria também seus

pressupostos teóricos. Em Salisbury, estaria presente a idéia da comunidade rogar a Deus para este

livrá-la dos tiranos, mas estava contida também a idéia do tiranicídio:

Se o príncipe, o verdadeiro príncipe, imagem da divindade, deve ser amado, adorado, objeto de culto, o tirano, imagem da perversidade, deve em geral ser executado: tal ato não só é permitido, legítimo, mas é também recomendado em nome da justiça, que se vinga, pois quem usurpa a espada pela espada merece morrer. Deus, quando não pune com sua própria mão a perversidade, reserva o direito de empregar a mão do homem como arma para o castigo perverso. 56

A idéia de Salisbury – que influenciaria Tomás de Aquino e, também, os tomistas

modernos – pregava que o soberano era simplesmente juiz, não um legislador. A lei seria um

costume e um direito natural, atributo de um grupo, de uma comunidade ou povo (populus).O rei

estaria subordinado à lei, assim como ele estaria, sempre, subordinado a Deus. A lei fazia o Rei.

A síntese tomista assimilava essas idéias fundamentais da Baixa Idade Média e as

confrontava e amalgamava, seletivamente, com o aristotelismo. Tomás de Aquino, na Suma

Teológica, afirmava claramente que:

(...) a objeção procede quanto à lei que impõe injusto gravame aos súditos; ao que também não pode estender-se à ordem do poder concedido por Deus. Por onde, também nesses

55 CHEVALLIER, Jean-Jacques, op.cit., p. 205. 56 Apud Id. Ibid., p. 206.

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casos o homem não está obrigado a obedecer à lei e, sem escândalo ou maior detrimento, pode resistir-lhe. 57

Tomás de Aquino, fazendo uma apropriação seletiva das idéias aristotélicas, do direito

romano, da tradição medieval corporativista e organicista de mundo, buscava uma

complementaridade entre razão (Estado como corpo político e moral) e fé (corpo místico). O poder

pertence a Deus e um homem (o Rei) pode exercer um comando. E isso não decorre de uma escolha

divina e pessoal de Deus, mas de uma designação meramente humana. O poder in concreto pertence

a Deus; mas, isso não decorre que o rei tenha um poder de direito divino, pois ele só se realiza por

intermédio do povo, da comunidade: “Se o povo se compromete a obedecer, os governantes, por sua

vez, assumem o compromisso de cumprir com o seu dever de buscar o bem da multidão e não o seu

próprio” 58, na medida em que o fim do poder é o bem comum, a ordem e a justiça, segundo a lei

natural.

Aquino condena a tirania, mas também a sedição, pois ela “destrói a ordem jurídica ao

tentar alcançar o bem comum”; mas, admite que na tirania o sedicioso é o tirano e derrubar um

poder dessa espécie não é sedição:

(...) o povo – que tem o direito de nomear para si um rei – pode, então, sem infidelidade nem injustiça, depor o monarca ou reduzir-lhe os poderes. O próprio rei, quando não se comporta com lealdade no governo do povo, como exige o dever de um monarca, faz por merecer que seus súditos quebrem os compromissos assumidos para com ele. 59

Tomás de Aquino chegava até a propor a deposição do monarca, mas, antes, cabia aos

súditos rezar para que Deus abrandasse o coração do tirano. O regicídio ou tiranicídio não fazia

parte do universo de resistência de Aquino.

Essas proposições tomistas serão retomadas na época moderna pelas Universidades de

Paris e de Salamanca (Espanha), no início, sob a hegemonia dos dominicanos. Deve-se destacar,

nesse sentido, a figura do dominicano espanhol Francisco de Vitória (1485-1546), que estudou em

Paris e, depois, lecionou sobre Aquino e sua Suma Teológica no Colégio de Saint-Jacques. Em 1523

retornou à Espanha e passou a lecionar Teologia em Salamanca que, no início do século XVI, se

tornaria o maior centro de difusão das idéias católicas. Mas, já durante a segunda metade deste

57 Apud MOSER, Antônio e LEERS, Bernardino. Teologia moral: impasses e alternativas. Petrópolis: Vozes, 1987, p. 68. 58 CHEVALLIER, Jean-Jacques, op. cit., p. 213. 59 Ib. Ibid., p. 219-220.

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mesmo século, as doutrinas propostas pelos dominicanos começaram a ser adotadas pelos jesuítas,

que acabariam assumindo o primado da difusão de tais teorias, pois passaram a difundi-las com

energia ímpar, dando corpo, alma e vida ao neotomismo e às teorias corporativas de poder.

Dominando oito faculdades na Espanha e, em Portugal, tendo a hegemonia em Coimbra e

Évora, os jesuítas transformarão a Ibéria no grande baluarte da defesa da Igreja Católica tridentina,

no grande centro de elaboração e difusão desse tomismo revisionista. Dentre os diversos teólogos e

professores jesuítas há que se destacar: Antonio Possevino (1534-1611), o cardeal Roberto

Bellarmino (1542-1621), Afonso Salmerón (1515-1585), Pedro de Ribadeneyra (1527-1611),

Azpilcueta Navarro (1592-1586), Luís de Molina (1536-1600), Juan de Mariana (1536-1624),

Francisco Suárez (1548-1617), dentre outros.

Em que contexto estas teorias ganharam corpo e força na Ibéria? Nas lutas contra todas as

heresias protestantes (notadamente de Lutero e Calvino), contra o humanismo de Erasmo de

Rotterdam, contra as idéias de ragione di stato de Nicolau Maquiavel, contidas em O Príncipe, em

uma luta igualmente contra o absolutismo de “reis protestantes” e até combatendo soberanos

católicos que não aceitassem o primado do poder espiritual do papa e não encarassem a Igreja

Católica como um corpo único, um congregatio fidelium. Os jesuítas propunham, portanto, uma

política católica que deveria disponibilizar, aos reis, um mapa para eles poderem navegar

seguramente em meio a tantas heresias. 60

Desta forma, o pensamento filosófico-teológico medieval, conhecido como filosofia

escolástica, foi revisitado e reelaborado para um novo contexto, qual seja, extirpar a “pestífera

doutrina de Maquiavel”, barrar todas as heresias protestantes, principalmente a “perniciosa doutrina

luterana”, e se alinhar fortemente ao Concílio de Trento.

Francisco Suárez e os demais jesuítas, integrados ao espírito tridentino e ameaçados pelo

absolutismo político, procuravam conferir ao Papa um poder absoluto no plano religioso, visando

sincronizar a estrutura interna do poder da Igreja ao poder secular. Os jesuítas eram, assim,

fundamentalmente papistas.

O jesuíta italiano Roberto Bellarmino, considerado o “martelo dos hereges”, escreve a

obra De potestate summi pontificis in rebus temporalibus (1610) e afirma que o papa não possui

jurisdição sobre as coisas temporais, a não ser por via indireta. Somente as coisas espirituais lhe

competem legitimamente e por si mesmas, mas o papa não só pode como deve interferir no poder

temporal quando este se tornar um obstáculo à salvação das almas. Se o poder temporal se desviar

60 Ver CATÃO, Leandro, op. cit., p. 9; HANSEN, João Adolfo, op. cit., p. 140 e TORGAL, Luis Reis, op. cit., p. 65-66.

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do reto caminho em matéria espiritual, deve ser reconduzido tendo em vista o bem superior. O papa

podia chegar a depor um soberano por justa razão e liberar os súditos de qualquer compromisso de

fidelidade ao rei: os eclesiásticos não poderiam executar o rei tirano, mas delegar poder ao povo

para fazê-lo, caso necessário. A legitimidade da deposição se aproximava à legitimidade do

tiranicídio. 61

Essa idéia do regicídio está presente, principalmente em Suárez, um dos mais ilustres

teólogos da escolástica, na sua obra Defensio Fidei, quando afirmava que, se para um indivíduo o

“direito de preservar a própria vida é o maior de todos os direitos”, isso também valia para a

República. Assim, caso um “rei esteja de fato agredindo com o objetivo de injustamente destruir e

matar os cidadãos”, deve existir um direito análogo à auto-defesa, que “torna legal para a

comunidade resistir a seu príncipe, e até mesmo matá-lo, se não houver meio para se preservar”. 62

Assim, Francisco Suárez, jesuíta espanhol e doutor em Coimbra, impugnava o poder

absoluto, pois este pertencia ao povo que, por sua conveniência, para acabar com as crises e a

anarquia, o transferia aos monarcas, de quem poderia retirá-lo à sua vontade. E afirmava mais: que

todos os homens são iguais e livres por natureza, que a autoridade pertencia à comunidade e que

todos devem respeitar as leis. Esta lei natural possibilita a resistência a autoridades injustas. “Se a

lei é injusta, o povo não está obrigado a aceitá-la, porque uma lei injusta não é lei”. 63

Juan de Mariana, jesuíta igualmente nascido em Espanha, na sua obra De rege et regis

institutione (1599) afirmava que o poder legítimo seria a Monarquia, mas que sua existência se

ligava aos cidadãos, por vontade de Deus. O rei não está acima dos homens e nem das leis. Deve

estar submetido ao consentimento da comunidade e submisso ao papa. Assim, para Mariana, o

poder de um rei tirânico que vive “chafurdado nos vícios, na licença, na crueldade e arbitrariedades

não é legítimo”. 64

Em França e Inglaterra, as monarquias iriam lutar sem tréguas contra essas idéias

jesuíticas, visando sobrepujar a Igreja Católica, rechaçando as determinações de Trento e

aproximando-se dos protestantes, principalmente calvinistas (puritanos, na Inglaterra, e

Huguenotes, na França) e violentas e sangrentas perseguições religiosas seriam a tônica do período.

61 CHEVALLIER, Jean-Jacques, op. cit., p. 334 - 335. 62 Apud SKINNER, Q, op. cit., p. 453. 63 Id. Ibid., p. 306. 64 CHEVALLIER, Jean-Jacques, op. cit., p. 336.

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Alguns acontecimentos históricos marcariam o início das perseguições contra os jesuítas,

agudizariam a rota de colisão entre os monarcas absolutos e os “soldados de Cristo”, tidos como

defensores e mesmo executores de crimes de regicídio.

Um desses acontecimentos que merece destaque ocorreu no governo do rei inglês Jaime I

(1603-1625) e ficou conhecido como Conspiração da Pólvora. Jaime I impõe, em seu reinado, o

anglicanismo e passa a perseguir católicos e puritanos. Um grupo de católicos preparou um atentado

contra a vida do monarca no Parlamento, em 1605. O objetivo da conspiração era exterminar o rei, a

família real e todos os membros do Parlamento britânico durante a primeira sessão do ano novo. Os

nobres católicos e os jesuítas foram os principais implicados nesse atentado e, uma vez descobertos

e executados, o fato motivou a perseguição e a expulsão dos jesuítas da Inglaterra, acusando-os de

fazerem propaganda tiranicida. Jaime I rejeitava com horror, é claro, “a ímpia e herética doutrina

segundo a qual os príncipes excomungados ou privados de seus direitos pelo papa poderiam ser

depostos ou executados por seus súditos ou por outros”. 65

Na França, o protestante Henrique de Navarra, assume o trono francês como Henrique IV,

governando entre 1589 e 1610, em meio a violentas guerras religiosas, cujo ápice seria o massacre

de mais de três mil huguenotes na noite de 24 de agosto de 1572 – Noite de São Bartolomeu 66 - do

qual o próprio Henrique escapou por pouco, refugiando-se, junto com outros huguenotes, na

fortaleza de La Rochelle. Visando pacificar o país, ele mesmo se torna católico e, em 1598, assinou

o Edito de Nantes, que garantia a liberdade religiosa a católicos e protestantes. Contudo as tensões

religiosas prosseguiram e o rei acabou sendo assassinado nas ruas de Paris por um católico chamado

François Ravaillac, em 14 de maio de 1610.

Esses dois acontecimentos possibilitaram à condenação à fogueira das obras dos principais

teóricos jesuítas: em 8 de junho de 1610, o Parlamento de Paris condenava à fogueira o De Rege et

Regis institutione, de Juan de Mariana, que foi incinerado diante da Notre-Dame. A obra De

Potestate summi pontificis in rebus temporalibus, de Bellarmino, foi queimada publicamente em 26

de novembro do mesmo ano. Quatro anos mais tarde, em 26 de julho de 1614, a obra Defensio

Fidei, de Francisco Suárez, a mando de Jaime I, também é incinerada. 67 Aliás, esta obra de Suárez

de 1613 foi escrita como resposta aos libelos do rei Jaime I – As Apologias – escritos entre 1608 e

1609, visando justificar, a partir das escrituras, o absolutismo real e lançando a pergunta se era justo

65 Id. Ibid., p. 341. 66 A Noite de São Bartolomeu foi muito bem retratada no filme “A Rainha Margot” (Margarida de Valois, esposa de Henrique IV), do diretor Patrice Chéreau, com Isabele Adjani, uma co-produção alemã, francesa e italiana de 1994. 67 Sobre o incômodo que causavam aos reis absolutistas e o destino que as obras dos jesuítas tiveram, ver CHEVALLIER, Jean-Jacques, op. cit., p. 334-341 e BIDEGÁIN, Ana Maria, op. cit., p.107-108.

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e legítimo o regicídio. Suárez respondeu que uma pessoa privada não pode mesmo matar um tirano,

a não ser se tiver um “mandato público”, um mandato expresso, que é obtido com o parecer do papa

e da comunidade em relação ao governo que se torna degenerado.

Mesmo antes disso, em 6 de julho de 1610, ainda no calor das repercussões do

assassinato de Henrique IV e o escândalo que foi a publicação do livro de Juan de Mariana, o Geral

dos jesuítas Aquaviva, visando apaziguar os ânimos, lança um decreto onde:

(...) proibia a todo e qualquer membro da Sociedade de Jesus afirmar, em público ou em particular, em conferências ou em conselho e ainda menos em livros, que era permitido a quem quer que seja, e fosse qual fosse o pretexto da tirania, matar reis ou príncipes ou tramar seu assassínio. 68

Mas, vai ser em Portugal, durante o reinado de d. José I e de seu secretário dos Negócios

Estrangeiros e da Guerra (espécie de primeiro- ministro) o Marquês de Pombal (1750-1777), que as

relações entre a Coroa e os jesuítas se agudizariam ao extremo.

O Iluminismo lusitano intentado por Pombal, era uma ferramenta a serviço do Estado. Isso

implicaria na incorporação seletiva das idéias das luzes. Diferente de outros Estados Europeus, a

ilustração lusitana fundamentava a limitação das liberdades individuais em política, artes e religião,

estimulando a ampliação irrestrita do poder real. Reinava em Portugal uma razão subordinada e a

serviço do Estado. O grande impasse do reformismo ilustrado luso estava em buscar equilibrar a

consecução de reformas, segundo as idéias das luzes, com a manutenção do absolutismo, da ordem

estamental e do sistema colonial. Um cônego da época, Antônio Ribeiro dos Santos (1745-1818),

nos dá bem a dimensão desse reformismo ilustrado da era pombalina, ao afirmar que “...o ministro

tentou seguir uma política impossível, quis civilizar uma nação e, ao mesmo tempo, escravizá-la;

quis espalhar a luz das ciências filosóficas e, ao mesmo tempo, elevar o poder real até ao

despotismo”. 69

Pombal irá, ao mesmo tempo, combater ardentemente quem se opusesse ao fortalecimento

do poder do Estado e ao absolutismo. Repudiava, assim, tanto as teorias corporativas (que iam

contra o seu regalismo, absolutismo e postura providencialista), como as idéias mais radicais da

ilustração (como o anti-despotismo e o anti-colonialismo, por exemplo).

Eficiente, rica, influente e muito estruturada a Cia de Jesus incomodava Pombal em todos

os níveis, pois a Ordem Inaciana representava a negação do ideário político reformista ilustrado de 68 Apud CHEVALLIER, Jean-Jacques, op. cit., p. 431. 69 Apud BOXER, C. R. O império colonial português. Lisboa: Edições 70, 1969, p. 216.

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Pombal. Os inacianos eram um sério obstáculo aos desígnios pombalinos, da esfera econômica e

política à educacional, no Reino e na colônia.

A tentativa de neutralizar os jesuítas, que no entender do poderoso Pombal eram “...os

mais ferozes e detestáveis monstros”, começou por expulsá-los da Corte (1757), onde até então

tinham sido os confessores e diretores espirituais das famílias reais. Em seguida, foram proibidos de

prestar qualquer tipo de assistência religiosa em Portugal e suas posses (pregar e ouvir confissões).

Em maio de 1758, por meio de um alvará, retirou da Cia de Jesus qualquer autoridade sobre os

índios brasileiros. Era a morte simbólica da Sociedade de Jesus.

Mas Pombal queria o total extermínio da Cia de Jesus e precisava desfechar-lhe um golpe

fatal. A ocasião para esse intento veio quando da tentativa de se assassinar o rei D. José I. Em 3 de

setembro de 1758, o monarca lusitano recebeu um tiro de bacamarte que lhe atingiu o braço e o

peito. Os ferimentos o obrigaram a convalescer por vários meses, deixando o governo nas mãos da

rainha, D. Mariana Vitória. Pombal aproveitou-se do susto do soberano para convencê-lo da

existência de uma grande conspiração no reino, orquestrada, segundo o marquês, pelos jesuítas e

parcelas da nobreza. Prisões arbitrárias e julgamentos pífios, conduziram à morte onze nobres e a

prisão de cerca de mil aristocratas. As residências jesuíticas foram postas sob guarda, vigiando-os

noite e dia. Oito jesuítas foram presos como cúmplices da tentativa de regicídio. Dois jesuítas,

Jacinto de Oliveira e Timóteo da Costa, após torturas, chegaram a confessar a existência e a

participação da Cia de Jesus na conspiração e mais, que achavam “que esse ato não seria

pecaminoso, mas sim, uma legítima medida para assegurar o supremo interesse dos povos”. 70

Pombal, em carta de 10 de setembro de 1767, ainda temia os jesuítas pois “os batinas

pretas nada se pode, ou se deve omitir para desarmar as suas diabólicas maquinações, de sorte que

não tornem a renascer, ficando-lhe na nossa terra qualquer ocultas raízes” e que “...os reis ibéricos e

o monarca francês uniam-se em causa comum, a fim de obrigarem a Corte de Roma à extinção dos

jesuítas... porque sem isso, nem pode subsistir a Igreja de Deus, nem podem se conservar as

monarquias da terra." 71

Os jesuítas seriam expulsos de Portugal e do Brasil em 1759, da França em 1764, da

Espanha, Nápoles e Parma em 1767. Em 21 de julho de 1773, o papa Clemente XIV, suprime a

Companhia de Jesus com a Bula “Dominus ac redemptor”. Os monarcas da Espanha, França e

Portugal haviam sido consultados antecipadamente e a bula papal falava dos jesuítas em tom

insultante e os chamava de “perigosos jesuítas rebeldes”. 70 CATÃO, Leandro, op. cit., p. 32. 71 Apud CATÃO, Leandro, op.cit., p. 38.

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Os 22.589 jesuítas que trabalhavam em 669 universidades e colégios, em 61 noviciados,

340 residências religiosas, 171 seminários, 1.542 igrejas e 271 missões em todo mundo (só no

Brasil, em 1750, existiam 131 casas, sendo 17 colégios e 55 missões entre os índios) foram

proibidos de viver em comunidade e, na maioria dos casos de exercerem quaisquer atividades do

ministério sacerdotal. A Cia de Jesus teve de permanecer oculta durante 41 anos. Muitos foram

encarcerados e mortos, mas outros continuaram em atividade, principalmente na Polônia, Itália,

Prússia e Rússia. A restauração da Sociedade de Jesus só se daria em 7 de agosto de 1814. 72

Para Jean Lacousture “... a condenação à morte da Cia de Jesus, por quatro monarquias

católicas européias e mais o papado, foi um dos momentos mais desconcertantes do século das

luzes” 73. Kenneth Maxwell ainda afirma que:

(...) foi o conflito com Pombal que deu início ao processo que levaria ao fim dos jesuítas. Eles encontraram uma pessoa capaz de lhes fazer frente em um Ministro poderoso e implacável, que não tolerava dissidências, para quem a raison d’état era a política suprema e que não hesitou em agir quando desafiado. Que a disputa em Portugal tenha servido como catalisador para a expulsão dos jesuítas da Espanha e, mais tarde, da França, deveu-se muito, claro está, à receptividade às ações de Pombal pela opinião européia esclarecida, à complexidade da política da Igreja e à aquiescência diplomática dos monarcas católicos. Mas por si só a opinião européia não teria sido necessariamente suficiente para destruir uma Ordem religiosa tão poderosa como a dos jesuítas. Os monarcas católicos foram rápidos em seguir o exemplo de Portugal, é certo, mas não se sabe se algum deles teria agido dessa forma se Portugal não o fizesse primeiro. 74

O alvará real de 21 de julho de 1759, que decretou a prisão e a expulsão dos jesuítas do

Brasil encontrou resistências, principalmente nas áreas missionárias do sul do país, onde foram

necessárias forças militares de grandes proporções para concretizar as decisões de Pombal, pois os

jesuítas e os índios aldeados se recusavam a aceitar as decisões metropolitanas. Contudo, pela

violência, os homens de batina preta foram sendo expulsos. Em todos os portos do Brasil embarcou

um número impressionante de jesuítas: 115 do Maranhão, 119 em Pernambuco, 133 em Salvador da

Bahia, 107 no Rio de Janeiro. Foram levados para diversas prisões de Portugal, onde muitos deles

morreram, e outros foram deportados para Roma. 75

Mesmo diante do golpe brutal sobre a companhia, as prisões e mortes de jesuítas, as idéias

que esses religiosos transmitiram durante séculos haviam arraigado na consciência popular,

72 BIDEGÁIN, Ana Maria, op. cit., p. 275. 73 LACOUSTURE, Jean. Os jesuítas. Tomo I - Os conquistadores. Porto alegre: L&PM, 1994, p. 27. 74 MAXWELL, Kenneth. Marquês de Pombal, paradoxo do iluminismo. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1996, p. 94. 75 HOORNAERT, Eduardo, et al., 1983, op. cit., p. 311.

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notadamente na América Hispânica e na América Portuguesa, e baseados nela, inconsciente talvez,

as usassem para defender seus direitos. Os jesuítas formavam um exército de padres e religiosos que

muito influenciaram a mentalidade criolla e a elite brasileira e estes passaram a conspirar contra a

dominação ibérica nas Américas.

O sacerdote peruano Toríbio Rodríguez de Mendoza, nas lutas pelas independências

latino-americanas no século XIX, afirmava: “A Igreja deve ser dique de proteção para os cidadãos

contra os abusos políticos, sociais e econômicos. O verdadeiro papel da religião não consiste em

sustentar o poder, mas em salvaguardar os recursos sagrados de todos os indivíduos da sociedade”. 76

Nessas manifestações – revoltas anti-coloniais – conjugaram-se à influência das luzes e,

ainda, conforme o caso, das tradições político-culturais ibéricas e o exemplo das 13 colônias que se

libertaram do jugo inglês. Os colonos da América Espanhola e da América Portuguesa fizeram uma

leitura particular e seletiva de referenciais culturais, políticos, filosóficos e religiosos, relativamente

heterogêneos. As idéias dos autores jesuítas serão extremamente importantes na vida política nas

Américas, onde os jesuítas, com seus colégios, seminários e universidades (estas últimas,

especificamente na América espanhola), formavam a elite colonial.

No caso brasileiro e, mais especificamente nas Minas setecentistas, seria interessante

captar como os conjurados mineiros se apropriaram, ao mesmo tempo, ainda que em diferentes

medidas, das idéias do século das luzes e do exemplo da Independência dos Estados Unidos –

influências sobejamente marcantes e conhecidas – com as tradições culturais e políticas luso-

brasileiras, pouco reconhecidas como influências nesse processo. Para isso, contudo, torna-se

necessário explicitar como eram as condições econômicas, sociais e políticas específicas de Minas

Gerais ao final do século XVIII, dentro do quadro do quadro do Antigo Sistema Colonial e do

Reformismo Ilustrado.

76 Apud PIKE, F. O catolicismo na América Latina de 1848 aos nossos dias. Petrópolis: Vozes, 1976, p.121.

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CAPÍTULO 2 – MINAS GERAIS NO SÉCULO XVIII: OURO, OPRESSÃO

E SONHOS DE LIBERDADE

2.1 – Minas setecentistas: “o espaço do avesso”

“Súbito, brilha um chão de ouro: corre-se – é luz sobre um charco. De seu calmo esconderijo, O ouro vem dócil e ingênuo; Torna-se pó, folha, barra, Prestígio, poder, engenho... É tão claro! – e turva tudo: Honra, amor e pensamento. Por ódio, cobiça, inveja, Vai sendo o inferno traçado. Os reis querem seus tributos - mas não se encontram vassalos. Mil bateias vão rodando, Mil bateias sem cansaço” (Cecília Meireles, Romanceiro da Inconfidência)

A grande aventura marítima portuguesa da época moderna culminou com o controle de

grandes fontes de riquezas orientais e africanas – especiarias e artigos de luxo – e com a conquista e

posse do Brasil em 1500. Após as primeiras viagens, Portugal percebeu que a “terra brasilis” não

oferecia lucros imediatos, pois, de início, não se encontraram as desejadas minas de ouro. Por essa

razão, o interesse de Portugal em relação a sua nova colônia atlântica limitou-se a explorar o pau-

brasil e enviar algumas expedições destinadas a fazer o reconhecimento da terra e manter sua posse,

sempre ameaçada por outros povos europeus – franceses, ingleses e holandeses – que não aceitavam

a divisão de Tordesilhas.

O desejo pelas riquezas minerais fica bem claro já nas primeiras informações sobre a

futura América portuguesa. A leitura do relato da expedição de Cabral realizada pelo escrivão da

armada, Pero Vaz de Caminha, não deixa dúvidas: “Nela até agora não pudemos saber que haja

ouro, nem prata, nem coisa alguma de metal ou ferro; nem o vimos”. 77. Essa mesma impressão

também está contida na relação do piloto anônimo ao afirmar que “... nesta terra não vimos ferro e

nem qualquer outro metal, e a lenha cortam com pedra”. 78 Por 200 anos, mais do que obsessão, o

77 CASTRO, Sílvio. A carta de Pero Vaz de Caminha. Porto Alegre: Editora L&PM, 1985, p. 97. 78 Id. Ibid., p. 103.

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ouro – ou a ausência dele – fora uma maldição para a Coroa lusitana e para os homens que para cá

vieram (reinóis) ou aqui nascidos (mazombos).

Diante da impossibilidade concreta de se encontrar riquezas minerais no litoral, com o

comércio com o oriente em declínio – devido aos elevados custos, além da concorrência de

franceses, ingleses e espanhóis – e na iminência de perder sua colônia diante dos insistentes ataques

franceses, o governo português passou a procurar alternativas para aumentar seus lucros comerciais

e a colonização da América começou a ser vista como uma possibilidade de realizar bons negócios.

A decisão de colonizar o Brasil – ocupar, defender e organizar uma economia rentável –

foi empreendida a partir do açúcar, produto de grande interesse para o comércio europeu, nos

moldes da plantation. Em linhas gerais, a economia colonial caracterizou-se pela mão-de-obra

escrava (dos índios e fundamentalmente dos negros africanos), pelo latifúndio, pela cultura de

produtos tropicais. A agroindústria do açúcar foi a primeira atividade estratégica e sua implantação

articulou a exploração da América e da África em proveito dos mercados externos europeus.O

sistema de plantation do nordeste açucareiro moldaria o Brasil, nos séculos seguintes, com suas

grandes propriedades rurais monocultoras, baseadas no trabalho compulsório e em escala

agroindustrial, sob o comando dos grandes senhores de engenho e com produção destinada ao

mercado externo.

Na análise de alguns historiadores 79 esse seria o sentido da colonização do Brasil, ou seja,

um sistema colonial baseado, sobretudo, no monopólio comercial, que consistia no direito da Coroa

portuguesa de realizar um comércio exclusivo com sua colônia. Os comerciantes da metrópole

compravam os produtos coloniais pelos preços mais baixos do mercado e vendiam para os colonos

do Brasil artigos metropolitanos pelos preços mais altos, tudo com vistas a uma acumulação

primitiva de capital nas metrópoles. As áreas coloniais seriam, portanto, apenas uma projeção dos

interesses metropolitanos, uma retaguarda econômica e alavanca para o enriquecimento externo

europeu:

No conjunto, a colonização da América portuguesa toma um aspecto de vasta empresa

comercial, destinada a explorar as riquezas de um território virgem em proveito do comércio

europeu. É este o verdadeiro sentido da colonização aqui nos trópicos, de que o Brasil é uma das

resultantes; e ele explicará os elementos fundamentais, tanto no plano econômico como no social,

da formação e evolução histórica:

79 Notadamente PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. São Paulo: Brasiliense, 1979 e NOVAIS, Fernando A, 1989, op. cit.

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Se vamos à essência da nossa formação, veremos que na realidade nos constituímos para fornecer açúcar, tabaco, alguns outros gêneros, mais tarde ouro e diamantes, depois, algodão e, em seguida, café, para o comércio europeu. Nada mais do que isto. É com tal objetivo, objetivo exterior, voltado para fora do país e sem atenção a considerações que não fossem o interesse daquele comércio, que se organizarão a sociedade e a economia brasileiras. Tudo se disporá naquele sentido: a estrutura, bem como as atividades do País. Virá o branco europeu para especular, realizar um negócio; inverterá seus cabedais e recrutará a mão-de-obra de que precisa: indígenas ou negros importados. Com tais elementos, articulados numa organização puramente produtora, industrial, se constituirá a colônia brasileira.80

O sistema de plantation foi uma realidade agrícola no Brasil colonial, mas não a única. Em

trabalhos historiográficos mais recentes 81, busca-se superar a prevalência da lógica externa, visando

um equilíbrio entre as decisões da metrópole e as respostas da colônia, sua lógica peculiar, sua

dinâmica interna, que não foi exclusivamente determinada pela política colonizadora lusitana.

Nesse sentido, é um exagero limitar a economia da época colonial apenas ao setor

exportador. Ao lado da grande propriedade, existiam, em escalas variadas, outras formas de

organização da produção baseadas em pequenas propriedades, com trabalho compulsório ou livre,

voltada para o mercado interno ou simples subsistência local. Existiam, portanto, lavradores

independentes que produziam milho, trigo, mandioca, feijão, arroz etc. Criadores de gado também

faziam parte da cena colonial, produzindo charque e artefatos de couro. Comerciantes – reinóis ou

mesmo colonos – foram atuantes neste período, quer no comércio interno, quer como agenciadores

de produtos vindos do reino, como vinagre, azeite, vinho, bacalhau, azeitonas, pimenta-do-reino,

tecidos, ferramentas, sal etc. Principalmente no século XVIII, uma variedade de pessoas ocupava-se

de diferentes trabalhos, na mineração, em pequenas roças, alfaiates, doceiras, açougueiros,

aguadeiros, ferreiros, mascates, mestres-escolas, médicos, pedreiros, escultores, pintores, músicos,

donas de casas, prostitutas, cozinheiras, estalajadeiros, cirurgiões, barbeiros, boticários, padres e

muitos outros.

Com o adensamento populacional e o desbravamento de outras áreas, a economia do

Brasil, certamente, cada vez menos podia ser reduzida a plantation, escravos, açúcar, tabaco, ouro e

diamantes.

80 PRADO JÚNIOR, Caio, op. cit., p. 31-32. 81 Ver principalmente CARDOSO, Ciro Flamarion. Escravo ou camponês? O protocampesinato negro nas Américas. São Paulo: Brasiliense, 1987. GORENDER, J. O escravismo colonial. 5. ed. São Paulo: Ática, 1988. FRAGOSO, João, et al. A economia colonial brasileira. São Paulo: Atual, 1998. FARIA, Sheila de Castro. A colônia brasileira: economia e diversidade. São Paulo: Moderna, 1997. FLORENTINO, Manolo. Em costas negras: uma história do tráfico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro. São Paulo: Cia. das Letras, 1997. ANASTASIA, Carla Maria Junho. Vassalos rebeldes: violência coletiva nas Minas na primeira metade do século XVIII. Belo Horizonte: Editora C/Arte, 1998.

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O povoamento do Brasil concentrou-se, por muito tempo, apenas na zona litorânea. Como

escreveu nosso primeiro historiador, Frei Vicente do Salvador, a maioria dos colonizadores

“grandes conquistadores de terras, não se aproveitam delas, mas contentam-se de as andar

arranhando ao longo do mar como caranguejos“ 82. Lentamente, entretanto, desenvolveu-se a

penetração no interior do território brasileiro. Bandeirantes ou sertanistas, exploradores,

missionários jesuítas e criadores de gado, tinham feito avançar a interiorização da colônia.

Certamente mais desbravaram que povoaram e, em muitas áreas, até despovoaram com o

extermínio das populações indígenas.

Os principais personagens desse avanço da colonização portuguesa foram, sem dúvida, os

habitantes de São Vicente. Esse primeiro núcleo colonial, na orla litorânea do atual Estado de São

Paulo, foi fundado na expedição de Martim Afonso de Souza, em 1532. Mais tarde, alguns

habitantes da vila fixaram-se no interior, fundando, junto com os jesuítas, São Paulo de Piratininga.

Contudo, esses núcleos, por razões diversas, não obtiveram o mesmo grau de desenvolvimento

econômico das zonas açucareiras nordestinas. Por isso mesmo, os habitantes de São Vicente e São

Paulo buscaram outras formas de sobrevivência, cultivando gêneros alimentícios como mandioca,

trigo, milho, algodão, legumes, produzindo charque e outros gêneros necessários à sobrevivência.

Mas os vicentinos-paulistanos se notabilizariam principalmente caçando e escravizando os

indígenas para si próprios ou para vendê-los a outras regiões. Nesse processo, destruíram centenas e

centenas de aldeias, matando e escravizando milhares de gentios e também atacando diversas

missões jesuíticas. Era a fase do Bandeirantismo ou Sertanismo de apresamento.

Um funcionário do governo português na colônia escreveu, em 1674, uma carta à Coroa

lusitana sobre as gentes de São Paulo e nela podemos perceber como a América Portuguesa se

expandia através desses desbravadores dos sertões, muitos deles cristãos-novos.83

Os moradores daquela vila [São Paulo] vivem conforme as leis do Reino e muito obedientes às ordens de S.A. As famílias estão unidas por casamento uma às outras, dedicando-se ao descobrimento do sertão e à lavoura dos frutos da terra (...). têm fundado vilas e muitas povoações, sem ajuda do braço de S.A.

82 SALVADOR, Frei Vicente do. História do Brasil, 1500-1627. Rev. e anot. Capistrano de Abreu e Rodolfo Garcia. 4ª ed. São Paulo: Melhoramentos, 1954, p. 42. 83 Segundo Neusa Fernandes, no reinado de D. Manuel I, ao invés de expulsar os judeus, o monarca preferiu “convertê-los” através de decreto de 30 de maio de 1497. Muitos desses “conversos” vieram para América Portuguesa fugindo ainda de perseguições e se tornaram bandeirantes ou entradistas, como Antônio Rodrigues Arzão, Manuel Borba Gato, Duarte Nunes, Bartolomeu Bueno da Silva, Antônio Raposo Tavares, dentre outros. FERNANDES, Neusa, op. cit., p. 88.

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Esses moradores são aqueles que por várias vezes vieram à Bahia combater o gentio Tapuia, que destruía o recôncavo. Estes mesmos desbarataram todo o gentio que existia na parte do Sul para poderem os portugueses viverem seguramente em suas fazendas e casas.(...) Ultimamente passou um cabo com 200 brancos, 200 mestiços e 400 arcos desta vila, cortando imensidade de caminhos e vindo parar nas cabeceiras do Rio dos Tocantins. Aí, tem-se notícia que descobriram minerais por terem formado casas e aberto estradas para a vila de S. Paulo... 84

É claro que a imensa maioria dos bandeirantes lutava pela própria sobrevivência e não se

importavam muito em terem lealdade a Sua Majestade – fazendo da força suas próprias leis – e

muito menos, possuírem famílias aos moldes da católica. Os colonos faziam do concubinato uma

regra geral e capturavam “índias para o exercício de suas torpezas” e “índios para o granjeio de seus

interesses”, segundo relato do bispo de Pernambuco na época. Com o tempo, o apresamento

indígena foi declinando, quer por conta do genocídio dos “negros da terra”, pela atuação dos

jesuítas, quer afirmação do elemento africano como mão-de-obra fundamental na colônia. E os

bandeirantes puseram-se, então, com mais sistematicidade, a procurar o “Eldorado”. Sem dúvida,

eram os homens talhados para partirem para os sertões em busca dos metais preciosos.

O governo português, mergulhado em crise econômica – fim da União Ibérica, perda de

colônias, início da decadência açucareira nordestina devido à concorrência antilhana, um

atrelamento progressivo à Inglaterra – incentivou essa mudança de objetivos.

Assim, era fundamental que o Rei colocasse esses vassalos a seu serviço, a fim de que eles

se utilizassem de seu conhecimento do interior do Brasil e de sua técnica de penetração no sertão

para descobrir riquezas. Para atingir este intento, o Monarca era aconselhado a usar determinadas

estratégias: para os paulistas mais valiam honrarias do que riquezas. O Rei era aconselhado a

oferecer, em troca das peregrinações, títulos e mercês. Para conseguir-lhes a adesão era importante

estimular-lhes a vaidade. Com esse intuito, o Rei Afonso VI escreveu cartas de próprio punho aos

bandeirantes mais famosos. 85

As cartas ou missivas reais, no alvorecer do século XVII para os “homens bons” da Vila

de São Paulo, mostram bem a crise financeira profunda que abalava o reino lusitano, a necessidade

de novas fontes de riquezas e o desejo de enquadrar, nos moldes da colonização, aquelas gentes de

São Paulo, tornando-os leais vassalos. Em 27 de setembro de 1664, por exemplo, o rei Afonso VI

conclama Fernão Dias Pais a penetrar os sertões da Colônia em busca de ouro:

84 COLETÂNEA de documentos históricos. Carta de Manoel Barreto de Sampaio, de 1674. São Paulo: Secretaria de Estado da Educação, 1985, p. 19-20. 85 VOLPATO, Luiza. Entradas e bandeiras. Rio de Janeiro: Global Editora, 1991, p. 91.

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Eu el-rei envio muito saudar. Bem sei que não é necessário persuadir-vos a que concorrais da vossa parte com o que for necessário para o descobrimento das minas, considerando ser natural deste estado e que, como tal, mostra particular desejo dos aumentos dele, confiando pela experiência que tenho do bem que até agora me serviu que assim fará em tudo o que lhe encarregar.

Porque a notícia que me tem chegado do vosso zelo, e de como vos houvestes em muitas ocasiões do meu serviço me faz certo que vos disporeis a me fazer esta.

Encomendo-lhe para que façais tida a assistência para que consiga este bom fim, que há tanto se deseja e que eu quisera ver acontecido no meu tempo e posses de governo destes meus reinos, entendendo que hei de ter muita particular lembrança de tudo o que obrardes nesta matéria, para vos fazer mercê e as honras que espero me saibais merecer...86

Não podemos desconsiderar que tais cartas devem ter exercido um efeito muito grande nos

sertanistas, tanto assim que Fernão Dias partiu de São Paulo para os sertões em busca da miragem

de Sabarabuçu, reprisando em terras brasileiras o sonho espanhol do Eldorado. Típico paulista de

seu tempo, Fernão Dias atuava como sertanista de apresamento, atacando as missões jesuíticas de

Tape (RS) e Itatim (MS) e aldeias próximas a São Paulo. Segundo Eduardo Bueno 87, de uma só vez

trouxe de regiões do Paraná, cinco mil Guayaná cativos. Era um grande e rico fazendeiro e se

dispôs, após o chamamento do rei, a largar tudo – família, fazendas, gado, ouro e prata – em busca

de mais ouro e as “recônditas pedras verdes”, as esmeraldas. Tinha 66 anos!

A bandeira de Fernão Dias partiu de São Paulo no dia 21 de julho de 1674 e passou sete

anos explorando o sertão mineiro à cata de esmeraldas que não estavam lá:

(...) A expedição se defrontou com todas as turbulências: fome, peste, traição, assassinato, delações, miséria e filicídio. (...) Quando um motim estourou e Fernão Dias soube que ele era liderado por José Dias Pais, seu filho bastardo, não hesitou em mandar enforcar o jovem mameluco, para espanto e terror do arraial. 88

Fernão Dias encontrou apenas turmalinas, de pouco valor comercial, e morreu nos sertões

do rio das Velhas, aos 73 anos, devastado pela malária, pensando ainda que as pedras verdes fossem

esmeraldas.

Os caminhos percorridos pela bandeira de Fernão Dias foram, posteriormente, seguidos

por outros sertanistas, que, no final do século XVII, acabaram encontrando as maiores jazidas de

ouro já descobertas no mundo. Os achados foram simultâneos nas Gerais, entre 1690 e 1695. A

descoberta do ouro não é fato que possa ser atribuído a este ou àquele homem. “Essa descoberta foi

86 Citado por CALDEIRA, Jorge. História do Brasil. São Paulo: Cia das Letras, 1997, p. 72. 87 BUENO, Eduardo. Brasil: uma história. 2. ed. São Paulo: Ática, 2003, p. 64-65. 88 Ib. Ibid., p. 64-66.

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o resultado do espaço continuado de gerações que se sucederam. Foi a soma final de fatores sociais,

geográficos, econômicos e políticos que se vinham fazendo sentir durante séculos.” 89 Contudo,

podemos destacar alguns nomes que chefiaram expedições e participaram das descobertas de

jazidas de ouro no Brasil, como Antônio Rodrigo Arzão (ouro em Minas, por volta de 1693),

Pascoal Moreira Cabral (em Mato Grosso, por volta de 1719) e Bartolomeu Bueno da Silva (em

Goiás, no ano de 1725).

Na época do governo de D. João V, já com todo o fausto do ouro, chegou a notícia do

achamento de diamantes, em 1729, no Serro Frio, num lugar conhecido como Arraial do Tijuco

( atual Diamantina). Portugal respirava aliviado.

(...) Rochedos sobranceiros, altas montanhas, terrenos arenosos e estéreis, irrigados por grande número de riachos, sítios os mais bucólicos, uma vegetação tão curiosa quanto variada, eis o que se nos apresenta no Distrito dos Diamantes; e é nesses lugares selvagens que a natureza se contenta em esconder a preciosa pedra que constitui para Portugal a fonte de tantas riquezas (...) Bernardo Fonseca Lobo foi o primeiro que descobriu diamantes no Serro Frio, (...) Ignora-se o ano em que se deu essa grande descoberta; todavia sabe-se que o governador D. Lourenço de Almeida, tendo remetido à corte algumas pedras transparentes, dizia, em carta de 27 de julho de 1729, que as considerava como diamantes. 90

Sem sombra de dúvida, a saga e a façanha dos bandeirantes foi notável. Nas três primeiras

décadas dos seiscentos, mataram e escravizaram cerca de 500 mil índios, entraram em choques

violentos com os jesuítas e a própria Coroa e, nas últimas décadas desde século, encontraram ouro e

pedras preciosas. Em meados do século seguinte, um padre daria a dimensão deste “inexplicável

trabalho dos paulistas” pois:

(...) desprezando as inclemências do tempo, desatendendo ao trabalho das marchas, vencendo os descômodos da vida (...) continuaram a cortar bosques, a abrir caminhos, a penetrar sertões, a combater com o gentio bárbaro, fazendo a muitos e algumas mulheres prisioneiros, conseguiram sítios fecundíssimos em minas de ouro no Ribeirão do Carmo, Ouro Preto, Rio das Velhas e todas Minas Gerais, Serro Frio, Rio das Mortes, Guaiases, Cuiabá, Mato Grosso, e outras de finíssimos diamantes, e de esmeraldas, e já hoje pelo Brasil com minas de prata desfruta a Real coroa destes reinos, e com que se tem

89 ZEMELLA, Mafalda. O abastecimento da capitania das Minas Gerais no século XVIII. São Paulo: Hucitec/EDUSP, 1990, p. 157. 90 SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem pelo Distrito dos Diamantes e litoral do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 1974, p. 48.

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enriquecido uma inumerável multidão de portugueses, que concorrem a aproveitar-se das produções deste inexplicável trabalho dos paulistas...[Grifos Nossos] 91

O ouro inicialmente era encontrado em depósitos de cascalho, areia e argila que se

formavam junto às margens, no leito ou na foz dos rios: ouro aluvional ou faisqueiros. Podiam ser

encontrados também nas barrancas ou encostas das montanhas (grupiara) ou no subsolo, no ventre

das montanhas. É importante frisar que as técnicas eram muito rudimentares. Bateias, picaretas e

negros. Nada muito mais que isto. Nossa metrópole nunca investiu em melhoramentos técnicos, não

permitindo, inclusive, que se processasse em Minas a metalurgia do ferro para o fabrico de

ferramentas para os mineradores. O que mais interessava a Coroa era a arrecadação de tributos, que

foram muitos e excessivos 92 e que dariam margens a descontentamentos, revoltas e motins, como

veremos.

É praticamente impossível quantificar com precisão os números da produção do ouro de

Minas Gerais, Mato Grosso e Goiás e da produção de diamantes no Serro Frio. Buscando uma

margem mais segura, procuramos cotejar informações e dados apresentados por diversos autores 93

e chegamos a cifra espantosa de 874 toneladas de ouro extraído das Minas Gerais entre 1700 a

1780; em Goiás as minas teriam rendido 160 toneladas e, em Mato Grosso, 60 toneladas, para o

mesmo período. Só nas Gerais, descobriu-se “a maior massa aurífera já revelada ao homem, desde a

queda de Roma até o século VIII”. 94 Entre 1740-1810, o Brasil produziu cerca de três milhões de

quilates nas minas diamantíferas!

91 SIQUEIRA, Padre Ângelo de. “Botica preciosa e tesouro precioso da lapa” (1754) In: INÁCIO, Inês da Conceição e LUCA, Tânia Regina de. Documentos do Brasil colonial. São Paulo: Ática, 1993, p. 121. 92 Os principais tributos estabelecidos pela política fiscal foram : a Capitação (1703 - imposto lançado sobre o número de escravos) ; Bateia (1715 – tributo por bateias cobrado de cada minerador, equivalente a 10 oitavas de ouro anuais ou 36,86 gr. ; não funcionou na prática, gerando motins, sendo logo abandonado) ; Fintas (1713- sistema de cotas anuais de arrecadação do quinto; inicialmente seu valor foi fixado em 30 arrobas, ou 450 Kg de ouro); Capitação e Censo de indústrias (1735- tributo lançado sobre todos os mineradores em atividade, livres ou escravos, bem como sobre oficinas, armazéns, lojas, hospedarias, estábulos, etc.) ; Novo valor do quinto (1750- fixado em 100 arrobas, ou seja, aproximadamente 1 500 Kg anuais para toda a capitania de Minas Gerais); Derrama (1765- cobrança oficial e forçada dos quintos em atraso); Entradas e Passagens (1711 – circulação de mercadorias e trânsito por alguns rios da capitania); subsídio literário (1771, para custear professores régios na capitania se taxava 6% da cachaça, gado e outros gêneros). Maiores detalhes ver: TEIXEIRA, Francisco M.P. Brasil: história e sociedade. São Paulo: Ática, 2002, p. 95. 93 Dentre outros, ver: PINTO, Virgílio Noya. O ouro brasileiro e o comércio anglo-português. São Paulo: Nacional, 1979. VILAR, Pierre. Ouro e moeda na História: 1450-1920. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980. BUENO, Eduardo, op. cit.; SERRÃO, Joel e MARQUES, A.H. de Oliveira, (Dir.) Nova história da expansão portuguesa - O Império luso-brasileiro, v. 7, Lisboa: Estampa, v. 7. 1991; BOXER, C.R. A idade de ouro do Brasil. São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1963. HOLANDA, Sérgio Buarque de. A mineração: antecedentes luso-brasileiros e metais e pedras preciosas. In: HOLANDA, S. B. de. (Dir.) História Geral da civilização brasileira: a época colonial, Tomo I, 2º v. 5 . ed. São Paulo: Difel, 1982. 94 ZEMELLA, Mafalda P, op. cit., p. 34.

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A notícia da descoberta do ouro atraiu para esses locais uma avalanche de forasteiros

procedentes de Portugal e de várias regiões do Brasil. A sede insaciável do ouro era mesmo sem

cura. O jesuíta Antonil retratou bem essa ocupação desordenada, essa gama de aventureiros atraídos

pelo brilho do ouro, em sua obra clássica, Cultura e Opulência no Brasil, asseverava:

A sede insaciável do ouro estimulou a tantos a deixarem suas terras e a meterem-se por caminhos tão ásperos como são os das minas, que dificultosamente se poderá dar conta do número de pessoas que atualmente lá estão. Contudo, os que assistiram nelas nestes últimos anos por largo tempo, e as correm todas, dizem que mais de trinta mil almas se ocupam, umas de catar, e outras em mandar catar nos ribeiros do ouro, e outras em negociar, vendendo e comprando o que há mister não só para a vida, mas para o regalo, mais que nos pontos do mar. (...) Cada ano, vêm nas frotas quantidade de portugueses e de estrangeiros, para passarem às minas. Das cidades, vilas, recôncavos e sertões do Brasil, vão brancos, pardos e pretos, e muitos índios, de que os paulistas se servem. A mistura é de toda a condição de pessoas: homens e mulheres, moços e velhos, pobres e ricos, nobres e plebeus, seculares e clérigos, e religiosos de diversos institutos, muito dos quais não têm no Brasil convento nem casa. 95

A corrida do ouro foi mesmo imensa. Essas “trinta mil almas” de que fala Antonil foram

aumentando cada vez mais. No Brasil, a população aumentou dez vezes: de 300 mil habitantes, em

1700, passou a três milhões em 1800. Nas Minas Gerais, em 1704 – início da exploração aurífera –

existiam 40.000 pessoas. No ano seguinte, 50.000 e em 1738, as áreas do ouro das Gerais

continham 300.000 almas. Só do Reino, nas seis primeiras décadas do século XVIII, chegaram 600

mil pessoas. 96

Com o ouro e diamantes, inaugurou-se no Brasil, um tipo de ocupação basicamente urbano

e cobrindo áreas do interior, muito diferente das áreas açucareiras do litoral nordestino, estas

marcadas, principalmente, pelo espaço rural ou poucas vilas e cidades costeiras. A fundação de

espaços urbanos entre 1711 e 1718 se deveu, em grande medida, a tentativa da Coroa lusitana de

ordenar as áreas do ouro, enquadrar os povos e, assim, evitar conflitos e conseguir cobrar tributos.

Esse trabalho foi iniciado no governo de Antônio de Albuquerque, depois com o Governador Brás

Baltazar da Silva e se concretizou durante o governo do Conde de Assumar. Vilas foram sendo

criadas: em 1711 Vila do Ribeirão de Nossa Senhora do Carmo [Mariana], Vila Rica de

Albuquerque, depois Vila Rica de Nossa Senhora do Pilar [Ouro Preto], Vila Real de Nossa

Senhora da Conceição do Sabará; em 1713, São João Del Rei, em 1714 Vila Nova da Rainha 95 ANTONIL, André João, op. cit., p. 167. 96 Dados obtidos a partir de: SIMONSEN, R.C. História econômica do Brasil (1500-1820). 8. ed. São Paulo: Nacional, 1978. FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. São Paulo: Nacional, 1972. LENHARO, Alcir. As tropas da moderação. São Paulo: Símbolo, 1978 e FERNANDES, Neusa, op. cit.

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[Caeté] e Vila do Príncipe [Serro]; em 1715 Nossa Senhora da Piedade do Pitangui e em 1718 São

José Del Rei [atual Tiradentes].97

Nessas povoações mineiras convivia uma gama variada de pessoas, ocupando-se dos mais

diversos afazeres:

(...) a formação social das Minas apresentava uma camada pequena de homens ricos e poderosos; uma camada média de artistas, artesãos, pequenos comerciantes e pequenos mineradores que viviam com dificuldade, mas que tinham o necessário para sobrevier; uma extensa camada de homens livres pobres, quase sempre desocupados ou entregues a atividades intermitentes; uma camada numerosa, a maior de todas, de escravos que, ante sua mísera condição de vida, recorriam com freqüência à fuga, ao roubo, à violência.98

Assim, a Minas setecentistas era, em termos de sociedade, extremamente complexa: uma

minoria – grandes mineradores, latifundiários, altos funcionários da burocracia lusitana nos

trópicos – convivendo com a imensa maioria dos escravos superexplorados. Uma camada média

diferenciada que foi se formando ligada, direta ou indiretamente, à mineração. Somente parte dos

moradores das Gerais se ocupava da mineração. Outras atividades produtivas, não menos rendosas,

criadoras de um mercado consumidor interno vigoroso, engendrou comerciantes, pequenos

proprietários de terras, pecuaristas, artesãos, profissionais liberais, clérigos etc, que se

diferenciavam, tanto da grande massa de cativos, mestiços e brancos pobres, os desclassificados, 99

quanto do pequeno grupo de pessoas muito ricas e poderosas, os potentados ou régulos mineiros.

Minas Gerais foi também estratégica para os cristão-novos que se dedicavam a variadas

atividades: “compravam, vendiam, financiavam, emprestavam a juros, faziam hipotecas,

negociavam gêneros, utensílios, escravos, gado, fazendas, sítios, ouro, diamantes, topázios e outras

pedras preciosas (...). Eram ‘donos do comércio’, mas também foram rancheiros, lavradores,

ambulantes, ourives, comboieiros de negros, fazendeiros, lojistas autônomos...” 100, alvos prediletos

da Inquisição.

97 Dados obtidos em TORRES, João Camilo de Oliveira. História de Minas Gerais. Belo Horizonte: Lemi; Brasília: INL, v. I, 1980. 98 SOUZA, Laura de Mello e. Opulência e miséria das Minas Gerais. 6. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 73-74. 99 Os desclassificados, expressão consagrada por Laura de Mello e Souza, eram as pessoas de ocupação ocasional, cujo ganho incerto os obrigava a viver esfarrapados, nas fímbrias do sistema, esfomeadas, sem teto, enfim, em condições precárias. Esse grupo social se compunha de mestiços, negros forros, índios e brancos pobres, mulheres de “malviver” e outros. Entre eles eram freqüentes a desagregação familiar ou famílias formadas ‘a margem da ortodoxia cristã, a promiscuidade sexual, incestos, bastardia, bigamia, prostituição, brigas, assassinatos, roubos, falsificações, minerar sem autorização, formar quadrilhas de salteadores de estradas e outras violências que as autoridades procuravam coibir pela violência. 100 FERNANDES, Neusa, op. cit., p. 95

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Uma parte da historiografia tradicional sempre afirmou que a sociedade nas Minas Gerais

foi mais democrática e que possibilitava a brancos sem capital, enriquecerem, a negros adquirirem

cartas de alforria e a mestiços ascenderem socialmente. Nada mais falso. Laura de Mello e Souza

em diversas obras 101 chamou a atenção para o fato de que nas Minas setecentistas a riqueza era

distribuída para um número limitado de pessoas, poucas fizeram fortuna, principalmente diante do

fisco rigorosíssimo, de uma tributação voraz.

(...) a riqueza ilusória do ouro trazia atrelada a miséria, a estrutura econômica premiando a poucos e castigando a maioria, as drásticas leis metropolitanas servindo para engordar o fisco, vigiar o contrabando e punir com violência as menores infrações. Logo ficou patente que este sistema de distribuição [datas auríferas com base no número de escravos] privilegiava os indivíduos de maiores posses, ficando os homens livres pobres à mercê de atividades esporádicas, a maior parte das vezes possuindo lavras de extensão insignificante, ou não possuindo lavra própria...102

A imensa maioria socializava a pobreza. O fausto, na verdade era falso. Eduardo Frieiro

compartilha desse mesmo pensamento:

Uma das patranhas da nossa história (...) é a pretendida riqueza e até mesmo opulência das Minas Gerais na época da abundância do ouro. Em boa e pura verdade nunca houve a tão propalada riqueza, a não ser na fantasia (...). A realidade foi bem diversa. Nem riqueza, nem grandezas. Apenas o atraso econômico e a pobreza como herança dum desvairamento fugaz... 103

O mito da riqueza fácil não se realizou. Nas Minas do século XVIII, o processo de

transformação da estrutura social em que surgiram camadas intermediárias, as quais não eram nem

senhores nem escravos, e para as quais não havia lugar algum no sistema produtivo da Colônia, foi

penoso. Seu crescimento acabou gerando várias formas de desequilíbrio: gente que ocupava todo o

vácuo social da colônia, exercendo toda a sorte de trabalhos de forma flutuante, trabalhos estes que

tanto podiam ser de policiamento quanto de participação em bandos de assaltantes. Laura de Mello

e Souza ainda faz uma apreciação igualmente significativa sobre o contexto social das Gerais: 101 Entre outras obras de grande valor desta historiadora destacamos: SOUZA, Laura de Melo e. Desclassificados do ouro. 2. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1986a; Id. O diabo e a terra de Santa cruz. São Paulo: Cia das Letras, 1986b. Id. Inferno atlântico: demonologia e colonização, séculos XVI-XVIII. São Paulo: Cia das Letras, 1993. Id. As devassas eclesiásticas da Arquidiocese de Mariana: fonte primária para a história das mentalidades. São Paulo: Anais do Museu Paulista, 1984. Id. Norma e conflito: aspectos da história de Minas no século XVIII. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999. 102 Id. 1994, p. 32 e 60 [adaptado]. 103 FRIEIRO, Eduardo. O diabo na livraria do cônego – Como era Gonzaga ? – E outros temas mineiros. Belo Horizonte: Itatiaia, 1957, p. 164.

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A análise da formação social das Minas surge sob novo ângulo: uma economia de baixos níveis de renda distribuídos de maneira menos desigual do que na região açucareira, originando, pelo seu baixo poder de concentração, uma estrutura social mais aberta. Daí o número de pequenos empreendedores e o mercado constituído por avultado contingente de homens livres, homens esses, entretanto, de baixo poder aquisitivo e pequena dimensão econômica. A constituição “democrática” da formação social mineira poderia se reduzir numa expressão: um maior número de pessoas dividiam a pobreza. 104

Em suma, a verdade é que a minoria de ricos tinha maiores chances de obterem mais

sucesso. Possuindo capitais, equipamentos, muitos escravos, se enfronhando nos poderes

municipais e da capitania, a elite branca escravocrata abocanhava mais da metade das minas e os

melhores cargos político-tributários e administrativos.

Contudo, mesmo que o grosso da riqueza se acumulasse nas mãos de poucos e brancos,

nas Minas havia, sim, pelo menos nas duas primeiras décadas do século do ouro, a possibilidade de

um homem sem posses e com muita sorte encontrar ouro aluvional. Também o crescimento do

mercado interno possibilitou a integração de alguns grupos menos “legítimos”, como pardos e

negros forros, ligados principalmente, ao artesanato e ao pequeno comércio. Havia, portanto, uma

maior chance de alguns escravos conseguirem alforria. Os dados indicam isso: em 1739 o número

de forros era de 1,2% do total de escravos; em 1786 eles passaram a ser de 35% e atingiram a cifra

de 41% em 1808. 105 Quanto a esse processo de alforrias, é comum a afirmação de que o escravo

conseguia acumular riquezas – fato que se aplicava para aquele reduzido número de escravos que

trabalhavam por jornada – ou por recompensas de seus senhores e, mais freqüentemente, pela

ocultação de riquezas. Isso era uma verdade. Mas fundamentalmente, o que explica o crescente

número de libertos na Capitania de Minas Gerais é a própria crise da mineração. O auge foi entre

1735-1760 e depois disso o declínio e a conseqüente diminuição dos rendimentos dos senhores

escravocratas, muitos preferindo alforriar seus escravos para não ter de sustentá-los. Minas Gerais,

devido às suas peculiaridades e dinâmicas próprias, acabou por reinventar outros padrões de

convívios, outras dimensões do cotidiano, permitindo, inclusive, a libertação de negros, mantendo-

se, contudo, profundamente escravista.

Assim, não estamos afirmando que nas Minas Gerais existia uma grande mobilidade social

e nem que fosse uma sociedade democrática, como já o frisamos (as melhorias na condição social

se davam mais individualmente do que em termos coletivos) e, sim, concordando com Marco

104 SOUZA, Laura de Mello e, 1994, op. cit., p. 47. 105 Dados obtidos a partir de: GOULART, Maurício. A escravidão africana no Brasil: das origens à extinção do tráfico. 3. ed. São Paulo: Martins, 1975, p. 103 e CANO, Wilson. Economia do ouro em Minas Gerais (século XVIII). São Paulo: Contexto, 1977, p. 102.

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Antônio Silveira, que esta capitania, pelas peculiaridades da economia e sociedade, possibilitou a

integração de outros grupos e deu à vida cotidiana uma coloração mais variada.106

O memorialista José Vieira Couto, no século XVIII, afirmava que o mundo colonial, e em

especial as Minas com seus finos metais e “gentes intratáveis” era “o espaço do avesso” 107. E era

mesmo. O Estado metropolitano, desde o início, buscava normatizar a vida tumultuada da capitania,

evitar revoltas e motins, que foram muitos, como a dos Emboadas e de Filipe dos Santos, o que

culminou com a separação de Minas do Rio de Janeiro (1709) e de São Paulo (1720) e poder cobrar

tributos; os brancos, sendo minoria, temendo constantes sublevações dos negros; negros, não raro,

se amotinando, matando senhores e feitores e fugindo para os matos; um número cada vez maior de

mestiços, tidos sempre como “perturbadores da ordem”; uma gama de desclassificados, homens

livres pobres, sem posição definida na escala social, que o sistema criava e deixava sem razão de ser

“sujeitos a ocupações incertas e intermitentes, esses indivíduos viveram na miséria e na

promiscuidade, procurando, muitas vezes, fugir dessa situação através do crime, da infração e da

violência.” 108

Com a decadência do ouro, a partir da metade do século XVIII, a miserabilidade

aumentou, assim como a violência e o endividamento geral. Os conflitos, antes abertos motins e

revoltas, foram dando lugar a manifestações de violência cotidiana, trazendo ainda mais

insegurança nas Gerais e mais preocupações à elite branca minoritária e aos burocratas lusitanos

que tentavam impor ordem em meio ao caos. Conter os negros, alijar, prender ou servir-se dos

mestiços e desclassificados para trabalhos mais duros – defesa de fronteiras, ataques a quilombos ou

índios arredios, construções de prisões etc –, manter a elite branca e os “outros povos das Minas“

como “fiéis vassalos” para “conservar os povos em sossego”. Tudo isso não era tarefa fácil. O que

“fazer com os germes que infectavam o corpo social”? Como combater a desordem e a

desagregação? Como colocar ordem em meio à desordem? Como conciliar um mundo de brancos e

negros? Como encarar e enquadrar os mestiços? Como impor a moralidade e religiosidade cristãs

em meio ao cotidiano permissivo e sincrético dos trópicos, marcado pela pluralidade social? Como

agir se as determinações dos poderes eclesiásticos e do Estado eram superadas pelas práticas e

106 SILVEIRA, Marco Antonio. O universo do indistinto: estado e sociedade nas Minas setecentistas (1735-1808). São Paulo: Hucitec. 1997, p. 94. 107 COUTO, José Vieira. Memória sobre as minas da Capitania de Minas Gerais.[1801]. Revista do Arquivo Público Mineiro (RAPM). In: SIQUEIRA, Sônia A. A inquisição. São Paulo: FTD, 1998, citado por SILVEIRA, Marco Antônio, op. cit., p. 76. 108 SOUZA, Laura de Mello e, 1986a, op. cit., p. 60.

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vivências do cotidiano coletivo? Como viver em um mundo que parecia oscilar entre Deus e o

Diabo ?

A sociedade que as minas engendrou – com sua maior fluidez, inconstâncias, certa

mobilidade, rearranjos cotidianos, miserabilidade, mestiçagem, religiosidade popular, rigorismo

fiscalista etc – por sua própria dinâmica, colocava em xeque o lugar de cada um:

Negras bem-sucedidas com suas vendas e prostituição desfilavam jóias e trajes típicos das senhoras “honestas”; pardos portavam batinas e títulos militares; comerciantes apresentavam-se como doutores; homens descompunham senhoras com palavras grosseiras; governadores e ministros exageravam nas roupas e nas ordens. Toda essa situação passava a idéia de que a decadência era um fato; os bons tempos, tempos de ordem e adequação, de justa medida, haviam ficado para trás. (...) [havia] um desejo, cada vez mais forte em setores da sociedade mineira, de colocar cada coisa em seu devido lugar. 109

Claro está que um tempo de “ordem e adequação” nas Gerais praticamente nunca existiu.

A administração nas Gerais, símbolo possível dessa ordem e adequação, sempre oscilou entre a

sujeição extrema ao Estado – pela força das armas – e a autonomia e sublevações. Para Raimundo

Faoro 110, com o passar do tempo, o Estado metropolitano foi conseguindo sucesso na tarefa

colonizadora/normatizadora nas Minas Gerais. Já Caio Prado Júnior 111 afirmou, com muita

propriedade, que o sistema administrativo nas Minas estava mais assentado na confusão, na

irracionalidade e eivado de corrupções. Para as Minas setecentistas as análises de Prado Júnior

parecem mais adequadas.

O traço mais marcante dessa vida social dinâmica foi a desconfiança generalizada, pré-

conceitos, violência e medo, com o Estado e Igreja buscando introjetar o poder e as normas nas

lonjuras dos sertões. Para isso incentivaram delações, procuraram vigiar e, principalmente, cooptar

a classe dominante local, controlar as Câmaras Municipais, os mestiços e os negros, visando sempre

enquadrar “povos tão insubmissos” e “dificultosos de sossegar”. As “gentes” das Minas eram

formadas pela elite. Os “povos” eram os escravos, os libertos, os mestiços, o “Zé-povinho” branco,

mas pobre! No imaginário de governadores, de ministros e da elite branca as Minas eram

cadavéricas, sua condição geo-climática ensejava desregramentos e motins.

109 SILVEIRA, Marco Antônio, op. cit., p. 179-181. 110 FAORO, Raimundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. Porto Alegre: Editora Globo, 1975. 111 PRADO JÚNIOR, 1979, op. cit.

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A região das Minas Gerais era extensa e rústica; seu clima, relevo e vegetação implicavam um cenário selvagem que convidada aos desregramentos. Os habitantes que nela viviam eram – como não poderiam deixar de ser nesse meio – animalizados, deformados e incompletos. Monstruosos, movidos pelo coração, afetados, ambiciosos e imediatistas, representavam o desconsolo e o desafio dos homens eruditos e de poder... 112

Muito cedo, a metrópole tentou impor sua autoridade nas Gerais e sempre encontrou uma

resistência cotidiana que, gradativamente, de forma quase invisível, procurava corroer essa

autoridade, mesmo diante da iminência da repressão. Isso fica visível no Regimento das terras

Mineiras, de 27 de abril de 1680, antes mesmo do início da grande exploração das Gerais. O Estado

afirmava que “... terá pena de vida, e traidor ao Príncipe Nosso Senhor qualquer pessoa de qualquer

qualidade, ou condição que seja que levar ouro em pó fora desta vila sem quintar...” 113 e, em 1775,

procurava dar conta dos vadios ou desclassificados na área, que também podiam incorrer em “pena

máxima para os infratores da região (...) todas as pessoas que não tiverem fazendas suas, ou alheia,

que não tiver ofício em que trabalhe, ou amo a quem sirva, tendo prazo de vinte dias para tomar

amo, ou ofício”. 114.

Procurava-se também evitar o crescimento de mestiços e impedir-lhes o acesso a cargos

político-administrativos, a quaisquer benefícios ou mercês. As melhores oportunidades, portanto,

ficariam reservadas apenas aos “puros de sangue”, pois “... ,dessa forma, ficarão aqueles ofícios

dignamente ocupados e poderá conseguir-se que os homens daquele país procurem deixar

descendentes não defeituosos, impuros, vendo que de outro modo não podem alcançar, nem para

si, nem para os seus, os empregos de maior distinção e honra das terras em que vivem...” [Grifos

Nossos] 115

Desde o século XVI, os negros, mestiços, cristãos-novos e “negros da terra” foram

impedidos de ocupar cargos de confiança e honra. Com uma ideologia fundada em argumentos

teológicos e sociais, afirmava-se que tais grupos pertenciam a uma raça impura, defeituosa, infecta

e para ocupar os cargos de “regedor da Justiça da Suplicação, escrivão de juízo, coletor de

impostos, juiz-de-fora, vereador, juiz das confiscações e outros, o candidato devia comprovar que

era limpo de sangue (...) que não pertencia à raça infecta. As autoridades [buscariam] informações

sobre as origens, a vida e os costumes (de genere, vita et moribus) do candidato”. 116

112 SILVEIRA, Marco Antônio, op. cit., p. 70. 113 Apud SOUZA, Laura de Mello e, 1986a, op. cit., p. 133. 114 SOUZA, Laura de Mello e, 1986a, op. cit., p. 124. 115 Apud BOXER, C.R, op. cit., p. 187. 116 CARNEIRO, Maria Luíza Tucci. O racismo na história do Brasil. São Paulo: Ática, 1994, p. 12.

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Dom Lourenço de Almeida, em carta ao Rei datada de 27 de janeiro de 1726, antevia o

que seria uma realidade nas Minas: o número de pretos e mestiços superaria, em muito, o número

de brancos. Em 1786 pardos e pretos somariam cerca de 80 % da população das Gerais: “... uma das

maiores ruínas que está ameaçando estas Minas, é a má qualidade de gente de que elas se vão

enchendo, porque como todos esses povos vivem licensiosamente sem a obrigação de casados, vai

havendo nelas tão grande quantidade de mulatos, que dentro em breves anos, será sem comparação

muito maior o seu número que o dos brancos ...” 117

Não raro esses desclassificados eram aprisionados e enviados a trabalhos pesados, como o

fez o Conde de Assumar, para a construção da Cadeia e Câmara de Ouro Preto e D. Rodrigo

Menezes, quando da construção do presídio de Cuité, pois “... para nele trabalharem mandei por

toda a capitania prender os vadios, que se encontrassem e remetê-los para aquele sítio, fazendo

deste modo com pouca despesa aquela importante obra, e purgando também a sociedade civil dos

perturbadores dela.” [Grifos Nossos] 118

Mas o temor maior era, sem dúvida, um levante de negros. Isso era uma preocupação de

Governadores, como Assumar, nas Gerais, que os encaravam como uma “... canalha tão indômita

[que] lhes não podem tirar os pensamentos e desejos naturais de liberdade” 119 ; do Governador da

Bahia, Fernando José de Portugal que, em carta de 1799, afirmava “o que sempre se receou nas

colônias é a escravatura, em razão de sua condição e porque os escravos negros são a maior parte da

sua população” 120 ; de Reis, como D. João V, que temia o que um movimento de negros “podia

ocasionar à conservação dessas minas, as quais absolutamente se perderiam se eles a dominassem [e

devia-se, portanto] evitar a todo custo que os negros viessem a fazer nessa capitania o que fizeram

nos Palmares de Pernambuco” 121 e também de Rainhas, como D. Maria I, quando afirmava que os

“negros rebeldes eram o inimigo mais pernicioso.” 122

Além dos desclassificados e negros, a elite também se revoltava. Tanto assim que D. Brás

Baltasar da Silveira, Governador das Gerais, já em 1715, escrevia ao Rei de Portugal pedindo sua

saída das “Minas rebeldes”, segundo ele, ingovernáveis: “... Me precisa pedir a Vossa Majestade me

faça a honra de me mandar sucessor, por não ser razão que, tendo eu toda a minha vida servido a

Vossa Majestade e em toda a parte que estive executando as suas ordens, o não posso fazer neste

117 Apud FIGUEIREDO, Luciano Raposo de Almeida, op.cit., p. 129. 118 Apud SOUZA, Laura de Mello e. Desclassificados... p. 78. 119 Idem, p. 109. 120 Apud REIXEIRA, Francisco M.P, op. cit., p. 134. 121 Apud ANASTASIA, Carla Maria Junho, 1998, p. 126. 122 Id. Ibid., p. 125.

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Governo pela liberdade que vivem estes moradores ... o princípio da rebelião se respira como

oxigênio no ambiente das Minas...” [Grifos Nossos]. 123

O governador Pedro Miguel de Almeida Portugal e Vasconcelos, o famoso Conde de

Assumar, já no discurso de sua posse como Governador da Capitania de São Paulo e Minas do

Ouro, em 4 de setembro de 1717, procurava deixar claro que “... a glória antiga dos descobrimentos

com mais força se renove, e deva El-Rei nosso Senhor aos de São Paulo adquirirem-lhes maiores

tesouros, para que enriquecidos e opulentos os seus vassalos neste continente, possam com menos

avareza e mais generosidade aumentar-se os seus erários com mais quintos tão devidos pelas

humanas leis quanto pelas divinas.” 124

Foi, contudo, D. Rodrigo José Menezes que, em 1780 deu bem essa dimensão entre o

conflito e a busca de uma normatização nas Gerais, além de uma aula de como governar tal área

insubmissa: “... sempre me persuadi de que uma bem calculada e dirigida prudência seria suficiente

em quem governa, para ganhar os corações dos homens e obrigá-los com uma força voluntária a

cumprirem suas obrigações, sem que percebessem mãos superiores e estranhas que desse os

movimentos às suas ações”. 125

Mas nem sempre esta sutileza surtia o efeito desejado. Que o diga outro Governador,

Martinho de Mendonça, que acordou atemorizado no meio da noite do dia 30 de outubro de 1737,

com vozes gritando nas ruas principais da Vila do Carmo: “Viva El-Rei, viva o povo, e morra

Martinho de Mendonça !“ 126

Por isso Assumar escreveu em suas cartas um trecho lapidar:

O espírito de rebelião é quase uma segunda natureza das gentes de Minas. A própria paisagem parece incitar ao motim (...) Posto que das Minas e seus moradores, bastava dizer (...) que é habitada de gente intratável, sem domicílio, e ainda que está em contínuo movimento, é menos inconstante que os seus costumes: os dias nunca amanhecem serenos; o ar é um nublado perpétuo; tudo é frio naquele país, menos o vício, que está ardendo sempre. Eu, contudo, reparando com mais atenção na antiga e continuada sucessão de perturbações que nelas vêem, acrescentarei que a terra parece que evapora tumultos; a água exala motins; o ouro toca desaforos; destilam liberdades os ares; vomitam insolências as nuvens; influem desordens os astros, o clima é tumba da paz e

123 Id. Ibid., p. 13. 124 Apud SOUZA, Laura de Mello e, 1999, op. cit., p. 39. 125 Apud SOUZA, Laura de Mello e, 1986a, op. cit., p. 98. 126 Id., 1999, p. 89.

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berço da rebelião; a natureza anda inquieta consigo, e amotinada lá por dentro, é como no inferno. [Grifos Nossos] 127

Mas, nas “Minas rebeldes”, a resposta não demorou muito e veio em forma de sátira, nas

famosas Cartas Chilenas, do inconfidente Tomás Antônio Gonzaga: “(...) Se o povo é rebelde, o

fidalgo enche os bolsos; se as gentes são intratáveis, o governo é ausente na solução dos problemas

sociais; se o ouro toca desaforos, o governo enriquece às custas desses desaforos; se a terra evapora

tumultos, os tumultuosos são escravizados na construção do prédio de Câmara e Cadeia.” 128

Minas Gerais era mesmo um “espaço do avesso”, ou como diria Caio Boschi, “uma

sociedade marcada longamente pela distância entre a vontade de seus dirigentes e a realidade

cotidiana de seus integrantes”. 129

2.2 – Liberdade ainda que Tardia

“ Chega sempre o dia em que o colonizado levanta a cabeça e faz oscilar o equilíbrio sempre instável da colonização. (Albert Memmi, Retrato do Colonizado precedido pelo retrato do colonizador)

E quem não é capaz para as cousas, não se metta nellas, e mais vale morrer com honra, que viver com deshonra” (Padre Toledo - Inconfidente, 1789)

Se a derrama for lançada há levante, com certeza Corre-se por essas ruas? Corta-se alguma cabeça?”

(Cecília Meireles, Romanceiro da Inconfidência)

Entre os séculos XVII e XVIII a América portuguesa foi palco de diversos conflitos. No

início, envolviam colonizadores e índios; portugueses e estrangeiros; escravos em luta pela

liberdade, autoridades e desclassificados. As disputas entre colonos e jesuítas pela escravização ou 127 Apud VASCONCELOS, S. Mineiridade. Ensaios de caracterização. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, s/d, p. 24. 128 Apud GONÇALVES, Joaci H. F. Os símbolos da morte e a morte dos símbolos. Tese de doutoramento. São Paulo: FFLCH, USP, 1996, p. 37-38. 129 BOSCHI, Caio. As visitas diocesanas e a inquisição na colônia. Revista Brasileira de História, nº 14, Marco Zero, mar/ago de 1987, p. 223.

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não dos índios marcaram também a face colonial. Mais tarde, como vimos, tornaram-se cada vez

mais acirrados os conflitos entre a sociedade colonial e os agentes do Estado português. O

desdobramento desse processo seria a luta dos colonos brasileiros, ainda dentro das regras do pacto

colonial ou até, em alguns casos, de caráter anticolonial, onde alguns vassalos da Rainha “animados

do espírito de pérfida ambição, formaram um infame plano para se subtraírem da sujeição e

obediência devida à mesma Senhora [d. Maria I], pretendendo desmembrar e separar do Estado

aquela Capitania, para formarem uma república independente, por meio de uma formal rebelião...” 130

Na segunda metade do século XVIII, a produção do ouro começou a declinar em ritmo

acentuado, afetando gravemente a vida da população mineira – cerca de 400 mil pessoas. As dívidas

cresceram, a pobreza alastrou-se e o desalento tomou conta de grandes áreas nas Minas Gerais. Tem

início uma reordenação econômica, com a migração das áreas mineradoras da Comarca de Vila

Rica para a Comarca do Rio das Mortes, onde as atividades principais passariam a ser a agricultura

e a criação de animais.

Enquanto o ouro diminuía, nossa metrópole – que cada vez mais estava dominada pela

Inglaterra – aumentava sua pressão fiscal (cobrança de impostos) sobre os mineradores, acusando-

os de sonegação e contrabando. Os descaminhos do ouro e diamantes sempre foram uma realidade

nas Minas Gerais. A fraude e o contrabando que existiram no sistema colonial foram especialmente

acentuados em Minas Gerais. Em parte, devido às características da economia, cujos produtos

básicos, ouro e diamantes, eram facilmente contrabandeados e, em parte, devido à excessiva carga

tributária que canalizava a maior parte dos lucros da produção, já consumidos, também pelo alto

custo de vida nas Minas. A impossibilidade de deter a fraude e o contrabando sempre foi bem clara

para as autoridades. O ministro português de d. Maria I, Melo e Castro, com uma visão deformada

da realidade da economia das Minas, via somente na fraude, no contrabando e na “vileza” da

população a causa da queda das rendas da coroa. Mas o ouro estava mesmo declinando.

Martinho de Melo e Castro sabia muito bem o que o ouro brasileiro representava para os

cofres reais e tinha a dimensão de que “sem o Brasil, Portugal é uma insignificante potência.” 131.

Assim, em instruções ao Governador Visconde de Barbacena, afirmava, em 1788, que “é

indisputável que o mal mais pernicioso, e o que tem crescido a um excesso como nunca se chegou

em Minas Gerais é o extravio e contrabando de ouro; e não é menos constante que, enquanto se não

130 ADIM, v. 7, p. 199. 131 Apud FURTADO, Joaci Pereira. Inconfidência Mineira: um espetáculo no escuro (1788-1792). São Paulo: Moderna, p. 11.

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fizer aplicar o remédio conveniente à raiz do mesmo mal, ele há de continuar a fazer os mesmos

progressos que até agora tem feito...” 132

Portugal não podia ou não queria enxergar que, a par do contrabando e outros muitos

desvios, o ouro estava realmente se esgotando. Parecia que o brilho desse metal continuava a ser

uma miragem de riqueza fácil e rápida, imediata e sem problemas, permitindo retomar o mito

quinhentista do Novo Mundo como aquele paraíso edênico que resolveria as crises e misérias da

Europa desde a fase de desagregação do sistema feudal. 133

Em 1750, o mínimo dos quintos a ser pago anualmente pela capitania foi fixado em 100

arrobas (1500 quilos). A partir dessa época, os impostos deveriam ser cobrados de vila em vila

pelos funcionários da Junta da Fazenda, com o uso da força das tropas milicianas. Não atingindo

esse total, seria exigido um tributo especial que toda a população deveria pagar: a “derrama”.

Em 1788, Barbacena, seguindo orientações de Lisboa, anunciou para breve uma grande

“derrama”, na qual seriam cobrados todos os quintos atrasados, somando então 596 arrobas de ouro,

quase 8 toneladas em atraso! A derrama não foi causa principal da Conjuração Mineira de 1788-89,

como veremos, mas, com certeza, não podemos desprezá-la. Já na época sabia-se que ela era “o

mais forte elemento catalisador da oposição capaz de superar o temor da repressão.” 134

É interessante notar que, de uma maneira geral, os vassalos não contestavam o direito real

de cobrar tributos, e, sim, as formas de cobrança e suas constantes reformulações. Buscavam

sempre uma adequação entre suas vidas cotidianas, suas reais condições materiais de existência, e

as ingerências metropolitanas. A metrópole também sempre oscilou entre o diálogo e o conflito, às

vezes, tendo a sensibilidade em não deixar os povos das Minas “reduzidos à última miséria.”

Durante todo o século XVIII, veremos que existe um histórico, não desprezível, de sedições e

motins, com maior ou menor repercussão, nos quais mineiros muito ricos, mas também a população

pobre, procurou impor limites a qualquer nova linha política de tributação. Exemplos não faltam:

Os levantes de Vila do Carmo, em 1713; os de Sabará, Vila Nova da Rainha, Vila Rica e novamente

Vila do Carmo, todos ocorridos em 1715; motins de Catas Altas, entre 1717-18, do Pitangui (1717-

20), contra a cobrança em oitavas de ouro por escravos com arrecadação de 25 arrobas anuais; Vila

Rica, de Filipe dos Santos, 1720, contra as Casas de Fundição e o excesso de impostos sobre

alimentos e instrumentos na mineração; Sedição de São Francisco (1736) contra a capitação, foram

alguns exemplos de confrontos contra as autoridades metropolitanas.

132 Apud RESENDE, Maria Efigênia Lage de. Inconfidência Mineira. São Paulo: Global Editora, 2001, p. 19. 133 LOPEZ, Luiz Roberto, op. cit., p. 11. 134 ADIM, v. 5, p. 329.

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Para ilustrar, em Vila Nova da Rainha, em agosto de 1742, os mineiros se revoltaram

contra a forma de cobrança dos impostos, mas afirmavam que “... por todo direito divino e humano,

reconhecemos que se devem tributos a V. Majestade, o qual consiste na contribuição dos povos em

reconhecimento do Senhorio do Seu Monarca de quem depende toda sua conservação...” 135. Um

pouco antes, em um motim de 1715, os mineiros “não discutiam a justiça do pagamento do tributo

com o qual voluntariamente se dispunham a arcar, mas que nada pagariam caso a forma de

arrecadação fosse alterada”. 136

Para os representantes da Coroa, não era tarefa fácil submeter os “povos das Minas” e

fazer valer as normas e fiscos metropolitanos. D. Brás Baltasar da Silveira, Governador das Gerais,

em carta ao Rei datada de 28 de março de 1715, afirmava ter “mágoa de não poder dar a execução

das ordens de [Sua] Majestade sobre o pagamento dos quintos ser por bateias...” 137. Outro

Governador, D. Lourenço de Almeida, também notificava o Rei, em 31 de outubro de 1722, que os

“povos todos têm concebido grande horror a estas casas [de Fundição], porque lhe servem do maior

prejuízo” 138

A historiadora Carla Anastasia sugere, com muita propriedade, que as diversas revoltas e

motins nas Minas Setecentistas assentavam-se, não raro, em uma idéia de “economia moral”, típica

do Antigo Regime, que consistia no reconhecimento de que, aos moradores das Minas e demais

capitanias do Brasil, se estendiam certos direitos costumeiros existentes em Lisboa e outras partes

do Império. Isso demonstrava a capacidade e necessidade de negociação da Coroa com os

mazombos – a fim de evitar conflitos de grandes proporções – como a ciência dos mineiros sobre

seus “direitos” e “deveres” de vassalos e quando “abusos” estavam sendo cometidos. 139

Esses motins e revoltas quase sempre visavam restaurar uma ordem anterior, alterada por

novos tributos, formas de cobrança ou desmandos dos burocratas lusitanos em terras tropicais.

Nunca é demais afirmar que, em primeiro lugar, vinha a metrópole e, depois, na medida que havia

consonância de interesses, contemplava-se as elites locais, os chamados “homens bons”.

Essa acomodação entre os atores ou personagens do cenário colonial – elite e altos

funcionários da burocracia lusitana – não se dava sem conflitos. Ocorriam, logicamente, colapsos,

mas, de uma maneira geral, sempre se buscava restaurar o equilíbrio tradicional, rompido, vez ou 135 Apud SOUZA, Laura de Mello e, 1986a, op. cit., p. 132. 136 ANASTASIA, Carla Maria Junho, 1998, op. cit., p. 33. 137 ANASTASIA, Carla Maria Junho, 1998, op. cit., p. 40. 138 Id. Ibid., p. 47. 139Quem primeiro formulou a idéia de uma “Economia Moral” foi o historiador inglês Edward Thompson. Ver: THOMPSON, E. Economia moral revisitada. In: Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular. São Paulo: Cia das Letras, 1998.

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outra, pelo aumento lesivo dos impostos, pelas mudanças na regra jogo tributário, redistribuição de

lotes auríferos ou por abusos de poder, mas sempre dentro das regras do jogo ou pacto colonial.

Desta forma, o quinto era considerado um “direito Real”, um direito legítimo e, quanto a

isso, praticamente não havia contestação. A palavra mais correta para essa correlação de forças seria

restaurar o equilíbrio tradicional. Mais do que um projeto de colonização absolutamente mercantil,

predatório e eficiente, houve um processo de colonização possível, no qual os atores – Coroa, seus

agentes na colônia, os vassalos da elite e o “povo” – se interagiram, numa dinâmica própria, com

variações ao longo do tempo, devido às contingências, marcadas por negociações e conflitos.140

De um lado, os representantes da Coroa, sempre cientes de que deveriam demonstrar poder

“para que uns povos tão distantes de seu soberano, não se deixem cegar de idéias de república

absoluta e independente, como várias vezes intentaram este costume tão bem fundado” 141 e, de

outro, sempre, um “grupo de poderosos que só discordava da estrutura de poder quando se via

afastado de seus privilégios e onerado pela taxação, com a qual a situação financeira de vários deles

não podia arcar.” 142

Assim, durante os dois primeiros séculos da colonização (séculos XVI e XVII), os

conflitos que surgiram entre os colonos e a Metrópole portuguesa foram “resolvidos” dentro das

regras do jogo e jugo colonial, na perspectiva mesmo do Antigo Regime, pois havia, na maioria das

vezes, interesses comuns entre a elite colonial e a política econômica metropolitana.

Entretanto, com o passar do tempo, o funcionamento desse sistema acabou gerando

contradições inevitáveis entre a América Portuguesa e Metrópole. Paradoxalmente, as bases dessa

contradição estariam no próprio processo de espoliação colonial, pois não era possível explorar a

Colônia sem contar com o apoio de “fiéis vassalos”, sem desenvolvê-la, estimular o povoamento e

de fazer com que a colônia crescesse produtivamente. Mas “o simples crescimento extensivo já

complica o esquema; a ampliação das tarefas administrativas vai promovendo o aparecimento de

novas camadas sociais, dando lugar a núcleos urbanos etc. Assim, pouco a pouco vão se revelando

oposições entre Colônia e Metrópole e quanto mais o sistema funciona, mais o fosso se aprofunda.” 143

140 ANASTASIA, Carla Maria Junho, 1998, op. cit., p. 138. 141 ANASTASIA, Carla Maria Junho. A idéia de república na inconfidência mineira. Anuário do Museu da Inconfidência. IX (1993), p. 121-129. 142 SOUZA, Laura de Mello e, 1986a, op. cit., p. 138. 143 NOVAIS, Fernando A. As dimensões da independência. In: MOTA, Carlos Guilherme. 1822- dimensões. São Paulo: Perspectiva, 1972, p. 23.

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Assim a metrópole, ao mesmo tempo em que incentivava o desenvolvimento da Colônia,

também tomava uma série de medidas para travar esse desenvolvimento. Isso fica claro em medidas

como a proibição do ofício de ourives na região das Minas Gerais (1751), na Bahia, Pernambuco e

Rio de Janeiro (1766), visando controlar o extravio de ouro. Em 1785, proíbe todas as manufaturas

têxteis, excetuando aquelas para fazer sacos para produtos de exportação e panos grosseiros de

algodão para a escravaria. Isso sobrecarregou ainda mais as gentes das Gerais, aumentando o

quadro de crise econômica na região no século XVIII. Até 1795, estava proibida a instalação de

indústria de ferro, obrigando os colonos a importar, a preços elevados, as ferramentas tão

necessárias à mineração e outros ofícios.

Desta forma, tanta exploração, somada a crise dos produtos de exportação – baixos preços

do açúcar, declínio da produção aurífera – levou ao enfraquecimento do Pacto Colonial. Os

proprietários de terras e de escravos, até então “fiéis aliados” da metrópole, passaram a reclamar

dos impostos. “As forças sociais desenvolvidas no Brasil já não podiam aceitar sem protestos as

proibições quanto à fabricação de tecidos e objetos de metal. A elite da sociedade colonial não

podia admitir que a atividade impressora fosse impedida. Mudanças se anunciavam”. [Grifos

Nossos] 144

Para vários historiadores 145 havia já algum tempo que um grupo de intelectuais e membros

da elite mineira –magistrados, músicos, militares, políticos, poetas, padres, mineradores,

latifundiários, dentre outros – reuniam-se secretamente para discutir a necessidade de libertar o país

do jugo de Portugal. Eram os inconfidentes ou conjurados. Esse grupo, naquele momento, no

interior de Minas Gerais do século XVIII, conseguiu sentir, apreender, captar e formular uma

consciência crítica em Minas, ou ainda mais, formular um projeto chamado Brasil:

Não interessa se foram bem ou malsucedidos (...) os inconfidentes são os inventores do Brasil, os formuladores da nação Brasil. Ou seja, são excepcionais por terem fabricado o Brasil (...) Se não foram capazes de se organizar para tomar o poder e estabelecer a nova ordem, foram capazes de formulá-la, de antecipá-la, de torná-la veemente e concreta a

144 ALENCAR, Francisco, et al. História da sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Editora Ao Livro Técnico, 1996, p. 83-84. 145 Segundo João Pinto Furtado em tese de doutorado, quatro historiadores se tornaram referências no estudo sobre a Inconfidência Mineira e tendem, a par de algumas diferenças de análises, a aceitarem a idéia da formação de um projeto nacional, do nascimento da pátria Brasil entre os conjurados. Os quatro autores de referência seriam: SOUZA E SILVA, Joaquim Norberto. História da Conjuração Mineira. (1. ed. 1848), Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1948. SANTOS, Lúcio José dos. A Inconfidência Mineira: papel de Tiradentes na Inconfidência Mineira. (1. ed. 1927) Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1972. MAXWELL, Kenneth, op. cit., e finalmente JARDIM, Márcio. Inconfidência Mineira: uma síntese factual. (1ª Ed. 1988) Rio de Janeiro: Bibliex, 1989. Ver FURTADO, João Pinto. Inconfidência Mineira: crítica histórica e diálogo com a historiografia. 2000. Tese (Doutorado) São Paulo: FFLCH-USP, 2000.

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ponto de perceberem a necessidade de pegar em armas e fazer uma revolução. [Grifos Nossos]146

Os inconfidentes mineiros seriam, no dizer de Oswaldo Caldeira, seguindo um raciocínio

cristalizado pela historiografia brasileira desde o século XIX, os “inventores do Brasil”, os

“formuladores da nação Brasil”, “fabricantes do Brasil” e “revolucionários”. Será?

O livro de João Pinto Furtado 147 traz uma outra visão muito interessante, pois que

demolidora da maioria dos mitos e memórias criadas a cerca do movimento mineiro de 1788-1789.

Para ele, amparado em vasta bibliografia e revisitando documentos como os Autos de Devassa da

Inconfidência Mineira, a conjuração foi uma expressão de uma série de ambigüidades e

contradições próprias do período setecentista nas Minas Gerais e na América portuguesa, como um

todo. Os protagonistas do evento devem ser analisados em um contexto de heterogeneidade social e

econômica da qual são expressões diretas o conteúdo político e o sentido do movimento, inclusive

as razões de seu fracasso, que podem ser melhor apreendidas se analisadas as dissensões e divisões

internas que expressavam as diferentes visões de mundo, interesses e inserções dos agentes na

trama. Os inconfidentes das Gerais eram, antes de tudo, homens inscritos em seu tempo e, portanto,

devem ser vistos à luz de sua temporalidade. Nesse sentido:

(...) a sedição abortada entre os anos de 1788 e 1789 se constituía em um movimento, ao contrário do que comumente se afirmou, bastante heterogêneo, tanto no que respeita à extração social dos agentes e suas motivações econômicas, como às idéias que alimentavam no tocante ao sentido último do projeto sedicioso. Durante muito tempo, expoentes expressivos da historiografia trabalharam com a contraposição de dicotomias interpretativas –organizadas com base em pólos como elite versus povo, revolução versus reforma, interesses públicos versus interesses privados – sempre referidas ao movimento como um todo. Era como se ele só pudesse ser caracterizado como um acontecimento global, uno e indivisível, seja do ponto de vista da ação projetada e da coalizão política construída ou, ainda, quanto aos propósitos ideológicos e morais de seus protagonistas. 148

Afinal, quem eram os inconfidentes? Tratava-se de um grupo efetivamente grande, se

contarmos os conspiradores, sabedores e consentidores do plano sedicioso. Efetivamente, 34

homens foram indiciados, 26 condenados inicialmente, 2 foram inocentados devido a falsas

146 CALDEIRA, Oswaldo. Tiradentes: roteiro cinematográfico, comentário e fontes de pesquisa. Rio de Janeiro: Riofilme, 1999, p. 40. 147 FURTADO, João Pinto. O manto de Penélope: história, mito e memória da Inconfidência Mineira de 1788-9. São Paulo: Cia das Letras, 2002. 148 FURTADO, João Pinto, 2002. op. cit., p. 25.

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denúncias. Assim, ao final do processo, 24 homens foram condenados. Destes, 23 tiveram penas

diversas, a maioria degredo na África, e somente Tiradentes foi submetido à pena capital.

Os conjurados mineiros eram, de maneira geral, pessoas das camadas superiores e letradas

da sociedade mineira, como Francisco de Paula Freire de Andrade, Joaquim Silvério dos Reis, José

Álvares Maciel, Domingos Vidal Barbosa, Tomás Antônio Gonzaga, Cláudio Manuel da Costa,

Alvarenga Peixoto, entre outros. Mesmo entre esses havia interesses divergentes de acordo com

suas inserções nas Minas do século XVIII; alguns eram mineradores, outros fazendeiros, uma parte

estava inserida na burocracia implantada na América Portuguesa, outros, não raro, metidos em

negócios “ilícitos” como o contrabando.

O nível de riquezas e bens que cada um possuía também mostra as diferenças entre

eles: enquanto Inácio José de Alvarenga Peixoto, poeta, bacharel em direito, latifundiário e

minerador teve seus bens calculados e seqüestrados no valor de 84 115$260 réis – uma das maiores

fortunas da época – , Tomás Antônio Gonzaga, jurista e poeta, ouvidor em Vila Rica, possuía um

patrimônio muito pequeno, totalizando 845$900 réis e Cláudio Manuel da Costa (sobre cuja pessoa

pairava, para usar um termo moderno, suspeita de enriquecimento ilícito) igualmente poeta, rico

proprietário de terras, advogado, secretário de três Governadores, possuía um cabedal, à época dos

seqüestros, de 10 115$540. O padre Carlos Correia de Toledo e Melo, vigário em São João Del Rei,

rico proprietário de fazendas e lavras, foi subtraído em 7 699$815 pelos representantes da Coroa.

Já o comandante do Regimento de Cavalaria dos Dragões, o tenente-coronel Francisco de

Paula Freire de Andrade, teve o confisco de bens totalizando ínfimos 609 600 réis 149. Um aspecto,

no mínimo curioso, é que, Freire de Andrade possuía a mais alta patente militar do movimento,

enquanto o alferes Tiradentes, teve bens seqüestrados em valor um pouco maior que seu chefe em

hierarquia: 807$821, somente 38$979 a mais que um desembargador como Tomás Antônio

Gonzaga, cujo cabedal, como vimos, não chegava a 1 conto de réis. 150 Desta forma, contrariando

as visões da história tradicional, Tiradentes foi condenado não porque era o mais pobre, mas porque

foi o que deu mais publicidade ao levante e, ao final, assumiu para si a liderança da sedição,

chamou para sua pessoa todas as responsabilidades no crime de Lesa-majestade.

Havia também entre os inconfidentes homens de “inferior qualidade”, ou seja, aqueles que

não eram “Homens-bons” 151 e que não possuíam riquezas. O caso mais notável foi o do único não-

149 ADIM, v. 6, p. 1-531. Para um resumo geral mais detalhado e comparativo dos bens seqüestrados aos inconfidentes entre 1789-92, ver o quadro organizado por FURTADO, João Pinto, 2002, op. cit., p. 107. 150 Ver FURTADO, João Pinto, 2002, op. cit., p. 106-107. 151 Por “Homens-bons” devemos entender, na América Portuguesa a partir do século XVI, os brancos, de “sangue limpo” (sem ascendência judia, negra ou moura), que não se dedicavam a exercerem ofícios mecânicos, que votavam e

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branco preso como inconfidente e condenado: o mulato alfaiate e alferes Vitoriano Gonçalves

Veloso. Seqüestram apenas o único bem que possuía – alguns livros – totalizando parcos 450 réis.

Aliás, por sua condição social e de cor, foi o único que, além de degredo em Moçambique, “recebeu

ainda pena adicional: açoitamento e três voltas em redor da forca, que cumpriu em 16 de maio de

1792”. 152

Segundo István Jancsó 153, em Minas Gerais a idéia de um levante estava nas ruas,

tavernas, estalagens, em ranchos de beiras de estrada, envolvendo homens das mais diversas

condições, mesmo as mais ínfimas. Com o passar do tempo, ficava mais nítido que não era das

menores desgraças o “viver em colônias”. Um mendigo, que pedia auxílio nas ruas Vila Rica,

queixava-se da pouca sorte e mais, “que tudo estava perdido, e agora muito mais, porque Sua

Excelência [Visconde de Barbacena] queria lançar a derrama, tocando oito oitavas de ouro por

cabeça, e que o povo estava para levantar-se, dizendo que queria viver em sua liberdade”.

[Grifos Nossos] 154

Um dos denunciantes do movimento, Brito Malheiro, afirmava que “...já se ouvia as

pessoas da última classe de gente desta terra, como são os negros e mulatos, que estava para haver

um levante (...) Todos os nacionais desta terra o desejavam.” 155

A Conjuração Mineira estava, realmente, muito mais difundida em Minas do que pensava,

foi muito mais que simples “conventículos”, “parvoíces” ou “quiméricas idéias” de intelectuais,

padres e potentados. Tanto assim que Barbacena escreveu ao seu tio, o Vice-rei Luís de

Vasconcelos, afirmando que “o número de convidados e espectadores devem ser muito maior...” e

mais, que “... prendendo todos os que constar tinham alguma coisa e não vieram delatar, receio à

perdição de inumeráveis pessoas e grande inquietação para a Capitania”. 156

Tendo a mesma percepção, em 11 de dezembro de 1789, o Desembargador encarregado

das investigações sobre a sublevação, escrevia um relatório ao mesmo Vice-rei, afirmando:

(...) eu tomei o sistema de não proceder com todo o rigor de Direito, a prisões em todos os sujeitos que estariam nos termos disso; porque achei que a maior parte dos habitantes das

podiam ser votados e, portanto, podiam participar da vida política colonial, notadamente através das Câmaras Municipais. 152 JARDIM, Márcio. Op, cit. p. 200. 153 JANSÓ, István. A sedução da liberdade: cotidiano e contestação política no final do século XVIII. In: NOVAIS, Fernando A. (Dir.). & SOUZA, Laura de Mello e. (Org.). História da vida privada no Brasil: cotidiano e vida provada na América portuguesa. São Paulo: Cia das letras, 1997, p. 399-400. 154 ADIM, vol. 1, p. 148. 155 RESENDE, Maria Efigênia Lage de, op. cit., p. 44. 156 ADIM, vol. 8, p.171-196.

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Minas sabia em confuso que se falava em levante, por causa da derrama e não seguiram o direito caminho de denunciarem (...) Nessas circunstâncias me pareceu prudente que, seguros os cabeças, não havendo, como agora não há, receio algum, poderia S.M tomar o partido que parecesse mais acertado...” 157

Os inconfidentes, nesse sentido, possuíam diferentes interesses, inserções e visões sobre a

sedição. Como pensar que um mendigo, que em tese não era inconfidente, mas premido – como

tantos outros das Gerais – pela crise e miséria sabia do levante e também tinha desejos de liberdade,

possuía a mesma percepção de um Tomás Antônio Gonzaga, tido como uma das cabeças do

levante? Ou mesmo entre os conjurados, como apostar que um intelectual, formado em Lisboa, rico

e muito provavelmente corrupto, como Cláudio Manuel da Costa, tinha a mesma idéia de nação,

política e liberdade que o mulato Vitoriano Veloso que, pela sua condição, em uma sociedade

estamental e dicotomizada, foi açoitado publicamente?

Assim, as dissensões e divisões internas eram evidentes. Kenneth Maxwell entendeu o

movimento como algo bem articulado, onde o móvel principal foi o interesse e temor das elites,

perdendo cargos, honrarias ou mesmo endividadas ao extremo com a Coroa, notadamente

contratadores como Silvério dos Reis e João Rodrigues de Macedo.Tudo isso é verdade, mas não a

única. Fadada ao insucesso por suas hesitações, a Inconfidência mais parece uma conjuração

descosturada e mal alinhavada do que bem articulada. O desmantelamento da conjura foi tão fácil

que surpreendeu até Melo e Castro e evidencia sua fraqueza estrutural, fraqueza esta que se devia,

em grande medida ao fato de que:

(...) os inconfidentes divergiam quanto a temas absolutamente fundamentais no que tange aos acontecimentos subseqüentes à decretação da derrama, a cobrança de impostos acumulados havia décadas. Não existia consenso sobre o destino a ser dado ao Governador, sobre o formato final da revolta em termos operacionais, sobre seu próprio teor, sobre o futuro da escravidão, sobre a nova política tributária, sobre o sistema de governo, natureza e dimensões da república a ser implantada – temas absolutamente vitais para a definição do projeto. 158

De uma maneira geral, havia muitos planos, alguns incompatíveis entre si e pouquíssima

organização para realizá-los: um vago projeto separatista, com a criação de uma “república” com

capital em São João Del Rei; adotar uma nova bandeira, com um triângulo no centro, com a frase do

poeta latino Virgílio Libertas quae sera tamem, “Liberdade ainda que tardia”; desenvolver

157 Apud LIMA JÚNIOR, Augusto de, op.cit., p. 123-124. 158 FURTADO, João Pinto, 2002, op. cit., p. 106.

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indústrias no país; criar uma universidade em Vila Rica; incentivar a natalidade, oferecendo pensões

para mães com muitos filhos; nenhuma intenção concreta de extinguir a escravidão etc.

Mais do que um projeto nacional de independência e densamente republicano, o

movimento de 1788-89 deve ser inserido no contexto da transição entre o Antigo Regime e a

modernidade. Nesse sentido, os protagonistas fizeram leituras, opções e defesas de idéias/ações

dentro de suas próprias condições e posições nas Minas Gerais dos Setecentos. Alguns desejavam

uma reestruturação do poder em Minas, sem por em cheque a dominação lusitana (não muito

diferente das revoltas e motins regidos pelo pacto colonial), visando mais benefícios e cargos

político-administrativos do que realmente “revolucionar” a América Portuguesa. Continuavam

presos ao Antigo Regime que, de qualquer forma, tinha cinco séculos de existência – real e com

marcas profundas no imaginário das pessoas – em que pese o avanço das “pestilentas idéias”

iluministas e do modelo burguês de política e sociedade, este ainda estava se estruturando

lentamente na própria Europa.

Tiradentes, tido como mártir de nossa independência, queria, é certo, libertar a Capitania

de Minas Gerais (com apoio e provável inclusão do Rio de janeiro ou até mesmo São Paulo) e tinha

percepção da exploração metropolitana. Deixou isso claríssimo em vários depoimentos, onde dizia

se sentir um desgraçado, porque nascendo em um território rico como o das Minas, tiram “dele

tanto ouro e diamantes, nada lhe fica, e tudo saía para fora e os pobres filhos da América, sempre

famintos, sem nada de seu” 159 e mais, que Minas era pobre “só porque a Europa, como uma

esponja, lhe tivesse chupando toda a substância. Os Exmos. Generais de três em três anos traziam

uma quadrilha, a que chamavam criados, que depois de comerem a honra, a fazenda e os ofícios,que

deviam ser dos habitantes, se iam rindo deles para Portugal.” 160

Contudo, o próprio Tiradentes, como homem de seu tempo, estava impregnado de idéias

típicas do Antigo Regime, e mais do que preocupado que com Monarquia ou República, queria o

fim das amarras coloniais, mas ainda usando termos do regime que queria enterrar. Numa acalorada

discussão numa taberna ele teria dito ao seu interlocutor – o Bacharel Lucas Antônio Monteiro de

Barros – que não se tratava de uma conspiração, de um crime, de um levante, mas de restauração:

“Não diga levantar, é restaurar” 161

Nosso “herói”, em que pese suas limitações intelectuais, tinha como componente favorável

a sede de saber, de se inteirar dos acontecimentos e nenhum medo ou prudência de divulgar o

159 Apud CHIAVENATO, J.J. As várias faces da Inconfidência Mineira. 2. ed. São Paulo: Contexto, 1989, p. 19. 160 ADIM, v. 4, p. 216. 161 ADIM, v. 1, 104.

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movimento e buscar conseguir mais adeptos. Seus contemporâneos, pelo que se depreende da

leitura de documentos da época, não o tinham “em grande monta” e respeito. Desde os tempos de

Cunha Meneses, o “Fanfarrão Minésio”, sabia-se que ele ansiava por mudanças (revolucionárias ou

reformistas?) e que as divulgava com veemência em todos os lugares por onde andava: nas tavernas,

nas ruas, em fazendas e prostíbulos. Ao receber tais denúncias, Cunha Meneses, que o qualificava

como maroto, bêbado e falastrão, foi taxativo: “Só se for um levante de putas!” 162

Outros, contudo, liam, compreendiam e aceitavam alguns postulados iluministas,

notadamente de Montesquieu. Mas foram as idéias do ex-jesuíta e Abade Raynal que tiveram

grande impacto em boa parcela dos intelectuais da inconfidência. Este abade era tido como “um

escritor de grandes vistas, porque prognosticou o levantamento da América Setentrional [América

Inglesa], e que a capitania de Minas Gerais, com o lançamento do tributo da derrama, estaria agora

nas mesmas circunstâncias.” 163 Sobre o poder e sedução que as idéias de Raynal provocaram entre

os inconfidentes mineiros, falaremos com mais detalhes no último capítulo, mas, por ora, em uma

Minas marcada pela opressão, como não se deixar seduzir por falas como essa :

(...) Se queremos assegurar a nossa felicidade, separemo-nos. Se somos pais, se amamos nossos filhos separemo-nos, Leis e liberdade: eis a herança que nós lhes devemos. (...) Mas não o esqueçais, quanto mais a distância, mais o despotismo pesa (...) Pela lei das massas e das distâncias, a América só pode pertencer a si mesma. Não há governo sem uma confiança mútua entre aquele que comanda e aquele que obedece. 164

Logicamente, houve a sedução por tais idéias, mas os conjurados as reelaboraram à luz de

suas próprias opções, condições de vida e capacidade intelectual, apostando em um projeto

separatista e em uma Monarquia não despótica: “Minas Gerais, logo se tornaria a cabeça de um

grande Reino!” 165

Um aspecto marcante foi, por parte de alguns conjurados, a admiração pelos

acontecimentos ocorridos a partir do 4 de julho de 1776, tornando livres os colonos norte-

americanos do jugo da Inglaterra. O estudante José Joaquim da Maia, escreveu a Thomas Jefferson,

então ministro da jovem nação estadunidense na França, uma carta onde dizia que:

162 CHIAVENATO, op. cit., p. 48. 163 Depoimento do inconfidente Freire de Andrade, citado por MAXWELL, Kenneth, op. cit., p. 155. 164 RAYNAL, Guilhaume-Tomás François [Abade Raynal] A revolução da América. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1993, p. 93-94. 165 A frase é de Antônio Pires da Silva Ponte, denunciado ao Ministro Melo e Castro por José de Lacerda e Almeida, um ex-estudante paulista em Coimbra, em setembro de 1786. Apud RESENDE, Maria Efigênia Lage de, op. cit., p.35.

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A natureza nos fez habitantes do mesmo continente e, em conseqüência, de algum modo, compatriotas. (...) Sou brasileiro e sabeis que a minha desgraçada pátria geme em atroz escravidão, que se torna todos os dias mais insuportáveis depois da vossa gloriosa independência, pois que os bárbaros portugueses nada poupam para tornar-nos desgraçados com medo que vos sigamos as pisadas, e como conhecemos que esses usurpadores, contra a lei da natureza e da humanidade, não cuidam senão de oprimir-nos, resolvemos seguir o admirável exemplo que acabai de dar-nos e, por conseguinte, quebrar as nossas cadeias e fazer reviver a nossa liberdade, que está de todo morta e oprimida pela força, que é o único direito que os europeus têm sobre a América.[Grifos Nossos] 166

Desta forma, inspirados nos acontecimentos de 1776 na América Inglesa, alguns

conjurados se inclinaram pelo regime republicano, mas poucos sabiam ao certo o que era uma

república, que também estava sendo construída recentemente pelos norte-americanos.

Segundo João Pinto Furtado, a palavra República, significando sistema de governo, já era

conhecida de alguns inconfidentes, tendo, contudo, uma abrangência territorial bastante restrita (o

universo não ia muito além da Capitania de Minas e, talvez, abrangesse o Rio de Janeiro, no limite,

São Paulo!), com governo sob o comando dos “homens bons” e com sérias restrições, logicamente,

ao voto universal. O que eles conheciam no apagar das luzes dos setecentos em Minas? Conheciam

as câmaras municipais, dominadas pela elite branca de “homens bons” e, assim, os inconfidentes

ainda guardavam muita relação com as instituições e práticas do Antigo Regime e da tradição

político-administrativa Ibérica, ou seja, uma república entendida como uma comunidade de iguais,

que buscavam manter seus privilégios e status. 167

Essa noção de república (parecida com as câmaras municipais no Brasil lusitano) foi bem

diferente da república pensada e construída ao longo dos séculos XIX e XX. Fica mais transparente

em depoimento do Padre Toledo, quando afirma que “viera a Vila Rica e achara uns poucos

conjurados a fazerem um levante e a reduzirem as Minas a uma República, fazendo vários

parlamentos, um na dita Vila, um na de São João, e outros mais, ficando a Vila de São João sendo a

Capital (...) [e] que o comércio da República havia de consistir na permutação dos efeitos, sem que

jamais saísse o ouro para fora”. 168

Outro padre, um de nossos personagens, Luís Vieira mostra-se como um republicano, pois

afirmava que “(...) um príncipe europeu não podia nada com a América [Portuguesa] que é um país

livre; e que El-Rei de Portugal nada gastou nesta conquista (...) e ultimamente concluiu que esta 166 Carta de José Joaquim da Maia, o Vendek, a 2 de outubro de 1786 para Thomas Jefferson, então embaixador dos EUA em Paris, com quem acabaria se encontrando posteriormente. Apud AQUINO, Rubim Santos Leão de, et al. Sociedade brasileira: uma história através dos movimentos sociais. São Paulo: Record, 1999, p. 339. 167 FURTADO, João Pinto, 2002, op. cit., p. 159. 168 ADIM, v. 1, p. 258.

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terra não pode estar muito tempo sujeita a el-Rei de Portugal, porque os nacionais dela querem

também fazer corpo de república.” 169

Mas o mesmo Vieira, “republicano”, ainda tinha apelos ligados ao Antigo Regime, quando

desejou que “(...) se no tempo da aclamação do Senhor Rei Dom João IV viesse esse Príncipe para o

Brasil (...) a esta hora se acharia a América constituindo um formidável império; e que ainda seria

felicíssimo este continente se viesse para ele algum dos príncipes; mas, que a suceder assim, sempre

corria risco de o quererem cá aclamar; e que o melhor seria mudar a Rainha [ D. Maria I ] a sua

corte para a América.” 170

Afinal, o cônego Vieira queria a república ou a monarquia? Ou sua noção de república,

entendida nos setecentos mais como uma comunidade de iguais, não diferia tanto da monarquia,

desde que preservados os interesses dos “homens bons” encastelados nas câmaras municipais?

Difícil responder. Contudo, sua “profecia” iria se realizar: em 1808 a Corte de D. Maria I se

transferiria para o Brasil, fugindo das tropas napoleônicas que varriam a Europa e, em 1822, um

príncipe foi aclamado Imperador do Brasil.

Algumas posições foram bastante firmes, como a do contratador Domingos Abreu Vieira

que afirmava que “... produzindo a sua terra tantos haveres eles existiam [permaneciam] sempre

pobres, por lhe tirarem tudo para fora e que, por isso se arrojavam a resgatá-la e pô-la em

liberdade”. 171. E mais, o mesmo contratador expunha uma vertente mais radical do movimento,

pois afirmava que “o povo que produz ele mesmo sua riqueza, sem auxílio algum, pode também

autogovernar-se”. 172 O Padre Toledo também transparece radicalismo quando afirmava que: “é

melhor morrer com a espada na mão do que como carrapato na lama” 173, quando tudo parecia estar

perdido em termos de sublevação.

Existiam inconfidentes que só o fim da ameaça sobre seus cabedais, por meio da

suspensão da derrama, bastaria para aquietá-los. Para estes, a derrama não era um pretexto, mas o

motivo principal de aderirem a uma revolta. Era o caso dos contratadores. Em aviso circular de 6 de

março de 1789, convocou-se os contratadores de entradas e dízimos João Rodrigues dos Reis,

Domingos de Abreu Vieira, Joaquim Silvério dos Reis e José Pereira Marques, a comparecem à

Junta da Real Fazenda para efetuarem os pagamentos dos débitos atrasados. Em 11 de março de

169 RESENDE, Maria Efigênia Lage de, op. cit., p. 45 170 ADIM, v. 1, p. 100. 171 Id. Ibid., p. 44. 172 Discurso do inconfidente Abreu Vieira In.: VASCONCELOS, Sylvio. Civilização das Minas Gerais. In: RBEP, Belo Horizonte: (25/26):84, 1968-1969. 173 Apud LIMA JÚNIOR, op. cit., p. 45.

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1789 foram exigidas a apresentação das contas dos contratos, a declaração total das dívidas e a

relação dos devedores com as assinaturas destes e dos contratadores.

Foi aí que Silvério dos Reis traiu o movimento.174 Seus motivos estavam presentes em

vários outros conspiradores, como João Rodrigues, que devia 8 vezes mais que o volume de seus

bens à Coroa. Silvério delata oralmente os conjurados em 15 de março de 1789 e por escrito, em 19

de abril de 1789. Entre 17 e 23 de março, Barbacena comunicou às Câmaras de Vila Rica e Mariana

a suspensão da derrama, esvaziando o movimento. Contudo, Silvério dos Reis traiu para obter a

mesma coisa que o levara a ingressar no movimento – interesses pessoais, medo e necessidade de

resolver problemas particulares. Em outras palavras, seus motivos para trair eram os mesmos que o

levaram a aderir: perdão para uma dívida de 220 contos, 423 mil e 149 réis. 175 Não estamos

justificando os motivos que o levaram a traição. Mesmo correndo o risco de anacronismo, achamos

que traição, sob qualquer ângulo ou época histórica, deve ser encarada como um ato abominável. Só

estamos tentando entender sua atitude sob o prisma da fragilidade intrínseca do movimento, no qual

uma delação e suspensão da derrama, o abalou profundamente.

Assim, também para a elite – fazendeiros escravistas, mineradores, grandes comerciantes,

contratadores, altos funcionários da burocracia lusitana no Brasil – a situação não estava fácil. Os

pesados tributos, a rigorosa fiscalização e cobrança de impostos, iriam ensejar transtornos e

conflitos. Se Portugal exigisse todos os pagamentos atrasados ao fisco, boa parte dessa elite perderia

tudo o que tinha – casas, fazendas, minas, escravos, gado, estabelecimentos comerciais, dinheiro

guardado etc – Por isso, muitos ricos em Minas estavam dispostos a qualquer coisa – mesmo

participar de uma sublevação – para se salvarem da falência.

Pensar a Inconfidência Mineira envolve analisar as condições econômicas, sociais e

políticas da época, nas quais estavam inseridos os inconfidentes e, portanto, seus interesses mais

imediatistas ou de longo prazo. Não há como pensar nos inconfidentes como desinteressados

idealistas da independência; mas, também, não há como julgar seus interesses desvinculados da

necessidade de mudanças que, no limite, poderiam chegar à independência, pelo menos nas Minas

Gerais. Os inconfidentes estavam interessados em libertar-se de imposições e sujeições que

tornavam insuportáveis as suas condições objetivas de existência. 176

174 Além dele, outras denúncias seriam feitas: do Tenente-coronel Basílio de Brito Malheiro do Lago (15-04-1789), do Mestre de Campo Inácio Correia de Pamplona (20-4-1789) e de Francisco de Paula Freire (17-05-1789). Ver ADIM, v. 1, p. 117. 175 LAGE, Nilson.Tiradentes. In: Os grandes enigmas de nossa história. Rio de Janeiro: Otto Pierre Editores, 1981, p. 272. 176 Resende, Maria Efigênia Lage de, op., p. 16.

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A trama de 1788-89 não foi somente um movimento de intelectuais devaneando sobre

independência, idealizando e liderando um movimento contra Portugal, nem somente a ação de um

grupo de devedores do fisco real, muito menos um movimento apenas da elite – a plutocracia

colonial. Foi isso tudo, e muito mais. Não se trata de um simples complô de oligarcas, pois possuía

entre seus membros desde homens ricos da capitania até os paupérrimos. Tiradentes que, como

vimos, não era pobre, durante décadas, contudo, esteve em busca de estabilização profissional.

Foi, a bem da verdade, uma conspiração, uma revolta que jamais houve, na medida em

nunca saiu do plano das idéias. “Tal dia é o meu batizado” 177, a senha para deflagar o movimento,

nunca foi pronunciada de fato. Essa conspiração foi formada por um grupo bastante heterogêneo,

quer na extração social e suas motivações econômicas, quer pelas idéias que alimentavam. O

movimento foi portador de uma série de ambigüidades e contradições próprias do período, como

pode ser constatado na fala dos próprios protagonistas, como pudemos ver acima.

De uma maneira geral, os inconfidentes – notadamente as elites intelectuais –, buscavam

mais a recuperação do passado, desde que liberto das amarras coloniais ou neomercantlistas

impostas pelos ministros da Rainha D. Maria I, notadamente Martinho de Melo e Castro, Secretário

da Marinha e Domínios Ultramarinos.

Que passado seria esse? Esse passado se encontra na fase de governo anterior, de D. José I

e seu ministro Marques de Pombal. Todos os movimentos que levariam à Conjuração Mineira de

1788-89 deitam suas raízes num contexto pós-reformas pombalinas. Tais reformas, portanto, se

ligam a Sebastião José de Carvalho e Mello – Marquês de Pombal – que, de fato, governou Portugal

entre 1750-1777. Nesta fase, nossa metrópole se complicava economicamente e se atrelava

inequivocamente à Inglaterra. A miragem de riqueza inesgotável do Brasil de épocas anteriores já

não iludia ninguém. D. José I queria usar a torrente de ouro e diamantes para melhorar a frágil

economia lusitana e, para isso, deu amplos poderes a Pombal.

A política pombalina buscou incentivar a produção por meio da organização de

Companhias Comerciais Monopolistas; da racionalização e maior fiscalização na arrecadação de

tributos; incorporação de membros da população local à máquina administrativa colonial, visando

fortalecer os vínculos entre metrópole e colônia e tolerância e flexibilização na aplicação das

antigas normas do mercantilismo. A modernização que implicava o sucesso do flexível

mercantilismo pombalino precisou da atuação da própria elite local nos quadros de mando. Foi

177 A senha, nunca pronunciada, foi decidida durante o batizado de João Damasceno, filho do poeta Alvarenga Peixoto, em 8 de outubro de 1788. O menino foi batizado pelo Padre Toledo e teve como padrinho Tomás Antônio Gonzaga.

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neste período que a elite mineira passou a ocupar os órgãos administrativos e fiscais, as instituições

judiciárias e militares. Isso, contudo, não significou o fortalecimento dos laços metrópole/colônia,

na medida em que, como vimos, abriu espaços ao fortalecimento da elite que só atenderiam aos

interesses metropolitanos enquanto coincidissem com os seus.

Cláudio Manuel da Costa fora nomeado para diversos cargos públicos até 1773, quando

Cunha Meneses toma posse como governador e o despede das funções de secretário de Governo,

cargo que ocupara nos governos de Luís Diogo Lobo da Silva, do Conde de Valadares e no governo

de Dom Rodrigo de Menezes; Alvarenga Peixoto – protegido de Pombal – ocupou postos públicos

até a gestão D. Rodrigo José de Meneses (1780-3); Tomás Antônio Gonzaga perdera privilégios e

contratos de Entrada, muito lucrativos na época. Estava para ser nomeado para um cargo público na

Bahia (desembargador), quando de sua prisão, e dependia, tendo em vistas seus bens, das rendas do

Estado para sobreviver; Joaquim Silvério e Alvarenga Peixoto compraram patentes militares,

vendidas pelo “Fanfarrão Minésio”, e que deveriam ser revistas no governo do Visconde de

Barbacena; o inquieto Padre Rolim estava proibido de circular na Capitania de Minas,

principalmente devido suas atividades de contrabandista; Tiradentes estava em descrédito e nunca

alcançaria postos mais elevados na carreira militar.

Com a queda de Pombal e a subida ao poder de D. Maria I, por intermédio de seu ministro

Melo e Castro, tivemos um endurecimento da política colonial. Por trás desse neomercantlismo,

estavam os grandes comerciantes lusitanos e donos de manufaturas, a Inglaterra e seus

comerciantes, além da nobreza de Portugal, sempre dependente das riquezas distribuídas pelo

Estado, que não viam com bons olhos a relativa autonomia da capitania na época pombalina.

Muitos mineiros – inconfidentes ou não – queriam a restauração da política colonialista

anterior a Melo e Castro, desejavam a continuidade e recuperação dos privilégios anteriores e

ansiavam por manter antigas regalias.

O caso de Tomás Antônio Gonzaga é muito ilustrativo. Apesar de ser tido como o

“primeiro cabeça da conjuração” 178, Gonzaga era, na verdade, um aristocrata reacionário, que via

seu mundo abalado com as perdas de privilégios, cargos e honrarias, e constantemente ameaçado

pela “humanidade inviável”, formada por negros, mestiços e vadios, que faziam das Minas um

“mundo às avessas”. Ele sabia que “se os negros se sublevassem ou se os vadios tivessem

178 Segundo depoimento de Silvério dos Reis. In: ADIM, v.1, p. 92.

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consciência de seu peso, voaria em estilhaços o mundo restrito dos homens brancos, entre os quais

se achavam os inconfidentes”. 179

Gonzaga era um homem que existiu, cotidiana e concretamente e, nessa perspectiva,

deixou registros escritos que informam sobre aspectos substantivos de sua existência. Ele – assim

como todos os inconfidentes e demais moradores das Minas – era um homem historicamente

situado, que vivia a experiência no mundo com outros homens, que participava do existir num

tempo e num espaço específicos a partir de determinadas condições econômicas, políticas,

ideológicas e culturais.

Com uma aguda percepção de seu tempo, Tomás Antônio Gonzaga afirmava que a mente

“guiada pelas luzes da razão e pelos conhecimentos que ministram as histórias (...) a ocasião para

um levante é aquela em que se alteram os ânimos dos vassalos”. 180

O que seria capaz de alterar os ânimos de um conservador e brilhante poeta que afirmava

que se a derrama fosse lançada “poderia prejudicar muito os interesses complementares da Coroa

e da capitania”? E mais, que “... seria ousadia, e mesmo rusticidade, supor que escape à perspicácia

e agudo discernimento de V. Excia. alguma das circunstâncias de que estão clamando em nome dos

interesses da coroa e do bem comum desta capitania que, em certas relações, marcham

unidas.”?181

Como esperar uma atitude revolucionária, daquele que deveria fazer a Constituição do

“novo país” e ser seu primeiro mandatário por três anos, se existiam interesses complementares

entre colônia e metrópole e mais, que em determinadas questões, elas marchavam unidas?

Em sua famosa obra, Cartas Chilenas, escrita por volta de 1786, em momento algum o

grande poeta árcade propõe a ruptura da dominação colonial. Pelo contrário, Gonzaga defende os

interesses da Coroa, criticando o desrespeito às leis do reino, os prejuízos de Portugal com a

corrupção e a incompetência administrativa na capitania, a ausência de piedade cristã e a falta de

virtudes nobres em Minésio e seus comparsas, como Silvério dos Reis. As cartas dirigidas por

Critilo a Doroteu, buscam atingir o Governador Luís da Cunha Meneses e outras autoridades, mas

convergem para a legitimação das formas de dominação do rei sobre os vassalos.

Nesse sentido, deveriam permanecer intocados os interesses da Coroa e o estatuto da

escravidão. Gonzaga – como bom bacharel – deseja a ordem e o legalismo e produz textos e poemas

que elogiam um passado, da “idade perdida”, de uma época do “fausto” do ouro, que ele percebia

179 SOUZA, Laura de Melo e, 1999, p. 104. 180 ADIM, v. 7, p. 299-293 181 ADIM, v. 8, p. 217-227.

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declinar a cada dia. O poeta desejava um mundo com etiqueta e bons modos – essencialmente um

mundo aristocrático – que ele tanto valorizava. O esforço do autor é no sentido de restaurar aquela

unidade, acabar com um mundo onde tudo parecia estar fora de lugar – mundo às avessas – ainda

que seja por reformas, ainda que seja por uma sublevação. Gonzaga critica a decadência dos

costumes civilizados, a arrogância de pretos e pretas, de pardos e comerciantes, que passam a galgar

postos e posições antes inimagináveis. Afirmava que os pobres eram como “... abutres que se

ajuntam nos ermos onde fede a carne podre”. 182

A inconfidência para Gonzaga era mais o desejo de colocar as coisas no seu devido lugar,

em que tudo pudesse estar claramente definido, nem que para isso ele tivesse que se envolver em

uma conspiração contra o Estado. 183 Senão, vejamos:

Pretende, Doroteo, o nosso chefe mostrar um grande zelo nas cobranças do imenso cabedal que todo o povo aos cofres do monarca está devendo; envia bons soldados às Comarcas e manda-lhes que cobrem ou que metam a quantos não pagarem nas cadeias. Entraram nas Comarcas os soldados, e entraram a gemer os tristes povos: uns tiram os brinquinhos das orelhas das filhas e mulheres; outros vendem as escravas já velhas, que os criaram, por menos de duas partes do seu preço. Aquele que não tem cativo ou jóia, satisfaz com papéis, e o soldadinho estas dívidas cobra mais violento, do que cobra a justiça uma parcela, que tem executivo aparelhado, por sábia Ordenação de nosso Reino. Por mais que o devedor exclame e grite, que os créditos são falsos, ou que foram, há muitos anos pagos, o Ministro da severa cobrança a nada atende. Agora, Fanfarrão, agora falo Contigo e só contigo. Por que causa Ordenas que se faça uma cobrança Tão rápida e tão forte contra aqueles Que ao erário só devem tênues somas? Não tem contratadores, que ao rei devem De mil cruzados, centos e mais centos? Uma só quinta parte, que estes dessem,

182 GONZAGA, Tomás Antônio. Cartas Chilenas. São Paulo: Cia das Letras, 1995, p.73-74. 183 Quem desenvolve brilhantemente essas idéias é SILVEIRA, Marco Antônio, op. Cit. 43-72.

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Não matava do erário o grande empenho? O pobre, porque é pobre, pague tudo, E o rico, porque é rico, vai pagando Sem soldados à porta, com sossego. Indigno, indigno chefe! Tu não buscas O público interesse. Tu só queres Mostrar ao sábio augusto um falso zelo, Poupando, ao mesmo tempo, os devedores, Os grossos devedores, que repartem Contigo os cabedais, que são do reino.[Grifos Nossos] 184

O poeta afirma que, o executivo montado em Minas para cobrar impostos, foi uma sábia

ordenação do reino, de um sábio Augusto. Critica-se a corrupção de “Minésio”, seus desmandos e

arbitrariedades, mas não o fisco, a Coroa e a dominação. Como ouvidor de Vila Rica, somente a

Gonzaga caberia conceder poderes especiais a uma pessoa para cobrar dívidas e executar hipotecas.

Cunha Menezes, arbitrariamente, concedeu poderes de cobrança a particulares, principalmente a

Silvério dos Reis, o “Silverino” e Gonzaga, foi implacável:

A sábia lei do Reino quer e manda Que os nossos devedores não se prendam; Responde agora tu, porque motivo Concede o grande Chefe que tu prendas A quantos miseráveis te devem? Porque meu Silverino? Porque largas, Porque mandas presentes, mais dinheiro? As mesmas Leis do Reino também vedam Que possa ser Juiz a própria parte; Responde agora mais, porque princípio Consente o nosso Chefe, que tu sejas O mesmo que encorrente a quem não paga? Porque, meu Silverino? Porque largas, Porque mandas presentes, mais dinheiro? Os sábios Generais reprimir devem Do atrevido vassalo as insolências; Tu metes homens livres no teu tronco, Tu mandas castiga-los, como negros; Tu zombas da justiça; tu a prendes; Tu passas portarias, ordenado, Que com certas pessoas não se entenda. (...) Apenas apareces... Mas não posso Só contigo gastar papel e tempo; Eu já te deixo em paz, Roubando o mundo. [Grifos Nossos] 185

184 8ª Carta. Apud. RESENDE, Maria Efigênia lage de, op. cit., p.35- 36.

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Sérgio Buarque de Holanda afirmou que:

(...) Em realidade tudo se encontra no poema [Cartas Chilenas], menos as idéias de subversão que se poderiam esperar. O autor empenha-se antes em ver restaurada a justiça – zelo de magistrado – do que em assistir a uma transformação da sociedade. Sua revolta não é contra as instituições que podem abrigar a injustiça, mas contra a injustiça que deturpa as instituições. Ele se revela aqui o extremo oposto de um revolucionário, pois é precisamente contra o afrouxamento da tradição que se volve quase sempre o seu sarcasmo impiedoso. A velha ordem, transitoriamente perturbada pelo Fanfarrão, parecia-lhe destinada a perdurar como lei eterna e indiscutível (...). Contra os novos costumes, prenúncio da barbárie revolucionária, sua atitude é a de um rigorista à moda antiga. 186

Esse conservadorismo aristocrático de Gonzaga está presente também na sua opinião sobre

o alferes Tiradentes. O grande poeta árcade, o traiu várias vezes em depoimentos, e deixou em

versos, que nunca gente de bom juízo e posses, como ele, poderiam seguir um “pobre, sem respeito

e louco”. Já na prisão, em poema dirigido à Deusa da Justiça, Lira XXXVIII, ele afirmava:

Ama a gente assisada A honra, a vida, os cabedais tão pouco Que ponha uma ação destas Nas mãos de um pobre, sem respeito e louco? (...) A prudência é trata-lo por demente Prendê-lo ou entregá-lo Para dele zombar a moça gente. 187

Não apenas zombaram dele. Sabemos que fizeram muito mais que isto. Num espetáculo

barroco, enforcaram-no e despedaçaram seu corpo. Seria um suplício e exemplo para os que

tentassem contra a integridade da Monarquia, esta sim, um todo, um corpo, que deveria ser

indivisível.

De uma maneira geral, sabemos sobre a vida de cada um dos inconfidentes, suas

conspirações, aspirações, seus motivos e desejos de liberdade ou restauração. Sabemos também

como foram aprisionados, julgados e sentenciados. Temos ciência de que no dia 18 de abril de

1792, durante dezoito horas, foi feita a leitura oficial da sentença, com a presença de todos os

acusados, dos nove juízes de alçada, do próprio vice-rei e representantes da Igreja. Sabemos que,

apesar de onze condenados à pena capital, apenas um foi realmente enforcado. Uma encenação 185 9ª Carta. Idem, p. 36-37. 186 HOLANDA, Sérgio Buarque de. “As cartas chilenas”, In: tentativas de mitologia. São Paulo: Perspectiva, 1979, p. 226. 187 Apud CHIAVENATO, op. cit., p. 71.

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barroca, na medida em que D. Maria I, em carta régia datada de 15 de outubro de 1790, concedia

clemência a todos os presos, com uma única exceção: Tiradentes. Todo esse conhecimento é válido

para os conjurados leigos. Mas e os eclesiásticos ?

Devemos destacar as figuras dos cinco inconfidentes ligados ao clero: o Cônego Luís

Vieira da Silva, o Padre Carlos Corrêa de Toledo Melo, o Padre José da Silva de Oliveira Rolim, o

Padre Manuel Rodrigues da Costa e o Padre José de Oliveira Lopes. A participação dos religiosos

na Inconfidência Mineira foi ainda pouco estudada. 188 Qual o papel da religião – mais

especificamente de um grupo de religiosos – em um movimento tido por muitos como

profundamente influenciado pela revolução americana e idéias iluministas, assumidamente anti-

clerical?

No mundo ibérico e, logicamente no ibero-americano, ao lado da difusão das “idéias das

luzes”, da revolução americana (1776) tivemos, notadamente através dos jesuítas, a elaboração e

difusão das teorias corporativas de poder da Segunda Escolástica, que, como vimos, pregavam uma

origem popular para o poder régio e a luta contra a tirania. Assim, ao lado do iluminismo e da

inspiração pela independência dos Estados Unidos, as idéias corporativas de poder da Segunda

Escolástica – idéias tipicamente ibéricas – estavam presentes, de alguma forma, no ideário dos

conjurados mineiros. O que exploraremos no próximo capítulo é como estas idéias foram

apropriadas pelos inconfidentes e, notadamente, pelos clérigos conjurados?

As lacunas sobre a participação dos padres na Inconfidência Mineira, o reafirmamos,

datam mesmo da época da devassa instaurada pela rainha D. Maria I: a Augusta Senhora

determinou – por meio de seu ministro Sebastião Xavier de Vasconcelos Coutinho – que qualquer

decisão relativa aos eclesiásticos devia ficar em segredo e os réus remetidos a Lisboa. Tudo sob o

maior sigilo. A transcrição da Carta Régia de 17 de julho de 1790 é importantíssima, na medida em

que se constitui em um pequeno compêndio de filosofia política e mostra como as doutrinas do

direito divino, do providencialismo e do regalismo 189 se haviam introduzido em Portugal, senão

vejamos:

188 Ver as Dissertações de Mestrado de: CALIXTO, Valdir de Oliveira. O clero secular em Minas Gerais (1745-1792): sua participação na conjuração de 1789. 1979. Dissertação (Mestrado). Niterói: Universidade Federal Fluminense, 1979. (mimeo) e RODRIGUES, André Figueiredo, op. cit. A obra de CARVALHO, Cônego José Geraldo Vidigal de. Ideologia e raízes do clero da conjuração: século XVIII - Minas Gerais. Viçosa, UFV: Imprensa Universitária, 1992. 189 O processo de concentração do poder na pessoa do rei, que levou à formação do Estado Absolutista da época moderna, foi objeto da reflexão teórica de diversos pensadores entre os séculos XVI e XVIII. Boa parte deles procurava justificar o absolutismo com base na “teoria do direito divino dos reis”, segundo a qual a fonte legítima do poder do rei era Deus (providencialismo). A isso se juntava o regalismo, doutrina que defendia a ingerência do chefe de Estado (rei) em questões religiosas. Os pensadores que mais se destacaram na sistematização de tal teoria foram Jean Bodin (1529-1596) e Jacques Bossuet (1627-1704). Para saber mais ver: BOSSUET, Jacques-Bénigne. A política inspirada na

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Sendo-me presente o horrível atentado contra a minha Real Soberania e suprema autoridade, com que malévolos, indignos do nome português, habitantes da Capitania de Minas Gerais, possuídos pelo espírito de infidelidade conspiraram para subtraírem da sujeição devida ao meu alto e Supremo poder, que Deus me tem confiado, pretendendo corromper alguns dos meus fiéis vassalos, mais distintos da capitania e conduzir o povo inocente a uma infame rebelião. (...) Havendo porém nas Devassas alguns dos mesmos réus, que sejam eclesiásticos, separeis o delas a parte, que lhes tocar, para em Acto separado com cópia das suas culpas serem por Vós com os adjuntos sentenciados, como fôr justiça: por não pertencer privilégio algum isenção nos crimes excepto, dos quais o de lesa Majestade e o primeiro, e o mais horroroso; com declaração, porém, que a Sentença condenatória que contra eles for proferida, deverá ficar em Segredo, e fazer-se-me presente, para Eu resolver, o que fôr servida, conservando-se os Réus, em rigorosa, e segura custódia. [Grifos Nossos] 190

A sentença dada a 18 de abril de 1792: Carlos Correia de Toledo Melo, José da Silva de

Oliveira Rolim, como chefes da conjuração, o Padre José da Oliveira Lopes, como sabedor e

consentidor dela que “com baraço e pregão sejam conduzidos pelas ruas públicas ao lugar da forca e

nela morram morte natural para sempre (...) Quanto aos outros: Luis Vieira da Silva, degredo

perpétuo para a ilha de São Tomé e perda de bens; Manuel Rodrigues da Costa, degredo perpétuo

para a ilha do Príncipe e perda da metade dos bens”. 191

Contudo, como vimos, dezoito meses antes de lavrada a sentença – para os eclesiásticos ou

não – a Rainha, por Carta Régia de 15 de outubro de 1790, comutava a pena de morte por degredo

perpétuo em África, exceto para Tiradentes.

Razões poderosíssimas haveriam, certamente, para se ocultarem a participação dos

clérigos, seus depoimentos, a defesa de seu advogado e as sentenças. Tudo leva a crer que se

considerava desprestígio para Igreja Católica tornar público que seus ministros se imiscuíam na

política e faziam parte de conjuras contra a segurança do Estado. Os padres, diziam os autos de

acusação, mais que os outros tinham “a mais rigorosa obrigação pelo seu ministério de Sacerdote,

não só de se instruírem nas leis do Evangelho, que ordena a sujeição, e fidelidade, que todos devem

ter aos Príncipes Soberanos, mas até, de instruírem os povos neste preceito, que foi inviolavelmente

observado pelos verdadeiros católicos”. 192

Sagrada Escritura. In: FREITAS, Gustavo de. 900 textos e documentos de História. Lisboa: Plátano, 1977. BODIN, Jean. Seis livros da República. In: CHEVALLIER, Jean-Jacques. As grandes obras políticas, de Maquiavel a nossos dias. Rio de Janeiro: Agir, 1976. 190 ENNES, Ernesto, op. cit., p. 25. 191 TORRES, João Camillo de Oliveira, op. cit., p. 724-725. 192 ENNES, Ernesto, op. cit., p. 49.

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No dia 24 de julho de 1792, os padres embarcaram na fragata Golfinho para Portugal. Lá,

a Rainha os dispersou por diversos conventos. Alguns morreram no exílio, outros, como o Cônego

Vieira e Padre Rolim, conseguiram, anos mais tarde, retornar ao Brasil.

Por que, ainda hoje, se sabe muito pouco sobre a participação de clérigos na conjura das

Minas Gerais? De uma maneira geral a batina esteve sempre junto a Coroa. Igreja e Estado

português atuavam em harmonia. Nesse sentido, cabia ao Estado administrar a colônia e à Igreja

ensinar a obediência ao rei.

Houve, contudo, vários momentos de conflito entre padres da Igreja e autoridades da

colônia. Foi muito comum a participação de padres em diversas rebeliões coloniais. Que

motivações pessoais, formação acadêmica e posturas ideológicas conduziram a “batina contra a

Coroa”? Qual o papel dos jesuítas (e das tradições histórico-culturais luso-brasileiras, como as

teorias corporativas de poder) na formação intelectual da elite branca e grande parte do clero secular

estabelecido nas Minas Gerais? Por que muitos clérigos foram proibidos de se instalarem nas

Gerais? O que andava nas mentes, corações e bocas dos homens de batinas? Por que eles foram

tentados a cometer o “horrendo crime de lesa-Majestade?” É sobre este clero que falaremos no

último capítulo.

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CAPÍTULO 3 – E A BATINA CONTRA A COROA: O CLERO

CONJURADO MINEIRO

3.1 – O clero e as minas rebeldes

... geralmente o caráter dos brasileiros é terem oposição aos vassalos de S. Majestade europeus; porque se persuadem que os nacionais do país têm mais talento e são mais dignos de governarem; e que os europeus lhes levam as riquezas que são devidas aos filhos deste continente e que eles desejam insaciavelmente, para sustentar o luxo e vaidade que entre eles é sem limite. (Ministro Martinho de Melo e Castro – 1791)

Minas é gente do Diabo! (Brito Malheiro do Lago denunciando os Inconfidentes)

Não é fora de propósito que a seiva das velhas tradições portuguesas de liberdade se tinham num certo sentido rejuvenescido no meio virgem da colônia, e que a independência da vida aventureira concorrendo para isso poderosamente, as ditas tradições se tivessem posto a reflorir. (Manuel de Oliveira Lima, Formação Histórica da Nacionalidade Brasileira)

A experiência tem mostrado em todos os séculos e em todas as partes que o mais eficaz meio de extinguir os tumultos populares é a resolução e a prontidão de os castigar porque cada qual vendo o exemplo em cabeça alheia procura eximir-se de que lhe caia na sua... (José de Carvalho e Abreu, Conselheiro Ultramarino de Portugal – Século XVIII)

Nem por pensamentos detraias teu rei, porque as mesmas aves levarão a tua voz e manifestarão teus juízos. (Frase do Rei Salomão dita aos Conjurados pelo Frei Raimundo de Penaforte)

Faça-se perpétuo silêncio! (D. João VI, sobre os autos dos réus eclesiásticos na Conjuração Mineira – 1792)

Minas Gerais, como vimos, em todo o decorrer do século XVIII, foi palco de diversas

revoltas e motins, tendo como motivos, dentre outros, a tributação excessiva, a ereção de casas de

fundição, crises de abastecimento e alta de preços dos produtos, desmando de contratadores e

funcionários régios, formas de distribuição de datas auríferas: em 1708, a revolta conhecida como

Emboabas; em 1713, na Vila do Carmo; em 1715, levantes nas minas de Pitangui e Serro Frio; em

1716, em Itaverava; em 1718 motins ocorreram em São João Del-Rei e na Barra do Rio das Velhas;

em 1719, em Catas Altas; em 1720, sob a liderança de Felipe dos Santos e frei Francisco do Monte

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Alverne 1500 homens se revoltaram na época do governo do conde Assumar; revoltas violentas

aconteceram nos anos de 1719 e 1722, quando os habitantes de Papagaio, no Rio das Velhas,

tentaram matar um contratador; levantes também ocorreram em Sabará (1724), Vila Rica (1725),

Pitangui (1726) e Caeté (1732); Revoltas nos sertões de São Francisco, em 1736, sob a liderança do

padre Antonio Mendes Santiago, liderando 200 homens armados e que chegaram a ameaçar o

governador.193

O que impressiona, contudo, é que todos estes motins e revoltas tiveram uma atuante

presença e participação de clérigos, ou melhor, praticamente todos os levantes e motins ocorridos

naquele contexto contaram com a participação de algum eclesiástico, dentre os quais muitos eram

regulares, mesmo depois da Carta Régia de junho de 1711, determinando a expulsão de todos os

regulares da região das Minas Gerais.

Muitos eclesiásticos nas Minas Gerais dos setecentos primaram não só por burlar o fisco,

como também por protestar contra vários desmandos régios. O governador de Minas Antônio

Albuquerque Coelho de Carvalho, em 1711, afirmava que:

A incontinência da gente monástica chegou ao ponto de se tornar necessário proibir-lhe a entrada na região. Frades de diversas ordens se fizeram mineiros, só preocupados em adquirir cabedais, ainda que por meios ilícitos, sórdidos e impróprios do seu estado: nunca sacerdotes mais perversos administraram o pasto espiritual.Os clérigos são revoltosos, que faltam com o pasto espiritual às ovelhas, que são ambiciosos e simoníacos, e que são rebeldes em pagar os quintos, pretendendo não serem a isto obrigados, e ocultando os escravos na repartição das bateias.194

A Coroa portuguesa tentou, sem sucesso, coibir a entrada de muitos religiosos nas Minas

Gerais ou determinar a expulsão dos mesmos que aqui se encontravam. Governadores como

Antônio de Albuquerque Coelho de Carvalho (1710-1713), Brás Baltasar da Silveira (1713-1717),

Pedro de Almeida, o Conde de Assumar (1717-1721) e Lourenço de Almeida (1721-1732), com

apoio metropolitano, através de ordens régias, tentaram sucessivas medidas de expulsão dos

clérigos; mas, isso não se concretizou de fato. Como bem afirmou Fritz Teixeira Salles “... parece

que a terra possuía não só minas de ouro, como também minas de padres”. 195

Antonil já alertara sobre a sedução que os eclesiásticos faziam aos povos, possuindo uma

“natural liderança” e insurgindo-se contra os pagamentos de impostos, acirrando revoltas. Na

193 Sobre estes e outros levantes e motins nas Minas setecentistas, ver: FERNANDES, Neusa, op. cit., p.72-76. 194 Apud CARVALHO, Cônego José Geraldo Vidigal de, op. cit., p. 18. 195 SALLES, Fritz Teixeira. Vila Rica do Pilar. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1982, p. 77.

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Instrução para o Governo da Capitania de Minas Gerais, o Desembargador José João Teixeira

Coelho afirmava textualmente que: “... os frades de diversas religiões, levados pelo espírito de

interesse, e não do bem das almas (...) entraram logo a perturbar o sossego dos povos,

aconselhando-os para não pagarem a Sua Majestade os direitos que lhe são devidos e decompondo

os governadores e ministros nos púlpitos, até que, ultimamente, passaram a ser os principais

chefes do levante de Minas”. [Grifos Nossos] 196

E era uma verdade. Em 1776, em Curvelo, por exemplo, vários clérigos e magistrados

foram acusados de crime de inconfidência, cristalizados em papéis sediciosos que estavam

diretamente relacionados com a expulsão dos jesuítas pelo Marquês de Pombal – considerado o

homem mais cruel do mundo _ e que comparava as ações do rei D. José I a do Imperador romano

Nero e, literalmente, o chamava de pateta. Quinze pessoas foram presas e remetidas ao Rio de

Janeiro e, depois, para Portugal. Contudo, a culpa foi considerada irrelevante e em 1778 foram

soltos e tiveram seus bens confiscados pelo Erário Régio quando das prisões, devolvidos. Os

sediciosos de Curvelo, denunciavam a expulsão dos jesuítas afirmando:

(...) que o dito soberano e monarca [D. José I] era qual outro, ou pior que Nero, que por demente, ou pateta, sujeitava o despotismo de seu governo ao homem mais cruel do mundo, qual era o Ilustríssimo, e Excelentíssimo Marquês de Pombal, que fora tirania grande o extermínio dos jesuítas, por serem uns homens inocentes, que não tinham delinqüido em coisa alguma, os mais doutos, e as luzes do mundo; as quais, com o dito extermínio, se haviam acabado, juntamente com as ciências, virtudes, e riquezas dele. 197

O governador de Minas, Antônio de Noronha afirmava, em Carta a Pombal datada de 16

de dezembro de 1776, que a sedição fora orquestrada por homens letrados, na maioria clérigos, que

apoiavam ostensivamente os jesuítas, criticavam a monarquia e tinham por cabeça o Vigário Carlos

José de Lima e que “... me horrorizam tanto as sacrílegas, blasfemas e sediciosas palavras que

temerariamente proferiu o clérigo”. 198

Assim, a fala do governador nos reintroduz na questão jesuítica. Os Soldados de Cristo,

como analisado anteriormente, monopolizavam a educação e a formação intelectual, tanto dos

clérigos quanto da elite nativa. A desconfiança do Estado Regalista implantado em Portugal na era

pombalina para com os jesuítas e seu modelo educacional na América Portuguesa era uma

realidade, chegando até o rompimento com essa ordem em 1759, onde, no decreto do Marquês lia-

196 Apud RODRIGUES, André Figueiredo, op. cit., p. 110. 197 Apud SOUZA, Laura de Mello e, 1999, p. 102. 198 Ib. Ibid., p. 105.

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se que o Estado iria “exterminar, proscrever e mandar expulsar dos seus Reinos e domínios os

religiosos da Companhia de Jesus”. 199 Para Pombal, os jesuítas viviam de maquinações e “sendo só

na exterioridade e aparência religiosos, eram na realidade os mais ferozes e detestáveis monstros”

[grifos nossos] 200 e mesmo depois de legalmente todos terem recebidos ordens de expulsão e

centenas seguirem para as prisões em Portugal, continuava o temor de que alguns ainda estavam em

terras brasileiras, disfarçados ou acobertados por parentes, amigos e ex-alunos, continuando “soltos

e espalhando as suas idéias sediciosas pelas colônias e nada se pode, ou deve omitir para desarmar

as suas diabólicas maquinações, de sorte que não tornem a renascer, ficando-lhe na nossa terra

quaisquer ocultas raízes”. [Grifos nossos] 201

Dauril Alden, analisando o período final do Brasil colonial, confirma tais idéias, pois,

segundo ele, a Coroa continuou empreendendo feroz campanha contra “antigos jesuítas, ex-

estudantes e amigos dos jesuítas, muitos dos quais cuidadosamente vigiados, presos ao mais leve

pretexto e confinados a cadeias do Brasil e em Portugal. Essa campanha foi inspirada pelos temores

de que os jesuítas espoliados estivessem conspirando com os inimigos para se infiltrar no Brasil

com propósitos sediciosos. 202

Pombal, oito anos depois da expulsão dos inacianos, em carta ao Vice-Rei do Brasil e

Governador da Capitania de Minas Gerais, Conde da Cunha, datada de 1767, afirmava claramente

que “... é certo que nessa Capitania [Rio de Janeiro] e na das Minas ainda há jesuítas ocultos e

parentes, amigos e aderentes seus, como se tem visto pelas diferentes cartas que se tem descoberto.

Fazendo estas crer, que haverá muitas outras que se não puderam descobrir, donde resulta outra raiz

de sedição...” 203

Reiteramos, porém, que não podemos enfocar, unilateralmente, a presença de clérigos

como sendo sempre agentes revolucionários e cabeças de motins e rebeliões nas Minas Gerais ou

em outras capitanias da América Portuguesa. Em capítulo anterior, mencionamos que, de um modo

geral, os religiosos – a maioria funcionários régios dentro do regime de padroado – expressava a

justificativa ideológica do projeto colonial lusitano, a saber, uma teologia do messianismo e

expansionismo territorial e político de Portugal. Esse projeto “tinha como meta prioritária a

implantação de uma ordem política, econômica e social pautada nos critérios da dominação 199 Apud CARNAXIDE, Visconde de. O Brasil na administração pombalina. São Paulo: Cia Editora Nacional; Rio de Janeiro: MEC, 1979, p. 21. 200 Apud CATÃO, Leandro, op. cit., p. 34. 201 Id. Ibid., p. 35. 202 ALDEN, Dauril. O período final do Brasil colônia, 1750-1808. In: BETHEL, Leslie. História da América Latina. (América Latina Colonial), v. II. São Paulo: EDUSP, 1999, p. 527. 203 Apud CATÃO. Leandro, op. cit., p. 52.

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colonial, tendo como pressuposto fundamental o conceito de superioridade racial e cultural dos

habitantes da Europa Ocidental Cristã ” e para tal tarefa “a instituição eclesiástica (...) foi utilizada

amplamente (...) constituindo o pensamento católico por ela veiculado o principal instrumento

ideológico para garantir a ordem e a estabilidade da sociedade colonial.” 204 Enquanto instituição e

principal agente no estabelecimento dessa concepção de sociedade, a Companhia de Jesus e outros

padres seculares, além, é claro, dos administradores coloniais, se irmanavam para dar suporte

ideológico ao Estado Português e manter “os povos em sossego”.

Contudo, “... a expressão religiosa pode atuar em várias direções, seja transmitindo as

formas sociais próprias do Estado lusitano, seja a domesticação da sociedade oprimida, legitimando

a dominação dos senhores detentores do poder, seja para libertar e conscientizar da situação que

viviam.” 205

Tivemos clérigos que seguiam essas duas direções nas Minas do século XVIII. Um pouco

antes da Inconfidência Mineira, o Vigário da Vila do Príncipe, fez um sermão, em 1785, na Igreja

do Carmo que horrorizou os poderosos, pois criticava abertamente as autoridades portuguesas, no

caso, personificada em um intendente chamado Meireles, ligado ao Governador-General Cunha

Menezes:

(...) Ministro de Satanás! Como aferrolhas míseros inocentes, neste horrível calabouço, cujo único crime foi terem cavado a terra os tesouros, que a Providência aí ocultou, para sustentarem a vida? Um dia, talvez em breve, a inocência clamará contra ti no tribunal divino, longe das paixões do mundo; e a maldição de Deus pesará sobre tua cabeça! 206

Por outro lado, quando a Rainha D. Maria I perdoou, por meio de Carta Régia, dez

inconfidentes mineiros condenados à forca, comutando a pena a degredos em África (com exceção,

como vimos, para Tiradentes!), o Frei José Carlos de Jesus Maria do Desterro, Guardião do

Convento de Santo Antônio, escreveu, em 2 de maio de 1792, uma memória sobre a Conjuração de

Minas enaltecendo a Rainha, mostrando bem a ligação de muitos sacerdotes com o poder e com a

manutenção do status quo. Senão vejamos:

(...) Um perdão desses não é feito de causas ordinárias e comuns. É um ato livre de sumo poder e de suma piedade quando, felizmente, se unem na mesma pessoa de um sumo Imperante. É um triunfo da virtude colocada sobre o trono (...) Ah! Felizes desgraçados!

204 AZZI, Riolando, 1987a, op. cit., p. 227-228. 205 RODRIGUES, André Figueiredo, op. cit., p. 162. 206 Apud SANTOS, Joaquim Felício dos, op. cit., p. 148.

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Levantai as mãos ao céu e humilhai os corações aos pés de uma Rainha, que de tal sorte pôs em suas mãos a segurança do seu Reino, que lhe foi tão fácil perdoar-vos! (...) Tudo floresce debaixo de seus olhos: armas, letras e comércio; e a verdadeira liberdade – que só nos podem dar as sábias e justas leis – nunca gozou como nos seus dias. (...) Perdoai-lhes poderosa e piedosa Rainha! Um perdão – que foi ato de Sua real complacência – que devia ser também objeto da nossa. Ofendem-se os bons vassalos sempre que o trono seja ofendido; mas quando o Trono perdoa, será bom o vassalo que não o estime? Viva a minha clementíssima, viva a minha piedosíssima Soberana!” [Grifos nossos] 207

Nessa mesma linha bajulatória e enaltecedora do Trono, temos o Frei Raimundo da

Anunciação Penaforte que assistiu os últimos momentos dos inconfidentes de 1789 – inclusive, a

execução de Tiradentes – e, ao se referir a D. Maria I, afirmava que a atitude da Soberana para com

os seus súditos era a de uma mãe para com os filhos: “ Que clemência! Que piedade! Só Vós,

Senhora, nascestes para governar. Que felicidade a nossa sermos vassalos de uma Rainha tão cheia

de comiseração de seu povo! Governai-nos, Senhora. Vós nos cativastes. (...) Resplandece nesta

clementíssima providência o inato amor que consagra a Soberana aos seus vassalos, qual termo de

mãe para os seus filhos...” 208

Contudo, é a presença, principalmente nas Gerais, no decorrer de todo o século XVIII, de

muitos “sacerdotes rebeldes”, que nos chama a atenção. Muitos deles não tinham por horizonte

incutir no povo a fidelidade, o amor e a lealdade aos Soberanos. Nelson Hungria afirma, de forma

contundente, que “... em todos os episódios marcantes da História de Minas, acha-se o traço

memorável de membros do clero, que renunciaram a comodidade de uma vida propícia ao

recolhimento, preferindo a ação militante de um nobre e comunicativo civismo à cumplicidade fácil

com a prepotência e a tirania”. 209. Outro estudioso do clero mineiro rebelde, o Cônego José

Geraldo Vidigal de Carvalho, vai ainda mais longe, pois para ele:

A cultura dos sacerdotes conjurados foi posta a serviço da revolução conscientemente assumida. Não se estranhe, pois, que a Conjuração Mineira tivesse uma ideologia, ostentasse princípios programáticos, objetivos políticos bem definidos, ideais econômicos e sociais condizentes com a realidade. Tratava-se de uma revolução em toda a sua profundidade, alicerçada em teorias que levavam fatalmente a uma modificação radical que instalaria a nova ordem social. No processo então desencadeado grande foi a

207 DESTERRO, Frei José Carlos de Jesus Maria do. Memória do êxito que teve a conjuração de Minas e dos fatos relativos a ela acontecidos nesta cidade do Rio de Janeiro desde 17 até 26 de abril de 1792. Rio de Janeiro, 2 de maio de 1792. In: ADIM, v. 9, p. 95-113. 208 PENAFORTE, Frei Raimundo da Anunciação. Últimos momentos dos inconfidentes de 1789, pelo frade que os assistiu em confissão. Rio de Janeiro, provavelmente escrito em 30 de junho de 1792. In: ADIM, v. 9, p.162-184. 209 HUNGRIA, Nelson. O clero e a civilização brasileira. In: TRINDADE, Raymundo. Breve notícia dos Seminários de Mariana. Mariana (MG): Edição da Arquidiocese de Mariana, 1951, p. 121.

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cooperação dos sacerdotes, que se tornavam, desta forma, verdadeiros termômetros da situação. 210

Embora ambas posições nos pareçam muito exageradas, podemos afirmar que alguns

elementos do clero, por suas formações, estudos, inserções e influências na realidade e no cotidiano

de vilas e sertões nas Minas Gerais, no século XVIII, poderiam estar mais aptos a captar e desejar

um sentido de mudança nas relações entre os colonos e a Metrópole, quer através de rearranjos e

reocupações dos postos de mando para a elite local – ainda dentro dos quadros do sistema colonial

– ou, na impossibilidade dessa via, lutar por um rompimento, visando um governo autônomo, pela

via monárquica ou republicana.

É importante salientar que a Inconfidência Mineira pode ser associada tanto às rebeliões

ocorridas anteriormente na capitania de Minas Gerais, quanto à Restauração Portuguesa de 1640, a

independência das treze colônias inglesas da América do Norte, ou a ideologia ou ideologias do

século das luzes. O que nós temos que reconhecer é que os inconfidentes beberam, também, em

fontes ibéricas. Alguns conjurados eram fiéis funcionários da Coroa Portuguesa e as suas

reivindicações partiam mais do claro desrespeito e desmandos dos governadores às leis que regiam

o convívio dos povos sob a Monarquia, a qual, por sua vez era pensada como garantia de bem

comum. Assim, um elemento doutrinário que animava alguns vassalos ciosos dos seus direitos era a

teoria da soberania popular desenvolvida pela Segunda Escolástica, notadamente pelo jusfilósofo

espanhol Francisco Suárez.

Para se entender essas influências, temos dois grandes conjuntos de documentos existentes

sobre a conjuração: os Autos de Devassa da Inconfidência Mineira que, em segunda edição, veio a

público entre 1976 e 1983, e o importantíssimo documento intitulado Anno de 1791/ Autos Crimes/

Juízo da Comissão/ Contra os Reos Ecclesiásticos/ da Conjuração Formada em Minas Gerais, que

só veio a público no Brasil em 1952, editado pelo Anuário do Museu da Inconfidência de Ouro

Preto.

Os Autos de Devassa tratam dos trâmites judiciais ou devassas que ocorreram em Minas

Gerais (duas devassas) e, também, na Capitania do Rio de Janeiro (uma devassa). Esses

documentos nos deixam entrever as falas dos acusados, dos seus inquiridores, das testemunhas

arroladas e dos delatores. O cineasta Oswaldo Caldeira, que mergulhou nos Autos de Devassa para

escrever e dirigir o filme Tiradentes, assim define o conjunto de documentos:

210 CARVALHO. Cônego José Geraldo Vidigal de, op. cit., p. 38.

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(...) sua forma é sinuosa, barroca e labiríntica em que a trama se desenvolve, em idas e vindas, afirmativas e desmentidos, mentiras e verdades, formação e decomposição. Neste jogo de palavras vai se tecendo destinos, traçando a tessitura da absolvição ou da morte, pois é sempre ‘instado ele, Respondente, que dissesse a verdade que parecia ocultar em suas respostas...’ 211

Os Autos Crimes Contra os Réus Eclesiásticos versam sobre os acórdãos relativos aos

sacerdotes implicados no movimento, a defesa do advogado Dr. José Oliveira Fagundes e a

sentença final dos juízes. Contudo, o processo deveria ficar em separado, permanecendo secreto. A

sentença deveria ser lavrada e remetida diretamente à Rainha para decisão final. Os padres

inconfidentes seriam remetidos à Corte debaixo de segura prisão com a sentença contra eles

proferida, para a rainha determinar o que melhor lhe parecesse. Neste ínterim, a Rainha

enlouquecera e seu filho, D. João VI, foi apresentado aos autos dos réus eclesiásticos e os

despachou com a seguinte frase: “Faça-se perpétuo silêncio”. 212 O Ministro Melo e Castro guardou

os autos em seu arquivo particular e, após seu falecimento, em 1795, o processo ficou inacessível.

Só foi reencontrado em 1950 (estava no arquivo particular de um dos descendentes do ministro de

D. Maria I) e publicado, neste mesmo ano, em Portugal, pelo historiador Ernesto Ennes. Os

originais foram a leilão, realizado em Londres, na famosa Casa de Sotheby`s, e arrematados pelo

governo brasileiro, em 1980, e hoje encontram-se guardados no Museu da Inconfidência em Ouro

Preto. 213 Esse documento veio preencher uma lacuna imensa no que tange a Inconfidência Mineira

e o clero sedicioso, pois descortina o que aconteceu com cada um deles.

Cabe saber, portanto, que ideologia ou ideologias, origem sócio-econômica, posição

social, fatores de ordem política, cultural e entendimento teológico-filosófico atuaram no sentido de

fazer surgir, nas Minas Gerais do século XVIII, e especificamente no processo histórico conhecido

como Inconfidência Mineira, sacerdotes conjurados e predispostos à uma ação contra formas de

dominação colonial – visando reformas ou mesmo o rompimento com a Metrópole – e a cometerem

o “horrendo crime de lesa-Majestade”.

3.2 – Padres inconfidentes: o que anda nas cabeças e nas bocas?

211 CALDEIRA, Oswaldo, op. cit., p. 24. 212 JARDIM, Márcio, op. cit., p. 289. 213 TRINDADE, Raymundo. Arquidiocese de Mariana: subsídios para a sua história. 2. ed. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1953-1955, p. 61-67.

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O vasto empório das douradas Minas Por mim o falará; quando mais finas Se derrama as lágrimas no imposto De uma capitação, calam o desgosto De um país decadente... (Cláudio Manoel da Costa – Epicédio I)

Que fez a Natureza Em pôr neste país o seu tesouro, Das pedras na riqueza, Nas grossas minas Abundantes de ouro, Se o povo miserável? (Alvarenga Peixoto - Canto Genetlíaco )

O povo que produz ele mesmo sua riqueza, sem auxílio algum, pode também autogovernar-se (Abreu Vieira – Inconfidente Mineiro)

Ora, falava-se em liberdade, posto que tardia, mas falava-se; e é sempre perigoso falar-se em liberdade (João Camilo de Oliveira Torres - História de Minas Gerais)

Deus não me mate até ver o fim desta tragédia! (Cônego Luís Vieira da Silva, padre inconfidente)

Nove eclesiásticos estavam envolvidos no movimento de inconfidência, sendo que destes

apenas cinco foram encarcerados, inquiridos, processados e condenados. Os outros clérigos apenas

foram ouvidos como testemunhas no processo. Os religiosos diretamente envolvidos – Cônego Luís

Vieira da Silva, Padre Carlos Correia de Toledo e Melo, Padre José da Silva e Oliveira Rolim,

Padre Manoel Rodrigues da Costa e Padre José Lopes de Oliveira - não formavam um grupo

homogêneo, apesar de serem julgados em bloco no processo crime e na condenação. Em comum,

eles eram homens de posses e/ou ocupavam cargos de relevo na sociedade mineira. Somente a

formação clerical deles – que é, sem dúvida, relevante – não basta para explicar o envolvimento na

conjuração. Exceto o Cônego Luís Vieira – que vivia do sacerdócio e como lente no Seminário de

Mariana e com poucas posses – os demais eram homens muito ricos e influentes e mais voltados às

suas atividades leigas, às atividades seculares, do que religiosas, dedicando-se a diversos afazeres:

fazendeiros, mineradores, contrabandistas, usurários, estalajadeiros etc. José Ferreira Carrato

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afirmava que “... os padres foram homens de batina e, na maioria das vezes, o sacerdócio não era

um apostolado e, sim, uma profissão como outra qualquer”.214

Uma primeira coisa que chama a atenção no pensamento dos conjurados – clérigos ou não

– é a percepção do potencial de riqueza da Capitania de Minas Gerais em contraposição com a

pobreza da maioria dos mazombos, tal fato se devendo à espoliação colonial, ao arrocho fiscalista

metropolitano. A dimensão da liberdade, nas Minas setecentistas, estava intimamente ligada ao

desejo de riquezas, de possuir sempre mais cabedais e de se adquirir, em conseqüência, o comando

do poder político local. “A liberdade sonhada pelos inconfidentes se inscreveu nessa imbricação,

transitando do econômico para o político, envolvendo a oposição às diretrizes governamentais que

vinham de Lisboa e que tinham nas autoridades coloniais seus executores”. 215

A dimensão da liberdade, portanto, estava intimamente ligada ao fim da pobreza e a

realização de um potencial de riqueza. Isso fica claro nos depoimentos de Tiradentes:

(...) Sempre lhe ouvia ao dito Joaquim José exagerar a beleza, fertilidade e riqueza do país de Minas Gerais, e que por estes motivos podia bem ficar independente (...) que os mazombos também tinham valimento e sabiam governar; e que dando a terra tantos haveres, se achavam pobres por lhe tirarem tudo para fora, mas que haviam de pôr em liberdade. (...) Que este país de Minas Gerais era riquíssimo, mas que tudo quanto produzia lhe levavam para fora sem nele ficar coisa alguma do tanto ouro que nele se extrai; que os quintos não deviam também sair (...) que havia pouco se tinha despedido deste país um General carregado de dinheiro, e que ai vinha já outro fazer o mesmo; e que estes que assim especulavam este continente se não recordavam o que sucedeu ainda de fresco na América Inglesa...” 216

Os padres também partilhavam da idéia de que só a condição de colônia podia explicar a

pobreza e a miséria em meio ao grande potencial de riqueza da Capitania de Minas Gerais. As

críticas feitas na Europa, pelo pensamento ilustrado ao absolutismo assumiram, nas Minas Gerais,

dos setecentos um sentido de crítica ao sistema colonial. O iluminismo chegou às Minas a partir da

segunda metade do século XVIII, principalmente através de livros contrabandeados e do retorno de

vários brasileiros que estudavam nas universidades européias. Clérigos e poetas reuniam-se em

“encontros literários” – como os que ocorriam nas casas de Tomás Antônio Gonzaga, Alvarenga

214 CARRATO, José Ferreira. As Minas Gerais e os primórdios do Caraça. São Paulo: Cia Editora Nacional, 1963, p. 90-91. 215 VILLALTA, Luiz Carlos. Liberdades imaginárias. In: Artigo a partir da Conferência “A invenção da Liberdade”. Rio de Janeiro: Prefeitura do Rio de Janeiro, Artepensamento e UFRJ, 10 de outubro de 2000a , p. 3-5. 216 ADIM, v. 1, p. 124, 173-174 e 189-190.

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Peixoto e Cláudio Manuel da Costa – para lerem seus poemas e, principalmente, discutir idéias

francesas e os recentes acontecimentos na América Inglesa.

Além dessas claras influências, os conjurados entrecruzaram tendências outras, pois nas

Minas, as luzes conjugaram-se com as tradições histórico-culturais luso-brasileiras, com destaque

para a Segunda Escolástica, e, em particular, para os escritos de jesuíta Antônio Vieira, cujas obras

não mais podiam circular no Brasil a partir de 1768, por serem consideradas sediciosas pela Real

Mesa Censória, criada na época pombalina. O anti-despotismo e a consagração do direito dos povos

de resistirem à tirania, pontos tão caros à ilustração – notadamente em Rousseau e Raynal –,

encontraram em Portugal e na Espanha um substrato juspolítico e literário anterior – isto é, a teoria

corporativa e alguns movimentos políticos que abalaram os tronos. 217

Um dado importante é que, na forma mais revolucionária (rompimento total com Portugal

e conquista da autonomia) ou reformista (manutenção dos vínculos entre as capitanias e Portugal,

mas com liberdades comerciais, revisão dos impostos e com os “homens bons” inseridos no poder

político local), tratava-se de uma luta contra a tirania, entendida naquele contexto como dominação

e espoliação colonial. Muitos clérigos, inclusive Luís Vieira e Manoel Rodrigues da Costa, não

descartaram a possibilidade de o Brasil ser a sede de “um Império florente”, visando acabar com a

tirania sem ferir os direitos dinásticos lusitanos, ou melhor, procuravam uma conciliação entre

“soberania popular” e os direitos da dinastia bragantina, bem ao feitio que as teorias corporativas de

poder assumiam em terras lusitanas. 218

Os conjurados mineiros, notadamente os clérigos, mostravam, em suas leituras, posse de

livros e debates, bastante heterodoxos em termos políticos, pois leram Antônio Vieira, discutiam os

acontecimentos históricos ligados à Restauração Portuguesa de 1640, tiveram contato com os

“abomináveis princípios” iluministas (John Locke, Montesquieu, Rousseau, Voltaire, Mably,

Diderot, Condilac, Robertson e, principalmente, o Abade Raynal, dentre outros) e discutiam, às

vezes abertamente e com grande admiração, os acontecimentos ligados à independência dos Estados

Unidos.

Do padre Antônio Vieira, este também muito influenciado pela Segunda Escolástica,

conjurados como o poeta Tomás Antônio Gonzaga, o Alferes Tiradentes e o Pe. Luís Vieira

217 VILLALTA, Luiz Carlos. O que se fala e o que se lê: língua, instrução e leitura. In: NOVAIS, Fernando A. & SOUZA, Laura de Melo e. (Org.). História da vida privada no Brasil, cotidiano e vida privada na América portuguesa. São Paulo: Cia das Letras, 1997, p. 331-385. 218 Para saber mais ver: VILLALTA, Luiz Carlos. 2000b, p. 60. XAVIER, Ângela Barreto e HESPANHA, Antônio Manuel. A representação da sociedade e do poder. In: HESPANHA, Antônio Manuel (Coord.), História de Portugal. Lisboa: Estampa, 1998, p. 128.

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assimilaram idéias sobre um bom e justo governo. O jesuíta Antônio Vieira, autor de muitas obras e

de belíssimos e famosos Sermões, defendia “... a concórdia das gentes e ordens do Reino; a

suavidade e proporcionalidade dos impostos, chamando atenção para os excessos tributários

cometidos na América; a honestidade e a proficiência dos ministros; e a exemplaridade dos atos do

governo; o respeito à religião católica; a distribuição justa de prêmio e castigos”. 219

Tomás Antônio Gonzaga, nas famosas “Cartas Chilenas”, anteriormente analisadas,

delineia as linhas gerais de um governo coerente: o governante não pode tudo e deve respeitar as

leis e as tradições, aplicar justos impostos e buscar a felicidade do reino e dos vassalos. O contrário

disso seria a tirania. Nas reuniões dos inconfidentes, o poeta (que estudara no colégio jesuítico da

Bahia e em Coimbra formou-se em leis), que estava mais para reformador que revolucionário, pois

abordava a questão do despotismo e da tirania, sem abraçar com veemência o direito de resistência

e insurgência como legítima, surpreende quando, sobre a questão de se matar ou não o Governador-

General Visconde de Barbacena disse que “... era a primeira cabeça que se havia de cortar porque o

bem comum prevalece ao particular e que os povos que estivessem neutros, logo que vissem o

seu General morto, se uniriam ao seu partido”. [Grifos nossos] 220

O jesuíta Antônio Vieira, em um sermão proferido em 2 de julho de 1640, criticava a

administração portuguesa na Bahia, falava dos pesados tributos que iam para Portugal, afirmando

que ministros-governadores, de três em três anos, aqui desembarcavam e que agiam como nuvens,

chupando as riquezas do Brasil, que iam desaguar lá em Lisboa. Esses representantes da Coroa não

faziam “mais que chupar, adquirir, ajuntar, encher-se e, em vez de fertilizarem nossa terra com a

água que era nossa”; tudo ia para fora. Essa água era retirada das “lágrimas do miserável” e

propunha a restauração do Brasil: tudo que se retirar do Brasil, com o Brasil se há de gastar”. 221

Ora, o Alferes Joaquim José da Silva Xavier lera Vieira, ou de suas idéias tomou

conhecimento e deu um tom, de acordo com a sua realidade e circunstâncias, bem anticolonial, mas

mantendo uma semelhança impressionante com o texto do jesuíta, senão vejamos:

(...) era pena, que uns países tão ricos como estes estivessem reduzidos à maior miséria, só porque a Europa, como esponja, lhe estivesse chupando toda a substância, e os exmos. Generais de três em três anos traziam uma quadrilha, a que chamavam criados, que depois de comerem a honra, a fazenda, e os ofícios, que deviam ser dos habitantes, se iam rindo

219 Para saber mais ver: VILLALTA, Luiz Carlos, 2000b, op. cit., p. 60.; XAVIER, Ângela Barreto & HESPANHA, Antônio Manuel, op. cit., p. 128. 220 ADIM, v. 1, p. 94. 221 Apud VILLALTA, Luiz Carlos, 2000b, op. cit., p. 63-64.

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deles para Portugal (...) e os pobres filhos da América sempre famintos e sem nada de seu (...) [e pensar assim] não é levantar; é restaurar a nossa terra; que fazem de nós negros. 222

Contudo, foi a obra de Guillaume-Tomas François Raynal, o Abade Raynal, notadamente

a Histoire philosophique et politique des établissements et du commerce des européens dans les

deux Indes, notadamente a parte referente A Revolução da América e sobre O Estabelecimento dos

Portugueses no Brasil 223 que alcançou de modo decisivo e contundente o pensamento político dos

letrados brasileiros, desde o fim do século XVIII.

O abade Raynal (1713 e 1796) estudou no Colégio dos jesuítas de Pezenas, onde foi

ordenado padre. Lecionou teologia e serviu como vigário em Paris. Em 1748, abandonou a

Companhia de Jesus, seduzido pelas idéias iluministas, passando a escrever para o jornal Mercure

de France e a participar dos círculos de intelectuais enciclopedistas, como Holbach, Helvétius e

Denis Diderot. Em 1770, é editada a Histoire des deux Indes, tornando-se um explosivo sucesso.

Na edição de 1781 temos a grande contribuição de Denis Diderot, radicalizando a obra em vários

aspectos, ou seja, são desse pensador iluminista indiscutivelmente, as passagens mais explosivas,

inflamadas e radicais do texto. A obra também possui contribuições e/ou transcrições de outros

grandes pensadores, a saber: Thomas Paine, de Pauw, Voltaire, Montesquieu, Helvétius, Holbach e

Rousseau. Desta forma, podemos afirmar que a obra, escrita na verdade por várias mãos, tratava-se

de um verdadeiro caleidoscópio da vanguarda ilustrada, atacando, de forma veemente, a Igreja e a

intolerância religiosa, as guerras genocidas de conquistas, a escravidão, o comércio de negros, o

governo monárquico centralizado e as espoliações colonialistas. Em suma, o Antigo Regime era o

principal alvo. 224

A Revolução da América ganhou relevância e autonomia no conjunto da Histoire des Deux

Indes, pois claramente estende às colônias o direito de se rebelarem contra suas metrópoles, a

buscarem a independência, além de indicar as formas mais coerentes para se organizarem

politicamente como nações livres. Nas Minas setecentistas, essa parte da obra, do ponto de vista

político-ideológico, teve um grande impacto. A outra parte, que se referia ao Estabelecimento dos

Portugueses no Brasil, não chegava a propor o rompimento com Portugal, mas depreciava nossa

222 ADIM, v. 5, p. 117; v. 1, p. 183 e 229. 223 Ver RAYNAL, Guillaume- Thomas François. A Revolução da América. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1993 e O Estabelecimento dos portugueses no Brasil. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional; Brasília: Editora da UnB, 1998. 224 Ver o brilhante prefácio dos historiadores Luciano Raposo de Almeida Figueiredo e Oswaldo Munteal Filho à edição brasileira d`A Revolução da América, de Abade Raynal, op. cit., p. 1- 35.

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metrópole, condenava seu atrelamento à Inglaterra, defendia o fim do exclusivo colonial e propunha

a abertura dos portos brasileiros a todas as nações.

Muitas bibliotecas mineiras tinham as obras de Raynal, mas, mesmo quando isso não

ocorria, as “idéias subversivas” do abade eram motivos de discussões entre os estudantes brasileiros

que retornavam da Europa e os que aqui se achavam. Nenhum dos eclesiásticos envolvidos na

Inconfidência Mineira possuía obras de Raynal, mas, mesmo assim, tiveram acesso à suas leituras,

norteando-os, politicamente, em suas ações, à luz de suas próprias experiências e realidades.

O Dr. José Pereira Ribeiro, bacharel formado em leis pela Universidade de Coimbra e

figura importante em Mariana, possuía a Histoire des Deux Indes e, também, o inconfidente Álvares

Maciel trouxera da Europa esta e outras obras consideradas muito perigosas e, portanto, proibidas

na colônia. O Cônego Vieira da Silva teve acesso a Raynal através do empréstimo do Dr. José

Ribeiro e a posse desse livro serviu como peça incriminatória quando de sua prisão: “... foi preso

Luís Vieira, Cônego da Cidade de Mariana: dizem que sua culpa se limita a terem-lhe achado um

livrinho francês relativo ao levante desta terra, no qual se diz que podiam os habitantes viver sobre

si sem dependência do comércio para o nosso Reino, à imitação do que fizeram os americanos

ingleses (...) [e que] este Cônego “... praticava e lia com os outros a história do levante da América

Inglesa e era o dito cônego o mestre de aula daquelas práticas”. 225

O também inconfidente Domingos Vidal Barbosa, companheiro de viagem de José Pereira

Ribeiro, tornou-se um leitor empolgado e um grande divulgador das idéias de Raynal. Num dos

inquéritos disse que “sabia de cor algumas passagens do mesmo livro” 226

Contundente seria Padre Toledo ao afirmar que “... havia um livro de um autor francês

com um doutor em Mariana, o qual no fim trazia o modo de se fazerem levantes e que tinha sido

mandado queimar por sua Majestade, que era cortando a cabeça ao governador e fazendo uma fala

ao povo repetida por um sujeito erudito.” 227 Nada disso se encontra, de fato, na obra de Raynal. Em

momento algum ele ensina a fazer levantes e, sim, defende o direito à rebelião dos povos e que a

América Portuguesa poderia ser uma das mais felizes colônias do globo se fossem executadas

reformas que obedecessem os princípios iluministas da economia de mercado, sem as amarras do

mercantilismo e do exclusivo colonial. Toledo e outros conjurados leram ou discutiram suas idéias à

luz de suas próprias realidades e sonhos, apropriando-se, de forma inventiva, das idéias ali

expressas, visando nortear suas ações políticas, tendo em vista suas próprias experiências nas Minas

225 ADIM, v. 9, p. 36 e 144. 226 ADIM, v. 2, p. 67. 227 ADIM, v. 5, p. 149-150.

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Gerais. Tanto assim que o pensador francês era tido como um escritor de “... grandes vistas, porque

prognosticou o levantamento da América Setentrional, e que a Capitania de Minas Gerais com o

lançamento do tributo da derrama, estaria agora nas mesmas circunstâncias.” 228

As passagens mais explosivas da obra A Revolução da América incendiavam os corações e

as mentes dos conjurados. Como não se deixar influenciar, na opressiva realidade de dominação

colonial, com passagens como estas:

(...) a história do homem civilizado é a história de sua miséria. Todas as páginas são tingidas de sangue, umas de sangue dos opressores, outras do sangue dos oprimidos. (...) Se os povos são felizes sob a forma de seu governo, eles o conservarão. Se são infelizes, não serão as vossas opiniões nem as minhas – será a impossibilidade de sofrer e por mais tempo que irá determiná-lo a mudá-las, o movimento salutar que o opressor chamará de revolta, ainda que não seja mais que o exercício legítimo de um direito inalienável e natural do homem que se oprime, e mesmo do homem que não é oprimido. (...) A autoridade de uma nação sobre outra só pode ser fundada sobre a conquista, o consentimento geral, em condições propostas e aceitas. A conquista não vincula mais que o roubo. O consentimento dos ancestrais não se pode obrigar os descendentes. E não há condição que não seja exclusiva do sacrifício da liberdade. A liberdade não se troca por nada, porque nada tem um preço que lhe seja compatível. 229

Contudo, para o objetivo do nosso trabalho, interessa o chamamento de Raynal aos

clérigos do Novo Mundo, incitando-os a colocarem a Pátria no Altar e, cada um a sua maneira,

como veremos, dentre os cinco clérigos envolvidos na Inconfidência Mineira, procurou atender a

esse pedido:

Americanos! Que se veja incessantemente vossos sacerdotes nos seus púlpitos, com as mãos cheias de coroas, e vos mostrando céus abertos. Sacerdotes do Novo Mundo, é chegada a hora; expiai o antigo fanatismo que devastou e desolou a América, por um fanatismo mais feliz, nascido da política e da liberdade. Não, não estareis enganando os vossos concidadãos. Deus, que é o princípio da justiça e da ordem, odeia os tiranos. Deus imprimiu no coração dos homens este amor sagrado da liberdade; Ele não quer que a servidão avilte e desfigure sua mais bela obra. Se a apoteose é destinada ao homem, é, sem dúvida, àquele que combate e morre por seu país. Entronizai a sua imagem nos vossos templos, aproximai-a dos altares. Será o culto da pátria. Criai um calendário político e religioso, onde cada dia seja marcado pelo nome de algum desses heróis que tenha derramado seu sangue para vos tornar livres. Vossa posteridade os lerá um dia com um santo respeito, e dirá: eis aqueles que libertaram a metade do mundo e que, trabalhando

228 ADIM, v. 5, p. 173. 229 RAYNAL, Guillaume-Thomas François, 1993, op. cit., p. 75-78.

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pela nossa felicidade quando ainda não éramos nascidos, impediram que, ao nascermos, ouvíssemos o ruído de correntes retinir sobre o nosso berço.[Grifos nossos] 230

Outra grande e inquestionável influência na formação ideológica dos padres conjurados foi

a conquista da independência pelos norte-americanos e, também, o conjunto de suas leis

constitutivas. O inconfidente Vicente Vieira da Mota, em um de seus depoimentos, foi taxativo: “...

havia nos filhos da América tal gosto e complacência em ler a história da liberdade das Américas

Inglesas, que lhe parecia que eles tivessem outra tal ocasião, a abraçariam”. 231 E foi mais longe ao

afirmar que estava “... a refletir nas atuais circunstâncias em que se achavam as Minas, notando ele,

testemunha, a satisfação que mostravam os nacionais delas do que havia acontecido na América

Inglesa (...) que se eles estivessem igual oportuna ocasião não deixariam de lançar mão dela,

aproveitando-a para se erigirem também em uma república...” 232

O estudante brasileiro na Europa José Joaquim da Maia afirmava que: “... os brasileiros

consideram a revolução da América do Norte como precursora da que eles desejam: é dos Estados

Unidos que esperam todo socorro. As maiores simpatias se desenvolvem entre eles para conosco”. 233

Em uma carta-denúncia, datada de 15 abril de 1789 ao Visconde de Barbacena, o Tenente-

Coronel Basílio de Brito Malheiro Lago asseverava que “... fiquei com uma desconfiança, muito

grande porque sempre conheci, desde que vim para a América [portuguesa], nos nacionais dela,

intenso desejo de se sacudirem fora da obediência que devem prestar aos seus legítimos Soberanos,

mas antes patenteiam uma interior vontade de fazerem do Brasil uma república livre, assim como

fizeram os Americanos Ingleses...” 234

O Cônego Luis Vieira da Silva seria delatado pois “... sempre se via empregado aquele

Cônego dos sucessos da América Inglesa, lendo a sua história; a uma natural complacência no êxito

que os ditos rebeldes americanos tiveram...” 235

Um livro explosivo, nas Minas Gerais, no final do século XVIII, foi a Recueil de loix

constitutives des Etats-Unis de l`Amérique, uma edição em francês, publicada na Suíça em 1778 e

que foi trazido da Europa pelo bacharel José Pereira Ribeiro e outro volume pelo inconfidente

Álvares Maciel. Este último, foi “... perguntado se tinha a História da América Inglesa e as Leis

230 Idem, p. 84. 231 ADIM, v. 5, p. 410. 232 ADIM, v. 1, p. 158. 233 Apud PERRIN, Dimas. Inconfidência Mineira. Brasília: Coordenada Editora de Brasília, 1969, v. II, p. 22. 234 ADIM, v. 1, p. 97. 235 ADIM, v. 1, p. 158

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Constitutivas dos Estados Unidos, o Respondente disse que tinha comprado por dois xelins a

História da América Inglesa, em Birmingham. E cuidando que tinha feito grande compra...” 236 Foi

esta obra que Maciel deu de presente para o Alferes Tiradentes e que ele, mesmo possuindo um

dicionário português-francês, vivia pedindo aos mais letrados para traduzir certos trechos. Isso fica

claro no depoimento dado por Francisco Xavier Machado, em 27 de junho de 1789:

(...) e lhe mostrara um livro escrito em francês, pedindo-lhe que lhe quisesse traduzir um capítulo dele, que vinha a ser do dito livro em francês A Coleção das Leis Constitutivas dos Estados Unidos da América (...) e também sabe ele, testemunha, que o mesmo alferes procurou o Sargento-Mor Simão Pires Sardinha (...) levando-lhe uns livros ingleses para lhe traduzir certos lugares que também diziam respeito a coisas da América.237

O Sargento-Mor Simão Pires Sardinha também foi ouvido e confirmou que “... o mesmo

Alferes lhe tinha levado, um daqueles dias, certo livro que relatava como sucedera o levante da

América Inglesa, para lhe aclarear certas coisas...” 238

Assim, homens como o Alferes Tiradentes, o Vigário da Vila de São José, Padre Toledo e

o Cônego Vieira, lente do Seminário de Mariana, tomaram contato com a Coleção das Leis

Constitutivas dos Estados Unidos e por ela se deixaram influenciar:

(...) Todos os homens nasceram igualmente livres e independentes, e têm direitos certos, naturais, essenciais e inalienáveis, entre os quais se devem contar o direito de usufruir da vida, o da liberdade, o de se defender, o de adquirir uma propriedade - possuindo-a e a protegendo - enfim de buscar e obter sua felicidade e sua segurança. (...) Toda autoridade reside e se mantêm no povo e em nome dele é emanada, pelo que todos os oficiais do governo revestidos de autoridade, seja legislativa, seja executiva, são seus mandatários, seus servidores e lhe devem contas a todo tempo. (...) O povo tem a liberdade de falar, escrever e publicar seus sentimentos; em conseqüência, a liberdade de imprensa jamais deve ser restringida! 239

É interessante notar que a própria Coroa lusitana autorizava e facultava aos teólogos a

posse e leitura de obras proibidas de teologia e, também, dos escritos “libertinos” dos “filósofos

ilustrados” para que pudessem, conhecendo os conteúdos dessas “obras subversivas”, melhor

combater as idéias que continham. 240 Vimos que isto não foi o que sempre ocorreu, pois, pelo

menos para alguns religiosos, tal conhecimento representou um novo olhar sobre o mundo e sobre a 236 ADIM, v. 2, p. 282. 237 ADIM, v. 1, p. 189-190. 238 ADIM, v. 2, p. 75. 239 ADIM, v. 3, p. 66-67. 240 VILLALTA, Luiz Carlos, 1997, op. cit., p. 371.

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realidade colonial, conduzindo-os a participar de levantes e, não raro, a se erigirem em líderes ou

cabeças dos mesmos.

Um dado relevante para o nosso estudo é analisar a formação educacional ou intelectual do

clero mineiro. A maioria dele ou se formou pela Universidade de Coimbra ou, aqui no Brasil, no

famoso Seminário de Mariana.

A Universidade de Coimbra exerceu papel decisivo na divulgação das idéias da Segunda

Escolástica e, posteriormente, também foi centro irradiador de ideais iluministas. É importante notar

que as luzes na Península Ibérica tiveram uma dimensão essencialmente católica e foi nesse

ambiente que se formou parte da elite cultural mineira – clérigos e leigos – que amadureceria

exatamente na época da inconfidência. Foi justamente na Metrópole, junto aos educadores, em boa

parte jesuítas – pelo menos até a derrocada destes frente às medidas pombalinas – que se plasmou a

formação educacional e ideológica de muitas gentes das Gerais.

Em 6 de dezembro de 1745, foi criado o Bispado de Mariana e, em 1748, chegou o

primeiro bispo, dom Frei Manuel da Cruz, cuja primeira grande iniciativa foi iniciar a construção do

Seminário Menor de Nossa Senhora da Boa Morte, o Seminário de Mariana, obra iniciada em 20 de

dezembro de 1750 e concluída entre 1780-1792, já na gestão de dom Frei Domingos da Encarnação

Pontével. O objetivo primordial desse Seminário era formar o clero local, mas, também, dispunha

de ensino público, visando preparar leigos para ingressarem nas universidades européias,

notadamente na de Coimbra. 241

O bispo dom Frei Manuel da Cruz tinha a intenção de entregar a orientação pedagógica do

Seminário aos jesuítas e, para isso, convidou para ser reitor o célebre jesuíta Gabriel Malagrida (que

não pôde assumir o cargo e que pouco depois seria a última vítima da Inquisição em Portugal na

época pombalina!) e, para lecionar, o padre jesuíta José Nogueira, que durante muito tempo atuou

como o único professor desse estabelecimento de ensino.

Segundo o Cônego José Geraldo Vidigal de Carvalho, em Mariana, onde se “ministravam

um estudo com embasamento humanístico, formou-se um clero que educou o povo de Minas

durante décadas. Dela muitos partiram para se formarem em Coimbra. Os professores e alunos do

Seminário, sem dúvida, possuíam contato com as novas idéias e fatos que ocorriam na Europa e

América do Norte.” 242 Márcio Jardim afirmava que “ o Seminário de Mariana fervilhava de debates

intelectuais, que (...) eram forrados de extensa literatura revolucionária; o mesmo ambiente

241 Sobre o Seminário de Mariana ver TRINDADE, Raymundo, op. cit. 242 CARVALHO, Cônego José Geraldo Vidigal de, op. cit., p. 28.

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carregado que se notava nas universidades européias.” 243 É fato portanto que a elite mineira –

civil, mas, principalmente religiosa – ali se formou e passou a ocupar cargos relevantes dentro da

estrutura administrativa local. Contudo, como bem nos alerta Valdir de Oliveira Calixto “... não se

deve atribuir, de modo unilateral e idealista, a conscientização do clero mineiro às idéias que lá se

ensinava”, 244 pois o Seminário formou também muitos padres seculares que foram, essencialmente,

ortodoxos em termos religiosos e conservadores, em termos políticos.

Martinho de Melo e Castro, o poderoso Secretário da Marinha e dos Domínios

Ultramarinos Lusitanos, escreveu as famosas Instruções para o Visconde de Barbacena, visando

orientá-lo no governo da inquieta e, muitas vezes, insubmissa Capitania de Minas. Dentre as muitas

instruções, Melo e Castro propunha mudanças em relação aos eclesiásticos, notadamente reformas

nos seus direitos paroquiais:

(...) é certo que a mais indispensável obrigação que a Igreja impôs aos seus ministros, principalmente aos que têm cura d´almas, é a de ensinar aos povos os preceitos da lei que professam, pregar-lhes o Evangelho, administrar-lhes os sacramentos, e conduzi-los com zelo, desinteresse e regular comportamento de um bom e exemplar pastor, ao grêmio da Igreja de quem são filhos. Os párocos de Minas Gerais, porém, invertendo essa doutrina, a têm apropriado em grande parte aos seus reprovados e particulares interesses (...) de insuportáveis e forçadas contribuições debaixo do pretexto de direitos paroquiais, benesses e pés de altar com que os mesmos párocos obrigavam e obrigam aos seus fregueses a lhes contribuir. (...) E para tirar aos ditos párocos todo o pretexto de vexarem os povos, lhes conferiu [o governo de D. João V] da sua Real Fazenda a côngrua, ou ordenado, de 200$000 rs. por ano a cada um. (...) 245

Melo e Castro achava justo o povo contribuir para a cômoda e decente sustentação dos

seus párocos, mas que estes não deveriam abusar dos seus fregueses com excessivas e intoleráveis

contribuições e, que a Real Fazenda não mais pagaria duzentos mil réis por ano a cada pároco na

Capitania das Minas Gerais e sim cinqüenta mil réis e os restantes 150$000 seriam utilizados para

se apoiar outras tantas Igrejas e paróquias no Brasil mais necessitadas.

Logicamente que tal mudança não se constituiu em um fator decisivo para a participação

do clero na sedição de 1789, mas que deve ter causado certa inquietação nos círculos eclesiásticos

mineiros isso é inegável, principalmente se levarmos em conta que o custo de vida na Capitania de

Minas era altíssimo e os párocos passariam a receber muito pouco, bastando comparar com o soldo

243 JARDIM, Márcio, op. cit., p. 278. 244 CALIXTO, Valdir de Oliveira, op. cit., p. 71. 245 CASTRO, Martinho de Melo e. Instruções para o Visconde de Barbacena, Governador e Capitão-General nomeado para a Capitania de Minas Gerais. Lisboa, 29 de janeiro de 1788. In: ADIM, v. 8, p. 41-105.

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anual de um Alferes, como Tiradentes, que perfazia o montante de 300$000 e os religiosos

receberiam apenas 50$000 anuais de côngruas.

Melo e Castro, em outro ofício datado de 29 de setembro de 1790, admoestou

incisivamente o Visconde de Barbacena por não cumprir várias de suas Instruções e que isso

contribuiu decisivamente para a eclosão do movimento de 1789. Sobre o clero, foi cristalino: “(...)

enquanto os Párocos e o Clero procederem nessa Capitania na forma que os representam diferentes

queixas desses povos, que têm chegado à Real Presença (...) não é de admirar que dos mesmos

Párocos e Clero saíssem monstros tais como o Vigário da Vila de São José, Carlos Correia de

Toledo, o Cônego Luís Vieira, e o Padre José da Silva e Oliveira Rolim.” [Grifos nossos] 246

Mas como era a vida, a formação intelectual, os sonhos e as utopias, a inserção na

realidade sócio-econômica em Minas, a ligação com a religião e as posturas ideológicas desses

“monstros” a quem Melo e Castro se referia?

3.2.1 – Cônego Luís Vieira da Silva: “Malícias e temerárias maquinações de maldade”

O Cônego Luís Vieira da Silva nasceu em um pequeno lugarejo da Freguesia de Ouro

Branco, chamado Soledade, Termo de Vila Rica, em 1735. Aos quinze anos matriculou-se no

Seminário de Mariana, ali permanecendo por dois anos, afim de preparar-se para seguir para São

Paulo e cursar Filosofia e Teologia Moral no Colégio dos Jesuítas. Formou-se com 22 anos e, com

24, ordenou-se padre. Retornando a Mariana, passou a lecionar filosofia no mesmo Seminário que

estudara e ali atuaria como professor por 32 anos até ser preso como inconfidente em 22 de junho

1789. Em 1777, tornou-se vigário interino em São José Del-Rei, até passar o cargo ao Padre Carlos

Correia de Toledo. Tornou-se Cônego da Sé de Mariana a partir de 1781, ou seja, o responsável ou

líder espiritual de um cabido, o conjunto ou corporação de vários padres de uma diocese. Como

Cônego, podia angariar muito prestígio, mas não compensação material, pois um Cônego não

recebe côngruas. Também foi Comissário da Ordem Terceira de São Francisco de Assis de Vila

Rica, entre 1770 e 1783. Vivia, então, como professor e como religioso atuante, não exercendo

outras atividades laicas. Dos cinco clérigos diretamente envolvidos na conjuração mineira, era o que

possuía menos bens. 247

246 ADIM, v. 8, p. 311. 247 Para um panorama excelente sobre a vida do Cônego Luís Vieira da Silva ver: JARDIM, Márcio, op. cit., p. 276-290 e CARVALHO, Cônego José Geraldo Vidigal de, op. cit., p. 35-38.

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A historiografia é unânime em classificá-lo como um eclesiástico de grandes “luzes e

talento”. Para Eduardo Frieiro “das pessoas ilustres que se viram envolvidas no tenebroso processo

de inconfidência - poetas, eruditos, oradores, jurisconsultos e homens de ciência - nenhum tinha

mais sólida cabeça, nem mais forte personalidade, que o Cônego Luís Vieira da Silva”. 248 Márcio

Jardim afirma que o Cônego de Mariana “foi o maior líder da conspiração ao lado de Tomás

Gonzaga e que foi o criador do movimento, líder intelectual, coordenador, estrategista. Foi o fio

condutor de energias, o propagador da idéia, o ponto de referência e embasamento para todos os

principais líderes”. 249

Augusto de Lima Júnior enaltecia sua inteligência brilhante, afirmando que:

(...) foi talvez a maior cerebração de Minas, na época da Inconfidência e muito provavelmente, um dos primeiros a coordenarem o movimento libertador. (...) Homem de grande inteligência e vastíssima cultura espiritual, o Cônego Luís Vieira foi, sem dúvida, um dos organizadores e propagandistas de uma reação contra a Coroa portuguesa, preparando as idéias filosóficas iluministas e doutrinando os dirigentes das elites em sua época. 250

O Cônego José Geraldo Vidigal de Carvalho afirmava que Vieira foi:

(...) filósofo, historiador, orador, analista profundo, foi o revolucionário por excelência, anunciando um Brasil livre, modelado segundo as teorias iluministas que ele tão bem conhecia. A constituição da república brasileira sairia também de sua inteligência privilegiada, que já conjeturava há muito tempo como libertar e dar ao país segurança política. Imerso no processo de independência dos Estados Unidos, o Côn. Luís Vieira percebeu o desmoronar do colonialismo (...) Era, de fato, um eclesiástico de luzes e talento.251

Do clero inconfidente, a maior e mais famosa biblioteca pertenceu a Luís Vieira da Silva,

compreendendo 279 títulos e 612 volumes. 252 Como bem alertou Frieiro, o melhor na livraria de

Vieira não estava tanto na quantidade, se bem que impressionante para a época, mas na qualidade

248 FRIEIRO, Eduardo. Três sombras da inconfidência mineira. In: Revista Kriterion. Belo Horizonte, nº 25-26, 1953, p. 461. 249 JARDIM, Márcio, op. cit., p. 276 e 285. 250 LIMA JR, Augusto de, op. cit., p. 42-43. 251 CARVALHO, José Geraldo Vidigal de, op. cit., p.29-38. 252 Sobre a biblioteca de Vieira ver o já clássico: FRIEIRO, Eduardo. O diabo na livraria do cônego. Belo Horizonte: Livraria Cultura Brasileira Ltda, 1945. Mais recentemente, o historiador Luiz Carlos Villalta tem se debruçado e aprofundado estudos sobre o clero e a composição das bibliotecas: VILLALTA, Luiz Carlos. “O diabo na livraria dos inconfidentes”. In: NOVAES, Adauto (org.). Tempo e história. São Paulo: Cia das Letras; Secretaria Municipal de Cultura, 1992. Id. “Os clérigos e os livros nas Minas Gerais da segunda metade do século XVIII”. Acervo da Revista do Arquivo Nacional. Rio de Janeiro, jan-dez, 1995, nº 1-2. Id., 1997, op. cit.

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das obras reunidas. Carlos Guilherme Mota comunga dessa opinião, pois a biblioteca de Vieira

“estava recheada com a literatura mais crítica do Ocidente”. 253 E isso era uma verdade, pois sua

livraria estava recheada com os mais importantes autores da cultura ocidental. O Cônego possuía os

clássicos (Anacreonte, Catulo, Cícero, Demóstenes, Horácio, Júlio César, Ovídio, Petrônio,

Quintiliano, Sêneca, Suetônio e Virgílio) pensadores que contribuíram com a ciência moderna

(Descastes, Gravesande, Musschenbroek), muitos escritores modernos (Camões, Corneille,

Francisco Sá de Miranda, Metastásio, Milton e Racine) e pensadores ilustrados (Bento Feijó,

Condillac, Diderot, Hume, Genovesi, Mably, Marmontel, Montesquieu, Verney, Voltaire e William

Robertson), mas possuía também livros afinados com a ortodoxia clerical (santo Tomás, são

Bernardo, Carlos Joaquim Colbert e Pretus Collet).254

Sem dúvida, Vieira “respirou a plenos pulmões os melhores ares do espírito do tempo”. O

“diabo” em sua biblioteca eram obras contestadoras do sistema e a literatura mais revolucionária da

época, tendo possibilidade de transmiti-la através de seus ensinamentos como lente de filosofia em

Mariana, e isso representava para a Coroa e seus funcionários, no Reino ou aqui, um grande perigo,

tornando-o um “monstro” pois encontramos nele o “doutrinador e vulgarizador, o erudito que, pelos

sermões, atinge de perto segmentos da heterogênea sociedade colonial mineira”. 255 A relação pode

não ser imediata, mas dá o que pensar: os padres Rolim e Manoel Rodrigues da Costa foram seus

alunos no Seminário de Mariana e, posteriormente, companheiros no projeto sedicioso de 1789.

Logicamente que a posse de livros não implica em leituras. Mas tal não ocorreu com Luís

Vieira, pelo que podemos depreender de sua atuação como professor, pelos seus sermões,

principalmente, pelas respostas dadas durante os interrogatórios. Não escondeu que leu e que

conhecia a História e as leis dos norte-americanos:

(...) como anda escrita e impressa a história da América Inglesa, e a nossa Gazeta continuamente fala nela, tendo ele, Respondente, lido a sobredita história e tido a curiosidade de examinar as referidas Gazetas, podia muito bem suceder que - em alguma ocasião, sem reserva de pessoas, porque se não dirigia a fim algum particular – fizesse algum discurso ou conversasse sobre uma ou outra América, persuadido que nisso não

253 MOTA, Carlos Guilherme. Idéias de revolução no Brasil (1789-1801): estudos das formas de pensamento. Petrópolis: Vozes, 1979, p. 80. 254 VILLALTA, Luiz Carlos, 1997, op. cit., p. 364. 255 BOSCHI, Caio César. O clero e a inconfidência mineira. In: IX Anuário do Museu da Inconfidência. Ouro Preto: Ministério da Cultura/IBPC, 1993, p. 114.

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cometia delito algum, por ser este fato muito próprio em sujeitos que têm alguma aplicação e versados na história ”. 256

Segundo o depoimento de Francisco Antônio Lopes “... o Cônego Luís Vieira (...) havia

oito anos que tinha botado as suas medidas para reger a mesma república livre e independente; o

que tudo ouviu, ele, Respondente, da boca do mesmo Vigário”. 257 Outra testemunha, o tenente-

coronel Basílio de Brito, após conversar com Luís Vieira, afirmou que:

(...) este não encobre a paixão que tem de ver o Brasil feito uma república independente; principiou a abonar o Tiradentes por um homem animoso e que, se houvesse muitos como ele, que o Brasil era uma república florente; acrescentando que um príncipe europeu não podia ter nada com a América que era um país livre (...) e ultimamente concluiu que esta terra não pode estar muito tempo sujeita a El-Rei de Portugal, porque os nacionais dela queriam também fazer corpo de república; proferindo estas e outras solturas sediciosas, encaminhadas todas ao fim da liberdade. 258

Vieira também seria o estrategista militar, possuindo muitos mapas da Capitania de Minas

e livros sobre as artes bélicas, falava em emboscadas, que a derrama proporcionaria a possibilidade

real do levante e seria ele também um dos responsáveis pelas leis que regeriam a futura república :

“(...) existia, ainda, um plano feito pelo cônego Luís Vieira da Silva para prover a segurança da

capitania e que consistia no fechamento da entrada da banda do Rio de Janeiro e na realização de

emboscadas por homens pardos.” 259

E mais, que:

(...) Vieira tinha feito um papel em que mostrava a segurança deste país, e o modo porque se devia fazer a rebelião (...) um plano para por ele se proverem a segurança deste país, e outro igual para por ele se regerem, dizendo que este continente, a natureza o tinha feito defensável por si mesmo e que a entrada da banda do Rio de Janeiro, bastava guarnece-la de diversas emboscadas de sorte que qualquer tropa, que subisse do Sertão, se desbaratava, e que os que escapassem da primeira, não escapariam da segunda. E mais, que a ocasião legitimadora da sedição seria a decretação da derrama, pois no plano estabelecia o dito cônego que se devia esperar uma ocasião em que o povo estivesse desgostoso; e que depois se deviam tomar os quintos e que, agora se tratava de lançar a derrama (...) que se tinha justo fazer o rompimento, avisando-se a todos para se ajuntarem com a senha de dizerem - tal dia é o batizado - com cujo aviso juntariam todos (...) que não tinham que

256 ADIM, v. 2, p. 150. 257 Idid., p. 65. 258 ADIM, v. 1, p. 151. 259 Ibid., p. 214-215.

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recear-se de nação alguma, pois que todas desejavam o Brasil independente para virem negociar.260

O depoente, Domingos Abreu Vieira insistiu que:

(...) o doutor Cláudio, o Cônego Luís Vieira, e o Desembargador Gonzaga tinham já feito as leis para se governarem, nas quais se ordenava que todo homem plebeu poderia vestir cetins, que os diamantes seriam francos, que os dízimos os perceberiam os Vigários com condição de sustentarem uns tantos mestres, hospitais, e outros estabelecimentos pios; que aquele que mais se distinguisse na primeira ação, seria o premiado, e que a nação que primeiro os socorresse durante a guerra, essa teria mais vantagem nos seus portos”. 261

Desta forma, as leis seriam elaboradas por Tomás Antônio Gonzaga, Cláudio Manuel da

Costa e o Cônego Vieira e este último “... havia oito anos que tinha botado as suas medidas para

reger a mesma república livre e independente; o que tudo ouviu, ele, Respondente [Francisco

Antônio Lopes], da boca do mesmo vigário” 262 Por esse depoimento, podemos perceber que a idéia

do levante e sua preparação já estavam presentes a bastante tempo entre os conjurados, não se

tratando apenas de poucas reuniões ou conventículos de última hora.

Vieira se instruiu, como vimos, nas leis e Governo da América Inglesa e “falava com mais

gosto e complacência no estabelecimento daquela República, no sucesso que os ditos Americanos

Ingleses sustentavam e se mantinham na sua rebelião” e criava argumentos para “excitar os

Nacionais ao levante, e justificar a razão de intentarem aquela ação” 263 e “não julgava um delito

contra Portugal, o gostar ele, Respondente, que os Americanos ingleses tivessem dado aquele coque

à Inglaterra” e que “os Americanos Ingleses foram bem sucedidos, porque acharam três homens

capazes para a Campanha”. 264 E o Cônego arremata dizendo que “... na América Portuguesa viria

mais anos, menos anos lhe suceder o mesmo” e que “... quando os Americanos Ingleses sacudiram o

jugo, tinham menos armas, e que contudo resistiram até conseguir a liberdade.” 265

Contudo, também temos em Vieira a forte presença de Raynal e Rousseau e de outros

iluministas, além de que para ele era legítimo rebelar-se contra um poder despótico, conforme

ensinavam alguns teólogos jesuítas. Essa marcante presença de entrecruzamento de diversas

correntes de pensamento se denota por suas respostas aos interrogatórios da Devassa. Depôs pela

260 ADIM, v. 1, p. 214-215 e v. 4, p. 147. 261 Ibid., p. 214. 262 ADIM, v. 2, p. 65. 263 ADIM, v. 4, p. 307-308. 264 ADIM, v. 1, p. 102. 265 Ibid., p. 102, 112 e 159.

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primeira vez já na prisão da Casa dos Contos em 1º de julho de 1789. Ainda em Vila Rica seria

interrogado mais três vezes. A partir de 23 de setembro de 1789 seria levado ao Rio de Janeiro e

preso na Fortaleza da Ilha das Cobras, onde seria interrogado mais quatro vezes.

Nos primeiros interrogatórios o Cônego Vieira nega até que tenha ouvido falar em

levantes. A seguir confirmou “... que só ouvira falar de várias pessoas que vinham do Rio de

Janeiro, de cujo nome não se lembra, que um alferes, por alcunha Tiradentes, andava na dita cidade

[Rio de Janeiro], na época de Cunha Menezes, convocando gente para um levante. Porém, que

dessas falas não fez ele, Respondente, o menor caso por considerar tudo aquilo uma refinada

loucura. E que nunca mais ouvira falar nisto”. 266 O Cônego de Mariana nega, enfim, qualquer

participação sua no processo sedicioso.

Quando instado a responder sobre o que poderia conduzir os vassalos a uma rebelião,

Vieira astutamente, para enganar seus inquiridores:

(...) afirmou que rebelião tem uma causa, a opressão e que ela inexistia nas Gerais. Os povos podiam rebelar-se por diferentes causas e que, em Minas Gerais, não havia o problema dos impostos, motivo da sedição dos norte-americanos, pois Barbacena noticiara que só faria a Derrama depois de ouvir Sua Majestade. (...) [Assim] as respostas dele, Respondente, só tendem a mostrar os fundamentos por que não seguiria semelhante partido, quando fosse para isso convocado, prescindindo inteiramente de que houvesse, ou não, quem tivesse semelhantes idéias: Sabe que na feliz aclamação de El-Rei D. João o quarto, sendo uma causa tão justa, e tanto da vontade dos povos, perguntou, segundo sua lembrança, D. João da Costa, quais eram os generais, as armas, as alianças, os soldados, que tinham prontos para se levantarem contra as armas de Castela, e que isso foi bastante para se suspender a ação por oito dias, e talvez não se executasse, se nisso não estivesse o maior perigo; e como poderia pensar que tivesse efeito a sublevação de Minas onde falta tudo o necessário, e cercada de outras capitanias: em segundo lugar, ele Respondente, não vê interesse nenhum próprio na sublevação; porque não foi para isso convidado, nem aceitaria o partido, quando fosse, e menos evitar o dano se este é obedecer aos superiores, e evitar tributos. 267

Para Vieira, uma rebelião precisa de uma causa (opressão), além de generais, alianças,

armas, soldados, etc e que Minas Gerais nada disso possuía. Prestar obediência e pagar tributos não

seriam motivos relevantes para sedições, sendo essa legítima, contudo, como ocorreu na época da

Restauração Portuguesa, para se livrar da tirania, aí sim uma “causa tão justa e tanto da vontade dos

povos”. Habilmente o nosso professor de filosofia compara as realidades de Minas Gerais com as de

Portugal, quando do fim da União Ibérica.

266 ADIM, v. 2, p. 146. 267 ADIM, v. 5, p. 246-248.

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Todavia, a partir de 23 de janeiro de 1790, resolveu confessar pois:

(...) que até agora tinha faltado a dizer a verdade, por considerar duas coisas: uma, que a pretensão estava inteiramente desvanecida, e que o Estado estava por isso fora de perigo; a outra, reconhecendo a delicadeza deste negócio e, por conseguinte, a sua culpa, considerava que não devia entregar-se a si mesmo; mas hoje, cuidando só dos seus deveres, tratando, como mais importantes, do bem espiritual, sem se embaraçar com o corpo, vai dizer tudo o que sabe, cumprindo com isso as obrigações de fiel vassalo, para que Sua Majestade tome as providências que for servido, e mesmo a respeito dele (...) execute a sua vontade, caso não mereça a sua piedade, como implora e espera”. 268

Vieira, contudo, foi absolutamente superficial em suas “verdadeiras respostas”, tentando

minimizar sua participação no movimento. O seu advogado, Dr. José de Oliveira Fagundes, seguiu

a mesma linha, afirmando que:

(...) O Cônego Luis Vieira da Silva, afirmara que em tempo algum conversara com Tiradentes ou com alguns dos outros Réus as conversações que houveram sobre o levante, nem que fosse convidado para ele, ou que o aprovasse, e prestasse o seu consentimento [ e mais], por ser Vieira um eclesiástico de luzes, e talento e bem instruído nunca falou coisa, que ofendesse ao Estado, e que fosse contrária à obrigação de um fiel Vassalo (...) que o Réu nunca teve certeza de Conjuração formal, nem que haviam certas, e determinadas pessoas, que ideavam o levante, e quando teve alguma notícia de que havia falado nele, foi muito depois das conversas...269

Mas o veredito (que ele nunca pôde tomar conhecimento!) sairia em 18 de abril de 1792,

onde se declara que o Réu Luís Vieira era, sem dúvida:

(...) um dos chefes da Conjuração que reputavam como o mais capaz e pronto para entrar na sua infame Sociedade e Conjuração (...) porque havia muito tempo que tinha bem lançado as medidas para o estabelecimento da república (...) e que os “Augustos Soberanos” de Portugal, não tinham nenhum direito para serem Senhores desta América (...).mas mesmo não se provando que alguém o aliciou para o levante ou que estivesse em alguma reunião, mesmo assim, as sobreditas razões que provam a sua pouca fidelidade; já mais indícios de que o Réu não era totalmente ignorante dos abomináveis ajustes e projetos dos Réus chefes da Conjuração. 270

268 Apud JARDIM, Márcio, op. cit., p. 287. 269 ENNES, Ernesto, op. cit., p. 55-56. 270 ENNES, Ernesto, op. cit., p. 62.

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E a sentença proferida: “... ao Réu Luís Vieira da Silva condenam em degredo por toda a

vida para a Ilha de São Tome e perdimento de seus para o Fisco e Câmara Real.” 271 É interessante

notar que, pela importância e envolvimento de Vieira, ele tenha sido considerado um réu

secundário. Foi embarcado em 24 de junho de 1792 para Lisboa, onde por quatro anos ficaria preso

na Fortaleza de São Julião da Barra e, em seguida, seria posto na clausura por mais seis anos no

Convento de São Francisco da Cidade. Só seria posto em liberdade em 1804, depois de quase

dezesseis anos como prisioneiro. Em 1805, com 70 anos idade, regressou ao Brasil, vindo a falecer

em 1809, em Parati ou na sua localidade natal, Soledade.272

Interessante que quem intercedeu por sua libertação foi o próprio Visconde de Barbacena,

na época em Portugal, mas mesmo assim reiterando sua capacidade, devido a sua instrução, para a

maldade e sedição:

(...) Resta-se somente dizer que é certo também haver o Príncipe Nosso Senhor [D. João VI] perdoado a outro clérigo [ o Padre Manoel Rodrigues da Costa] (..) que foi solto há pouco menos de um ano (...) E que o estado de merecimento de culpa de um e outro conforme considero formada nos autos, me parece que bem se pode avaliar com igualdade.(...) É certo que o suplicante se acha preso desde o ano de 1789, e me consta que tem a saúde muito enfraquecida e deteriorada, não só pela idade, mas pelos violentos incômodos e conseqüentes moléstias que acompanharam a sua desgraça (...) porque no suplicante Luís Vieira, cujos talentos e instrução eram notoriamente superiores aos do Pe. Manuel Rodrigues da Costa, supus maior capacidade de malícia e algumas disposições aos intentos temerários maquinadores da indicada maldade – que tive a satisfação de poder descobrir, investigar e coibir com o mais feliz sucesso. [Grifos Nossos] 273

Apesar de ser considerado um inconfidente moderado, devido a dubiedade em optar pela

República, rompendo os laços com Portugal, ou a reformas, mantendo unidos os laços entre as

Capitanias e Portugal, sendo o Brasil a sede do Império, o Cônego Vieira, parece ter atendido ao

chamado de Raynal e buscou entronizar a Pátria no Altar.

271 Id. Ibid., p. 64. 272 JARDIM, Márcio, op. cit., p. 289-290. 273 Carta do Visconde de Barbacena ao Príncipe D. João VI, Lisboa, 29 de dezembro de 1801. In: ADIM, v. 9, p. 358-360.

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3.2.2 – Padre Carlos Correia de Toledo e Melo: “Conversações sacrílegas, danadas e

pérfidos ajustes de levantes”

O vigário da Vila de São José, Carlos Correia de Toledo e Melo, foi considerado o mais

radical dos inconfidentes. Nasceu em Taubaté em 1731 e, aos 45 anos de idade, em Lisboa, foi

nomeado, em 1776, para ser vigário de paróquia de uma das mais ricas regiões: a Comarca do Rio

das Mortes (que abrangia São João Del-Rei, São José Del-Rei e dezenas de arraiais em vastíssima

extensão territorial). Tomou posse do cargo, sucedendo o interino Cônego Luís Vieira, em 13 de

abril de 1777.

Levava uma vida mais secular que religiosa, sendo ambicioso e dedicado a enriquecer,

vivendo em notável fausto em São José Del-Rei, onde tornou-se um potentado, residindo em um

dos mais belos palácios de toda a Capitania. Só esta residência, quando do seqüestro de seus bens,

foi avaliada em 3:600$000 réis. Possuía fazendas, se dedicava a minerações de ouro, escravos,

transacionava com capital e gerenciava - com mãos de ferro - suas freguesias tributárias. Também

possuía uma biblioteca notável, com 58 obras e 105 volumes, com livros de cunho iluminista e de

outros pensadores, revolucionários ou não, para aquele contexto. 274

Para Márcio Jardim, o Padre Toledo

(...) entregou-se de corpo e alma ao movimento, sendo, ao lado de Luís Vieira, o mais entusiasmado pela possibilidade de independência do Brasil [e mais que] pertencia ele a uma espécie de revolucionário que aliava o sentido intelectual da proposição ao espírito prático (...) nitidamente mais inclinado à prática que à teoria, (...) um produto típico do tempo iluminista e revolucionário do qual a Igreja fazia parte, abraçando com muito entusiasmo o corpo da sociedade para transformá-la segundo suas idéias. 275

E quais seriam suas idéias? O Padre Toledo era um republicano radical. Bem mais radical

que republicano, pois para ele “mais valia morrer com a espada na mão, que como carrapato na

lama, que havia assentado fazer o levante fosse como fosse”. 276 e mais, “... que em tais

circunstâncias se acautelassem; mas em todo caso cumpria antes morrer com honra; e quem não era

capaz para as empresas, se não devia meter nelas...” 277

274 Sobre a biografia do Padre Toledo, ver: JARDIM, Márcio, op. cit., p. 290 a 295 e CARVALHO, Cônego José Geraldo Vidigal de, op. cit., p.29 a 31. 275 JARDIM, Márcio, op. cit., p. 290. 276 ADIM, v. 2, p. 59. 277 ADIM, v. 1, p. 113.

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Como intelectual, tinha formação para ver na situação política e econômica da colônia o

entrave único a impedir o florescimento de uma nova nação, próspera e livre de anacrônicas

amarras. Abominava também qualquer forma de tirania. Mas, mais que sua atuação como

intelectual, prevaleceu o Padre Toledo ativista e prático.

Inicialmente foi a favor da simples expulsão do Visconde de Barbacena da Capitania de

Minas, botando-o “Paraibuna abaixo em canoas”, pois compadecia-se do desamparo em que ficaria

a esposa e filhos deste. Depois, radicalizou e foi favorável à execução do mesmo e de seus

auxiliares mais diretos: “... aquele Vigário de São José lhe falara sobre o (...) levante e deposição do

Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor General (...) acrescentara que os outros (...) haviam acordado

e assentado que o mesmo Excelentíssimo Senhor deveria ser, nas críticas circunstâncias,

precisamente decapitado.” 278 Toledo iria ainda mais longe ao apoiar ostensivamente a morte de

todos os europeus [portugueses?] da Capitania, e “...que esse era seu voto.” 279

Em termos de proposta, como vimos, era republicano: “... que estava próximo a fazer-se

nestas Minas um levante para erigirem-se em República” 280 e “trataram que se havia de estabelecer

feito ela [a independência] uma República que havia de haver nela um parlamento principal e em

todas as vilas outros subalternos”. 281

O padre Toledo estava encarregado do suporte militar, como dinheiro, homens, cavalos,

armas e pólvora. Em conversa com José de Resende Costa (filho), também inconfidente, reitera a

idéia do levante, dos seus preparativos e do estabelecimento de uma república :

(...) lhe contou debaixo de muito segredo, comunicando-lhe infalível pena de morte quando o contasse a alguém, estava próximo a fazer-se nestas Minas um levante para se erigirem em república, e que havia de haver nela sete Parlamentos, sendo a Capital São João Del Rei (...) E que haviam de cortar a cabeça ao General e ao Escrivão da Junta Carlos José da Silva, dizendo-lhe que isto se tinha assim disposto em razão da derrama que estava para se lançar (...) acrescentando o mesmo Vigário que já, até o Paraibuna, tinha mantimentos para seis meses para mil e quinhentas pessoas (...) e cento e cinqüenta cavalos gordos e prontos para a tropa (...) que no Rio de Janeiro havia sessenta comissários, os quais se achavam prontos para ajudarem aquela ação. 282

Padre Toledo confirmava ainda que “... ele, Vigário, (...) não podia brigar, mas que tinha

ou aprontava 200 barris de pólvora. E que o Côn. Luís Viera [da Silva] (...) havia oito anos, tinha

278 Ibid., p. 114-115. 279 ADIM, v. 2, p. 280. 280 ADIM, v. 1, p. 212. 281 ADIM, v. 2, p. 171. 282 ADIM, v. 1, p. 255-256.

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bem deitado as linhas do negócio. (...) Que ele Vigário, daria cem homens, Alvarenga, duzentos; e o

Pe. José da Silva [e Oliveira Rolim], o Serro todo (...) e que viriam todos, dada a senha, que deveria

ser: - ‘tal dia é o meu batizado’.” 283

Foi um dos poucos conjurados que, mesmo sendo senhor escravista, estava disposto a abrir

mão do trabalho compulsório dos negros. Seu intento era conquistar os ex-escravos para o levante,

pois “... que houvesse alguns brancos, poderia cada um levar um negro” 284 e que “... o dito Vigário

(...) tinha negros e que os desse, que bem podia aprontar vinte, e que um negro com Carta de

Alforria na testa se deitava a morrer...” 285

Quando a idéia do levante começou a desmoronar, dentre outros motivos pelas diversas

delações, o Padre Toledo, apesar de preocupado, ainda insistia na luta:

(...) A testemunha Padre José Lopes de Oliveira declara que principiou a conversar com o Vigário de São José, Carlos Correia de Toledo e “... o achou melancólico e pensativo” e perguntado os motivos “... o dito Vigário respondeu que estavam acabadas suas idéias, porque Joaquim Silvério tinha ido denunciar o levante que se intentava fazer, contando-lhe que estava delineando erigir-se uma república (...) o mais que duraria a guerra seriam três anos; e que (...) unido o Rio e São Paulo, havia muita gente, e que, quando os americanos ingleses sacudiram o jugo tinham menos armas e, contudo, resistiram até se conseguir a liberdade (...) [ouviu escandalizado dizer] aquele Vigário que tinha muitos companheiros de caráter, e povo” 286

Não se sabe ao certo se Toledo contava com tanto apoio assim, mas seu radicalismo e

otimismo transparecem novamente quando pediu ao coronel Oliveira Lopes uns vinte escravos para

continuar o levante “custasse o que custasse” e “... que com gente que houvesse, se lhe dava: se o

sucesso fosse feliz, muito bem; se não, recolhia-se a gente, fazia-se forte.” 287

Quando do início das prisões tentou fugir, mas acabou preso em maio de 1789. Onde

estariam todas as pessoas que Toledo e várias outras testemunhas afirmaram estar do lado do

levante? Até o Ministro Melo e Castro ironizaria: “... prosseguiu o dito Vigário a sua fuga (...) foi

preso sem a menor resistência e sem alma viva se apresentasse ou aparecesse em seu socorro. E o

povo tão ignorante e alheio da verdadeira causa das ditas prisões que, logo no princípio, as atribuiu

a extravios de ouro e diamantes...” 288

283 ADIM, v. 2, p. 46 e 48. 284 ADIM, v. 8, p. 299. 285 ADIM, v. 2, p. 60. 286 ADIM, v. 1. p. 104. 287 ADIM, v. 2. p. 59-60. 288 ADIM, v. 8, p. 299.

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Após a prisão seria levado para o Rio de Janeiro e interrogado sete vezes. Dois anos ficaria

preso na Fortaleza da Ilha das Cobras, depois de uma rápida passagem pela Cadeia do Tribunal, foi

internado no Convento da Ordem Terceira de São Francisco por mais um ano.

Seu advogado – aliás, o mesmo para todos os réus, eclesiásticos ou não - Dr. José de

Oliveira Fagundes, procurou demonstrar que o réu não pretendia nunca passar de conversações aos

verdadeiros atos sediciosos e por isso merecia a Real Clemência: “... a defesa assevera que quando

da sua prisão não existia nenhum papel que respeitasse ao levante, nem se prova que para o mesmo

tivesse homens prontos, nem armas, nem outra alguma disposição para tão criminosa, e temerária

empresa”. 289

Mas o Padre Toledo foi considerado um dos cabeças do movimento, um réu que cometeu o

horrendo Crime de lesa-Majestade e:

(...) um dos principais chefes da conjuração, na qual se interessava com maior empenho, que votava em que se cortasse as cabeças a todos os Europeus, que estavam na Capitania de Minas e se encarregou de aprontar para o levante gente da vila de S. José aonde era Pároco (...) foi um dos mais ativos e diligentes entre os mais chefes da conjuração e que mesmo depois da suspensão da derrama nem por isso desanimou da execução dos seus pérfidos ajustes afirmando que sempre se havia de fazer a sublevação. 290

A sentença para o Vigário Carlos Correia de Toledo e Melo foi dura: como um dos chefes

da conjuração, que “com baraço e pregão” fosse conduzido pelas ruas públicas ao lugar da forca e

“nela morra morte natural para sempre”. Além de considerado infame, perderia todos os seus bens

para o Fisco e Câmara Real. 291

Seguiu, junto com os demais eclesiásticos para Lisboa. Inicialmente ficou detido na

Fortaleza de São Julião da Barra por 4 anos e, depois, internado na clausura do Convento de São

Francisco da Cidade, onde faleceria em 1803, contando na época com 72 anos.

O padre Toledo seria sempre considerado muito perigoso e maquinador de criminosas

conversações, visando subtrair-se da sujeição e fidelidade para com os Soberanos. Ele também

atendeu ao apelo de Raynal e, por isso, foi considerado “monstro” por Melo e Castro, por praticar o

“horrendo crime de lesa-Majestade”.

289 ENNES, Ernesto, op. cit., p. 54. 290 Id. Ibid., p. 61. 291 Loc. Cit.

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3.2.3 – Padre José da Silva e Oliveira Rolim: “Crimes, insultos e desordens é para todos

hábil!”

Uma das figuras mais interessantes do clero conjurado foi, sem dúvida, o Padre José da

Silva e Oliveira Rolim. Mesmo sendo sacerdote da Igreja Católica Apostólica Romana, presbítero

do hábito de São Pedro como se definia, dedicou-se ao contrabando de diamantes, a agiotagem, era

riquíssimo e o único a não dever nada ao fisco Real. Imputavam-lhes alguns crimes, inclusive de

mortes, era mulherengo e teve, pelo menos, cinco filhos, estes com ninguém menos que uma das

filhas da famosa Chica da Silva. Teve ordem de expulsão da Capitania de Minas decretada na época

de Cunha Menezes, mas em pouco tempo retornou e transitava pelas ruas do Tejuco e até por Vila

Rica, sede do governo. Entrou para a conjuração de Minas e foi um de seus grandes entusiastas e

ativistas. Foi o único a conseguir fugir quando das prisões orquestradas a mando de Barbacena e o

último a ser preso, assim mesmo depois de ludibriar os soldados disfarçado de... soldado e de

resistir a bala ao cerco final. Foi o inconfidente mais interrogado, quinze vezes, mais até que

Tiradentes, que sofreu onze inquirições.292

O Padre Rolim nasceu em Diamantina (Tejuco), em 1747, em uma família ligada à

extração de diamantes (e contrabando), sendo seu pai, José da Silva Oliveira, um potentado local,

pois administrava o lucrativo negócio do Real Contrato dos Diamantes no Tejuco. Contudo, o

governo Português acabaria com a cessão de contratos particulares, centralizando e monopolizando

no Estado, todos os assuntos referentes aos lucrativos brilhantes. Isso prejudicou e muito a família

de Rolim, empurrando-o mais ainda para atividades ilícitas.

Fez seus estudos no Seminário Menor de Mariana, sendo aluno do Cônego Vieira. Em

1778 foi estudar no Seminário Maior em São Paulo, onde se ordenou, com 32 anos de idade, em

1779. Tanto o delator Silvério dos Reis quanto o Capitão-General de São Paulo, Lobo Saldanha,

afirmavam que Rolim tinha entrado para o sacerdócio para se livrar de um processo de assassinato,

que ademais ele não possuía talentos intelectuais e sim que conquistara a ordenação através de

suborno com diamantes, que vivia sempre em desordem, metido com mulheres. Vale a pena

conferir:

292 Sobre Rolim, Ver: JARDIM, Márcio, op. cit., p. 295 a 300. CARVALHO, Cônego José Geraldo Vidigal de, op. cit. p. 31-32 e a obra de ALMEIDA, Roberto Wagner de. Entre a cruz e a espada: a saga do valente e devasso Padre Rolim. São Paulo: Paz e Terra, 2002, p. 11 a 202.

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(...) pois que se ordenou para evadir-se às penas do crime que lhe resultou de uma morte que fez; deflorou uma irmã do tenente-coronel Simão Pires Sardinha, filha de Francisca da Silva e Oliveira, e, casando-a com um homem branco, quis depois do casamento continuar com ela a mesma desordem; e porque o marido o não consentiu, lhe tirou a mulher e ele foi obrigado a fugir com medo da morte que o dito padre pretendia dar-lhe. 293

Ora, Rolim, pelo menos na aparência tinha que honrar os votos de celibato e castidade, por

isso buscou esse casamento de arranjo para sua amante, mas o “marido de fachada” quis atrapalhar

seus planos e Rolim o botou para correr.

Em São Paulo, Rolim e o bispo que o ordenara, foram acusados abertamente pelo

Governador em uma Carta a Rainha. Neste caso, além da vida desregrada de Rolim, marcada pela

desordem e funções ilícitas com mulheres, a questão do possível suborno veio a tona:

(...) Entre os muitos indivíduos que o bispo diocesano desta Capitania tem ordenado (...) inclui um José da Silva e Oliveira Rolim, filho de outro, ambos feitores do contrabando de diamantes, que vendo a indulgência com que se ordenavam todas as qualidades de homens, intentou o mesmo e conseguiu, sem nenhuma luz de gramática, à força de inumeráveis presentes de ouro e pedras, de que vinha prevenido e soube repartir para não ser examinado. Vendo-se este pretendente admitido a ordens, os exercícios que teve nesta cidade para toma-las foram viver na maior desordem que pode ser, fazendo em diferentes noites com mulheres as funções mais ilícitas, com escândalo geral de todos os que delas tinham notícias, insultando e pretendendo difamar as casas mais graves desta cidade... 294

Novamente, Silvério dos Reis insinua sérias acusações a Rolim, inclusive a de tramar

contra a via de Cunha Meneses: “... sendo perseguido pelo antecedente governo de Minas Gerais,

correu voz e fama de que ele, na retirada do dito governo para a Corte, o queria mandar esperar no

caminho e o matar; e que agora, no atual governo, se foi meter despótica e absolutamente no

Distrito Diamantino sem ordem nem despacho do governo; e há dele uma larga história de crimes,

insultos e desordens, e para todos é hábil.” 295

Seu próprio irmão, Alberto da Silva e Oliveira Rolim, quando interrogado nos Autos se

sabia os motivos que levaram a detenção do Pe. Rolim, afirmou “... que tem ouvido imputarem-se-

lhes mortes, contrabandos de ouro e de diamantes, o furto de uns papéis (ou devassa) que foi tirar ao

Tejuco o Des. Antônio Dinis da Cruz e Silva (...) que, além do que fica dito, também ouviu dizer

293 ADIM, v. 4, p. 46. 294 CARTA à Rainha do Capitão General Martim Lopes Lobo de Saldanha, Governador da Capitania de São Paulo. In: Documentos Interessantes para a história e costumes de São Paulo. São Paulo: Publicação do Arquivo do Estado de São Paulo e Escola Tipográfica Salesiana, 1903, v. 62, p. 315-316. 295 ADIM, v. 4, p. 46.

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que o dito seu irmão estava preso por se achar compreendido em uma sublevação que pretendiam

excitar nesta Capitania...” 296

O furto dos papéis ou devassa a que o irmão de Rolim se refere mostra outra façanha do

Padre inconfidente: Rolim invadiu a casa de um Desembargador que fora fazer uma devassa na

administração do Tejuco em 1786 para revistar os papéis do devassante e certificar-se se ali pudesse

ter algo comprometedor contra sua família ou outros contrabandistas. Foi um escândalo. O

desembargador representou uma queixa ao Governador Cunha Meneses contra Rolim (e também

contra seu outro irmão, também padre, chamado Carlos Rolim que estava envolvido na invasão e

furto dos documentos!) a que os expulsou de Minas em 27 de junho de 1786. Fugiram ambos para a

Bahia. Mas no ano seguinte, Rolim já estava de volta a Diamantina, negociando escravos. No

governo do Visconde Barbacena andava livremente pelas ruas e visava pleitear junto ao novo

governo a revogação do desterro. 297

Antes, contudo, o Padre Rolim passou a atuar, a partir de 1799, como pároco em Rio

Manso, próximo do Arraial do Tejuco e depois assumiu definitivamente em Diamantina. Dedicou-

se a enriquecer (o seqüestro de seus bens totalizou 5:453$575 réis, uma fortuna na época!), a manter

seu affair com Quitéria Rita, a criar seus filhos, contrabandear e... participar da Inconfidência

Mineira.

Provavelmente ele tomou contato e entrou na conspiração no segundo semestre de 1788,

participando de todas as reuniões decisivas e também, assim como o Vigário Toledo, deveria cuidar

do apoio prático ao levante, principalmente na Região do serro. Em carta-denúncia, Silvério dos

Reis afirmou “que o padre José da Silva e Oliveira (...) punha outros 200 homens prontos e armados

no Serro Frio; e, com efeito, era o dito padre um dos cabeças principais do dito temerário insulto e o

mais capaz e disposto para entrar nele, tanto pela sua riqueza e abundância de bens e respeito que

conserva, como por ser temerário e régulo.” 298

As autoridades temiam Rolim, seu poder econômico e sua influência sobre as gentes do

norte de Minas, que poderiam se sublevar sob seu comando. “O Visconde de Barbacena e, de modo

geral, todas as autoridades envolvidas no processo de apuração de responsabilidade da Conjuração

Mineira, viam no padre Rolim um elemento talvez mais perigoso que o próprio Tiradentes”,

afirmou o historiador Herculano Gomes Matias. 299

296 ADIM, v. 3, p. 144-145. 297 ADIM, v. 2, p. 287, 290 e 291. 298 ADIM, v. 4, p. 46. 299 ADIM, v. 5. p. 342.

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Para Roberto Wagner de Almeida, o Padre Rolim trouxera pólvora em vez de poesia, ou

seja, deu um tom mais radical ao movimento, para além das tertúlias poéticas de alguns de seus

membros: “Uniu-se aos conspiradores da Conjuração Mineira e, ao que tudo indica, foi quem fez

passar do simples sonho de liberdade aos planos efetivos de tomada do poder pelas armas. O padre

pôs pólvora no lugar da poesia. Ao final, quando a maioria dos conjurados já havia desistido, os

poucos que restaram concluíram que somente no território sob o comando dele seria possível dar

início ao combate contra as tropas portuguesas...” 300

Rolim era abertamente a favor de matar Barbacena (“... Quanto ao General, cabecinha

fora, cabecinha fora!”) e um dos responsáveis pelo aliciamento de homens e de pólvora para o

levante, para o qual se dispunha a contribuir com 800$000. 301

Quando das prisões dos conjurados, conseguiu fugir. Junto com seu escravo e espécie de

secretário, Alexandre, se escondeu nos matos de uma propriedade de seu pai. Só foi preso quatro

meses depois, em 5 de outubro de 1789, ficando detido inicialmente no Serro e depois em Vila

Rica. Seria, como já o dissemos, interrogado 15 vezes, buscando sempre negar seu envolvimento no

movimento sedicioso, até ser fulminado por uma acareação: Rolim foi colocado frente a frente a

Tiradentes, Domingos de Abreu Vieira e o Tenente-coronel Francisco de Paula Freire de Andrada

que confirmaram sua presença em conversas sobre sedição e motim. Mesmo assim procurou

minimizar a importância e o alcance da sublevação, taxada por ele por inviável:

(...) é verdade que ele, Respondente, fora tão infeliz que, no breve período de menos de um mês antes de sua retirada para o Tejuco, em meados de fevereiro, teve a infausta ocasião de saber que nesta vila se tratava de um levante. Que, contudo, segundo sua inteligência, nunca se poderia reduzir à execução (...) por faltar de todos os necessários fundamentos para surtir efeito um negócio tão poderoso (...) Percebendo, por estes e outros motivos, que tudo aquilo não passava de ser verdadeiramente uma patranha ”. 302

A admiração mútua entre Rolim e Tiradentes era evidente. Sobre o Alferes, Rolim disse:

“... que aquele rapaz era um herói, que não dava morrer na ação, contanto que ela se fizesse”. E

Tiradentes já havia expressado sua admiração pelo Padre Rolim e também por Toledo, pois “... que

os povos de Minas eram uns bacamartes falsos de espírito e dinheiro; e que, tendo falado a muita

gente, todos queriam mas nenhum queria resolver a pôr em campo; só os que achara com mais calor

300 ALMEIDA, Roberto Wagner, op. cit., p. 13. 301 ADIM, v. 4. p. 403. 302 ADIM, v. 2, p. 297-302.

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foram o vigário da Vila de São José, Carlos Correia de Toledo, e o padre José da Silva e Oliveira

Rolim” 303

O advogado da Santa Casa de Misericórdia confirmava que o Padre Rolim “... assistira sim

algumas conversas sobre o levante, mas não se lhe achou preparo, nem consta do processo, que ele

o diligenciasse não obstante a rigorosa busca que se deu em sua Casa (...) e que ele próprio

reconhecia que tudo não passava de uma quimera, tudo quanto se figurava naquelas reprovadas

palestras e que era um simples Eclesiástico, sem conceito, e crédito, para engrossar o partido do

levante (...) e por tudo isso deve merecer a Piedade de Sua Majestade” 304

Mas não foi esse o entendimento dos juízes da alçada, pois se referem a Rolim como “um

sócio em quem os conjurados muito confiavam, não só pela sua riqueza e autoridade que tinha no

Serro por ser filho do primeiro caixa de diamantes, mas também pela sua conduta, em que tinha

mostrado que, sem embargo de ser sacerdote, não tinha horror de cometer qualquer delito...” 305 e

mais que :

(...) o Padre Rolim era também um dos principais cabeças da infame conjuração (...) foi o Réu um dos que votavam em que cortasse a cabeça do General (...) e se ofereceu para concorrer com alguns Barris de pólvora (...) e que tinha jurado em falso e perguntado se não tinha temor de Deus por esse falso juramento disse (...) que naquele tempo não temia a Deus, e com esse princípio de religião não era muito que sem remorso fosse traidor, e faltasse ao essencial preceito de Católico, pretendendo rebelar-se, e negar a obediência, e sujeição.306

Foi também condenado a morte natural e para sempre na forca e perdimento de todos os

seus bens. Seguiu para Lisboa na fragata Golfinho e encarcerado na Fortaleza São Julião da Barra

até 1796. Depois foi para o Mosteiro de São Bento da Saúde. Somente em 16 de agosto de 1804 foi

permitido a Rolim regressar ao Brasil. Ficou preso 14 anos e nove meses. Em 1805 já estava em

nosso país e rumou para Diamantina onde viveu o resto de seus dias. Passou a lutar para reaver seus

bens, o que consegue em parte, vindo a falecer em 21 de setembro de 1835 com 88 anos de idade.

Se o Padre Rolim não se preocupava muito com o Altar, pelo menos conhecia bem de

perto a perseguição dos funcionários da Coroa em relação aos nativos da colônia e passou a

defender idéias anticoloniais, tanto assim que se referia a Tiradentes e ao Tenente Coronel Paula

Freire de Andrada como heróis “... da função, defendendo, e libertando sua Pátria; que eram

303 ADIM, v. 5. p. 118-123. 304 ENNES, Ernesto, op. cit., p. 54. 305 ADIM, v. 7, p. 246. 306 ENNES, Ernesto, op. cit., p. 61.

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mazombos, e também sabiam Governar; não podendo estar vendo sair para fora todas as Riquezas

de seu país, e eles sempre indigentes.” 307

3.2.4 – Padre Manoel Rodrigues da Costa: “Suspeitosa fidelidade pois maliciosamente

guardou segredo esperando o sucesso do levante”

O Pe. Manoel Rodrigues da Costa nasceu na Freguesia de Nossa Senhora da Conceição do

Ibitipoca (Lima Duarte), na época pertencente à Freguesia do Arraial de Nossa Senhora do Campo

Alegre de Carijós (mais tarde Queluz e atualmente Conselheiro Lafaiete) a 2 de julho de 1754.

Ingressou no Seminário de Mariana, sendo aluno do Cônego Vieira, ordenando-se sacerdote em

1780, exercendo a profissão na capela da fazenda da família, denominada de Registro Velho, aliás,

um lugar, diga-se de passagem, muito estratégico, pois a propriedade estava situada no Caminho

Novo, ponto de pousada e encontros de viajantes que iam da capital da Colônia, Rio de Janeiro, em

direção aos centros mineradores, como também perfazendo o caminho de volta, à referida

Capital.308

O Pe. Manoel Rodrigues foi outra figura notável e, devido ao fato de ter vivido longos

anos (morreu com 90 anos de idade!), presenciou e participou de fatos relevantes de nossa História,

do governo de D. Maria I, passando por seu filho, D. João VI, seu neto, já em pleno Brasil

independente, D. Pedro I e chegando até o reinado de seu bisneto, D. Pedro II. Possuía ele um

espírito bastante disciplinado, sendo muito zeloso com seu ministério de sacerdócio, ligado

sinceramente aos assuntos eclesiásticos e fiel à religião católica. Do Clero Conjurado, sem dúvida,

era o que tinha um comprometimento visceral com a fé e com o seu rebanho. Isso, contudo, não o

impediu de se tornar um liberal, de abraçar idéias progressistas, conseguindo conciliar, aos moldes

da Segunda Escolástica, fidelidade à Religião e à Pátria.

Segundo Márcio Jardim:

(...) o Padre Manoel Rodrigues da Costa teve participação discretíssima na Inconfidência. Não era dos principais chefes ou coordenadores do movimento; não tinha missão específica e não participou das reuniões decisivas de dezembro de 1788. Sequer há

307 ADIM, v. 4, p. 304. 308 Sobre a vida do Inconfidente Manoel Rodrigues da Costa, ver: JARDIM, Márcio, op. cit., p. 300-305; CARVALHO, Cônego José Geraldo Vidigal e, op. cit., p. 32-34. Uma outra obra, mais densa e especificamente sobre o referido clérigo se encontra em DELGADO, Alexandre Miranda. O Padre Manoel Rodrigues: Inconfidente. Juiz de Fora: Edição do Autor, 1963, p. 3-94.

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indícios de que tenha participado de qualquer reunião (...) O que o fez inconfidente foi seu evidente conhecimento do plano do levante, sua simpatia manifesta e alguns indícios de uma personalidade iluminista, muito propícia à idéia de um Brasil independente. 309

A condenação foi por omissão, sua suspeitosa fidelidade, sua malícia ao guardar um

segredo de crime de lesa-Majestade, isto é, ter conhecimento da conspiração e não denunciá-la.

Soube do levante que se premeditava através do Alferes Tiradentes, que se hospedou por “duas

noites e um dia na fazenda do dito padre, chamada Registro Velho”. 310

A conversa entre o Pe. Manoel e Tiradentes esclarece muito sobre a personalidade de

ambos. O Padre, num primeiro momento, exortou o Alferes sobre a temeridade e conseqüências de

suas palavras sediciosas, afirmando que o mesmo “(...) ia também [ao Rio de Janeiro] cuidar

daquele negócio (...) relativo à liberdade da América; ao que lhe respondeu ele, Testemunha, que o

demônio o andava tentando fazer algumas desordens que lhe haviam de custar à cabeça (...)” 311.

Tiradentes, muito religioso, tanto quanto o Padre, respondeu: “Não há de ser nada, Deus está

conosco”. 312 Em seguida, o pároco tentou convencê-lo a não falar em levantes, “... que não falasse

assim, pois que o Rei era senhor de tudo, acrescentando ser grande crime falar em levante...” 313 e a

resposta veio certeira: “... não é levantar; é restaurar a nossa terra; que fazem de nós negros. Esse

governador [Barbacena], que agora veio, trouxe ordem para não deixar ter homem de Minas mais

de dez mil cruzados; e que os traga sempre sopeados; e que os prenda e os mande para lá”. 314 A

resposta do Padre Manuel foi lapidar: “... eu não sabia disso, se é assim podem por-se fora da

obediência de um Rei tirano!” [Grifos Nossos] 315

Para Tiradentes não era levantar ou se sublevar e sim restaurar uma ordem, ter a dimensão

do que a metrópole podia ou não em relação aos seus vassalos. O que ele não aceitava era a posição

submissa, qual escravo, frente aos desmandos metropolitanos, aqui personificados nos seus altos

funcionários. Deus estaria do seu lado. Para o Padre Manuel a obediência era, sem dúvida, uma

grande virtude, pois o rei era senhor de tudo... mas ele não pode tudo! Os vassalos, ante a tirania,

não estavam mais comprometidos com a fidelidade e obediência. Deus estaria do lado deles. Nada

mais fiel à Segunda Escolástica! Nada mais Ibérico!

309 JADRIM, Márcio, op. cit., p. 300-301. 310 ADIM, v.3, p. 320. 311 ADIM, v.1, p. 202. 312 Apud DELGADO, Alexandre Miranda, op. cit., p.22 313 ADIM, v.1, p.229. 314 Loc. Cit. 315 Loc. Cit.

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O Padre Manoel, “progressista por convicção e moderado por temperamento” 316, também

entronizou a Pátria no Altar, pois mostrou que sabia sobre a rebelião, chegou a comenta-la com

outras pessoas e não a denunciou. O padre chegou a desconfiar de Silvério dos Reis que ia para o

Rio de Janeiro atrás de Tiradentes, seguindo seus passos a mando de Barbacena, e revelou isso aos

seus “colegas de segredo” (provavelmente o inconfidente Cel. José Aires Gomes, que possuía

Fazenda vizinha a sua em Barbacena, o Padre José Lopes de Oliveira e seu irmão Cel. Francisco

Antônio de Oliveira Lopes, todos metidos na conjura!.) Ele ocultou não por falta de fidelidade, mas

por ter simpatia com o movimento, por não tolerar tiranias e mais, “que esta América estava nos

termos de ficar uma Europa” 317 ou seja, trilhar seus próprios caminhos, para além da dominação

lusitana.

Foi preso em 1789 para ser ouvido como testemunha, solto no ano seguinte, mas em abril

de 1791 seria encarcerado novamente, agora na condição de réu, no Convento da Ordem Terceira

de São Francisco (RJ), ali permanecendo até junho de 1792, passando por cinco interrogatórios.

Seu advogado buscou atenuar sua culpa, pois contra ele:

(...) não consta mais do que a omissão, que ele teve de não denunciar o que ouviu falar em sua casa ao réu Joaquim José da Silva Xavier (...) não ocultou por malícia as loucuras [de Tiradentes] mas sim pelo desprezo que fez de sua libertinagem e insânia (...) não houve dolo por parte do réu (...) não constando contra este réu outra alguma culpa e circunstância mais agravante, deve ser contemplado (...) para merecer a Piedade de Sua Majestade.318

Para os juízes, o Réu Padre Manuel Rodrigues da Costa,

(...) foi um dos primeiros a quem o Réu Tiradentes comunicou projeto que tinha de estabelecer uma república na Capitania de Minas (...) e suposto que se não prove que ele prometesse ajuda ou que soubesse individualmente do que se tratou nos conventículos (...) contudo ele mesmo reconheceu que aquela notícia tinha que ser delatada ao Governador de Minas (...) que era digno das providências do General, mas não obstante tudo isso maliciosamente guardou segredo esperando o Sucesso, pelo que se faz suspeitosa a sua fidelidade (...) que tudo ocultou maliciosamente sem o delatar como devia (...) de todos estes indícios se prova que o Réu sabia da conjuração quanto bastava para ter obrigação de delatar, o que por falta de fidelidade ocultou”. 319

316 JARDIM, Márcio, op. cit., p.303. 317 ADIM, v. 1, p. 179. 318 ENNES, Ernesto, op. cit., p. 56. 319 Ernesto Ennes, op. cit., p. 63.

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A sentença: degredo por toda a vida para a Ilha do Príncipe e perda de metade de seus bens

para o Fisco e Câmara Real. Na verdade, seguiu para Lisboa em 24 de junho de 1792 onde ficou

preso cerca de quatro anos na Fortaleza de São Julião da Barra e depois internado no Convento de

São Francisco da Cidade. Neste convento estudou livros de seu interesse e participava de círculos

intelectuais. Ali teve oportunidade de estudar sobre vinhos e tecidos, traduzir livros e chegou a

comprar máquinas que trouxe ao Brasil para implantar uma fábrica têxtil em sua fazenda em

Barbacena.320.

Foi o primeiro a obter licença para retornar ao Brasil em 1802. Esteve preso por doze anos,

mas em 1804 já estava em Barbacena, reavendo sua Fazenda. Estava com 50 anos e passou a se

dedicar ao sacerdócio, a atuar como fazendeiro, “industrial” e como político. Passou a influir no

processo de independência do Brasil e a apoiar ostensivamente D. Pedro I (por ironia, o neto da

Rainha que o condenou 42 anos atrás!) para que este separasse o Brasil de Portugal. Quando as

Cortes de Lisboa exigiram o regresso do Príncipe Regente e enviaram Cartas esvaziando seus

poderes, Padre Manuel conclamou os “barbacenenses patriotas” que descessem em massa para

apoiar o futuro primeiro imperador do Brasil. Por essa lealdade, em um dos encontros com Pedro I,

em visita à Fazenda do Registro Velho, foi o padre agraciado com a Ordem do Cruzeiro do Sul, em

1º de dezembro de 1822.

Esteve presente também quando, quase uma década depois, o Imperador se tornara tão

impopular que renunciaria em abril de 1731. Um pouco antes, novamente de passagem, D. Pedro I

hospedou-se em sua fazenda, dispensando a guarda pessoal, afirmando: “Não preciso de guarda,

bem guardado estou eu na casa de um verdadeiro amigo...” 321 Nesta ocasião, o Imperador o

nomeou Cônego da Capela Imperial.

O Padre Manoel foi eleito deputado para a Assembléia Constituinte de 1823 e depois

reeleito em 1826, não assumindo nesta última legislatura alegando idade avançada e problemas de

saúde. Contava então com 72 anos. Como deputado por Minas, na Assembléia Nacional

Constituinte, foi radicalmente contra a liberdade religiosa. Para ele, católico fervoroso, o Deus da

Revelação, Deus único e vivo, tinha ensinado a maneira de adorá-lo e não poderia haver liberdade

religiosa em face da religião revelada. Era inominável escândalo para os povos cristãos,

principalmente:

320 ADIM, v. 2, p. 432. 321 Apud DELGADO, Alexandre Miranda, op. cit., p. 39.

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(...) depois de sermos ilustrados pela revelação, se depois de termos abraçado a religião católica romana, admitíssemos dentro em nós mesmos um culto diferente daquele (...) e adotássemos os que o demônio tem introduzido, servindo-se de seus emissários (...) levantaríamos altar contra altar, dentro de uma mesma nação!(...) Não façamos senhores reformas contra a vontade dos povos; não toquemos senão naquilo que for urgente, e disto não há precisão; os povos bem claramente têm demonstrado que são católicos; e dar direitos políticos a quem não professa a religião católica, é fazer uma concessão que pode até abalar o nosso edifício social. Que imensas desordens se seguirão de semelhante medida (...) Semelhante extensão de liberdade religiosa serviria de abrir a porta a toda qualidade de prevaricação, de afastar a nossa mocidade do centro do cristianismo e de trazer sobre nós uma imensidade de males... [Grifos Nossos] 322

O Pe. Manoel Rodrigues, fiel às suas idéias e à sua Igreja, se mostrava liberal em assuntos

políticos, mas extremamente ortodoxo e conservador quando se tratava de religião, que era e

deveria sempre ser a católica, revelada e única verdade, base do edifício social e barreira contra as

desordens e todos os males sociais.

O padre inconfidente de 1789, ainda tinha forças, aos 88 anos, para entrar em mais uma

rebelião em Minas, esta agora, em pleno governo de D. Pedro II: a Revolução Liberal de 1842. Foi

em Barbacena, e de sua fazenda no Registro do Registro Velho, que ocorreram as principais

reuniões e de onde partiu a reação da aristocracia agrária liberal, sob a liderança de Teófilo Otoni,

contra os conservadores que se encastelaram no poder junto ao jovem imperador, a partir de 1841.

Os conservadores passaram a aprovar leis reacionárias, como a que restaurou o Conselho de Estado,

ampliando seus poderes e promovendo reformas no Código de Processo Penal, centralizando a ação

judicial e policial, pondo fim à autonomia das elites latifundiárias e autoridades locais, como por

exemplo, o fato dos juízes deixarem de ser eleitos e serem nomeados pelo poder central. Os liberais

de São Paulo e de Minas se levantaram contra tais medidas, recusando-se a acatar as novas leis.

O Pe. Manoel escreveria uma carta ao jovem Imperador, relembrando sua lealdade a D.

Pedro I, buscando ainda a fidelidade a Coroa, mas alertando-o de sua aproximação com os

conservadores e aconselhando-o respeitosamente que mudasse os rumos de sua política, para evitar

derramamento de sangue. A citação é longa, mas vale a pena, pois mais uma vez encontramos o

Padre, com sua lucidez e garra, buscando conciliação e lealdade, mas, quando necessário, partindo

para o confronto, bem ao estilo neoescolástico e iluminista, que era característico do mundo ibérico

na época:

322 Os discursos completos do Padre Manoel Rodrigues na Assembléia Constituinte sobre esta questão, aliás interessantíssimos, se encontram reproduzidos em DELGADO, Alexandre Miranda, op. cit. p. 32-36.

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(...) Senhor – Um velho carregado dos anos, e que tem sido testemunha presencial dos mais notáveis acontecimentos, que desde o século passado têm tido lugar no país, e em todos eles tomado alguma parte, um antigo, sincero e desinteressado amigo dos Augustos pais de Vossa Majestade Imperial, comparece hoje perante o trono (...) como cidadão e amigo dos seus pais e fiel ao seu Monarca. A Província a onde eu nasci, Senhor, vejo-a em uma agitação que me assusta, o povo corre as armas, e todos dizem que vêm defender sua liberdade (...) não posso deixar de lastimar que homens imprudentes causarão desgraças do Brasil (...) Será possível, Senhor, que entre os antigos amigos de Vosso Pai, e os homens que em diversas circunstâncias têm mostrado amor sincero ao Vosso Trono, não se encontrem algum que Vos aconselhe a necessidade de fazer cessar um sistema de Governo fundado no interesse de poucos, e que tem lançado a população em um caos de angústia e de temores? (...) Nesta cidade acaba de aparecer uma revolução; e os seus autores asseveram, e eu os acredito, que nenhumas intenções têm, que contrárias sejam aos interesses públicos, e aos de Vossa Majestade Imperial; e me parece que tudo se acabará, se V.M.I., chamando para seu Conselho homens que tenham por base a paz e a conciliação entre todos os Brasileiros. (...) Estou velho, e atormenta-me a idéia de que morrerei deixando os meus patrícios a se despedaçarem, quando com tão pouco se poderia firmar entre eles a paz e a união. Beija respeitosamente a mão de V.M.I. como súdito leal e respeitador. O Padre Manoel Rodrigues da Costa. [Grifos Nossos] 323

A Revolução Liberal de 1842 seria duramente reprimida por Duque de Caxias e os

principais líderes foram presos e permaneceram encarcerados até serem anistiados em 1844. Os

liberais, neste mesmo ano, chegariam ao poder, sendo paulatinamente integrados à nova ordem

imperial, alternando ou mesmo aliando-se aos conservadores, mostrando, desta forma, que entre

eles não existiam profundas divergências ideológicas, na medida em que eram componentes de uma

mesma elite agrária, ciosa de seus privilégios e desejosa de manter o status quo. Padre Manoel

Rodrigues faleceria em 19 de janeiro de 1844 e foi sepultado na Matriz Nossa Senhora da Piedade

de Barbacena, na capela do Santíssimo, aos 90 anos de idade e, por isso, como ele mesmo disse,

teve a oportunidade de ser “testemunha presencial” dos acontecimentos históricos mais notáveis do

país, desde a Conjuração Mineira até a Revolução de 1842 e mais, “em todos eles tomado alguma

parte.”

323 A carta se encontra reproduzida na íntegra em DELGADO, Alexandre Miranda, op. cit., p. 39-40.

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3.2.5 – Padre José Lopes de Oliveira: “Guardou o mais exato segredo em tudo o que sabia e

silêncio é consentimento e aprovação tácita”

O Padre José Lopes nasceu em uma fazenda do Ribeirão de Alberto Dias, que pertencia a

Freguesia de Igreja Nova da Borda do Campo (Barbacena) em 1º de maio de 1740. Sua educação

foi toda em Portugal, primeiro no Porto e depois na Universidade de Coimbra, onde, em 1772,

formou-se em Direito Canônico. Nesta fase, teve a oportunidade de conhecer e conviver com outros

estudantes, futuros companheiros de inconfidência, como Tomás Antônio Gonzaga e Alvarenga

Peixoto, além de seu futuro defensor, o advogado Dr. José de Oliveira Fagundes. Exerceu

sacerdócio, a partir dos 23 anos de idade, na capela da própria fazenda e em seguida foi capelão da

Irmandade do Santíssimo Sacramento em Igreja Nova (Barbacena). 324

Apesar de sua participação no movimento ser muito discreta, infinitamente inferior a

participação do Cônego Luís Vieira da Silva (condenado, como vimos, a degredo perpétuo) o Padre

José Lopes, por ser sabedor e consentidor do levante, teve inicialmente decretada contra ele a pena

capital e deveria ser levado à forca, além de ser considerado infame e de perder todos os seus bens

para a Coroa.

Segundo Silvério dos Réis era um homem de “muito conceito e dotado de grandes luzes”

e, em reuniões secundárias apoiou a queima dos livros de registros públicos, com o propósito de

apagar definitivamente a situação insustentável dos devedores à Fazenda Real. 325 Seus

depoimentos foram arrasadores, com delações comprometedoras e entregando vários detalhes da

conjuração.

Padre José Lopes foi encarcerado na Fortaleza da Ilha das Cobras, interrogado em 17 e 18

de junho de 1790 e dali sairia para a última inquirição em 14 de setembro de 1791, já no Convento

da Ordem Terceira de São Francisco. Seguiu com os outros clérigos para Lisboa, na mesma fragata

Golfinho, e lá foi aprisionado na Fortaleza São Julião da Barra, onde veio a falecer quatro anos

depois, em 1796, com 56 anos de idade. 326

Para seu advogado, colega de estudos em Coimbra vinte anos antes, o Padre José Lopes de

Oliveira merecia a Real clemência pois:

324 Sobre a vida deste padre inconfidente, ver: JARDIM, Márcio, op. cit., p. 305-307 e CARVALHO, Cônego José Geraldo Vidigal de, op. cit., p.34-35 e 48. 325 ADIM, v. 1, p. 146 e 193; v. 5, 374 –375. 326 ADIM, v. 3, p. 190; v. 5, p. 371 e seq. e v. 8, 375-376.

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(...) a sua culpa não consta, que seja outra mais, que a de não ter denunciado o que ouviu falar sobre o dito levante (...) e se não prova, que assistisse às criminosas conversações; que tivesse ciência individual delas, que prestasse alguma ajuda, favor, e conselho, para que pudesse ter efeito: sempre reputou por loucura de Joaquim José da Silva Xavier o que ouvira dizer sobre o levante...327

Para a Alçada, ele deveria, como vimos, ser punido com a morte, pois o padre, era de se

supor que não tivesse participado dos conventículos sediciosos, mas “soube dos ajustes que entre

eles estavam feitos de suscitarem um levante quando se lançasse a derrama, para se estabelecer uma

república na Capitania de Minas (...) e ele guardou o mais exato segredo em tudo o que sabia,

faltando à fidelidade que devia ter, porque o silêncio em semelhantes casos é um consentimento, e

aprovação tácita”. 328

O Padre José Lopes de Oliveira, assim com os outros quatro companheiros de batina, que

deveria ter obediência, sujeição e fidelidade com a rainha, e,principalmente por ser sacerdote,

instruir os povos neste preceito, faltou com sua obrigação de fiel vassalo e de católico, sendo

sabedor e consentidor do movimento e não o denunciou, cometendo o “horrendo crime de lesa-

Majestade.”

Para a Coroa, clérigos ou não, seus vassalos deveriam ser virtuosos e ter amor a religião,

primeiro grande passo para aceitarem o governo, pois um bom vassalo é um bom cristão e que “o

vassalo pérfido” não tem direito aos prêmios, que esta só verdadeira religião pode dar. Muitos de

nossos conjurados de batina aceitavam tais preceitos, mas, para eles, que entronizaram a Pátria no

Altar, a religião também poderia e deveria ser um instrumento para subtrair-se da sujeição, da

obediência cega e da fidelidade que deviam ter aos Soberanos, caso eles não estivessem

contribuindo para a “felicidade dos povos”, tornando-se tiranos. Os nossos personagens, cada um a

sua maneira, uns radicais, outros moderados ou até mais conservadores e ortodoxos, falaram em

liberdade, o que é sempre perigoso e pagaram seu preço, alguns até alto demais.

“Liberdade, essa palavra Que o sonho humano acalenta Que não há ninguém que explique, E ninguém que não entenda.”

(Cecília Meireles)

327 ENNES, Ernesto, op. cit., p. 56-57. 328 Ib. Ibid., p. 61-62.

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CONCLUSÃO

A Inconfidência Mineira foi um movimento insurrecional ocorrido na Capitania de Minas

Gerais entre 1788-1789. Por essa época o ouro começara a declinar vertiginosamente e a metrópole

portuguesa ainda insistia em cobrar pesados tributos e criar restrições ao desenvolvimento local.

Havia já algum tempo que os mineradores não conseguiam mais honrar o compromisso com

Portugal, enviando-lhe anualmente 100 arrobas de ouro:

Desde 1734, o valor mínimo do quinto exigido pelo governo português era de 100 arrobas

anuais. Em 1750, estabeleceu-se que os impostos atrasados seriam cobrados através da derrama.

Quer dizer, nos anos em que o recolhimento do quinto da capitania de Minas Gerais não atingisse

100 arrobas, o débito seria cobrado à força da população mineira.Na verdade, com o declínio da

mineração, tornou-se cada vez mais difícil cobrir as 100 arrobas anuais exigidas. A partir de 1763,

os mineradores não conseguiram mais pagar o quinto estabelecido e os impostos atrasados

começaram a acumular-se. 329

Nossa metrópole estabeleceu uma dura medida coercitiva, através do Alvará de 1785,

proibindo o funcionamento de manufaturas no território colonial. Isso afetou grandemente a

economia mineira e obrigou os colonos a importarem quase tudo o que consumiam, agravando,

assim, a crise na região do ouro.

Tudo isso se deu no governo da Rainha Dona Maria I, após a Era Pombalina (1750-1777),

quando subiu ao poder um novo e poderoso ministro, Martinho de Melo e Castro. Ele visava

implementar uma nova política neomercantilista, ou seja, conservar a colônia como mercado

exclusivo de Portugal, sob rígido monopólio, mantendo-a apenas como produtora de artigos

agrícolas, fornecedora de minerais preciosos, preservando-a como fonte de rendas fiscais

(impostos).

Por trás desse endurecimento da política colonial, estavam os grandes comerciantes e

donos de manufaturas em Portugal. Além deles, a nobreza e o clero, dependentes das riquezas

distribuídas pelo Estado, não viam com bons olhos a relativa autonomia alcançada pela capitania

com Pombal, ministro do Rei Dom José I.

Tais medidas viriam a afetar a vida dos habitantes das Gerais como um todo.

Fundamentalmente, atingiriam a elite mineira, comerciantes, fazendeiros, mineradores ou

329 ANASTASIA, Carla Maria Junho. Inconfidência Mineira. São Paulo: Ática, 1995, p. 17.

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intelectuais, colocados nas intendências do ouro, transformados em fiscais de impostos e em

administradores da extração de diamantes.

Essa elite também ocupava cargos na hierarquia militar, estando igualmente presente no

legislativo e no poder judiciário da América portuguesa. A cobrança dos dízimos (taxa da Igreja

recolhida para o Estado lusitano) e o direito de Entradas (taxa sobre diversos produtos para

chegarem às Minas Gerais) passaram a ser arrendadas a particulares, a maioria deles nascidos no

Brasil. A elite ocupava postos estratégicos na economia e na administração colonial e a Coroa

pretendia agora rever tal procedimento.

Dessa forma, notadamente nas Minas Gerais dos setecentos, formou-se uma poderosa elite,

a partir do ouro e/ou de sua participação junto à estrutura de poder colonialista implementada pelos

lusitanos aqui nos trópicos. Esse grupo passou a contestar a dominação ou espoliação colonialista

quando deixou de ser favorecida por ela.

Dito de outra maneira, esse sistema de exploração colonial começou a dar sinais de crise e

a não funcionar como antes, quando, dentre outras coisas, não mais coincidiram os interesses dos

colonos e os da metrópole. A Inconfidência Mineira foi um desses casos, pois mostrou que existia

nesta terra um grupo de pessoas, a maioria gente de posses, que já não estava disposta a aceitar a

dominação lusitana naquilo que ferisse seus interesses. Isso evidencia um claro sintoma histórico da

crise do sistema colonial.

Como vimos, a própria sedição teve um caráter isolado, dispersivo e muito heterogêneo,

pois do grupo participavam mineradores, fazendeiros, funcionários públicos, advogados,

intendentes, contratadores, militares de alta e baixa patente, poetas, padres, dentre outros. A

Inconfidência Mineira foi, portanto, um acontecimento no qual atuaram seres humanos com

diferentes formações intelectuais e níveis de riquezas, movidos por interesses e anseios diversos e,

não raro, conflitantes.

Nesse sentido, os planos para o levante eram tão vagos quanto os projetos para o futuro

governo. De um modo geral, seria estabelecido um governo republicano, apesar de muitos serem a

favor de uma Monarquia. Alguns eram favoráveis a manutenção dos laços com Portugal; o distrito

diamantino seria liberado para a livre iniciativa dos “brasileiros”; a exploração e a manufatura do

ferro, assim como empreendimentos fabris seriam estimulados; hospitais e outras instituições

filantrópicas ficariam ao encargo dos clérigos; a capital teria como sede São João Del Rei; uma

universidade seria construída em Vila Rica e a bandeira teria a inscrição latina Libertas quae sera

tamem.

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Outros planos foram aventados, porém com reduzida capacidade de organização para

realizá-los. Os inconfidentes não tinham tropas nem armas para conquistar o poder e não contavam

com a participação popular. O movimento, enfim, fracassou por suas compreensíveis debilidades. A

extrema heterogeneidade do grupo, com expectativas e propostas muitas vezes conflitantes, levaria

ao enfraquecimento e à desestruturação do movimento, antes mesmo do início das delações e da

repressão.

Possuíam os conjurados mineiros referenciais ideológicos diversos: a independência das

treze colônias inglesas da América do Norte, o pensamento iluminista e as teorias corporativas de

poder de procedência ibérica. Tais idéias foram apropriadas e reelaboradas em função de seus

interesses e realidades, buscando-se mais a reestruturação do poder, com a manutenção/ampliação

de benefícios econômicos e sociais, do que propriamente revolucionar a América portuguesa. Mais

que a discussão república X monarquia, independência X colonização, governo centralizado X

tripartição de poderes, interessava aos conjurados um governo justo para além da tirania e do

despotismo. Nada mais ibérico, lusitano e escolástico!

Neste trabalho, procuramos demonstrar a força desse legado especialmente nos cinco

clérigos envolvidos na trama sediciosa de 1788-89: os Padres Rolim, Toledo, José Lopes, Manuel

Rodrigues e o cônego Vieira. Desde a época das devassas, chamou a atenção das autoridades

lusitanas a presença desses religiosos. O Desembargador José Pedro Machado Coelho Torres, em

ofício ao vice-rei Luís de Vasconcelos e Souza, datado de 1789, afirmava: “Vossa Excelência sabe

que os réus presos são clérigos (...) se Sua Majestade tomar a resolução de os mandar sentenciar

nesta Relação, deve ir providenciando, sendo certo que os vassalos eclesiásticos são os mais

carecidos de exemplos”. 330 [Grifos Nossos]

A própria Rainha, D. Maria I, qualificava tais padres sediciosos como:

(...) uns malévolos, indignos do nome português, habitantes do espírito de infidelidade, que conspiraram perfidamente, para se subtraírem da sujeição devida ao alto e supremo poder que Deus me tem confiado, pretendendo corromper a lealdade de alguns dos meus fiéis vassalos, mais distintos da Capitania e conduzir o povo inocente a uma infame rebelião (...) porque este era o meio de levarem avante aquele horrendo atentado, urdido pela infidelidade e perfídia (...) sendo tal a maldade e prevaricação destes réus, que sem remorsos faltaram à mais recomendável obrigação de vassalos e de católicos, e

330 ADIM, v. 7, p. 36.

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sem horror contraíram a infâmia de traidores, sempre inerente e anexa a tão enorme e detestável delito. 331 [Grifos Nossos]

Para os grupos que detinham o poder político-econômico daquela época, a participação de

clérigos em uma “nefanda conjuração” era um “ato abominável”, na medida em que eles deveriam,

pela condição de católicos e principalmente pelo ofício que exerciam, ser exemplos de lealdade.

Deveriam ainda persuadir “o povo inocente” a ser fiel à Sua Soberana, mantendo “os povos em

sossego”... mas não foi isso o que aconteceu.

Os padres inconfidentes, em fins do século XVIII, não se inspiraram num modelo

ideológico comum. Admiravam a independência dos Estados Unidos e tinham conhecimento de

suas Leis Constitutivas; liam e debatiam, no dizer da Coroa lusitana, as “pestilentas idéias

francesas” dos iluministas, notadamente Raynal, Diderot e Montesquieu. Idéias estas que não se

coadunavam com a manutenção do projeto colonial e muito menos com as arbitrariedades da Coroa

lusitana na América portuguesa.

Por suas formações acadêmicas, adquiridas nas Minas Gerais (Seminário de Mariana) ou

em Portugal (Universidade de Coimbra), os padres sediciosos tomaram contato com tradições

histórico-culturais próprias da Ibéria, ligadas aos jesuítas. Destaque-se a Segunda Escolástica

(teorias corporativas de poder), além dos escritos do padre jesuíta Antônio Vieira e outros sobre a

história da Restauração Portuguesa de 1640, que também questionavam as arbitrariedades e as

tiranias.

São essas opções distintas que emergem das falas dos diferentes padres conjurados em

seus depoimentos. Some-se a isso o fato de esses religiosos, assim como seus companheiros leigos,

estarem premidos pelo anseio de garantir e ampliar suas possibilidades de enriquecimento numa

estrutura que outrora lhes fora favorável. No entanto, esse contexto mudava rapidamente,

distanciando-os das possibilidades de permanecerem juntos à gestão do poder. Ansiavam por

liberdades econômicas e participação política, com ou sem Portugal, em uma estrutura monárquica

ou republicana.

Nossos personagens - os “homens de batina” - formavam igualmente um grupo bastante

heterogêneo. Entre eles, existiam os muito ricos e poderosos ao lado dos que possuíam menos

cabedais; os intelectuais e os não tão versados em termos de conhecimentos; os mais ou menos

radicais em suas propostas e utopias; os que se deixaram levar por uma vida mais mundana/profana

e outros que se apegavam mais ao sagrado. Eram, portanto, diferentes e singulares. 331 Apud LIMA JR, Augusto de, op. cit., p. 172.

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Segundo o depoimento de uma testemunha, Vicente Vieira da Mota, Tiradentes teria

afirmado que o fracasso do levante devia-se ao fato de não achar homens “(...) pois os filhos destas

Minas são todos uns vis comodistas. Porém, se eu os achar, hei de armar uma meada tal que, em

dez, vinte ou cem anos, se não há de desembaraçar.” 332

Mais de duzentos anos se passaram, e o que nos propusemos neste trabalho foi puxar um

dos fios dessa meada e clarear alguns aspectos da intrincada trama chamada Inconfidência

Mineira.Quisemos destacar alguns “homens de batina” que, imersos em uma realidade opressiva - a

espoliação colonialista - amalgamaram diversas influências ideológicas e passaram a lutar, cada um

à sua maneira e possibilidades, para entronizar a Pátria no Altar, ousando sonhar com uma liberdade

desejada e possível.

“(...) Atrás de portas fechadas, à luz de velas acesas, entre sigilo e espionagem, acontece a Inconfidência. E diz o Vigário ao Poeta: ‘Escreva-me aquela letra do versinho de Virgílio...’ E dá-lhe o papel e a pena. E diz o Poeta ao Vigário, Com dramática prudência: ‘Tenha meus dedos cortados, antes que tal verso escrevam...’

LIBERDADE, AINDA QUE TARDE,

Ouve-se em redor da mesa. E a bandeira já está viva, e sobe, na noite imensa. E os seus tristes inventores Já são réus – pois se atreveram a falar em Liberdade (que ninguém sabe o que seja).” (Cecília Miereles – Romanceiro da Inconfidência)

332 ADIM, v. 5, p. 407.

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