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III Colóquio “Vertentes do Fantástico na Literatura”
Faculdade de Ciências e Letras de Assis
13 a 16 de maio de 2013
ISSN 2175 7933
Anais
III Colóquio “Vertentes do Fantástico na Literatura”
Faculdade de Ciências e Letras de Assis
13 a 16 de maio de 2013
III Colóquio “Vertentes do Fantástico na Literatura”
Faculdade de Ciências e Letras de Assis
13 a 16 de maio de 2013
ISSN 2175 7933
UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE DE CIÊNCIAS E LETRAS DE ASSIS
III COLÓQUIO “VERTENTES DO FANTÁSTICO NA LITERATURA”
13 a 16 de maio de 2013
ANAIS
APOIO:
Departamento de Letras Modernas Programa de Pós- Graduação em Letras
ASSIS 2013
ISSN: 2174-7933
III Colóquio “Vertentes do Fantástico na Literatura”
Faculdade de Ciências e Letras de Assis
13 a 16 de maio de 2013
ISSN 2175 7933
UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE DE CIÊNCIAS E LETRAS DE ASSIS
Reitor
Prof. Dr. Julio Cezar Durigan
Vice-reitora Profa. Dra. Marilza Vieira Cunha Rudge
Diretor
Dr. Ivan Esperança Rocha
Vice-diretora Dra. Ana Maria Rodrigues de Carvalho
DEPARTAMENTO DE LETRAS MODERNAS
Chefe
Dr. José Luís Félix
Vice-chefe Dra. Cátia Inês Negrão Berlini de Andrade
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
Coordenadora Dra. Cleide Antonia Rapucci
Vice-coordenador
Dr. Álvaro Santos Simões Junior
Organização
Dra. Cátia Inês Negrão Berlini de Andrade Dra. Maira Angélica Pandolfi
Dra. Maria de Fátima Alves de Oliveira Marcari Dra. Norma Domingos
Revisão dos Abstracts
Projeto de Extensão Tradutório Júlia de Camargo Schaefer (bolsista)
Dra. Regiani Aparecida Santos Zacarias (supervisão)
III Colóquio “Vertentes do Fantástico na Literatura”
Faculdade de Ciências e Letras de Assis
13 a 16 de maio de 2013
ISSN 2175 7933
Grupo de Pesquisa Vertentes do fantástico na literatura (CNPq) Líder: Karin Volobuef (UNESP – FCL – Araraquara)
Vice-líder: Roxana Guadalupe Herrera Alvarez (UNESP– IBILCE – São José do Rio Preto)
Comissão organizadora do evento Dra. Ana Maria Carlos Dr. Antonio Roberto Esteves Dra. Cátia Inês Negrão Berlini de Andrade Dra. Carla Cavalcanti e Silva Dra. Cleide Antonia Rapucci Dra. Karin Volobuef Dra. Kátia Rodrigues Mello Miranda Dra. Maira Angélica Pandolfi Dra. Maria de Fátima A. de Oliveira Marcari Dra. Norma Domingos Dra. Roxana Guadalupe Herrera Álvarez Secretária Maria Catarina Ferreira de Jesus Machado
Comissão científica do evento Dra.Adriana Lins Precioso Dr. Alexander Meireles da Silva Dra. Ana Maria Carlos Dr. Antônio Roberto Esteves Dra. Cátia Inês Negrão Berlini de Andrade Dra. Carla Cavalcanti e Silva Dra. Cleide Antônia Rapucci Dr. Flavio Garcia de Almeida Dra. Glória Carneiro do Amaral Dra. Heloisa Helena Siqueira Correia Dr. Julio França Dra. Karin Volobuef Dra. Maria Alice Sabaini de Sousa Dra. Maria Cláudia Rodrigues Alves Dra. Maira Angélica Pandolfi Dra. Maria de Fátima A. de Oliveira Marcari Dra. Maria Celeste Tommasello Ramos Dra. Maria Cristina Batalha Dra. Marisa Martins Gama-Khalil Dra. Norma Domingos Dra.Renata Philippov Dra. Roxana Guadalupe Herrera Álvarez Dra.Sylvia Maria Trusen Dr. Wellington Ricardo Fioruci
III Colóquio “Vertentes do Fantástico na Literatura”
Faculdade de Ciências e Letras de Assis
13 a 16 de maio de 2013
ISSN 2175 7933
TEXTOS COMPLETOS
PARTE I
III Colóquio “Vertentes do Fantástico na Literatura”
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13 a 16 de maio de 2013
ISSN 2175 7933
SUMÁRIO APRESENTAÇÃO 7 Adriana Kelly Furtado LISBOA - De Suassuna a Guel Arraes: o maravilhoso no Auto da Compadecida.
10
Adriana Lins PRECIOSO - Representações do mito judaico-cristão em Murais da libertação, de Cerezo Barredo e Dom Pedro Casaldáliga.
23
Alceu João GREGORY - Crítica à sociedade moderna em O Defensor do Esterco 32 Alejandro GONZÁLEZ URREGO - O mito como elemento de identidade cultural construído a partir do cadáver errante de Evita Perón
40
Alessandro Yuri Alegrette - A configuração do fantástico no discurso narrativo de Wuthering Heights (O Morro dos Ventos uivantes).
48
Amanda Pérez MONTAÑÉS - Reflexões sobre “Um senhor muito velho com umas asas enormes” (1968), conto de Gabriel García Márquez.
56
Ana Cristina JUTGLA - Imagens do fantástico em Julio Ramón Ribeyro. 65 Ana Paula A. SANTOS - Onde mora o medo: a transformação do espaço doméstico em Gastão Cruls.
74
Ana Paula dos Santos MARTINS - Entre segredar e revelar: o papel da memória e do fantástico em um conto de Maria Teresa Horta.
83
André Felipe de Sousa ALMEIDA - Mutabilidade do passado e reconfiguração da realidade: um diálogo intertextual entre 1984, de George Orwell e 1Q84, de Haruki Murakami.
93
Aurora Gedra Ruiz ALVAREZ ; Lílian LOPONDO - O insólito: das inquietações da alma humana à autoconsciência.
101
Bruna C. B. SOUZA - De Basile a Disney: uma comparação entre “ Sol, Lua e Tália” e A Bela Adormecida.
111
Bruno Silva de OLIVEIRA - Durante a noite, a mata é um lugar perigoso: a topofobia em O Saci, de Monteiro Lobato.
120
Caroline Aparecida de VARGAS - A expectativa pelo sobrenatural em Anátema e O esqueleto, de Camilo Castelo Branco.
129
Cátia Cristina Sanzovo JOTA - “Quem tem medo de fantasma? Uma análise do medo em “A noiva”, de Humberto de Campos e “Aparição”, de Guy de Maupassant.”
141
Cinthia Lopes de OLIVEIRA - Metamorfose, fabulação e a reescrita fantástica em Murilo Rubião.
150
Claudia F. de Campos MAURO - A personagem feminina dannunziana: entre Górgona e Salomé.
162
Daniela Mantarro CALLIPO - Diálogo intertextual entre Victor Hugo e Charles Nodier: o fantástico no poema “La ronde du sabbat” (1825) e no conto “Smarra ou les Démons de la Nuit” (1821).
171
Danieli M. F. SILVEIRA - A reescritura da figura da bruxa no conto “Circe”, de Julio Cortázar.
179
Denise ROCHA - Acontecimentos fantásticos em uma família multicultural em Luanda, na época dos holandeses (Pepetela).
187
Etienne Souza Santos de LIMA ; Norma DOMINGOS - A morte em Villiers de l’Isle-Adam e Edgar Allan Poe.
195
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Fabiana Angélica do NASCIMENTO – “A casa de Bulemann”, de Theodor Storm: uma crítica ao egoísmo.
203
Fabianna Simão Bellizzi CARNEIRO; Alexander Meireles da SILVA - O espaço do descarte no conto “Espelho”, de José J. Veiga.
215
Fábio Dobashi FURUZATO - Vertentes do fantástico em Murilo Rubião. 230 Fernando Vidal VARIANI - O mandarim assassinado de Eça de Queirós. 243 Flavio PEREIRA - O fantástico na releitura da história em Carnivàle. 251 Giselle Bianca MUSSI DE MOURA - A literatura fantástica russa de Ivan Sergueiêvitch Turguêniev das décadas de 1860
260
Guilherme Augusto Louzada Ferreira de MORAIS; Maria Celeste Tommasello RAMOS; Victória Pereira da SILVA - A Releitura dos Mitos Clássicos em “Percy Jackson e os Olimpianos”.
267
Guilherme SARDAS - O absurdo existencial na obra de Murilo Rubião. 280 Gustavo Ramos de SOUZA - O Duplo em O estranho caso de Dr. Jekyll e Mr. Hyde, de Robert Louis Stevenson.
289
Isabella Unterrichter RECHTENTHAL - Aspectos e efeitos do sobrenatural em Água-mãe, de José Lins do Rego.
300
João Alexandre Martins GALVÃO; Gabriela Cecília Queiroz RAMOS - Edgar Poe: nemo me impune lacessit.
310
Jorge Augusto da Silva LOPES - O fantástico em O estranho caso de Dr. Jekyll e Mr. Hyde.
320
Kátia Rodrigues Mello MIRANDA - A presença de elementos mágicos em Como água para chocolate (1989), de Laura Esquivel: uma leitura.
330
Larissa Athayde CARMO; Maria de Fátima Alves de Oliveira MARCARI - Realismo mágico em Balún Canán: uma visão transcultural.
340
Laura Alves do PRADO - A metaficção na Fantasy de Walter Moers. 349 Lígia Marini PERPÉTUA; Cátia Inês Negrão Berlini de ANDRADE - Fernando Pessoa personagem-fantasma nas narrativas metaficcionais O ano da morte de Ricardo Reis e Requiem
361
Luan Cardoso RAMOS; Maria de Fatima Alves de Oliveira MARCARI - Magia e erotismo no conto “Niña perversa” de Isabel Allende: uma leitura.
372
Luana BAROSSI - O amálgama do ciência-ficcional e do especulativo na obra de Franklin Cascaes.
380
Luciano CABRAL - O que há de monstruoso em “Passeio noturno” e “O psicopata americano?” – uma análise do medo artístico em Rubem Fonseca e Bret Easton Ellis.
388
Marcela PAGLIONE - Aparições do sobrenatural em “Os Cães de Baskerville”, da minissérie Sherlock (BBC).
398
Márcia Valéria Martinez de AGUIAR – “A terceira margem do rio” e o realismo fantástico da revista Planète.
409
Marcio Roberto PEREIRA - Narrativa fantástica e o Surrealismo em Campos de Carvalho (sobre A lua vem da Ásia).
418
Maria Alice Sabaini SOUZA - A manifestação do fantástico em “The Fall of the House of Usher” e ‘The Turn of the Screw”.
426
Maria Cláudia Rodrigues ALVES - Suspense em “Nuit de fièvre”, de Odilon Redon. 436
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Maria Cristina Vianna KUNTZ – “La Petite Roque’, de Guy de Maupassant: o remorso do assassino.
447
Maria de Fátima Alves Oliveira MARCARI - Mulher, natureza e magia: a reafirmação do feminino em La amortajada, de Maria Luisa Bombal.
456
Maria Ellem Souza MACIEL - A Estética e seus paradoxos como problematização do fantástico em Oscar Wilde.
463
Maria Teresa Nunes SANCHES - O herói sveviano e o herói mitológico. 471 Mariana BURIN - A prosa detetivesca e a presença do fantástico em Machado de Assis.
480
Mariana Souza e SILVA - A criação do mundo: relações intertextuais entre o Ainulindalë, de J. R. R. Tolkien, e a Bíblia Sagrada.
487
Muryel da Silva PAPESCH - Facundo, o Átila dos pampas. 497 Nathália Hernandes BERGANTINI - O medo ocasionado pela figura do diabo na obra Macário de Álvares de Azevedo.
506
Nefatalin GONÇALVES NETO - Quando o Eu é Outro: Reflexões sobre o mito de Orfeu e sua figuração em As Intermitências da Morte (ou Contemporaneidade, Clássica a todo custo).
515
Paula Cristina PIVA - A configuração do medo em O coronel e o lobisomem. 527 Paulo Alexandre PEREIRA - Santos do apocalipse: parodia sacra e ironia (neo)fantástica em Valter Hugo Mãe.
533
Pedro Henrique Pereira GRAZIANO; Bruno Olivi de OLIVEIRA; Talita Montalvão PEREIRA; Maria Celeste Tommasello RAMOS - A reescritura da Ilíada, de Homero, no século XXI e as reflexões sobre a Guerra por Alessandro Baricco, em Omero, Iliade.
545
Ramiro GIROLDO - Carmilla, de Sheridan Le Fanu e “61 Cygni”, de Fausto Cunha: o corpo amorfo e a sexualidade em conflito.
558
Raphael da Silva CAMARA - Festins diabólicos: a irrupção do grotesco em espaços festivos na literatura brasileira.
567
Raquel de Vasconcellos CANTARELLI - Elementos míticos e ritualísticos presentes no conto maravilhoso celta “Morraha”.
578
Ricardo Gomes da SILVA - De qual tipo de medo estamos falando? Modalidades do medo no conto “Sem Olhos” de Machado de Assis.
589
Stanis David LACOWICZ - A Ilha do Pavão: uma leitura do real maravilhoso. 597 Suelen Marcellino Izidio de AMORIM - “La fiebre azul”, de Cristina Fernández Cubas: uma leitura do duplo na perspectiva do fantástico.
608
Talita Annunciato RODRIGUES - A queda e a reconstrução de Eva: a releitura do mito de origem nas obras de Angela Carter.
616
Teresa Augusta Marques PORTO - Mágicas vizinhanças. O fantástico e o heróico-maravilhoso em narrativas japonesas do século XII.
626
Thiago Henrique SAMPAIO - Críticas ao imperialismo na obra O Coração das Trevas, de Joseph Conrad.
637
Valdira Meira Cardoso de SOUZA - O medo - elemento de configuração do fantástico na narrativa de Machado de Assis.
645
Wellington R. FIORUCI - Da literatura à televisão: considerações sobre A guerra dos tronos, de George R. R. Martin.
660
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Suassuna a Guel Arraes: o maravilhoso no Auto da Compadecida
Adriana Kelly Furtado LISBOA (CES/JF – SMC)
RESUMO: A presente pesquisa propõe um olhar sobre a cena final da peça Auto da Compadecida, escrita em 1955 por Ariano Suassuna, e em sua releitura apresentada pelo filme O Auto da Compadecida, dirigido por Guel Arraes e lançado em 2000, em que o maravilhoso evidencia-se através do confronto entre celestes e demônios no julgamento dos humanos e no posterior desfecho da história. Utilizando as terminologias propostas por Gérard Genette – hipotexto (texto de partida) e hipertexto (texto de chegada) - e a classificação do texto cinematográfico a partir dos estudos do francês Yannick Mouren sobre transposições literárias para o cinema, faz-se uma análise dos dois corpus apresentados (peça e filme) abordando os recursos empregados na construção da cena do julgamento e o consequente destino do personagem João Grilo. As considerações teóricas a respeito do fantástico-maravilhoso estarão ancoradas principalmente nos estudos de Tzvetan Todorov sobre o tema, em uma divisão baseada em cinco categorias – estranho puro, fantástico-estranho, fantástico, fantástico-maravilhoso e maravilhoso puro – nas quais o autor faz distinção entre o real e o imaginário e a incerteza que se estabelece entre ambos os conceitos, o que define, então, o fantástico como limite entre gêneros: o estranho e o maravilhoso. Com isso, pretende-se demonstrar que a recorrência de Ariano Suassuna ao maravilhoso configurou-se, juntamente com elementos da cultura popular, como estratégia para desenvolver um texto vivo e saboroso bem ao gosto popular, a partir do qual Guel Arraes deleitou-se e, após algumas contribuições, fez uma recriação fantástico-maravilhosa também digna de aplausos. PALAVRAS-CHAVE: Auto da Compadecida; hipotexto; hipertexto; maravilhoso. RÉSUMÉ: Cette recherche propose un regard sur la scène finale de la pièce Auto da Compadecida, écrite en 1955 par Ariano Suassuna, et sur sa relecture présentée par le film OAuto da Compadecida, dirigée par Guel Arraes et sortie en 2000, où le merveilleux est mis en évidence par la confrontation entre le ciel et l'enfer dans le jugement de l'homme et le résultat ultérieur de l'histoire. En utilisant la terminologie proposée par Gérard Genette - hypotexte (texte de départ) et de l'hypertexte (texte d’arrivée) - et la classification du texte du film à partir des études du Français Yannick Mouren sur les transpositions littéraires pour le cinéma, on fait une analyse des deux corpus présentés (la pièce et le film) en abordant les ressources utilisées dans la construction de la scène du jugement et le sort ultérieur du personnage João Grilo. Les considérations théoriques sur le fantastique-merveilleux sont ancrés principalement dans les études de Tzvetan Todorov sur le thème, basées sur une division en cinq catégories – l’étrange pur, le fantastique étrange, le fantastique, le fantastique merveilleux et le merveilleux pur - sur lesquelles l'auteur fait une distinction entre le réel et l'imaginaire et l'incertitude qui naît entre les deux concepts, ce qui définit alors le fantastique comme une frontière entre les genres: l'étrange et le merveilleux. Ainsi, on a l’intention de démontrer que l’emploi récurrent du merveilleux mis en place par Ariano Suassuna, ainsi que les éléments de la culture populaire, font partie d’une stratégie visant à élaborer un texte vivant et savoureux au goût populaire. En effet, après quelques contributions, Guel Arraes a fait une récréation fantastique-merveilleuse aussi digne d'applaudissements.
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MOTS-CLÉS: Auto da Compadecida; hypotexte; hypertexte; merveilleux.
INTRODUÇÃO
A peça Auto da Compadecida foi escrita em 1955 pelo paraibano Ariano Suassuna,
mas sua primeira encenação ocorreu apenas em setembro de 1956 pelo grupo Teatro
Adolescente do Recife, na capital de Pernambuco. A publicação se deu em 1957, quando a
montagem da peça chegava ao Rio de Janeiro, então capital do Brasil. De lá para cá, o texto
foi montado incontáveis vezes, e fez tanto sucesso que, além de ser reconhecido pela crítica e
encenado no exterior, já alcançou três versões para o cinema. A primeira versão ocorreu em
1969 e foi intitulada A Compadecida, sob a direção de George Jonas. A segunda é de 1987 e
recebeu o título de Os Trapalhões no Auto da Compadecida, com a direção de Roberto Farias.
A última versão chegou ao cinema em 2000 sob o título de O Auto da Compadecida, dirigida
por Guel Arraes.
Após breve análise das contribuições da releitura do hipertexto de Guel Arraes a
partir do hipotexto de Ariano Suassuna, far-se-á a classificação da montagem fílmica
baseando-se nos estudos de Yannick Mouren (1993) acerca das tipologias das transposições
de um livro ao filme, de acordo com as definições de adaptação, contaminação e
narrativização. Em seguida, analisar-se-á a cena do julgamento tanto no hipotexto quanto no
hipertexto, em que as diferenças das linguagens teatral e cinematográfica tornam-se mais
claras, possibilitando a variação das interpretações do leitor quanto à existência do
sobrenatural.
Os conceitos de Tzevetan Todorov acerca do estranho puro, fantástico-estranho,
fantástico, fantástico-maravilhoso e maravilhoso puro, em sua obra intitulada Introdução à
literatura fantástica (2010), fundamentam a tese de que a cena final do filme de Guel Arraes
evolui do maravilhoso, presente no hipotexto, ao fantástico-maravilhoso, auxiliada
principalmente pelos recursos fílmicos, os quais não se verificam na peça, posto que cinema e
teatro tratam de diferentes linguagens.
O TEXTO ORIGINAL OU HIPOTEXTO
Auto da Compadecida é uma peça teatral escrita a partir de elementos de tradição da
cultura popular nordestina, como a literatura de cordel, misturando a tradição religiosa
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brasileira com ecos da tradição e cultura europeias, o autor conseguiu criar um diálogo
eminentemente teatral, vivo e saboroso, colorido e descritivo, popular sem ser vulgar,
reafirmando o caráter religioso da peça.
Apesar de dar liberdade ao encenador para a montagem do Auto, observando a
estrutura da peça de Suassuna, percebe-se que ela se divide, ou melhor, pode ser dividida em
três atos, apresentando quinze personagens de cena e uma personagem de ligação a comando
do espetáculo, neste caso, o Palhaço. João Grilo é a personagem principal. Outras personagens
são também muito importantes como: Chicó, Padre João, Sacristão, Padeiro, Mulher do
Padeiro, Bispo, Cangaceiro, o Encourado, Manuel, A Compadecida, Antônio Morais, Frade,
Severino do Aracaju e o Demônio.
Segundo palavras do próprio autor Suassuna (2005, p. 13), seu teatro é mais
aproximado dos espetáculos de circo e da tradição popular que do teatro moderno. Dessa
forma, inicia a peça com a apresentação das personagens que entram em cena simulando um
espetáculo circense. Logo de início o palhaço, ou narrador, justifica tratar-se de uma peça com
caráter moralizante e em seguida dá espaço para a entrada do personagem principal e seu
companheiro de trapaças: João Grilo e Chicó, dois típicos nordestinos explorados, em torno
dos quais se desenvolve toda a trama. O primeiro demonstra esperteza, malandragem, pois
tenta se dar bem o tempo todo, enganando até mesmo os membros do Clero e da elite
nordestina (representada pelo Major). É o responsável, ajudado por Chicó, por todo o
encadeamento das ações. O segundo evidencia a covardia, pois apesar de também ser
explorado, tal qual João Grilo, Chicó não toma nenhuma atitude para tentar mudar essa
situação, apenas “pega carona” nas trapaças de João Grilo. Além disso, ao longo do texto
depara-se com histórias, ou melhor dizendo, “causos” que ele conta a João Grilo que, do
ponto de vista da verossimilhança, são absurdos, mas que contribuem para reforçar o caráter
cômico da peça.
Ambos trabalham na padaria de um vilarejo chamado Taperoá, no Sertão Nordestino,
e entram em cena discutindo a respeito dos motivos que levariam o Padeiro a visitar o Padre
João, pároco da igreja local, naquele dia: o cachorro que a Mulher do padeiro possuía estava
doente, quase morrendo, então João Grilo e Chicó foram incumbidos de avisar ao Padre que o
Padeiro levaria o animal para receber a benção.
Os dois entram na igreja e perguntam se o Padre benzeria um cachorro, mas, com a
recusa do pároco, João Grilo diz que o animal pertencia ao Major Antônio Moraes, homem
poderoso, dono de diversas minas das redondezas, de quem Padre João já benzera um motor
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anteriormente. A partir dessa mentira, sucedem-se diversos quiprocós e muita confusão, já que
o filho do Major também estava doente e desejava a benção do Padre.
O dono da padaria, isto é, o Padeiro e sua Mulher representam a burguesia rica e
exploradora. O primeiro é um homem avarento e a outra é uma mulher adúltera. Mas apesar
de toda sua avareza, acaba cedendo às investidas de João Grilo e libera uma quantia em
dinheiro para este conseguir um enterro em latim para o cachorro que morrera antes mesmo
de ser benzido. Ao inventar que o cachorro tinha um testamento e deixara dinheiro para a
paróquia e para o Sacristão, João convence os eclesiásticos a enterrar o animal morto e até o
Bispo, que chegara nervoso para tirar satisfação com Padre João a respeito das queixas que
ouvira do Major Antônio Moraes, acaba entrando no testamento do cachorro inventado por
João.
Em seguida, com ajuda de Chicó, o protagonista cria outra trapaça para se dar bem:
vende um gato que “descome dinheiro” para a Mulher do Padeiro. Não demora muito e os
donos da padaria descobrem a nova trapaça de João e o Padeiro vai atrás dele para tirar
satisfação. Ao entrar na Igreja atrás do trapaceiro, o Padeiro encontra também Chicó, o Frade
e os outros três eclesiásticos (Padre João, Bispo e Sacristão) que acabavam de receber o
pagamento pelo enterro do cachorro. Os dois, Padeiro e João começam a discutir e de repente
ouvem tiros do lado de fora da igreja. A Mulher do Padeiro entra nervosa na igreja explicando
que os tiros são do cangaceiro Severino do Aracaju e seu cabra que invadiram a cidade e avisa
que os dois estão seguindo para igreja para assaltá-la também. Todos se desesperam, mas é
tarde, pois Severino entra e, depois de pegar o dinheiro daqueles que o possuíam, acaba
matando a todos, exceto o Frade a quem Severino absolvera. Mas na hora de matar os dois
últimos, João Grilo e Chicó, Severino cai em uma trapaça de João e acaba morrendo. Em
seguida, o cabra de Severino, que estava ferido por uma facada dada por João, acaba por atirar
no responsável pelo assassinato de seu ”capitão” e morre em seguida. João Grilo também
morre, para desconsolo de Chicó, o único que permanece vivo.
Na última parte da peça todos os mortos – João Grilo, Severino do Aracaju, o
Cangaceiro, o Bispo, o Padre João, o Sacristão, o Padeiro e a Mulher do Padeiro – “acordam”
para serem acusados e julgados diante do Encourado e de Manuel. Após as acusações feitas
pelo Encourado todos se desesperam com a iminência de irem para o inferno, mas João
novamente usa de esperteza e consegue evocar a Compadecida para advogar em favor de
todos. Com a ajuda dessa “grande advogada” os eclesiásticos juntamente com o Padeiro e sua
Mulher conseguem ir para o purgatório. Severino do Aracaju e o Cangaceiro são absolvidos
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por Manuel e vão direto para o paraíso. João é julgado por último e acaba conseguindo voltar
à terra. Ao retornar, ele reencontra o companheiro Chicó e os dois acabam entregando todo o
dinheiro que Severino roubara para a igreja como pagamento de promessa feita por Chicó a
Nossa Senhora, caso João sobrevivesse. Tal dinheiro é referente aos roubos que Severino
realizara imediatamente antes de morrer e de quem João, após a morte daquele, pegara toda a
quantia pensando em se dar bem. Contudo, como se sabe, João também é baleado e morre.
Após o julgamento e em seu reencontro com Chicó, ele fica sabendo da promessa, da qual
reclama bastante, mas acaba entregando todo o dinheiro dizendo:
Se fosse a outro santo, ainda ia ver se dava um jeito, mas você achou de prometer logo a Nossa Senhora! Quem sabe se eu não escapei por causa disso? O dinheiro fica como se fossem os honorários da advogada. Nunca pensei que essa também aceitasse pagamento!(SUASSUNA, 2005, p. 172).
Mais algumas palavras e o Palhaço entra em cena e encerra o espetáculo pedindo o
aplauso da plateia.
Por possuir um enredo que proporciona ao leitor/espectador riso e dor, Auto da
Compadecida é uma mistura de tragédia e comédia. De acordo com Geraldo da Costa Matos,
em O palco popular e o texto palimpséstico de Ariano Suassuna (1988):
Auto da Compadecida é tragicômica pois participa da estrutura trágica pela oposição muito radical dos personagens a ponto de não haver acordo entre eles e, da cômica, pelos incidentes e desenlace com a salvação de todos graças à intervenção da Compadecida, permanecendo no inferno apenas os demônios cuja situação já se encontra definida ao aparecerem ao palco (1988, p.82).
Assim, como se pode observar, a peça faz rir e refletir sobre a condição humana em
diversos aspectos tais como a exploração do homem pelo homem, a efemeridade da vida
terrena, valores éticos e morais, dentre outros, o que acaba por torná-la atual, do ponto de
vista da temática. Constitui, ainda, um excelente instrumento de crítica social bem ao gosto
popular, já que obedece a uma expressão latina que traduzida diz “rindo se castigam os
costumes”, despertando o interesse dos dramaturgos em geral.
O HIPERTEXTO OU FILME
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Na montagem dirigida por Guel Arraes de O Auto da Compadecida (2000), cujo
roteiro fora feito em parceria com Adriana Falcão e João Falcão, pode-se notar diferenças
mais bruscas que as dos dois filmes precedentes em comparação ao hipotexto de Ariano. A
grande diferença nessa última versão fílmica pode ser atribuída principalmente a essa
ausência de Ariano Suassuna na transposição da peça escrita para o roteiro cinematográfico, já
que nas montagens de 1969 e 1987, o autor da peça também foi o roteirista. Em princípio,
também, deve-se esclarecer que Guel Arraes vislumbrou primeiro uma montagem para a
televisão, mas logo no início, durante a escolha do elenco, já pretendia lançar a filmagem da
peça também no cinema. Para tanto, o diretor e sua equipe fizeram as filmagens já em
película. O que já explicaria as supressões e acréscimos desta última versão intitulada O Auto
da Compadecida (2000).
Como uma microssérie televisiva, dividida em quatro capítulos, exigia um enredo
mais longo que o da peça original de Ariano, e Guel Arraes não abria mão de um par
romântico na montagem, os três roteiristas trataram de buscar novos elementos em outros
textos. Preferencialmente em textos de Suassuna, pois, assim, não desagradariam o autor, mas
também fizeram acréscimos de outras fontes. Dessa forma, acrescentou-se a personagem
Rosinha para ser a filha do Major Antônio Moraes, modificando o texto original, uma vez que
esta personagem possuía um filho (homem) a quem apenas faz referência em conversa com o
Padre João. Junto com a filha do Major, surgem também Cabo Setenta e Vicentão, ambos
retirados da peça Torturas de um coração (2012) em que disputam o amor de Marieta. Na
montagem de Guel, permanece a rivalidade das duas personagens pelo amor de Rosinha e,
nessa disputa, acrescenta-se, ainda, a personagem de Chicó. Marieta, do original de Suassuna,
é substituída por Rosinha não só no nome, mas também porque na verdade, a personagem que
influencia sua criação é Margarida de O santo e a porca (2010), outra peça de Ariano. Na
peça citada, Margarida é uma jovem casta que deseja se casar e é filha de um homem avarento
chamado Euricão Árabe, o qual possui uma porca cheia de dinheiro. Na versão de Arraes,
Rosinha é quem possui uma porca, herdada da avó, cheia de dinheiro que lhe serve de dote
para um futuro pretendente.
Ainda em relação às personagens, destaca-se a exclusão do Sacristão, Frade, Palhaço
e Encourado. Com a retirada do Palhaço, observa-se, também, a ausência da atmosfera
circense presente no hipotexto e também nos filmes precedentes, mas a exclusão do narrador é
bastante comum em transposições de textos literários para contextos fílmicos. Provavelmente
a exclusão das demais personagens – Frade, Sacristão e Encourado – deve ter sido motivada
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por critérios de economia, os quais fogem à análise deste trabalho. Não se pode esquecer, no
entanto, que o Encourado do hipotexto continua representado na montagem, já que seu papel
é de fundamental importância no julgamento dos mortos. Ele é apenas condensado na
personagem do Demônio, apesar de perder, em relação à peça original, a caracterização de
vaqueiro.
Nessa versão dirigida por Guel Arraes, observa-se, ainda, uma antecipação da
entrada do cangaceiro Severino do Aracaju em cena, uma vez que tal personagem aparece
disfarçada de mendigo, pedindo esmola e observando as demais personagens antes da cena
prevista pela peça.
Tais exclusões e acréscimos feitos por Guel Arraes e demais roteiristas em O Auto da
Compadecida (2000) são as principais diferenças desse hipertexto em relação ao hipotexto e
aos outros dois hipertextos. Apesar de essas modificações não caracterizarem pouca coisa, o
texto primitivo de Ariano se mantém presente em toda a montagem só que acrescido de
personagens e ações presentes em outras duas peças do autor: O santo e a porca (2010) e
Torturas de um coração (2012).
Assim, Guel Arraes conseguiu em 1998 seu objetivo de filmar o Auto da
Compadecida de Ariano Suassuna para uma versão mais extensa, como pede uma microssérie
televisiva, apresentando um casal romântico bem ao gosto do público, Rosinha e Chicó que,
após tantas aventuras e desventuras, conseguem fechar essa montagem tragicômica com uma
pitada de romance.
Após a exibição em 1999 da microssérie em TV aberta, pela Globo, devido ao seu
grande sucesso e também porque já era uma pretensão do diretor desde as filmagens, Guel
decidiu lançar a montagem do Auto também no cinema. Para isso, teve apenas que “cortar”
algumas cenas da microssérie, pois já fizera a montagem pensando na versão cinematográfica,
e de cerca de 200 minutos de filmagem para a televisão alcançou-se aproximados 104 minutos
para a exibição da montagem em telas de cinema.
AS POSSIBILIDADES DE TRANSPOSIÇÃO
Em estudos sobre a tipologia das transposições do livro ao filme, o francês Yannick
Mouren (1993) destaca o fato de ocorrer nesse processo de transposição uma inexatidão
terminológica, em decorrência do fato de o cinema estar ainda no seu nascedouro. Assim,
quando um filme não se apoia em um roteiro original, pode-se ler nos letreiros fórmulas como
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adaptação de..., inspirado em... etc.. Contudo, o termo mais empregado que qualquer outro é:
adaptação. Desta forma o autor ressalta que há casos em que os autores dos roteiros têm
consciência de que o trabalho feito por eles para transpor à tela tal texto ou tal livro é
diferente daquele a que, geralmente, o termo adaptação se aplica. Assim, propõe três tipos de
transposição do livro ao filme: (1) no caso mais simples, que se chama adaptação, o cineasta
ou os roteiristas partem de um romance (ou de uma novela) único e fazem dele um filme de
ficção; (2) mais raramente, o autor ou os autores do roteiro partem de muitos (mais
frequentemente dois) romances e novelas e fazem deles um filme de ficção, que é definido
como contaminação, contando uma história única (o filme em esquetes não faz, portanto,
parte dessa categoria); e, (3) às vezes, os autores do roteiro partem de uma ou de várias obras
não narrativas (e não ficcionais), tais como memória, relato, diário, minuta de processo (todo
texto não ficcional que não conta uma história começando por uma situação inicial estável e
terminada por um retorno a uma situação estável) e fazem delas um filme de ficção, contando
uma história única. Este tipo recebe o nome de narrativização (Mouren, 1993, p.113).
Para estudar uma transposição, Yannick Mouren (1993) utiliza as definições de
Gérard Genette contidas em obra intitulada Palimpsestes (1982) tais como hipotexto (texto de
partida, ou literário), hipertexto (texto de chegada, ou filme) e abordagens teóricas chamadas
transposição. De acordo com aquele autor, para transformar um hipotexto escrito em um
hipertexto fílmico o cineasta ou roteirista é obrigado a fazer determinadas escolhas, às vezes
inconscientes, no seio da narrativa, a qual ela divide em três níveis: a diegese (universo de
onde vem a história); a história (sucessão de acontecimentos); e as personagens (enquanto
seres de ficção) (Mouren, 1993, p. 114).
A diegese ou “transposição diegética” pode ser entendida como as modificações
espaciais, temporais e sociais que o hipertexto pode apresentar em relação ao hipotexto.A
história ou “transformação pragmática” diz respeito às modificações das ações, do conteúdo e
ou encadeamento da história propriamente dita. Constitui o trabalho maior e mais árduo na
transposição do hipotexto ao hipertexto, pois, normalmente, obedece a critérios de economia,
viabilidade e tempo.Quanto às personagens, as mudanças do texto de partida para o texto de
chegada podem variar de acordo, principalmente, com o número, idade e sexo.
Em relação à contaminação, Yannick Mouren (1993) a define como uma prática
hipertextual que se caracteriza por partir de dois textos (ou mais) de ficção e fazer deles um
filme único de ficção. Deixa bem entendido que partir de vários textos escritos como
novelas/contos, peças de teatro, narrativas, etc. com o intuito de transformá-los em um filme
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em esquetes não constitui uma contaminação. Isso é justificado pelo fato de que cada esquete
é narratologicamente autônomo. O autor completa afirmando que a contaminação vem do
teatro e que é no teatro que se encontra a maioria dos exemplos de contaminação. Em
contrapartida, no cinema é muito pouco encontrada (Mouren, 1993, p.120).
Como pôde ser observado anteriormente, no filme abordado por esta pesquisa, O
Auto da Compadecida (2000), há uma condensação de três peças de Ariano Suassuna, a saber
Auto da Compadecida (2005), O Santo e a Porca (2010) e Torturas de um coração (2012),
apesar de aparecer no título da filmagem apenas o nome do Auto. Tal condensação pode ser
mais facilmente notada do ponto de vista do acréscimo de personagens que,
consequentemente, alterou o enredo do filme em relação à peça inicialmente escolhida para
ser adaptada.
Em uma análise deste hipertexto fílmico, de acordo com os pressupostos de Yannick
Mouren, sobre as técnicas de transposição de um texto escrito para um contexto
cinematográfico, pode-se observar que a montagem de Guel Arraes intitulada O Auto da
Compadecida (2000) é, na verdade, um exemplo de contaminação e não de adaptação, pois
apresenta elementos de três hipotextos distintos em sua concepção. Entretanto, o termo
adaptação, por ser o mais usado para definir as transposições literárias para o cinema, é
utilizado até pelos roteiristas da montagem aqui abordada.
Contudo, guardadas as diferenças entre os conceitos de adaptação e contaminação,
observa-se que este último guarda, em sua abordagem, uma definição mais clara do processo
de transposição ocorrido no filme O Auto da Compadecida (2000) de Guel Arraes, prevenindo
a um receptor do filme que não tenha lido a peça de Ariano de pensar que tal versão fílmica
corresponde literalmente ao texto escrito.
DO MARAVILHOSO AO FANTÁSTICO-MARAVILHOSO
No texto de partida, ou hipotexto de Ariano Suassuna, há uma manifestação do
maravilhoso na cena do julgamento e também no desfecho da história. Como pôde ser visto, a
peça inicialmente transcorre de maneira verossímil, ou seja, os fatos pertinentes às cenas do
primeiro e segundo atos são todos passíveis de explicação mediante às leis naturais. O
episódio do enterro do cachorro e o do gato que “descome” dinheiro são situações cômicas e
esdrúxulas, mas completamente possíveis de acontecer. Já no terceiro ato ocorre o insólito: o
julgamento das personagens que morreram, em que o Encourado faz a acusação das
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personagens, a Compadecida faz a defesa e o Manuel fica com a função de juiz. Neste
julgamento são analisadas as atitudes das personagens humanas pelos personagens
transcendentais que representam Jesus, Maria e Satanás. Os três pertencem à ideologia
religiosa cristã, pautada no Novo Testamento. Jesus e Satanás pertencem à ideologia do
Cristianismo em geral e a figura de Maria, ou Nossa Senhora, como intercessora, pertence à
ideologia especificamente católica.
Ora, a existência de tais entidades religiosas, explicitadas na Bíblia Sagrada, só pode
ser aceita mediante a fé de cada indivíduo. Não é compartilhada por todos os leitores
possíveis da peça de Ariano. Então, o julgamento das personagens Bispo, Sacristão, Padre
João, Padeiro, Mulher do Padeiro, Severino do Aracaju, Cangaceiro e João Grilo só pode ser
visto como algo sobrenatural, isto é, sem explicações naturais, já que a crença em tais
entidades depende de cada um e, provavelmente, a obra é lida de formas diferentes por cada
leitor. Para um leitor católico, por exemplo, a peça fala da transcendência na qual ele acredita.
Para um leitor cristão fora do Catolicismo, o julgamento dos humanos diante de um tribunal
composto por entidades celestes e infernais poderia até existir, mas não seriam aceitos, por
exemplo, a intervenção da Compadecida e a existência do Purgatório. Já para um leitor laico,
a peça poderá ser aceita do ponto de vista da alegoria, ou seja, tudo o que se faz tem um preço
a ser pago. No desfecho da peça há, ainda, outro acontecimento insólito: a ressurreição de
João Grilo. Acontecimento este que também depende de o leitor crer ou não na vida após a
morte.
No entanto, por se tratar do gênero dramático em que as personagens estão bem
próximas ao público e por aparecer na peça escrita de Ariano as didascálias (instruções típicas
da linguagem teatral) e a figura do narrador, representado pelo Palhaço, que vai dando ordens
aos atores para viabilizar a encenação, mesmo diante do público, a hesitação perante os fatos
narrados se torna praticamente nula. Na verdade, tal hesitação aparece até identificada na fala
do personagem Chicó, mas não encontra identificação com o público. Observe a transcrição
de um trecho da peça:
João Grilo (dando-lhe uma tapa): Levante, Chicó. Não está vendo que sou eu? Estou vivo rapaz! Chicó: É possível? João Grilo: Tanto é possível que estou aqui. Chicó: Eu só acredito vendo. João Grilo (aproximando-se): Pois então veja. Chicó: Ai! João Grilo: Que é isso homem? Você não disse que só acreditava vendo? Chicó: Disse, mas não pedi que mostrasse não! João Grilo: E como é que vai ser agora, Chicó? Chicó: Assim mesmo, eu sem acreditar e você sem se mostrar. João Grilo: E nossa sociedade, nossa velha amizade, vão se acabar? Chicó: Já estão acabadas. É contra meus princípios
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fazer sociedade com defunto! João Grilo: Mas estou vivo rapaz! Veja, pegue aqui no meu braço! [...] Chicó: Meu Deus, é mesmo! João! (Abraça-o.) Como foi isso, João? João Grilo: Sei não, Chicó, acho que a bala pegou de raspão. Fiquei com a vista escura e, quando acordei, estava na rede e vocês iam me enterrar. [...] (SUASSUNA, 2005, p. 167).
Como pode ser observado, apesar de Chicó duvidar que fosse possível a ressurreição
de João Grilo, acaba aceitando o sobrenatural sem maiores questionamentos, assim como o
público que nem mesmo chega a hesitar, apenas aceita o sobrenatural dentro do universo da
obra, caracterizando, desta forma, a presença do maravilhoso na peça, o qual é definido por
Todorov (2010, p. 59-60) justamente por apresentar elementos sobrenaturais que não
provocam qualquer reação particular nas personagens ou no leitor implícito.
No caso do hipertexto fílmico, a hesitação do leitor diante da cena do julgamento e
da ressurreição de João Grilo é mais nítida, uma vez que o leitor não tem a possibilidade de
ver as personagens diante de si e também não aparecem didascálias e outras instruções dadas
pelo narrador como acontece na peça escrita. O texto cinematográfico contou, ainda, com
técnicas próprias, que contribuíram para a dúvida do público, tais como: efeitos especiais,
maquiagem, sonoplastia, dentre outras. Tais técnicas são bem mais ricas e aprimoradas se
comparadas ao teatro, principalmente se considerarmos o teatro de rua proposto por Ariano
Suassuna na composição do Auto. No filme, a aparição das personagens transcendentais é
repleta de efeitos especiais e, além disso, após a ressurreição de João Grilo, os roteiristas
inseriram algumas outras situações que podem induzir o público a questionar ainda mais se o
que veem pode de fato ocorrer, como, por exemplo, a possibilidade de Jesus se disfarçar de
mendigo para testar ou provar o caráter ou a misericórdia do ser humano.
Dessa forma, pode-se observar que, diante de um público cristão, em especial o
católico, a montagem fílmica proporciona uma certa hesitação diante dos fatos narrados na
cena do julgamento e posterior desfecho da história, pois tal público acaba por aceitar o
sobrenatural como única explicação plausível para compreender a narrativa. O fantástico-
maravilhoso, assim, passa a ser aceito sem questionamentos por parte de um leitor ideal do
filme.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As versões fílmicas de textos literários (ou hipertextos) têm proporcionado,
principalmente no campo da crítica literária, variadas análises a respeito das contribuições que
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tais produções têm propiciado ao texto primitivo (texto de origem ou hipotexto) e à literatura
em geral. Parte dessas análises críticas considera as adaptações fílmicas baseadas em textos
literários uma perda substancial para o fazer ficcional, uma vez que essas novas leituras não
se preocupam em ser fiéis aos seus hipotextos. Outra parte, considera as (re) leituras
cinematográficas como novas possibilidades de divulgar o texto literário, dentre outras
contribuições positivas. Esta ideia de que o hipertexto (ou texto de chegada) funciona como
uma (re) leitura de seu hipotexto norteia a presente pesquisa, que vê na criação de O Auto da
Compadecida (2000) de Guel arraes uma pertinente contribuição ao fazer literário de
Suassuna e à divulgação de seu hipotexto intitulado Auto da Compadecida (2005).
Conforme pôde ser constatado, a peça escrita Auto da Compadecida traz na última
cena, e em seu desfecho, o elemento maravilhoso, representado pelo julgamento dos mortos
através de seres trancendentais como Manuel, a Compadecida e o Encourado, e, ainda, através
da ressurreição do protagonista João Grilo. Esse maravilhoso presente na peça, que se
fundamenta na aceitação do sobrenatural sem qualquer questionamento, evolui para o
fantástico-maravilhoso na transposição fílmica de Guel Arraes pois, por se tratar de um filme,
a hesitação aparece, mas o público acaba por aceitar o sobrenatural como única explicação
possível para interpretar os fatos narrados.
Por se tratar de um exemplo de contaminação, que se define por condensar em um
único filme três obras distintas do autor Ariano, a recriação do Auto na versão de Guel Arraes
proporciona ao público uma visão geral do teatro de Suassuna, o qual se inclina para o
cômico. Além de propiciar riso e reflexão aos que já conhecem a obra de Suassuna, ao
espectador que a desconhece, o filme é uma boa carta de recomendação à leitura deste
escritor, que se preocupa bastante em preservar as origens populares da cultura brasileira.
REFERÊNCIAS:
ARRAES, Guel. O Auto da Compadecida. São Paulo: Globo Filmes, 2000. GENETTE, Gérard. Palimpsestes :la littérature au second degré. Paris: Seuil, 1982. JONAS, George. A Compadecida. São Paulo: Alpha Filmes. MATOS, Geraldo da Costa. O palco popular e o texto palimpséstico de Ariano Suassuna. 1988. Macro-área de Literatura Brasileira. Faculdade de Filosofia de Itaperuna - RJ. Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Carangola, MG, 257 p.
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MOUREN, Yannick. Le film comme hypertexte. Poétique. Paris: Seuil, n.93, fev./1993, p. 113-122. FARIAS, Roberto. Os trapalhões no auto da compadecida. Renato Aragão Produções Artísticas, 2010. SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecia. 35. ed. Rio de Janeiro: Agir, 2005. TODOROV, Tzvetan. Introdução à Literatura Fantástica. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 2010.
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Representações do mito judaico-cristão em Murais da libertação, de Cerezo Barredo e Dom
Pedro Casaldáliga
Adriana Lins PRECIOSO (Universidade do Estado de Mato Grosso – UNEMAT/ Sinop)
RESUMO: A mitologia judaico-cristã surge renovada na obra Murais da Libertação: na Prelazia de São Félix do Araguaia, MT, Brasil (2005). As ilustrações dos painéis das igrejas no Araguaia são do missionário claretiano Maximino Cerezo Barredo e os poemas de Dom Pedro Casaldáliga, os quais, por meio da Teologia da Libertação, linha teológica da Igreja Católica, da qual são adeptos, promovem uma renovação no projeto de representação da divindade. Essa nova vertente propõe uma reinterpretação antropológica da fé cristã, em que o divino apresenta sua função no chão da história, envolvendo os pobres e as minorias na luta pela libertação do sistema capitalista desenfreado. O compromisso dos religiosos dessa concepção teológica é desenvolver uma revolução espiritual que promova a participação ativa do povo na sociedade e na Igreja. A busca pelo Cristo primordial, negro e pobre ganha na teologia da libertação um novo tom divino, um sagrado renovado nos ritos e rituais nas comunidades de base. Nossa proposta é identificar no processo dialógico dos elementos pictóricos e poéticos inseridos na obra citada a atualização mitológica da figura de Cristo, a intertextualidade com o Cristianismo Primitivo e as relações da arte sacra com a comunidade onde ela está inserida por meio do processo multicultural. Este texto apresenta o resultado parcial do projeto intitulado: “Transculturação e poéticas contemporâneas: traços identitários da cultura de Mato Grosso” – aprovado pela FAPEMAT – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Mato Grosso – Edital n. 002/2012 PALAVRAS-CHAVE: mito judaico-cristão; Murais da Libertação; multiculturalismo. ABSTRACT: The Judeo-Christian mythology is renewed in the work Murais da Libertação: in Prelazia in São Félix do Araguaia, state of Mato Grosso, Brazil (2005). The illustrations in the panels of the churches in Araguaia are from the claretian missionary Maximino Cerezo Barredo and the poems written by Don Pedro Casaldáliga. They proposed a new view of the Divine representation, inspired by the liberation theology (Theology of Liberation), theological line of the Catholic Church, of which they are supporters. This new aspect proposes an anthropological reinterpretation of the Christian faith, in which the divine has its function in the ground of the history, involving the poor and minorities in the struggle for liberation of the unbridled capitalist system. The religious commitment of this theological concept is to develop a spiritual revolution that promotes the active participation of the people in society and the Church. The search for poor, black and primordial Christ gains in the Liberation Theology of Liberation a new divine tone, a sacred renewed in rites and rituals in base communities. Our proposal is to identify in the dialogic process of pictorial and poetic elements inserted in the cited work the mythological updating of the figure of Christ, the intertextuality with early Christianity and the sacred art relationship with a community where it is inserted through a multicultural process. This paper presents the partial results of the project entitled: “Cross-culture and contemporary poetics: identity features of the culture of Mato Grosso" - approved by FAPEMAT- Foundation for Research Support of the State of Mato Grosso – Call no.002/2012 KEYWORDS: Judeo-Christian myth; Murais da Libertação; multiculturalism.
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A mitologia cristã ganhou forças nos séculos posteriores à morte de Cristo. A
compilação dos evangelhos, a junção do Novo e do Velho Testamento auxilia no crescimento
e fortalecimento da fé cristã. A vida lendária dos santos, padres, crianças e mulheres,
reconhecidas como verdadeiras ou não também forma a mitografia cristã. Todavia, nos seus
primórdios, por conta do não reconhecimento e da perseguição, os cristãos reuniam-se em
catacumbas. Esses espaços subterrâneos abrigavam não só os mártires mortos nos conflitos
religiosos, como também, preservavam as primeiras pinturas nos murais, com imagens que
faziam valer a máxima do Cristianismo que anuncia a vida com Cristo no céu após a morte
terrena.
A história e a figura de Jesus Cristo compiladas nos evangelhos traçam a passagem
de herói histórico para mítico. Caracterizando esse percurso, Eliade afirma:
O caráter histórico das personagens da poesia épica está em causa. Mas a sua historicidade não resiste durante muito tempo à acção corrosiva da mitificação. Seja qual for a sua importância, o acontecimento histórico em si só perdura na memória popular e a sua recordação só inspira a imaginação poética na medida em que esse acontecimento histórico se aproxima de um modelo mítico. (s/d, 57)
Nesse processo de mitificação, Eliade (s/d) considera que é necessário haver um
nascimento miraculoso e que um dos pais seja um deus. Dessa forma, a personalidade
histórica surge reconstruída por meio de uma biografia que passa a seguir os modelos míticos
e são eles que perduram na memória popular. No caso de Jesus Cristo, a igreja Católica
reafirmou esse processo trazendo paralelamente as histórias contidas nos evangelhos,
representações figurativas do filho de Deus que evidenciassem esse herói mítico, fabuloso e
perfeito.
Aos poucos, a história passa a ser abolida e a caracterização heroico-mítica ocupa o
espaço das referências históricas. No caso do Cristianismo e, do modo especial na maioria das
igrejas cristãs, foram deixadas as origens primitivas da história do Cristo carpinteiro, pobre e,
possivelmente, negro, para a figurativização de um homem com características esteticamente
mais aceitas, como a figura de um príncipe, por exemplo; sendo assim: alto, loiro, olhos azuis,
corpo atlético e perfil nobre. Essa representação desse Cristo poderoso, nobre e belo perdura
em várias reproduções ainda nos dias atuais. Vale ressaltar, contudo, que no Brasil e também
em toda a América Latina, apesar dos séculos da repetição no processo de representação, os
anos 60/70 do século passado revelaram uma nova vertente da Igreja Católica, uma faceta
mais questionadora e crítica a respeito das suas próprias ações, dando origem ao movimento
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denominado de “Teologia da Libertação”. Desse modo, o pensamento da igreja instituída na
América Latina, passou a observar a história mais de perto e questionar seu posicionamento
cúmplice, tal como propõe Boff (1990, p. 13):
Se ontem o cristianismo foi cúmplice da máquina da morte, hoje deve ser aliado na gestação de vida para as vítimas do tipo de desenvolvimento que exclui as grandes maiorias. O que hoje se sofre é consequência do que ocorreu há 500 anos; a invasão colonizadora continua ainda hoje, sob a forma da dominação tecnológica, dos capitais que entram para explorar a mão-de-obra barata e a abundância das matérias-primas e do atrelamento a políticas que favorecem os poderosos do império e seus aliados e subalternizam o povo.
Esse movimento cristão, iniciado no Brasil durante a década de sessenta e
amadurecido ao longo dos demais anos conta com teólogos que buscam renovar o propósito
da igreja primando pelas suas referências históricas primordiais. Leonardo Boff e Dom Pedro
Casaldáliga são alguns desses pensadores que teorizam sobre esse processo de inovação da
igreja. A base dessa atualização tem como fundamento:
[...] um modelo novo de Igreja, nascendo da fé do povo pelo Espírito de Deus dentro da miséria, já não mais aceita, mas rejeitada por uma compreensão e prática libertadora. A Igreja dos pobres ou também chamada Igreja da base é uma realidade histórico-social. Ela realiza uma presença distinta da mensagem cristã dentro dos condicionamentos específicos da América Latina em processo de conscientização de suas contradições e de superação de suas opressões. (BOFF, 1990, p.34)
Os fundamentos da Teologia da Libertação elegeram a história primitiva do
Cristianismo e não seus aportes míticos para sua renovação. Desse modo, o povo passa a
figurar como foco do processo de evangelização e ação. A libertação desejada se sustenta na
mensagem cristã de um Deus que se fez homem e habitou entre os pobres. E assim, como uma
nova focalização vem sendo realizada, faz-se necessário uma nova representação desse Deus
primitivo.
A obra Murais da Libertação: na Prelazia de São Félix do Araguaia (2005) de
Cerezo Barredo e Pedro Casaldáliga inicia o movimento de renovação da figura desse Cristo
primitivo e preso ao chão da história de um povo que merece a libertação. Essa nova vertente
católica propõe uma revolução espiritual que culmina em uma participação ativa do povo na
sociedade e na Igreja.
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A biografia dos autores dessa obra revela os caminhos percorridos por esses
estrangeiros até a chegada ao Brasil por meio da convicção e da fé cristã motivada pelo desejo
de luta e transformação. Dom Pedro Casaldáliga nasceu em 1928 na Espanha, veio para o
Brasil em 1968 e fixou residência em São Félix do Araguaia-MT, onde exerce a função de
Bispo na Prelazia. Chegou ao Brasil em um momento histórico difícil, quando vigorava o
regime militar, lutando pela defesa dos direitos humanos nesse período. Adepto da Teologia
da Libertação, justificada por Leonardo Boff. Essa nova vertente católica propõe uma
revolução espiritual que culmina em uma participação ativa do povo na sociedade e na Igreja.
Sacerdote, missionário claretiano, Cerezo nasceu em Villaviciosa, Astúrias, Espanha, em
1932. Estudou pintura e desenhho na Escuela de Bellas Artes de San Carlos, Valência, e na
Escuela de Bellas Artes San Fernando, Madri, tornando-se professor dessa última.
Participante ativo da teologia da Libertação, realizou murais em diferentes lugares da
América Latina, do México até a Argentina, dando cores e formas ao Mundo dos Pobres, ao
Outro Mundo Possível e a Boa Notícia dos evangelhos.
Os murais pintados por Barredo recebem na obra uma versão poética feita por
Casaldáliga.
As duas artes, a pictórica e a poética, se completam e se iluminam mutuamente. Ambas traduzem a grandeza da gesta da libertação de um povo de pobres e de teimosamente rebeldes que já não aceitam a opressão e que com o evangelho na mão vão construindo sua libertação. (...) (BOFF, 2005, p. 8)
Composto por onze murais e, respectivamente, onze poemas, o livro apresenta a
seguinte estrutura: I. Reino e o Anti-Reino; II. Magnificat, Canto da Libertação; III. Na
família de Deus; IV. No compromisso da profecia; V. Nascer de novo; VI. Água, Terra, Pão;
VII. Na diaconia do Reino; VIII. Eucaristia, dom de Deus, fruto do trabalho; IX. Na eucaristia
ecológica do Reino; X. O maior amor; XI. A Páscoa de Cristo e a Páscoa do povo.
Para este trabalho, foram selecionados dois murais e seus respectivos poemas para
análise. O primeiro mural recebe o título e Reino e Anti-Reino (BARREDO, CASALDÁLIGA,
2005, p.10).
O mural divide-se em duas cenas, a nossa esquerda está a representação do Reino e a
direita a do Anti-Reino. O espaço do Reino apresenta um Cristo interventor, a frente do povo,
um Cristo negro. Atrás dele homens e mulheres preparados com facas e enxadas para a guerra,
olhares apreensivos mas firmes. O Anti-Reino traz como representação da morte um rosto
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roxo, que tem uma caveira e um saco de dinheiro ao lado, onde um homem os adora. Esse
rosto engole as pessoas que também são massacradas por um trator. Uma enorme mão cruza
todo o mural e como uma pinça parece tentar pegar as pessoas protegidas pelo Cristo.
O Cristo negro tem sua santidade simbolizada pela aura clara ao redor de sua cabeça,
tal como as pinturas bizantinas do século IV, início do Cristianismo. Sua vestimenta branca é
simples sem recortes finos nem detalhes. Tal como as pessoas que por ele são protegidas, o
Cristo está descalço.
O poema que ilustra este mural também observa os detalhes da pintura:
Nas trevas da mentira A máquina do lucro, a fome do poder, os ídolos da Morte. Diante deles caem os joelhos incautos. Eles vêm massacrando teus anônimos filhos sem defesa. Seu braço imenso tenta capturar-nos a todos, Pai da Vida! Ajuda-nos a abrir as portas do santuário, igual que uma consciência, ao sol, ao mundo, ao curso do Araguaia. Entre o luar e a luta - dos índios e os tori – como um ventre de História todo o morro palpita. Sob as telhas antigas da missão rompe a luz da Verdade no estandarte da Páscoa, e os passo de Francisco, do Povo e dos romeiros, Se acrescentam ao Passo. Sem medos, na esperança; sem deuses, Deus-conosco; na graça e na conquista do Teu Reino! (BARREDO, CASALDÁLIGA, 2005, p. 11)
Além de explorar a cena reproduzida no mural, o poema ressalta os detalhes do
espaço, como as “telhas antigas da missão” e “a Luz da verdade”, por meio da porta que
projeta essa luz para fora do templo.
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Os ídolos da Morte surgem reafirmados pelas “trevas da mentira”, onde “a máquina
do lucro” e a “fome do poder” tentam massacrar e destruir os “anônimos filhos sem defesa”
do “Pai da Vida”. A consciência desse ato de apropriação indevida e a denúncia dessa prática
surgem de forma poética tanto na pintura como no poema. A História ali descrita “ao curso do
Araguaia” busca reintegrar a esperança por meio da luta digna e legítima de um povo que tem
um Deus que se importa com o seu sofrimento e que deu o seu único filho, Cristo, para salvá-
los da repetição de uma história de morte já consagrada pelo tempo passado.
A renovação mitológica coloca as figuras bíblicas encenando no espaço dos
acontecimentos contemporâneos, junto de rostos conhecidos pela comunidade e com eles
lutando e se fazendo presente no cotidiano dos conflitos por eles ali vividos.
O segundo mural é intitulado “A Ceia Ecológica do Reino”, está na igreja de
Querência e foi pintada em 2001. Em seu enunciado, o mural apresenta uma ceia disposta na
floresta onde estão sentadas pessoas de diferentes classes sociais, culturas e etnias, o que as
une é a figura centralizada de Jesus Cristo no fundo, à frente, temos uma árvore cortada com
um broto nascendo, podendo sugerir a esperança brotando da morte ou do impensável. Há
nesta cena a composição da ideia de comunhão projetada pela concepção de Reino de Deus.
Para a Teologia da Libertação, a questão do Reino ocupa lugar de destaque na idealização e
reflexão da prática dessa nova vertente católica.
O Reino de Deus é uma obsessão de Jesus, sua única causa, porque é a causa onicompreensiva. O conceito “Reino de Deus” aparece 122 vezes nos evangelhos, das quais 90 vezes na boca do próprio Jesus. O Reino é o senhorio efeito (reinado) do Pai sobre todos e sobre tudo. Quando Deus reina, tudo se modifica. “Justiça, liberdade, fraternidade, amor, misericórdia, reconciliação, paz, perdão imediatez com Deus... constituem a causa pela qual Jesus lutou, pela qual foi perseguido, preso, torturado e condenado à morte. E tudo isso é o Reino. O Reino de Deus é a revolução e a transfiguração absoluta, global e estrutural desta realidade, do homem e do cosmos, purificados de todos os males e cheios da realidade de Deus. (CASALDÁLIGA, VIGIL, 1993, p. 111)
A conceituação do Reino parece ganhar contornos e cores no painel de Barredo. A
utopia sonhada pelos pensadores da Teologia da Libertação vem sugerida nas figuras do
discurso distribuídas no mural da igreja, fazendo profetizar o sonho da transformação social
tão almejada por esta linha teológica.
Mais uma vez, o Cristo negro e pobre, com roupas simples e claras mistura-se ao
povo. A marca da sua santidade está novamente projetada por meio do círculo claro ao redor
da sua cabeça, tal como as pinturas bizantinas marcavam.
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O poema dialoga com o painel retomando na forma verbal os elementos e conceitos
figurativizados pelos pincéis:
Nesta Ceia ecológica sobre o verde salvado ele da Terra Mãe – se oferece, com Cristo, o Universo. E nós te oferecemos nossas vidas entre a lua e o sol do tempo humano: “O culto do Deus vivo Continua na vida”. O pão, o chimarrão, as bananas, o queijo, em partilha fraterna. Na roda desta Ceia cabem todas as lutas, todas as esperanças. Nesta Ceia se abraçam as diversas culturas em comunhão pascal. Os diferentes rostos no Rosto do teu Filho Salva-nos da cobiça que depreda! Livra-nos do egoísmo excluidor! Seja a nossa utopia como a toalha, aberta e luminosa; aberta e luminosa como a tua Palavra. Querência tem querença do teu Pão, do Vinho do teu Reino, Pai-Mãe das nossas vidas, Irmão dos nossos passos, Amor do nosso amor! (CASALDÁLIGA, 2005, p.57)
O cenário da ceia corresponde ao “verde salvado” em que a floresta é a “pele da
Terra Mãe” que “entre a lua e o sol” estabelece o oferecimento das vidas ali representadas
diante do “tempo humano” em que se cultua o “Deus vivo” por meio de suas configurações
simbólicas atribuídas a figura do Cristo, do pão e do vinho. A utopia conjuga a “partilha
fraterna” do alimento, “O pão, o chimarrão, / as bananas, o queijo”; assim como a
heterogeneidade é vivenciada e respeitada na ceia onde “cabem todas as lutas, / todas as
esperanças.”, onde “se abraçam / as diversas culturas / em comunhão pascal.” A figura do
Cristo também soma essa diversidade, uma vez que se projeta “[n]os diferentes rostos / no
Rosto do teu Filho.”
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As figuras e ações da morte estão fora da ceia com a cobiça e o egoísmo que depreda
e exclui. “A toalha, aberta e luminosa” é comparada com a “Palavra” de Deus, ou seja, a
Bíblia Sagrada.
A referência do local, a cidade de Querência, recupera a história e a atualidade do
município de Mato Grosso, pois grande parte do seu território encontra-se na Reserva
Indígena do Xingu, palco de inúmeros conflitos. A cidade também é fruto do processo de
colonização realizado pela saga gaúcha, movimento que é muito comum nas cidades do
interior do estado. A luta por terra, por dignidade, pela sustentabilidade são pontos de atrito
que comumente atingem a população de Querência, daí o verso que propõe além do jogo
sonoro, um desejo utópico: “Querência tem querença”, confirmando o que falta para que a paz
seja instaurada.
A comunhão da “Ceia Ecológica do Reino” inclui o elemento feminino na formação
do sagrado, assim “Pai-Mãe das nossas vidas”, respeita a diversidade do olhar das diferentes
pessoas diante de um deus que pode ser também mulher. Esse tipo de inovação, integração e
liberdade fazem parte dos pilares que sustentam a Teologia da Libertação e fomentam uma
nova mitologia cristã, mais ampla e flexível aos conteúdos culturais dos espaços onde as
comunidades se encontram.
A arte religiosa desenvolvida pela Teologia da Libertação apresenta, portanto, três
tipos de função: a pragmática que visa a pregação da ideologia dessa vertente de renovação da
igreja católica; a catártica, onde os seguidores se reconhecem na voz e nos pincéis dessa arte e
a estética, com o signo poético tanto pictórico quando verbal expressando o belo em figuras e
palavras que conjugam realidade e utopia.
O projeto poético de Barredo e Casaldáliga nessa obra promove o encontro da
literatura e da pintura em uma confluência que reafirma os valores estabelecidos pela ideia de
Reino de Deus e a causa dos pobres, dos marginalizados e excluídos promovida pela Teologia
da Libertação. Os traços simples, as cores fortes, sem misturas e as figuras que recontam
histórias bastante conhecidas do povo e da realidade do interior do país conjuga-se as palavras
também simples narrativizadas em poemas que valorizam o sonho e o desejo de uma
comunidade que, muitas vezes, encontra-se longe ou desconhece qualquer outro tipo de arte.
A revolução espiritual proposta pela Teologia da Libertação por meio da leitura
bíblica feita pelo olhar dos pobres projeta-se na arte desenvolvida por Barredo e Casaldáliga.
A revolução pictórica expressa nos murais conserva a estrutura narrativa das pinturas
renascentistas e mergulham no expressionismo primitivista ao estilo de Paul Gauguin, além de
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marcar a espiritualidade ou santidade da figura do Cristo por meio do círculo luminoso que se
encontra nas primitivas pinturas bizantinas do início do Cristianismo. A revolução poética
acompanha os murais e imprime na palavra a coragem da denúncia e a alegria da
transformação pelo viés da ação da luta por meio de um texto simples que descreve ou narra
as diferentes pinturas.
Desse modo, a comunhão de todos esses elementos anunciados como prática e
projeto de renovação contribuem tanto para a atualização do fazer social, quanto para o
estético da arte religiosa contemporânea, além de representar uma atualização da mitologia
cristã.
REFERÊNCIAS:
BARREDO, Cerezo. CASALDÁLIGA, P. Murais da libertação na prelazia de São Félix do Araguaia-MT, Brasil. São Paulo: Edições Loyola, 2005. BOFF, Leonardo. Uma revolução espiritual. In: BARREDO, Cerezo. CASALDÁLIGA, P. Murais da libertação na prelazia de São Félix do Araguaia-MT, Brasil. São Paulo: Edições Loyola, 2005. _____. Nova evangelização: Perspectiva dos Oprimidos. Petrópolis: Vozes, 1990. CASALDÁLIGA, Pedro. VIGIL, José Maria. Espiritualidade da Libertação. Tradução de Jaime A. Clasen. São Paulo: Vozes, 1993. ELIADE, Mircea. O mito do eterno retorno. Tradução de Manuela Torres. Lisboa, Edições 70, s/d.
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Crítica à sociedade moderna em O Defensor do Esterco
Alceu João GREGORY (UNESP – FCL – Assis)
RESUMO: O autor alemão Peter Rühmkorf (1929-2008) publicou em 1983 uma coletânea de treze contos modernos com o nome O defensor do esterco: contos esclarecidos. Em seus ensaios e discursos podemos perceber um herdeiro do iluminismo que procura por meio de sua poesia refletir sobre os direitos humanos e sua preocupação para promovê-los através do uso de recursos literários. Ele é frequentemente citado como “cantador popular artístico”, “iluminista engraçado”, “linguista subversivo” que narra para nós “contos esclarecidos”. Ele pretende mostrar-nos um dos caminhos da literatura contemporânea: “um espaço utópico, onde se pode respirar com maior liberdade, onde se pode sentir com mais intensidade e pensar de modo mais radical, sem ficar devendo nada ao assim denominado mundo real”. O autor figura entre os mais importantes líricos e ensaístas da literatura alemã contemporânea e dedicou-se, nos últimos anos, também à prosa. Em sua coletânea serve-se do antigo gênero ‘contos fantásticos’ para trazer ao leitor suas experiências e esperanças. Nos Contos esclarecidos a lógica se mistura entre o fantástico e o maravilhoso. Os contos estão repletos de alusões e exageros. Percebe-se neles o gosto do autor pela fábula. Já nos títulos O defensor do esterco, A última viagem do Barba Azul, Chapeuzinho Vermelho e o Pele de Lobo, entre outros, insinuam-se provocações que remetem a ironias em relação ao contexto social e político da atualidade. Neste sentido, queremos investigar como e em que medida a crítica à sociedade moderna se faz presente no primeiro conto que tem o mesmo título do livro e quais os recursos estilísticos utilizados pelo autor para construir essa crítica. PALAVRAS-CHAVE: Peter Rühmkorf; o defensor do esterco; elementos do fantástico; crítica social. ABSTRACT: The German author Peter Rühmkorf (1929-2008) published in 1983 a collection of thirteen modern short stories named The caretaker of the dung heap:enlightened tales. In his essays and speeches he can be seen as an heir of the enlightenment who seeks with his poetry to ponder over human rights and to expose his concern about how to promote them through literary resources. He is often said to be a “popular artistic singer”, “funny illuminist”, “subversive linguist” who narrates “enlightened tales”. He intends to show us one of the paths of contemporary literature: “an utopian space, where one can breathe with more freedom, where one can feel with more intensity and think in a more radical manner, without owing anything to the so-called real world.” The author is amongst the most important poets and essayists of contemporary German literature, and has also taken to prose in his final years. In his collection he makes use of the ancient genre of ‘fantastical tales’ to bring to the reader his experiences and hopes. In the enlightened tales logic merges with the fantastical and the marvelous. The tales are filled with allusions and exaggerations. In them it can be noticed the author’s enjoyment for the fable. On the other hand, in the tales The caretaker of the dung heap, The last voyage of Bluebeard, Little Red Riding Hood and the Wolfskin, among others, we find implied defiance concerning the present social and political context. In that sense, we wish to investigate in the first short story which has the same name as the book, how and in what measure the criticism to modern society makes itself present and which stylistic resources are used by the author to structure this criticism. KEYWORDS: Peter Rühmkorf; the caretaker of the dung heap; fantastical
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elements; social criticism. Der Hüter des Misthaufens (O protetor do esterco), publicado em 1983, está em sua
sexta edição (RÜHMKORF, 2008). Nele se encontram treze “contos esclarecidos”. O
primeiro conto, o mesmo do título do livro, nos fala de um rei que, ao dividir a sua herança
aos três filhos, deixa ao mais velho todos os seus bens imóveis: terras, florestas, castelos e
casas; ao segundo, deixa os seus bens móveis: carroças, cavalos, animais silvestres e
aquáticos; para o terceiro resta apenas o monte de estrumes cito na fronteira entre as terras do
rei e do reinado vizinho. Os dois mais velhos se riem do terceiro e se compadecem, dizendo
que irão fornecer-lhe todo auxílio para que possa limpar os estábulos e manter a terra sempre
limpa.
No entanto, logo começam as desavenças. Os dois irmãos não conseguem entrar em
acordo sobre o que é móvel e o que é imóvel. Os dois são absolutamente dependentes um do
outro. Quando o mais velho derruba as árvores e faz delas uma embarcação, logo o outro
reclama os seus direitos. Assim também quando quer recolher os grãos ao celeiro, precisa
recorrer ao segundo irmão para carregá-los.
A ideia do pai em relação à divisão era levar os filhos a uma consciência de que
dependem um do outro e assim levá-los a uma vida de convivência pacífica. Mas o equívoco
do pai quanto à divisão dos bens se evidencia cada vez mais e cria uma rivalidade crescente
entre os irmãos. Desalojado pelo mais velho, o segundo irmão arma um exército contra o
primeiro para assim garantir o seu direito à moradia e pastagem para seus rebanhos. Na guerra
os dois irmãos põem a perder tanto os bens móveis quanto os imóveis. E quando se dão conta
de que estavam no caminho errado, já era tarde para tentar reconduzir as terras à fartura.
Nesta luta insana, nem perceberam o irmão mais novo que incansável levava todo o lixo para
o seu monte de estrumes.
Tiveram então os dois uma ideia nova: trocaram de posição, o que tinha os bens
imóveis passou a administrar os móveis e vice-versa. Alcançaram assim algum progresso, mas
não tardou e começaram novamente as intrigas, e desta vez os seus súditos ameaçam
abandoná-los.
Diante desta ameaça, os irmãos decidem juntar-se e para amainar a fome da
população, escolhem um inimigo comum, fora de suas fronteiras, pois lá haveria terras fartas
que poderiam conquistar juntos e dividir entre eles. A população achou esta ideia ótima e
apoiou os dois irmãos. Mas, quando estes se colocaram em marcha para a fronteira,
encontraram do lado oeste uma montanha tão alta de lixo e esterco que já não conseguiam
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cruzá-la. Foram então ter com o irmão mais novo, para que abrisse uma passagem em meio ao
esterco para o exército. Este por sua vez se recusa em auxiliá-los e ameaça qualquer um que
tenta tocar na montanha de lixo, já que sua função é a de protetor do esterco.
Sem outra opção os irmãos dirigem-se para a fronteira leste, onde não há nenhum
obstáculo. Mas ao entrarem em terras estranhas são logo rechaçados por forças muito
superiores às deles. Ao invés de anexarem novos territórios, o território deles é que acaba
sendo anexado pelo inimigo.
As terras dos dois irmãos já não prestam mais para muita coisa. Não bastasse isso,
agora são os estrangeiros que dão as ordens. Estes ficam pasmos quando do lado oeste
encontram a montanha de lixo infindável que se ergue ao céu e onde parece não haver mais
vida. Mas lá do alto o defensor do esterco se manifesta e promete afogar na pocilga quem
perturbar a paz. Os estrangeiros condecoram-no com uma fita, na qual se lê: “Wo mistus – da
Christus” (RÜHMKORF, 2008, p. 15), um trocadilho que sugere a ideia “onde há esterco – aí
está Cristo”).
Os estrangeiros que de início foram considerados uma bênção, tornam-se ao longo
dos anos um peso insuportável em função dos constantes conflitos, restava ao povo nada mais
do que “morrer em paz de fome” (RÜHMKORF, 2008, p. 15). Então enviaram representantes
ao irmão mais jovem e pediram a ele que os conduzisse. Depois de ouvi-los pacientemente,
ele disse: “Quando chegar a hora! E a hora será quando tudo estiver completamente falido e
os estranhos desejarem campos mais promissores.” (RÜHMKORF, 2008, 16).
Conforme previsto pelo defensor do esterco, os estrangeiros retiraram-se. Então
começa a distribuição do esterco por toda a terra de Telúria e tudo se refaz. No entanto, a
história não termina. O defensor do esterco tem três filhas: Libera, Justine e Suselmusel. “E
se elas não forem de papelão...” (RÜHMKORF, 2008, p. 17). Assim a narrativa fica suspensa
nas reticências.
Tanto o início do conto “Era uma vez um rei em Telúria, que tinha três filhos...”
assim como o seu final “e se elas não forem de papelão...” remetem-nos ao mundo fantástico
do conto de fadas. O mesmo se pode dizer dos personagens: um rei e seus três filhos, assim
como a temática da divisão dos bens. Também o tempo e o espaço não estão delimitados e
sugerem um mundo mágico.
A divisão dos bens realizada pelo rei é de uma estranheza ímpar. Jamais em lugar
algum algo parecido se sucedeu. O conto de Peter Rühmkorf encontra de certo modo seu
paralelo em O Gato de Botas dos irmãos Grimm (FISCHER, 1980, p. 33-49). Neste conto, o
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pai, moleiro, divide sua herança entre os três filhos. O mais velho recebe o moinho (bens
imóveis), o segundo, o burro (bem móvel) e o mais jovem recebe o gato (em termos
econômicos, sem valor). Do mesmo modo como em Der Hüter des Misthaufens (O protetor
do esterco) o deserdado acaba por vias do fantástico ascendendo ao lugar mais elevado na
hierarquia do poder (VOLOBUEF, 2012).
Segundo o narrador, esta divisão foi muito bem planejada pelo pai, no sentido de
tentar unir os filhos que viviam brigando. O filho que possuía os bens móveis era
absolutamente dependente daquele que possuía os bens imóveis e este daquele. Os dois, no
entanto, dependiam do terceiro, que não possuía nada, o defensor do esterco, pois garantia o
recolhimento do lixo.
Embora a narrativa se valha da estrutura do conto de fadas e simule uma situação
surrealista, no que se refere ao espaço geográfico, às personagens e ao método absurdo usado
na divisão dos bens, já na primeira linha do conto passamos a duvidar deste pretenso
distanciamento do mundo real. Ao nos falar de um rei que vivia em Telúria, atinamos de
imediato que este espaço se refere à terra. O substantivo Tellurium designa um aparelho com
o qual se simulam os movimentos da terra e da lua em torno do sol. Esta harmonia entre os
três astros representa no plano do conto o sonho do pai em ralação aos seus três filhos de uma
convivência pacífica.
Levando em conta que a narrativa foi escrita em 1983, quando a Alemanha ainda
encontrava-se dividida pelo Muro de Berlim e a assim denominada cortina de ferro separava o
mundo em dois blocos: o capitalista, do lado ocidental, sob o comando dos Estados Unidos e
o socialista, do lado leste, sob a tutela da Rússia, penetramos então o mundo real subjacente
ao conto. Desde o final da Segunda Guerra Mundial, viveu-se a tensão da guerra fria entre
esses dois blocos, o que levou a uma corrida armamentista. Na década de oitenta, houve
vários protestos contra o tratado da NATO (Organização dos Países do Atlântico Norte), que
em 1979 pleiteavam com a União Soviética a redução dos mísseis de curto alcance de ambas
as forças. Quando em 1983 essas negociações fracassaram a frustração e a revolta eram
gerais. Temia-se que os Estados Unidos estariam tramando uma guerra nuclear concentrada
sobre a Europa. Músicos, compositores, escritores e o público em geral manifestavam seu
descontentamento.
É dentro deste contexto que Peter Rühmkorf escreve Der Hüter des Misthaufens (O
protetor do esterco). Os dois irmãos que tudo herdaram, no entanto, devem ser analisados
num contexto mais amplo, quando a Alemanha ainda não era unificada, antes de 1871, havia
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os estados do norte, protestantes, e os estados do sul, católicos. A unificação se dá quando
norte e sul se unem contra o inimigo além fronteiras, primeiro contra a Áustria, depois contra
a França, da qual anexam Alsácia-Lorena e celebram o tratado de Versalhes em território
francês para a humilhação destes. Os irmãos agora unidos, com Guilherme I e Guilherme II,
num militarismo exacerbado, conduzem a Alemanha para a I Guerra Mundial. O tratado de
paz de 1919 é desta vez uma humilhação para a Alemanha. Depois de curto período de paz e
uma tentativa frustrada de estado democrático com a República de Weimar, instala-se o
Nacionalsocialismo e logo tem início a II Guerra Mundial e ao seu final, a Alemanha
derrotada tem seus territórios invadidos pelos estrangeiros. Estados Unidos, França e
Inglaterra ocuparam o que ficou conhecido como a Alemanha Ocidental e os russos ocuparam
o que era a ex-República Democrática Alemã. (SÜSSMUTH, 1990)
O conto de fadas de Peter Rühmkorf é portanto um conto esclarecido, ele tem uma
história real e personagens reais. Pode ser lido como a história da Alemanha, mas podemos
também entendê-lo como a história da humanidade.
Trata-se no fundo da disputa dos bens existentes na terra. Se pensarmos em termos
religiosos, estes irmãos poderiam ser Moisés, Maomé e Jesus Cristo. Moisés seria, em termos
de valores, o irmão mais velho, que atualmente corresponde aos judeus e cristãos (supondo-se
que os cristãos estejam na prática muito distantes de Cristo); Maomé, o segundo irmão, está
para os muçulmanos. Os dois ao longo da história vivem em constante conflito e não
conseguem entrar em acordo. Parece que nada sabem senão promover guerras e levar a terra a
uma situação cada vez mais degradante. Jesus Cristo, o terceiro irmão, não tem poder algum,
pois nada herda, a não ser o monte de estrumes. O trocadilho citado no texto “Wo Mistus da
Christus” confirma esta interpretação. Tanto é que ao final da história os estrangeiros o
encontram sozinho sobre o monte de lixo que se ergue até os céus. Somente quando tudo
virou esterco e quando os impostores já se haviam retirado e os cidadãos se voltam a ele para
se deixarem guiar, ele então ordena a distribuição do esterco sobre a terra e tudo volta a brotar
e florescer.
Parece que o terceiro irmão está esperando os dois irmãos mais velhos renunciarem e
darem uma chance àquele que sempre cuidou do esterco. O estrume que os dois irmãos mais
velhos produziam em suas disputas é na verdade o lixo humano. E esse lixo refere-se não só a
todos os soldados mortos em batalhas, mas a todos os que no processo foram marginalizados,
sejam eles mendigos ou ladrões. O conto sugere a degradação crescente do ser humano e do
seu habitat, a terra. Telúria torna-se um locus horrendus onde nada mais resta àqueles que
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sempre correram de espadas em punho atrás do ouro, da prata, do petróleo, da madeira, das
focas e dos rins e por isso se retiram ao final do processo, pois o seu ciclo se esgotou. A voz
do terceiro irmão parece alinhar-se com a de Albert de Camus (Apud LELOUP, 2007, p. 6):
“Sentido da minha obra: Tantos homens privados da graça? Como viver sem a graça?
Devemos nos dedicar a isso e fazer o que o cristianismo nunca fez: ocupar-nos dos malditos”.
Os dois irmãos mais velhos parecem interessar-se apenas com os lucros. O que dá lucro é
bom, o que não tem mercado, não presta. Onde se junta uma grande multidão, aí estão os
olhos dos dois irmãos mais velhos. Assim, quando Tolstoi escreve Guerra e Paz, Anna
Karenina, eis um grande escritor; mas quando resolve se alinhar à voz do terceiro irmão, com
a obra O Reino de Deus está em vós, onde propõe fazer frente à violência com a não
violência, inspirando os feitos de um grande pacifista, ninguém menos do que Ghandi, o que
diz a crítica? ‘Obra de menor valor de um teor filosófico fraco’. (TOLSTOI, 1994)
Assim os dois irmãos mais velhos delegam para o esterco o que não produz lucros ou
o que ameaça as suas façanhas militares. As Forças Armadas dos Estados Unidos têm, hoje,
muitas das características de um exército mercenário, qual seja, um exército profissional e
pago, até certo ponto separado da sociedade pela qual luta. E quem compõe este exército
senão o recrutamento do lixo da sociedade? Em 2004 na cidade de Nova York, 70% dos
voluntários da cidade eram negros ou hispânicos, recrutados nas comunidades de baixa renda.
A Legião Estrangeira francesa tem uma antiga tradição de recrutar soldados estrangeiros para
combater pela França. Embora as leis do país proíbam que a Legião recrute cidadãos fora da
França, a internet tornou essa restrição sem sentido. O recrutamento on-line em 13 idiomas
atrai, atualmente, soldados de todo o mundo. Cerca de um quarto da força atual vem da
América Latina, e aumenta a proporção proveniente da China e outros países asiáticos.
De acordo com Sandel (2012, p. 106-116) os Estados Unidos terceirizam grande
parte das funções militares para a iniciativa privada. Uma das principais companhias privadas
é a Blackwater Worldwide, que recebeu mais de um bilhão de dólares em contratos com o
governo por seus serviços no Iraque. Muitos membros do Congresso e o público em geral se
opõem à terceirização da guerra para companhias com fins lucrativos como a Blackwater.
Perguntaria hoje a Peter Rühmkorf, se estivesse vivo, se ao escrever o conto em
1983, estava focado nas duas Alemanhas divididas pelo muro de Berlim ou se na época já
estaria retratando uma situação global?
Se estiver se referindo ao contexto alemão, então o seu conto esclarecido já teve um
desfecho feliz, pois os mercenários já se retiraram do seu país, os dois irmãos em conflito, a
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Alemanha Oriental e Ocidental estão unificadas e delegaram o mandato ao terceiro irmão,
entenda-se, o povo, que sempre foi oprimido pelos dos irmãos militaristas, agora assume o
poder. Mas a história não termina, pois este terceiro irmão teve três filhas: a Libera, a Justine
e a Suselmusel. “E se elas não forem de papelão...” O conto se interrompe nas reticências.
O autor suspende a narrativa com o início de um novo reinado e o nascimento de três
filhas, sugerindo com a primeira filha (Libera) a liberdade, com a segunda (Justine) a justiça e
a terceira (Suselmusel) o amor à beleza e às artes. Mas a sua dúvida persiste, pois elas podem
não ser reais. Neste caso, estes novos personagens se enquadram de fato no plano do conto de
fadas, representam mais uma vez um mundo fantástico, jamais alcançável. Então estas três
que nasceram do esterco não passariam de fadas bruxas e a Ângela Merkel seria a primeira
delas.
Notório é como o conto termina substituindo o universo masculino, a força bruta, o
militarismo e a guerra, por personagens femininas que insinuam a liberdade, a justiça e o
amor à beleza e às artes. Estes personagens exercem a função do duplo em relação aos três
filhos que decepcionaram o rei. Este duplo no texto Der Hüter des Misthaufens (O protetor do
esterco) se configura pela sua oposição ao original na constatação de uma não
correspondência de traços ou características afins. (RANK, 2001)
Para aprofundarmos esta questão, a de saber se a Alemanha não está mais uma vez
construindo de modo superficial sobre estas supostas fadas, deveríamos perguntar-nos com
Adorno (2003): Como evitar uma nova Auschwitz? E isto implicaria uma análise profunda
dos conceitos de justiça, liberdade e amor. Refletindo sobre estes conceitos Sandel (2012)
discute em seu livro Justiça as ideias de pensadores como Aristóteles, Kant, John Rawls e
outros. Gregory (2012) em seu livro Da ficção à realidade reflete em torno da questão: Como
criar um espaço, onde o ser humano possa de fato viver em liberdade? Poderia a Alemanha ou
qualquer país do mundo ser livre, enquanto houver países, onde as pessoas são oprimidas?
As estatísticas da violência no mundo e como ela se processa, parecem indicar que as
musas ao final do conto ainda não nasceram e que o terceiro irmão continua trabalhando duro
para dar conta das montanhas de lixo intransponíveis e que se agigantam cada dia mais diante
de nossos olhos.
REFERÊNCIAS:
ADORNO, Theodor. Educação após Auschwitz. Trad. Wolfgang Leo Maar, 2003. Disponível em:
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<http://www.educacaoonline.pro.br/index.php?option=com_content&view=article&id=179:educacao-apos-auschwitz&catid=11:sociologia&Itemid=22>. Acesso em 18 maio 2013 FISCHER, Gisela. Die schönsten Grimms Märchen. Erlangen: Pestalozzi-Verlag, 1980. p. 33-49 LELOUP, Jean-Yves. Judas e Jesus: Duas faces de uma única revelação. Petrópolis: Vozes, 2007. GREGORY, A. J. Da ficção à realidade: O sonho de uma sociedade justa na linha do tempo. São Paulo: All Print, 2012. RÜHMKORF, Peter. Der Hüter des Misthaufens: Aufgeklärte Märchen. Hamburg: Rowohlt, 2008. p. 7-17. RANK, Otto. Der Doppelgänger. Eine psychoanalytische Studie (1925), Neuausgabe: Wien: Turia & Kant, 1993, 2. Auflg. 2001. SANDEL, Michael. Justiça: O que é fazer a coisa certa. 9. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012. p. 106-116. SÜSSMUTH, Rita. Fragen an die deutsche Geschichte. 16. ed. Bonn: Deutscher Bundestag, 1990. TOLSTOI, Leon – O Reino de Deus está em Vós. Trad. Celina Porto Carrero. Rosa dos Tempos: Rio de Janeiro, 1994. VOLOBUEF, Karin et alii. Vertentes do Fantástico na Literatura. São Paulo: Ed. Unesp, 2012.
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O mito como elemento de identidade cultural construído a partir do cadáver errante de Evita
Perón
Alejandro GONZÁLEZ URREGO (UNESP – FCL – Araraquara.)
RESUMO: Esta comunicação propõe uma abordagem sobre a reconstrução narrativa do mito de Evita que é enfatizado no romance Santa Evita do jornalista argentino, Tomás Eloy Martínez, Na obra o mito de Evita é potenciado à “dimensão mítica” e aparece associado à memória, e a narrativa ficcional, cobrando valor a partir do embalsamamento do corpo e o cadáver errante dela. Para lograr o propósito, busquei suporte teórico nos estudos do professor Bauzá (2007) sobre o conceito de herói mítico, uma vez que Evita, dentro do imaginário popular do povo argentino se tornou uma espécie de heroína devido a sua postura política revolucionária que combatia a autoridade da oligarquia e buscava erradicar a desigualdade social na Argentina, objetivando uma sociedade nova e justa, onde a equidade e a justiça social fossem marcas presentes. Começando desta maneira, o que podemos chamar de “processo de mitificação”, onde o mito de Evita começa a ganhar força, graças à angústia que sofrem os pobres da Argentina pelas suas diferenças falências sociais, encontrando em Evita a ajuda e a solução para os seus problemas. Do mesmo modo, a mentalidade popular começa a mitificá-la, otorgando-lhe atributos espirituais, como resposta às ações empreendidas por ela, nascendo, deste modo, a ritualização do povo como mecanismo de agradecimento e como solicitude de milagres. Esta comunicação, portanto, visa compreender melhor como se deu a criação da figura mítica de Evita, como ela aparece e sua importância dentro da trama do romance de Tomás Eloy Martínez. PALAVRAS-CHAVE: mito; ritualização; ficção; corpo; identidade. RESUMEN: Esta comunicación propone un abordaje sobre la reconstrucción narrativa del mito de Evita que es tratado en la novela Santa Evita del periodista argentino, Tomás Eloy Martínez, en la obra el mito de Evita es potencializado hacia una “dimensión mítica” y aparece asociado tanto a la memoria, como a la narrativa ficcional, cobrando valor a partir del embalsamamiento del cuerpo y del cadáver errante de ella. Para lograr esto, busqué suporte teórico en los estudios teóricos del profesor Bauza (1990) sobre el concepto de héroe mítico, una vez que Evita, dentro del imaginario popular del pueblo argentino se torno en una especie de heroína debido a su postura revolucionaria en la política de su país deseando combatir e ir en contra de la autoridad de los oligarcas, además de, querer erradicar la desigualdad social en Argentina, pensando en crear una sociedad nueva y justa, donde la equidad y la justicia social fueran las marcas primordiales. De esta manera, inicia lo que podemos llamar de “proceso de mitificación”, donde el mito de Evita comienza a ganar fuerza, gracias a la angustia que sufren los pobres de Argentina por las diferentes falencias sociales. Ellos encuentran en Evita la ayuda y la solución para sus problemas, del mismo modo, la mentalidad popular argentina comienza a mitificar a Evita, otorgándole atributos espirituales, como respuesta a las acciones emprendidas por ella, de este modo, nace una especie de ritualización del pueblo como mecanismo de agradecimiento y como mecanismo para la petición de milagros. Esta comunicación, por lo tanto, apunta a comprender mejor como se dio la creación de la figura mítica de Evita, la importancia dentro de la trama de la novela del periodista y como esa figura mítica representa una identidad cultural en su país.
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PALABRAS-CLAVES: mito; ritualización; ficción; cuerpo; identidad.
O mito, que se impõe na consciência nacional Argentina e que substitui a memória de
Evita, provoca o estancamento da vida do país num tempo irreal. Ricoeur (1985, p. 60) afirma
que a relação com o tempo-espaço é a primeira causa que leva à testemunha a ficar com uma
identidade fraca. Além disso, tem outros dois motivos: o temor de confrontar-se com o outro e
a herança de uma realidade fundada por meio da violência.
O mito de Evita que transcendeu as fronteiras da vida política e social da Argentina é
composto por alguns elementos que levam a sua identidade coletiva e também favorecem o
trauma da memória, que Freud (2008, p.167) denomina de redução do sentimento de si
mesmo e que ocorre quando a condição do luto prolonga-se até converter-se num estado de
melancolia permanente.
O primeiro elemento a ter em conta para se entender o mito de Evita como identidade
cultural foi que ela engendrou-se na ilegitimidade, o que a converteu desde seu nascimento
como uma filha bastarda e não reconhecida. Ela nasceu herdeira de um destino de
desigualdade de condições e perda de direitos; o segundo acontecimento que marcou o mito
foi assistir muito jovem, com apenas sete anos, ao enterro de seu pai; além disso, Evita desde
menina tinha alguns talentos, destacando-se entre eles, sua habilidade em discursar em
público, o que mais adiante lhe será muito útil como estratégia política. Assim, segundo
Martínez, (1996, p. 136) “Quando começou a Defunta a destacar-se como recitadora? Quais
foram os primeiros versos de seu repertório? Em 1933, quando cursava o sexto ano na Escola
N° 1 de Junín.”
Evita Perón, esposa do ex-presidente argentino Juan Domingo Perón, que morreu de
um câncer em 26 de julho de 1952, aos 33 anos de idade, a mesma idade de Cristo, 61 anos
depois continua sendo um dos personagens mais importantes da vida publica e política da
Argentina e é vista como um ícone de construção de identidade cultural do país. Ao lado do
General Perón, ela começou a cumprir o sonho de uma sociedade justa e equitativa, e, para
conseguir isto, desenvolve várias ações, entre as quais encontramos: a aprovação da lei do
filho ilegítimo, apoio aos projetos de direitos sociais, aposentadoria e férias pagas. Criou a
Escola Superior Peronista com o propósito de unificar sua filosofia, construiu a “Fundação de
Ajuda Social Eva Perón”, com o propósito de diminuir as inumeráveis injustiças dos pobres.
Tinha uma política social bem definida; construía casas; dava aos pobres o que lhes fazia
falta; provocou a mobilização popular como estratégia política; impedia às greves contra o
regime Peronista; realizaram-se atos de massa, motivados pela sua presença, como os
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ocorridos na Plaza de Mayo e na Plaza 9 de Julio, onde se reuniram, respectivamente, cerca de
um milhão e dois milhões de operários e sindicalistas. Segundo Martínez “Nos seis primeiros
meses de 1951, Evita presenteou vinte e cinco mil casas e quase três milhões de pacotes que
continham medicamentos, móveis, roupas, bicicletas e brinquedos.” (1996, p 67)
Quando Evita ficou doente o povo saiu a pedir por sua saúde, levavam em suas mãos
flores e velas acesas, realizaram missas pedindo pela saúde da salvadora dos pobres. Como
elemento de ritualização de Evita apareceu esta oração no jornal Democracia do 14 de
fevereiro de 1952, uns meses antes de sua morte:
Dios te salve, María Eva, llena eres de gracia, todo el pueblo está contigo. Bendita seas tú entre los niños, entre los hombres y mujeres, y bendito el fruto de tu ingenio La Razón de mi Vida. Santa María Eva, madre del Justicialismo, ruega por nosotros, trabajadores, ahora y más aún en la hora de nuestras reivindicaciones. Así sea.
Por sua vez, a oposição argentina começou a divulgar através de letreiros nas paredes
da cidade enaltecendo a doença de Evita: “viva o câncer”; o que para o povo era tristeza, para
a oligarquia era alegria. Após sua morte, seu corpo foi imediatamente embalsamado e três
anos depois, quando o presidente da República Juan Domingo Perón foi derrubado por um
golpe de Estado, o vice-presidente encarregado dá a missão de ser o responsável direito pela
segurança do corpo embalsamado ao chefe da Escola de Inteligência do Exercito Argentino o
Coronel Moori Koenig. Contudo, a obsessão do militar pelo cadáver de Evita o levou a
perder-se num labirinto de solidão e morte, que resultou na total perda de seu contato com a
realidade temporal e espacial.
Como eu já disse antes, o Coronel sonhava quase todas as noites com a lua. Ele se via caminhando pelos desertos brancos e estorricados do Mar da Tranquilidade, em cujo céu brilhava seis ou sete luas sinistras e ameaçadoras. Sentia, no sonho, que ia a busca de algo, mas cada vez que avistava um monte, um tremor da paisagem, a ilusão se desmanchava antes que pudesse ser alcançada. Essas imagens de nada e silencio permaneciam dentro dele por horas a fio, e só se dissipavam com os primeiros goles de genebra (MARTÍNEZ, 1996, p. 326-327)
O cadáver de Evita foi reproduzido em três cópias de cera, com o propósito de
despistar os seus inimigos políticos e, no corpo verdadeiro, foram feitas marcas para que este
pudesse ser reconhecido pelo Coronel posteriormente. Após isso, o corpo iniciou um percurso
através de lugares mais impensados: caminhões do exército, sótãos, salas de cinema,
depósitos de munição, prédios públicos e casas particulares até os confins da Patagônia e em
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navios transatlânticos. Assim, o corpo verdadeiro da primeira dama Argentina e suas
reproduções foram transportados até às cidades de Bonn, Gênova e Milão. Dessa forma, o
cadáver embalsamado de Evita se converteu em um símbolo de imortalidade, pois se tivessem
dado a ela uma sepultura cristã, ele não teria assumido uma dimensão mítica.
Os dois homens levam o caixão pesado até o sótão, isso acende a curiosidade da mulher de Arancibia, Elena. Ela pergunta a seu marido o que estão depositando no sótão de sua casa, mas o marido lhe contesta dizendo que ela não deve meter-se em suas coisas. Arancibia parecia muito ansioso e Elena, com seu sexto sentido feminino, desconfiou que algo estranho estava acontecendo (MARTÍNEZ, 1996, p. 228).
O corpo embalsamado de Evita ajuda a criar uma identidade cultural e ajudou a
degradar o Coronel Moori Koenig. Este tinha a necessidade de encontrar um local para poder
esconder o corpo de Evita dos pobres, com o propósito de impedir que eles se apropriassem
do cadáver dela.
Dirigiu a manhã inteira na desolação sem rumo das rodovias, entrando em Mainz para comprar uma garrafa de genebra e em Heidenberg para abastecer o carro. Sou argentino, dizia a si mesmo. Sou um espaço sem preencher, um lugar sem tempo que não sabe aonde vai. Repetira-se muitas vezes: Ela me guia. Agora ele o sentia nas juntas de seus ossos: Ela era seu caminho, sua verdade e sua vida. (MARTÍNEZ, 1996, p 308)
Na leitura do romance de Tomás Eloy Martínez sempre existiram várias
interrogações, entre elas: o quê teria acontecido se tivessem dado uma sepultura cristã ao
corpo de Evita? Se os trabalhadores da Argentina pegassem o cadáver, o quê teriam feito com
ele? Se a oligarquia e os militares não tivessem prestado tanta atenção ao cadáver, o quê teria
acontecido com os trabalhadores da Argentina e com o mito de Evita?
Por isso, o corpo embalsamado chega a encarnar a forma mais desesperada do exílio,
a qual se manifesta, antes de tudo, como una condição interior, uma síntese do mal estar da
nação Argentina e da falta de identidade. Ao negar os espaços de tempo e espaço do corpo
sequestrado de Evita, subtraem à memória dos argentinos esse percurso natural do seguimento
do processo de morte, e priva aos sujeitos das possibilidades de construir uma identidade que
não seja tão só o simples produto de uma pretensão oficial e de um passivo consenso geral.
Desta maneira, a narrativa conspira livremente sem deixar de vincular-se a um tempo
e a uma realidade histórica. Conjugando com notável habilidade o gênero ensaístico e o
jornalístico, junto à estrita narração, constrói tempos e modos que dão ao romance muita
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fluidez. Assim, desdobra-se um texto plural, rico em ressonâncias, eventos, motivos e uma
escrita que faz uso de diversos recursos estilísticos. Como exemplo disso, temos o impulso do
narrador que se desloca de uma lembrança à outra, e, quando se detém em alguma
testemunha, logo busca a voz de outra, convertendo ao narrador em um habitante do campo
coletivo da memória e identidade cultural.
Portanto, o corpo ajuda a resgatar a liberdade individual e a ficção narrativa revela-se
como o meio mais precioso para inventar novas dinâmicas e interações entre o esquecimento
e a conservação da lembrança, através de uma identidade cultural para se opor a esse
exercício frágil da memória que consiste na exploração da função narrativa, no discurso
oficial e no poder de sedução dos rituais coletivos e individuais.
Na imagem com que termina o romance, o narrador se converte em um viajante, que
leva em suas viagens as várias narrativas de Evita. Depois de finalmente receber uma
sepultura cristã, Evita pode desprender-se do corpo embalsamado e restituir na memória dos
argentinos o mito, criando assim uma identidade cultural.
Segundo o professor Bauzá (2007, p. 54), a sobrevivência da figura heróica mitica
através dos séculos e das diferentes culturas põe em manifesto a necessidade do homem de
todas as épocas de criar ídolos, para os quais, depois da sua morte, são construídos altares,
onde são adorados. Assim, quando Evita morreu, seu corpo foi embalsamado com o propósito
de mudar os rumos da história da Argentina, e, por isso, o modo como sua morte é descrita no
romance não só redefine sua vida, mas também a história nacional, a identidade cultural e a
memória coletiva Argentina.
Com o corpo dela embalsamado, o povo acreditava que ela os ajudaria ainda mais do
que fizeram em vida, pois se acreditava que ela fora convertida em uma espécie de santa; por
outro lado, a oligarquia pensava que, mesmo morta, Evita ainda seria um problema maior,
uma vez que, com seu corpo embalsamado, era como se ela permanecesse “viva” para o povo
argentino.
O vice-presidente incorporou-se. –Morta –disse–, essa mulher é ainda mais perigosa que quando estava viva. O tirano o sabia e por isso a deixou aqui, para que nos adoeça a todos. Em qualquer favela aparecem fotos dela. Os ignorantes a veneram como a uma santa. Eles acham que ela pode reviver a qualquer dia e converter à Argentina em uma ditadura de mendigos. (MARTÍNEZ, 1996, p. 22-23)
Assim, quando Evita morre, nasce outra história, na qual o cadáver converte-se em
identidade cultural para os pobres e uma ameaça para as oligarquias, e, desta maneira, assume
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diferentes significações: para os pobres é corpo santificado, mãe dos mais necessitados; para
os homossexuais e alguns militares, é o cadáver desejado; e para as oligarquias, uma ameaça
social.
Mas, como fazer para que essa identidade cultural permaneça através de um corpo
errante? O romance constrói-se sobre um duplo movimento: por um lado, a descrição dos
eventos: a agonia, a morte, o embalsamamento, o sequestro e a clandestinidade do corpo em
mãos dos militares. Por outro lado, a narração sobre a imagem que os pobres tinham dela
como a salvadora, a santa, a mãe protetora e condutora do rebanho. Assim, tudo isso é
alcançado por meio de diferentes tipos de narração, onde se sobressai a polifonia de vozes
populares.
Dessa forma, os diferentes relatos sobre o cadáver de Evita fazem com que cada
testemunha crie sua própria versão do mito, deteriorando assim sua univocidade e a autoria,
por meio da conjunção de vozes que o produzem; as diferentes testemunhas que se perfilam
remetem sempre ao cadáver, convertendo-o em um campo magnético que atrai e ressoa
legendário. Assim, é o estilo de Tomás Eloy, o autor da narrativa, que literalmente torna
eterno o corpo de Evita, de modo a mitificá-lo, inserindo-o na identidade coletiva argentina.
Tanto Evita como o próprio romance se apresentam como um artefato para integrar o
verdadeiro e o falso, entre a história documentada e a lenda móvel, esta em permanente
construção, entre o pessoal e o coletivo. Cria-se assim um movimento de integração que
implica na ascensão de uma função marginalizada na construção da História e,
consequentemente, ajuda na construção da identidade cultural.
Segundo o antropólogo Mircea Eliade (2000, p. 189) o mito é uma história sagrada
que cumpre uma função salvadora e tenta resgatar da Historia mesma um acontecimento
extraordinário, que ajuda uma sociedade particular a construir a sua identidade. Assim, vale
ressaltar que a veneração de Evita como uma figura santa evoca o culto e adoração da Virgem
Maria, focalizando a ação revolucionária e religiosa da mãe dos pobres. Mas mesmo que o
mito de Evita tenha se firmado no peso da emoção e no entendimento popular, sua
santificação significa o nível máximo de sua representação mais intensa.
Dessa forma, para grande parte do povo argentino, Evita é representada como a mãe
protetora dos pobres. Exemplo disso, destaca-se na capa do romance de Tomás Eloy, edição
colombiana da Editora Planeta, do ano de 1996, vários ornamentos que compõe a imagem de
Evita: uma auréola em torno a sua cabeça; seu olhar volta-se à direita, como se mirasse para o
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futuro; um ramo de flores em sua mão direita, que remete ao seu amor pelo esposo e pelo
povo argentino; na sua mão esquerda uma espada, símbolo de sua luta contra as oligarquias.
Evita sempre desejou acabar com os sofrimentos causados pela desigualdade social,
uma vez que ela nunca esqueceu a sua procedência de uma família pobre. Sua preocupação
maior sempre consistiu em seu amor incondicional pelo General Perón e pelos mais
necessitados, ocupando desta maneira o lugar de uma soberana, cujo cuidado maternal
designa comando e obediência.
Foi a própria Evita, na época de uma eleição presidencial, a responsável por
convocar mais de um milhão de pessoas na Praça Primeiro de Maio, antes de sua morte;
assim, por meio de seu trabalho ao lado do General Perón, Evita tentou dar igualdade e justiça
aos mais necessitados, promulgou leis a favor dos pobres, deu diretos a quem os tinha
perdido, dignificou a classe trabalhadora, entre outras coisas.
Os trabalhadores argentinos precisavam de alguém que os representasse no campo
político e ninguém melhor que o corpo vivo de Evita com um amor de mãe salvadora dos
pobres: viva como a primeira dama presidencial e candidata vice-presidência; e morta como a
santa guiadora e doadora de milagres. Dessa forma, tais imagens de Evita em um país
dominado pelas oligarquias passaram a representar um símbolo de esperança para os pobres e
para as classes operárias.
Neste sentido, realidade e ficção são traços distintivos da Argentina, e a voz do
narrador é a de uma nacionalidade perseguida e lastimada, como o cadáver dela; para os
pobres, é também a voz da Evita embalsamada que luta e reage contra os militares. O cadáver
é um objeto de encontro coletivo que se instala no centro da sociedade e se converte para o
autor e para os leitores em um objeto de identidade cultural. Objeto de auto-reflexão
individual-coletiva que coloca em evidência diferentes perspectivas ideológicas, mas o que
determina sua condição de identidade é a capacidade de demonstrar os contrastes políticos
que se sobressaem nas diferentes classes sociais na Argentina.
Evita, mulher de bravura, produz um mito popular que contribui para a criação de
uma identidade nacional, a qual é síntese da história, realidade e invenção que impede o
descobrimento do que é mentira e o que é verdade, o que é história e o que é ficção,
obrigando-nos a se deixar levar, a se envolver e tomar partido depois da leitura. O romance
reconstitui a peregrinação do cadáver de Evita de diversas formas, por meio de múltiplas
vozes com diferentes pontos de vista, possibilitando assim contrastantes interpretações dos
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eventos narrados, de modo a torná-lo mítico e dar a personagem central aspectos de um herói
moderno, inserindo-o na memória coletiva e integrando-o na identidade cultural argentina.
Conclui-se que Evita, a mulher recuperada através de seu corpo morto, se tornou a
múltipla conjugação entre o desejo pessoal e o coletivo; Evita embalsamada é um sujeito em
constante mutação que sempre pode converter-se em seu próprio oposto; seu cadáver é o
prisma que reflete as ideologias; objeto dinâmico de um mito histórico que segue
reconstruindo-se em cada interpretação.
REFERÊNCIAS:
BAUZÁ, Hugo Francisco. El mito Del héroe: Morfología y semántica de la figura heroica. Buenos Aires, Fondo de Cultura Económica, Tercera reimpresión, 2007. FREUD, Sigmund. El malestar en la cultura y otros ensayos. Madrid: Editorial Alianza, 2008. MARTÍNEZ, Tomás Eloy. Santa Evita. Tradução Sérgio Molina. , 2. ed. São Paulo: Companhia Das Letras1997. ELIADE Mircea. Aspectos del mito. Barcelona, España: Editorial Paidós, 2000. RICOEUR, Paul. Hermenéutica y acción. Buenos Aires, Argentina: Editor Docencia, 1985.
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A configuração do fantástico no discurso narrativo de Wuthering Heights (O Morro dos
Ventos uivantes)
Alessandro Yuri Alegrette (UNESP –FCL –Araraquara – FAPESP)
RESUMO: O objetivo deste trabalho é propor uma discussão sobre a configuração do fantástico em algumas passagens de Wuthering Heights (O Morro dos Ventos Uivantes). Na época da sua primeira publicação em 1847, este romance foi rejeitado pela maioria dos críticos literários e leitores, mas, com o tempo, a sua qualidade foi reconhecida e tornou-se um clássico. É um romance inserido no gótico-romântico, em que são descritos em detalhes alguns eventos que, aparentemente, têm suas origens em manifestações sobrenaturais, onde são destacados elementos do terror e horror. Assim, para ampliar minha compreensão destes acontecimentos estranhos, recorro à teoria de Todorov sobre o fantástico, que admite duas possibilidades: a aceitação da existência de uma explicação sobrenatural, ou racional para este evento aparentemente sobrenatural. Além disso, a abordagem do fantástico pela perspectiva de Todorov destaca também a importância do que foi chamado por ele de "narradores não confiáveis", que, talvez, possam estar presentes no discurso da narrativa do romance de Brontë. Assim, este artigo visa ampliar a leitura de um romance que, apesar de ter sido escrito há muito tempo, tem sua importância reconhecida na época atual. PALAVRAS-CHAVE: romance gótico, romântico, fantástico, sobrenatural; discurso narrativo. ABSTRACT: The objective of this paper is to propose a discussion about the configuration of the fantastic in some passages of the novel Wuthering Heights. At the time of its first publication in 1847, this novel was rejected by most literary critics and readers, but over time its quality was recognized and it has become a classic. It is a novel inserted in gothic-romantic style, in which some events are described in details, specially the ones that have their origins in supernatural manifestations, when terror and horror elements are highlighted. So to broaden my understanding of these strange events, I refer to the theory of the fantastic by Todorov, which admits two possibilities: the acceptance of the existence of the supernatural, or the rational explanation for this apparently supernatural event. Moreover, the approach of the fantastic by Todorov’s perspective also highlights the importance of what he called "unreliable narrators", that, perhaps may be present in the discourse of the narrative in Brontë’s novel. Thus, this research seeks to expand the reading of a novel that was written a long time ago, but still has its importance recognized at the present time. KEYWORDS: gothic romance, romantic, fantastic, supernatural; narrative speech.
Em Introdução à literatura fantástica, Tzvetan Todorov define o que classifica como
“fantástico” da seguinte forma:
Num mundo que é exatamente o nosso, aquele que conhecemos, sem diabos, sílfides nem vampiros, produz-se um acontecimento que não pode ser explicado pelas leis deste mesmo mundo familiar. Aquele que o percebe deve optar por duas soluções possíveis: ou se trata de uma ilusão de sentidos,
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de um produto da imaginação e nesse caso as leis do mundo continuam a ser o que são; ou então o acontecimento realmente ocorreu, é parte integrante da realidade, mas nesse caso esta realidade é regida por leis desconhecidas para nós. Ou o diabo é uma ilusão, um ser imaginário; ou então existe realmente, exatamente com os outros seres vivos: com a ressalva de que realmente o encontramos. (TODOROV, p. 30-31, 2007)
Apesar de Todorov (2007) definir o fantástico como um gênero literário, vamos tratá-
lo como um recurso narrativo que visa compreender melhor alguns elementos inseridos dentro
do discurso literário de uma obra. Neste aspecto, o fantástico se configura por meio de um
evento, cuja forma de narração é capaz suscitar dúvidas no personagem que, por seu turno,
são transferidas ao leitor por meio do ato da leitura.
Assim, esse evento, para que possa ser compreendido plenamente, encontrará suporte
na teoria proposta por Todorov (2007) sobre o que vem a ser uma manifestação do fantástico:
ou ele realmente acontece no chamado mundo real, embora não possa ser explicado pelo
pensamento lógico-racional; ou então se trata de uma ilusão, fruto da imaginação de um
personagem.
É importante enfatizar que para Todorov (2007) esse acontecimento inexplicável
implica, necessariamente, na existência de um elemento sobrenatural, uma vez que este não
encontra uma explicação dentro do chamado mundo real governado pelas leis empíricas da
razão. Assim, é no romantismo, onde predomina a chamada “desrazão”, mais
especificamente, em sua vertente “gótica”, que as manifestações sobrenaturais se sobressaem
no enredo de várias obras.
Dessa forma, em grande parte dos textos inseridos na literatura gótico-romântica o
que podemos chamar de “atmosfera sobrenatural” predomina sobre a representação mimética
realista. Contudo, um deles parece se diferenciar dos demais, uma vez que seu discurso
narrativo ao mesmo tempo em que se insere no universo gótico-romântico, também procura
descrever de modo verossímil alguns eventos da vida cotidiana em Yorkshire, uma típica
localidade inglesa. Trata-se do romance Wuthering Heights (O Morro dos Ventos Uivantes),
de Emile Brontë, publicado pela primeira vez em 1847. Além disso, vale ressaltar que, nesta
obra o tratamento dado pela autora à temática sobrenatural, difere um pouco de outros que
aparecem em outras obras inseridas na literatura gótico-romântica e anteriores à sua
publicação. Assim, apoiando-me na teoria de Todorov (2007) sobre o fantástico, proponho
uma leitura do romance de Brontë, de modo a demonstrar a descrição diferenciada em seu
enredo dos elementos sobrenaturais. Para isso, se torna necessário analisar algumas passagens
do livro.
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Dentre elas, aquela que é apontada com uma das mais significativas e o insere
plenamente na esfera do universo gótico pode ser encontrada em sua parte inicial. Esta
acontece no interior de Wuthering Heights – a propriedade rural que dá título à obra, onde
ocorre à instauração gradativa da atmosfera sobrenatural, um elemento recorrente na escrita
gótica, quando o Sr. Lockwood (personagem e ao mesmo tempo um dos narradores da trama
principal do romance), “vê” uma garota misteriosa tentando entrar em seu quarto. Contudo,
antes de analisá-la com detalhes se torna necessário comentar um pouco sobre a passagem
anterior do romance, onde o personagem é perturbado pelo barulho incessante de um galho
batendo à janela:
Tão-só o galho de um pinheiro que tocou a minha janela, com um zumbido de uma rajada de vento, e tamborilou as suas pinhas secas nas vidraças! Ouvi hesitando por um instante, e, detectada a origem da perturbação, virei-me adormeci, voltei a sonhar, e tive um pesadelo pior do que o anterior, se é possível. (BRONTË, 2005 [1847], p.51)
É importante enfatizar neste trecho, que o emprego das palavras “adormeci”,
“sonhar” e “pesadelo” sugerem a ideia de que Lockwood pode estar em estado semiacordado,
ou seja: ele acorda, embora se mantenha sonolento e constata a origem de sua perturbação (o
galho que bate violentamente no vidro da janela) e depois volta a dormir profundamente.
Contudo, novamente é despertado pela repetição incessante do barulho, que lhe causa
profunda perturbação, obrigando-o a tomar uma atitude. Mas, ele percebe que o fecho da
janela está soldado e, diante disso, reage de forma violenta: esmurra a vidraça e estica o braço
tentando agarrar o galho. Na sequência, ele narra o estranho evento, onde predomina a
manifestação do elemento sobrenatural, enfatizada pela criação de um efeito de horror:
Em vez disso, os meus dedos se fecharam nos dedos de uma mãozinha gelada! O imenso horror do pesadelo baixou sobre mim. Tentava puxar o braço, mas a mão se agarrou com força a ele, e a voz mais melancólica do mundo gemeu: - Deixe-me entrar, deixe-me entrar! –Quem é você? – perguntei, enquanto fazia força par me soltar. –Catherine Linton – replicou, tremendo (por que pensei em Linton? Li Earnshan vinte vezes mais do que Linton). – Estava a caminho de casa e me perdi no pântano! Conforme eu disse, vislumbrei vagamente um rosto de criança, que olhava pela janela. O terror me levou a crueldade e, julgando inútil tentar atirar para longe a criatura, puxei-lhe os pulsos pela vidraça quebrada e puxei-lhe os pulsos para a vidraça quebrada, e esfreguei-os de um lado para outro, até que o sangue começasse a jorrar, ensopando as roupas de cama. (BRONTË, 2005 [1847], p. 51)
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Apesar do aspecto gráfico desta cena ser marcante, nota-se que o modo como esta é
narrada pode suscitar dúvidas no leitor quanto à sua veracidade. Isto porque ela é descrita pela
perspectiva de Lockwood que, por estar emocionalmente abalado, parece ser incapaz de
definir um limite que separa o real e a ilusão. Assim, pelo modo como ele comporta, este
personagem-narrador pode ser o que Todorov classifica como “não confiável”. Para Todorov
(2007), este modo de narração se caracteriza pela demonstração de hesitação do personagem
em acreditar na existência de um acontecimento aparentemente sobrenatural, embora seja
capaz promover uma espécie de desestabilização no que definimos no discurso narrativo de
uma obra literária como realidade.
Dessa forma, a demonstração dessa hesitação no discurso de Lockwood pode ser
comprovada quando ele afirma ter visto uma misteriosa menina tentando entrar pela janela do
quarto, provocando-lhe um terror tão intenso, de modo a baixar sobre ele o que chama de
“horror de pesadelo”, reforçando a ideia de que esta cena somente aconteceu no que podemos
chamar de plano onírico. Também é possível comprovar que esse evento assustador e até
mesmo cruel descrito pelo personagem é construído a partir de uma série de situações que
ocorrem dentro de um processo contínuo de gradação, onde se sobressaem elementos
inseridos na esfera do fantástico.
Inicialmente, Lockwood enfatiza que o galho “assumiu” a forma de dedos humanos.
Logo depois, ele afirma que consegue “sentir” o toque gelado da pele fria de uma menina, um
indício que denota que esta está morta, provocando-lhe um terror tão intenso, a ponto de
“obrigá-lo” a praticar um ato terrível: esfregar as mãos dela no batente danificado da janela.
No entanto, Lockwood salienta que, mesmo a ferindo gravemente, de modo que o sangue dela
jorre e empape as roupas de cama, a garota que ele identifica como sendo uma antiga
moradora da casa, Catherine Linton, começa a “gritar” e insiste em entrar, mantendo seus
dedos presos aos dele.
Diante disso, Lockwood pede a ela que o solte, mediante a promessa que atenderá
seu desejo. Na sequência, ele não cumpre com sua palavra e fecha a entrada da janela com
vários livros. No entanto, Catherine não desiste e começa a arranhar o lado de fora, e, em
seguida faz com que Lockwood tenha a nítida “impressão” de que ela está empurrando a
janela, de modo a provocar-lhe um terror tão intenso que o faz gritar.
Nota-se que quando Heathcliff entra no quarto, seu inquilino procura dissipar
completamente seu medo e, principalmente, tenta desfazer qualquer indício da existência de
aparentes manifestações sobrenaturais. Assim, ele muda completamente seu discurso,
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tentando explicar ao proprietário de Wuthering Heights que a causa de seu terror teve sua
origem em um pesadelo “É apenas o seu hóspede, senhor – disse, desejando poupar-lhe a
humilhação de expor ainda mais sua covardia. Tive a desventura de gritar durante o sono,
devido a um pesadelo aterrorizante. Sinto tê-lo perturbado” (BRONTË, 2005 [1847], p. 52-
53).
Também é possível comprovar que com a entrada de Heathcliff, um dos principais
personagens do romance, o cenário muda completamente: os barulhos provocados pelo
suposto fantasma de Catherine Linton cessam de forma abrupta e Heathcliff em nenhum
momento comenta sobre vestígios de sangue nas roupas de cama, limitando-se apenas a
reclamar da permanência de Lockwood no local:
- Maldito seja, Sr. Lockwood! Queria que o senhor estivesse na... - começou o meu anfitrião, pondo a vela numa cadeira, porque achou que era impossível segurá-la com firmeza. – E quem o trouxe a este quarto? – continuou, cravando as unhas nas palmas da mão e rangendo os dentes para reprimir os tremores do maxilar – Quem foi? Estou disposto a mandá-lo embora desta casa agora mesmo! (BRONTË, 2005 [1847], p.53)
Diante do agressivo comportamento de Heathcliff, seu inquilino reage de forma
violenta, alterando o teor de seu discurso. Assim, novamente enquanto Lockwood justifica o
motivo de estar hospedado no quarto, é sugerida no texto a manifestação de eventos
sobrenaturais em Wuthering Heights:
- Foi sua empregada Zillah- repliquei, pulando da cama e vestindo-me rapidamente. –E nem me importaria se o fizesse se o fizesse, Sr. Heathcliff, porque ela bem o merece. Acho que queria outra prova, às minhas custas, que o lugar é mal-assombrado. Bem, é mesmo... está fervilhando de fantasmas e duendes! O senhor está certo em trancá-lo, posso assegurar. Ninguém irá agradecer-lhe por um cochilo que seja neste covil! (BRONTË, 2005 [1847], p. 53)
Nota-se que neste trecho, a presença do elemento fantástico se destaca no discurso
narrativo do romance. Lockwood menciona fantasmas e duendes, os quais somente podem
existir plenamente na esfera do sobrenatural. Além disso, ele também comenta com Heathcliff
sobre seu estranho encontro com Catherine Linton e, em sua descrição deste, enfatiza
novamente a existência de acontecimentos que escapam à compreensão do pensamento
lógico-racional:
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-Se aquele demônio tivesse entrado pela janela, com certeza teria me estrangulado! – retruquei. -Não vou suportar as perseguições dos seus hospitaleiros ancestrais de novo. Não teria o reverendo Jabes Branderham sido um parente seu por parte de sua mãe. E aquela leviana, Catherine Linton, ou Earnshaw, ou qualquer que fosse o seu nome... deve ser uma enjeitada... alminha amaldiçoada! Disse-me que vem vagando pela Terra há vinte anos, certamente uma punição justa para suas transgressões mortais. (BRONTË, 2005 [1847], p. 53)
Também é importante ressaltar que esta crença na existência de seres sobrenaturais
também aparece no discurso de Heathcliff. Quando Lockwood deixa o quarto, ele vê o
proprietário de Wuthering Heights chamando o nome de Catherine, reforçando, assim, a
atmosfera sobrenatural no enredo da obra, onde se sobressai seu aspecto gótico-romântico,
que remete ao tema principal: a existência de um sentimento amoroso tão forte, capaz de
desafiar o limite que separa a vida e a morte.
Mas sem saber aonde as estreitas passagens me levariam, permaneci no mesmo lugar, e fui testemunha involuntária do lado supersticioso do meu senhorio, o que contradizia, estranhamente, a sua aparente sensatez. Subiu na cama e escancarou a janela, desfazendo-se, neste instante, numa incontrolável torrente de lágrimas: -Entre! Entre!- soluçou. –Cathy, venha, venha! Ah, venha somente uma vez! Ah, meu amor! Ouça-me pelo menos desta vez, Catherine! (BRONTË, 2005 [1847], p. 55)
Contudo, o apelo de Heathcliff não surte efeito desejado, e nada acontece. Diante
disso, Lockwood comenta “que o fantasma mostrou um capricho comum aos espectros: não
deu sinal de vida”, o que dá uma conotação irônica ao texto e novamente demonstra marcas
de hesitação em seu discurso. Por outro lado, Lockwood não deixa de acreditar na existência
do sobrenatural, quando faz a descrição de um estranho evento, que também acontece no
interior do quarto: “a neve e o vento rodopiavam, com violência pela janela, chegando até
mesmo até onde eu estava, e apagando a vela” (BRONTË, 2005 [1847], p.55
Vale ressaltar que o fantástico pela perspectiva de Todorov também aparece e se
destaca na fala de outra personagem, que narra os principais eventos da trama. Nelly Dean, a
criada de Wuthering Heigths, assim como Lockwood, demonstra aos poucos, pelo modo com
se expressa, não ser um tipo de narrador muito confiável. Isto se reflete em seu relato,
principalmente pela forma como descreve Heathcliff, destacando suas atitudes ameaçadoras
(ranger de dentes, explosões violentas de fúria). Além disso, ao longo do desenvolvimento da
trama, Nely Dean cria uma aura de mistério em torno desse personagem, de modo a torná-lo,
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um ser quase sobrenatural. Assim, ela evoca a figura da contadora de histórias, conforme
demonstra o seguinte trecho da obra:
Mas, Sr. Lockwood, esqueci-me de que essas histórias podem não ser divertidas para o senhor. Estou aborrecida de ficar tagarelando tanto, enquanto seu mingau esfriou e o senhor está caindo de sono! Poderia ter contado a história de Heathcliff só com meia dúzia de palavras. (BRONTË, 2005 [1847], p. 87)
Em outra passagem significativa e assustadora do livro, é descrito um sinistro evento
noturno. Neste trecho, o personagem que assume o papel de narrador também é um dos
protagonistas da obra: Heathcliff que, aos poucos o insere na esfera do sobrenatural:
Apanhei uma pá no depósito de ferramentas e pus-me a cavar com toda a minha força, até bater no caixão; abaixe-me a fim de trabalhar com as mãos para abri-lo, e a madeira começou a estalar onde estavam os parafusos. Quase atingia meu objetivo, quando tive a impressão de que ouvi um suspiro de alguém acima, perto da borda da cova, debruçado sobre ela. “Se eu puder tirar isso fora”, resmunguei. “gostaria que cobrissem de terra nós dois!” e puxava ainda em desespero. Ouvi, então um outro suspiro, perto da orelha. Parecia até que sentia seu hálito quente no lugar do vento que trazia granizos. Eu sabia que não havia nenhum ser vivo, de carne e osso, por perto. Mas, com a mesma segurança com que se pode perceber a aproximação de um corpo substancial no escuro, embora eu não pudesse discerni-lo, estava certo que Cathy ali estava, não debaixo de mim, mas sobre a terra. (BRONTË, 2005 [1847], p. 304- 305)
Novamente nesta cena se destacam elementos recorrentes da escrita gótica
(ambientação noturna associada à morte, atmosfera de terror, sugestão de uma manifestação
sobrenatural,) descritos pelo viés do fantástico.
Durante a violação do caixão de Catherine, Heathcliff descreve estranhos
acontecimentos que sugerem a existência da presença física de sua amada, por meio de alguns
indícios (suspiro, hálito quente). Contudo, em alguns momentos, ele hesita em acreditar que
isso esteja acontecendo, mediante a justificativa de que é impossível haver um ser vivo, de
carne e osso por perto. Mas, novamente, assim como em outras passagens da obra, é a
atmosfera sobrenatural que predomina em seu desfecho, quando Heathcliff finalmente se
convence de que Catherine estará com ele para onde for.
A partir da análise dessas cenas deste romance, podemos chegar à conclusão de que,
apesar de algumas limitações, a teoria sobre o fantástico de Todorov (2007) pode nos auxiliar
a compreender as manifestações do fantástico em Wuthering Heights (O Morro dos Ventos
Uivantes). Conforme constatamos, em seu enredo se sobressaem o ponto de vista de
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diferentes narradores (Sr. Lockwood, Nely Dean, Heathcliff) classificados por Todorov como
“não confiáveis” devido à existência do que chamamos de marcas de hesitação em seu
discurso, que são enfatizadas principalmente quando estes descrevem eventos aparentemente
sobrenaturais.
No entanto, é provável que, se limitarmos o entendimento de tais acontecimentos, de
modo a compreendê-los como somente delírios ou invenções criadas por personagens,
principalmente, por Nely Dean, estaremos empobrecendo a leitura do romance, ou pior,
ignorando uma das características que o tornaram a maior expressão do romantismo inglês.
Não podemos esquecer que como obra romântica, Wuthering Heights (O Morro dos
Ventos Uivantes) propõe, por meio de seu discurso narrativo, o que foi chamado por um dos
expoentes do movimento romântico, o poeta Samuel T. Coleridge de “suspensão da
incredulidade.” Assim, Wuthering Heights (O Morro dos Ventos Uivantes) é o que podemos
chamar de “narrativa mítica”, de forte apelo gótico-romântico, onde o bem e o mal e,
principalmente, o natural e o sobrenatural entram em conflito o tempo todo, embora se
complementem e constituam partes integrantes dentro da chamada “ilusão do real”. Um
romance que se tornou um clássico da literatura universal, principalmente pelo modo
inusitado como criou uma realidade que pode ser definida como “fantástica” que, embora seja
sinistra, com alguns contornos trágicos, é capaz de intrigar, assustar e, acima de tudo, exercer
um grande fascínio sobre leitores de diferentes gerações.
REFERÊNCIAS:
BOTTING, Fred. Gothic. London: Routledge, 1996. BRONTË, Emile. O morro dos ventos Uivantes. Introdução, tradução, notas e dossiê: Renata Maria Parreira Cordeiro e Eliana Gurjão Silveira Alambert. São Paulo: Landy, 2005. COLERIGDE, Samuel Taylor. A balada do velho marinheiro. Tradução de Alípio Correia de França Neto. São Paulo: Ateliê Editorial, 2005. FEGAN, Melissa. Whutering Heights: Characteres Studies. Nova York: Continuum, 2008. TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. São Paulo: Perspectiva, 2004.
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Reflexões sobre Um senhor muito velho com umas asas enormes (1968), conto de Gabriel
García Márquez
Amanda Pérez MONTAÑÉS (UEL)
RESUMO: Por meio da análise do conto “Um senhor muito velho com umas asas enormes”, de 1968, de Gabriel García Márquez (2011), pretende-se explorar, à luz do realismo maravilhoso, a presença do outro e a maneira como essa estranha presença conduz a uma inversão total dos parâmetros de percepção da realidade. Nesse célebre relato de García Márquez, pertencente à coletânea de contos A incrível e triste história da Cândida Eréndira e sua avô desalmada (1972), o elemento insólito (um anjo muito velho) instala-se no mundo real sem abalar as referências adquiridas. Desde o início da história, o narrador introduz elementos maravilhosos que não produzem um efeito de assombro no leitor, porque são apresentados como reais e familiares, ou seja, o desconhecido incorpora-se imediatamente ao real. A figura do anjo é desmitificada ao contradizer o cânone clássico do que seria um anjo. Apresenta-se, no conto, com “um senhor muito velho vestido como um trapeiro, a cabeça pelada e muitos poucos dentes na boca, e as asas de grande galináceo, sujas e meio depenadas, encalhadas para sempre no lodaçal” (MÁRQUEZ, 2011, p.10). Assim, ao longo da narrativa o senhor muito velho se comunica por meio de uma língua incompreensível, e essa incompreensão gera o isolamento, a solidão e a intolerância à diferença e à alteridade em que foi relegada. PALAVRAS-CHAVE: Gabriel García Márquez; Um senhor muito velho com umas asas enormes; Realismo Maravilhoso. RESUMEN: Por medio del análisis del cuento Un señor muy viejo con unas alas enormes (1968), de Gabriel García Márquez, se quiere explorar, según el realismo maravilloso, la presencia del otro y cómo esta extraña presencia conduce a una inversión total de los parámetros de percepción de la realidad. En este famoso relato de García Márquez, perteneciente a la colección de cuentos La increíble y triste historia de la Cándida Eréndira y su abuela desalmada (1972), el elemento insólito (un ángel muy viejo) se introduce en el mundo real sin desequilibrar las referencias adquiridas. Desde el comienzo de la historia, el narrador introduce elementos maravillosos que no producen un efecto inquietante en el lector ya que son presentados como siendo reales y familiares, es decir, lo desconocido se incorpora inmediatamente a la realidad. La figura del ángel es desmitifica al contradecir el canon clásico de lo que podría ser un ángel. En el cuento se presenta con "un hombre viejo vestido como un trapero, el cráneo calvo y muy pocos dientes en la boca, y con grandes alas de gallinazo, sucias y medio desplumadas, encalladas para siempre en el lodazal." Así, a lo largo de la narración ese señor tan viejo se comunica a través de un lenguaje incomprensible y es esa incomprensión la que genera el aislamiento, la soledad, la intolerancia a la diferencia, a la alteridad a la que fue relegada. PALABRAS CLAVE: Gabriel García Márquez; Un señor muy viejo con unas alas enormes; Realismo Maravilloso. SOBRE REALIDADES E REALISMOS
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“[…] sólo la niebla es real” (Octavio Paz)
A forma de abordar a literatura encontra-se intimamente relacionada às dadas
concepções estéticas, as quais presidem a seleção e o ordenamento do corpus, estabelecendo,
assim, as modalidades de significação e o efeito estético por meio do qual lemos uma obra.
Com base nessa premissa, a hipótese é a de que, por volta dos anos 1950, começam a ocorrer
no domínio da literatura da América Latina uma série de rupturas que alteram e modificam
sua estrutura e funcionamento, produzindo o deslocamento de formas de representação
vigentes, fundadas na falsa crença da ‘transparência da linguagem’ em relação às realidades
expressadas ou representadas, para uma nova forma de representação da realidade que busca
restituir à linguagem sua opacidade fundamental. Alguns escritores influenciados pelas obras
de Kafka, Huxley, Proust, Faulkner, Joyce, Woolf, introduzem audazes inovações quanto à
técnica narrativa, afastando-se da narrativa de cunho regionalista e ‘criollista’ para expor
problemas de transcendência universal, buscando, desse modo, formas de expressão
inovadoras que deem conta de perceber a realidade.
Podem ser citadas como novas formas de representação, por exemplo, a evolução da
narrativa social dos anos 1930 e 1940 para o chamado ‘realismo mágico’ ou ‘realismo
maravilhoso’. “Enquanto que a primeira estava focada na análise ‘realista’ das condições
materiais de existência de setores sociais na sua maioria rurais, o segundo, embora assumindo
muitas vezes problemas sociais reais, procurou incorporar também o patrimônio cultural
indígena ou africano de procedência mágico mítica desses mesmos setores sociais, mas
reelaborando-o e inscrevendo-o dentro do novo contexto da tradição romanesca ocidental”
(PERUS, 1984, p. 3, trad. nossa).
Ao mesmo tempo, com o surgimento da poética do ‘real maravilhoso americano’,
definida por Alejo Carpentier (1904-1980), embora não seja exclusiva dele, produz-se a busca
de uma síntese (problemática, porque compartilha por igual da história e do mito) de
elementos díspares que, em seus diversos níveis, configuram a realidade cultural da América
Latina. Assim, a partir da incorporação de discursos heterogêneos, literários ou não, podemos
ver o surgimento de formas inovadoras da narrativa na América Latina, vinculando-a com a
história e a ficção. Além disso,
[...] ao cancelar o caráter monológico do discurso histórico dominante com a configuração polifônica do universo ficcional e a carnavalização do mito, tais formas conferem um conteúdo concreto a uma perspectiva
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eminentemente popular, apesar de que em sua expressão literária ultrapasse o universo de referências culturais dos setores populares (PERUS, 1984, p.4, trad. nossa).
No prólogo a El reino de este mundo, Carpentier afirma que
[...] o real maravilhoso começa a sê-lo de maneira inequívoca quando surge de uma inesperada alteração da realidade (o milagre), de uma revelação privilegiada da realidade, de uma iluminação inabitual ou singularmente favorecedora das inadvertidas riquezas da realidade [...] percebidas com particular intensidade (CARPENTIER, 2004, p. 15).
Assim, a atitude do escritor diante da realidade é ‘um ato de fé’ no maravilhoso
americano e a expressão de seu interesse em desentranhar, em descobrir os mistérios da
existência e as ações humanas, procurando o misterioso, o mágico que existe nelas. O escritor
mágico-realista “[...] exalta seus sentidos até um estado limite que lhe permite adivinhar os
inadvertidos matizes do mundo externo, desse multiforme mundo no qual vivemos” (LEAL,
1967, p. 230). Para Carpentier (2004), o ‘real maravilhoso’ compreende dois aspectos: uma
qualidade estética extraordinária da realidade americana, e a capacidade do escritor perceber
essa qualidade, e de transformá-la em literatura. Porém, “Carpentier não apela às capacidades
criadoras do escritor, senão a sua crença: só o artista ‘crente’ é o vidente, só a ‘fé’ pode
transformar aquele capital morto (a realidade americana) no maravilhoso literário”
(LUKAVSKÁ, 1991, p. 69, trad. nossa).
Dessa forma, em Hombres de maíz (1949), de Miguel Ángel Asturias (1899-1974);
El reino de este mundo (1949), de Alejo Carpentier (1904-1980); e Cien años de soledad
(1968), de Gabriel García Márquez (1928), entre outras obras do gênero, podemos encontrar
elementos característicos do que vai ser definido como ‘realismo mágico’, ‘real maravilhoso’,
ou ‘realismo maravilhoso’. Embora possuam conceitos diferentes e de difícil definição,
apresentam características comuns e se cruzam em vários pontos, mas que não se podem
permutar. Vistos como um problema de caráter estético, são termos atalhos que têm em
comum a maneira de narrar fatos inverossímeis como se fossem reais ou acontecimentos reais
apresentados pelo viés do assombro e o estranhamento. A nota distintiva estará dada pela
preocupação estilística, a transformação do corriqueiro e cotidiano em irreal, e, também, pela
apresentação do irreal ou insólito, formando parte da realidade num transcorrer impreciso do
tempo, no entanto, com uma concepção lógica dos argumentos.
O ponto de partida comum entre o ‘real maravilhoso’ de Carpentier e o ‘realismo
mágico’ adotado por García Márquez é conceber a realidade americana como ‘maravilhosa’:
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No caso de Carpentier se trata do assombro e a admiração do europeu diante do mundo cujo traço principal é a mestiçagem; já para García Márquez o ‘maravilhoso’ consiste em outra dimensão da realidade americana em comparação com a europeia; no entanto, sua atitude diante da realidade americana está desprovida de qualquer admiração porque América é, segundo ele, o mundo onde tudo é possível, incluso as maravilhas (LUKAVSKÁ, 1991, p. 71, trad. nossa).
Se Carpentier apelava à ‘fé’ dos escritores em relação ao ‘real maravilhoso’
americano, García Márquez chamava a atenção do escritor para representar o real como algo
‘mágico’, e está de acordo com o autor cubano no que diz respeito ao fato da realidade
americana ser extraordinária, desmesurada. Porém, “diferente de Carpentier, não formulou
uma ‘teoria’ do realismo mágico, senão adoptou o conceito como designação adequada de sua
produção literária comentando-o e, de passagem, especificando-o” (LUKAVSKÁ, 1991, p.
71, trad. nossa). Carpentier queria representar a realidade americana como maravilhosa em si
mesma, já García Márquez difere nesse aspecto, expondo que são os recursos narrativos e a
imaginação do autor os que permitem transformar a realidade; a literatura não pode ser
‘fotografia da realidade’ mas sua síntese, porém, deve fundar-se numa realidade concreta.
Assim, cabe ao escritor encontrar os recursos para expressar em sua obra a desmesura (o
maravilhoso) do continente americano, seus mitos, lendas, histórias e estórias.
Em O Realismo maravilhoso, Irlemar Chiampi propõe uma divergência conceitual
entre ‘realismo mágico’ e ‘realismo maravilhoso’. O maravilhoso estaria relacionado ao
extraordinário, ao insólito, ao admirável:
[...] o ‘extraordinário’, ‘o insólito’, o que escapa ao curso ordinário das coisas e do humano [...] é o que contém a maravilha, do latim mirabilia, ou seja ‘coisas admiráveis’ (belas ou execráveis, boas ou horríveis), contrapostas ás naturalia”. Em mirabilia está presente o ‘mirar’: olhar com intensidade, ver com atenção ou ainda, ver através (CHIAMPI, 2008, p.48, grifos da autora).
Por conseguinte, segundo a autora, o maravilhoso estaria vinculado como
pertencente ao não humano, ao não natural, é o produzido pela intervenção de seres
sobrenaturais divinos ou legendários. Desse ponto de vista, o mágico tem a magia como tema
no sentido de entendê-la como forma de “dominar os seres ou forças da natureza e produzir,
através de certas práticas e fórmulas, efeitos contrários às leis naturais”. Já no ‘realismo
mágico’, a realidade é considerada misteriosa, ou ‘mágica’, e ao narrador cabe ‘adivinhá-la’.
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Recai, portanto, ao narrador a tarefa de interpretar e entender o que vem a ser real. A adoção
do termo ‘realismo mágico’ revela “a preocupação elementar de constatar uma ‘nova atitude’
do narrador diante do real” (CHIAMPI, 2008, p. 21). Logo, nesse tipo de obras, o tom da voz
do narrador é o principal agente unificador da história. García Márquez, como veremos a
seguir, costuma apresentar os fatos em forma direta, sem se deter a interpretá-los ou julgá-los,
sem estabelecer diferenças entre o ‘real’ e o ‘mágico’, tudo é apresentado com naturalidade.
A presença de um universo ‘natural’ permite ao leitor se incorporar no mundo narrado como
se ele também fosse parte do mesmo.
UM ANJO NO CARIBE
“Um senhor muito velho com umas asas enormes” (1968), é um relato de Gabriel
García Márquez, publicado na coletânea de contos A incrível e triste história da Cândida
Eréndira e sua avô desalmada, primeira edição de 1972. Os contos aqui reunidos partem de
um projeto de ficções para crianças, em que se misturam acontecimentos surreais e detalhes
do cotidiano. Desde o início da história, o elemento insólito (um anjo muito velho) instala-se
no mundo real sem abalar as referências adquiridas:
No terceiro dia de chuva haviam matado tantos caranguejos dentro da casa que Pelayo teve que atravessar seu pátio alagado para atirá-los ao mar, pois o menino recém-nascido tinha passado a noite com febre e se pensava que era por causa da peste. O mundo estava triste desde terça-feira. O céu e o mar eram uma só coisa cinza e as areias da praia, que em março fulguravam como poeira de luz, converteram-se num caldo de lodo e mariscos podres. A luz era tão mansa ao meio dia, quando Pelayo voltava a casa, depois de haver jogado os caranguejos, que lhe deu trabalho ver o que se mexia e se queixava no fundo do pátio. Teve que se aproximar muito para descobrir que era um velho, que estava caído de boca para baixo no lodaçal e, apesar de seus grandes esforços, não podia levantar-se, porque o impediam suas enormes asas (GARCÍA MÁRQUEZ, 2011, p. 9-10, grifos nossos).
Como podemos ver no fragmento anterior, o narrador introduz a estranha presença
(um anjo muito velho) sem causar um efeito de assombro no leitor, pois é apresentada como
real e familiar, ou seja, o desconhecido se incorpora imediatamente ao real, constituindo assim
uma só realidade. Nesse caso, o acontecimento ‘insólito’ ou ‘maravilhoso’ não altera a ordem
da realidade narrada. Não vemos contradição com o natural nem necessidade de escolha entre
uma explicação natural ou sobrenatural, porque o sobrenatural tem uma essência que o
qualifica como natural, portanto, o desconhecido incorpora-se automaticamente ao real. Nessa
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inversão de perspectivas, o incrível está na realidade, e o evento sobrenatural possui
probabilidade interna. Então, o real é apresentado deixando que o discurso o legitime como
sobrenatural e o encantamento passe pelo discurso, do real para o irreal.
No relato de García Márquez, a hesitação inicial das personagens (Pelayo e Elisenda)
acerca da identidade do estranho é logo desfeita com a afirmação da vizinha:
Assustado com aquele pesadelo, Pelayo correu em busca de Elisenda, sua mulher [...] Os dois observaram o corpo caído com um calado estupor. Tanto o observaram, e com tanta atenção, que [...] se repuseram logo do assombro e acabaram por acha-lo familiar. Então se atreveram a falar lhe, e ele lhes respondeu em um dialeto incompreensível, mas com uma boa voz de marinheiro. Foi assim que desprezaram o inconveniente das asas, e concluíram, com muito bom juízo, que era um náufrago solitário de algum navio estrangeiro abatido pelo temporal. Apesar disso, chamaram para vê-lo uma vizinha que sabia todas as coisas da vida e da morte, e a ela bastou um só olhar para tirá-los do erro. É um anjo disse lhe. – Não tenho dúvida de que vinha buscar o menino, mas o coitado está tão velho que a chuva o derrubou (GARCÍA MÁRQUEZ, 2011, p. 10).
Porém, nessa passagem, a figura do anjo (o elemento maravilhoso) é desmitificada
ao contradizer o cânone clássico do que seria um anjo, apresentado desde o início com uma
imagem deplorável:
Estava vestido como um trapeiro. Restavam-lhe apenas uns fiapos descorados na cabeça pelada e muito poucos dentes na boca, e sua lastimável condição de bisavô ensopado o havia desprovido de toda grandeza. Suas asas de grande galináceo, sujas e meio depenadas, estavam encalhadas para sempre no lodaçal (GARCÍA MÁRQUEZ, 2011, p.10).
Como podemos ver, há na narrativa a união de elementos díspares (anjo/trapeiro),
que configuram uma nova realidade ao subverter os padrões convencionais da racionalidade
ocidental. A imagem do anjo é destituída da aura celeste tradicional, mas sua aparição na
forma de um velho trapeiro conserva algumas marcas de verossimilhança que permitem
associá-lo à figura celestial: as asas, elemento/símbolo de identificação angélica. Não
obstante, os anjos, intermediários entre Deus e o mundo, “seriam seres puramente espirituais,
ou espíritos dotados de um corpo etéreo, aéreo; mas não poderiam revestir dos homens senão
as aparências” (CHEVALIER, 1988, p. 60, grifos do autor).
No relato, apresenta-se um homem muito velho com aparência de anjo, mas sem ser
anjo (não fala a língua dos anjos nem faz milagres), não pode ser incluído no todo do qual faz
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parte. É uma diferença, um refugiado que vai p3ermanecer excluído e indesejado, uma
exclusão inclusiva; uma exceção:
No dia seguinte todo mundo sabia que em casa de Pelayo tinham aprisionado um anjo de carne e osso. Contra o julgamento da sábia vizinha, para quem os anjos destes tempos eram sobreviventes fugitivos de uma conspiração celestial, não tinham tido coragem para matá-lo a pauladas. Pelayo esteve vigiando-o toda a tarde da cozinha, armado com o seu garrote de meirinho, e antes de deitar se, arrastou-o do lodaçal e o encerrou com as galinhas no galinheiro alambrado (GARCÍA MÁRQUEZ, 2011, p.11).
Ao longo da narrativa, o senhor muito velho se comunica por meio de uma língua
incompreensível e essa incompreensão gera o isolamento, solidão, intolerância à diferença, à
alteridade em que foi relegada. Vemos que o lugar do anjo se determina na exclusão: o
lamaçal, o galinheiro, o pátio, os vários cantos da casa. A figura é constituída de forma tão
deplorável e patética que à sua alteridade só resta o não-lugar. A partir deste momento, o
elemento sobrenatural ou ‘maravilhoso’ deixa de sê-lo para tornar-se natural e ‘muito
humano’:
[...] quando saíram ao pátio, às primeiras luzes da manhã, encontraram toda a vizinhança diante do galinheiro, brincando com o anjo sem a menor devoção e atirando-lhe coisas para comer pelos buracos dos alambrados, como se não fosse uma criatura sobrenatural, mas um animal de circo [...] tinha um insuportável cheiro de intempérie, o avesso das asas semeado de algas parasitárias e as penas maiores maltratadas por ventos terrestres, e nada de sua natureza miserável estava de acordo com a egrégia dignidade dos anjos (GARCÍA MÁRQUEZ, 2011, p.11-12).
Mesmo com sua deplorável aparência ou por causa dela, o anjo muda a vida das
personagens. Pelayo e Elisenda tiveram acesso ao capital, melhorando de vida, pois o velho
anjo foi transformado em animal de circo em cativeiro, sendo cobrada a entrada para vê-lo,
mas ele não participava do seu próprio acontecimento, vivia solitário; estava alheio ‘às
impertinências do mundo’ e não dizia palavra compreensível, “[...] não entendia a língua de
Deus nem sabia saudar aos ministros” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2011, p. 12).
Se no início da narrativa era suportado porque gerava lucro, ao final, quando deixa
de ser fonte de renda, torna-se um estorvo, e, diante da rejeição, desaparece de cena ao ser
suplantado pela nova atração de uma feira ambulante, ‘a mulher aranha’:
A entrada para vê-la não só custava menos que a entrada para ver o anjo, mas até permitiam fazer-lhe quaisquer pergunta sobre sua absurda condição,
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e examiná-la pelo direito e pelo avesso, de modo que ninguém pusesse em dúvida a verdade do horror. Era uma tarântula espantosa, do tamanho de um carneiro, e com a cabeça de donzela triste (GARCÍA MÁRQUEZ, 2011, p. 15).
A mulher convertida em aranha suplanta a reputação do anjo porque apresenta, em
sua absurda condição, verdade humana: “O mais triste, entretanto, não era sua figura absurda,
mas a sincera aflição com que contava os pormenores de sua desgraça” (GARCÍA
MÁRQUEZ, 2011, p. 15). Dessa forma, a presença bestial não rompe com a ordem
estabelecida, porque sua ‘condição humana’ permite-lhe conviver com os homens sem
produzir estranheza ou medo, sendo forçados a reconhecer a sua real existência.
Ao final da narrativa, o velho anjo do Caribe após um longo período de sofrimento,
quase moribundo, sobrevive a seu pior inverno e renasce transformado num ‘grande pássaro
velho’, ‘um abutre senil’, em cujas asas nasceram umas penas grandes e duras ‘que mais
pareciam um novo percalço da decrepitude’, mas que lhe outorgam forças para voar. Parte,
assim, despojado das essências humana e divina, prevalecendo apenas o elemento da
diferença: as asas. Como ave, ele parte, regenerado como uma águia e renascido tal qual a ave
Fênix.
REFERÊNCIAS:
ASTURIAS, Miguel Ángel. Hombres de maíz. 5. ed. Madrid: Alianza Editorial, 1982 (El Libro de Bolsillo). CARPENTIER, Alejo. Obras Completas (El reino de este mundo. Los pasos perdidos). 13. ed, México: Siglo XXI Editores, v. 2, 2004. CHEVALIER, e GHEERBRANT, Alain. Dicionário dos símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1988. CHIAMPI, Irlemar. O realismo maravilhoso. 2. ed. São Paulo: Editora Perspectiva, S.A., 2008. FRANCO, Jean. Historia de la literatura hispanoamericana. Barcelona: Ariel, 2002. GARCÍA MÁRQUEZ. La increíble y triste historia de la Cándida Eréndida y su abuela desalmada. 15. ed. Buenos Aires: Debolsillo, 2011. JOSEF, Bella (Org.). Escritos sobre Gabriel García Márquez. Rio de Janeiro: UFRJ, Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas, 2010 (Laboratório Latino-Americano; 3).
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LEAL, Luis. El realismo mágico en la Literatura Hispanoamericana. In: Cuadernos Americanos. México: año XXVI, tomo CLII, n. 4, jul-ago., 1967. LUKAVSKÁ, Eva. Lo real mágico o el realismo maravilloso? In: Études romanes de Brno. Sborník prací Filozofické fakulty brněnské univerzity. Řada L, romanistická. 1991, v. 39, iss. L12. Disponível em: <http://digilib.phil.muni.cz/handle/oktavo/113637>. Acesso em: 21 jun. 2013. PERUS, Françoise. Balance y perspectiva de la investigación literaria en América Latina. México, D.F: Instituto de Investigaciones Sociales, Posgrado en Estudios Latinoamericanos, Facultad de Filosofía y Letras, UNAM, 1984 (mimeo).
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Imagens do fantástico em Julio Ramón Ribeyro
Ana Cristina JUTGLA (USP)
RESUMO: A tradição do conto fantástico na América Latina inicia-se no século XIX, fato observável, por exemplo, na obra de Horacio Quiroga, Leopoldo Lugones e Macedonio Fernández (ARRIGUCCI JR, 1987, p.143). O interesse pelo fantástico continuará de maneira produtiva no século seguinte, tornando-se fundamentais os nomes de Jorge Luis Borges, Julio Cortázar, Felisberto Hernández, Bioy Casares e Gabriel García Márquez. Seguindo esse caminho, Julio Ramón Ribeyro (1929-1994), autor peruano ainda pouco conhecido no Brasil, também incursionaria por esse campo. Nossa comunicação tem por objetivo analisar criticamente alguns aspectos fantásticos nos contos “Doblaje” (1955) e “Ridder y el pisapapeles” (1971), nos quais sua escrita, aparentemente construída sobre bases realistas, incursiona de modo sui generis pelo fantástico. Nos contos aqui selecionados notamos o enfoque do autor em estratégias para criar o “efeito de fantástico” (na expressão de Barthes). Embora considerado por parte da crítica peruana um escritor de linhagem realista, no universo de Ribeyro o fantástico assume grande importância, sobretudo na recorrente imagem de um mundo caótico prescrito por leis arbitrárias e sem sentido para seus personagens, incluídos também os responsáveis pela manutenção das leis. Esse caráter aleatório da existência serve como ponto de partida na análise proposta acerca do fantástico nos contos de Julio Ramón Ribeyro. PALAVRAS-CHAVE: Julio Ramón Ribeyro, Literatura peruana, contos. RESUMEN: La tradición del cuento fantástico en América Latina comienza en el siglo XIX, hecho observable, por ejemplo, en la obra de Horacio Quiroga y Leopoldo Lugones Macedonio Fernández (Arrigucci JR, 1987, p.143). El interés por lo extraño sigue productivamente en el próximo siglo, convirtiéndose en nombres fundamentales de Jorge Luis Borges, Julio Cortázar, Filisberto Hernández, Bioy Casares y Gabriel García Márquez. Siguiendo este camino, Julio Ramón Ribeyro (1929-1994), escritor peruano aún poco conocido en Brasil, también incursionaría por este campo. Nuestra comunicación pretende analizar críticamente algunos aspectos fantásticos de los cuentos "Doblaje" (1955) y "Ridder y el pisapapeles" (1971), en lo que sus escritos, al parecer construida sobre una base realista, de modo sui generis penetra en lo fantástico. En los cuentos seleccionados aquí el autor señala estrategias para crear "efecto fantástico" (en palabras de Barthes). Aunque es considerado por la crítica peruana un escritor de linaje realista el universo fantástico es de gran importancia para Ribeyro, sobre todo en la imagen recurrente de un mundo caótico prescrito por una ley arbitraria y sin sentido a sus personajes, incluyendo también a los responsables de mantener la leyes. Esta aleatoriedad de la existencia sirve como un punto de partida en el análisis propuesto sobre los cuentos fantásticos de Julio Ramón Ribeyro. PALAVRAS-CHAVE: Julio Ramón Ribeyro, Literatura peruana, cuentos.
Em meados da década de 50 surge no Peru um grupo de intelectuais, poetas, artistas
e escritores unidos por uma sensação de frustração quanto ao destino do país e de suas vidas.
De maneira geral, o período pós-guerra é um período conturbado no mundo ocidental e isso
não deixa de acontecer em relação ao Peru, sobretudo no que diz respeito à falta de liberdade
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de expressão. Esse contexto politico e social, assim como questões como a modernização do
país e a busca por uma sociedade democrática motivaram os jovens escritores da geração de
50 a buscar novos temas, formas, diferentes ângulos de abordagem da realidade peruana; em
outras palavras, procuravam ressignificar o papel do artista e do leitor.
Não seria forçoso dizer que a Geração de 50, ao mesmo tempo em que se propõe
modernizadora no campo da literatura peruana, recupera e recria a atitude de observação da
realidade, traço central do século XIX, em especial de sua segunda metade. De qualquer
modo, a atitude de pesquisa sobre o país e sua população está no cerne desse grupo.
Passado o projeto de afirmação identitária, tão cara aos românticos, a representação
realista, preocupada em investigar e documentar a sociedade, encontra terreno fértil na
literatura latino-americana, uma vez que ao escritor dessa geração o material literário grassava
diante de seus olhos em qualquer barriada limenha, com seus abismos sociais, étnicos e
econômicos.
Como todo movimento artístico, há enormes distâncias e variações entre seus
manifestos públicos e as tensões advindas das obras, as quais não necessariamente são
produzidas a partir das intenções oficiais de seus participantes. E com a Geração de 50 não
será diferente, pois, no interior de um grupo declaradamente voltado para a realidade, a
literatura fantástica conseguirá um espaço importante entre seus membros. Assim, apesar do
realismo ainda ser predominante na literatura peruana, é também entre os integrantes da
Geração de 50 que o modo de representação fantástico passa a ser exercido sem maiores
reservas.
Dentro desse contexto de produção encontramos Julio Ramón Ribeyro (1929-1994),
integrante da Geração de 50 e que mantêm ao longo de quatro décadas - entre os anos 1950 e
1990 - intensa atividade literária. Considerado pela crítica peruana como escritor filiado ao
realismo clássico do século XIX, podemos dizer, em relação a seus contos, que Ribeyro
transita sem dificuldades pelo realismo, autobiografia, humor e, também, pelo fantástico
(ELMORE, 2000, p. 66-67). Além disso, paralelamente à produção de narrativas breves,
incursiona em outros gêneros como o romance, o teatro e também a ensaística. Seus contos
fantásticos podem ser vistos como uma espécie de exercício literário que revela o observador
atento por trás das tramas. Ribeyro constrói o ambiente fantástico de suas narrativas com
extrema atenção aos detalhes do real, produzindo o efeito de um mundo quase palpável, quase
concreto, que nos incomoda por sua aparência de “realidade” e pelas fissuras no edifício da
própria racionalidade herdada do século XIX.
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Nesse momento seria interessante apresentarmos brevemente algumas reflexões
teóricas sobre o fantástico. No final dos anos 60, Tzvetan Todorov na obra Introdução à
Literatura Fantástica (1970) definiria o fantástico como um gênero limite entre o estranho e o
maravilhoso. Nesse caso, o estranho se aproximaria da realidade no sentido em que cada fato
seria definido e explicado através de parâmetros naturais e científicos constituídos pela
realidade humana de certo tempo e espaço. Já o maravilhoso residiria num mundo imaginário
e impossível para a realidade humana, realidade sempre balizada no tempo e no espaço de sua
definição. Assim, o fantástico se revelaria quando a incerteza não permite que se estabeleça o
estranho ou o maravilhoso; devido à ausência de explicações dentro da lógica desses mundos,
instaura-se dessa maneira o mundo da hesitação e do equilíbrio instável, o fantástico.
Sob outra perspectiva, no texto “Aminadab”, Jean Paul Sartre define o que denomina
como fantástico contemporâneo (séc. XX), em oposição ao fantástico tradicional (séc. XIX).
Segundo Sartre, o fantástico contemporâneo seria um prolongamento do fantástico tradicional
e teria Kafka como seu representante. O fantástico contemporâneo, ao apresentar o “homem
às avessas”, não mais exploraria as realidades transcendentais, mas transcreveria a fragilidade
da condição humana, a síntese do fantástico contemporâneo é o “retorno ao humano”.
Porém, como podemos ver, esses dois autores concebem o fantástico como um
gênero: Todorov postula essa ideia de maneira evidente em seu trabalho e Sartre parte desse
princípio sem maiores discussões sobre o assunto. Sobre esse aspecto Remo Ceserani (2006,
p. 67) apresenta outro ponto de vista, tratando o fantástico como uma modalidade de escrita
literária que não está necessariamente ligada a um determinado período histórico. Em outras
palavras, assim como o realismo (WOOD, 2010, p. 262-3), o fantástico não se esgota no
século XIX e, ao longo do século XX, vem provando sua capacidade de transformação e
renovação de temas e de estratégias para provocar reações de espanto, estranhamento e
reflexão em seus leitores. Também se faz necessário esclarecer que:
O que caracteriza o fantástico não pode ser nem um elenco de procedimentos retóricos nem uma lista de temas exclusivos. O que o caracteriza, e o caracterizou particularmente no momento histórico em que essa nova modalidade literária apareceu em uma série de textos bastante homogêneos entre si, foi uma particular combinação, e um particular emprego, de estratégias retóricas e narrativas, artifícios formais e núcleos temáticos. A modalidade literária que foi assim produzida serviu, naquela específica contingencia histórica, para alargar as áreas da “realidade” humana interior e exterior que podem ser representadas pela linguagem e pela literatura e, ainda mais, para colocar em discussão as relações que se constituem, em cada época histórica, entre paradigma de realidade, linguagem e as nossas
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estratégias de representação. Trata-se, é oportuno dizer, de estratégias não apenas representativas mas também cognitivas. (CESERANI, 2006, p.67-68)
Agora vejamos como essas questões se desenvolvem em dois contos fantásticos de
Julio Ramón Ribeyro. Em “Doblaje” (1958), o narrador protagonista é um inglês, pintor e
decorador de mais de trinta anos, obcecado pela ideia de possuir um duplo com suas mesmas
manias, preferências e atitudes. No intuito de resolver o enigma da existência ou não desse
duplo, o protagonista viaja até a Austrália, e, ao chegar, se dá conta do irracional de sua
decisão. Resolve permanecer alguns dias na cidade de Sidney para descansar da longa
viagem. Nesse ínterim se apaixona por Winnie, uma atendente de restaurante. Daí por diante
uma série de situações “familiarmente estranhas” ocorrerão e o protagonista será
frequentemente assaltado por uma sensação de deja vu. Observemos o seguinte fragmento:
“Inútil describir a Winnie, solo diré que su carácter era un poco excéntrico. A veces me
trataba con enorme familiaridad; otras, en cambio, se desconcertaba ante algunos de mis
gestos o de mis palabras, cosa que lejos de me enojar me encantaba.” (RIBEYRO, 2000,
p.150).
Ora, no início de um relacionamento amoroso o esperado é a sensação de novidade e
não de familiaridade e, como podemos observar por essa passagem, as cenas entre o inglês e
Winnie frequentemente se abrem para a ambiguidade, não sabemos – assim como também o
protagonista não sabe – se ela age porque conhece o lugar e quem sabe o próprio narrador,
possibilidade improvável e ilógica – ou se é apenas e simplesmente uma entre outras tantas
maneiras de agir. Essa ambiguidade denota oscilação entre o provável e o improvável, uma
escolha humana, uma das maneiras de ver o mundo.
A experiência da ambiguidade se potencializa ainda mais no momento em que o
casal se encontra a sós numa casa de vila. Ali, Winnie se desloca pelos espaços como se já os
conhecesse e, por essa razão, o narrador-protagonista presume que talvez ela tenha estado
com “outro” naquela mesma casa. A tensão máxima se dá com a busca de uma lanterna – nada
mais irônico – que Winnie encontra sem maiores dificuldades. Após uma cena de ciúmes
desproporcional, Winnie é expulsa da casa. Ao tomar consciência da insensatez do ato, o
narrador tenta reatar com a moça que o repudia, acusando-o de louco. Aborrecido pela
situação e por sua conduta, o inglês retorna à Londres e descobre, entre perplexo e aturdido,
que alguém havia tomado o seu lugar e vivido sua vida – como um dublê de corpo – ou
Doblaje a que se refere o título do conto. Os duplos trocaram de vida, o inglês finaliza um
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romance aparentemente difícil e o australiano termina o quadro que o inglês havia apenas
esboçado antes de sua partida.
Sobre esse primeiro conto ainda se pode dizer que, desde o começo, são incorporados
à narrativa temas recorrentes da literatura fantástica, a menção à cultura oriental é um
exemplo, lembremos que a frase que inicia o conto pertence a um livro de ocultismo trazido
pelo pai do narrador de suas viagens no oriente: “Todos tenemos un doble que vive en las
antípodas. Pero encontrarlo es muy difícil porque los dobles tienden siempre a efectuar el
movimiento contrario.” (RIBEYRO, 2000, p.147). Com a atmosfera preparada por temas
recorrentes do fantástico oitocentista, a narrativa se desenvolve na direção de um fantástico
moderno contemporâneo, o estranho é aceito sem que haja a busca de qualquer tipo de
explicação. Mesmo o duplo − obsessão do protagonista − se manifesta anos antes, o encontro
com um homem muito parecido fisicamente com o protagonista, um sósia, por assim dizer.
Porém, a semelhança física não é suficiente para o duplo; segundo as reflexões do próprio
protagonista este exige uma “identidade” não só aparente, mas também de temperamento e de
destino. A ponderação bem humorada a respeito do número restrito de combinações possíveis
quando se possui apenas, [...] una nariz, una boca, um par de ojos y algunos otros detalles
complementarios [...] (RIBEYRO, 2000, p.147-8), confere um momento de distensão na
narrativa e talvez o humor permita ao leitor colocar-se no lugar do protagonista, aproximando
as perspectivas.
Além disso, a economia formal em relação ao personagem principal – não sabemos
sequer seu nome – delineia o tipo de homem que observamos: reservado, de temperamento
racional, afastado das paixões, por assim dizer, esclarecido e equilibrado na maior parte do
tempo, a não ser por sua obsessão pelo duplo que o faz agir de maneira imprevisível – a
fissura no edifício tranquilo e harmonioso da razão.
Nesse sentido, notemos, por exemplo, como é descrita a aproximação entre o
protagonista e Winnie: Ella también pareció sentir por mí una atracción casi instantánea, lo
que me extrañó, pues yo he tenido siempre poca fortuna con las mujeres (RIBEYRO, 2000,
p.149-150). Ao perceber que suas investidas são bem recebidas, o narrador demonstra
surpresa, pois sempre teve pouca sorte com as mulheres. Nessa altura da narrativa revela-se a
impressão de que o inglês “fleumático” parece seduzido pela ideia de viver um romance com
a moça que acabara de conhecer e o impulso amoroso o conduz à necessidade de um espaço
para vivê-lo. Essas atitudes contrastam com o seu cotidiano londrino: eterno hóspede de hotel,
lugar de passagem sem marcas de identidade.
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Porém, o melancólico desfecho de seu caso amoroso leva o protagonista novamente
ao ponto inicial – como num movimento circular – revelando um aparente impasse: de um
lado, a viagem misteriosa e o relacionamento com uma mulher “excêntrica”, de outro, o
cotidiano e os objetos íntimos deixados no hotel londrino, em suas palavras: ¿Cómo podía
haber abandonado mis pinceles, mi té, mi pipa, mis paseos por el Hide Park, mi adorable
bruma del Támises? (RIBEYRO, 2000, p.152) Impasse ilusório, pois o retorno ao seu
cotidiano tranquilo e previsível é facilmente decidido.
O desfecho do conto se desencadeia a partir de uma situação banal. Um empregado
do hotel dá o recado de que na noite anterior o pintor havia esquecido seu guarda-chuva num
bar próximo, o Mandrake Club; este perguntava se deviam enviá-lo ou se ele mesmo passaria
para buscá-lo. O protagonista responde automaticamente, no entanto, quase instantaneamente
percebe a impossibilidade daquela situação e, ao observar com mais cuidado seu quarto, dá-se
conta de que seus pincéis estão úmidos e, para seu maior desconcerto, a madona que havia
apenas esboçado estava habilmente finalizada e o rosto era o de Winnie.
No segundo conto, “Ridder y el pisapapeles” (1971), a ação se descortina em uma
casa de campo localizada num povoado belga, próximo à fronteira com a França. No local
vive Charles Ridder, e o narrador-protagonista é um viajante peruano aspirante a escritor que
realiza uma visita a Ridder, acompanhado da afilhada deste último, madame Ana. A visita é
uma decepção, assim como a imagem que o narrador projetava em sua mente do escritor de
quem lera vorazmente todos os romances. Quando a situação parece chegar finalmente ao fim,
um objeto chama sua atenção, um peso de papéis exatamente igual ao que o jovem peruano
possuía em sua casa no bairro de Miraflores, lugar em que vivera sua infância e parte da
juventude. O peso, que havia desaparecido de maneira corriqueira – uma noite fora atirado
contra um bando de gatos barulhentos – surge agora misteriosamente na mesa de Charles
Ridder e este, ao ser questionado, explica que o objeto caíra a seus pés numa noite de lua
cheia.
Como vemos, é a profunda admiração do protagonista pela literatura de Charles
Ridder o principal argumento do conto, que se desenvolve inicialmente – diferentemente da
primeira narrativa – sem nenhum traço visível que sugira o fantástico. Essa obcecada
admiração parece estar relacionada com a busca por uma identidade literário-artística – tema
frequente em tantos outros contos de Ribeyro, assim como em sua obra autobiográfica. Desse
modo, em “Ridder y el pisapapeles” existe uma forte tendência em buscar no homem as
origens da sua literatura: “[...] comprendí en el acto que entre él y sus obras no había
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ninguna fisura, que ese viejo corpachón, rojo, canoso, con un bigote amarillo por el tabaco,
era el molde ya probablemente averiado de donde habían salido en serie sus colosos.”
(RIBEYRO, 2000, p. 386) No entanto, o encontro com o indivíduo de lógica confusa e poucas
palavras transforma a admiração em profunda decepção. A semelhança entre Ridder e seus
personagens – homens fortes, apaixonados, sensuais – permanece no plano da rusticidade,
somam-se a isso a ausência de trato social e uma perturbadora e recorrente digressão;
elementos que desarticulam a possibilidade de diálogo entre o jovem admirador peruano e o
misterioso escritor belga. Por diversas vezes, as perguntas feitas a Ridder ficam suspensas no
ar e quando respondidas se parecem a um código cifrado. Ainda nesse sentido, a difícil
conversação entre os dois escritores pode ser entendida como um problema de perspectiva.
Por exemplo, ao questionar Ridder sobre a época e/ou lugar onde ocorrem suas histórias a
resposta é: ¿Época? ¿Lugar? (RIBEYRO, 2000, p. 387) Ridder sugere a falta de valor dessas
duas categorias para sua ficção descritas como: “Intemporales, transcurrían en un país sin
nombre ni fronteras [...] Carecían de toda elegancia esas obras, pero eran coloreadas,
violentas, impúdicas, tenían la fuerza de un puño de labriego haciendo trizas un terrón de
arcilla.” (RIBEYRO, 2000, p. 385) Na passagem a seguir o desengano do narrador atinge o
clímax:
Yo reflexionaba sobre la decepción, sobre la ferocidad que pone la vida en destruir las imagenes más hermosas que hacemos de ella. Ridder poseía la talla de sus personajes, pero no su voz, ni su aliento. Ridder era, ahora lo notaba, una estatua hueca. (RIBEYRO, 2000, p.387)
E, quando já não esperamos nada dessa situação desoladora, o fantástico revela-se.
Um objeto, o peso de papel na mesa de trabalho de Ridder, chama a atenção do visitante que o
reconhece como o mesmo que herdara de seu pai e, há cerca de dez anos, atirara em um bando
de gatos barulhentos. O protagonista pergunta: “ – Pero ¿cómo vino a parar aqui? Ridder
responde: “Usted lo arrojó.” (RIBEYRO, 2000, p.389) No fantástico e inexplicável desfecho
revela-se, finalmente, o ponto comunicante entre o aspirante e o encanecido escritor.
Nesse momento aproveitamos para estabelecer pontos de contato ou elementos
comuns aos dois contos: exemplo disso é, primeiramente, a construção de uma identidade
ligada à persona artística. No primeiro conto, o narrador protagonista é um pintor que viaja
em busca de seu duplo, de uma de suas identidades perdidas – a dúvida prevalece; em “Ridder
y el pisapapeles”, temos a obsessão de um aspirante pelo escritor preferido. Em seguida vem
o tema da obsessão, respectivamente, pelo duplo em “Doblaje”, e pela literatura de um
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determinado escritor no segundo conto. Nesses dois contos os protagonistas não conseguem
desviar o pensamento de seus objetos de obsessão, o pintor de “Doblaje” até se aventura a
ponderar a insanidade de seus meios e fins, mas não escapa ao destino de buscar seu duplo; já
o jovem peruano lê sofregamente todos os livros de Charles Ridder e vê na oportunidade de
conhecê-lo a chave de um enigma vital para sua formação literária.
Os deslocamentos espaciais e temporais também são recorrentes nas duas narrativas:
no cumprimento de um destino, no caso do duplo, ou para fundar uma conexão insólita entre
dois artistas, o deslocamento se revela como ingrediente de alto teor fantástico. Porém, o
principal ponto de contato entre essas duas narrativas é a oscilação da racionalidade, em
outras palavras, a forma como o fantástico é esteticamente construído. O fantástico desses
dois contos são fissuras do racional; o próprio narrador é levado a aceitar, entre assombrado e
incrédulo, os eventos narrados. Não há explicações lógicas, ou mesmo sobrenaturais para os
dois contos; permanece uma espécie de umbral da racionalidade em que se é obrigado a
aceitar a existência de outro ser humano igual a nós mesmos em destino e temperamento,
assim como um objeto comum ser lançado no tempo e no espaço.
A partir dessas notas percebemos o trabalho minucioso do autor no exercício
literário, que revela ainda uma criteriosa reflexão sobre a arte literária, suas formas e
estratégias para obter determinados efeitos narrativos e de sentido. Julio Ramón Ribeyro
constrói o ambiente fantástico de suas narrativas conferindo extrema atenção ao referente real
e, dessa maneira, edifica um fantástico que não se separa de certo paradigma do real fazendo
com que – por esse artifício – a realidade cotidiana entre em colapso, repetindo as palavras de
Jean Paul Sartre: “Não se atribui ao fantástico seu quinhão: ou ele não existe ou se estende a
todo o universo; é um mundo completo [...]” (SARTRE, 2006, p.136).
Ainda sobre o aspecto metalinguístico dos contos aqui analisados, gostaríamos de
citar o crítico peruano Peter Elmore (2000) para quem:
[…] el proyecto de Ribeyro – empresa que abarca el corpus, la ética y la poética del escritor – se cifra en la propuesta de habitar la literatura para, desde ella, definir la ubicación del sujeto de la obra y la existencia ante la sociedad, la historia, el entorno y el lenguaje.(ELMORE, 2000, p.32)
Assim, a imagem do fantástico refletida nessas duas narrativas carrega as marcas do
projeto artístico de seu autor e, sem metáforas ou alegorias, revelam inquietações de fundo
estético e literário.
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REFERÊNCIAS:
ARRIGUCCI JÚNIOR, Davi. Enigma e Comentário: ensaios sobre literatura e experiência. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. CALVINO, Ítalo. Contos fantásticos do século XIX: o fantástico visionário e o fantástico cotidiano. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. CESERANI, Remo. O fantástico. Tradução de Nilton Cezar Tridapalli. Curitiba: Editora da UFPR, 2006. ELMORE, Peter. El perfil de la palabra: La obra de Julio Ramón Ribeyro. Perú: Fondo de Cultura Económica, 2002. GUTIÉRREZ, Miguel. La generación del 50: un mundo dividido. Lima: Arteidea, 2008. RIBEYRO, Julio Ramón. La palabra del mudo (I). Lima: Seix Barral, 2009. ______. La palabra del mudo (II). Lima: Seix Barral, 2009. SATRE, Jean-Paul. Situações I. Tradução de Cristina Prado. Prefácio de Bento Prado Jr.1 ed. São Paulo: COSAC NAYFY, 2006. p. 135-149. SCHWARZ, Jorge. Murilo Rubião: a poética do Uroboro. São Paulo: Ática, 1981. TODOROV, Tzvetan. Introdução à Literatura Fantástica. Tradução de Maria Clara Correa Castello. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 2004. WOOD, James. A mecânica da ficção. Lisboa: Quetzal Editores, 2010.
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Onde mora o medo: a transformação do espaço doméstico em Gastão Cruls
Ana Paula A. SANTOS (Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ)
RESUMO: O presente trabalho pretende analisar os contos “Noturno nº 13”, “Noites brancas” e “O espelho”, de Gastão Cruls – escritor brasileiro do início do século XX. Tais contos possuem a particularidade de provocar no leitor o medo artístico, emoção estética suscitada por certas escolhas conteudísticas e formais inseridas na narrativa. Através delas, o leitor é capaz de se amedrontar, sem necessariamente vivenciar uma experiência real de medo. Na elaboração dessa emoção estética, porém, mostra-se de fundamental importância a construção de um espaço adequado ao intento do tema abordado. O ambiente onde o personagem interage com os acontecimentos da narrativa deve ser, também, um dos elementos propícios à produção do medo na história. A partir dessas ideias procura-se, neste trabalho, compreender a construção desse espaço característico do gênero do medo nos contos de Gastão Cruls: as três histórias apresentam ambientes domésticos, familiares, que sofrerão intervenções de elementos estranhos, nocivos à segurança dos personagens no desenrolar da narrativa. Para tanto, o autor utiliza-se do medo provocado tanto pelo sobrenatural quanto pelo próprio ser humano, e insere-o num ambiente cotidiano, transformando-o, assim, num ambiente estranho. Essa passagem é o que interessa à análise topográfica da composição do medo artístico na obra de Gastão Cruls. PALAVRAS-CHAVE: Literatura do medo; literatura gótica; espaço; Gastão Cruls; ABSTRACT: This paper aims to the analyze the short stories “Noturno nº 13”, “Noites brancas” and “O espelho”, by Gastão Cruls – Brazilian writer from the beginning of the 20th century. Such stories hold the singularity of causing the sensation of “artistic fear” on the reader – an esthetical emotion, promoted by certain choices, regarding the meaning and the formal aspects of the narrative. It is through them that the readers are able to get scared, without necessarily living a real experience of fear. In the construction of this esthetical emotion, although, it is essential the role of the structure of a suitable scenario, within the subject approached. The scenario in which the character interacts with the narrative events must also be one of the promising elements to build the fear narrative. In this way, the goal is to comprehend the buildup of these typical scenarios among the short stories of Gastão Cruls. These three stories also present domestic and familiar scenarios, which will suffer interventions of weird ingredients, harmful to the safety of the characters throughout the narrative. To do such, the author uses the fear provoked by both the supernatural and the human elements, inserting them in a daily routine and changing it into an odd place. This transformation is the interest of the topographical analysis of the composition of the artistic fear in the work of Gastão Cruls. KEYWORDS: Fear literature; Gothic literature; scenario; Gastão Cruls.
Gastão Cruls foi um escritor carioca que publicou contos e romances no início do
século XX. Parte de suas obras é ambientada em localidades do interior do Brasil, na
Amazônia ou em propriedades rurais, distantes da metrópole, como fazendas e chácaras.
Esses espaços permitiram ao autor abordar mitos e lendas do folclore brasileiro, bem como
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outros elementos de caráter sobrenatural, utilizando para isso as crenças e as superstições
atribuídas às regiões mais afastadas das metrópoles.
O espaço narrativo na obra de Gastão Cruls é construído de modo a fornecer um
ambiente propício à irrupção do elemento sobrenatural, como é o caso dos contos “Noturno nº
13” e “Noites brancas”, publicados em Coivara (1920), e “O espelho”, publicado em História
puxa história (1938). Nos dois primeiros, o desenvolvimento do enredo tem como cenário os
casarões típicos das grandes fazendas do interior, enquanto no último o ambiente é o da
metrópole do Rio de Janeiro. Os três contos possuem a transformação desses cenários em
ambientes fantasmagóricos, marcados pela utilização de um vocabulário, de imagens e de
descrições que apresentam semelhanças com os cenários consolidados pela literatura gótica.
Interessa-nos, pois, analisar essa aproximação entre a obra de Cruls e a estética gótica – cuja
topografia legou imagens recorrentes até hoje na literatura, no cinema e em outras mídias.
Historicamente, sabe-se que a França foi o país que exerceu maior influência cultural
no Brasil no contexto histórico do Romantismo. Contudo, estudos recentes procuram mostrar
que não só a literatura francesa foi de grande importância cultural, mas também a literatura
britânica teve um papel de considerável importância nesse intercâmbio literário, sobretudo no
que diz respeito à circulação de obras consideradas “romances populares”, dentre os quais se
inserem os romances góticos.
Em Gótico tropical – o sublime e o demoníaco em O guarani, Daniel Serravalle de
Sá procura defender justamente o ponto de vista que a literatura britânica, particularmente a
literatura gótica, deixou marcas relevantes em nosso Romantismo. Em seu livro, Sá
concentra-se em abordar certos tópicos formais e temáticos da estética gótica presentes no
romance alencariano, propondo, assim, a ideia de um gótico adaptado à literatura brasileira:
um gótico tropical. O teórico chama atenção, principalmente, para Casa de Mariz, que assume
o lugar representativo dos castelos medievais, e para as formas da natureza exuberante e
incontrolável encontradas na obra alencariana: as descrições desses lugares não somente
ambientam o leitor, como também são responsáveis por caracterizar o estado de espírito do
personagem e transmitir emoções paralelas ao desenvolvimento da narrativa – recurso
bastante explorado pelos escritores góticos.
Na estética do gótico literário, a atmosfera construída através dos elementos
descritivos deveria agir tal qual a arquitetura das grandes construções góticas, provocando
sensações de insegurança, assombro e medo. Nas palavras de Daniel Serravalle de Sá,
“textualmente o gótico se apresenta como um efeito retórico que desafia a segurança
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epistemológica do leitor.” (SÁ, 2010, p. 19). Sendo assim, os cenários góticos se distinguem
pela criação de um espaço cuja descrição é propositalmente arquitetada para desorientar o
leitor quanto aos limites entre o natural e o sobrenatural. Linguisticamente, essa intenção pode
ser claramente notada por meio da seleção lexical, das adjetivações, hipérboles e metáforas
que procuram transmitir a atmosfera de um ambiente fantasmagórico, de acordo com um
campo semântico relacionado à decadência, obscuridade e morte.
Em Gastão Cruls, essas particularidades da estética gótica não são perceptíveis de
imediato. As semelhanças com os cenários góticos são atingidas após a transformação
progressiva do espaço inicial de um locus amoenus – que, em “Noturno nº 13”, “Noites
brancas” e “O espelho”, é representado por um espaço doméstico, ou seja, um ambiente onde
os aspectos familiares criam certa sensação de segurança e conforto – para um locus
horribilis. Tal sensação será posta em xeque à medida que o personagem monstruoso passa a
deixar “pistas” de sua presença ameaçadora na narrativa – processo que o filósofo Noël
Carroll (1999, p. 183) reconhece como um movimento fundamental dos enredos de horror, o
descobrimento, o ato de “tornar conhecido o desconhecido” (CARROLL, 1999, p. 183).
Nos contos de Cruls, as mudanças ocorridas nesses cenários marcam uma forte
oposição. Em “Noturno nº 13”, por exemplo, o cenário onde se desenvolve o enredo passa por
dois momentos que possuem descrições bastante distintas. No primeiro, o modo como a casa
é apresentada constrói a imagem de um ambiente cujas características espaciais revelam um
lar próspero, onde a convivência familiar parece distante de qualquer perigo:
Dava gosto penetrar nesse velho casarão [...]. As varandas teceram-se de trepadeiras, que subiam pelos beirais, disfarçando com festonadas a caiação pesada das paredes. O jardim nunca mais desverdeceu e, às seduções de um trato delicado, nos canteiros bem cuidados, as plantas olvidavam as estações e floresciam o ano inteiro. Nada lhe agradava tanto como as rosas, que debruçadas nos vasos ou atufando grandes jardineiras, surgiam por todos os cantos da casa: completando-lhe a ornamentação das salas, já rica de bordados e adornos do seu próprio punho. (CRULS, 1951, p. 15)
A descrição é da casa senhorial de uma fazenda de café, situada às margens do rio
Paraíba do Sul, no interior do Rio de Janeiro. A propriedade é morada dos personagens
principais da narrativa, o casal Paulo e Regina. Nosso narrador transmite-nos a ideia de um
locus amoenus, caracterizado pelo relato minucioso das flores e plantações que
ornamentavam a casa campestre, e insere, ainda, o elemento familiar, composto pela presença
dos “bordados e adornos” feitos pela esposa, como ditava o costume da época. A condição da
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casa descreve, portanto, a própria condição dos personagens nesse momento da narrativa:
recém-casados e muito apaixonados, ambos viviam numa espécie de idílio, numa vida simples
e singela, segundo nos conta o narrador da história, Sr. Cavalcanti, o irmão de Regina.
O único ponto de discordância do casal era a respeito da religião: enquanto Regina
era muito devota, Paulo não possuía nenhuma crença. O narrador chama atenção para esse
fato:
Paulo punha-se a recordar, então, da tenacidade com que a mulher, por tantas vezes, tentara trazê-lo da incredulidade, apelando para a grande felicidade que os envolvia. Não estava aí a melhor prova da existência de Deus? Sem a essência divina, de onde lhes dimanaria a messe imperecível de bens? E ele citava a ameaça que ela lhe fazia entre sorrisos, ante as renitências da sua impiedade: se a morte a viesse buscar em primeiro lugar, um dia, por qualquer forma, ela lhe abalaria as convicções, mostrando que nem tudo se acaba com a vida. (CRULS, 1951, p. 16)
A ameaça de Regina funciona como uma espécie de prenúncio do principal
acontecimento da narrativa: no auge da felicidade do casal, logo após dar a luz à primeira
filha, Regina morre, deixando Paulo viúvo. É a partir de então que o Noturno nº 13 – a
composição de Chopin que Regina costumava tocar – começa a assombrar a casa, como se
executado pelo fantasma da esposa morta. O conto configura-se tipicamente como uma
história de casa mal-assombrada, conforme a acepção de Carroll: “as mais comuns histórias
de fantasmas envolvem a volta de entre os mortos de alguém que deixou algo por fazer ou por
dizer e quer trazer à luz algo não admitido ou está atrás de vingança ou reparação.”
(CARROLL, 1999, p.148)
Na passagem final do conto:
Foi pela madrugada que me levantei de golpe, despertado pelas vozes do piano, que me chegavam abafadas como se alguém, num choro lento, sufocasse soluços. [...] Tateei nas trevas por alguns instantes e sentindo a minha ansiedade recrescer, enquanto, agitadamente procurava a caixa de fósforos, por várias vezes chamei por Paulo, que não me respondia. Ao acender a vela dei com o seu leito vazio [...] Não posso descrever o que senti, nem esmiuçar os lances dessa pavorosa madrugada, em que por meu turno pensei enlouquecer. A música continuava sempre e, a cada acorde mais forte, eu tinha a sensação de que me unhavam o cérebro e as notas eram arrancadas aos meus próprios nervos. Fosse ou não das circunstâncias trágicas em que o ouvi, jamais música alguma me atribulou tanto no íntimo d'alma como esse estranho Noturno Nº 13. [...] Transido de medo, com o coração num degelo, e os nervos à flor da pele vibrando a cada som, eu pude bem acompanhar todas as gradações dessa
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longa súplica, que se me entalhou de vez no cérebro e, por muitos meses, à maneira de uma obsessão pavorosa, andou a cantar junto dos meus ouvidos. Quando o piano cessou, firmando-me nas pernas, atravessei de um salto o quarto e abri de par em par a janela, num desejo de ar e de vida. (CRULS, 1951, p. 22-23)
Apesar de se tratar ainda da mesma casa, a atmosfera do ambiente foi completamente
alterada: o clima se torna opressor com a irrupção do elemento sobrenatural – a música que,
tocada ao piano, indica a presença do fantasma de Regina. Os elementos descritivos adéquam-
se a essa mudança ocorrida no espaço, como pode-se perceber pela seleção lexical, que
compreende vocábulos como “madrugada”, “trevas”, “sufoco”, “choro”, “trágico”, “medo”,
“obsessão”, cuja função está ligada à transmissão dos efeitos estéticos do medo pretendido
por esse momento de clímax narrativo.
Essa configuração espacial, caracterizada por uma atmosfera escura e claustrofóbica,
revela os pontos de contato entre o conto de Gastão Cruls e a literatura gótica. A recorrência
de imagens decadentes, sombrias e aterrorizadoras nos romances góticos não era gratuita, pois
a intenção dos romancistas era atingir o ideal do sublime, proposto por Edmund Burke em
Investigação filosófica sobre a origem de nossas ideias do Sublime e do Belo (1757) – teoria
que influenciou profundamente os estudos literários e estéticos do século XVIII e cujos
reflexos podem ser percebidos não apenas nos escritores góticos, mas nos românticos de
modo geral.
Em sua teoria, Burke (1993) aponta o terror como uma emoção fundamental para a
produção dos efeitos do sublime, tendo em vista sua capacidade de pôr em xeque nossa
segurança e despertar nossos instintos de autopreservação. Além disso, nas palavras do
próprio Burke (1993, p. 66), “para tornar algo extremamente terrível, a obscuridade parece
ser, em geral, necessária”. Esses preceitos nortearam os aspectos formais e de conteúdo que
consolidaram a popularidade da estética gótica para além do século XVIII.
No conto “Noites brancas”, o emprego da linguagem gótica na construção do espaço
é fundamental para estabelecer a dúvida a respeito da identidade da personagem que assume o
papel monstruoso na narrativa. No enredo, Carlos, um jovem estudante, recebe um bilhete
anônimo, convidando-o a deixar a porta de seu quarto aberta para que lhe venham
proporcionar “o mais lindo sonho de amor” (CRULS, 1951, p. 59). O fato de não saber quem
é a responsável pelo bilhete o intriga, posto que as únicas mulheres da fazenda onde está
hospedado são a esposa, D. Clarice, e Olga e Leonor, filhas do seu anfitrião, o Coronel Jesus.
Como o próprio personagem anuncia de início, ceder ao convite seria provocar o “remorso de
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ter pago com uma torpeza a carinhosa hospedagem que lhe fizera o velho amigo de seu pai.”
(CRULS, 1951, p. 63). Afinal, o ambiente acolhedor em que se encontrava Carlos fazia às
vezes de um harmônico ambiente familiar, onde a própria D. Clarice lhe concedia cuidados
maternos, e as filhas do coronel o tinham em alta conta, fazendo com que o protagonista se
sentisse no dever de respeitar a família.
Porém, Carlos cede à tentação e o encontro acontece, não uma, mas repetidas vezes,
ainda que a identidade da visitante noturna continue em mistério:
Parecia-lhe impossível que, até então, ele ainda não houvesse conseguido identificar a sua visitante noturna; e sempre que se vi a sós no quarto, depois daquelas ardentes horas de amor, Carlos tinha a sensação de quem desperta de um sonho e debalde procura fixar a atenção sobre imagens que se apagam no subconsciente à medida que o cérebro volta ao pleno estado de vigília. (CRULS, 1951, p. 66-67).
O modo como a personagem misteriosa age confere-lhe características vampíricas,
como mencionado pelo próprio protagonista (CRULS, 1951, p 68). Os encontros, que
aconteciam no “mistério da treva e do silêncio”, fazem com que se estabeleça uma
desconfiança a respeito da verdadeira natureza da amante, mantendo o suspense e instigando
uma interpretação sobrenatural dos fatos. Para tanto, o espaço narrativo construído por Gastão
Cruls em “Noites brancas” mostra-se essencial: além de utilizar o ambiente noturno, que
preserva a identidade da personagem, há uma série de escolhas linguísticas que, novamente,
remetem a uma seleção vocabular do léxico da estética gótica, como se pode notar nos
trechos: “tão leves eram seus passos e tanta treva a cercava”, “quedavam-se langues, de
membros lassos e carnes mortificadas”, “escoava-se presto do seu leito” e “sombra fugidia e
evanescente, de novo restituída ao mistério da treva e do silêncio” (CRULS, 1951, p. 69).
Essa opção discursiva de Gastão Cruls demonstra uma preocupação linguística e
temática semelhante à da literatura gótica. Sá (2012, p. 51) defende que “o escuro, o confuso,
o incerto, tudo aquilo que atua de modo análogo ao terror é considerado fonte do sentimento
de sublime” e, por esse motivo, a estética gótica faz deles larga utilização, aumentando, dessa
forma, sua capacidade de causar medo através desses ambientes que prezam a obscuridade, a
insegurança e a incerteza como meio de ambientar o sobrenatural.
É somente ao final do conto que – tal qual o recurso do “sobrenatural explicado”,
uma das vertentes dos romances góticos – o aspecto sobrenatural da narrativa é obstruído em
detrimento de um esclarecimento racional para os fatos. Esse esclarecimento fica por conta
do Coronel Jesus, que comunica a Carlos sobre o suicídio de uma hóspede secreta da casa,
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Maria Clara, que se mantinha reclusa porque sofria de uma doença incurável, a morfeia – ou
hanseníase, como é conhecida atualmente. A hipótese de uma personagem vampira é
rechaçada, mas permanece podendo ser entendida apenas como uma metáfora plena de
sentidos vampíricos: a femme fatale, os “ataques” sexuais noturnos, o contágio etc.
No conto “O espelho”, o elemento sobrenatural que provocará a transformação do
espaço doméstico para o espaço gótico é, justamente, o objeto que dá nome à narrativa: um
espelho de três faces, repleto de detalhes e ornamentos luxuriosos, arrematado no leilão de
uma famosa cortesã, no Rio de Janeiro, pela esposa do narrador-personagem da história,
chamada Isa. A origem do artefato causa repulsa moral no cônjuge de Isa, como podemos ver
no excerto abaixo:
Apenas ali, naquele ambiente cálido e voluptuoso, – o ninho de uma verdadeira cortesã – cercado de coxins macios, telas ousadas e uma ou outra estatueta de nu esplendoroso, a sua presença não chocava. Bem outro, porém, havia de ser o aspecto daquela peça aparatosa e impudica, quando figurasse lá em casa, a contrastar com a linha de serenidade e apurado bom gosto de um interior familiar. (CRULS, 1951, p. 341)
A atitude discursiva do narrador-personagem pode ser percebida por meio dos
adjetivos valorativos utilizados para qualificar o espelho e o “local ideal” para um móvel de
sua origem. Assim, o objeto é descrito como uma “peça aparatosa e impudica”, em um
“ambiente cálido e voluptuoso”, contrastando com o sereno “interior familiar” partilhado pelo
casal.
A transformação do espaço familiar se dará à medida que o espelho começa a
despertar o apetite sexual dos dois personagens. Novamente, podemos perceber o ambiente
doméstico assumir as matizes de um ambiente gótico, criando uma atmosfera fantasmagórica:
O efeito era deveras surpreendente. Criava-se uma atmosfera de sonho e fantasmagoria. Vimo-nos com os rostos muito pálidos, quase com um livor de morte, e onde os traços mais marcantes, contrastando com manchas de sombra, se recortavam em linhas nítidas. Apenas, naquelas máscaras hirtas, naquelas faces descaveiradas, dentro das órbitas fundas, os olhos chamejavam com fulgor estranho. Pinta de insanidade? Esto de luxúria? E outra vez os nossos lábios se procuraram, ardendo de febre, mordiscados de desejos. (CRULS, 1951, p. 342)
Nessa passagem, o campo lexical relacionado à morte – que conta com expressões
como “rostos muito pálidos”, “faces descaveiradas” e “manchas de sombra” – intensifica o
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efeito atemorizador causada pelo jogo de luzes em conjunto com o espelho. A atmosfera
onírica e fantasmagórica transmite certa sensação de insegurança, que se mostra ideal para
prenunciar os acontecimentos fatídicos do enredo. Porém, além da transformação operada
pelo misterioso móvel no ambiente familiar, há também uma transformação radical no
comportamento dos personagens, que passam a apresentar comportamentos sexuais
transgressores.
A narrativa se encerra com um final moralizante: o espelho causará um ciúme
doentio no marido, pois ele passa a pensar que Isa o trai com o reflexo de vários outros
homens. Assim, o esposo termina por estilhaçar o objeto responsável por conspurcar o interior
de sua casa, e mata a mulher supostamente adúltera – um ato que revela um monstro que,
longe de ser sobrenatural, é, pois, demasiado humano.
Através das análises desses três contos de Gastão Cruls, torna-se possível
compreender as semelhanças entre a construção espacial arquitetada pelo autor e os principais
preceitos da estética gótica, cuja popularidade e longevidade se deve, em grande parte, pela
cuidadosa arquitetura de espaços capazes de suscitar diversos efeitos estéticos, dentre os quais
o medo e seus correlatos são os mais recorrentes, e figuram como intermediários para alcançar
o ideal do sublime burkeano.
Daniel Serravalle de Sá defende que “para os romancistas [góticos] é a estruturação
da linguagem que emerge como condição para se atingir o efeito do sublime” (SÁ, 2012, p.
51). Essa linguagem caracteriza certo discurso próprio da estética gótica, cujas principais
características – como as constantes adjetivações, o uso de metáforas e hipérboles, o
vocabulário relacionado à morte e as imagens decadentes e sombrias – tornam-se modelos
para a construção topográfica da literatura do medo, não somente em Gastão Cruls, como foi
apresentado, mas em autores de diferentes épocas até os dias atuais.
REFERÊNCIAS:
BURKE, Edmund. Uma investigação filosófica sobre a origem de nossas ideias do sublime e do belo. São Paulo: Papirus, 1993. CARROLL, Noël. A filosofia do horror ou paradoxos do coração. São Paulo: Papirus, 1999. CRULS, Gastão. Contos reunidos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1951. SÁ, Daniel Serravalle de. Gótico tropical: o sublime e o demoníaco em O guarani. Salvador: EDUFBA, 2010.
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Entre segredar e revelar: o papel da memória e do fantástico em um conto de Maria Teresa
Horta
Ana Paula dos Santos MARTINS (USP)
RESUMO: Nas sociedades tradicionais, que desconheciam a escrita, às mulheres sempre coube o papel de transmissoras, de narradoras, nas aldeias, das lendas e dos feitos normalmente realizados por grandes homens, experiência que deveria ser preservada por meio da oralidade pelas comunidades; por essa razão, Michelle Perrot (1989) afirma que “a memória da mulher é verbo”. É justamente o papel desempenhado pela memória da protagonista do conto “Com mão firme e doce”, de Maria Teresa Horta, que dará, sub-repticiamente, a chave para a compreensão dos elementos insólitos e sobrenaturais presentes no referido texto literário. Tais elementos funcionam como estratégias narrativas utilizadas pela escritora portuguesa para fazer emergir toda uma história de opressão e silêncio a que figura feminina foi submetida por diversas gerações, especialmente no âmbito familiar. Nesse sentido, por meio da problematização da relação homem-mulher, o vai e vem das digressões e memórias individuais e coletivas da protagonista Renata denuncia sua condição de subalternidade e manifesta o desejo de romper os estreitos limites que lhes são impostos. O fantástico como modo literário que se opõe aos padrões de representação realista traz à tona, nesse conto, o que é repressivo e dominador na sociedade portuguesa, como a própria lógica patriarcal, delineando, como quer Rosemary Jackson, o que não pode ser observado na cultura, por estar perdido ou ausente. PALAVRAS-CHAVE: Fantástico; memória; mulheres; literatura portuguesa. ABSTRACT: In traditional societies that didn´t know writing, it was up to women to take the role of narrators of the legends or great feats carried out by the men in their tribes. This experience would be preserved in the communities through the oral speech. Because of this, Michelle Perrot asserts that “the women´s memory is verb”. It´s exactly the role of the protagonist´s memory from the short story by Maria Teresa Horta “Com a mão firme e doce” that gives us the key to understand the unusual and supernatural elements in that text. Such aspects work as narrative strategies used by the quoted writer to show a history of silence and oppression that submitted the female role during many years, especially at the family level. In this way, the individual and collective memories presented by Renata, the protagonist, reveal her subordinate condition and express her desire of breaking up the close limits that are imposed. The fantastic as a literary genre which objects to the realistic representative model brings up in this short story what is repressive and dominant in the Portuguese society, such as the patriarchal logic. This outlines what cannot be observed in the culture because it is lost or absent, as Rosemary Jackson asserts. KEYWORDS: Fantastic; memory; women; Portuguese Literature.
Este trabalho é fruto das primeiras observações e reflexões decorrentes de uma
pesquisa de pós-doutorado que se encontra em estágio inicial, na área dos estudos comparados
de literaturas de língua portuguesa. O projeto privilegia a análise da produção literária de
autoria feminina que utiliza o fantástico e suas vertentes como estratégias narrativas. Durante
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o período de levantamento dessa produção em países de língua portuguesa – mais
especificamente, Brasil e Portugal-, foi encontrada uma antologia de contos fantásticos
escritos por mulheres em Portugal, intitulada Fantástico no Feminino (1985), a qual foi
motivada, segundo Saraiva e Lopes (1996, p. 1104), pela insistência do fantástico na ficção de
autoria feminina contemporânea daquele país. De acordo com Sónia A. Fernandes, “é legítimo
afirmar que os anos oitenta corporizam a década de ouro do fantástico no que à literatura
portuguesa contemporânea diz respeito, curiosamente de incidência marcadamente feminina”
(2009, p.33). Nessa antologia, figuram importantes escritoras que se firmaram no panorama
literário português, especialmente depois da década de 70, como Maria Teresa Horta, Maria
Isabel Barreno e Maria Velho da Costa, coautoras das Novas Cartas Portuguesas, além de
Filomena Cabral, Maria Ondina Braga e Maria Judite de Carvalho, entre outras.
Considerando-se que nem todo texto escrito por uma mulher problematiza
necessariamente a questão da identidade feminina e da diferença, pode-se dizer, no entanto,
que em boa parte dos textos dessas escritoras é possível perceber como elas escaparam à
simples constatação do bloqueio imposto pela tradição patriarcal à liberdade de escolha das
personagens de traçarem seus próprios destinos. Continuando a escrever textos ‘fantásticos’,
na acepção mais ampla do termo, elas apresentaram e apresentam novos caminhos a partir dos
quais as personagens buscam sua identidade e tentam subverter a ‘antiga ordem’- marcada,
inclusive, pela reacionária ditadura salazarista- passando por e indo além do relacionamento
amoroso homem-mulher.
Tentar compreender os motivos que levaram muitas escritoras portuguesas a
dedicarem-se à literatura fantástica tornou-se um instigante desafio e a análise aqui
apresentada constitui o primeiro passo, um esboço propriamente, para tentar responder a essa
indagação.
A ficção fantástica, tal qual muitos teóricos a compreendem - e é essa concepção que
norteará a analise em questão-, provoca a incerteza, o assombro, o insólito por meio de uma
lógica narrativa concomitantemente formal e temática. Segundo Irene Béssière (2009, p.3),
O relato fantástico utiliza marcos sócio-culturais e formas de compreensão que definem os domínios do natural e do sobrenatural, do banal e do estranho, não para concluir com alguma certeza metafísica, mas para organizar o confronto entre os elementos de uma civilização relativos aos fenômenos que escapam à economia do real e do surreal, cuja concepção varia conforme a época. Ele corresponde à colocação em forma estética dos debates intelectuais de um determinado período, relativos à relação do sujeito com o supra-sensível ou com o sensível; pressupõe uma percepção essencialmente relativa das convicções e das ideologias do tempo, postas em
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obra pelo autor. A ficção fantástica fabrica assim outro mundo por meio de palavras, pensamentos e realidade, que são deste mundo. Esse novo universo elaborado na trama do relato se lê entre as linhas e os termos, no jogo das imagens e das crenças, da lógica e dos afetos, contraditórios e comumente recebidos.
David Roas (2001, p. 9) também defende que a literatura fantástica “pone de
manifesto la relativa validez del conocimiento racional al iluminar uma zona de lo humano
donde la razón está condenada a fracasar” e acredita no relato fantástico como uma ‘ameaça’
para a realidade do leitor, em que o sobrenatural, condição imprescindível para a existência do
gênero, transgride as leis que organizam o mundo real. Ele chama a atenção para a “necessária
relação” entre o referido gênero e o contexto sociocultural, para a ligação entre o texto
fantástico e sua relação intertextual com a realidade, assim como Béssière:
Lo fantástico, por tanto, está inscrito permanentemente en la realidad, pero a la vez se apresenta como un atentado contra esa misma realidade lo circunscribe. La verosimilitud no es um simple accesorio estilístico sino que es algo que el mismo género exige, se trata de uma necesidad constructiva necesaria para el desarrollo satisfactorio del relato (ROAS, 2011, p. 25).
Sua definição de fantástico, portanto, está assentada na ideia de recusa às normas que
configuram nossa realidade, isto é, à produção da incerteza do leitor frente ao real por ele
conhecido, baseada na contradição entre o ‘natural’ e o sobrenatural.
A posição de Jackson (2001), de vertente psicanalítica, por sua vez, é interessante na
medida em que o fantástico é considerado tanto como uma forma de ‘linguagem do
inconsciente’ quanto como um modo de “oposição social subversiva, que se contrapõe à
ideologia dominante no período histórico em que se manifesta” (CESERANI, 2006, p. 62).
Trata-se, pois, segundo autora, de que “[...] las fantasías imaginan la posibilidad de uma
transformación cultural radical, a partir de la disolución o la destrucción de las líneas de
demarcación entre lo imaginario y lo simbólico. Se rechazan las categorias de lo ‘real’ y sus
unidades” (JACKSON, 2001, p. 149). No que tange ao fantástico moderno, Jackson (2001,
p. 151) afirma que as versões (ou inversões) negativas da unidade desses textos “representan
la falta de satisfacción y la frustración que se experimentan ante un orden cultural que desvía
o derrota al deseo, si bien rechaza recurrir a otros mundos compensatorios y
transcendentales”. Dessa maneira, a autora propõe que o fantástico é um modo que assumiu
diversas formas ao longo do tempo, e caracteriza-se por delinear o que não é dito ou
observado na cultura e, por essa razão, busca o que está perdido ou ausente.
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Além dessas concepções, faz-se necessário comentar rapidamente o desenvolvimento
da literatura de autoria feminina em Portugal. Os questionamentos acerca da posição de
subalternidade social da mulher portuguesa foram debatidos por diversas escritoras e
jornalistas no final do século XIX e início do XX. No entanto, “a nova consciência literária
surgida de vivências femininas principiou pela afirmação, com Florbela Espanca, da livre
intimidade da mulher, e que atingiu com Irene Lisboa a sua primeira notável realização em
prosa”, conforme destacam Saraiva e Lopes (1996, p. 1029). De modo semelhante ao que
ocorreu na literatura em diversos outros países, como o Brasil, boa parte da crítica concorda
que somente depois do II pós-guerra, especialmente a partir da década de 60, a ficção de
autoria feminina em Portugal torna-se uma tendência, com um elevado número de escritoras
ocupando um lugar todo seu na cena literária nacional. Elas questionaram a herança de
subalternidade e silêncio imposto à mulher portuguesa por séculos de tradição, ainda mais
reforçada pela ditadura de Salazar, que durou quase 50 anos. Nesse contexto, a publicação de
Novas Cartas Portuguesas (1972), escritas em coautoria por Maria Velho da Costa, Maria
Isabel Barreno e Maria Teresa Horta escandalizou a sociedade portuguesa da época e constitui
um marco na produção literária de autoria feminina naquele país. O diálogo intertextual com
as Cartas Portuguesas, de Sóror Mariana Alcoforado, representa uma investida contra os
valores consagrados pela tradição patriarcal e salazarista e, por essa razão, essas Novas Cartas
ultrapassam, como afirma Telma Mafra (2007), as questões de âmbito literário, investindo a
obra de um sentido político-social. E esse mesmo sentido também está presente no conto Com
a mão firme e doce (1985), de Maria Teresa Horta, que constitui o corpus deste trabalho e
que, ao seu modo, mantém um diálogo com essas Novas Cartas.
A narrativa de Com a mão firme e doce apresenta basicamente os fatos que precedem
e sucedem ao crime cometido pela personagem Renata, a qual enterrara uma faca no peito do
esposo, onde ela, “sabia estar o coração”. Depois de adormecer ao lado do marido, segurando
a faca pelo cabo, a personagem acorda e percebe que as finas feridas abaixo do mamilo
esquerdo do homem amado começaram a cicatrizar e, o corpo do esposo, antes inerte, ganha
vida novamente, surgindo de seu peito um ruído mecânico. O conto narrado em terceira
pessoa revela, por meio do recurso ao discurso indireto livre e do uso alternado do flashback,
o declínio do relacionamento do casal que, metaforicamente, tem início a partir da descoberta
dessa faca de cozinha por Renata, no sótão da antiga casa onde ela e o esposo vivem e que
pertencera à família da protagonista. Ao reconhecer o objeto antigo, ela recorda-se de sua avó
e sua mãe explicando-lhe, com a faca sobre as palmas das mãos abertas, que ela pertencera,
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respectivamente, às suas avós, isto é, às gerações de mulheres da família que precederam essa
mulher cheia de vitalidade e energia que é Renata. A descrição dessa faca é reiterada inúmeras
vezes ao longo do texto, assim como todas as informações que são relevantes para que o leitor
possa desdobrar, e colocar em ordem cronológica, as ações que antecedem e sucedem ao
crime. A faca de cozinha apresenta a lâmina já gasta, mas aguçada, de gume fino e brilhante, e
o cabo amarelecido pelas águas mornas, pelos ácidos das frutas e legumes e lascado pelas
unhas das mulheres de outrora. Esse objeto traz, em si, as insólitas inscrições de mulheres de
outros tempos, e o que mais intriga é que tal faca ficara escondida por muitos anos, sem uso, e
parece aguardar a chegada de Renata para ter uma nova e fantástica utilidade.
É, no entanto, o papel desempenhado pela memória que dará, sub-repticiamente, a
chave para a compreensão dos elementos insólitos/fantásticos desse conto. O leitor descobre
no vai e vem das digressões de Renata que a personagem tem uma memória que retinha tudo,
“como quem fotografa e esconde só para si” (HORTA, 1985, p.127), e essa memória é
construída e reconstituída no espaço da casa, local historicamente reservado às mulheres.
Segundo Gaston Bachelard,
E todos os espaços das nossas solidões passadas, os espaços em que sofremos a solidão, desejamos a solidão, comprometemos a solidão, são indeléveis em nós. E é precisamente o ser que não deseja apagá-los. Sabe por instinto que esses espaços de sua solidão são constitutivos. Mesmo quando eles estão para sempre riscados do presente, doravante estranhos a todas as promessas de futuro, mesmo quando não se tem mais o sótão, mesmo quando se perdeu a mansarda, ficará para sempre o fato de que se amou um sótão, de que se viveu numa mansarda. A eles voltamos nos sonhos noturnos. Esses redutos têm valor de concha. [...] Mas no próprio devaneio diurno, a lembrança das solidões estreitas, simples, comprimidas, são para nós experiências do espaço reconfortante, de um espaço que não deseja estender-se, mas gostaria sobretudo de ser possuído mais uma vez. (2000, p. 29).
Pelo discurso do marido, é possível descobrir que eles vivem sob um estado
totalitário e, por essa razão, há uma espécie de pacto estabelecido: o sótão é um lugar proibido
e tudo o que lá está, lá deve permanecer, assim como a casa: “Estava escrito: [a casa] havia de
ser demolida e dela ficaria somente a memória. Como de tantas outras coisas nas quais não se
podia tocar. Abordar” (HORTA, 1985, p.131). De acordo com Bachelard (2000, p. 35), “é
graças à casa que um grande número de nossas lembranças estão guardadas; e quando a casa
se complica um pouco, quando tem um porão e um sótão, cantos e corredores, nossas
lembranças têm refúgios cada vez mais bem caracterizados”.
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Aqui, faz-se necessário recordar que nas sociedades tradicionais, que desconheciam a
escrita, sempre coube às mulheres o papel de transmissoras, de narradoras, nas aldeias, das
lendas e dos feitos normalmente realizados pelos homens, experiência que deveria ser
preservada pelas comunidades por meio da oralidade. Por essas razões, Michelle Perrot (1989,
p15) afirma que “a memória da mulher é verbo”:
Os modos de registro das mulheres estão ligados à sua condição, ao seu lugar na família e na sociedade. O mesmo ocorre com seu modo de rememoração, da montagem propriamente dita do teatro da memória. Pela força das circunstâncias pelo menos para as mulheres de antigamente, e pelo que resta de antigamente nas mulheres de hoje (o que não é pouco), é uma memória do privado, voltada para a família e para o íntimo, os quais elas foram de alguma forma delegadas por convenção e posição.
Em Com a mão firme e doce, é interessante perceber que essa ‘memória como verbo’
é trabalhada pela escritora de uma maneira singular no espaço da casa. Maria Teresa Horta,
por meio da palavra, dá a ver ao leitor, transforma em verbo, a história de opressão e
confinamento de toda uma geração de mulheres que Renata, como personagem, capta pelo
olhar e pelo tato. O sótão funciona como um portal, cuja entrada, de abertura proibida e
difícil, com seus gonzos emperrados, permite à personagem reconstituir uma história que
ficara guardada, trancafiada, empoeirada pela passagem do tempo, como sugerem as marcas
de suas pegadas nos degraus da escada que dá acesso a esse local – uma metáfora dos fatos
esquecidos na memória. Para dizer com Bachelard (2000, p.28), a função do espaço é “reter o
tempo comprimido” e, nesse sentido, o sótão torna-se um divisor de águas na narrativa,
questionado como tal pela própria protagonista. Isso marca a passagem de uma vida em
plenitude, de certo modo camuflada, caracterizada pela liberdade e pelo prazer, vivida por
Renata e o esposo - uma espécie de paraíso perdido como questiona o narrador-, para um
relacionamento caracterizado pelo medo e pela indiferença, quando há o contato com o objeto
que funciona como o gatilho para o conhecimento do que está do outro lado.
Ao subir até o sótão e encontrar o objeto há tanto tempo esquecido, Renata infringe
as regras, provocando o terror do esposo: “Bem sabes que não podemos conservar isto”
(HORTA, 1985, p.142). Em vez de se livrar do objeto, como prometera, a personagem o
esconde novamente; passa a sentir medo do esposo e todas as noites, após acordar sufocada e
amedrontada, vai ao sótão e, com essa faca, começa a esculpir pequenas figuras femininas em
madeira, as quais dispõe sobre a mesa de cozinha desse local. São mulheres aladas,
acocoradas, agachadas, que se enroscam em si mesmas; com cabelos curtíssimos e olhos
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afastados como os de Renata, ou ainda, de cabelos aos ombros ou pelas costas, essas mulheres
dormem ou soltam gritos mudos ou ainda são marcadas pela insônia. Essa atividade de
esculpir figuras parecidas consigo mesma ou de trazer suas imagens de qualquer lugar perdido
de sua memória (HORTA, 1985, p.135) provoca em Renata medo e prazer, e constitui uma
metáfora evidente do potencial criativo da mulher que deseja ir além dos limites que lhes são
impostos; de conhecer seu passado como história coletiva de outras tantas mulheres, de
evocar outras realidades perdidas. Do mesmo modo que as águas mornas, os ácidos das frutas
e as unhas das mulheres de outrora amoldaram a madeira que integra o cabo da faca, dos
troncos de madeira encontrados próximos a casa, as figuras de “mulheres se formavam sob
seus dedos’, que eram talhadas sem que Renata entendesse por que” (HORTA, 1985, p. 143).
O esposo, porém, tenta de todas as maneiras, aterrorizado pela ideia de infringir a lei, pôr fim
à atividade da esposa: “O que estás a fazer? Bem sabes que isso é proibido. Não se pode
mexer no passado – isso é rebeldia” (HORTA, 1985, p.131); “Sabes o que significa o que
estás a fazer?” (HORTA, 1985, p.138); “Sabes o que te pode acontecer se eles descobrirem?”
(HORTA, 1985, p.139). A ameaça maior – isto é, “eles descobrirem” – está ligada ao fato de
que Renata esculpe figuras femininas assim como fizeram outras mulheres séculos antes,
informação que ela encontra em um livro no interior de uma biblioteca que, posteriormente,
fora selada, proibida: “Elas foram queimadas, não entendes? Mulheres queimadas em grandes
fogueiras, como contava o livro antigo. Proibido” (HORTA, 1985, p.144).
A atmosfera pesada, o medo, o horror que toma conta das personagens, guardadas as
devidas proporções, corroboram o reconhecimento de que Renata realiza uma atividade
considerada proibida assim como muitas outras mulheres, num passado não muito remoto,
também o faziam, o que leva à associação de Renata à prática da bruxaria. Nesse sentido, o
perigo para esse estado totalitário encontra-se justamente na desobediência feminina de se
expressar livremente, trazendo para a cena atual imagens de mulheres que ficaram na
memória individual e na memória coletiva. Se suas vozes foram caladas, suas imagens de
mulheres angustiadas e sofridas falam por si mesmas e representam uma ameaça ao status
quo, assim como a própria Maria Teresa Horta, que desafiou o regime salazarista publicando
em coautoria as Novas Cartas Portuguesas, apreendidas pelos censores em nome da moral e
dos bons costumes da sociedade portuguesa.
Diante da ameaça que as figuras aladas esculpidas por Renata representam, o esposo
lança ao mar uma dessas pequenas esculturas, fato que levará ao clímax da narrativa. O estado
de medo e pavor caracteriza esse homem por meses, mas sua mudança efetiva só ocorre
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depois que ele regressa da cidade e volta para a casa. Renata percebe que suas feições são as
mesmas, porém, seu corpo, já não o é: o calor, o fogo da paixão, desaparece e ele se torna frio,
gelado, como se estivesse morto, desligado. Sua pele torna-se gélida, esticada sobre os ossos;
seu passo torna-se pesado e automático; o peito, quieto; mas, principalmente, seus olhos
tornam-se sem expressão. Parecia haver, “um metal escondido debaixo da pele, da carne.”
Mas a observação mais intrigante da protagonista vem a seguir: ‘Um dia ele cortara-se e quase
não sangrara. Tal como hoje ali sobre a cama” (HORTA, 1985, p. 145). Ao retirar a faca
fincada três vezes no peito do amado, Renata percebe que ela mal estava suja de sangue e que
sobre a roupa de cama apenas um líquido fracamente rosado lembrava aquela substância que
porejava no lugar onde deveria estar o coração.
Isso se dá justamente quando, uma a uma, as pequenas figuras de mulheres começam
a desaparecer, sugerindo que o esposo é o responsável por esse desaparecimento; o qual
sempre seguia os passos da esposa, embora jamais entrasse no sótão. Quando Renata resolve
matá-lo, sente –se aliviada e o faz para “recuperá-lo tal como ele era no início, pois passara a
existir vivo apenas na sua memória” (HORTA, 1985, p.145). Ao final da narrativa, o esposo é
descrito como alguém gelado e metálico- e podemos inferir, metálico como a lâmina da faca
que lhe perfurara o peito, do qual o sangue porejava quase a contragosto. A parte metálica da
faca, então, funciona como a chave capaz de ligar aquele antigo homem desligado, como o
percebera Renata, transformado agora no robô, no autômato que o sistema desejava e moldara
quando ele volta para a casa antiga que ficava entre o rio e o mar, cujas águas Renata não
sabia se se misturavam ou se distinguiam, assim como os sentimentos concomitantes de amor
e ódio que passa a nutrir pelo esposo. A protagonista, aterrorizada, emite um grito, um uivo,
diante daquela cópia exata de que fora o marido: diante do duplo do esposo, que em sua
direção avança. O leitor, então, assim como Renata, hesita: ela teria sonhado com o
assassinato ou realmente cometera o crime? Sim, ela cravara a faca em seu peito, mas as
feridas cicatrizaram e o sangue mal sujara a faca. Lançadas ao mar todas as figuras esculpidas
em madeira, chega o momento de a própria Renata ter o mesmo destino? Essa hesitação
também surpreende o leitor, que permanecerá na dúvida. O efeito perturbador dos aspectos
insólitos que envolvem a protagonista e seu esposo no conto perdura sobre nós leitores
mesmo depois de terminada sua leitura. De certo modo, isso confirma a recusa às normas que
configuram nossa realidade, à produção da incerteza do leitor – que no conto também atinge a
personagem principal- frente ao real conhecido, incerteza essa baseada na contradição entre o
‘natural’ e o sobrenatural, que tão bem se observa no conto aqui analisado. Nesse sentido, o
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fantástico presente em Com a mão firme e doce traz à tona o que é repressivo e dominador na
sociedade portuguesa descrita no conto – seja na necessidade de apagamento das figuras de
mulheres aladas, seja na imagem do duplo, como a própria lógica patriarcal, delineando, como
quer Rosemary Jackson (2001), o que não pode ser observado na cultura, por estar perdido ou
ausente.
De acordo com o que foi exposto, o conto aqui analisado revela que a autora não fica
apenas no plano da constatação do bloqueio imposto pela tradição patriarcal à liberdade de
escolha das personagens de traçarem seus próprios destinos; ela apresenta novos caminhos a
partir dos quais a protagonista busca sua identidade e tenta subverter a ‘antiga ordem’,
passando por e indo além do relacionamento amoroso homem-mulher. No entanto, ela não é
muito bem-sucedida nessa tarefa – o que expressa o quanto as forças sociais ainda constituíam
um empecilho para que ela pudesse trilhar seus próprios caminhos. Dessa maneira, em
oposição aos padrões de representação realista, o fantástico, o insólito e o sobrenatural
funcionam aqui como estratégias narrativas da autora para problematizar as relações das
mulheres com a sociedade, denunciar sua condição de subalternidade à lógica patriarcal e
manifestar o desejo de romper os estreitos limites que lhe são impostos.
REFERÊNCIAS:
BACHELARD, Gaston. A Poética do espaço. Tradução de Antonio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 2000. (Coleção Tópicos). BESSIÈRE, Irène. O relato fantástico: forma mista do caso e da adivinha. Tradução de Biagio D’Angelo. Colaboração de Maria Rosa Duarte de Oliveira. Fronteiraz – Revista Digital do Grupo de Pesquisa O narrador e as fronteiras do relato. V.3, n.3, setembro de 2009. Disponível em: <http://www.pucsp.br/revistafronteiraz/numeros_anteriores/n3/download/pdf/traducao2.pdf> Acesso em: 20 out. 2011. CESERANI, Remo. O fantástico. Trad. Nilton Cezar Tridapalli. Curitiba: Ed. UFPR, 2006. FERNANDES, Sónia Andreia da Cunha. Representações fantásticas na literatura portuguesa contemporânea: a ficção narrativa de Hélia Correia. Dissertação (Mestrado em Teoria da Literatura/ Literaturas Lusófonas). Instituto de Letras e Ciências Humanas, Universidade do Minho. Minho, Portugal, 2009, 112p. HORTA, Maria Teresa. Com a mão firme e doce. In: CORREIA, Clara Pinto et al. Fantástico no Feminino. Lisboa: Edições Rolim, 1985.
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Mutabilidade do passado e reconfiguração da realidade: um diálogo intertextual entre 1984 de
George Orwell e 1Q84 de Haruki Murakami.
André Felipe de Sousa ALMEIDA (USP)
RESUMO: Em 1984 (Orwell, 1949), o princípio da mutabilidade do passado é um dos alicerces do Ingsoc - regime totalitário pautado na entidade mítica do Grande Irmão. Nesse universo ficcional, a história é constantemente reescrita, possibilitando o controle da realidade do presente e do passado. Orwell resume esse princípio na célebre passagem "Quem controla o passado, controla o futuro; quem controla o presente, controla o passado." Em 1Q84 (Murakami, 2009), obra assumidamente inspirada no clássico de Orwell, a realidade do ano de 1984 apresenta anomalias em razão da mutação de acontecimentos passados: o que uma vez fora, deixou de ser; o que não fora, passou a ser. Essa reconfiguração da realidade permite a criação de um “mundo novo” fantástico –1Q84–, habitado por seres surreais, e onde no céu veem-se duas luas. Questionar-se-á, todavia, até que ponto essas nova realidade pode ser fruto da memória coletiva ou individual dos personagens. Essas e outras questões referentes à temporalidade e realidade ficcionais serão discutidas no presente trabalho, através de um diálogo intertextual entre 1984 e 1Q84. Propor-se-á, nesse sentido, uma reflexão sobre o princípio de mutabilidade do passado e seu emprego como mecanismo de reconfiguração da realidade em ambas as obras. O estudo comparativo desses romances tem como objetivo revelar como se realiza essas representações e investigar, do ponto de vista teórico-literário, como as mesmas funcionam. PALAVRAS-CHAVE: Literatura fantástica; Haruki Murakami; George Orwell; 1Q84; 1984. ABSTRACT: In 1984 (Orwell, 1949), the past mutability tenet is one of the basements of Ingsoc – totalitarian system based on the mythical entity of the Big Brother. In this fictional world, history is constantly rewritten, making it possible to control present and past reality Orwell applies this principle in the following famous period: “He who controls the past controls the future. He who controls the present controls the past.” In 1Q84 (Murakami, 2009), a novel admittedly inspired on Orwell’s classic, the reality of the 1984 year presents anomalies because of the mutation of facts from the past: what once used to be, is no more; what once used not to be, now is. This reconfiguration of reality allows the creation of a fantastic “new world” called 1Q84, inhabited by surreal beings, where there are two moons in the sky. The question is; however, to what extent can these new realities be a product of collective or individual memories of the characters. This and other questions regarding fictional temporality and reality will be discussed in this paper through a dialogue between 1984 and 1Q84. It will be proposed, in this way, a reflection about the past mutability tenet and its application as a mechanism of reconfiguration of reality in both novels. The objective of this comparative study with both novels is to reveal how theses representations take place and to investigate, from a literary theory perspective, how they work. KEYWORDS: Fantastic Literature; Haruki Murakami; George Orwell; 1Q84; 1984.
INTRODUÇÃO
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Haruki Murakami (村上春樹, Murakami Haruki, 1949), uns dos autores japoneses
contemporâneos mais aclamados pela crítica e pelo público, despontou-se no cenário literário
mundial com livros que retratam, de um ponto de vista realista, a sociedade japonesa
moderna, destacando-se pelos romances: Norwegian Wood (ノルウェイの森, Noruwei no
mori, 1987), Minha querida Sputnik (スプートニクの恋人, Supūtoniku no koibito, 1999).
Murakami ganhou grande prestígio também por suas obras que misturam essa mesma
representação do Japão urbano a elementos fantásticos, “fazendo uma espécie de releitura
daquilo que, na América Latina, ficou conhecido como “realismo mágico” (FUJITA, 2008).
Dentre as obras de Murakami traduzidas para o português que pertencem a essa linha insólita,
podem-se citar, em nível de exemplo, as seguintes: a sequência Caçando carneiros
(羊をめぐる冒険, Hitsuji o meguru bōken, 1982) e Dance Dance Dance
(ダンス・ダンス・ダンス, Dansu dansu dansu, 1988); Kafka à beira-mar (海辺のカフカ,
Umibe no Kafuka, 2002) e Após o anoitecer (アフターダーク, Afutā Dāku, 2004).
Dando prosseguimento a esse viés fantástico, Murakami lança recentemente um de
seus romances mais vendidos1: a enigmática trilogia 1Q84 (いちきゅうはちよん, Ichi-Kyū-
Hachi-Yon, 2009, 2010) 2. O romance, considerado, como um dos mais complexos de
Murakami, desperta em seus leitores uma série de dúvidas.
A obra faz várias referências à literatura europeia e americana, escola que influenciou
drasticamente o estilo literário de Murakami. Dentre essas referências, destaca-se 1984 (1949)
de Geroge Orwell, cujo próprio título da obra foi “emprestado”. Essas referências à obra
orwelliana aparecem explicitamente durante em alguns diálogos 1Q84. Entretanto, fazendo
uma leitura mais abrangente e menos pontual da trilogia de Murakami, percebe-se que essas
alusões não são tão evidentes quanto podem parecer em uma primeira impressão. Tendo em
vista esse aspecto, o presente artigo pretende levantar as seguintes questões: a) É realmente
possível estabelecer pontos de contatos entre 1984 e 1Q84? b) Caso existam, como ocorrem
esses diálogos intertextuais? Antes de nos adentrarmos nessas questões, porém, traçaremos a
seguir, com enfoque nesses problemas, o enredo de ambas as obras, a fim de auxiliar aqueles
que as desconhecem ao melhor entendimento dos problemas aqui tratados.
1Q84 1 Segundo o The telegraph, após o primeiro mês de publicação, 1Q84 vendeu mais de um milhão e meio de
cópias no Japão. 2 A versão brasileira está sendo publicada pela Objetiva. Atualmente, foram lançados apenas o primeiro e o
segundo volumes da trilogia, com tradução direta do japonês pela Prof.ª Dr.ª Lica Hashimoto (USP).
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Traçar, em linhas gerais, a estória de 1Q84 não é uma tarefa simples. Não apenas por
se tratar de um romance demasiadamente extenso , mas também por ter uma trama bastante
complexa. A própria estrutura do romance segue uma forma não convencional: cada capítulo
apresenta alternadamente o ponto de vista de um dos dois protagonistas da trama.
A narrativa se inicia com Aomame , uma jovem mulher que está presa num
engarrafamento dentro de um táxi, numa estrada elevada de Tóquio. A personagem precisa
chegar a tempo para uma tarefa importante – que, a propósito, consiste em assassinar um
homem. O taxista indica, então, uma rota de fuga para a passageira: uma escada de
emergência. Aomame concorda em descer a escada, mas, antes de seguir seu caminho, o
taxista a alerta: “Tome cuidado. As coisas não são o que aparentam ser” (MURAKAMI, 2012,
v. 1, p. 7). Se ela descesse a escada, ele alertou, seu mundo poderia, de repente, mudar para
sempre. Ela desce a escada, em seguida, e o ano 1984 que conhecia deixou de existir.
Aomame passa a chamar, então, essa nova realidade alternativa de 1Q84.
O segundo protagonista da estória é Tengo, um professor de matemática, que nas
horas vagas escreve romances. Tengo fomenta um amor platônico por Aomame desde a
infância, porem nunca chegou a encontrá-la depois do primário. Tengo não obteve sucesso
como romancista, nunca conseguido publicar uma obra de sua autoria. Até que foi convidado
a reescrever o romance de uma jovem de 17 anos, chamada Fukaeri, A Crisálida de Ar. Esse
romance tem um papel fundamental em 1Q84, porque tudo que há de fantástico nesse
universo parte dela.
A Crisálida de Ar é baseada na experiência de Fukaeri com os seres pequeninos (little
people, no original). A metaficção, implícita em 1Q84, narra a história de uma menina que,
quando vivia em Sakigake – uma comuna religiosa – foi punida por deixar a cabra, que estava
sob seus cuidados, morrer. Sua punição consistia em ficar trancada num galpão durante várias
noites junto ao corpo do animal. Durante essas noites, o povo pequenino emergia da boca da
cabra morta, expandiam-se, e, enquanto entoavam juntos uma canção, começavam a retirar do
ar fios translúcidos com o intuito de tecer um grande casulo chamado crisálida de ar.
No desenrolar da trama, esses elementos fantásticos de A Crisálida de Ar vão
surgindo no universo de 1Q84 e vão guiar o reencontro de Tengo e Aomame.
1984
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1984 ou Nineteen Eighty-Four é um grande clássico da literatura inglesa escrito por
George Orwell em 1948 e publicado em 1949. Trata-se de um romance distópico, isto é, uma
ficção que representa a antítese de uma realidade utópica, uma “utopia negativa”.
Obviamente, o romance retrata o ano de 1984. Nesse universo o mundo foi dividido em três
superestados que vivem numa guerra eterna.
A história se passa em Londres, ou pista n.º 1, que pertence à Oceania e é governada
por um regime político totalitário e repressivo, o Ingsoc que, por sua vez, é regido pela
entidade mítica do Grande Irmão (Big Brother, no original). No livro, Orwell mostra como
uma sociedade oligárquica coletivista é capaz de reprimir qualquer um que se opuser a ela.
A história narrada é a de Winston Smith, um homem com uma vida aparentemente
insignificante, que recebe a tarefa de perpetuar a propaganda do governo através da alteração
de documentos públicos e da literatura. Em outras palavras, a função de Winston é de
reescrever a história, reinventar a realidade, a fim de que o governo esteja sempre correto no
que faz. Ironicamente, o nome do ministério em que Smith trabalha chama-se “Ministério da
verdade”.
O JOGO DA INVERSÃO: “NÃO SE DEIXE ENGANAR PELAS APARÊNCIAS”
Voltando às questões levantadas anteriormente: existe alguma conexão entre os
aparentemente tão distintos 1Q84 e 1984? Como Murakami vai estabelecer esse diálogo?
Considerando ambas as obras acima introduzidas, podemos destacar alguns pontos de
diálogos entre elas, a começar pelo próprio título dos romances.
Como visto acima, Aomame nomeia o mundo estranho para qual foi dragada de
1Q84. Esse universo de 1Q84, que dá nome à obra, “[...] com a letra ‘Q’, de Question mark;
um ‘quê’ de dúvida, de interrogação [...]” (MURAKAMI, 2012, v. 1, p. 160), remete a um
mundo cheio de questões e onde a lógica se inverte. Um universo fantástico, onde a dúvida
impera sobre qualquer tipo de certeza, memória ou convicção. Isto é, tudo aquilo que parece
ser 1984, não é por simples detalhes que vão surgindo progressivamente na vida de Aomame:
as duas luas, o povo pequenino, a crisálida de ar, etc.
Podemos dizer, também, que Murakami faz uma espécie de trocadilho com o título
do livro: em japonês, a letra Q tem o mesmo som do número 9 (kyû). Portanto, o título do
romance 1Q84 soa exatamente a 1984 quando lido separadamente os números 1-9-8-4 (ichi-
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kyû-hachi-yon). Também nesse viés jocoso, pode-se observar que o próprio caractere ‘Q’ se
assemelha a um ‘9’ rotacionado em seu eixo vertical.
Murakami trabalha essa temática do inverso não só no título, mas durante algumas
passagens do romance. Como, por exemplo, o fato de que Aomame ter que reverter o caminho
que fizera, subindo junto com Tengo as escadas de emergência, para retornar ao ano de 1984.
Também, quando a mesma regressou ao suposto ano de 1984, mas se deparou com objetos em
posições invertidas das quais estavam antes de descer a escada:
Subitamente, Aomame foi assaltada por uma ideia. Algo havia mudado, se bem que não conseguisse dizer o que seria. Semicerrou os olhos e concentrou-se. E, de repente, soube. O tigre da Esso oferecia-lhes o perfil esquerdo. Mas nas suas recordações era a face direita que estava virada para o mundo. O tigre estava ao contrário. (MURAKAMI, 2012, v. 3, p. 520).
Pode-se dizer que Orwell também lançou mão desse mesmo jogo ao escolher 1984
para representar uma possível realidade distópica. Como visto acima, o livro foi escrito em
1948. Invertendo-se os dois últimos algarismos do ano em que foi escrito, tem-se 1984. Há
hipóteses de que a escolha desse ano em particular foi ao acaso, mas podemos deduzir que
Orwell escolheu o título do livro como o reverso do ano em que foi escrito para aludir à
possibilidade de que os eventos do romance não estão tão distantes o quanto podem parecer,
alertando seus leitores para a proximidade dessas duas realidades. Ou seja, é como se ele
estivesse dizendo “não deixe se enganar pelas aparências”, assim como o fez o taxista em
1Q84, ao alertar Aomame, e como o faz o tempo todo o narrador de Murakami.
Como podemos observar, ambas as obras lançam mão de um recurso semiótico
semelhante em seus títulos como uma forma de provocação ao leitor.
RECONFIGURANDO A REALIDADE
Em 1984 o princípio da mutabilidade do passado, junto com duplipensar e a
novilingua, é um dos alicerces do regime de governo que domina o universo descrito por
Orwell. Os habitantes da Oceania, através da negação da realidade objetiva, criam uma outra
realidade em suas mentes que permitem a manutenção do governo do Grande Irmão. Em
outras palavras, eles ignoram a história, os fatos passados e a própria memória; e passam a
acreditar e aceitar tudo aquilo que o Ingsoc dita como verdade.
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Winston trabalha para esse regime totalitário pautado na entidade mítica do Grande
Irmão, reescrevendo a história, possibilitando o controle da realidade do presente e do
passado. Orwell resume esse princípio na célebre passagem "Quem controla o passado,
controla o futuro; quem controla o presente, controla o passado." Bem como no seguinte
trecho “Percebes que o passado, a partir de ontem, foi abolido? [...] Todos os registros foram
destruidos ou falsificados, todo livro reescrito, todo quadro repintado, toda estátua, rua e
edifício rebatizado, toda data alterada”. (ORWELL, 2005, p. 36)
E o processo continua, dia a dia, minuto a minuto. A história parou. Nada existe,
exceto um presente sem-fim no qual o Partido tem sempre razão. Eu sei, naturalmente, que o
passado é falsificado, mas jamais me seria possível prová-lo, mesmo sendo eu o autor da
falsificação. Depois de feito o serviço, não sobram provas. A única prova está dentro da minha
cabeça, e não sei com certeza se outros seres humanos partilham minhas recordações. Apenas
naquele caso, em minha vida toda, possuí prova real, concreta, depois do acontecimento...
anos depois. (ORWELL, 2005, p. 141-142).
Dialogando com 1984, em 1Q84, após Tengo reescrever a Crisálida de Ar, a
realidade do ano de 1984 apresentou anomalias em razão da mutação de acontecimentos
passados: o que uma vez fora, deixou de ser; o que não fora, passou a ser. Essa
reconfiguração da realidade permitiu a criação de um “mundo novo” fantástico –1Q84–,
regido por seres surreais, o Povo Pequenino – fazendo uma oposição clara ao Big Brother de
Orwell –, e onde no céu se veem duas luas. Isso se torna mais evidente a partir da leitura do
seguinte trecho:
Tengo sabia que o tempo podia se distorcer conforme avançava. [...] Às vezes a sequência dos fatos era alterada e, em casos extremos, um acontecimento simplesmente deixava de existir, ou algo até então inexistente passava a existir. As pessoas reorganizam o tempo aleatoriamente com o intuito de reorganizar sua própria existência. Em outras palavras, as pessoas utilizam esse mecanismo para preservar a todo custo o seu juízo perfeito. [...] Os homens o [o tempo] consomem sem cessar e, simultaneamente, tornam a reproduzi-lo após uma reorganização consciente. (MURAKAMI, 2012, v. 1, p. 328).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Levando em consideração as relações tratadas acima, dizemos que ambas as obras
aqui abordadas desencadeiam o insólito de maneiras diferentes, porém ainda assim, similares.
Na ficção distópica de 1984, a realidade temporal e até mesmo a memória das pessoas é
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mutável. Em 1Q84, o mesmo acontece quando Tengo reescreve A Crisálida de Ar e provoca
distorções na realidade.
Cabe ressaltar aqui, porém, que Orwell e Murakami olham para o ano de 1984 de
ângulos distintos: um projetando uma realidade sombria iminente e outro uma surrealidade
passada. Sendo assim, seus objetivos divergem em certa maneira. Orwell, no papel de meio
jornalista, meio escritor de ficção, busca em 1984 criar uma espécie representação alegórica
do stalinismo e nazismo que assolaram a primeira década do século 20, transmitindo uma
mensagem de alerta para seus leitores. Murakami, em contra partida, escritor de literatura de
massas, apesar de compartilhar com Orwell um “sentimento de oposição ao sistema”, “não
deseja transmitir uma mensagem, mas sim escrever boas histórias”, como afirmou em uma
entrevista ao The New York Times em 2011:
I guess we have a common feeling against the system,” Murakami said. “George Orwell is half journalist, half fiction writer. I’m 100 percent fiction writer… I don’t want to write messages. I want to write good stories. I think of myself as a political person, but I don’t state my political messages to anybody. (ANDRERSON, 2011)
Por fim, levando em consideração a clássica conceituação de intertextualidade de
Julia Kristeva, de que “[...] todo texto se constrói como mosaico de citações, todo texto é
absorção e transformação de um outro texto.” (1974, p. 64), pode-se dizer que 1Q84 é, por
excelência, uma obra completamente intertextual. De uma maneira geral, pode-se dizer que
1Q84 se apropria e transforma elementos de 1984 de Orwell e de vários autores com os quais
Murakami estabelece um diálogo. Em nível de exemplificação, em 1Q84, encontramos
referência à Chekhov, Dostoevsky, Shakespeare, Carl Jung, etc. Sem contar com as
referências musicais, ícones da cultura pop e referências aos metatextos: A crisálida de Ar e A
cidade dos gatos, outra narrativa embutida em 1Q84.
REFERÊNCIAS:
CUMMINS, Anthony. 1Q84 by Haruki Murakami: review. The telegraph, Londres, 21 out. 2011. Disponível em: <http://www.telegraph.co.uk/culture/books/bookreviews/8838770/1Q84-by-Haruki-Murakami-review.html>. Acesso em: 24 jun. 2013. FUJITA, Fábio. O Japão ocidental de Haruki Murakami. FGV, Revista Getúlio, São Paulo, Ed. 09, 44-47, 2008. Disponível em:
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<http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/7102/Ed.%2009%20-%20Literatura%20%28site%29.pdf?sequence=1>. Acesso em: 24 jun. 2013. KRISTEVA, Júlia. Introdução à semanálise. São Paulo: Perspectiva S.A., 1974. MURAKAMI, Haruki. 1Q84. v. 1. Trad. Lica Hashimoto. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012. ______. 1Q84. v. 2. Trad. Lica Hashimoto. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012. ______. 1Q84. v. 3. Trad. Maria João Lourenço e Maria João da Rocha Afonso. Lisboa: Casa das Letras, 2012. ORWELL, George. 1984. 29. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2.
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O insólito: das inquietações da alma humana à autoconsciência
Aurora Gedra Ruiz ALVAREZ (UPM); Lílian LOPONDO (USP/UPM)
RESUMO: As diferentes manifestações de fenômenos literários que escapam daquilo que se considera reconhecível no cotidiano conhecem várias classificações, tais como: fantástico, realismo mágico, maravilhoso, insólito, estranho, macabro, dentre outros tantos. Essas nomenclaturas querem dar conta do caráter de certos acontecimentos que interferem na diegese, do modo como as personagens reagem no enfrentamento desse fenômeno e da leitura de mundo que o criador faz. Neste trabalho, propomos discutir o insólito, examinar a sua natureza, observar como incide e que sentidos ele produz no relato. Nossa hipótese de leitura ao conto “Capítulo dos chapéus”, de Machado de Assis, é de que o insólito se inscreve como um acontecimento de ruptura no ritmo da narrativa, podendo provocar uma redimensão da personagem. O papel desse componente narrativo se assemelha ao da peripécia na tragédia grega na medida em que desestabiliza a personagem, Mariana, levando-a a questionar-se. Sua função, portanto, não é apenas alterar os rumos da narrativa, procedendo à reviravolta das ações, mas, também, colocar a personagem em xeque diante de uma situação que a desacomoda da rotina, que lhe cobra uma reflexão sobre si mesma e sobre o seu posicionamento diante do outro. Para estudar esse fenômeno e o seu efeito estético na narrativa, amparamo-nos na Teoria da Literatura, nos ensinamentos de Georg Lukács e Antonio Candido, e na Filosofia da Linguagem, nos fundamentos teóricos de Mikhail Bakhtin. PALAVRAS-CHAVE: Insólito; autoconsciência; Machado de Assis. ABSTRACT: The different manifestations of literary phenomena which are not common in everyday life are known by several terms such as: fantastic, magical realism, marvelous, unusual, strange and macabre, among many others. These terms usually refer to the characteristics of certain events that influence the diegesis, in such a way that the characters react to this phenomenon and to the way the creator sees the world. In this work, we propose to discuss the unusual, to examine its nature, to observe how it occurs and which senses it produces in the story. Our hypothesis about the short story "The Chapter of the hats", by Machado de Assis, is that the unusual inscribes itself as an event of disruption in the pace of the narrative, which may cause a resizing of the character. The role of this narrative component resembles the peripeteia in the Greek tragedy, because it destabilizes the character, Mariana, and leads her to self-questioning. The function of this phenomenon, therefore, is not just to change the course of the narrative, by changing the actions, but also to put the character into question in a situation that takes her away from the routine and makes her reflect about herself and about others. To study this phenomenon and its aesthetic effect in the narrative, we base ourselves on the Theory of Literature, mainly in Georg Lukács and Antonio Candido, and on the Philosophy of the Language, in Mikhail Bakhtin’s theoretical foundations. KEYWORDS: Unusual; self-consciousness; Machado de Assis.
A boa ficção traz, na sua arquitetônica, vários ingredientes que atuam no processo de
estreitamento da relação entre o que ela oferece e a recepção. O insólito é um dos recursos
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literários que se presta a ativar esse vínculo criador-leitor, seja porque provoca certa
desestabilização na trama, seja porque repercute em instâncias diferentes do discurso e nele
instala a inquietação ou porque instiga o leitor à fruição do texto.
O corpus que escolhemos para estudo do insólito é “Capítulo dos chapéus”, da
coletânea Histórias sem data, publicada em 1884. O conto apresenta como pano de fundo o
final do segundo império, momento em que D. Pedro II estava altamente empenhado na
construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, em Rondônia. A partir de 1871 eram muitos
os ingleses que desfilavam na Rua do Ouvidor e nos mais prestigiados locais do Rio de
Janeiro. Este cenário social será o estopim para os desencontros e reencontros de Mariana,
protagonista do referido conto.
Não pretendemos fazer aqui uma análise sociológica que mostre as condições sociais
de produção do conto de Machado, mas tentar descobrir como se constroem os “sistemas de
relação inteligíveis capazes de explicar os dados sensíveis” (BOURDIEU, 1996, p. 14) no
texto literário. No conto em exame, investigaremos os elementos que contribuirão para o
desencadeamento do drama da personagem. Serão os dados do cotidiano que levarão Mariana
a sair do seu nirvana e revolver as águas mornas do seu interior ou a vida em si mesma, um
jogo contínuo de dados, que, muitas vezes, traz vivências insólitas, vestidas de acaso, do qual
não se pode fugir, como Mallarmé nos lembra no mote do poema “Un coup de dés” (1990)?
Que acaso é esse que incide sobre a vida de Mariana e lhe impõe uma travessia em
que ela será posta à prova? Façamos uma breve apresentação do conto.
A narrativa inicia-se com a Invocação, conforme o modelo da épica clássica, para
que a Musa “cante o “despeito de Mariana” (ASSIS, 1997, p. 401) . O discurso irônico do
narrador expande-se ainda mais quando arroga a causa desse sentimento: um chapéu baixo
usado por Conrado, marido da jovem senhora. O diálogo entre os esposos inicia-se com um
pedido delicado da protagonista e termina com um enfrentamento em que esta demonstra
clara intenção de não recuar do objetivo de fazer com que o marido passe a usar um chapéu
alto, moda introduzida pelos ingleses , vindos ao Brasil para trabalhar na mencionada estrada
de ferro. O discurso do narrador concentra-se em justificar o pasmo do consorte diante da
posição inflexível de Mariana. Qual será o motivo dos seus modos ásperos, de sua mudança
de atitude, se ela sempre fora de temperamento dócil e sempre levara uma vida regular, sem
quebras de hábitos? Lukács (2000, p. 92), ao analisar o romance, considera que “a psicologia
do herói romanesco é o campo de ação do demoníaco”. O próprio narrador, um pouco adiante
na diegese do conto, comenta que “certo demônio soprava nela as fúrias da vingança”
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(ASSIS, 1997, p. 405). A origem dessa reviravolta na personalidade de Mariana é despertada
pela antipatia do pai da personagem pelos costumes do genro: uma pessoa pacata, sem
grandes aspirações e descuidada da tradição e do que a elite considera bom gosto.
[...] Acontecera-lhe, porém, naquele dia, vê-lo de relance na rua, de palestra com outros chapéus altos de homens públicos, e nunca lhe pareceu tão torpe. De noite, encontrando a filha sozinha, abriu-lhe o coração; pintou-lhe o chapéu baixo como a abominação das abominações, e instou com ela para que o fizesse desterrar (ASSIS, 1997, p. 403).
O fragmento revela que o demônio não apenas “soprou” na alma de Mariana, como
também na de seu pai. O sogro de Conrado é descrito como um homem de hábitos arraigados,
que não faz qualquer concessão. No caso do genro, porém, “suporta[ra]-o calado, em atenção
às qualidades da pessoa”. Por que, então, na conversa com sua filha se mostrara tão
intransigente? Mefistófeles inquietara-o tanto que não se pôde conter? Parece que sim. Liberta
sua acidez, desabafando com a filha o agravo que o chapéu baixo de Conrado desferira ao que
lhe era mais caro: o seu bom gosto.
Sob a influência paterna, Mariana pede a Conrado que não vá mais à cidade com o
chapéu baixo. Seu pedido, contudo, sofre variações que irritam o esposo: de uma insistência
“súplice” transita para um tom “imperioso”. A longa descrição da regularidade de hábitos de
Mariana e de sua natureza sempre pronta à concordância fundamenta o espanto e a irritação
de Conrado diante da teimosia e da aspereza das palavras da dama. Ele não entende o seu
destempero. Como explicar a sua teima? Como compreender a atitude de quem sempre fora
“de uma plasticidade de encomenda, capaz de usar com a mesma divina indiferença tanto um
diadema régio como uma touca”? Parece que também nessa narrativa o leitor encontra um
campo fértil para explorar a “ação do demoníaco” referida por Lukács. O rompante de
Mariana deve-se ao sopro de Satã travestido em seu pai ou aos próprios demônios interiores
que se insurgem contra a sua “passividade” e alteram-lhe o humor? A este fenômeno que se
interpõe no enredo e muda o seu andamento, abrindo uma brecha para que a personagem se
conheça, nomeamos de insólito. O insólito não se encontra classificado entre as categorias da
narrativa fantástica estudadas por Todorov. Nosso entendimento é de que ele se apresenta
como um componente narrativo cujas implicações no enredo lembram o efeito da peripécia.
Para Aristóteles (2007, p. 57), a peripécia (peripeteia), um dos elementos constitutivos da
tragédia, é “a mudança dos acontecimentos para o reverso”, com o propósito de instaurar uma
reviravolta das ações que alteram os rumos da narrativa.
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O insólito pode se referir à ocorrência incomum, ou, até mesmo, a certa situação do
cotidiano que, em dado momento, assume uma dimensão extraordinária para a vivência
emocional da personagem e, geralmente, desencadeia um autoquestionamento. Esta reflexão
da personagem pode orientá-la a diferentes atitudes diante da vida. As três direções mais
comuns são: a um novo posicionamento no mundo, como ocorre com Sr. José, protagonista de
Todos os nomes (1997), de José Saramago, quando, em meio à rotina de suas pesquisas sobre
a vida de celebridades, apanha, sem perceber, a ficha de uma pessoa comum. Este acaso leva-
o a se questionar e a assumir um novo modo de ser. No segundo tipo de desencadeamento
originado da auto-interpelação, a personagem pode também se dar conta de que aquilo que a
inquieta deve ser afastado, abafado, por lhe cobrar uma nova atitude diante do mundo e ela
não ter a coragem de enfrentar o que a perturba, menos ainda de se redefinir; à personagem
pesa-lhe mudar a ordem da vida, como em “Amor” e em outros contos de Clarice Lispector. O
terceiro desfecho possível do processo de autoconhecimento da personagem é a descoberta de
que a existência que ela leva é a que deseja para si, como no conto que ora analisamos. Dessas
três situações mais frequentes em que concorre o insólito, concluímos que ele é uma
experiência que pode gerar ou não transformações psicológicas e/ou de atuação da
personagem no mundo; tudo depende do modo como ela enfrenta esse evento e o valor que
este assume para ela.
No conto em questão, o reparo do pai de Mariana acerca do mau gosto de Conrado
na escolha do chapéu, a ironia e o autoritarismo deste último diante do pedido de Mariana
desencadeiam o insólito no conto. Deste momento em diante, a protagonista, antes tão
tolerante, deixa-se dominar pela fúria que percorre uma escala ascendente. O marido, de sua
parte, controlado, mas sem aquiescer ao pedido, explica à consorte o “princípio metafísico”
inscrito em uma escolha de chapéu: “[...] o chapéu é a integração do homem, um
prolongamento da cabeça, um complemento decretado ab æterno; ninguém o pode trocar sem
mutilação [...] Quem sabe? pode ser até que nem mesmo o chapéu seja complemento do
homem, mas o homem do chapéu...” (ASSIS, 1997, p. 403).
Mediadas pelo narrador, as reflexões de Mariana deságuam em uma decisão: sair de
casa. É o momento de a personagem “pôr-se à prova”, de conhecer-se. Vestindo seu
voluntarismo com uma razão filosófica, que associa o chapéu a uma extensão do homem, e
que por isso não pode ser mudado sob pena de provocar dano à identidade do seu portador,
Conrado deixa Mariana entregue aos seus demônios, ou à sua ira.
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Sem compreender as ditas razões teóricas do marido, mas magoada, a personagem
revê a discórdia sob o filtro do narrador onisciente: relembra a docilidade com que sempre o
tratara, pondera a insignificância do seu pedido ao mesmo tempo em que reconsidera que
“fora um pouco exigente”. Por fim, não aceita a arbitrariedade de Conrado. Neste ponto, a
narrativa abre brecha para a sondagem psicológica da protagonista. O narrador explora o
conteúdo do mundo interior de Mariana, perseguindo a reflexão da personagem, “que sai a
campo para conhecer a si mesma, que busca aventuras para por elas ser provada e, pondo-se à
prova, encontrar a sua própria essência” (LUKÁCS, 2000, p. 91). Esta “aventura” ao
autoconhecimento, empreendida no conto machadiano, não se realiza tal qual o pensamento
de Georg Lukács acerca da busca identitária da personagem. O teórico húngaro refere-se ao
processo em que o sujeito, em primeira pessoa, assume a voz narrativa e se dá a conhecer. Ele
próprio é agente e paciente do processo. Entendimento semelhante sobre o autoconhecimento
encontra-se também nas teorias formuladas por Mikhail Bakhtin. Segundo o filósofo da
linguagem russo, a autoconsciência ocorre no embate em que o próprio sujeito confronta o seu
posicionamento com a percepção do outro. A autoconsciência é decorrente desse diálogo entre
o eu e o tu (BAKHTIN, 2003, p. 341). No caso do conto machadiano, é o narrador que nos
conta que Mariana revê o seu posicionamento e o de Conrado nos seis anos de casamento. O
embate tenso em que a personagem se “p[õe] à prova” é predominantemente narrado e não
experimentado de forma direta pela personagem, como propõem Lukács e Bakhtin. O
narrador machadiano em terceira pessoa onisciente cede, por vezes, a fala à personagem,
introduzindo os seus diálogos, simulando, assim, uma liberdade de expressão sobre a
experimentação de suas vivências. No entanto, quer adotando a estratégia do diálogo indireto,
quer do diálogo direto, o que vemos, no conto, é o total domínio da instância narrativa,
elegendo as interlocuções entre as personagens, assenhoreando-se do mundo interior das
mesmas e externando uma “avaliação apreciativa” sobre elas (BAKHTIN/VOLOCHINOV,
1997, p. 32).
O autoconhecimento implicará a retomada de uma experiência de vida anterior ao
seu casamento. No início da narrativa, esclarece-nos o narrador que Mariana tivera “uma vida
de andarilha nos últimos dous anos de solteira” (ASSIS, 1997, p. 402). Contudo, naquele
passo da narrativa, ele reduz a importância da informação com o encarecimento dos “hábitos
quietos” (p. 402) da personagem e de seus predicados de esposa concordata tão amplamente
sobrelevados. E agora, por que se dá a repentina mudança de temperamento de Mariana, a
alteração de seus hábitos e rotina? Será a discordância de Conrado usar o chapéu de copa alta?
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Será obra do acaso mencionado que surpreende a personagem e a conduz a outra experiência
ou a alma de “andarilha” que acorda e disputa com a Mariana de “hábitos quietos” uma
assunção identitária? Curiosamente, para compor o plano de represália ao marido, a
personagem procura Sofia. É hora de conhecermos a amiga de Mariana para, quiçá,
compreendermos os meandros das motivações da protagonista e a razão da eleição de tal
companhia para esse passeio singular, libelo de insurreição, de vingança contra aquele que,
agora, aos olhos da personagem encolerizada, se transformara em opressor.
Sofia é apresentada pelo narrador como uma bela mulher, “honesta, mas
namoradeira” (ASSIS, 1997, p. 404). Confiante em seu poder de sedução,
indiscriminadamente, a amiga de Mariana dirige seus encantos a todos os ingleses que
encontra, sem, contudo, comprometer a segurança de sua relação conjugal. Com fina ironia, o
narrador nomeia o paroxismo do comportamento de Sofia de “sentimento caritativo” (ASSIS,
1997, p. 404). Para acompanhá-la em seus passeios, Sofia sempre escolhe amigas recatadas,
de “belezas menos derramadas e aparentes” (ASSIS, 1997, p. 405) como Mariana. Assim,
reafirma a superioridade de seus encantos e “coonest[a] seus movimentos” (ASSIS, 1997, p.
406), simulando a despretensão de envolver seus admiradores.
A personalidade, os modos, o ritmo de vida de Mariana representam o avesso da
imagem da amiga. Dada tamanha divergência, perguntamos: o que a protagonista busca em
Sofia? Esta última representa a outra alma de Mariana que se “cansa[ra] de viver cativa”?
(ASSIS, 1997, p. 405) Será que aquela “andarilha” fora sufocada pelo casamento e agora quer
encontrar o seu duplo para gozar a liberdade?
“A experiência especular surge do imaginário” (ECO, 1989, p. 12), isto é, surge da
imagem que o sujeito imagina que a completa. Observemos que a personagem não procura
por um duplo idêntico. Ela demanda por uma projeção especular não da Mariana de “hábitos
quietos”, mas uma figura diferente, em tudo a ela oposta, talvez um modelo a ser seguido em
sua transformação. De acordo com Clément Rosset (1988, p. 33), o reconhecimento da
necessidade de uma presença diversa do sujeito está na estrutura fundamental do duplo. “Esta
outra presença é ao mesmo tempo a outra e a mesma”. O desdobramento da personalidade,
para Rosset, revela a ideia de carência: “o duplo falta para aquele que o persegue” (ROSSET,
1988, p. 66). Sofia representaria, então, a outra metade que falta a Mariana? Veremos.
Experimentando-se em nova imagem, Mariana circula pela Rua do Ouvidor, a
convite de Sofia, para “contemplar a vista de outros chapéus bonitos e graves” (ASSIS, 1997,
p. 405). No passeio esta última adiciona ainda mais lenha ao ressentimento da outra,
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ensinando-lhe “um método para subtrair-se à tirania” (ASSIS, 1997, p. 405) do marido.
Somando-se a estes conselhos, Sofia introduz Mariana ao burburinho da rua, aos repelões da
agitação que acabam por atordoá-la e fazê-la ansiar por um repouso. Nesse momento Mariana
não canta mais “a marselhesa do matrimônio” (ASSIS, 1997, p. 406). O retorno à vivência de
“andarilha” parece não lhe dar mais prazer. Ao contrário, começa a entrar em choque com a
Mariana “de uma plasticidade de encomenda” (ASSIS, 1997, p. 402).
A efervescência da rua, a avalanche de realidades diferentes antes a aterroriza que a
encanta. Notemos que o plano de Sofia é levar a amiga para ver outros “chapéus” elegantes,
ou melhor, para desfilar-se e ser admirada no centro carioca. O passeio, porém, que prometera
ser promissor para Mariana, dando início à sua transformação, termina por desorientá-la de tal
sorte que não mais distingue, dentro do metafórico universo dos chapéus, os “altos” dos
“baixos”, os “bonitos e graves” dos “torpes”. Tal é seu estado de transtorno que sequer
reconhece os “masculinos” dentre os “femininos”. Todos se misturam e se fragmentam como
num “caleidoscópio”. Mariana entra em estado de torpor; parece que a alma daquela de
“hábitos quietos” não encontra guarida na alma da “andarilha” que ressurge. Sua alma interior
parece diluir-se.
Sofia, porém, não lhe dá tréguas, contando-lhe casos de “alguns chapéus, – ou, mais
corretamente, as aventuras” dela e de outras amigas. Com o intento de exibir-se, conduz
Mariana de um lugar a outro: pela Rua do Ouvidor, ao dentista – onde, por obra do acaso, esta
última encontra o ex-namorado, Viçoso. Este reencontro é relevante para a narrativa.
Viçoso assume inicialmente a função de contra-imagem de Conrado. Atua como o
duplo do marido de Mariana, em uma relação de oposição, assim como ocorre entre esta
última e Sofia, como já comentamos. A imagem de homem bem sucedido de Viçoso não
reacende o encanto da jovem senhora. É o despeito pelo mau tratamento recebido, como
assim interpreta a recusa obstinada do marido em não atender ao seu capricho, que lhe soa
alto e não o desejo de uma aventura amorosa, ou o ressurgimento do antigo enleio. Mariana
divide-se entre a memória de sua vida pacata e a decisão de ir à desforra.
De aventura em aventura, a protagonista prova cada vez mais um sentimento de
constrangimento, de opressão que a põe em sobressalto. A alma de “andarilha” é vencida pela
alma daquela que anseia pela tranquilidade do lar. O retorno ao mundo metódico, sereno, traz-
lhe prazer. Nele não há lugar para atropelos e mudanças.
Em suma, a partir da rusga com o marido, desencadeia-se na personagem a vivência
do insólito, que instala um processo de afastamento do cosmos (a vida de Mariana em sua
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casa, segundo o modo que sempre vivera), de perda da orientatio, de que fala Mircea Eliade
(1992) e de ingresso no caos (o espaço labiríntico e efervescente da Rua do Ouvidor). O
retorno ao espaço da “ordem”, da paz interior só ocorre depois da “experimentação dialógica
da ideia”, isto é, de experimentar verdades diferentes para se conhecer (BAKHTIN, 2008, p.
127). A imagem da “andarilha” revela-lhe ser um engano para o seu “espírito plácido e
uniforme” (ASSIS, 1997, p. 409). Na discórdia conjugal, a personagem procede ao
deslocamento da percepção de sua identidade. Ressentida, ela recria outra realidade que lhe é
oposta. O desfecho da narrativa vai nos mostrar que Sofia não se impõe como o duplo de
Mariana, mas é esta que se afasta momentaneamente da sua verdade psicológica e confere à
figura da amiga aquilo que deseja: ser o outro, viver a vida do outro. Entretanto, “o espelho
pode provocar enganos perceptivos”, segundo Umberto Eco (1989, p. 19). A imagem
idealizada é “uma ilusão”, como também considera Rosset (1988, p. 64). Mariana faz a
releitura da imagem de Sofia. A imagem positiva daquela que sabe aproveitar a vida e que não
se deixa dominar pelo marido, que Mariana idealizara em Sofia, transmuta para uma falsa
evidência que a distancia de sua identidade.
O conhecimento da auto-imagem de Mariana ocorre graças à sua experimentação
enquanto ser, o que implica conhecer como o outro faz a leitura do mundo. Mediante esta
interação, Mariana realiza “o aprendizado das aparências” (BOSI, 2003, p. 100), ou seja, ela
distingue o que ela é do que recusa ser. Do confronto com o outro surge a autoconsciência.
“Todo o interior não se basta a si mesmo, está voltado para fora, dialogado, cada vivência
interior está na fronteira, encontra-se com outra, e nesse encontro tenso está toda a sua
essência” (BAKHTIN, 2003, p. 341). Mariana só se organiza interiormente e faz a sua opção
de vida quando se encontra “no limiar”, isto é, no trânsito do insólito, “na fronteira entre a
[sua] consciência e a consciência do outro” (BAKHTIN, 2003, p. 341, grifos do autor).
O desentendimento com Conrado, o reencontro com Viçoso, o passeio com Sofia são
experiências que atuam como o lance de dados de Mallarmé (1990). São acasos que se
inscrevem na vida de Mariana e provocam-lhe o autoquestionamento; não representam apenas
o fortuito, mas a vida como ela é, que tanto pode se apresentar em seu ramerrão quanto
surpreender o sujeito com “capítulos” inesperados, com uma vivência insólita. Em face da
verdade do outro, Mariana se descobre, se (re)ssignifica. E o conto machadiano transforma a
realidade prosaica – uma rusga de cônjuges – em boa prosa que as Musas sublimam.
REFERÊNCIAS:
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De Basile a Disney: uma comparação entre “Sol, Lua e Tália” e “A Bela Adormecida”.
Bruna C. B. SOUZA (UNESP – FCL – Araraquara)
RESUMO: O presente artigo traz uma comparação entre o conto italiano “Sol, Lua e Tália”, coletado por Giambattista Basile na Itália, século XVII, e o filme produzido por Walt Disney chamado A Bela Adormecida, lançado em 1959, resultado das primeiras análises que farão parte de um estudo maior que englobará outros escritores. Destaca as principais diferenças entre as duas obras mostrando os aspectos que se transformaram e os que permaneceram na conversão de um conto popular em filme infantil. PALAVRAS-CHAVES: Contos populares; Cinema; Bela Adormecida. ABSTRACT: This paper presents a comparison between the Italian tale “Sun, Moon and Talia”, collected by Giambattista Basile in Italy, in the seventeenth century, and the film Sleeping Beauty produced by Walt Disney, released in 1959. This is the result of the first analysis that will be part of a larger research including other writers. It evidences the main differences between the two works by showing aspects that have remained and others that have been changed in the adaptation of a folk tale into a children's film. KEYWORDS: Folk tales; Cinema; Sleeping Beauty.
Discutir os contos populares (ou contos de fadas como são mais conhecidos
atualmente) é uma tarefa que exige muito mais recursos e reflexão do que a maioria das
pessoas acredita. Muito mais do que histórias para crianças, estes contos apresentam uma
grande carga cultural, semântica e histórica, o que fez com que diferentes disciplinas se
interessassem por seu conteúdo. Os contos de fadas já foram estudados em diversas áreas
como a psicanálise, que tentou explicar o efeito que as histórias causavam no
desenvolvimento infantil; a literatura, que tem nessas narrativas uma rica fonte para análises e
interpretações; a historiografia, que tentou relacionar as peculiaridades de cada conto com seu
momento de coleta em meio à cultura oral; etc. Portanto, não é de hoje que existe este
interesse em buscar nestas histórias elementos que satisfaçam diferentes perspectivas.
O presente trabalho propõe uma leitura de duas versões do conto hoje conhecido
como “A Bela Adormecida” e um trabalho de sobreposição entre ambos a fim de destacar
quais os elementos que mais sofreram alterações com o passar do tempo e aqueles que se
mantiveram resistentes até os dias de hoje. A primeira e mais antiga é a chamada “Sol, Lua e
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Tália” do poeta italiano Giambattista Basile3 e a outra o filme da Disney lançado em 1959, no
qual a história conheceu sua versão mais infantilizada e romântica até então.
O conto italiano “Sol, Lua e Tália” (BASILE, 1925) pode, em um primeiro
momento, chocar um leitor mais desavisado, pois se este pretendia encontrar aí os elementos
típicos de um conto infantil, acaba por se deparar com um enredo repleto de passagens cruéis,
violentas e uma história totalmente inapropriada para os padrões atuais de educação infantil.
Tália, filha de um grande senhor, é submetida às adivinhações de alguns sábios que o pai
chama em sua casa, logo após o seu nascimento, para que lhe dissessem a sorte. Estes sábios
preveem que Tália está exposta a um grande perigo relacionado a uma farpa de linho. Como
podemos notar, o dano é profetizado, ou seja, não há motivação ou vingança, como é o caso
do filme, no qual Malévola, a bruxa, determina que Aurora, a protagonista, espetará o dedo
em um fuso e morrerá, pois deseja vingança por não ter sido convidada para os festejos do
batismo da princesa. Voltando ao conto italiano, assim como no filme, o pai faz de tudo para
impedir que Tália entre em contato com o fuso que lhe causará tamanho mal. Porém chega o
dia em que a protagonista vai ao encontro de seu destino e espeta o dedo caindo morta em
seguida. O pai, desesperado, coloca Tália “em uma poltrona de veludo de baixo de um dossel
de brocado, no interior do próprio palácio, que ficava em um bosque” (BASILE, 1925) e em
seguida a abandona e vai embora para esquecer o “infortúnio sofrido” (BASILE, 1925).
Temos aqui um contexto bem diferente daquele reproduzido por Disney em seu longa-
metragem de animação. Em versões mais recentes da história já não há o abandono, pelo
contrário, são ressaltados os valores cristãos da família e o suporte desta em momentos de
dificuldade.
Passado algum tempo, um rei que estava caçando próximo à casa de Tália acaba
perdendo um falcão que voa e entra por uma das janelas. O rei, depois de chamar várias vezes
e sem ter resposta, decide subir e entrar por uma janela. Lá dentro encontra Tália adormecida
e sem ter sucesso ao tentar acordá-la, “colheu dela os frutos do amor” (BASILE, 1925) e
“deixando-a estendida” (BASILE, 1925) foi embora para o seu reino “onde por um longo
tempo não se recordou mais daquele assunto” (BASILE, 1925). Aqui temos o primeiro
momento do enredo que choca por sua violência e imoralidade. Ainda que dito por palavras
amenas, o que ocorre, está claro, é que o rei viola a protagonista durante o sono, ou seja,
temos uma cena de estupro e ela é narrada com toda naturalidade. Começamos a perceber a
3 O conto "Sole, Luna e Talia" está na coletânea Il Pentamerone ossia La fiaba delle fiabe (1634), de
Giambattista Basile (1575-1632). Todas as citações do conto são da tradução de Karin Volobuef feita a partir da edição em italiano preparada por Benedeto Crocce (Bari: Gius. Laterza & Filgi, 1925, vol. II. p. 297-303).
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diferença entre os narradores (o do conto italiano e o do filme) e mais, entre os receptores
desta história. É visível que “Sol, Lua e Tália” (BASILE, 1925) não era uma história para
crianças, ainda mais se levarmos em consideração que quando o conto foi coletado, no século
XVII, nem sequer havia a concepção de infância assim como entendemos hoje. Nesta época e,
principalmente, no meio camponês de onde estas histórias vieram em sua forma oral, as
crianças eram vistas como adultos em miniatura, não lhes era dispensado qualquer tipo de
atenção especial e começavam a ajudar nas tarefas domésticas e na lavoura assim que
atingiam idade suficiente. Portanto, percebemos que conforme a sociedade e seu
entendimento de mundo foram adquirindo outros contornos, o mesmo aconteceu com os
contos populares e, de certa forma, com a literatura em geral.
Após Tália sofrer seu segundo abandono passam-se nove meses (a primeira marca
temporal do texto) e a protagonista dá à luz duas crianças que são o tempo todo descritas por
meio de metáforas que fazem referência à sua beleza. Temos neste momento também uma
breve passagem contendo o elemento maravilhoso. Duas fadas “que apareceram no palácio”
(BASILE, 1925) ajudam as crianças a encontrarem o seio da mãe, porém, ao tentarem sugar o
mamilo, acabam sugando o dedo e retirando a farpa que mantinha Tália em um sono
profundo. Como podemos notar em toda a extensão do conto, os elementos maravilhosos são
muito escassos e, de maneira geral, ele é muito ligado à realidade. A aparição das fadas é
muito pequena e quase insignificante. Por outro lado, temos que ter em mente a relatividade
do conceito de elemento maravilhoso, pois o que hoje é para nós referência clara à fantasia,
graças aos avanços das ciências em geral e da medicina, pode ser que não tenha sido
interpretado da mesma forma pelo camponês do século XVII. O que queremos dizer é que o
sono de Tália, por exemplo, e o fato de ela ter gerado duas crianças nesse estado, poderia não
ser tão claramente impossível no entendimento do antigo ouvinte dessa narrativa. O camponês
daquela época estava acostumado à falta de controle sobre a vida e, principalmente, sobre a
morte, portanto pode ser que o sono inexplicável não fosse tão impossível assim aos seus
olhos.
Ao acordar, Tália não compreende seu estado, mas aparentemente não questiona.
Destaque-se aqui a passividade da protagonista que se manteve na versão fílmica. Tanto Tália
como Aurora parecem inertes diante dos acontecimentos que as atingem. Esta última, aliás,
nunca toma conhecimento sobre o perigo que corre graças à vingança de Malévola. O rei
então se recorda de sua “aventura” (BASILE, 1925) e volta para ver como Tália está e ao
encontrá-la com os dois filhos sente um “grande contentamento” (BASILE, 1925), explica a
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ela o que aconteceu e permanece em sua companhia por muitos dias. Note-se aqui a força da
família e da paternidade que promove a aproximação destes personagens. Ao voltar ao seu
reino só podia pensar em Tália e nos seus filhos. “Quando comia, tinha Tália em sua boca, e
também Sol e Lua [...]”(BASILE, 1925), assim como neste trecho, a antropofagia é motivo
recorrente neste conto, configurando mais um contraponto com a animação produzida pela
Disney.
Logo após a volta do rei para o seu castelo, nos é revelado outro fato importante: ele
é casado. Como não deixa de pensar e falar em sua nova família, o rei provoca a ira da rainha
que a partir de então passa a protagonizar a ação. Ao mesmo tempo em que a rainha busca por
vingança e utiliza meios cruéis e violentos contra Tália e seus filhos, por outro lado devemos
levar em consideração a atitude do rei em relação à sua esposa. Não há nenhuma centelha de
respeito ou consideração por parte dele, pelo contrário, ele trata a rainha com desprezo e
indiferença. Entretanto essas como todas as atitudes do rei nunca são contestadas, ainda que
sejam imorais. Notamos que há neste texto um resquício da hierarquia em que viviam
monarcas e súditos, pois quando a rainha chama o secretário e o ameaça para que ele conte
por quem o rei está apaixonado, o narrador declara: “E este, de um lado transtornado pelo
medo, de outro levado pelo interesse, que é uma faixa sobre os olhos da honra e da justiça, um
estorvo para a fidelidade, contou-lhe tudo tintim por tintim” (BASILE, 1925). Ou seja, é
esperado que o secretário aja com honra e justiça em relação a seus superiores, ainda que o
inverso não seja verdadeiro, isto é, o rei em nenhum momento é questionado por suas ações.
Informada pelo secretário sobre quem está ocupando os pensamentos de seu marido,
a vilã (que a todo momento é descrita por meio de figuras de linguagem, referências
mitológicas e históricas como “aquele coração de Medéia”, “carranca de Nero”, “turca
renegada” e “essa face de tirano” (BASILE, 1925), manda buscar os filhos do rei para que o
cozinheiro os mate, prepare e os dê de comer ao próprio pai, configurando aí outro episódio
antropofágico. O cozinheiro, com pena das crianças, as poupa, servindo ao rei dois cabritos
em seus lugares. Pensando que o rei está comendo os próprios filhos e crente de que
conseguiu realizar seu plano, a rainha exclama “Coma, que está comendo o que é seu”
(BASILE, 1925). O rei, cansado de ouvir, exclama: “Sei muito bem que estou comendo o que
é meu, porque você não trouxe nada para essa casa” (BASILE, 1925), evidenciando seu
desprezo pela esposa e fazendo uma referência à esterilidade desta que não trouxe alimentos e
muito menos filhos para aquela casa, já que não é mencionado que eles os possuam.
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Ainda não satisfeita com sua maldade, a vilã manda buscar Tália com o objetivo de
dar a ela o mesmo destino que acredita ter dado a Sol e Lua. Ao ficar frente a frente com a
protagonista, a rainha a acusa de lhe ter causado um grande dano e de ser a “boa relva com
que meu marido se delicia” (BASILE, 1925), outra referência antropofágica. Tália tenta se
explicar e diz que estava dormindo quando tudo aconteceu, mas a vilã não se importa e ordena
que acendam uma grande fogueira no meio do palácio à qual Tália deveria ser lançada. A fim
de adiar o dano, Tália pede à rainha que permita que ela retire suas vestes (recurso também
utilizado em As Mil e Uma Noites e “Barba Azul”) e a cada peça lança um grito. Assim que
Tália retira a última peça de roupa o rei chega ao castelo querendo saber o que estava
acontecendo, quando sua esposa o acusa de traição e conta como o fez comer os próprios
filhos. Aqui temos o clímax da história, pois é quando o rei entra em desespero por acreditar
ter cometido tamanha atrocidade, e ordena que sejam lançados na fogueira preparada para
Tália a rainha, o secretário e o cozinheiro. Neste momento este último revela que salvou Sol e
Lua, faz com que sua esposa os traga para a cena e pretende que o rei o perdoe. Este, muito
agradecido ao empregado, abraça os filhos e lhe dá uma grande recompensa: “[...] esteja
seguro de que o retirarei das tarefas de girar o espeto e o colocarei na cozinha do meu peito a
girar como lhe aprouver as minhas vontades [...]”(BASILE, 1925), ou seja, fez dele um
funcionário de confiança. No final da história, toma Tália como esposa e o narrador conclui
com uma pequena moral em versos que diz que esta aprendeu que “aquele que tem sorte, o
bem / mesmo dormindo, obtém” (BASILE, 1925).
Partindo desta moral em versos ao final do conto podemos perceber como o elemento
“sorte” tem peso nesta versão da história. Enquanto na animação A Bela Adormecida (1959)
valores como a bondade, a caridade e o amor ao próximo são ressaltados a todo momento
como necessários para uma vida plena e feliz, aqui percebemos que Tália obteve êxito no
final apenas porque este era o seu destino. Ela teve sua sorte prevista pelos adivinhos ao
nascer, por sorte foi encontrada no bosque por um rei que mais tarde a faria rainha, também
por esse mesmo motivo não teve os filhos mortos, pois estes encontraram em seu caminho o
cozinheiro que teve pena deles, por sorte o rei chegou a tempo e a salvou da fogueira
preparada pela rainha, e assim por diante.
Assim como nenhuma qualidade moral é ressaltada na protagonista, também
nenhuma qualidade física é mencionada. A não ser por uma única passagem, quando o rei a
encontra adormecida no bosque e fica “excitado por aquela beleza” (BASILE, 1925), este
atributo que mais tarde passou a fazer parte até mesmo do título do conto não tem grande
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relevância nesta versão mais antiga da história. Aliás, de modo geral ambas protagonistas são
muito passivas e outros personagens, principalmente as vilãs, acabam protagonizando a maior
parte da ação. Tália não age sobre seu destino e Aurora é poupada de todo mal durante toda a
extensão do filme.
Podemos comparar também outros personagens que sofreram importantes
transformações. O pai da protagonista, por exemplo. Em primeiro lugar devemos nos atentar
para o fato de que na versão fílmica temos uma família constituída por rei e rainha e é
exaltada a vontade destes de ter um filho, ou seja, um molde familiar muito mais de acordo
com os valores românticos e cristãos. Já em “Sol, Lua e Tália” (BASILE, 1925), não é
mencionada a mãe, ainda que fique claro que Tália é recém-nascida quando o rei chama os
adivinhos em sua casa. O fato de que o rei faz de tudo para tentar proteger a filha do perigo de
um fuso existe nas duas versões, porém depois de cumprido o destino, quando as
protagonistas caem em um sono profundo, a atitude da família é totalmente controversa. No
conto italiano o pai abandona Tália e somente tem o cuidado de mantê-la em uma posição
real, digna de uma rainha, sentada em uma poltrona e protegida apenas por um dossel. Já no
filme, quando Aurora espeta o dedo no fuso e adormece, as três fadas que cuidam dela
providenciam que os reis e toda corte também caiam em um sono profundo, pois acreditam
que seria um sofrimento muito grande para todos saberem que a princesa se encontra naquele
estado. Ou seja, temos em versões mais recentes da história esta solidariedade familiar e não
mais o abandono.
Podemos comparar também a figura do rei que encontra Tália adormecida com a do
príncipe Felipe, do filme. Em primeiro lugar a questão do título. O fato de o primeiro ser um
rei concede a ele um nível maior de responsabilidade e, principalmente maturidade. Já o
príncipe é jovem, logo, cheio de coragem e é mais predisposto a cenas de ação. E é justamente
o que acontece. O rei age conforme suas próprias vontades, o príncipe é movido por ideais
românticos. O primeiro invade a casa de Tália, ou seja, viola o espaço da protagonista para
logo em seguida violar a ela própria e depois simplesmente esquece o ocorrido. Já Felipe é
prometido em casamento a Aurora logo após o nascimento desta, configurando a ideia do
destino socialmente constituído, e, anos mais tarde, quando a encontra em um bosque e sem
se dar conta de que é a mesma pessoa, pois ela foi criada como uma camponesa para escapar
da maldição que lhe foi imposta, se apaixona por ela e se apressa em dizer ao pai que
encontrou a mulher de sua vida e que pretende se casar com ela. O rei de “Sol, Lua e Tália”
(BASILE, 1925) age como tal em cenas como na em que pensa ter comido os próprios filhos
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e ordena que todos os responsáveis por sua desgraça sejam lançados à fogueira. Enquanto no
filme Felipe tem que traçar uma verdadeira guerra com Malévola para chegar até Aurora e lhe
dar o beijo que a trará de volta à vida. O jovem príncipe combate, enquanto o rei apenas
ordena que suas vontades sejam cumpridas.
Quanto às vilãs, podemos dizer que houve uma suavização generalizada e que no
filme ela foi revestida de fantasia. Enquanto no conto de Basile a rainha arquiteta vários
planos a fim de atingir o rei e Tália devido à traição de ambos, Malévola é motivada por não
ter sido convidada para a festa de batismo da princesa, ou seja, uma razão muito mais amena.
Enquanto a rainha planeja matar os filhos de seu marido, dá-los de comer ao próprio pai e
depois fazer o mesmo com Tália, entretanto tudo o que Malévola quer é que sua maldição se
cumpra e que Aurora finalmente espete o dedo em um fuso e caia em um sono profundo.
Atenção também para o fato de que em “A Bela Adormecida” (1959) a vilã é responsável pelo
motivo central, que é o sono da princesa, porém em “Sol, Lua e Tália” (BASILE, 1925), não.
Vale destacar que, neste último, Tália adormece logo no início da história e a maior parte da
trama se concentra após o seu despertar, já no filme há toda uma trama a fim de evitar que a
maldição do sono se cumpra e Aurora só encontra seu destino depois de passados cerca de
cinquenta minutos do longa-metragem.
Portanto chegamos à conclusão de que, como ocorreu com os contos populares em
geral, houve uma amenização em vários níveis com o objetivo de transformar uma história
com a organização de “Sol, Lua e Tália” (BASILE, 1925) em uma história infantil e
romanceada. Além do mais, notamos que enquanto o conto italiano é bem próximo à
realidade, ainda que muito cruel e violento, o filme A Bela Adormecida (1959) é cheio de
fantasia e com passagens mágicas. A vilã, que no conto de Basile se apresenta como uma
mulher infértil, amargurada e com desejo de vingança, se transforma, no filme, em uma bruxa
que, segundo as três boas fadas que cuidam de Aurora, não conhece nada sobre o amor, a
gentileza e a alegria de ajudar o próximo. E estas virtudes são vistas, no filme, como pré-
requisitos para a realização pessoal. Já em “Sol, Lua e Tália” (BASILE, 1925), o que se
percebe é que um destino implacável age sobre a protagonista e esta vai sendo levada como
que por uma correnteza, só atingindo a felicidade porque foi, por sorte, levada até lá.
Se nos atentarmos para os espaços explorados nas duas obras veremos que o conto
também é muito cinematográfico. Na cena em que o pai abandona Tália isto fica bem claro:
[...] o desventurado pai, após ter chorado um barril de lágrimas, assentou Tália em uma poltrona de veludo debaixo de um dossel de brocado, no
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interior do próprio palácio, que ficava em um bosque. Depois, cerrada a porta, abandonou para sempre a casa, motivo de todos os seus males, para apagar completamente de sua lembrança o infortúnio sofrido. (BASILE, 1925)
Temos neste trecho uma projeção dos espaços, do menor para o maior, em que
sentimos como se presenciássemos um distanciamento da câmera de um filme. Os espaços
poltrona, dossel, palácio e bosque nos dão essa sensação e os atos de fechar a porta e partir do
pai nos parecem muito nítidos da maneira como são descritos. Também em outros momentos
o conto nos apresenta esta mobilidade: quando Tália avista de uma janela uma velha que fiava
e ordena que a chamem “para que subisse até ela” (BASILE, 1925); quando o rei perde seu
falcão, pede que tragam uma escada pois “quis subir pessoalmente à casa e ver o que
acontecia lá dentro”, e “após subir e entrar” (BASILE, 1925) encontra Tália adormecida; o rei
ao irritar-se com a rainha “levantou-se encolerizado, dirigiu-se a uma aldeia um pouco
distante para tranquilizar-se” (BASILE, 1925). Podemos até nos ariscar a dizer que, devido ao
ano de produção do filme e os ainda escassos recursos de animação utilizados na época, o
filme é menos articulado espacialmente que o conto, e nos apresenta uma grande quantidade
de cenas nas quais o espaço é bem delimitado e mostrado na tela em sua totalidade.
Estes são alguns contrapontos entre estas duas manifestações desta história tão
conhecida. Notamos que com o passar do tempo houve uma adaptação do enredo no sentido
da literatura infantil e, neste caso, do cinema infantil. É claro que não houve um salto, entre
estas duas obras outras foram publicadas no mundo todo e todas convergem ao tratarem o
tema do sono inexplicável ou amaldiçoado. Assim como outras histórias populares, “A Bela
Adormecida” pode ser encontrada em diversas partes do mundo, sendo que cada povo
ocupou-se de adaptá-la à sua cultura. Este breve estudo buscou espelhar duas versões da
história mais afastadas cronologicamente a fim de mostrar a importância de um estudo
diacrônico quando se trata dos contos de fadas. “Sol, Lua e Tália” sofreu cortes, suavizações,
metaforizações e amenizações até encontrar sua forma mais conhecida atualmente que é o
filme de Disney e é importante entender que cada alteração feita através do tempo nos ajuda
na compreensão dos valores embutidos em cada mudança e que muitos elementos contidos
nestas histórias refletem a mentalidade de sua própria época.
REFERÊNCIAS: A BELA ADORMECIDA. Direção: Clyde Geronime. EUA: Walt Disney Animation Studios, 1959.
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BASILE, Giambattista. "Sole, Luna e Talia". In: ______. Il Pentamerone ossia La fiaba delle fiabe (1634), de (1575-1632). Edição em italiano preparada por Benedeto Crocce. Bari: Gius. Laterza & Filgi, 1925, vol. II. p. 297-303. ______. Sol, Lua e Tália (1925). Tradução de Karin Volobuef. Araraquara: Faculdade de Ciências e Letras/UNESP, s.d. Trabalho não publicado.
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Durante a noite, a mata é um lugar perigoso: a topofobia em O Saci, de Monteiro Lobato
Bruno Silva de OLIVEIRA (PMEL - UFG/CAC - FAPEG)
RESUMO: O medo, para alguns críticos como David Roas e H. P. Lovecraft, é um sentimento intrínseco e indispensável na literatura fantástica, enquanto que para Tzvetan Todorov, ele é uma sensação recorrente, mas não essencial para a constituição do modo. Teóricos a parte, concorda-se que o medo, através do sobrenatural ou do metaempírico, é utilizado para se instaurar a incerteza e/ou estranhamento, elementos intrínsecos a literatura fantástica. O sobrenatural pode ser inserido por diversos meios, seja pelo enredo, pelo narrador, pelas personagens e/ou pelo espaço; sendo este último elemento diegético muito requisitado nos atuais estudos acerca do Fantástico. Quando se pensa em espaço fantástico na Literatura Brasileira logo vem à mente o Sítio do Picapau Amarelo, criado por Monteiro Lobato. Um dos espaços mais insólitos da literatura, onde tanto as personagens como o leitor são levados a ter um devaneio coletivo por meio da narrativa envolvente de um dos maiores expoentes da literatura infanto-juvenil brasileira. O autor criou personagens iconográficos para a cultura do país, além de reiterar e/ou (re)inventar um imaginário que até hoje é (re)visitado por inúmeros leitores. Uma das obras que na qual o autor toma emprestado o imaginário popular é O Saci (1921), nesta narrativa, o espaço não é o Sítio, um lugar topofílico; pelo contrário, é no espaço topofóbico da mata que os principais acontecimentos ocorrem. Tendo isso em mente, esse trabalho objetivará discorrer como o medo é instaurado na narrativa e quais recursos fantásticos são utilizados para tal. PALAVRAS-CHAVE: Monteiro Lobato; medo; mata; noite; Literatura infanto-juvenil. ABSTRACT: Fear, for some critics like David Roas and H. P. Lovecraft, is an intrinsic and indispensable feeling in Fantastic Literature, while for Tzvetan Todorov, it is a recurring sense, but not essential to its constitution. Apart from theory, it is common sense that fear, through supernatural or metaempiricism, is used to introduce uncertainty and/or estrangement, elements intrinsic to Fantastic Literature. The supernatural can be inserted in various ways, either by plot, narrator, characters and/or space, being this last diegetic element much in demand in the current studies on the Fantastic. When thinking about the fantastic space in Brazilian Literature, Sitio do Picapau Amarelo, by Monteiro Lobato, comes to mind. It is one of the most unusual spaces in Literature, where the characters and the reader are taken to a collective reverie through an engaging narrative by one of the greatest exponents of Brazilian Children and Youth Literature. The author created iconographic characters for the culture of the country, in addition to repeating and/or (re)inventing an imaginary that is still (re)visited by countless readers. One of the works, which the author borrows from the popular imagination is O Saci (1921), in this narrative, the space is not Sítio, but a topophobic space, the forest, where major events occur. Keeping this in mind, this paper will aim to discuss how fear is introduced into the narrative and which fantastic features are used for such purpose. KEYWORDS: Monteiro Lobato; fear; forest; night; Children and Youth literature.
Monteiro Lobato é o maior expoente da Literatura infanto-juvenil brasileira, sendo
um marco na produção nacional do gênero, podendo esta ser dividida em antes e depois do
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criador do Sítio do Picapau Amarelo e de todas as personagens que habitam e/ou transitam por
esse espaço. Marisa Lajolo e Regina Zilberman, em Literatura infantil brasileira (2007, p.
55), fazem uma afirmativa redundante, mas muito pertinente a este estudo: que o ponto
irradiador de toda ação presente nas obras lobatianas é o Sítio do Picapau Amarelo, de
propriedade de Dona Benta, espaço este que abarca a maioria das personagens criadas por
Lobato, muito famoso dentro e fora das narrativas, pois atrai a atenção de personagens que
vivem além da cerca do sítio de Dona Benta, sejam elas de outros países e de outras narrativas
como pode ser observado em O Picapau Amarelo (1939), no qual as personagens dos contos
de fadas decidem se mudar para o Sítio.
Portanto, o sítio de Dona Benta é um espaço caracterizado como topofílico, como
teoriza Ozíris Borges Filho, em Espaço & literatura: introdução à topoanálise (2007, p. 158),
em que as personagens que ali transitam se sentem bem e protegidas, este espaço é agradável,
aconchegante e possibilita o desenvolvimento agradável e eufórico das mesmas. Segundo
Mariana de Gênova, em O Picapau Amarelo: o espaço ideal e a obra-prima (2009), “o Sítio é
o local em que os personagens planejam, transitam e do qual partem para suas viagens, bem
como o lugar a que retornam, finda a aventura.” (p. 415). Pedrinho, neto de Dona Benta, não
concebe passar férias em outro lugar senão o sítio de sua avó, espaço este localizado em um
“lugar muito bonito. A casa era das mais antigas, de cômodos espaçosos e frescos.”
(LOBATO, 2007, p. 13). Esse espaço não é apenas topofílico para as personagens, mas para
os leitores e para o próprio autor, como Lajolo & Zilberman (2007) expõem, o Sítio do
Picapau Amarelo é uma agradável metáfora construída por Lobato para ele e para seus
leitores, pois,
[...] o sítio é idílico, o que se deve a uma soma de elementos característicos da arquitetura da obra e da visão de mundo lobatiana. [...] Ele é integralmente o Brasil, estando embutido nele tudo que Monteiro Lobato queria representar da pátria. [...] o sítio significando cada vez mais o mundo como Lobato gostaria que fosse. (LAJOLO; ZILBERMAN, 2007, p. 57).
Gênova (2009, p. 416) concorda com esse posicionamento, pois o leitor imerge em
um espaço plural e polivalente, que não é apenas um pano de fundo para o desenvolvimento
da diegese, mas um elemento pelo qual Lobato realiza uma crítica a diversos setores da
sociedade. Entretanto, não é só em espaços topofílicos que as narrativas fantásticas de
Monteiro Lobato se desenvolvem; por exemplo, no livro O Saci (1921), mesmo iniciando a
narrativa no Sítio do Picapau Amarelo, a obra segue na contramão das narrativas, pois nela
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predomina o espaço topofóbico da mata. Nota-se, então, que o autor dedica uma atenção
especial na composição deste elemento diegetico, pois o mesmo exerce “uma função
significativa que ultrapassava aquela condição de pintura de paisagem, nascendo daí a
necessidade de se examinar com atenção o papel desempenhado por ele nas narrativas.”
(GOULART, 2012, p. 58). Deste modo, este estudo se propõe a análise o espaço da mata na
obra O Saci, vislumbrando como se constrói o sentimento fóbico a partir deste elemento
diegético. Para tal, expor-se-á o conceito de espaço que norteará esta análise e a importância
do mesmo na narrativa fantástica.
ESPAÇO, LITERATURA E FANTÁSTICO
Nas atuais pesquisas sobre teorias literárias que abordam a questão do espaço, pensar
que esse elemento diegético é apenas um pano de fundo para a ação das personagens ou para
situar as mesmas, beira a blasfêmia; mas já houve épocas em que ele era pensado apenas
como um elemento acessório, de baixa importância, colocado à margem das análises, mas
esse fato não se restringia apenas à literatura, tal marginalidade se aplicava também à filosofia
e outras áreas do conhecimento.
Atualmente, vislumbra-se o espaço com outros olhos, com importância para o
desenvolvimento e a análise, salienta-se interdisciplinar, da narrativa. Afrânio Coutinho
(2008, p. 60) em Notas de teoria literária, afirma que é inegável a influência do espaço na
narrativa e nos elementos que a compõem, pois a personagem é fruto de seu meio, e através
deste que ela extrai as motivações para as suas ações; se o espaço da narrativa muda, os fatos
e as ações acompanham esta transformação. É a partir do espaço que o homem se materializa,
o primeiro “só existe porque se faz natureza em que o homem penetra.” (GOULART, 2012, p.
58).
Por mais que os estudos acerca do tempo sejam mais antigos, destaca-se a
importância do espaço face ao tempo, pois a linguagem tem a sua funcionalidade ligada ao
tempo, mas essa se corporifica por meio do espaço. Visto que os componentes da linguagem
só possuem sentido a partir de uma cadeia sincrônica, o valor semântico de uma palavra ou
expressão só são inferidos por meio do espaço (contexto), portanto “o que permite a um signo
ser signo não é o tempo, mas o espaço.” (FOUCAULT, 2005, p. 168). Além disso, o tempo se
materializa no espaço, pois nota-se a passagem do tempo através de seus efeitos no espaço:
observe as mudanças ocasionadas pelo ciclo das estações; elas só são notadas a partir de seus
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efeitos no espaço, pois do verão para o outono, as folhas das árvores ficam amareladas; do
outono para o inverno, as mesmas caem e do inverno para a primavera, as folhas e as flores
renascem.
O espaço desempenha diversas funções na narrativa, as quais Borges Filho (2007)
elenca: ele irá caracterizar as personagens que nele estão inseridas, situando as mesmas para o
leitor no contexto sócio-econômico e psicológico em que estas vivem; ele vive uma relação
dicotômica com as personagens, pois é influenciado e influencia ao mesmo tempo; propicia a
ação das personagens; localiza geograficamente as personagens; representa e, às vezes, até
contrasta (com) os sentimentos das personagens e antecipa a narrativa (BORGES FILHO,
2007, p. 34-42).
Para Marisa Martins Gama-Khalil (2012) em “As teorias do fantástico e a sua relação
com a construção do espaço ficcional”, um dos principais meios para instaurar o insólito, por
meio do sentimento de hesitação, é o espaço. O leitor ao se propor percorrer a prazerosa
jornada que é a leitura de uma obra fantástica, segundo Tzvetan Todorov, em Introdução à
literatura fantástica (2008), ingressará em um mundo similar ao nosso, estranhamente
idêntico ao que conhecemos, só que permeado por acontecimentos inexplicáveis pelas leis
naturais; nessas narrativas “a hesitação experimentada por um ser que só conhece as leis
naturais, face a um acontecimento aparentemente sobrenatural” (TODOROV, 2008, p. 31)
instaura na mente do leitor uma dúvida que ele não conseguirá responder sem tomar um
posicionamento.
No fantástico, o leitor é levado a interagir com as personagens da obra que lê, a
explorar territórios diferentes de sua realidade imediata, desfocando a sua visão de realidade,
deixando o seu pensamento turvo. O espaço ficcional incita o leitor a reler o “seu” espaço e as
leis naturais por ele regido; isso se dá a partir da reflexão acerca do próprio espaço “irreal e
insólito” que ele está lendo (GAMA-KHALIL, 2007, p. 37). Todorov (2008) afirma também
que “o fantástico implica, portanto, não apenas a existência de um acontecimento estranho,
que provoca hesitação no leitor e no herói; mas numa maneira de ler, que se pode ora definir
negativamente: não deve ser nem ‘poética’, nem ‘alegórica’.” (TODOROV, 2008, p. 38).
A partir destas afirmações, pode-se depreender que as obras de Monteiro Lobato que
têm o Sítio do Picapau Amarelo como espaço são, por excelência, obras pertencentes ao modo
fantástico, pois, como afirma Nelly Novaes Coelho no Dicionário crítico de Literatura
infantil e juvenil brasileira (1984) “um dos maiores ‘achados’ da criação lobatiana foi a
anulação de fronteiras entre a vida real, conhecida de perto pelo leitor, e o espaço
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maravilhoso, que é próprio da literatura infantil tradicional.” (p. 726). O leitor é levado para o
Sítio do Picapau Amarelo, um lugar próximo e conhecido para todos, mesmo que seja para o
leitor de primeira viagem. Neste lugar, coisas estranhas e assombrosas acontecem a todo
momento, como bem fala Dona Benta acerca do encolhimento da humanidade, em A chave do
tamanho (2008), “não é a primeira vez que nos encontramos em situação esquisitíssima.
Quantas coisas se têm passado nesta casa! Até pelo céu vocês já andaram, brincando de
escorregar nos anéis de Saturno” (LOBATO, 2008, p. 92).
Mas o foco deste artigo não é o idílico Sítio de Dona Benta, e sim o espaço
topofóbico da mata, que segue as mesmas leis constitutivas deste espaço topofílico tão
recorrente na obra lobatiana.
A MATA ENQUANTO ESPAÇO TOPOFÓBICO NA OBRA LOBATIANA: O SACI
Em 1921, Monteiro Lobato publica o livro O Saci, reunindo em suas páginas uma
coletânea de personagens folclóricos, visando apresentar e difundir as mesmas para o público
infanto-juvenil. A história é centrada em Pedrinho, neto de Dona Benta, e seu contato com as
entidades sobrenaturais do folclore brasileiro que permeiam a mata próxima ao Sítio do
Picapau Amarelo.
O espaço da mata desde o início da obra é apresentado como misterioso, habitado por
feras, lendas e mitos, em clara contrapartida ao Sítio, pois, como afirma Yi-Fu Tuan (2005, p.
129), em Paisagens do medo, “Os campos cultivados representam o mundo família e
humanizado. Ao contrário, a floresta circundante parece estranha, um lugar de possíveis
estrangeiros perigosos.” Nela há o desconhecido e o diferente. Pedrinho, personagem descrito
como corajoso, curioso e que não tem medo de nada, a não ser de vespa, não conhece a mata,
mas nutre uma curiosidade por esta. Ao expor o intento de se aventurar por tal espaço, é
persuadido pela avó a não ir, pois ali há onças, cobras, entre outros animais selvagens e
ferozes; advertência essa que não surte efeito no menino, até a velha senhora tocar no fato que
ali também habita sacis. Essa informação gera medo e curiosidade na personagem, que passa
a reunir mais informações acerca do mesmo, principalmente com Tio Barnabé, entre essas as
de como capturar um saci e colocá-lo a seus serviços.
Pedrinho, munido das informações coletadas, captura um saci que, de imediato não
aparece dentro da garrafa na qual fora aprisionado. Um dia, o menino engana a avó e vai para
a mata virgem que tanto o fascina; ele a descreve como um lugar imponente, composto de
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velhas árvores, com raízes que lembravam sucuris, habitada por pássaros, macacos, entre
outros animais. Encantado com tal beleza e diversidade deste espaço, ele cai na modorra
(adormece), propiciando o aparecimento do saci dentro da garrafa, que está irriquieto dentro
da mesma, pois o menino está em um lugar muito perigoso, o meio da floresta, ponto de
encontro das diversas entidades noturnas que ali moram.
Não há tempo para Pedrinho regressar ao sítio, além do que este não sabe o caminho
para voltar, pois “A floresta é um labirinto através do qual se arriscam os caminhantes. Eles
podem literalmente perder-se [...]” (TUAN, 2005, p. 129) e, consequentemente, padecer. O
Saci oferece sua ajuda com a condição de que o menino devolvesse sua carapuça, a fonte de
seus poderes que esse havia lhe tirado para ter domínio sobre o ser folclórico. Com o acordo
firmado, Pedrinho e o leitor são levados por um passeio pela mata tendo como guia o Saci. A
partir deste momento, Lobato passa a elaborar uma cartilha sobre o folclore e a cultura
caipira, a qual diversos autores ao escrever sobre o tema utilizam como fonte teórica.
Entretanto, ao desenvolver a obra, o autor, por diversas vezes, não segue as versões
tradicionais consagradas pela cultura popular: veja o caso da personagem Saci, que tem suas
características demoníacas abrandadas, pois o autor infantiliza tal entidade.
A listagem dos elementos apresentados por Lobato pode ser dividida em dois
subgrupos: os de hábitos diurnos e os de hábitos noturnos; sendo os diurnos as entidades reais
como onças, sucuris, entre outros animais, e os noturnos são os sacis, a mula sem-cabeça, o
lobisomem, o curupira, a caipora, entre outros seres folclóricos. Tanto a vida diurna quanto a
noturna são descritas por Pedrinho como agitadas, mas Lobato se atem mais à noturna, pois
“[...] a noite o era de verdade - das imensas, das completamente escuras, apenas com aqueles
vaga-lumes parados no céu que os homens chamam estrelas...” (LOBATO, 2007, p. 39).
A ausência de luz permite que os “filhos das trevas” possam caminhar livremente.
Jean Delumeau (2009), em História do medo no ocidente, afirma que a falta de luz libera e
aumenta a atividade imaginativa do homem, fazendo com que este se confunda mais
facilmente e veja o que não existe; os limites entre o real e o imaginário, a ficção e a realidade
estão borrados. Ainda segundo Delumeau (2009, p. 138-139), a noite com seu manto escuro
coloca os demônios, os ladrões, os assassinos e as feras sob sua proteção, permitindo que
estes caminhem livremente. Os seres insólitos que povoam a mata e podem atentar contra a
vida de Pedrinho surgem apenas durante à noite, e este tem consciência disso. Observa-se tal
fato nos seguintes excertos extraídos da obra: “Apesar de valente, Pedrinho não deixou de
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sentir um certo arrepio pelo corpo. Primeira vez na vida em que ia passar uma noite inteira na
mata — e não seria uma noite comum, pelo que dizia o saci.” (LOBATO, 2007, p. 50).
E vai deixar-me sozinho aqui? — murmurou o menino de dentro do seu esconderijo, procurando dominar o medo. Com o amigo perneta ao lado sentia-se seguro; mas ficar, por minutos que fosse, entregue a si próprio, naquela mata cheia de mistérios e ainda mais naquela hora sinistra da meia-noite, era duro de roer. Pedrinho, entretanto, dominou-se e disse, fazendo das tripas o coração: — Pois vá, mas não se demore muito porque... porque gosto muito da sua prosa, ouviu? (LOBATO, 2007, p. 55).
Ele teme ficar sozinho durante a noite dentro da mata, a qual está infestada de seres
fóbicos que povoam o nosso imaginário, e ter um guia sobrenatural ajuda-o a ter confiança
para transitar e observar os elementos que compõem esse espaço.
O único ser imaginário que aparece durante o dia é o Saci, que guia e acompanha o
menino no decorrer da narrativa, devido a um acordo firmado entre os dois. Isso não significa
que todo saci é amigável e prestativo, pois, como Tio Barnabé fala quando indagado por
Pedrinho acerca do menino perneta, “O saci — começou ele — é um diabinho de uma perna
só que anda solto pelo mundo, armando reinações de toda sorte e atropelando quanta
criatura existe. Traz sempre na boca um pito aceso, e na cabeça uma carapuça vermelha.”
(LOBATO, 2007, p. 21); e “O saci não faz maldade grande, mas não há maldade pequenina
que não faça.” (LOBATO, 2007, p. 22). Nota-se, então, uma duplicidade do Saci e como ele
age no decorrer da história: há o Saci que é infantilizado, tendo suas características
demoníacas abrandadas pelo autor, que acompanha Pedrinho, sendo este o único a aparecer
durante o dia; e os sacis que realizam traquinagens e malfeitos, que aparecem só a noite e que
habitam o imaginário popular.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A mata (ou a floresta) é a representação de uma força ancestral, que não deve ser
perturbada, ela esconde mistérios e seres reais e (in)imaginários, que podem violar a
integridade física e psicológica do individuo que nela adentra. Gaston Bachelard (1978, p.
317), em A poética do espaço, cita Marcault e Thérèse Brosse acerca da floresta: “sobretudo,
com o mistério de seu espaço indefinidamente prolongado além da cortina de seus troncos e
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de suas folhas, espaço encoberto para os olhos, mas transparente para a ação, é um verdadeiro
transcendente psicológico.”
A exposição de Bachelard dialoga claramente com a de Delumeau (2009); a floresta
com suas altas árvores detentoras de densas copas não permitem que a luz entre nesse espaço,
deixando-o escuro, dificultando o funcionamento do sentido da visão, permitindo que este
pregue uma peça no homem, o que ocasiona o devaneio do mesmo, tanto em seu aspecto
positivo como no negativo.
Pedrinho, ao entrar na mata, passa a ter contato com animais e seres que até aquele
momento não conhecia, seres muito antigos, que ali vivem há muito mais tempo que ele ou
sua avó, isso para tecer um ínfimo ponto de comparação. A mata por si só é um espaço fóbico,
pois ali mora o antigo e o desconhecido, quase ninguém vai ali e não se sabe o que se pode
encontrar, é o habitat natural de feras e animais selvagens da fauna brasileira que claramente
podem atentar contra a vida de quem cruza as suas fronteiras. Ao unir forças com a noite,
espaço recorrente da literatura fantástica utilizado para instaurar uma aura de estranhamento e
medo, a mata tem seu poder fóbico ampliado exponencialmente, pois passa a ser habitada por
seres sobrenaturais que podem e vão, assim que possível, atentar contra a vida de algum
homem. É um espaço que deve ser respeitado e visto com cautela, pois como já dito, é um
lugar que guarda muitos segredos e seres fóbicos.
REFERÊNCIAS: BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. In.: BACHELARD, Gaston. A filosofia do não; O novo espírito científico; A poética do espaço. Traduções de Joaquim José Moura Ramos et al. São Paulo: Abril Cultural, 1978 . p. 182- 354. BORGES FILHO, Ozíris. Espaço & literatura: introdução à topoanálise. Franca, SP: Ribeirão Gráfica e Editora, 2007. COELHO, Nelly Novaes. Dicionário crítico da Literatura infantil e juvenil brasileira. São Paulo: Ibep, 1984. COUTINHO, Afrânio. Notas de teoria literária. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2008. DELUMEAU, Jean. História do medo no ocidente 1300-1800: uma cidade sitiada. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. FOUCAULT, Michel. Linguagem e literatura. In: MACHADO, Roberto. Foucault, a filosofia e a literatura. 3. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. p. 137-174.
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A expectativa pelo sobrenatural em Anátema e O esqueleto de Camilo Castelo Branco
Caroline Aparecida de VARGAS (UFPR)
RESUMO: As obras Anátema (1851) e O Esqueleto (1865) de Camilo Castelo Branco (1825-1890), apresentam elementos que as inscreveriam em uma tradição literária gótica. Como exemplo, podemos citar a presença de cenas aterrorizantes, a atmosfera de mistério construída ao longo da narrativa; a ambientação em espaços inóspitos e castelos medievais, e a aflição constante em que se encontram inúmeras personagens que alimentam medo de serem punidas pela providência divina. Especialmente essa expectativa de punição, recorrentemente exposta ao longo da narrativa, faz com que o leitor também partilhe da mesma aflição vivenciada pelas personagens. Além de se esperar por funestos acontecimentos, a alusão à elementos sobrenaturais, como o divino e o demoníaco, cria a expectativa de que o “inexplicável” seja motivado por alguma instância sobre-humana. Porém, o "sobrenatural por acontecer", criado por uma sucessão de acontecimentos, não se realiza. Os fatos trágicos que ocorrem ao final das duas obras são resultado apenas da ação humana, apesar de as personagens acreditarem no contrário. O presente trabalho tem como intenção analisar a construção da expectativa pelo sobrenatural, examinando mais a fundo a descrição dos espaços e a caracterização das personagens e de suas crenças. Desejamos ainda compreender de que forma a quebra da expectativa do leitor pelo sobrenatural pode significar a não total adesão do narrador camiliano à tradição gótica. PALAVRAS-CHAVE: Camilo Castelo Branco; Anátema; O Esqueleto; gótico; expectativa do leitor. ABSTRACT: The novels Anátema (1851) and O Esqueleto (1865) by Camilo Castelo Branco (1825 – 1890) present elements that may classify them in the gothic literary tradition. The presence of terrorizing scenes, the mystery atmosphere created throughout the narrative, the inhospitable environments and medieval castles used as setting, and the constant affliction felt by countless characters that fear the punishment of the Divine Providence are some examples. Particularly, the expectation of punishment recurrently exposed during the narrative, makes the reader experience the same distress lived by the characters. Besides the prospect of tragic events, the allusion to supernatural elements, such as the divine and the evil, creates the expectation that the “inexplicable” is motivated by a supernatural power. However, the “supernatural about to happen”, created through a sequence of events, never comes to happen. The tragic events that occur at the end of the two narratives are only the result of human actions, though the characters think otherwise. The present article analyzes the construction of the supernatural expectancy by examining deeply the description of the environments and the representation of the characters and their beliefs. It is also the objective of this research to understand how the breach of the reader’s expectancy for the supernatural may mean that the author doesn’t fully adhere to the gothic tradition. KEYWORDS: Camilo Castelo Branco; Anátema; O Esqueleto; gothic; reader’s expectancy.
Em algumas obras do escritor português Camilo Castelo Branco (1825-1890)
entrevemos elementos pertencentes ao chamado estilo gótico. Segundo Maria Leonor
Machado de Souza o romance gótico:
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[...] é essencialmente um romance sentimental, em cuja intriga de amor intervêm o sobrenatural e o misterioso, geralmente a serviço de potências maléficas, mas que não conseguem destruir os herois, assistidos pela justiça imanente que protege a virtude. A razão do termo "gótico" foi a preocupação de reconstituir o ambiente medieval, cuja feição considerada mais característica, a superstição, permitia aos escritores, e não em pequeno número e importância às escritoras, obter os efeitos de mistério, terror e sobrenatural que caracterizam a escola. Criação do século XVIII, orientada ainda pelo ideal trágico do classicismo, a escola gótica procurava excitar terror (pelo manobrar do misterioso e do sobrenatural e pela alimentação constante da expectativa – suspense) e compaixão (pelas desgraças da heroína, modelo de virtude e abnegação). (SOUZA 1979, p. 7).
Anátema (1851) e O Esqueleto (1865), ambos escritos pelo romancista português,
apresentam em seus enredos cenas aterrorizantes que levam o leitor a esperar pelo desfecho
trágico. Ao ler tais romances, somos tomados pela angústia que sentem as personagens e,
junto com elas, tememos pela intervenção maligna do sobrenatural. A alimentação da
expectativa, de que Maria Leonor nos fala, deve-se, nessas duas obras de Camilo, à soma de
descrições de ambientes assustadores, geralmente em ruínas, com a crença supersticiosa das
personagens em maldições e em castigos divinos para pecados cometidos.
O objetivo deste trabalho é compreender como tal expectativa é construída e também
como é quebrada, já que o sobrenatural, tão esperado por nós leitores como possível elemento
decisivo para o desfecho dos romances, não acontece. Tentaremos ainda entender o que essa
recusa do narrador camiliano pelo sobre-humano pode significar.
AMADIÇOADOS TALVEZ?
Anátema, primeiro romance de Camilo, nos fala da estória de uma família. Inês, filha
de Cristóvão da Veiga, é uma jovem que apaixona-se pelo Conde de São Vicente, Manuel da
Távora. O romance não é aprovado por Cristóvão, o que ocasiona a fuga de Inês. Ela sai de
casa e vai para o castelo pertencente aos Távoras, em companhia de Manuel. A descrição do
castelo cria uma atmosfera de mistério antes mesmo que qualquer fato trágico se apresente na
narrativa:
Vai alta noite. As escarpas cinzentas, que formam a eterna peanha de Vila Real, rugem uma toada soturna e sussurante; é o frémito dos pinhais e dos arbustos balouçados pelo sopro cortante e gelado do Marão. Mais longe desenha-se, sob o esplendor indeciso da lua, o vulto pardacento, fantástico e movediço do castelo dos Távoras. Na base despenha-se o regato que muge,
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soberbo da sua onda, engrossada pelas águas do céu: é o retrato do homem improvisado na sua majestade caduca. De entre as matas e florestas surdem guinchos melancólicos de aves, que parecem lamentar-se na sua perpétua condição das trevas. E ao poente, nuvens, que tétricas e carregadas, coroam os cabeços das serras, mais tarde crescem, recrescem, e absorvem o fulgor mortiço das estrelas. (CASTELO BRANCO, 1970 p. 83).
O castelo está circundado por árvores que parecem ter vida própria, por um regato
também humanizado e por pássaros que ganham consciência para exprimir sua melancolia. A
descrição da natureza como algo animado e misterioso nos permite esperar pelo sobrenatural
pois, se o usualmente inanimado tem vida nesse cenário, então outros acontecimentos não
explicáveis racionalmente podem ser apresentados de forma verossímil. O castelo aparece-nos
como um local perfeito para a permanência de um casal perturbado por pressentimentos não
justificáveis como é o caso de Inês e Manuel.
A expectativa por algo terrível, sem nenhum motivo aparente, deixa-se apreender em
um diálogo momentos antes da fuga do casal para o castelo, ainda em casa de Inês da Veiga,
quando ela afirma:
Conde...eu tremo, e sofro cruelmente. Oh meu Deus!...ouvi uma cousa nova...Tu...traires-me...a mim que não posso amar-te mais! – Inês!...não me compreendeste...Condói-te de mim, que essas lágrimas martirizam-me...Eu!...o teu traidor!...Por Deus, que este pensamento é uma inspiração do demônio... Não era inspiração do demônio. Era o espinho acerbo do pressentimento, surdo de rasgar de fibras, mordedura de víbora que sangra e cauteriza momentaneamente. Desciam lágrimas na face de ambos, era de ambos o terror; mas escondiam-no, calavam-no, e nenhum queria dizer: Brada-me uma voz inteligível nos abismos da alma; não a compreendo; mas o som do falar de mortos deve ser assim!... (CASTELO BRANCO 1970, p. 122).
Como o próprio narrador nos indica, o casal espera por algo ruim em um futuro
próximo e a ida para o castelo descrito como um lugar sombrio parece transformar a sensação
de Inês e Manuel em algo real. Não nos parece possível que alguém possa ser feliz em um
local sinistro como o castelo dos Távoras; muito pelo contrário, o ambiente inóspito parece
reforçar o terror do casal.
O temor de Inês é ser abandonada por Manuel, pois o rapaz prometeu casar-se com
ela quando estivessem a salvo em sua propriedade. Para oficializar a promessa o conde dá a
jovem o anel que indica seu título de nobreza. Durante a fuga o anel cai da mão de Inês e a
garota interpreta o fato como um sinal de agouro. O narrador conta-nos o episódio:
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D. Inês da Veiga sentira escorregar-lhe o anel dos desposórios; caiu-lhe; queixou-se; e pediu que lho procurassem, por tudo quanto havia de sagrado. Foi bem procurado: rastejaram, como serpentes pela lama da rua, os dois lacaios, o escudeiro, e o próprio conde: mas não encontraram o anel. A garantia do juramento estava perdida! O que eles sentiram ninguém o sabe... Pensamentos amargurados, recônditos na escuridade do coração, como o anel nas trevas da noite. (CASTELO BRANCO, 1971 p. 127).
A cena parece funcionar como um oráculo, como uma antecipação dos
acontecimentos futuros, provavelmente funestos. A perda do anel, ao menos para o casal,
simboliza sua separação, que de fato ocorrerá.
A expectativa pela tragédia só faz aumentar com a justaposição de cenas que pioram
o estado da aflita Inês. A travessia de um rio caudaloso a caminho do terrível castelo é
marcada pela aproximação da morte, pois a heroína e seu cavalo são levados pela água. Em
uma cena turbulenta o horror domina a garota e consequentemente o leitor. Diz-nos o
narrador:
Inês julgou-se morta; e, como essas almas marasmadas de remorso, que vêem visões do inferno, petrificou-se, digamo-lo assim, no frenesi da agonia! As unhas, consistentes de ferro, na vertigem do terror, cravaram-se nas crinas do cavalo. Era como no sonho, em que o homem, pendurado na boca do abismo, enterra as unhas na aresta lisa do rochedo, que parece oscilar...abalar-se...despenhar-se com ele! Os cabelos eriçaram-se-lhe. Os dentes crepitaram-lhe um estalido convulso e doloroso. A face assombrou-se-lhe de uma lividez patibular. E os olhos, raiados de betas sanguíneas, cravaram-se espavoridos nos topos dos salgueiros, que, na outra margem, balouçando-se, rugiam uma ária de escárnio como cantar de demônios! (CASTELO BRANCO, 1971, p. 127).
Inês tem sua vida ameaçada e o terror da cena fica por conta da descrição da jovem
desesperada por salvar-se. Tudo nesse episódio é horrível, pois além de a protagonista ser
descrita como muito próxima da loucura, a natureza, mais uma vez humanizada, é comparada
a um canto demoníaco. O rugir dos salgueiros não é um cantar de demônios, mas sim muito
parecida com o que o narrador supõe ser um cantar de demônios. O sobrenatural é apenas
aproximado da cena, não confirmado.
Afinal, todos sabemos que transpor um rio inundado pode facilmente causar um
grave afogamento e que qualquer um de nós lutaria bravamente pela sobrevivência. A cena,
portanto, não passaria de uma situação desesperadora. Trágica, mas não sobre-humana. É a
descrição feita pelo narrador que nos deixa tão aterrorizados quanto Inês. Parece-nos que o
narrador camiliano deseja que compartilhemos do desespero da garota, para que, junto com
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ela, acreditemos em um futuro terrível e na presença do sobrenatural, ao menos até o fim da
narrativa.
Não são somente as crenças de Inês que contribuem para a expectativa por algo
sobre-humano. A criada da jovem, Gertrudes, reza para que a fuga seja bem sucedida, mas o
responsório atrapalhado, dedicado a Santo António, parece mais um sinal das tragédias
vindouras. O narrador nos informa que:
Gertrudes não se deitara. Desde que Inês saíra, fora um enfiar de responsos de Santo António, cousa admirável, mas muito aflitiva para ela, que não pudera rezar um só sem se enganar. Ora, deveis de saber que um responso de Santo António, se não vai direto desde o princípio até o fim, ruim agouro é para a cousa ou pessoa responsada. Além disso, e para maior aflição da pobre rapariga, às três horas em ponto, no relógio de S. Domingos, um cão uivara três vezes por ali perto de casa; e, se o medo a não engana, uma coruja grasnou sobre o telhado. Mas o que acabou de agourar grande desgraça àquela boa Gertrudes, foi uma borboleta negra, que se afogou no azeite da candeia! (CASTELO BRANCO, 1971, p. 132).
É notável que a fé de Gertrudes vai além da fé católica, representada pelo santo em
questão. A criada é supersticiosa, acredita em agouros provenientes de cães, corujas e
borboletas. Os sinais que ela percebe nos deixam ainda mais ansiosos pelo trágico, e a
aglutinação de tais sinais parece não dar outra saída para Inês que não a trágica. A jovem não
tem escolha, parece ter seu destino definido, está marcada, amaldiçoada, tem um anátema. Ao
menos é o que ela conclui. Depois de sobreviverem à travessia do rio, Inês e Manuel
aproximam-se finalmente do castelo. A garota está febril e, em um diálogo, muito próximo do
delírio, ela diz a Manuel que:
– Deus não quer este amor...Tu tens alguma grande restituição que fazer... Toda esta gente se conspira contra nós... Estou amaldiçoada... Este castelo é negro como o meu túmulo. – Se o altar do nosso juramento... fosse a cruz do túmulo de nós ambos!... Sou tão nova para morrer! Eu queria viver muito para amar-te muito tempo... Que frio! Que estrada tão má... Que gelo!... conde!... (CASTELO BRANCO, 1971, p. 185).
De fato existe um conspirador. Carlos é meio-irmão de Inês e também é padre. O
rapaz encontra uma oportunidade para vingar-se de seu pai, Cristóvão da Veiga, quando é
chamado por Manuel para realizar o seu casamento com Inês. Carlos deseja uma retaliação
porque Cristóvão engravidou sua mãe, Maria, e a abandonou, nunca reconhecendo o filho
bastardo. Inês sabe da sede vingativa do irmão e tem medo dele, o que pode explicar a
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angústia que ela alimenta. Padre Carlos não realiza o casamento e ainda consegue separar o
casal, o que ocasiona o suicídio de Inês.
O desenlace trágico da narrativa não se deve a algum elemento sobrenatural; ao
contrário, os sofrimentos de Inês são causados pelo seu meio-irmão, são produto humano. Ao
conhecer os desejos malignos de Carlos, que havia amaldiçoado seu pai entre “a hóstia e o
cálix”, Inês percebe que corre perigo. Podemos dizer que as descrições tétricas que faz o
narrador servem para mostrar-nos como a garota interpreta o que há ao seu redor a partir do
medo que tem de Carlos.
De certa forma, a jovem tem um anátema: afinal, seu pai cometeu um grave erro no
passado, e Carlos, a principal vítima, irá castigá-lo por meio de Inês. Ela está marcada por
uma culpa paterna, sofre não porque tenha feito algo errado, mas sim porque funciona como
um instrumento de vingança.
É uma questão de causa e consequência. Aquele que comete erros, ou seus
descendentes, será castigado, não por Deus ou pelo diabo, mas sim por seus convivas que
sentiram-se prejudicados. A relação entre atitudes tomadas de forma irracional e suas
consequências negativas é também tema de outro romance de Camilo: O Esqueleto (1865).
O CASTIGO É DIVINO?
O Esqueleto tem como tema principal a providência divina. A narrativa nos conta a
estória de três casais que vivem em conflito por conta de relações extraconjugais. Nicolau de
Mesquita é um homem de meia idade que foge com a esposa de seu amigo Ernesto Froment.
Margarida, a adúltera em questão, é uma mulher encantadora que usualmente conquista todos
os homens com quem mantém contato.
Mas Nicolau agira movido por um impulso carnal e, cinco anos após a fuga, sente-se
enfastiado pela amante. Ela, percebendo o seu afastamento, arrepende-se por ter deixado
Ernesto, o antigo marido. Nicolau e Margarida separam-se temporariamente e ela manda
cartas para ele na esperança de reconquistá-lo, mas não obtém resposta. Os insucessos de
Margarida são atribuídos à providência divina por um narrador que parece transpor os
pensamentos da francesa:
A esposa de Ernesto Froment tinha morrido para o amante como para o marido. A Providência ordenara à formosa de Chaves que lançasse a prevaricadora no fogo expiatório, não labareda devorante, mas brasido lento,
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que lhe fosse queimando fibra por fibra os órgãos todos onde a vida humana pode sofrer e morrer mil vezes (CASTELO BRANCO, 1969, p. 21).
A amante de Nicolau acredita que está sendo punida por uma entidade superior, Deus
muito provavelmente. Algo sobrenatural, de acordo com ela, rege seu malogrado destino.
Margarida não se dá conta de que era natural o desprezo do marido após a traição, e também
não percebe que seu amante estava apaixonado quando jurou amor e propôs a fuga para
Portugal. Uma paixão que visivelmente chegara ao fim. Mais uma vez, a personagem sofre as
consequências de seus atos passados. Tanto Nicolau quanto Ernesto têm poder suficiente para
decidir como tratar Margarida, para desprezá-la. São os dois homens que causam dor e
angústia à mulher, não a providência divina.
Muito aflita com o duplo abandono, a francesa deixa o amante definitivamente e
envolve-se com Ricardo de Mesquita, um jovem primo de Nicolau. Este último, por sua vez,
casa-se com Beatriz, também sua prima. Em uma reunião em casa do pai de Beatriz, um padre
amigo da família chamado Ambrósio, descreve o início de um jantar com Margarida e
Ricardo. O religioso afirma que a ex-amante de Nicolau deve ser uma criação do demônio:
O fidalgo perguntou se eu gostava de andar em carruagem. Respondi-lhe que não e o demônio da francesa disse não sei quê, lá na sua amaldiçoada linguagem, e o senhor Ricardo riu-se. Eis que chegamos ao portão da casa do senhor Ricardo. A mulher do pecado deu um salto para fora, que parecia um pássaro a saltar, deixando ver os laços dos sapatos, e umas fitas pretas encruzadas nos artelhos! Assim a vestira o inferno para perdição das almas. Assim aparecia o demônio entrajado aos santos da Tebaida! Porque a verdade há-de dizê-la a minha boca indignada: Satanás nunca fez mulher mais guapa para recrutar almas neste mundo! (CASTELO BRANCO, 1969, p. 60).
A sedução de Margarida, sempre descrita como uma bela mulher, é caracterizada
como um produto diabólico, e isso não é feito por qualquer pessoa, mas sim por um padre, um
especialista em assuntos divinos e demoníacos. A francesa é vista então como o veículo do
sobrenatural, como sua representante. Mas não há nada de não humano nela. É apenas muito
bonita e desperta naturalmente o interesse dos homens e sua perdição, caso inconsequentes e
irracionais como Nicolau de Mesquita.
A irresponsabilidade do ex-amante de Margarida também traz suas consequências
negativas. Beatriz, esposa de Nicolau, apaixona-se por um primo, Rafael Garção. Quando
descobre a traição da mulher, o português acredita estar expiando um de seus maiores
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pecados, a fuga com Margarida e a decorrente traição ao seu amigo Ernesto Froment. O
narrador nos informa o que pensa Nicolau:
Era um suplício expiador! Nicolau conheceu que era preciso Deus para a misericórdia, logo que lhe reconheceu a mão no peso do castigo. Não bastava o amor desesperançado: cumpria que o remorso lhe envenenasse o sangue: remorso de infamar um amigo e de lhe atirar ao gozo dos homens a mulher infamada! (CASTELO BRANCO, 1969, p. 79).
Ele acredita estar sendo punido pela providência divina, mas parece ter consciência
de que foi uma decisão que tomou no passado que traz remorsos e culpa. Sabe que infamou o
amigo apenas por um desejo passageiro, e sabe ainda que suas escolhas prejudicaram
Margarida, que acreditou ser amada por ele. O sofrimento é apenas uma consequência
previsível, já que Nicolau sabia que a traição não seria perdoada por Ernesto.
Beatriz e Rafael Garção também pagam por seus atos. Os dois mantêm um
relacionamento escuso, que é descoberto por Nicolau, marido da moça. Uma noite, Rafael
decide visitar Beatriz, que está sozinha em sua propriedade. Ele tenta ser discreto para que os
empregados não percebam sua presença e não o denunciem a Nicolau. Ao esconder-se em um
túnel escuro, é atingido fatalmente por um tiro disparado por um dos criados da casa. O criado
não sabia que Rafael estava ali escondido e atira somente para mostrar sua arma aos amigos.
Preocupada com a demora do amante, Beatriz sai a sua procura e o encontra morto dentro do
túnel. O narrador mostra-nos todo o desespero da jovem ao perceber que seu amado havia
morrido:
Beatriz bracejou, e deu com os braços nas paredes úmidas da mina. Então é que foi o suplício indescritível do completo despertar. Ergueu-se de salto. Vibrou um agudíssimo grito. Rojou-se ao longo do cadáver com frenética ternura. Beijou-lhe o perfil do rosto: levantou para si a cabeça como hirta; apertou-a convulsamente à face dela; correu-lhe a mão pelo seio, e ensopou-a em bolhões de sangue, ainda quente. Refugiu, levantou-se, bateu coma face nas asperezas da saibrada angulosa de seixos, gritou por luz, chamou a criada, e correu ao longo da mina de encontro ao clarão da abertura. (CASTELO BRANCO, 1969, p. 223).
A cena fúnebre mostra Beatriz próxima da loucura, o que é compreensível se
pensarmos que a moça era intensamente apaixonada por Rafael. A descrição tétrica vai de
encontro com a suposta presença do sobrenatural no castigo que acreditam receber os
personagens. Essa união pode fazer o leitor acreditar que de fato a expiação dos pecados é
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produto de uma justiça divina, afinal, há uma atmosfera de medo, angústia e sofrimento que
permite a aceitação da hipótese levantada pelos amantes, a saber, a providência.
Beatriz adoece devido à forte emoção vivida e morre. Nicolau, que havia novamente
se envolvido com Margarida, é abandonado por ela e vive solitariamente a partir desse
momento. A mina onde repousava o cadáver de Rafael é fechada por Nicolau, que desconhece
a presença do corpo do rapaz no local. Algum tempo depois, ele decide retomar as obras em
torno do túnel e o reabre, encontrando o tão esperado esqueleto anunciado no título do
romance. Nicolau é então acusado pelo assassinato de Rafael, mas salvo por uma criada que
havia tomado conhecimento do que acontecera na noite da morte do rapaz. Ele então passa a
viver em Londres com o pai de Beatriz e com o filho de sua união com ela. Margarida vive
pobre por algum tempo, mas depois recebe o dinheiro de uma herança e a partir de então vive
sozinha, sem nenhum outro amante.
A estória de todos os apaixonados é relatada pelo leitor de um jornal chamado “O
Nacional” em 1849, quinze anos após a fuga que Nicolau empreendera com Margarida. O
leitor resume os acontecimentos do seguinte modo:
Finalmente, senhor redactor, em vista do desenlace desta infanda história, devemos olhar ao céu, e baixar os olhos confundidos, diante da misteriosa justiça da divina Providência! Rafael Garção morreu. Beatriz viu-o agonizar. Ambos expiaram no prazo de vinte e quatro horas. Nicolau de Mesquita geme há quatro anos sob o peso de uma cruz de ferro. Estas angústias pode ser que correspondam a antigos crimes. Em suma, ninguém se transvie do caminho da virtude, que o do crime está ladeado de infernais abismos. (CASTELO BRANCO, 1969, p. 280-281).
O leitor em questão acredita que os envolvidos na estória foram punidos pela
providência divina, por uma justiça sobrenatural. Mas deixa entrever uma conclusão mais
realista para os destinos trágicos que tiveram os amantes quando afirma que as angústias
podem corresponder a antigos crimes. Há nesse raciocínio uma relação entre causa e
consequência, entre ações tomadas e seus produtos. De fato, mais uma vez, não há nada de
sobre-humano interferindo nos destinos das personagens. A morte de Rafael Garção não
passou de um acidente, a solidão de Nicolau e Margarida deve-se a forma como trataram seus
cônjuges.
Podemos concluir que a expectativa pelo sobrenatural em O Esqueleto é constituída
pelo título da narrativa e também pela crença das personagens em uma instância divina e
sobrenatural que os pune. O esqueleto nos é apresentado nas quinze páginas finais do romance
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e contribui unicamente para a construção de uma atmosfera de horror, porque trata-se apenas
de um esqueleto que não é animado e não causa espanto em ninguém. O leitor pode inclusive
ficar desapontado com a inexpressão desse esqueleto prometido pelo título do livro.
O romance acaba e temos a certeza de que tudo aquilo que sofreram as personagens
não passou de resultado das suas próprias ações, afinal, a forma como tratamos nossos
convivas determina se viveremos ou não solitários.
A impressão que permanece após a leitura tanto de Anátema quanto de O esqueleto é
a de que Camilo usa os elementos de suspense demandados pelo gótico e pelo sobrenatural
para aumentar a curiosidade de seus leitores e levá-los até o final da leitura dos romances. Ao
mesmo tempo, é possível pensar que Camilo não utiliza elementos característicos do
sobrenatural em suas narrativas, como fantasmas, por exemplo, porque não acredita que eles
sejam verossímeis.
Procuraremos, a partir de agora, compreender um pouco mais as escolhas do
romancista.
EM BUSCA DO CRÍVEL
Maria Leonor Machado de Souza, em seu O Horror na Literatura Portuguesa,
publicado em 1979, escreve sobre a importância dos estudos da literatura que apresenta o
horror como tema. Ela afirma que:
Mais do que pelo facto de representar a incidência de um fenômeno cultural europeu, em que um gênero de literatura de grande público começa a ser veículo de uma crítica social violenta, esta corrente tem para nós o interesse fundamental de nela se integrar Camilo, o maior romancista português do século XIX. Na sua obra se conjugam elementos de todos os tipos do horror a que a literatura "gótica" deu origem, excepto o sobrenatural directo, não aceitável na sociedade que Camilo criticou e para a qual escrevia. (SOUZA, 1979, p. 57).
Entre os escritores que fizeram de seus romances um veículo para a crítica social,
certamente podemos incluir Camilo. O romancista português, que tinha como objeto de
estudo a sociedade portuguesa de sua época ,deveria prender-se o máximo à realidade. De
acordo com essas afirmações, o uso de elementos sobrenaturais em narrativas voltadas à
crítica social não parece torná-las verossímeis como precisavam ser. O “sobrenatural direto”
talvez retiraria dos romances a sua pretensão à verdade social da época, o que seria
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prejudicial; afinal, não é possível criticar uma sociedade contando supostas mentiras sobre
ela. E o sobrenatural direto seria, para a época, falso, porque não crível.
Para além da divergência entre a crítica social e o sobrenatural, podemos entrever o
entendimento moderno de Camilo sobre o indivíduo. As suas personagens decidem sobre seus
destinos e são totalmente responsáveis por ele. Não há nada de sobre-humano interferindo em
suas vidas. O poder pessoal é mais verossímil do que o poder divino ou diabólico.
É possível ainda afirmar que Camilo, nas duas narrativas aqui apresentadas, fazia
uma crítica ao comportamento supersticioso de suas personagens quando o assunto era a
religião. Apenas para ilustrar a reflexão, nos voltaremos rapidamente para um outro romance
de Camilo: A Bruxa de Monte Cordova (1867).
Angélica, a protagonista da narrativa, enlouquece porque é convencida por um frade
de que seu namorado já morto, Tomás de Aquino, fora enviado ao purgatório por causa dela;
afinal, o rapaz deixara o seminário por amor à moça. Um outro frade, Jacinto de Deus, critica
a forma pela qual os religiosos responsáveis por Angélica no convento onde ela se
enclausurara convencem-na de sua culpa. Em uma reflexão sobre a compreensão tanto dos
frades quanto de Angélica a respeito da religiosidade, o narrador, em um óbvio elogio às
concepções modernas de Frei Jacinto, afirma:
As almas purgadas, iluminadas e unidas chamam à correcção dos vícios purgação; à caridade, iluminação; à meditação das obras divinas embriaguez; ao enlevo nas maravilhas do Criador sono das potências; à oração visitas dos esposos; ao desapego final dos bens mundanos que nos fundiram méritos à recompensa divina, purgação de fogo; à salvação Matrimônio. Tamanhos transtornos e transposição de palavras, de força hão-de desmanchar a ordem das ideias. A insânia que daí procede não é a que recebe um cartão de entrada nos hospitais; mas goza do privilégio de ter casas filiais do Inferno nas famílias onde entra. Chama-se beatério. A palavra assumiu proporções de zombaria; mas o que há aí de lágrimas e lama nessa palavra não o calcula a chacota nem a indiferença". (CASTELO BRANCO, 1971, p. 216).
Tanto as personagens de Anátema quanto de O Esqueleto podem ser chamadas
beatas, ao menos na concepção do narrador camiliano, porque apresentam uma fé parecida
com a de Angélica de A Bruxa de Monte Cordova. Inês da Veiga acredita em maldições feitas
“entre a hóstia e o cálix” por seu irmão Carlos e a criada Gertrudes reza para Santo Antonio
enquanto amedronta-se com uivos caninos e pios de coruja. Margarida e Nicolau, por sua vez,
estão crentes que a providência divina os castiga por tudo o que fizeram de ruim um ao outro.
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Todos eles pensam apenas em possíveis acontecimentos trágicos e com isso atormentam a si
mesmos. Inês inclusive chega muito próximo da loucura vivenciada por Angélica.
Uma leitura possível, portanto, é que Camilo propõe uma religiosidade mais voltada
para a realidade, para as boas ações, para um comportamento respeitoso, em vez da crença
desmedida em maldições, castigos, enfim, uma fé que não se volte tão radicalmente para os
dogmas da Igreja, como o casamento, por exemplo, mas sim para as ações positivas que
podem ser realizadas cotidianamente.
Essa posição pode ser um desdobramento da valorização do indivíduo e de seu poder
pessoal, afinal a fé proposta por Camilo prioriza a decisão individual e a responsabilidade que
os seres têm pelas consequências que decorrem de suas escolhas em vez de o poder irrestrito
sobre as vidas humanas proveniente de um entre superior, seja Deus ou o diabo.
Concluímos então que Camilo utiliza os elementos góticos em sua obra de forma
muito perspicaz, de modo que eles sirvam como criadores do suspense necessário à leitura,
mas também como um meio de valorização do indivíduo moderno e ainda de uma
religiosidade moderna.
REFERÊNCIAS: CASTELO BRANCO, Camilo. Anátema. 7.ed. Lisboa: Parceria A M. Pereira LDA, 1970. ______. A Bruxa de Monte Cordova. 10. ed. Lisboa: A M. Pereira LDA, 1971. ______. O Esqueleto. 10. ed. Lisboa: A M. Pereira LDA, 1969. SOUZA, Maria Leonor Machado de. 1. ed. O horror na literatura portuguesa. 1979.
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“Quem tem medo de fantasma? Uma análise do medo em “A noiva”, de Humberto de Campos
e “Aparição”, de Guy de Maupassant”
Cátia Cristina Sanzovo JOTA (UEL)
RESUMO: Calafrios. Arrepios na espinha. Suor. Paralisação. Tremores. Palpitações. Todos já experimentamos, pelo menos uma vez na vida, essas sensações provenientes do medo. Na literatura, o gênero fantástico é talvez aquele que mais explora esse sentimento devido ao quesito primordial e unânime para que um texto seja considerado fantástico: a instalação devastadora do sobrenatural inexplicável no cotidiano familiar do ser humano. Vários críticos voltaram suas atenções para a literatura fantástica e, consequentemente, para o medo. Dentre eles, destacam-se Tzvetan Todorov, Remo Ceserani, Davi Roas, Filipe Furtado e Howard Phillips Lovecraft. Estudiosos de outras áreas também debruçaram-se sobre a questão do medo. Os maiores nomes, neste caso, são o do psicanalista Sigmund Freud e do historiador Jean Delumeau. Mas, medo de quê? De acordo com Marilena Chauí, temos medo de quase tudo na vida. No entanto, o medo do desconhecido e da morte estão no topo da lista. O objetivo desse estudo é, portanto, analisar comparativamente o medo dentro dos textos “A noiva” (2011), de Humberto de Campos, e “Aparição” (2011), de Guy de Maupassant. Em ambos os textos percebe-se a aparição fantasmagórica de uma mulher como elemento sobrenatural, tendo como objeto mediador o cabelo feminino. A análise terá seu alicerce teórico construído sobre os estudiosos citados acima, visando estabelecer uma ponte entre os contos, tendo o medo como fio condutor da investigação. PALAVRAS-CHAVE: medo; fantástico; fantasma. ABSTRACT: Chills. Sweat. Tremors. Palpitations. We have all experienced, at least once in life, these feelings which come from fear. In Literature, the fantastic genre is perhaps the one that most exploits this feeling due to the primary and unanimous criteria for a text to be considered fantastic: the devastating appearance of a supernatural and unexplained event in one’s daily life. Several critics turned their attention to the fantastic literature and hence to fear. Among them, we highlight Tzvetan Todorov, Remo Ceserani David Roas, Filipe Furtado and Howard Phillips Lovecraft. Scholars from other areas also discussed the issue of fear: Sigmund Freud and Jean Delumeau. But what do we fear? According to Marilena Chauí, we are afraid of almost everything in life. However, fear of the unknown and (of) death are at the top of the list. The aim of this study is therefore to analyze comparatively the fear in A noiva (2011), by Humberto de Campos; and in Aparição (2011), by Guy de Maupassant. In both texts we see the ghostly apparition of a woman as a supernatural element and whose hair is presented as the mediator. The analysis will have its theoretical foundation built on the scholars noted above, aiming to establish a bridge between the tales, and fear as a guiding line for the research. KEYWORDS: fear; fantastic; ghost.
Calafrios. Arrepios na espinha. Suor. Paralisação. Tremores. Palpitações. Todos já
experimentamos essas sensações provenientes do medo. Na literatura, o gênero fantástico é
talvez aquele que mais explora esse sentimento devido ao quesito primordial e unânime para
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que um texto seja considerado fantástico: a instalação devastadora do sobrenatural
inexplicável no cotidiano familiar do ser humano. Vários críticos voltaram suas atenções para
a literatura fantástica e, consequentemente, para o medo. Dentre eles, destacam-se Tzvetan
Todorov, Remo Ceserani, Filipe Furtado, Davi Roas e Howard Phillips Lovecraft. Estudiosos
de outras áreas também se debruçaram sobre a questão do medo. Os maiores nomes, neste
caso, são o do psicanalista Sigmund Freud e do historiador Jean Delumeau. O objetivo desse
estudo é, portanto, analisar comparativamente o medo dentro dos textos “A noiva” (2011), de
Humberto de Campos; e “Aparição” (2011), de Guy de Maupassant. Em ambos os textos
percebe-se a aparição fantasmagórica de uma mulher como elemento sobrenatural, tendo
como objeto mediador o cabelo feminino. A análise terá seu alicerce teórico construído sobre
os conceitos dos estudiosos citados acima, visando estabelecer uma ponte entre os contos,
tendo o medo como fio condutor da investigação.
O medo é, segundo Jean Delumeau, uma “emoção-choque, frequentemente precedida
de surpresa provocada pela tomada de consciência de um perigo presente e urgente que
ameaça, cremos nós, nossa conservação” (DELUMEAU, 1996, p. 23). O historiador vai mais
além e afirma que o medo é “a maior componente da experiência humana” (DELUMEAU,
1996, p. 18). Dessa forma, é seguro dizer que não há uma pessoa sequer acima do medo, pois
ele nasceu com o ser humano, como um mecanismo de defesa que assevera a continuidade da
vida. Nesse sentido, nem mesmo o mais corajoso dos seres está impune.
No conto “O medo”, do escritor Guy de Maupassant (2011), é possível distinguir
dois tipos de sensações fóbicas – aquela que surge em presença de ameaças conhecidas e
aquela que aflora mediante “determinadas circunstâncias anormais, sob determinadas
influências misteriosas e diante de riscos vagos” (MAUPASSANT, 2011, p. 28). Esta última
seria “algo terrível, uma sensação atroz, uma espécie de dilaceramento da alma, um tremendo
espasmo da inteligência e do coração, cuja simples lembrança nos faz estremecer de angústia
[...] O verdadeiro medo é algo como uma reminiscência dos terrores fantásticos de outrora”
(MAUPASSANT, 2011, p. 28).
O escritor estadunidense H.P. Lovecraft (2007) também assinala duas modalidades
de medo: o “medo físico” e o “medo cósmico”. O primeiro, considerado vulgar e horrível pelo
autor americano, consiste basicamente nas sensações corporais do medo, acompanhadas de
consequências psicológicas mais superficiais. O segundo é definido como sendo o potencial
fóbico inerente a todo e qualquer ser humano, proveniente de fontes telúricas primitivas e
automaticamente acionado quando o homem é forçado a enfrentar o inexplicável. Trata-se do
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temor ancestral, cerne do instinto de sobrevivência do homem que gera profundas atividades
psicológicas. Para Lovecraft:
embora a zona do desconhecido venha se contraindo regularmente há milhares de anos, um reservatório infinito de mistério engolfa a maior parte do cosmo exterior, enquanto um vasto resíduo de associações poderosas herdadas se agarra a todos os objetos e processos que um dia foram misteriosos, por melhor que possam ser hoje explicados. E, mais que isso, existe uma fixação fisiológica real dos velhos instintos em nosso tecido nervoso que os tornaria misteriosamente operantes, mesmo se a mente consciente fosse purgadas de todas as fontes de assombro (LOVECRAFT, 2007, p. 15).
Semelhante definição encontramos em Davi Roas. Para o estudioso, existe uma
distinção entre o que ele batiza de “medo físico” ou “emocional” e o que ele alcunha de
“medo metafísico” ou “intelectual”. O primeiro refere-se ao conjunto de reações físicas
desencadeadas por “meios puramente naturais”, acontecendo em “um nível mais superficial, o
das ações” (ROAS, 2012, p. 132). O “medo metafísico” ou “intelectual” é o aniquilamento de
nossas convicções sobre o real quando este é sacudido pelo inominável, “quando perdemos o
chão diante de um mundo que nos era familiar” (ROAS, 2012, p. 136).
Como se pode notar, a congruência entre as três classificações é evidente e evidente
também é a íntima relação que os autores citados acima estabelecem entre o “verdadeiro
medo”/ “medo cósmico” /“medo metafísico” e o desconhecido. Dentro da literatura, o gênero
fantástico é aquele que melhor espelha essa ligação. De acordo com Todorov, o fantástico “é a
hesitação experimentada por um ser que só conhece as leis naturais, em face de um
acontecimento aparentemente sobrenatural” (TODOROV, 2010, p. 31). O autor de textos
fantásticos apresenta em suas estórias episódios que dificilmente presenciaríamos em nossas
regularidades cotidianas. “Ele como que denuncia a superstição que ainda abrigamos e
acreditávamos superada, ele nos engana, ao prometer-nos a realidade comum e depois
ultrapassá-la” (FREUD, 2010, p. 373). É justamente esse abalo nas fronteiras entre conhecido
e desconhecido que suscita o medo.
Para que o medo seja um efeito gerado pelo texto faz-se necessário lançar mão de
alguns mecanismos textuais que intensificam a sensação fóbica pretendida. Uma delas é
precisamente manter a explicação racional do inominável realmente diminuta ou praticamente
nula, pois uma vez explicado racionalmente, o sobrenatural deixa de ser um mistério que foge
de nosso controle e, consequentemente, perde sua capacidade de originar assombro. Uma
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forma de se atingir esse objetivo é garantir à personagem que confronta o sobrenatural o
máximo de autoridade possível, porquanto seja difícil duvidar de sua palavra.
Um outro recurso narrativo imprescindível, talvez o mais importante dentro da
literatura fantástica, é o “resultado de determinado quadro de relações e ‘jogos de força’
estabelecidos normalmente entre as personagens que ocupam determinado espaço na história”
(JUNIOR, 2009, p. 45), ou seja, a atmosfera. Em outras palavras, atmosfera é a rede de
conexões que costura as emoções dos personagens, as circunstâncias e o espaço, formando o
“verdadeiro ‘clima’ em que se desenrolam as ações” (PIRES, 1989, p. 195).
O espaço, como mencionado acima, faz parte do que apreendemos por atmosfera. E
assim, para assegurar a ambiguidade e conservar a contração dos músculos do leitor, os
espaços de um enredo fantástico devem estar inseridos em “paisagens solitárias e bravias”
evitando, desse modo, “a fecundidade interpretativa que os grandes aglomerados constituem”
(FURTADO, 1980, p. 123). Além disso, o ambiente fantástico deve “fugir à luz e à cor,
preferindo descrições que subentendam iluminação vaga ou escuridão, meias tintas ou
tonalidade sombrias, e rejeitando simultaneamente a claridade mais intensa e a definição de
formas das grandes áreas abertas” (FURTADO, 1980, p. 124). A atmosfera de um texto que
visa causar medo deve evocar “mundos tenebrosos, subterrâneos, do além” (CESERANI,
2006, p. 79). Dessa forma, a opção pela noite ou pela penumbra realça o clima enigmático e
reforça a incerteza do leitor, já que a falta de luz remete automaticamente ao que escapa aos
olhos e, sem eles, as chances de se encontrar uma explicação plausível para o fenômeno
sobrenatural ficam razoavelmente reduzidas.
A construção bem sucedida da atmosfera de um enredo cuja finalidade seja evocar o
“verdadeiro medo” / “medo cósmico” / “medo metafísico” precisa, acreditamos nós, gerar
suspense suficiente para que tal sentimento aflore. O sentido que pretendemos expressar com
esse termo é o estado emocional que acompanha uma cena até que seu resultado se realize,
isto é, “os suspenses são os momentos de tensão que o narrador consegue despertar no
narratário, provocado pela ansiedade deste em saber o rumo que tomarão os acontecimentos
que lhe estão sendo narrados” (PIRES, 1989, p. 192).
No conto “Aparição” (2011), de Guy de Maupassant, temos um marquês de 82 anos
que resolve relatar, em uma reunião de amigos, a aventura insólita que teve quando jovem. A
narrativa, portanto, é narrada em primeira pessoa, tendo o narrador como protagonista da
trama. Conta ele que encontrou um conhecido no meio da rua e este, extremamente
perturbado, pede-lhe que vá até a casa onde morava com a finada e amada esposa a fim de
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pegar algumas cartas. Quando lá chega e entra no quarto para realizar a tarefa que lhe fora
atribuída, o marquês se depara com o fantasma da esposa do amigo e esta solicita que ele
penteie seus longos cabelos escuros. Dominado pelo pavor, o marquês atende ao pedido. O
fantasma deixa o quarto e esvaece. O marquês, então, pega o que veio buscar e vai embora.
Sem coragem de encarar o amigo, ele manda um criado levar-lhe as cartas. No dia seguinte,
fica sabendo que seu colega desapareceu sem deixar qualquer vestígio de sua existência e que
ninguém, nem mesmo a polícia, conseguiu definir seu paradeiro.
Já em “A noiva” (2011), temos a narrativa em terceira pessoa de um poeta que
durante a leitura de um livro encontra dentro deste um fio de cabelo dourado. O poeta acaba
sonhando acordado e nesse estado de sonolência acredita ver o fantasma da dona do filete
capilar cor de ouro. Esta aparece para implorar a devolução do mesmo, pois morrendo ainda
virgem (ela afirma que seu noivo morrera antes do casamento ser consumado), não poderá
entrar no reino dos céus sem que sua forma corpórea esteja perfeitamente completa. Assim
que realiza a devolução, o poeta desperta e a primeira coisa que faz é procurar o fio de cabelo,
mas não o localiza.
Antes de analisarmos os mecanismos textuais que suscitam o medo nos textos
referidos acima, vale a pena lembrar que a aparição fantasmagórica de ambas as tramas é uma
mulher. Essa escolha parece ser significativa no que concerne ao medo, pois, de acordo com
Jean Delumeau,
porque mais próxima à natureza e mais bem informada de seus segredos, a mulher sempre foi creditada, nas civilizações tradicionais, do poder não só de profetizar, mas também de curar ou prejudicar por meio de misteriosas receitas. Em contrapartida [...] o homem definiu-se como apolíneo e racional por oposição à mulher dionisíaca e instintiva, mais invadida que ele pela obscuridade, pelo inconsciente e pelo sonho” (DELUMEAU, 1996, p. 311).
Aliado a tudo isso, a maternidade, a fecundidade e o ciclo menstrual da mulher serão
sempre um grande ponto de interrogação para o sexo masculino: “ele nunca sabe o que ela
quer” (DELUMEAU, 1996, p. 311). Assim, a eleição da figura feminina nos textos aqui
investigados não parece ser aleatória, ao contrário, é um recurso extra que potencializa o
efeito do medo, visto que a mulher é um enigma não para só para o homem, mas também para
ela própria, conforme menciona Delumeau ao citar as idéias de Simone de Beauvoir sobre a
feminilidade.
Voltando à análise dos mecanismos textuais, percebe-se que a autoridade conferida
ao protagonista que enfrenta o sobrenatural no conto de Maupassant é inegavelmente difícil
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de ser contestada, pois temos um marquês de 82 anos de idade cuja experiência de vida e
posição social inspiram grande confiança. Aliados a isso, o protagonista afirma que não
acredita em fantasmas, indicando que não seria qualquer fenômeno superficial, passível de
explicação racional, que lhe perturbaria a alma.
No conto “A noiva” (2011), entretanto, a autoridade do protagonista é dúbia, pois o
narrador não o descreve em detalhes, apenas faz referência a ele como sendo um “poeta
sonhador”. Ambos os vocábulos possuem uma forte alusão à fantasia, o que põe em cheque a
confiança que o leitor poderia atribuir à personagem. Apesar disso, como diria Fernando
Pessoa, o poeta pode fingir até mesmo a dor que deveras sente e, portanto, não se pode
simplesmente descartar totalmente a autoridade presumida do protagonista.
No conto do escritor francês a explicação racional para a aparição fantasmagórica é
quase nula. A loucura e o sonho são facilmente descartados, pois não existe qualquer sugestão
que aponte para eles na construção do enredo. Pelo contrário, o protagonista afiança que não
esteve louco e que teve tempo para refletir sobre o ocorrido em busca de explicações, não
encontrando nenhuma por mais que tentasse: “Atirei as rédeas à minha ordenança e fui direto
ao meu quarto, onde me tranquei para refletir” (MAUPASSANT, 2011, p. 44). O sonho
também se torna um possibilidade muito improvável, haja vista a vitalidade e a alta dose de
vigor do personagem quando a caminho da casa do amigo: “numa dessas alegrias de viver que
nos invadem sem se saber por que, numa felicidade tumultuosa e como que indefinível, numa
espécie de embriaguez de energia” (MAUPASSANT, 2011, p. 39).
Além disso, o marquês nota que seu dólmã “estava cheio de longos cabelos de
mulher que se tinham enrolado nos botões” (MAUPASSANT, 2011, p. 44), reforçando a
comprovação de que o contato com o fantasma realmente existiu. Outro fato que assinala a
ausência de explicação para o sobrenatural é que a própria polícia foi requisitada para
investigar o caso e após uma revista minuciosa ser feita no castelo abandonado, “nada de
suspeito foi encontrado. Como a investigação não levou a nada, as buscas foram
interrompidas” (MAUPASSANT, 2011, p. 45). E o conto termina com a total perplexidade e
desorientação do protagonista com relação ao ocorrido: “E, durante cinquenta e seis anos, de
nada soube. De nada sei” (MAUPASSANT, 2011, p. 45).
Já no conto de Humberto Campos é possível atribuir a aparição do fantasma à
sonolência do protagonista: “[...] suas pálpebras se cerraram, tocadas pelas mãos invisíveis do
sono” (CAMPOS, 2011, p. 123). No entanto, o narrador sugere que o poeta não estava
totalmente adormecido: “E, como acontece aos que sonham sem dormir, o sonho continuou,
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no sono, o encanto da realidade” (CAMPOS, 2011, p. 123). Além disso, a dissipação do fio de
cabelo é um pouco controversa na medida em que a explicação para o desaparecimento do
elemento capilar vem seguida de relevantes reticências, insinuando ao leitor uma segunda
possibilidade: “Procurou o fio de ouro, que vira marcando a página, antes de adormecer. Não
o encontrou. O vento, com certeza, o havia levado...” (CAMPOS, 2011, p. 125).
E, por fim, devemos atentar para a atmosfera. No conto de Maupassant, o elemento
sobrenatural surge na penumbra de um quarto (é importante ressaltar que o aposento fica
dentro de um castelo abandonado e totalmente distante da cidade), revelando um ambiente
sombrio e lúgubre, dentro do qual ninguém gostaria de estar: “O aposento estava tão escuro
que a princípio não consegui distinguir nada. Detive-me impressionado por aquele insípido
cheiro de mofo das peças desabitadas e condenadas, dos quartos dos mortos”
(MAUPASSANT, 2011, p. 41).
Depois de situar o ambiente apavorante e tenebroso, o narrador habilmente utiliza o
suspense para gerar assombro, antecipando o momento da aparição sobrenatural através da
descrição minuciosa das impressões sensoriais do protagonista e também delongando a
apresentação do inominável. Esse espaço agourento somado ao suspense da cena são tão
assustadoramente bem elaborados que se sente o medo no ar:
Arregalava os olhos, decifrando os sobrescritos, quando julguei ouvir, ou melhor, sentir um leve roçar atrás de mim. Não lhe dei atenção, imaginando que uma corrente de ar agitara algum tecido. Porém, um minuto depois, outro movimento, quase imperceptível, fez passar pela minha pele um pequeno arrepio singular e desagradável. Sentir-me emocionado, por pouco que fosse, pareceu-me tão idiota que não quis me virar, por pudor. Acabava de encontrar o segundo maço de papéis que viera buscar; e justamente quando deparava com o terceiro, quando um grande e doloroso suspiro, soltado junto ao meu ombro, fez-me dar um salto de dois metros [...] De pé, atrás da poltrona em que me sentara um minuto antes, fitava-me uma mulher alta, vestida de branco. Senti um tal tremor nos membros que quase cai de costas! Ninguém pode compreender, a menos que o tenha sentido, esse pavor estúpido e terrível [...] Não acredito em fantasmas, pois bem! Desfaleci, esmagado pelo hediondo medo dos mortos, e sofri! Oh! Sofri em alguns instantes mais do que em todo o resto da minha vida, vítima da angústia irresistível dos terrores sobrenaturais [...] ela falou; falou com uma voz doce e dolorosa que fazia vibrar os nervos” (MAUPASSANT, 2011, p. 42)
No conto do escritor brasileiro, a aparição acontece à noite: “Fora no jardim, as
árvores repousavam, imóveis, como se rezassem, mudas, preparando-se para adormecer”
(CAMPOS, 2011, p. 122). Além disso, o narrador ressalta a pouca luz incidente no ambiente:
“[...] o poeta lia, debruçado sobre o volume, é luz da lâmpada suavemente velada [...]”
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(CAMPOS, 2011, p. 122). Não se tem maiores informações sobre o espaço onde ocorre a
ação, mas pela menção a uma janela, é possível deduzir que o poeta esteja em um quarto de
sua casa. Apesar da pouca luminosidade e do período noturno, a descrição do momento da
aparição é mais sucinta e menos carregada de impressões funestas, como se o poeta ficasse
mais surpreso do que amedrontado, mais fascinado pela estória que o fantasma tem a contar
do que com a instalação de sua presença inexplicável. O suspense é mínimo, não há
antecipação do encontro com o sobrenatural:
De olhos fechados, Silvestre de Morais continuava, por isso, a ver, como se os tivesse aberto, o dourado fio de seda. Olhava-o e não se sabe como, via-o aos poucos, crescer, desdobrar-se, multiplicar-se. Intrigado, fitou melhor o raiozinho fulgurante, e recuou, com espanto. Agora não era mais o livro que via: em lugar da página amarelecida, o que lhe aparecia, cortado pelo cabelo de ouro, era um rosto feminino muito pálido, muito triste, macerado como o de monjas [...] Atônito, maravilhado, sem compreender aquela aparição subitânea, Silvestre olhava, com interrogação nas pupilas, a visão dolorosa, como a pedir-lhe, em silêncio, a explicação do mistério” (CAMPOS, 2011, p. 123).
Pode-se concluir, portanto, que ambos os textos aqui analisados fazem uso de
mecanismos textuais que suscitam aquilo que os teóricos citados no início deste chamam de
“medo cósmico” ou “medo metafísico” ou ainda “verdadeiro medo”. Nota-se, contudo, que o
conto “Aparição” (2011) apresenta uma escritura que facilita muito mais o afloramento do
medo que o conto “A noiva” (2011). Isso acontece devido à precária autoridade do
protagonista do conto de Humberto de Campos, posto que temos um poeta sonhador que já
cansado, adormece e pode ter sido influenciado pelo livro que estava lendo; ao passo que o
protagonista do conto de Guy de Maupassant garante sua confiança através da idade e da
posição social.
Derivado dessa situação tem-se que a explicação natural para a aparição
fantasmagórica fica comprometida no conto “A noiva” (2011); enquanto que no conto
“Aparição” (2011), a compreensão do fenômeno sobrenatural é quase impossível de ser
acatada, uma vez que todas as possibilidades são refutadas com argumentos convincentes.
Além disso, a atmosfera do conto “A noiva” (2011) é um tanto quanto desprovida de
suspense e de informações espaciais que assegurariam a presença do medo. Por outro lado, o
conto de Maupassant traz um ambiente melhor delineado, de modo a enfatizar o aspecto
sinistro do espaço, bem como o narrador usa e abusa do suspense, empregando gestos e
impressões sensoriais que remetem inevitavelmente a uma sensação fóbica.
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Contudo, fantasma gera medo em qualquer situação, pois o medo dos mortos ainda é
forte dentro de nós, “provavelmente ele possui ainda o velho sentido que o morto tornou-se
inimigo do que sobrevive e pretende levá-lo consigo para partilhar sua nova existência”
(FREUD, 2010, p.161). Não é de surpreender, então, que vacilemos e percamos
temporariamente o chão mediante tal fenômeno e, claro, que desfaleçamos de medo.
REFERÊNCIAS:
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Metamorfose, fabulação e a reescrita fantástica em Murilo Rubião
Cinthia Lopes de OLIVEIRA (CES/JF – SMC)
RESUMO:Este estudo apresenta a metamorfose como elemento temático e metalinguístico nos contos de Murilo Rubião. Tem por finalidade apresentar aspectos da obra rubiana de caráter tanto interno quando externo que realçam a sua condição fantástica, tais como a intertextualidade das citações bíblicas e a constante reelaboração linguística. Essas características podem ser observadas, por exemplo, em contos como “O ex-mágico da Taberna Minhota” e “O pirotécnico Zacarias” cujas temáticas abordam a fabulação da metamorfose e a impossibilidade da convivência decorrentes da inapreensibilidade humana. Tais elementos seriam determinantes na classificação de modernidade do gênero fantástico em Rubião. Nesses contos, podem ser observadas, ainda, características internas da obra do escritor como a reescrita dos contos, a intertextualidade epigráfica e a escrita cíclica. Sob o véu da fantasticidade, os contos revelam reflexões existenciais com as quais os leitores podem se identificar. Por meio da indiferença e da estagnação de algumas personagens dos contos, revelam-se o inconformismo dos indivíduos e a dificuldade dos relacionamentos sociais. Por fim, conclui-se que o Fantástico é um véu da literatura que permite um posicionamento crítico diante dos acontecimentos. A fabulação natural do ser humano lhe dá capacidade, portanto, de construir realidades alternativas que espelhem novas significações para as relações entre o indivíduo e a sociedade. PALAVRAS-CHAVE: Fantástico; Metalinguagem; Metamorfose; Murilo Rubião. ABSTRACT: This study presents the metamorphosis as a thematic and metalinguistic element in short stories by Murilo Rubião. It aims to present internal and external aspects of Murilo Rubião’s books, that highlight its fantastic condition, such as intertextuality of biblical epigraphs and the constant rewriting of language. These characteristics can be observed, for instance, in short stories like "O ex-mágico da Taberna Minhota" and "O pirotécnico Zacarias" which themes address the metamorphosis and the impossibility of living together in community as a result of human inapprehensibility. These elements are decisive in order to classify Rubião’s genre as modern fantastic. In these short stories the interior features of the work of the writer can be observed, as the rewriting of short stories, the biblical intertextuality and cyclical writing. Under the veil of the fantastic, the stories reveal existential reflections with which readers can identify themselves. The discontent of individuals and the difficulty of social relationships are revealed through indifference and stagnation of the characters of the stories. Finally, it is concluded that the Fantastic is a veil of literature that allows for a critical stance toward the events. The natural human ability of imagination allows for the construction of alternate realities that reflect new meanings for the relations between the individual and the society. KEYWORDS: Fantastic; Metalanguage; Metamorphosis; Murilo Rubião
Um ano marcante para o gênero denominado fantástico no Brasil, foi 1947, ano do
lançamento do livro O ex-mágico, de Murilo Rubião (1916 – 1991). Trata-se do primeiro livro
de temática essencialmente ambientada no fantástico. No Brasil, várias outras narrativas
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anteriores a esta já haviam sido publicadas, com características ambivalentes ao fantástico,
mas nenhuma delas teve a intenção ou a pretensão de se amparar totalmente na linha tênue da
dicotomia lógico e absurdo, pois apenas margeavam a linha da fantasia sem estar totalmente
mergulhadas nas características do gênero citado. Dentre as várias possibilidades literárias, o
conto foi a forma narrativa adotada por Rubião para expressar sua concepção de arte. Não
quaisquer contos, mas uma configuração única e recheada de particularidades, denominada
fantástica. Começava em 1947, com a publicação do seu primeiro livro, a trajetória literária de
Murilo Rubião, considerado como uma das maiores referências literárias do fantástico na
literatura brasileira. Por muito tempo, enfrentou a resistência, primeiramente dele mesmo, até
abandonar os versos e se dedicar à prosa. Posteriormente, das editoras em acolher a forma
peculiar de expressar a arte através do jogo entre lógico e absurdo; razão e desrazão,
conforme narra Vera Lúcia Andrade:
Escreveu três livros de versos que foram todos queimados, por ele mesmo, aos 23 anos, ficando apenas uns três ou quatro poemas publicados em jornais. [...] Seu primeiro livro de contos, Elvira e outros mistérios, foi recusado por sete editoras. Posteriormente escreveu O dono do arco-íris, que também não conseguiu publicar. Só o terceiro, O ex-mágico [...], é que foi editado em 1947. (ANDRADE, 1996, p. 4).
Charles Kiefer (2011, p. 301-302) afirma que o conto; cujo suporte imaterial sempre
fora a memória, herdada de sua característica transmissão oral, com o advento da sociedade
industrial e a automatização do mundo; adquiriu um aprimoramento das técnicas narrativas e
“a memória, liberada do esquematismo necessário ao arquivamento mental, pôde dedicar-se à
complexificação artística”. Essa configuração permitiu ao leitor uma compreensão dos
aspectos formais e teóricos da trama – “o que se conta”. Para os contos fantásticos, é
extremamente relevante o acontecimento. Baseado no insólito e no estranhamento, que pode
ser causado ao leitor, do cotidiano revelado em fatos fantásticos, o gênero moderno se
embasará em relatos que imitam o devaneio, próximos ao delírio, colocando o leitor numa
linha entre a realidade e o sonho.
Vera Lúcia Andrade e Wander Melo Miranda (1987, p. 12) compartilham a mesma
ideia da arte fantástica de Rubião como a capacidade de “fazer ver o invisível” em uma
trajetória inquietante compartilhada com o leitor. Eles ressaltam o caráter único dessa obra,
“resultante de uma persistência tão incomum no contexto literário brasileiro”. As constantes
reescritas e republicações de Rubião parecem não satisfazer a urgência da atualidade que, com
suas “realizações apressadas e irrefletidas”, torna tudo automático e impulsivo. A
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circularidade da obra rubiana caberia na modernidade? O que não se pode negar é que a
mesma seja “portadora de uma qualidade intelectual e artística singular”.
Segundo Fábio Lucas (1989, p. 127-128), Rubião “apoia seu processo narrativo todo
ele numa linguagem alegórica, fora do tempo profano, mas gravado num tempo e num espaço
qualitativamente diferentes, sacralizados pela memória arquétipa”. As personagens rubianas
lutam contra um mundo desumanizado numa ficção feita da mesma matéria dos sonhos,
embora totalmente contrária à predeterminação. Embora curta, a produção de Rubião é
considerada autônoma e renovadora pelo crítico: “A história curta de Murilo Rubião constitui
um desvio na sequência do realismo ontológico e existencial que se vai formando no Brasil de
após-guerra. Seus antecedentes poderiam ser os sonhos de embriaguez dos românticos e o
fabulário exemplar de Machado de Assis.”
De acordo com Goulart (1995, p. 81), uma das características mais evidentemente
originais em Rubião é o uso das epígrafes bíblicas, destituídas de seu sentido original com
funcionabilidade semântica voltada “para a narrativa num processo de intertextualidade” que
esclarece, explica ou aprofunda aspectos dos contos aos quais introduzem. Alerta-se, no
entanto, que o discurso bíblico original das epígrafes não se presta a aprofundar o sentido do
texto, no qual será inserida, portanto, não serão encontradas quaisquer outras explicações na
leitura destes textos originais que amparem o objeto fantástico. Contaminadas pelo fantástico,
as epígrafes se impregnam do gênero, mas não pretendem dizer mais do que as palavras, pois,
o fantástico pretende “mostrar aos pretensiosos que a veleidade do desvendamento completo
dos mistérios e obscuridades é tão impossível quanto à apreensão do conhecimento absoluto”
(GOULART, 2006, p. 13).
É correto afirmar que a leitura dos contos não é independente da leitura epigráfica
que teria a função amplificadora do sentido, quando faz com que a leitura da mesma volte
sobre si mesma e sobre a obra. Essa atitude reflexiva teria o poder de resultar em um processo
dialógico de intensificação semântica. Outra observação que se pode aferir às epígrafes é a
ideia de circularidade, aliás, constante em Rubião. Segundo Sérgio Alcides (2006, p. 90)
“Onde a epígrafe deveria pressupor uma relação de subordinação [...], verifica-se de fato uma
coordenação; é como se o conto estivesse ao lado, e não abaixo da epígrafe”. A leitura das
epígrafes e, posteriormente dos contos, e as releituras dos mesmos, nesse processo circular da
busca do sentido em uma ou em outro, dá sentido a essa ideia de infinitude. Assim como o
processo da busca do significado exato se equivale ao contínuo processo da reescrita em
busca desse significado, que mais rendem novos questionamentos que respostas. Essa
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circularidade nos contos remete à ideia de infinitude das estórias, pois mesmo ao se encerrar a
leitura, ficaria uma sensação de continuísmo, de um contar não acabado. A condição de
eternidade é comentada pelo próprio autor, em entrevistas: “deixei de acreditar na eternidade,
e passei a me preocupar com a mutação contínua das coisas” (RUBIÃO, 1974). Segundo
Rubião, essa ruptura religiosa teve grande influência em sua obra. Para ele, o catolicismo
estaria mais ligado à morte do que a vida e transformaria a vida em morte. A vida seria, então,
uma coisa circular que não chegaria nunca àquela eternidade, mas da qual não se poderia
livrar. Assim ele optou por: “não aceitar a eternidade e também não acreditar na morte em
vida.” O que o levaria a esse círculo constante entre a eternidade e a vida “sem aceitar essa
separação entre a vida e a morte”. (RUBIÃO, 1982, p. 4). Feitas essas observações, outras
mais se acrescentarão na análise dos contos “O ex-mágico da Taberna Minhota” e “O
pirotécnico Zacarias”.
A maior parte dos contos rubianos tem narração em primeira pessoa, dentre estes,
dois com narradores autodiegéticos: “O ex-mágico da Taberna Minhota” e “O pirotécnico
Zacarias”, da primeira obra rubiana, estão sempre em evidência. Os dois protagonistas
Zacarias e ex-mágico, compartilham uma existência incomum, sendo o primeiro deles, um
narrador morto que narra sua vida após a morte e o segundo um homem sem nome, sem
história, sem passado e sem nascimento, que surge de repente na Taberna Minhota e
simplesmente passa a existir, como num passe mágico, ou fantástico. Essa condição ímpar da
existência provocará reflexões nos dois protagonistas desses contos. Estes, sem respostas
satisfatórias aos seus questionamentos existenciais, viverão à margem da vida.
Jorge Schwartz (1981, p. 53) observa como se constrói a anulação da individualidade
através da ausência do passado e da memória, a exemplo do que ocorre com a personagem o
ex-mágico: “É um herói incontaminado pela história, condenado a retomar incessantemente o
seu percurso circular”. Segundo o crítico, quanto maior o grau de referencialidade linguística
com o receptor, maior poderá ser a carga de irrealidade alcançada pela linguagem fantástica.
Isso explicaria a qualidade de clareza que Rubião tanto tencionava alcançar com as alterações
feitas nos textos. “O sistema discursivo da ficção, através de sua linearidade e coerência, cria
o status necessário e suficiente para que o leitor dê credibilidade à narrativa” (SCHWARTZ,
1981, p. 59).
“O ex-mágico da Taberna Minhota” é o conto de abertura do primeiro livro
publicado por Rubião em 1947, e também o conto com maior número de republicações do
autor. O próprio título do conto e a epígrafe de abertura já antecipam a condição de
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desconsolo e desamparo da personagem que mesmo destituída de seus poderes mágicos, não
se sente adaptada ao mundo. Neste conto, é o próprio personagem narrador quem não aceita
sua condição no mundo: “O que poderia responder, nessa situação, uma pessoa que não
encontrava a menor explicação para sua presença no mundo? [...] Fui atirado à vida sem pais,
infância ou juventude” (RUBIÃO, 2010, p. 21). Essa falta de referência com uma existência
passada o angustia, mas não o surpreende. Esse estranhamento, vivenciado pelo leitor, de sua
condição de nascimento, tendo simplesmente aparecido na Taberna Minhota, não é
compartilhado pela personagem, que não se espanta com essa descoberta e nem com sua
condição de mágico, retirando do próprio bolso o dono do restaurante. Trata a todos com
indiferença achando previsível o sofrimento alheio:
O gerente do circo, a me espreitar de longe, danava-se com a minha indiferença pelas palmas da assistência. [...] Por que me emocionar, se não me causavam pena aqueles rostos inocentes, destinados a passar pelos sofrimentos que acompanhavam o amadurecimento do homem? (RUBIÃO, 2010, p. 22).
A ideia da morte é o que o reconforta, a princípio. Já que a primeira ação de mutilar
as próprias mãos para impedir as mágicas involuntárias não surtira efeitos práticos. Ao
perceber a impossibilidade da morte como uma solução viável para sua condição de
constituição mágica cresce a sua frustração, pois apesar de ter o dom de criar outros seres, não
podia se libertar de sua própria existência. “Ouvira de um homem triste que ser funcionário
público era suicidar-se aos poucos. [...] Por isso empreguei-me numa Secretaria de Estado”
(RUBIÃO, 2010, p. 24). Ironicamente, a personagem encontra na burocracia uma espécie de
morte progressiva e lenta. Essa temática é comum na obra rubiana, conforme afirma
Schwartz:
A burocracia, como sistema formal repetitivo condutor do absurdo pelo esvaziamento do significado é o objeto de alguns contos do Autor. É nesse ponto que a herança kafkiana é notável, na figuração de um universo onde o homem perde sua individualidade perante a massacrante força coerciva que o aparelho burocrático implica. (SCHWARTZ, 1981, p. 79-80).
Ao final do conto, já destituído de seus poderes, enclausurado na angústia da
burocracia humana, sem poder se expressar, nem para revelar seus desejos secretos de amor
não correspondido, novamente se angustia por não ter podido criar um mundo alternativo que
o abarcasse em suas especificidades mágicas. Novamente aparece uma propulsão de cores
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como tema da libertação da angústia. O ex-mágico termina ansiando pelas palmas dos homens
e criancinhas que antes, ele desprezara:
Não me conforta a ilusão. Serve somente para aumentar o arrependimento de não ter criado todo um mundo mágico. Por instantes, imagino como seria maravilhoso arrancar do corpo lenços vermelhos, azuis, brancos, verdes. Encher a noite com fogos de artifício. Erguer o rosto para o céu e deixar que pelos meus lábios saísse o arco-íris. Um arco-íris que cobrisse a Terra de um extremo a outro. E os aplausos dos homens de cabelos brancos, das meigas criancinhas. (RUBIÃO, 2010, p. 26).
“O pirotécnico Zacarias”, outro conto bem conhecido de Rubião, apresenta um
narrador defunto. Nesse conto específico, Rubião empresta a Zacarias, o protagonista do
conto, o mesmo tom irônico narratório de Brás Cubas, protagonista da obra machadiana
Memórias Póstumas de Brás Cubas, mas acrescenta-lhe características fantásticas quando o
próprio personagem afirma não estar nem vivo, nem morto. “Em verdade morri, o que vem ao
encontro da versão dos que creem na minha morte. Por outro lado, também não estou morto,
pois faço tudo o que antes fazia e, devo dizer, com mais agrado do que anteriormente”
(RUBIÃO, 2010, p. 14). De forma carnavalizadora, toda a sua dificuldade em estabelecer uma
nova existência a partir da morte, justifica-se pela impossibilidade da aceitação dos outros da
condição arbitrária dele continuar vivo após o atropelamento.
Para Malcolm Silverman, (1981, p. 198-199) “o conflito entre normalidade e fantasia
[...] é essencialmente a tese de Rubião. É a sua enigmática visão de uma realidade flutuante e
flexível.” Ele ressalta, também, os temas mais comuns na obra rubiana como sendo comuns
aos demais ficcionistas: “tédio, romance, pressões de família e crescente despersonalização.”
O crítico afirma que Rubião trata a sua tese de conflito entre realidade e fantasia empenhando-
se em defini-la com abundante simbolismo.
Pode-se observar, nesses contos, o tema da incomunicabilidade humana como fator
determinante da indiferença e reificação do mundo moderno, tema esse que condensa, em
termos, grande parte das obras que se configuraram no século XX como referência a essa
nova forma de representação das aspirações humanas em contraposição aos seus resultados
práticos. Quanto maior é a evolução mais o homem se torna distante de uma unidade que o
represente. “Incomunicabilidade e solidão, como consequências inevitáveis da existência
humana, decorrentes de sua presença no mundo, são elementos que acompanham, sem
exceção, as personagens do universo muriliano” (SCHWARTZ, 1981, p. 82).
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Em sua coletânea de contos fantásticos Páginas de sombra, Bráulio Tavares afirma
que a primeira tentativa de se definir ou descrever a literatura fantástica, sempre se dá na
forma negativa, pois, pensa-se nela pelo que ela não é. “O fantástico, por esta ótica, é tudo
que não é realista” (TAVARES, 2003, p. 7). Incorre-se nesse erro por considerar-se a busca
pela verossimilhança em uma narrativa como se fosse semelhante à busca pelo real.
O fantástico como gênero literário refere-se a um tipo específico de narrativa vigente
a partir do fim do século XVIII, caracterizado pelo surgimento de um evento que não poderia
ser explicado racionalmente, e, portanto, fugiria às leis da lógica, embora possa estar
normalmente incluído no cenário familiar incorporado à verossimilhança da vida cotidiana.
No fantástico tradicional, a narrativa trará explicações racionais ao fato insólito de forma a
deixá-las incomprovadas e gerar o efeito da incerteza permanente. Tzvetan Todorov, estudioso
do assunto, resumirá o fantástico na seguinte fórmula: “A fé absoluta como a incredulidade
total nos levam para fora do fantástico; é a hesitação que lhe dá vida” (TODOROV, 2010, p.
36).
A linguagem será ponto crucial na determinação da verossimilhança das narrativas
fantásticas. O leitor, geralmente, é levado ao convencimento pela aparente normalidade
compartilhada pelas personagens ao longo da narrativa dada a qualidade rubiana de dar voz e
aparência de verdade ao que jamais existiu. Uma das características do fantástico moderno
seria a transposição do limite da hesitação constante, exigida pelo fantástico tradicional,
adaptada ao mundo atual, onde a racionalidade impera, mas, ao mesmo tempo, há uma
necessidade em se abarcar outras culturas e conhecimentos que levariam o homem a
reconsiderar os limites do mundo real como única fonte de conhecimento. A realidade passa a
ser formada também daquilo que ela poderia ser. De acordo com Bella Josef (1986, p. 188)
“Na ficção atual, fantasia e realidade se unem até formar um mundo único e total”. O
fantástico só poderá ser entendido ao se considerar a verossimilhança como um referencial
interno da própria narrativa, essa verossimilhança teria por objeto preencher a lacuna entre
representação e representado; entre a narração e o acontecimento.
A narratividade e a fabulação são características intrínsecas ao ser humano. Narrar e
estabelecer significações para os acontecimentos resumem a base da nossa realidade. Os
vínculos entre a realidade e o imaginário são tênues linhas da mente humana, as quais podem
ser ultrapassadas através da narratividade e da fabulação presentes nos contos, tanto realistas
quanto fantásticos. Nancy Huston (2010, p. 19-20), em seu breve estudo sobre a humanidade,
vai além da significação da realidade quando afirma que o real não tem existência concreta,
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todas as marcações de tempo, espaço, língua são decorrentes da raça humana. A espécie
humana diante de uma adversidade ou situação desoladora busca alternativas e a partir delas
interpreta. Cria um novo sentido (filosófico, religioso, místico) tanto para a adversidade
quanto para as alternativas criadas. “Tudo é traduzido por nós desse modo metamorfoseado,
metaforizado”. As marcações de tempo para a espécie humana são formas de desdobramento
dos sentidos. A realidade é ficcional, uma vez que vivemos no tempo. “A narratividade se
desenvolveu em nossa espécie como uma técnica de sobrevivência”. Através de suas
fabulações, o homem dota o real de Sentido. Ao nomear objetos, seres, sentimentos, estamos
moldando, interpretando e inventando a nossa realidade. “Todo ato de dar nome é um ato
mágico. Os seres humanos são mágicos, sem se darem conta disso”.
Em Fragatas para terras distantes, Marina Colasanti (2004, p. 9) afirma que o real e
o imaginário são, em nossa cultura, duas categorias opostas onde “Um é aquilo que o outro
não é”. Essa assertiva se equivale ao apontamento feito por Tavares sobre a dificuldade inicial
em se conceituar o fantástico. E se harmoniza num movimento circular, quando se considera a
dificuldade em se definir o que é ou não é o real. Segundo Remo Ceserani (2006, p. 9) “frente
à tendência de fazer do fantástico simplesmente o contrário do realista, continuamos nos
sentindo desarmados pela dificuldade nada pequena de definir esse próprio realista”.
Segundo Josef (1986, p. 218), na modernidade, a arte, de maneira geral, alcançou a
autonomia em relação à realidade, colocando a criação artística como um valor absoluto: “A
arte atual cria um mundo autônomo, que se rebela com o estabelecido, o mitificado, negando
a realidade como valor absoluto, substituindo-a por outra mais complexa e significativa: a de
sua própria criação”.
A ficção é nosso suporte no mundo. Vivemos a ficção quando criamos ou recriamos
nosso modo de ser e viver: na religião, nos rituais, na imaginação e na história. “Elaborados
ao longo dos séculos, essas ficções se tornam, pela fé que depositamos nelas, a nossa
realidade mais preciosa e a mais irrecusável”. Essas ficções, que engendram o viver humano,
embora tecidas com o imaginário, formam a nossa forma de viver a realidade. “[...] a
consciência humana é uma máquina fabulosa... e intrinsecamente fabuladora” (HUSTON,
2010, p. 26). Compactuando com a filosofia de Huston, Colasanti afirma: “A realidade é
apenas um conceito, um a mais entre os tantos que os seres humanos engendraram para
organizar e para tentar compreender a vida” (COLASANTI, 2004, p. 10). Dessa forma, se o
real for considerado como algo perceptível pelos sentidos humanos, pode-se subjetivá-lo,
quando se considera que cada ser pode ter uma concepção diversa do outro, através dos
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sentidos, que, por serem humanos, podem não ser estáticos e universais. Em síntese: “A
imagem fantástica surge como força de intervenção no real e reflete as metamorfoses culturais
da razão e do imaginário comunitário” (JOSEF, 1986, p. 222).
Mesmo estando presente na literatura deste a antiguidade, é a partir do século XVIII
que o fantástico aparecerá como gênero literário, coincidentemente, com o advento da
modernidade. O fantástico se aproxima da modernidade pela busca de novas expressões
através do novo e da renovação da linguagem. Ele pode ser visto também como um meio de
aproximação entre as palavras e as coisas. Segundo Rubião (1980, p. 3-4), é um recurso do
escritor, na sua tentativa de fazer o texto coincidir consigo mesmo, pois “enquanto o jornalista
se agarra ao fato real, sem afastar-se da sua essência, o escritor procede de maneira inversa,
porque ele apreende nas coisas um sentido que escapa aos outros.” Rubião, enquanto
reescritor, reproduz esse gesto da modernidade, contando e recontando suas estórias que se
fundem do movimento cíclico do presente ultrapassando o passado, na busca pelo futuro. Esse
movimento é o que torna seus textos inconclusos, já que “literatura é sempre uma
transformação/deformação da realidade” (RUBIÃO, 1980, p. 3). Sandra Nunes descreve o
caráter reescritor de Rubião, como uma das características do escritor moderno: a busca pela
literalidade, conceituada como “um traço próprio da modernidade” Para ela a literalidade seria
“o desejo do texto de coincidir consigo mesmo”. Sobre Rubião ela afirma:
O gesto do escritor mineiro de escrever e reescrever reflete a tentação de destruir essa distância temporal que existe entre o ato de escrever e a interpretação desse ato. Gesto que o condena ao jogo da escrita e reescrita; negando o passado e voltando-se para o presente, o único trajeto viável é o circular. Recorrer ao fantástico talvez seja uma tentativa de inovação, quebrando com esse círculo, transformando o referencial do discurso e invertendo as noções de causa-efeito. (NUNES, 2013).
Segundo Volobuef, a narrativa fantástica “efetua uma reavaliação dos pressupostos
da realidade, questionando sua natureza precípua”, essa condição fantástica coloca em dúvida
a capacidade do leitor de “captá-la através da percepção dos sentidos” (VOLOBUEF, 2000, p.
110). Essa condição de hesitação entre a explicação lógica e a sobrenatural, ponto crucial na
conceituação desse gênero, segundo Todorov, é a razão pela qual, a linguagem das narrativas
fantásticas seja pautada na concisão e no prosaísmo. Murilo Rubião, embora não possa se
encaixar, completamente, nas definições do fantástico tradicional, muito se esmerou na
confecção da linguagem, a fim de criar o ambiente propício ao estranhamento e a indecisão do
leitor quanto aos fatos fantásticos. Escreveu e reescreveu os contos em busca de uma
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linguagem que melhor traduzisse, em qualquer tempo, o fantástico, tanto das obras, como da
própria vida.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Alcides (2006, p. 82) vê na reescritura de Rubião uma intenção de aproximar o texto
do ideal, uma forma também do questionamento humano frente aos limites da realidade e da
imaginação. Segundo ele, a leitura seria o convite para “participar do mesmo inconformismo,
transfigurado em vivência específica da condição humana frente aos limites da realidade, do
destino e do desejo”. Para Antônio Carlos Villaça (1974, p. 8), Murilo Rubião é um “criador
preocupado a um tempo com a eternidade e com a mutação do mundo. [...] Sua obra,
reduzida, é o resultado de um longo duelo com as palavras”.
Para se alcançar sintática e semanticamente o efeito fantástico, Rubião dedicou anos
à escrita dos contos, que, mesmo depois de publicados, sofriam alterações significativas no
intuito de alcançar uma forma mais clara de expor essa suprarrealidade fantástica. Segundo
Tida Carvalho (1999, p. 15), Rubião torna evidente o caráter de impotência quanto ao alcance
da expressão perfeita da palavra: “Em vários momentos de sua obra o escritor demonstra a
condição de risco de impotência e de teimosia no trato da escrita reelaborando sem cessar os
seus contos que vão e voltam em vários livros”.
Reelaborando a linguagem, o escritor buscava a clareza, tão essencial ao aspecto
fantástico que os contos almejam. Goulart (1995, p. 16) sugere um processo de compulsão
explicado como “uma força indesviável que invade o autor, levando-o a um permanente
trabalho de reelaboração de sua obra, pelo fato de considerar que a criação acabada não
existe”. Já Arrigucci Jr. (1980, p. 8) vê nesse processo uma pura manifestação da
metamorfose, que se apresenta tanto no nível da criação, quanto no nível temático. Esse
método rubiano, segundo ele, encerra um paradoxo: “estende o texto para restringi-lo; amplia-
o para concentrá-lo”. Schwartz (1981, p. 93) vê na reescrita um processo rotativo onde as
palavras “constituem a condenação à qual o Autor se submete: um contínuo re-fazer do
próprio material”. Ele acrescenta que esse movimento gera a circularidade da obra e do seu
objeto, fazendo com que o produto se transforme em processo e vice-versa.
Ao se deparar com narrativas fantásticas, o leitor será exposto a duas possibilidades:
tentar reconhecer, nas narrativas, aspectos naturais ou sobrenaturais, características estas que
aproximem ou afastem os acontecimentos do mundo real e conhecido ou, ainda, reconhecer
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que a realidade não é tão conhecida assim, que existem aspectos fabuladores no cotidiano que
permitiriam fluir estórias aparentemente absurdas, mas internamente possíveis. Essas
interpretações paradoxais que consideram primeiramente a obra em relação ao mundo e, a
seguir, o mundo em relação à obra é que tornam mais fascinante o estudo do fantástico. A
condição da hesitação, descrita por Todorov como básica para a classificação de uma narrativa
como fantástica, poderia pautar-se nessa condição da fantasticidade do cotidiano, ou seja, as
possibilidades e formas diversas de narrar e fabular da humanidade frente aos seus desafios e
adversidades e, até mesmo, frente à rotina do cotidiano. O que se pode concluir, é que o
fantástico é, “por natureza, antinômico, aliando sua irrealidade primeira a um realismo
segundo” (GOULART, 1995, p. 34).
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A personagem feminina dannunziana: entre Górgona e Salomé
Claudia F. de Campos MAURO (UNESP – FCL – Araraquara)
RESUMO: Escolhemos como objeto de estudo deste trabalho o romance Trionfo della Morte, do escritor italiano Gabriele D’Annunzio. As personagens femininas têm presença constante e marcante no espaço da criação artística dannunziana. Como o nosso foco de atenção está, neste momento, voltado para a construção da personagem feminina enquanto mulher fatal e várias são as que se enquadram nesta categoria espalhadas pelos escritos dannunzianos , encontramos em Trionfo della Morte a solução adequada à nossa necessidade de delimitação do corpus deste trabalho. O mito bíblico de Salomé é invertido a partir do momento em que, ao invés de seduzir e destruir, Ippolita, a personagem principal do romance, seduz e é destruída; enquanto Salomé deseja a morte de João Batista, Ippolita não deseja , de modo algum, a morte , nem de Giorgio e nem a própria. D’Annunzio também não relaciona erotismo a pecado e castigo, mas à pura satisfação dos instintos e, portanto, ligado ao banal, ao animalesco, distante da situação almejada por Giorgio; o erotismo é, então, algo negativo, mas não por ser pecado cristão. É muito mais marcante em Trionfo della Morte a presença do mito pagão da Górgona que a do mito cristão de Salomé. PALAVRAS-CHAVE: Gabriele D’Annunzio; Personagens femininas; Mulher fatal; Górgona; Salomé. ABSTRACT: We have chosen as the object of this study the novel Trionfo della morte by Gabriele D’Annunzio. The feminine characters are a constant and important presence on the writer’s artistic creation. Our attention is, at this moment, focused on the feminine character’s construction as fatal woman and there are several of them on D’Annunzio’s works. We have found in Trionfo della Morte the best object of study for this work. The biblical myth of Salome is inverted from the moment that, instead of seducing and destroying, Ippolita, the main character of the novel, seduces and is destroyed. While Salome wants the death of João Batista, Ippolita doesn’t want the death of Giorgio; she doesn’t want her own death either. D’Annunzio doesn’t make a relation among eroticism, sin and punishment; he makes a relation between eroticism and instinct satisfaction, far from the situation desired by Giorgio. The eroticism is something negative but not associated to a Christian sin. In Trionfo della Morte, the presence of the pagan myth of Gorgona is much more significant than the Christian myth of Salome. KEYWORDS: Gabriele D’Annunzio; feminine character; fatal woman; Gorgona; Salome
Sendo frequente a presença da figura da mulher fatal na produção artística do final
do século XIX, escolhemos como objeto de estudo deste trabalho o romance Trionfo della
Morte do escritor italiano Gabriele D’Annunzio. As personagens femininas têm presença
constante e marcante no espaço da criação artística dannunziana e optamos por Trionfo della
Morte (1894) por apresentar uma personagem feminina muito mais trabalhada do ponto de
vista da mulher fatal.
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Publicado em 1894, após várias interrupções e retomadas durante o processo de
composição, este romance, idealizado, a princípio, com o título de L”Invincibile, apresenta
um enredo, em si, muito simples: trata-se da relação amorosa entre Giorgio Aurispa e Ippolita
Sanzio. Giorgio é um rapaz de 25 anos, de origem nobre, família rica, detentor de certa
cultura, inclinado a reflexões e que deixa a aldeia de origem para viver em Roma, afastado do
provincianismo de sua terra. Em Roma conhece Ippolita que, por ele, abandona o marido,
com quem mantinha um casamento falido. A figura da morte atormenta Giorgio do início ao
final da narrativa, quando acaba se atirando em um abismo , levando consigo Ippolita.
Pretendemos verificar as mudanças sofridas pela personagem Ippolita ao longo da narrativa,
até que ponto ela influencia as atitudes de Giorgio e, por fim, em que medida ela pode ser
vista como mulher fatal.
Na cena que abre o romance, o casal Giorgio e Ippolita passeia por um lugar (Pincio)
tipicamente destinado ao amor romântico, quando se deparam, de repente, com o episódio do
suicídio de um rapaz desconhecido que se atira num precipício. A relação entre os amantes
recebe, então, um primeiro sinal de tragicidade, como se a presença da morte , neste
momento, fosse já uma espécie de presságio fúnebre, uma antecipação daquilo que iria ser o
destino dos dois. A partir daí, a morte passa a se apresentar como elemento determinante do
pensamento e das atitudes de Giorgio, caracterizado, desde o início, como um indivíduo
ansioso, atormentado pelo peso da reflexão, um homem que carrega consigo “il gusto delle
cose amare”, impedido , pelo excesso de análise, de viver intensamente suas emoções. Ele
vive uma dolorosa necessidade de introspecção, que o leva a buscar, das mais diversas
formas, alívio para suas angústias , para o seu “cerebralismo”.
Ainda nas páginas iniciais da narrativa surge, através do fluxo de pensamento de
Giorgio, a figura de Demetrio, o tio suicida, de quem ele se considera herdeiro da
sensibilidade exagerada e do destino de morte. Neste cenário da vida de Giorgio, construído
com bases na sensibilidade analítica e na certeza de um destino mórbido, entra em cena
Ippolita Sanzio, inicialmente bela, doce e humilhada pelo marido. Assim, entre Giorgio e seu
suposto direcionamento para a morte está Ippolita, representante do “fascínio feminino
eterno” celebrado no romance. A imagem desta mulher , que se agiganta ao longo da
narrativa, atua de modo decisivo no cumprimento do destino previamente assumido e
desejado por Giorgio, agindo diretamente sobre seus sentidos: “La potenza d’Ippolita, quasi
magica, consisteva appunto nell’intuire quel fantasma interno e nel convertirlo in realtà
sensibile su i nervi di lui.” (D’ANNUNZIO, 1995a , p.315).
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Mario Praz, em seu famoso livro La carne, la morte e il diavolo nella letteratura
romantica, define a mulher fatal simbolista-decadente como uma figura dotada de mais
estetismo e exotismo em relação à sua equivalente romântica; possuidora de feminilidade
prepotente, ambígua e cruel, ligada à perversão, ao instinto e à morte. Em 1893, portanto um
ano antes da publicação de Trionfo della Morte, Gabriele D’Annunzio apresenta ao leitor
italiano Pamphila, representante da mulher fatal detentora de toda a experiência sexual do
mundo:
oggi il potere occulto del mio sogno/ evoca per disgusto mio supremo/quella che fu da tutti posseduta/e il suo veleno/letale infuse nel più ricco sangue,/ tutti i nomi/più dolci e ardenti apprenderò che ai mille amanti ella avrà dati in un sospiro/o in un grido[...] ( D’ANNUNZIO, 1995b, p.356-357).
No ano seguinte, o autor publica Intermezzo, um grupo de poemas dentre os quais
uma parte, composta por doze sonetos, é dedicada às adúlteras; entre elas estão Helena,
Herodíades, Isolda, Lady Macbeth e outras. O primeiro retrato discursivo da mulher fatal e
cruel surge nesse mesmo ano (1894), no romance Trionfo della Morte e através da
personagem Ippolita Sanzio, marcadamente inclinada ao sexo, à luxúria e à sensualidade.
Enquanto Ippolita é carnal e tem seu destino marcado pelo desejo voluptuoso, Giorgio é
cerebral , pois reflete sobre a impotência da vontade diante do destino.
Esta mulher, até certa altura do romance, é doce, frágil, fisicamente debilitada,
temerosa e inexperiente, correspondendo à idealização de Giorgio. Como tantas outras
heroínas do decadentismo, Ippolita é doente de corpo e de espírito e, justamente por isso,
exerce imenso fascínio sobre Giorgio, que se sente encantado por esta criatura não bonita,
epiléptica e estéril. O que o atrai nesta figura marcada pela transgressão é o fato de que ela
representa o oposto à saúde, a proximidade com a possibilidade da morte. Aos olhos de
Giorgio, a beleza da amada estava ligada ao que ela tinha de menos belo, de mais vulgar:
egli sentiva d’esser legato appunto alla qualità reale di quella carne e non solo a quanto eravi di più bello, ma specialmente a quanto eravi di men bello in lei. La scoperta d’una bruttura non rallentava il vincolo, non diminuiva il fascino. I lineamenti più volgari esercitavano su di lui un’attrazione irritante. (D’ANNUNZIO, 1995a, p. 279).
A esterilidade feminina aparece constantemente na literatura decadentista como
desvio da norma e, no caso específico do romance em questão, está ligada à não continuidade
da vida; Ippolita é, portanto, a mulher que traz em si a negação da vida, que não é , então,
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completamente feminina, limitada na função procriadora. Destituída de fecundidade,
elemento diretamente relacionado ao sexo feminino, Ippolita, de certa forma, “toca” o
andrógino, pois contém também o masculino, relacionado, entre outras coisas, à força (neste
caso, de sedução) e à impossibilidade de gerar outro ser. À esterilidade de Ippolita se
contrapõe a fecundidade da jovem camponesa, símbolo do respeito à ordem natural das
coisas, do perfeito cumprimento da função feminina, da natureza em seu aspecto harmonioso.
A camponesa prestes a entrar em trabalho de parto é assistida pela sogra que, por sua vez,
tinha tido vinte e dois filhos; este quadro de fertilidade evidencia a esterilidade , num
confronto entre o apolíneo e o dionisíaco. Como uma espécie de compensação, a protagonista
do Trionfo consegue aguçar a sua feminilidade através do desenvolvimento do seu poder de
sedução. A esterilidade de Ippolita, no nível físico, corresponde à esterilidade de Giorgio no
nível mental, que o conduz à negação de qualquer impulso para a vida.
Na busca de alívio para suas angústias e equilíbrio para suas emoções através da
simplicidade da vida do campo, Giorgio se isola com Ippolita em San Vito . Por trás deste
desejo de composição de um mundo ideal percebe-se a influência de Nietzsche e
Schopenhauer.
Anch’egli, a similitudine de alcuni singolari artefici e filosofi contemporanei con i quali aveva comunicato, ambiva di comporsi un mondo intorno dove poter vivere con metodo, in perpetuo equilibrio e in perpetua curiosità, indiferente ai tumulti e alle contingenze volgari. (D’ANNUNZIO,1995a, p.153)
Neste sentido, podemos aproximar Giorgio e Des Esseintes pois, não adaptados à
vida comum, sentindo-se impossibilitados de lidar com problemas comuns, vêem no refúgio a
possibilidade de alcance de condições ideais de vida. Porém, diante do fracasso da tentativa,
um escolhe a morte e o outro opta pela fé cristã.
Ao mesmo tempo que deseja o amor fraterno, sendo um homem cujo pensamento
domina a vontade, produz imagens em abundância e motiva alucinações, Giorgio sente-se
atormentado também pelo desejo do amor sensual e passa a ver , ao lado da imagem
idealizada de Ippolita, a figura da mulher carnal.
La libidine ereditaria scoppiava ancora una volta, con invincibile furia, in quel delicato amante che si piaceva di chiamar sorella la sua amata, avido di comunione spirituali. [...] Egli considerò a una a una , mentalmente, le carezze della sua amata. Ciascuna attitudine assumeva un fascino voluttuoso d’una intensità quasi inconcepibile. In lei tutto era luce, aroma, ritmo. (D’ANNUNZIO,1995a, p.159)
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Desta forma, Giorgio vive um angustiado estado de embriaguez, de constante
conflito com seus instintos, provocado pela associação entre sensações e imaginação: “Questo
contrasto bizzarro fra la lucidità del pensiero e la cecità del sentimento, tra la debolezza della
volontà e la forza degli istinti, tra la realtà e il sogno, produceva su lui disordini funesti.”
(D’ANNUNZIO,1995a, p.156-157).
A ida para San Vito representa o marco inicial em relação ao processo de
transformação de Ippolita. Concentrado no esforço para dominar e sublimar os instintos,
Giorgio leva consigo a mulher perfeitamente idealizada, não considerando qualquer
possibilidade de mudança no comportamento da companheira. Esta idealização é reforçada
pela disposição inicial de Ippolita em se deixar transformar na mulher perfeita para Giorgio,
alimentando seu desejo de um amor “sano e forte”:
Tu mi vedrai un’altra. Sarò buona, tenera, dolce. [...] Sarò la tua amante, la tua amica, la tua sorella; e, se mi crederai degna, anche la tua consigliera. [...] Io ho molti difetti, amico, mio. Ma tu mi aiuterai a superarli. Tu mi farai perfetta per te. (D’ANNUNZIO,1995a, p.139).
Paralelamente a este desejo de felicidade, existe entre Giorgio e Ippolita um clima
de incomunicabilidade e de tensão que favorece a presença da figura da morte entre os dois,
encarada por Giorgio como solução para este crescente estranhamento.
À medida que comunga com a natureza, Ippolita vai assumindo a personalidade da
fêmea, instintiva, de desejo incontrolável, luxuriosa e dominadora. Assim, numa diabólica
harmonia com a natureza, Ippolita toma consciência do seu poder de sedução e passa de
mulher-irmã a mulher-amante, impenetrável e cruel; mulher-esfinge, que devora aquele que
não decifrar seu enigma. A debilidade física vai sendo superada pela saúde e, neste processo
de distanciamento em relação à morte, Ippolita começa a se afastar da idealização de Giorgio:
“Ella già mi è apparsa, veramente, un’altra ! Incomincia a mutarsi anche nell’aspetto. È
incredibile la rapidità con cui ella assorbe la salute. [...] Ella diventa ogni giorno più puerile
negli atti, nei gusti, nei desiderii” (D’ANNUNZIO,1995a, p.191).
Esta expansão incontrolável da sensualidade de Ippolita é acompanhada de uma
crueldade que se intensifica quanto mais forte o prazer físico, aproximando-a à figura da
Górgona:
La crudeltà è latente in fondo al suo amore’ egli pensò. Qualche cosa di distruttivo è in lei, più palese quanto più forte è il suo orgasmo nelle carezze
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[...] E rivedeva, nella memoria, l’imagine terrifica e quasi gorgònea della donna quale più volte era apparsa, tra le palpebre socchiuse, a lui convulso in un spasimo o inerte in uno sfinimento estremo (D’ANNUNZIO,1995a, p.274).
Assim como a Pamphila do Poema Paradisiaco, Ippolita domina a arte de sedução; a
mulher doce e ingênua é substituída pela “fêmea histérica”, insaciável, incapaz de controlar
seu desejo:
Gli sembrava ora per lei necessaria la presenza continua del maschio, necessario il lusso circostante. Ora ella gli appariva come una donna irresistibilmente data al piacere in qualunque forma, a traverso qualunque degradazione. (D’ANNUNZIO,1995a, p.367)
Giorgio passa a ver na amante uma verdadeira inimiga, um obstáculo ao equilíbrio
almejado já que, em sua “animalidade”, ela se torna cada vez mais desejada, uma “belle
femme sans merci”, instrumento de prazer, ruína e morte:
[...] nella persona d’Ippolita vedeva soltanto l’immagine astratta del sesso; vedeva soltanto l’essere inferiore, privo privo d’ogni spiritualità, semplice strumento di piacere e di lascivia, strumento di ruina e di morte. (D’ANNUNZIO,1995a, p.184)
A morte da companheira surge, então, como única possibilidade de libertação do
domínio carnal exercido por ela já que, para Giorgio, o único meio de atingir o sentimento
verdadeiro é através da eliminação do impuro, ou seja, remetendo-se a Zola e Nietzsche, é
preciso “destruir para possuir”:
Ella è dunque la Nemica [...] Morta , ella diventerebbe materia di pensiero, pura idealità. Da una esistenza precaria e imperfetta ella entrerebbe in una esistenza completa e definitiva, abbandonando per sempre la sua carne inferma, debole e lussuriosa. - Distruggere per possedere - non ha altro mezzo colui che cerca nell’amore l’Assoluto. (D’ANNUNZIO,1995a, p.214)
Giorgio é, desta forma, aterrorizado por esta “mestra soberana em carícias”, que se
excita à medida que percebe o efeito do seu domínio. Ippolita aniquila os sentidos de Giorgio
e, assim. o “petrifica”; através da “destruição” do outro, esta Medusa, violenta e agressiva
busca, por meio do olhar, o seu prazer.
[...] ancora una volta la Nemica esperimentava su lui trionfalmente il suo potere. Pareva ch’ella gli significasse: [...] - E nulla m’inebria più che il
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leggere ne’ tuoi occhi e il sorprendere nel fremito delle tue fibre questo terrore. (D’ANNUNZIO,1995a, p.313) Ma di quell’inestinguibile desiderio, da lei acceso nell’amante, ella medesima ardeva. [...] La consapevolezza del suo potere, mille volte esperimentato senza fallire, la inebriava. (D’ANNUNZIO,1995a, p.315)
É muito importante observar que a personagem Giorgio está ligada à figura
dannunziana do super-homem, ou seja, o indivíduo eleito, que não pode pertencer às massas,
que traz no sangue uma herança de nobreza, superior, enfim, à grande maioria. Não podemos
deixar de considerar que as situações e as personagens de Trionfo della Morte são construídas
em função deste super-homem, mito de derivação nietzschiana que direciona, por um certo
tempo, a produção de D’Annunzio. Os conflitos familiares vividos por Giorgio como a
relação com a mãe, os problemas com o pai e o irmão, o desprezo pelos cunhados e a aversão
ao provincianismo revelam sua posição marginal em relação ao meio. Segundo ele, a
salvação para esta situação pode estar no retorno a Abruzzo, região central da Itália, e
integração com o misticismo da província ou na nobreza de sua origem. A primeira
possibilidade ele experimenta sem sucesso, pois descobre que o espírito primitivo do povo
está ligado a misérias morais e físicas e a superstições humilhantes. Passagens como a do
“menino sugado pelas bruxas” e da “peregrinação a Casalbordino” revelam um evidente
predomínio de doenças deformantes e das humilhações a que estes doentes se submetem. Os
doentes, a tia Gioconda e o sobrinho Luchino, entre outros, participam do “desfile da
decadência”, marcado por podridão, doença, aparência de morte, feridas e deformações em
geral.
Giorgio opta, então, por seguir o destino de sua origem nobre , onde a afirmação da
nobreza através da morte é a alternativa mais adequada ao super-homem; por meio dela ele
concretiza todas as referências mórbidas feitas ao longo do romance: o suicídio do início, o
episódio do afogado, a morte de Don Defendente, o suicídio de Demetrio, a exaltação da
debilidade de Ippolita e o destino de morte do sobrinho Luchino, herdeiro de Giorgio e
Demetrio.
Devemos considerar que Ippolita não leva Giorgio à morte, criando um
acontecimento inesperado, e sim desperta no rapaz o que o ele já possuía no sangue nobre: a
obsessão pela morte. O estranhamento que, mais de uma vez se manifestou entre os dois,
justamente pela superioridade de um em relação ao outro, só desaparece no final quando,
diante do abismo que os separa, a solução é atirar-se, literalmente, nesse abismo, único gesto
capaz de colocar em igualdade os dois amantes que, assim, “precipitarono nella morte
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avvinti”. Ippolita conduz Giorgio à morte, fazendo com que se cumpra o destino do super-
homem, neste caso, a morte nobre e não a volta à barbárie. Quanto à morte da própria
Ippolita, é o super-homem quem a determina, “emprestando” a ela a sua nobreza; viva, ela é
mulher do povo, morta ela é enobrecida. Portanto, a qualidade de mulher fatal, atribuída à
Ippolita, está diretamente ligada à etmologia da palavra fatal, relacionada a destino. A mulher
fatal, neste caso, é um instrumento deste destino de nobreza, que acaba se manifestando
mesmo na decadência.
O mito bíblico de Salomé é invertido a partir do momento em que, ao invés de
seduzir e destruir, Ippolita seduz e é destruída; enquanto Salomé deseja a morte de João
Batista, Ippolita não deseja, de modo algum, a morte, nem de Giorgio e nem a própria.
D’Annunzio também não relaciona erotismo a pecado e castigo, mas à pura satisfação dos
instintos e, portanto, ligado ao banal, ao animalesco, distante da situação almejada por
Giorgio; o erotismo é, então, algo negativo, mas não por ser pecado cristão. É muito mais
marcante em Trionfo della Morte a presença do mito pagão da Górgona que a do mito cristão
de Salomé.
Quando Ippolita morde o pão e o oferece a Giorgio, se estabelece uma promessa de
felicidade, de cura, de vida e de pureza que, porém, acaba resultando em instinto e
animalidade. Esta vida nova, ao invés de levar a Deus, como em Dante, conduz à luxúria. Já
no final do romance, Ippolita morde um pêssego e o oferece a Giorgio; esta alusão ao fruto
proibido vem acompanhada de um ritual de provocação sensual e, ao invés do castigo, da
expulsão do Éden, propicia a recompensa, a realização do desejo de morte de Giorgio, que se
mata não porque fracassa, mas porque triunfa diante de um mundo decadente.
Diante do mistério da mulher fatal, embora aparentemente se deixem dominar pela
sedução e pelo magnetismo femininos, os “super-homens” de D’Annunzio acabam se
impondo e, assim como Perseu , o algoz da Medusa, submetem a personagem feminina aos
próprios objetivos e desejos . Beatriz “seduz” Dante e o leva ao paraíso cristão; Ippolita tenta
vencer a prepotência viril com a sua luxúria e, ao contrário de Beatriz, é arrastada para uma
morte não desejada.
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Diálogo intertextual entre Victor Hugo e Charles Nodier: o fantástico no poema “La ronde du
sabbat” (1825) e no conto “Smarra ou les Démons de la Nuit” (1821)
Daniela Mantarro CALLIPO (UNESP – FCL –Assis)
RESUMO: A décima quarta balada da coletânea Odes et Ballades, publicada em sua versão definitiva por Victor Hugo, em 1828, intitula-se “La ronde du sabbat” e é dedicada a Charles Nodier (1780-1844), considerado precursor do conto fantástico na França. Nesse poema criado em 1825, Hugo alude a Smarra, o cruel demônio criado por Nodier em seu romance Smarra, ou les démons de la nuit, de 1821. A escolha de uma “balada” favorece o sonho e a evocação de superstições, além de inserir na poesia a noção de grotesco, tão cara a Hugo. Em um ambiente noturno, macabro e sinistro, o poeta descreve o encontro de Satã com seus seguidores, dentre os quais uma feiticeira. Hugo dedica o poema a Nodier, estabelecendo com ele um diálogo intertextual. Nodier, por sua vez, no prefácio de seu conto, admite ter feito um “pastiche dos clássicos”, remetendo sua criação a Virgílio, Dante e Shakespeare, entre outros. Tomando-se por base as teorias apresentadas por Todorov (1975), pretende-se comparar o poema hugoano “La ronde du sabbat”, tendo em vista sua construção baseada no sobrenatural, e o conto de Nodier “Smarra ou les Démons de la Nuit”, que permite aproximações com o gênero fantástico. PALAVRAS-CHAVE: poesia; Victor Hugo; conto; Charles Nodier; fantástico ABSTRACT: The fourteenth ballad of Odes et Ballades published in its definitive version by Victor Hugo in 1828, is called “La ronde du sabbat” and it is dedicated to Charles Nodier (1780-1844), considered a precursor of the fantastic story in France. In this poem created in 1825, Hugo alludes to Smarra, the cruel demon created by Nodier in his novel Smarra, ou les démons de la nuit of 1821. The choice for a “ballad” favors dreams and evocations of superstitions, and besides it allows for the grotesco in the poetry, so important to Hugo. In a night time environment, macabre and sinister, the poet describes the meeting of Satan with his followers, amongst which a witch. Hugo dedicates the poem to Nodier, establishing with him an intertextual dialogue. Nodier, in his turn, in the preface of his novel, admits to have done a “pastiche of the classics” by referring to Virgílio, Dante and Shakespeare among others. Based on the theories presented by Todorov (1975) and Vax (1972), the poem “La ronde du sabbat”, by Vitor Hugo and “Smarra ou les démons de la Nuit”, by Nodier, will be compared regarding their approaches to the fantastic. KEYWORDS: poetry; Victor Hugo; novel; Charles Nodier; fantastic.
Os primeiros poemas escritos por Victor Hugo datam de sua adolescência: aos 13
anos, compõe uma canção política intitulada “Vive le Roi! Vive la France!” que registra a
derrota de Napoleão I, chamando-o de “negro demônio da guerra”. A partir dos 14 anos, faz
uma média de 30 versos por noite, praticando imitações, fábulas, charadas, compondo
alexandrinos impecáveis, perfeitos, sonoros.
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Em 1817, participa do concurso anual da Academia Francesa, com uma ode de 334
versos que impressiona os “imortais” e, se não lhe possibilita obter o primeiro lugar, por causa
da idade, abre-lhe as portas para o reconhecimento dos membros da Academia e lhe traz fama
imediata. Hugo torna-se o enfant sublime, respeitado e conhecido. Aos 17 anos, vence o
concurso anual da Académie des Jeux Floraux e, no ano seguinte, repete a proeza, sendo
nomeado Maître ès Jeux Floraux. Começa, então, a se dedicar à poesia, publicando, entre
1819 e 1821, 22 poemas no Conservateur Littéraire, jornal que dirigia com o irmão Abel.
Em 1822, lança a coletânea Odes et Poésies Diverses, da qual foram vendidos 1.500
exemplares, o que lhe proporcionou a importante soma de 750 francos, uma fortuna para um
rapaz de 20 anos. Nessas odes, versos que comemoram o nascimento do duque de Bordeaux,
pranteiam a morte do duque de Berry e também poemas que Saint-Beuve denominará “ôdes
revêuses”, em que o jovem poeta, de ordinário austero e rígido, deixa-se levar pelo sonho e
até por divagações metafísicas, prática condenada pelos críticos conservadores.
Isto quer dizer que, ao contrário do que se costuma afirmar, as Odes de Victor Hugo
não são totalmente “clássicas” e embora aceitasse as críticas com humildade, e refizesse
alguns poemas considerados impróprios ou audaciosos, faz escolhas que já revelam a sua
visão do poeta-profeta. O poema inicial do volume, “Le Poète dans les révolutions”, mostra
que as Odes respeitam as tradições, mas instauram um novo olhar sobre os fatos, olhar este
que seria, mais tarde, denominado romântico.
O enfant sublime tem o espírito irrequieto, a vontade de modificar a história da
Literatura Francesa. Em 1824, compõe as primeiras Ballades, gênero pré-clássico, abolido e
execrado pelos seguidores de Boileau. Mas Hugo já estava decidido a iniciar uma revolução
estética que não poderia se dissociar da revolução política: dois anos mais tarde, publica Odes
et Ballades, sabendo que a decisão implicará em ruptura com o Classicismo. A epígrafe
retirada da obra de du Bellay indica a intenção do jovem autor: “Renouvelons ainsi toute
vieille pensée” (HUGO: 1968, p. 233). Novos pensamentos e novas formas de expressá-los,
pois as Ballades não aceitam alexandrinos, exigem versos curtos, econômicos, ritmos
variados, rimas ricas.
O poema “La ronde du sabbat” foi escrito por Victor Hugo em 1825 e publicado em
Odes et Ballades na edição de 1828. Embora tenham sido agrupadas em um só volume, Hugo
distingue as duas produções, afirmando que as Odes são reflexo de uma inspiração religiosa,
de um estudo antigo e a tradução de um acontecimento contemporâneo ou de impressão
pessoal. Já os poemas reunidos sob o título de Ballades têm uma característica diferente: são
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quadros, sonhos, narrativas, lendas supersticiosas, tradições populares. No prefácio da obra,
Hugo afirma ter colocado mais de sua alma nas Odes e mais imaginação nas Ballades; estas
últimas significariam um retorno à época medieval e a afirmação de um imaginário mágico e
sobrenatural.
“La ronde du sabbat” é dedicada A M. Charles Nodier (1780-1844) e é uma típica
balada: a primeira estrofe é a mais longa, não só pelo número de versos, mas por conter
alexandrinos que, embora não sejam comuns nesse tipo de poema, são bastante adequados
para a descrição que o eu lírico faz do mosteiro, com suas altas torres, seus vitrais destruídos,
seus sepulcros desertos. As estrofes que seguem possuem 9 versos de cinco sílabas e são
intercaladas por um refrão: “Et leurs pas, ébranlant les arches colossales/ Troublents les
morts couchés sous le pavé des salles” (HUGO, 1968, p. 276), que traz musicalidade ao
poema, ao mesmo tempo em que reforça seu aspecto ritualístico.
Os versos hugoanos descrevem um ritual satânico que ocorre à meia-noite em um
monastério abandonado, e é um reflexo invertido da missa cristã: o culto é comandado pelo
próprio Diabo e o eu lírico convida o leitor a assisti-lo:
Voyez devant les murs de ce noir monastère La lune se voiler, comme pour un mystère ! L'esprit de minuit passe, et, répandant l'effroi, Douze fois se balance au battant du beffroi. (HUGO, 1968, p. 275)
Uma multidão de monstros e fantasmas invade a noite, observados por Deus. Os
versos curtos e rítmicos representam um canto demoníaco ao qual devem juntar-se o eu lírico
e o leitor que não têm escolha, não podem escapar ao fascínio provocado pelo horror:
Mêlons-nous sans choix : Tandis que la foule Autour de lui roule Satan, joyeux, foule L'autel et la croix. L'heure est solennelle. La flamme éternelle Semble, sur son aile, La pourpre des rois ! (HUGO, 1968, p. 276)
Surge a figura mítica da feiticeira, cujo tratamento como ser maléfico, entidade da
arte demoníaca da Idade Média e a sonoridade das palavras criam um efeito de encantamento
que permite ao leitor cruzar o espaço que separa o aqui real e o além fantástico e sombrio. A
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ronda do sabbat convida todos os excluídos a seguirem o festim diabólico: feiticeiras, judeus,
monstros, duendes, espíritos maus. Na décima oitava estrofe, surge o nome de Smarra:
Satan vous verra ! De vos mains grossières, Parmi des poussières, Ecrivez, sorcières : ABRACADABRA ! Volez, oiseaux fauves, Dont les ailes chauves Aux ciels des alcôves Suspendent Smarra ! (HUGO, 1968, p. 278)
Entretanto, o sol começa a nascer e o inferno reclama a presença de seu rei. Os
demônios se dispersam e os mortos voltam a dormir em seus túmulos.
Como o poema é dedicado a Nodier, e o eu lírico faz uma alusão a Smarra, é possível
estabelecer um diálogo intertextual com o conto fantástico “Smarra ou les démons de la nuit”,
conto publicado em 1821, que relata a descida aos infernos de Lorenzo, por meio de um
pesadelo repleto de monstros e demônios. O conto foi exemplarmente analisado por Camarani
em seu artigo “Delírios românticos: o universo frenético de Charles Nodier” (2005). A
pesquisadora afirma tratar-se de uma narrativa escrita sob o signo do frenético, nomeação
criada pelo próprio autor, que teria se desenvolvido a partir do roman noir e determinaria uma
evolução no gênero em direção ao “fantástico sério”; ou seja, uma literatura fantástica
“verossímil e artística”. “Smarra” seria, portanto, um modelo desse tipo de fantástico, que
repousa na “observação psicológica” e na “valorização do inconsciente”.
Smarra é o nome do espírito mau que os antigos acreditavam ser responsável pelos
pesadelos. Nodier adverte o leitor no prefácio do conto, que é preciso ler a narrativa como a
descrição de um sonho e, para compreendê-lo, é necessário ter experimentado as ilusões do
pesadelo, das quais o poema por ele criado é a história fiel. (NODIER, 1961, p. 33-34).
O conto criado por Nodier é composto por narrativas sobrepostas, nas quais o real e o
sonho (ou o pesadelo) se confundem: o primeiro plano da narrativa mostra Lorenzo que
adormece tranquilamente nos braços de sua jovem esposa Lisidis, após a celebração de seu
casamento: “Le sommeil me gagne aussi, mais il descend cette fois sur mes paupières,
presque aussi gracieux qu’un de vos baisers. Dormez, Lisidis, dormez” (NODIER, 1961, p.
45). O segundo plano já se passa no sonho de Lorenzo, em que Lucius, seu duplo mítico,
emerge da Grécia antiga e caminha em direção a seu palácio: a solidão, a noite, o cansaço
fazem com que ele mergulhe em um sonho profundo, auxiliado pelo passo ritmado do cavalo.
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Mas o sono, longe de prejudicar-lhe a viagem, suspendia por mais tempo o medo que tinha da
noite. (NODIER, 1961, p.48). Lucius também sonha e, em seu pesadelo, encontra seu amigo
Polémon que caminha sem cessar, prisioneiro do demônio do pesadelo: é o terceiro plano da
narrativa, que mostra ainda um combate entre as luzes e as trevas, isto é, entre os espíritos do
bem e os do mal. Lucius e Polémon conseguem chegar ao palácio e encontrar a paz,
confortados pela música de Myrthé. Ainda segundo Camarani (2012), o quarto plano refere-se
ao relato que faz Polémon de suas aventuras (é preciso lembrar que são seus sonhos) e de sua
paixão fatal por Méroé, a rainha dos terrores noturnos. Ao terminar seu relato, volta-se ao
terceiro plano: Lucius é acusado da morte de Myrthé e de Polémon, e tem sua cabeça cortada.
A partir desse momento, os planos se confundem: Lorenzo está próximo do despertar
ou, em outras palavras, de retornar de sua viagem aos infernos; Lucius volta a seu palácio e vê
o fantasma de Polémon. Myrthé e suas irmãs, transformadas em feiticeiras, disputam
avidamente o coração arrancado do peito de Polémon. Lorenzo desperta – é o retorno ao
primeiro plano – e encontra o amor reconfortante de sua mulher que, tal qual o sol nascente,
espanta os demônios e as feiticeiras. Tranquilizado, adormece novamente, o que sugere a
continuação do pesadelo.
O conto de Nodier emprega tanto o sonho quanto a loucura como elementos
desencadeadores de acontecimentos sobrenaturais, o que torna a narrativa fantástica
verossímil, diferenciando-a dos excessos da literatura gótica. Para Camarani (2012, p. 98),
Muitas das narrativas fantásticas do autor apresentam-se estruturadas em dois níveis: no do fantástico e no da explicação racional. No plano simbólico, representariam uma busca – a do paraíso perdido, da eternidade, do amor ideal; no plano lógico, poderiam ser entendidas como manifestações do inconsciente – o mundo onírico sobrepondo-se aos acontecimentos da vida objetiva, os episódios sonhados antepondo-se aos acontecimentos do real.
“Smarra ou les démons de la nuit” é um conto fantástico, porque como afirma
Tzvetan Todorov “há um fenômeno estranho que pode ser explicado de duas maneiras, por
tipos de causas naturais e sobrenaturais. A possibilidade de vacilar entre ambas cria o efeito
fantástico” (TODOROV, 1975, p. 16). O crítico defende que o fantástico e o sobrenatural só
existem por causa da dúvida, o que não pode ser observado no poema de Victor Hugo.
Primeiramente, Todorov afirma que o fantástico só pode subsistir na ficção: “a poesia
não pode ser fantástica” (1975, p. 68). Mas, como descrever um poema que contém quase os
mesmos elementos de um conto fantástico, como o sobrenatural, a presença de fantasmas,
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demônios e feiticeiras. A resposta está nesse “quase”, que marca uma diferença fundamental
entre o poema hugoano e o conto de Nodier. “La ronde du sabbat” deve ser compreendido
como um poema gótico, enquanto “Smarra ou les démons de la nuit” pertence, de fato, ao
gênero fantástico:
Tanto o gótico quanto o fantástico fundamentam-se em duas ordens, a do real e a do sobrenatural; mas, diferenciam-se, fundamentalmente, pelo modo como o sobrenatural neles se exprime: no gótico, o sobrenatural (ou o horror) é explícito, logo, não provoca dúvidas quanto à veracidade de sua manifestação; o fantástico, ao contrário, caracteriza-se pela incerteza em relação ao acontecimento sobrenatural ou insólito, definindo-se por uma ambiguidade gerada pelos elementos que estruturam a narrativa. (CAMARANI, 2012, p. 98)
A narrativa gótica iniciou-se no final do século XVIII e tornou-se um gênero
literário. Na Inglaterra, passou a chamar-se romance de horror, com a obra O castelo de
Otranto, de Horace Walpole, uma narrativa sobrenatural, e na França, chamou-se roman noir.
“La ronde du sabbat” descreve um cenário gótico, pois tem uma ambientação sombria,
escura: toda a ação se passa na escuridão da noite, quando todos estão dormindo: até a lua,
que poderia iluminar o monastério, esconde-se misteriosamente. Ouvem-se as doze badaladas
e o espírito da meia-noite espalha o terror. Para piorar, o poema descreve fatos ocorridos na
Idade Média, a idade das trevas, da Santa Inquisição.
Outra característica gótica do poema hugoano é o ambiente descrito pelo eu-lírico,
cercado de catacumbas com pedras frias e cemitérios, que são ambientes propícios ao
aparecimento de fantasmas, demônios, feiticeiras, que surgem e participam do ritual
demoníaco:
Juifs, par Dieu frappés, Zingaris, bohêmes, Chargés d'anathèmes, Follets, spectres blêmes La nuit échappés, Glissez sur la brise, Montez sur la frise Du mur qui se brise, Volez, ou rampez ! (HUGO, 1968, p. 277)
O poema de Hugo pode ser considerado gótico e não fantástico, porque, ao contrário
do conto de Nodier, em que o leitor não sabe se a narrativa descrita por Lorenzo é um
pesadelo ou realidade, o sobrenatural é aceito pelo leitor desde o início, e não há hesitação. A
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descrição feita por Sedgwick do romance gótico pode ser aplicada ao poema hugoano. Afirma
o crítico que há, nesses romances, a descrição de
instituições eclesiásticas e monásticas; estados sonambúlicos e cadavéricos, espaços subterrâneos e o sepultamento de vivos; a revelação de laços familiares desconhecidos; afinidades entre narrativa e arte pictórica; [...]ecos ou silêncios não-naturais, escritos ininteligíveis e o inexprimível; [...] culpa e vergonha; paisagens e sonhos noturnos; aparições do passado; [...] o ossuário e o hospício (SEDGWICK, 1986, p. 9-13).
Como se pode observar, muitos traços do romance gótico podem ser reconhecidos no
poema hugoano, como a escolha de um monastério para o festim diabólico, a descrição de
túmulos que se abrem, vitrais que se quebram, portas que são derrubadas, tudo para que os
espíritos do mal possam se reunir:
Voilà que de partout, des eaux, des monts, des bois, Les larves, les dragons, les vampires, les gnômes, Des monstres dont l'enfer rêve seul les fantômes, La sorcière, échappée aux sépulcres déserts. Volant sur le bouleau qui siffle dans les airs, Les nécromants, parés de tiares mystiques Où brillent flamboyants les mots cabalistiques, Et les graves démons, et les lutins rusés, Tous, par les toits rompus, par les portails brisés, Par les vitraux détruits que mille éclairs sillonnent, Entrent dans le vieux cloître où leurs flots tourbillonnent. (HUGO, 1968, p. 275)
Para Carpeaux (1985, p. 227), o gótico foi reabilitado pelos românticos: se ele era
considerado um sinônimo de barbaridade durante os séculos do classicismo renascentista, os
românticos alemães celebravam o estilo gótico como a criação sublime do espírito alemão
medieval.
Entretanto, apesar das diferenças, o poema de Victor Hugo e o conto de Charles
Nodier dialogam. Ambos os autores evocam fantasmas, feiticeiras, mortos, ambientes
sombrios, o medo e o terror no mesmo momento da noite. O diálogo estabelecido entre os
dois textos é inequívoco e a intertextualidade pode ser observada ao se realizar um
cruzamento dessas “superfícies textuais” (KRISTEVA, 1974, p. 62). A leitura feita por Hugo
de “Smarra ou les démons de la nuit” transparece em seu poema, que não é uma cópia do
conto, mas uma apropriação criativa. Cabe ao leitor do poema hugoano conhecer o conto de
Nodier para que sua compreensão dos versos de “La ronde du sabat” seja mais aprofundada,
mais rica, mais completa.
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REFERÊNCIAS:
CAMARANI, Ana Luísa Silva. Delírios românticos: o universo frenético de Charles Nodier. Lettres Françaises. Araraquara: UNESP, nº6, 2005. _______. Sonhos e desvarios: o fantástico em Nodier e Gautier. Ribeirão Preto: Olho d’água, nº 4, 2012. CARPEAUX. Otto Maria. História da literatura ocidental. Rio de Janeiro: Alhambra, 1987. (vol. II). HUGO, Victor. Odes et Ballades. Les orientales. Paris: Flammarion, 1968. KRISTEVA, Júlia. Introdução à Semanálise. São Paulo: Perspectiva, 1974. NODIER, C. Contes. Paris: Garnier, 1961. SEDGWICK, Eve K. The coherence of Gothic conventions. New York and London: Methuen, 1986. TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. São Paulo: Perspectiva
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A reescritura da figura da bruxa no conto Circe, de Julio Cortázar
Danieli M. F. SILVEIRA (UNESP – IBILCE – São José do Rio Preto)
RESUMO: No conto Circe, do argentino Julio Cortázar, a personagem principal Delia é caracterizada com atributos típicos da bruxa mítica imaginária e pode ser relacionada com a feiticeira Circe, como o próprio título já diz. Circe é uma feiticeira da mitologia grega especialista em venenos e conhecida por seus feitiços que transformava homens em animais, isso é relatado nas aventuras de Ulisses do escritor grego Homero. O diálogo intertextual promove uma recriação do mito grego. Desse modo, pretendemos discutir nesta comunicação a construção e a caracterização do arquétipo da bruxa presente nas obras já citadas a fim de detectar a contribuição do mito à obra de Cortázar. Para o estudo do diálogo intertextual utilizaremos A Palavra, o Diálogo e o Romance de Julia Kistreva presente no livro Introdução a semanálise. A mulher pode estar relacionada com a manifestação do sobrenatural na literatura fantástica. Segundo Tzvetan Todorov em Introdução a Literatura Fantástica, a figura feminina também está ligada a sexualidade, e “o diabo é a mulher enquanto objeto do desejo” (TODOROV, 2009, pág. 137). Dessa forma, a figura feminina pode ser negativizada recebendo características relacionadas ao mal e o homem pode ser vítima da sedução dessa figura, como ocorre no conto de Cortázar. Assim, utilizaremos também o estudo de Todorov referente aos temas do fantástico como fundamentação teórica de nosso trabalho. Partiremos de uma reflexão em torno da presença feminina presente na manifestação do sobrenatural no conto Circe e depois faremos uma comparação com a personagem mitológica de Homero. A figura da bruxa está ligada a várias culturas de diferentes povos e por esse motivo tentaremos relacionar sua construção no conto e na epopeia com a configuração mítica desse arquétipo pelo prisma da literatura fantástica. PALAVRAS-CHAVE: fantástico; conto; bruxa; mito. RESUMEN: En el cuento Circe, del argentino Julio Cortázar, el personaje principal Delia se caracteriza con los atributos típicos de la bruja imaginaria y mítica puede estar relacionada con la hechicera Circe, como dice el título. Circe es una hechicera de la mitología griega experta en venenos y conocida por sus hechizos que convertía a los hombres en animales, eso está relatado en las aventuras de Odiseo del escritor griego Homero. El diálogo intertextual promueve una recreación del mito griego. Por lo tanto, tenemos la intención de discutir en este trabajo la construcción y caracterización del arquetipo de la bruja en las obras ya mencionadas con el fin de detectar la contribución del mito a la obra de Cortázar. Para el estudio del diálogo intertextual se utiliza A Palabra, o Diálogo e o Romance de Julia Kistreva presente en el libro Introdução a semanálise. La mujer puede estar relacionada con la manifestación de lo sobrenatural en la literatura fantástica. Según Tzvetan Todorov en Introdução a Literatura Fantástica, la figura femenina también está relacionada con la sexualidad, y “o diabo é a mulher como objeto de desejo" (TODOROV, 2009, p. 137). Así, la figura femenina puede ser negativizada recibiendo características relacionadas al mal y el hombre puede ser víctima de la seducción de esta figura, como ocurre en el cuento de Cortázar. Por lo tanto, utilizaremos también el estudio de Todorov relacionado con los temas de lo fantástico como base teórica de nuestro trabajo. Partiremos desde una reflexión en torno de la presencia femenina presente en la manifestación del sobrenatural en el cuento Circe y luego haremos una comparación con el personaje mitológico de Homero. La figura
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de la bruja está vinculada a las diversas culturas de los diferentes pueblos y por ese motivo tentaremos relacionar su construcción en el cuento y en la epopeya con la configuración mítica de este arquetipo a través del prisma de la literatura fantástica. PALABRAS CLAVE: fantástico, cuento, bruja, mito.
A mulher é constantemente usada como chave de um enigma na Literatura. Segundo
Tzvetan Todorov, em Introdução a Literatura Fantástica, a figura feminina também está
ligada à sexualidade, e “o diabo é a mulher enquanto objeto do desejo” (TODOROV, 2009,
pág. 137). Segundo o autor, o sobrenatural aparece numa experiência dos limites e nos estados
superlativos. Dessa forma, o desejo e a tentação vistos como uma experiência nos estados
superlativos encontram encarnação em algumas figuras do mundo sobrenatural, entre essas
figuras, a do Diabo. E a mulher pode ser vista como a vítima e a ferramenta por excelência do
Demônio, pois ela está mais predestinada ao mal do que o homem.
Essa predestinação está presente desde o mito bíblico da queda do Jardim do Éden.
Segundo Joseph Campbell em Poder e Mito (1990), há uma ideia na tradição bíblica de que a
natureza e o sexo são corruptos, e a mulher como epítome do sexo também é igualmente um
ser corrupto. Corrupta, sedutora, misteriosa, ambiciosa, persuasiva, dona de saberes ocultos e
até mesmo maligna são atributos muitas vezes usados para a configuração da figura feminina.
Assim, vemos que a figura feminina muitas vezes é negativizada e pode ainda ser construída
como personagem que possui certas características, em maior ou menor grau, da figura
arquetípica da bruxa.
Essa figura milenar está presente na cultura e nas narrativas de diferentes povos. Na
mitologia grega temos a personagem Circe, uma feiticeira especialista em venenos. A
personagem Circe está presente em Odisseia, poema grego atribuído a Homero.
No poema épico, os homens de Odisseu saem para procurar auxílio em uma ilha e
“num vale foram achar a morada de Circe, construída toda com pedras polidas, num sítio ao
redor abrigado. Por perto viam-se lobos monteses e leões imponentes que ela encantara ao
lhes dar a beber umas drogas funestas.” (HOMERO, 2011, p. 201) Os pobres viajantes ao
perceberem a presença de “deusa ou mulher” no lugar, chamam a porta e
Sem se fazer esperar veio Circe e [...] os levou para dentro e ofereceu-lhes cadeiras e tronos, e misturou-lhes, depois, louro mel, queijo e branca farinha em vinho Pirâmnio; [...] tendo-lhes dado a mistura, e depois que eles todos beberam, com uma vara os tocou e, sem mais, os meteu na pocilga. (HOMERO, 2011, p. 201).
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Depois de saber do destino trágico de seus companheiros que foram transformados
em porcos, com a ajuda de um antídoto de Hermes, Odisseu vai ao encontro de Circe para
salvá-los. O herói alcança seu objetivo e depois de um ano dividindo o leito com a feiticeira,
consegue sua ajuda para regressar à sua pátria.
A personagem Circe é retomada pelo escritor argentino Julio Cortázar no conto que
leva o seu próprio nome, Circe. Neste conto, temos a personagem Delia Mañara que à
maneira de Circe parece possuir um poder de manipular os animais e um grande fascínio pela
manipulação de bebidas, licores e bombons, além de estar rodeada por tragédias e
acontecimentos misteriosos.
Delia é uma bela moça loira de vinte e dois anos que vive em Buenos Aires. A
personagem feminina é conhecida pelos seus vizinhos como uma jovem cercada de
acontecimentos trágicos e inexplicáveis causando-lhes insegurança e inquietação quanto à
sua índole e personalidade. Ela teve dois noivos que morreram repentinamente. O primeiro
deles, Rolo Médicis morreu de uma síncope, uma parada cardíaca, e o segundo, Héctor,
cometeu suicídio.
Mario é o terceiro noivo de Delia, ele tenta justificar a todo o momento a vida trágica
da noiva e assim afugentar seu próprio medo:
Ahora que los chismes no eran un artificio absoluto, lo miserable para Mario estaba en que anexaban episodios indiferentes para darles un sentido. Mucha gente muere en Buenos Aires de ataques cardíacos o asfixia por inmersión. Muchos conejos languidecen y mueren en las casas, en los patios. Muchos perros rehúyen o aceptan las caricias. Las pocas líneas que Héctor dejó a su madre, los sollozos que la de la casa de altos dijo haber oído en el zaguán de los Mañara la noche en que murió Rolo (pero antes del golpe), el rostro de Delia los primeros días[...] (CORTÁZAR, 1994, p. 63)
O fato demonstra o grande fascínio que a personagem masculina sente pela
personagem feminina. Mario quer tentar justificar os acontecimentos ocorridos como devido
ao acaso, coisas que acontecem comumente, e não fatos que tornam Delia passível de
desconfiança. Para ele, o que as pessoas afirmam a respeito da jovem é fruto de um
sentimento preconceituoso e até mesmo invejoso devido aos seus modos distintos.
Além das inusitadas mortes dos antigos noivos, alguns acontecimentos fazem com
que a moça seja vista com certo mistério. Como já foi dito anteriormente, ela parece ter uma
relação um tanto quanto singular com os animais que estão ao seu redor e ainda tem um gosto
especial pela manipulação e fabricação de bombons e licores, como pode ser observado nos
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seguintes trechos: “todos los animales se mostraban siempre sometidos a Delia, no se sabía
se era cariño o dominación, le andaban cerca sin que Ella los miraba.” (CORTÁZAR, 1994,
p. 62) (Délia) “empezó a describir con agilidad la manera de hacer los bombones, el relleno
y los baños de chocolate o moka. Su mejor receta era unos bombones a la naranja rellenos de
licor.” (CORTÁZAR, 1994, p. 65).
Esses dons especiais podem ser relacionados com as características de mulheres
míticas que dominam processos ritualísticos para criação de fórmulas mágicas para alcançar
determinados objetivos. Desse modo, vemos que a personagem de Cortázar aproxima-se da
figura mítica da mulher atrelada ao mistério e distancia-se da figura feminina que é idealizada,
facilmente dominada e vista como objeto de desejo e de admiração devido a sua pureza.
Delia parece seduzir Mario lenta e constantemente, de forma que nem ele mesmo
parece perceber. Bela e sedutora, a personagem feminina vai sendo configurada com
características que a fazem se aproximar da figura arquetípica da bruxa. No decorrer do conto,
o feitiço que ela exerce sobre ele vai tornando-se literal:
En diciembre, con un calor húmedo y dulce, Delia logró el licor de naranja concentrado, lo bebieron felices un atardecer de tormenta. Los Mañara no quisieron probarlo, seguros de que les haría mal. Delia no se ofendió, pero estaba como transfigurada mientras Mario sorbía apreciativo el dedalito violáceo lleno de luz naranja, de olor quemante. "Me va a hacer morir de calor, pero está delicioso", dijo una o dos veces. Delia, que hablaba poco cuando estaba contenta, observó: "Lo hice para vos". Los Mañara la miraban como queriendo leerle la receta, la alquimia minuciosa de quince días de trabajo. (CORTÁZAR, 1994, p. 66).
Os pais da personagem parecem saber de algo que Mario não sabe. Eles evitam
provar os licores e os bombons feitos pela moça, e quando provam, sempre abrem o doce para
ver o recheio, também demonstram não gostar de sair de casa com o casal de jovens, fato que
não agradava a Delia. O próprio Senhor Mañara afirma que Mario não conhece bem a moça
que está ao seu lado. Esses fatos trazem um tom de mistério para o conto e uma questão
levanta-se: o que os pais de Delia sabiam a seu respeito para essas atitudes?
O leitor toma ciência da trama por meio de um foco narrativo em terceira pessoa,
mas não há uma explicação clara sobre o porquê de tudo isso. O narrador procura se distanciar
e apenas narra os fatos. Mario nota que os acontecimentos são singulares, mas parece não ter
forças para contestar ou mesmo imaginar algo além do que vê. Para o leitor, o que fica é uma
sugestão de que a personagem Delia Mañara possui algum segredo sobre quem ou o que
realmente é.
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O tom de mistério é realçado pela presença do obscuro na vida da personagem: o uso
do negro, o sorriso velado, preferência pela noite (é durante a noite que a bela oferece
bombons a seu namorado e quanto ela mostra-se mais à vontade) são exemplos dessa
obscuridade. Delia também parece fugir da claridade, em determinado momento “Alguien
encendió la luz y Delia se apartó enojada del piano, a Mario le pareció un instante que su
gesto ante la luz tenía algo de la fuga enceguecida del ciempiés, una loca carrera por las
paredes” (CORTÁZAR, 1994, p. 67).
No decorrer do conto, vamos tomando mais conhecimento de dados que configura a
personagem feminina. Ela parece saber quando os animais morrerão, ou ainda parece possuir
um poder de controlar sua vida. Delia sugere o dia da morte dos animais e o fato realmente
acontece. Uma questão se levanta para o leitor: ela previu a morte ou manipulou-a para que
ocorresse?
A narrativa prossegue e novas intrigas surgem. Durante uma conversa sobre alguns
bilhetes anônimos que Delia e Mario recebiam, o jovem apaixonado tentou convencer o pai da
moça que ela era sensível e que precisava de proteção, que está sobressaltada e que parece que
algo a atrapalha. O senhor Mañara limita-se a dizer que ela é sempre assim “antes” e quando
questionado antes do que, ele apenas responde: “Antes de que se le murieran, zonzo.”
(CORTÁZAR, 1994, p. 72). Diante da afirmação, o jovem limitou-se a não querer pensar no
que ouviu. A falta de interesse e forças para contestar o que acaba de ouvir, mostra o quanto
Mario é leal ao sentimento de adoração, veneração e credulidade à boa imagem que faz de
Delia.
Assim, Delia parece manipular Mario durante toda narrativa. Mas, no final do conto,
ela é desmascarada. Ao dar um bombom ao noivo e este o partindo em dois, mostra seu
conteúdo: baratas, patas e asas de insetos, carrapatos triturados. Neste momento, Mario parece
perceber uma máscara em Delia que esconde sua verdadeira feição, pois enquanto partia o
doce “tenia los ojos em Delia y la cara de yeso, un pierrot repugnante en la penumbra”
(CORTÁZAR, 1994, p. 74).
Vemos que no final do conto, há uma conclusão sobre quem é realmente a verdadeira
Delia Mañara. Se antes pudesse haver alguma dúvida sobre o que ela é realmente, com a
abertura do bombom para mostrar seu recheio não há mais o que duvidar. Delia Mañara faz
feitiços, seduz, persuade, manipula. Características que a aproxima com a personagem Circe
de Homero. Há então uma reescritura da personagem da epopeia grega. Há uma Circe no
século XX.
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De acordo com Joseph Campbell (1990), o mito está intimamente ligado à cultura,
tempo e espaço da humanidade e necessita de uma constante recriação por meio das artes para
continuar vivo. A literatura é uma dentre as manifestações artísticas que utilizam o mito para
criar um diálogo intertextual. Histórias são contadas e recontadas desde sempre e a cada vez
que ocorre o diálogo intertextual entre nossas obras literárias e os mitos clássicos, estes
contribuem sempre de uma forma nova para aqueles.
O conto Circe traz uma reescritura do mito grego de Homero. A feiticeira da
mitologia, Circe, está presente no conto cortaziano na construção da figura feminina Delia
Mañara. O poder de manipulação de bombons e licores para fazer feitiços é a característica
mais nítida da personagem de Cortázar que remete a figura do autor grego, mas há ainda a
relação com os animais e o poder de sedução e persuasão que ambas possuem: assim como
Circe convenceu Odisseu a ficar com ela em seu palácio por um ano, Delia manteve Mario
sob seu poder e controle durante todo o tempo do namoro.
Mesmo providas de contornos que as marcam como manipuladoras, essas
personagens não são essencialmente malignas. Circe e Delia comportam-se de acordo com
seus próprios desejos e necessidades. Essas personagens podem parecer nocivas, pois
possuem um conhecimento ainda desconhecido para os demais (o que causa medo no homem
que possui a tendência de temer o novo e o desconhecido), mas o que elas realmente fazem é
operar o bem e o mal segundo interesses específicos.
Na epopeia grega, Circe não foi completamente maligna com Odisseu, ela até mesmo
colaborou para que o herói seguisse seu caminho rumo ao seu lar. Da mesma forma, no conto
de Julio Cortázar, Delia não foi completamente má com Mario, mesmo enfeitiçando-o, no
período em que este esteve com ela, vivia satisfeito.
Segundo Northrop Frye, em Fábulas de Identidade (1999), toda obra literária captura
ecos de todas as outras existentes do mesmo tipo e ondula em direção à literatura. Assim há
sempre uma continuidade literária que possui um poder de movimento no decorrer do tempo.
O leitor sente o eco do mito grego logo no início do conto, no próprio título. Este é muito
importante, pois já remete imediatamente a figura da feiticeira de Homero, assim o leitor já
prevê que a história que será lida relacionar-se-á de alguma forma com a personagem do mito
grego.
Para Kristeva (1974),
A re-escritura do mito não é pois simplesmente repetição de sua história; ela conta também a história de sua história, o que é também uma função da
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intertextualidade: levar, para além da atualização de uma referência, o movimento de sua continuação na memória humana. Operações de transformação assseguram a sobrevida do mito e sua contínua passagem. (KISTREVA, 1974, p. 117)
Temos a Circe do século XX, mas não apenas a Circe de Homero, temos a figura
arquetípica da mulher feiticeira. Essa figura pode ter passado por algumas mudanças, mas
ainda está presente no imaginário da nossa cultura e essa presença é refletida na literatura.
Assim, além de fazer uma referência e retomada do mito grego, a reescritura dessa
personagem, no conto de Julio Cortázar, reafirma o poder de movimento durante o tempo
dessa figura arquetípica.
De acordo com Juan Herrero Cecilia, em Estética y pragmática del relato fantástico
(2000), a narrativa fantástica produz um sentimento de estranheza, uma inquietante
desestabilização, uma confusão de incertezas no leitor. A aparição de um fenômeno estranho e
inexplicável no relato fantástico tem a pretensão de fazer com que o leitor duvide de sua
própria mentalidade positivista e racionalista provocando assim sua credulidade no
sobrenatural durante o tempo de leitura da narração. A narrativa é escrita na vida habitual e
comum onde haverá uma mescla entre natural/sobrenatural, racional/suprarracional,
vivido/sonhado, mundo dos vivos/mundo dos mortos.
Semelhante pensamento tem o professor David Roas. Para Roas em Teorías de lo
fantástico (2001), o mundo dentro da narrativa é construído de forma verossímil com o nosso
e o fantástico é caracterizado por uma alteração da normalidade cotidiana por meio de algum
acontecimento sobrenatural. O fantástico provoca incertezas na nossa percepção de realidade,
pois a existência do impossível faz nos questionarmos sobre o que é realmente real e o que é
irreal.
Dessa forma, o mundo descrito no conto de Julio Cortázar é exatamente igual ao
nosso. Os acontecimentos descritos poderiam acontecer mesmo sem ter uma explicação
racional para a manifestação do sobrenatural. Não nos questionamos se os fatos aconteceram
ou não dentro da narrativa, mas sim se seria possível que estes acontecessem no mundo em
que vivemos.
Criando a verossimilhança interna da narrativa, o conto fantástico mostra a
insegurança naquilo que pode ou não ocorrer de acordo com a ciência e a razão. O homem
não tem acesso a todo conhecimento, pois o mundo em que vivemos é ainda desconhecido e
cheio de mistérios inexplicáveis. Mostrar na literatura algumas possibilidades de
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acontecimentos estranhos deixa o leitor perplexo e inquieto para questionar-se se eles podem
realmente acontecer.
O conto cortaziano traz a inquietação de que a bruxa não é apenas aquela
essencialmente maligna que tem nariz grande e vive em um porão mexendo em um caldeirão
como nos contos de fadas e presente no imaginário infantil. Elas podem ser também
personagens femininas munidas de poderes misteriosos, conhecendo sim processos mágicos,
mas agindo de acordo com seus objetivos em alcançar algo. A bruxa pode não estar tão
distante de nós, por ser uma bela moça que está do nosso lado, talvez uma jovem vizinha com
acontecimentos trágicos em sua vida.
REFERÊNCIAS:
CAMPBELL, Joseph. O poder do mito. Com Bill Moyers. Trad. Carlos Felipe Moisés. São Paulo: Palas Athena, 1990. CECILIA, Juan Herrero. Estética y pragmática del relato fantástico. Cuenca: Ediciones de la Universidad de Castilla-La Mancha, 2000. CORTÁZAR, Julio. Circe. In: ______. Los Relatos I: Ritos. Madrid: Alianza, 1994. p. 60-74. HOMERO. Odisseia. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Ed. Especial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011. NORTHROP, Frye. Fábulas de identidade. Tradução de Sandra Vasconcelos. São Paulo: Nova Alexandria, 1999. KRISTEVA, Julia. A palavra, o diálogo e o romance. In: ______. Introdução à semanálise. Tradução de Lúcia Helena França Ferraz. São Paulo: Perspectiva, 1974. p. 61-90. ROAS, David. La amenaza de lo fantástico. In: ______. Teorías de lo fantástico. Madrid: Arco Libros, 2001. p. 7-44. TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 2010.
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Acontecimentos fantásticos em uma família multicultural em Luanda,
na época dos holandeses (Pepetela).
Denise ROCHA (ERER, NEAB-UFSCar-SP)
RESUMO: No romance A Gloriosa família: o tempo dos flamengos, publicado em 1997, o escritor angolano Pepetela (1941), baseado em documentos e narrativas oficiais da historiografia de Angola, cria a saga de um clã multiétnico, os Van Dum, que viviam imersos em uma religiosidade mesclada: a católica européia, com adaptações locais, e a nativa, com uma cosmovisão própria. Baltazar, flamengo da gema, genitor de vários descendentes legítimos e naturais, educou seus meninos, segundo a ideologia patriarcal, para se tornarem responsáveis pelo seu sustento e o de sua prole, mas um deles, Ambrósio, virou um “chulo”, mantido por uma prostituta, Angélica Ricos Olhos, assassina e degredada brasileira. Dilacerado pela existência indigna de seu filho, o pai não aceita o relacionamento e nega o envio de dinheiro para ele, e a ofendida dama busca a ajuda de uma senhora detentora de poderes superiores, para mudar a situação. Estranhos acontecimentos, que ocorrem na casa da família, atingem diretamente Baltazar, que resoluto afirma somente conhecer e aceitar as leis naturais. Apesar de já viver cerca de vinte anos em Angola, e de ter presenciado de perto ritos étnico-religiosos, o velho senhor tenta distanciar-se dos episódios insólitos, que o atingem, provocando nele medo, em uma tentativa de explicar o sobrenatural, com afirmações apoiadas no pacto realista de representação europeu. PALAVRAS-CHAVE: Literatura angolana; Pepetela; novo romance histórico; fantástico; Todorov. ABSTRACT: In the novel A Gloriosa família:o tempo dos flamengos published in 1997, the Angolan writer Pepetela (1941), based on official documents and narratives of Angolan historiography, creates the saga of a multiethnic clan, the Van Dum, who lived immersed into a syncretic religiosity: the Catholic European one, with local adaptations, and the native one, with a cosmovision of their own. Baltazar, a genuine Flemish father of various legitimate and natural descendants, brought up his kids, according to the patriarchal ideology, that is, to become responsible for their own support and for the support of their own family. However, one of them, Abrósio, became a “crude one”, maintained by a prostitute, Angélica Ricos Olhos, a Brazilian murderer and exiled woman. Torn by his son’s filthy existence, the father did not accept that relationship and refused to send him money, and the offended lady seeks the help of a woman alleged to have supernatural powers, in order to reverse their situation. Strange occurrences within the family’s house strike Baltazar as a target, who, determinedly, says that he only knows and accepts the natural laws. In spite of living in Angola for twenty years, and having the chance to watch closely the local religious ethnical rites, the old man tries to draw away from uncommon episodes, which strike him, causing him fear, in an attempt to explain the supernatural facts, with assertions based on the realistic pact of his European representation. KEYWORDS: Angolan Literature; Pepetela; new historical novel; fantastic; Todorov.
INTRODUÇÃO
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Fatos estranhos aconteciam na sanzala da miscigenada família católica Van Dum,
localizada nos arrabaldes de Luanda, Angola, em março de 1647, durante a ocupação dos
holandeses calvinistas. Nessa época vivia uma famosa feiticeira, tia Anita, muito procurada
por causa de seus conhecimentos ancestrais de magia e pelos seus trabalhos vinculados às
passagens das fronteiras do plano espiritual e do plano terreno, capazes de mudar
radicalmente a vida das pessoas.
No romance A Gloriosa Família: No tempo dos flamengos (1997), de Pepetela, são
apresentadas facetas reveladoras do poder de múltiplas instâncias de cosmogonias nativas que
levavam ao questionamento da real dimensão da realidade, segundo a visão cristã-europeia e,
que iriam entrar em colisão com o Santo Ofício.
Para a análise da visão e da representação da realidade luandense em episódio
provocado por Angélica Ricos Olhos e pela bruxa tia Anita, que abalou profundamente o
patriarca Baltazar Van Dum, protagonista da narrativa, será utilizada a concepção do
fantástico de acordo com Todorov.
O FANTÁSTICO (TODOROV).
Na obra Introdução à literatura fantástica (1970), o filósofo e linguista búlgaro
Tzvetan Todorov (1939), ao estabelecer a correlação entre duas realidades - a natural e a
sobrenatural - em uma narrativa, elabora uma teoria a respeito delas: o maravilhoso seria um
gênero que inclui obras que abordam os fenômenos sobrenaturais, para os quais qualquer
explicação racional não seria possível. Todorov identifica o vínculo do maravilhoso com o
fantástico (herói e leitor hesitam diante da explicação natural e sobrenatural dos fenômenos) e
o estranho (aceitação da explicação racional dos fenômenos insólitos e manutenção das leis da
natureza).
De acordo com os critérios da racionalidade/irracionalidade, os gêneros podem ser
classificados em maravilhoso/fantástico/estranho, conforme Todorov. O fantástico ocorre no
momento em que o maravilhoso ou o sobrenatural entram em contato com a realidade,
despertando o estranhamento. No momento da hesitação do leitor diante da compreensão de
um momento inusitado em que a personagem está inserida, o fantástico acaba e se torna
maravilhoso ou realista:
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Num mundo que é exatamente o nosso [...] produz-se um acontecimento que não pode ser explicado
pelas leis deste mesmo mundo familiar. [...] não se trata de uma ilusão [...] ou então o acontecimento
realmente ocorreu [...]. O fantástico ocorre nesta incerteza: ao escolher uma ou outra resposta. Deixa-
se o fantástico para entrar num gênero vizinho, o estranho ou o maravilhoso. O fantástico é a hesitação
experimentada por um ser que só conhece as leis naturais, face a um acontecimento aparentemente
sobrenatural. (TODOROV, 2007, p. 30 e 31).
FEITIÇOS EM LUANDA NA NARRATIVA DE PEPETELA.
Pseudônimo de Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos, Pepetela em Kimbundu
significa Pestana. Nascido em 1941, em Benguela, localizada no litoral ao sul de Angola, o
escritor foi para Lisboa (1958) onde ingressou no curso de engenharia, no entanto, o
interrompeu para iniciar a licenciatura em Letras e participar do movimento independentista
em prol de seu país, sendo obrigado por isso a fugir de Portugal e a ir para a França onde
estudou sociologia. No exílio se ligou ao MPLA (Movimento para a libertação de Angola) e,
no início da década de 1970, atuou como combatente na região norte de Angola. Depois da
independência (1975) foi nomeado vice-ministro da Educação, no governo de Agostinho
Neto, e atuou até 1982, para poder se dedicar totalmente à literatura.
Pepetela evoca a história angolana antes e depois do início do colonialismo nas obras
A Gloriosa Família (1998), Lueji: O nascimento de um império (1990) e A Sul. O Sombreiro
(2011), nas quais o confronto do mundo religioso dos europeus com o dos nativos é
apresentado, bem como a permanência da crença nos espíritos na contemporaneidade que
pode ser lida em O Desejo de Kianda (1995). Essas narrativas revelam a cultura de diversas
etnias angolanas e destacam elementos da vida religiosa africana tradicional, que era/ é uma
realidade presente em diversos setores da vida cotidiana, segundo Emmanuel N. Obiechina
(1978):
Não existe qualquer dimensão importante da experiência humana que não esteja ligada ao sobrenatural, ao sentimento popular religioso e à piedade [...]. Tudo isso constitui parte integrante da estrutura ideológica da sociedade tradicional e é essencial para uma interpretação exata da experiência no contexto social tradicional. (OBIECHINA apud OPOKU, 2010, p. 591).
Nas variadas superfícies e subterrâneos da religião, a construção do efeito fantástico
na literatura, através de um olhar sobre os procedimentos narrativos de A Gloriosa Família,
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de Pepetela, revela o encontro de cosmovisões espirituais diferentes que se chocaram no
período colonial.
Agraciado, no ano de 1997, com o Prémio Camões, o romance de Pepetela delineia o
cotidiano de uma família mestiça constituída oficialmente por Baltazar Van Dum e sua esposa
legítima, Dona Inocência, e os filhos Gertrudes, Rodrigo, Ambrósio, Benvindo,
Hermenegildo, Matilde, Ana e Rosário, e outros descendentes dele no quintal. Nos sete anos
da presença dos flamengos em Angola, (1641 a 1648), para organização e comercialização de
escravos destinados às lavouras açucareiras das regiões do nordeste do Brasil, que como
Luanda e adjacências também estavam em poder da Companhia Holandesa das Índias
Ocidentais, os membros da “Gloriosa Família” passam por diversas transformações, conforme
os relatos do narrador-personagem, um escravo mudo que acompanhava Baltazar Van Dum,
um conhecido comerciante de escravos.
O protagonista do romance é uma personagem histórica, conforme consta no Prólogo
de A Gloriosa Família: No tempo dos flamengos, que documenta a existência de um
estrangeiro, um holandês, segundo consta em História geral das guerras angolanas (1680),
de António de Oliveira Cadornega, o qual também atua como personagem no romance:
Em a cidade assistia hum homem por nome de Baltazar Van Dum, Flamengo de Nação, mas de animo Portuguez que havia ido dos primeiros Arrayaes para a Loanda com permissão de quem governava os Portuguezes, o qual escreve posto em risco de o matarem os Flamengos, a respeito que antes desta tregoa e Communicação corrente [...]. (CADORNEGA apud PEPETELA, 1999, p. 9).
Na vila costeira de Luanda vivia tia Anita, uma mandingueira idosa, alquebrada e
cega, que foi poupada na época em que o padre espanhol Vogado, representante da Inquisição,
aterrorizou os moradores:
Acabou por ser livre da terrível acusação. Mas todos sabiam que a tia Anita era mesmo uma grande feiticeira, perita na arte de provocar mortes e desastres nos que de algum modo perturbavam os seus clientes. Não era uma kimbanda que cura as doenças e pode adivinhar o que vai acontecer, que os brancos descuidadamente chamam feiticeira. Ela era a própria, a que faz morrer ou adoecer para sempre. (PEPETELA, 1998, p. 339).
Dotada de um poder extraordinário que lhe facultava decidir sobre a vida das
pessoas, a poderosa tia Anita perdeu clientes na época dos holandeses calvinistas, pois Luanda
tinha poucos habitantes portugueses, que costumeiramente procuravam os trabalhos
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realizados por ela e, por isso, passou por apertos financeiros. Aos poucos, entretanto, “a sua
fama de vingadora infalível” recomeçou e, conforme comentários (mujimbos), a pedido de
um português, ela exerceu seus dotes de feitiçaria que resultaram na morte do belicoso
governador Sottomayor, que administrou, nos anos 1645 e 1646, a vila de Massangano, o
reduto dos portugueses no rio Kuanza.
Os poderes sobrenaturais de tia Anita vão ser requisitados logo após a chegada à
Luanda de uma mulher mestiça, a estrábica Angélica Ricos Olhos, filha de um português e
uma escrava, degredada do Brasil por crime de assassinato do companheiro. Intempestuosa, a
charmosa prostituta vai encantar Ambrósio Van Dum, culto, interessado pelos estudos, que
tinha interesse em estudar teologia, apesar de seu pai acreditar que o mesmo não tinha
vocação, pois vivia nas tabernas e no “colo das negras”. Por causa da sua paixão desenfreada
pela meretriz barata, que desonrava a família Van Dum, o jovem afoito foi expulso do lar, não
conseguiu trabalho e foi obrigado a viver dos ganhos sexuais dela, acabando na bebedeira e na
melancolia. Para acabar com a condição de chulo, de homem sustentado por mulher, os
irmãos sugeriram que o pai pagasse uma quantia que permitisse a Ambrósio e à sua desigual
companheira a viver dignamente, e principalmente afastasse Angélica das tavernas em sua
labuta de procurar clientes. Fiel servidor das regras morais da igreja católica, Baltazar não
concordava em financiar a vida de seu filho que estava sendo sustentado pela amante. Com o
sentimento de que tinha sido terrivelmente insultada, Angélica ameaçou se vingar e procurar a
feiticeira, apesar dos pedidos desesperados do companheiro para não complicar ainda mais o
relacionamento com os familiares dele. Destemida e altiva, Angélica não recuou, encomendou
o serviço, pagou e levou uma galinha para a cerimonia de penalização de Baltazar.
Ambrósio avisou aos irmãos que a moça tinha rogado à tia Anita apenas por “sinais
de aviso” e não doenças ou morte. Informado, Baltazar debochou: “- Como se eu tivesse
medo da tia Anita! Não sou um português atrasado que acredita em todas as superstições”.
Para prevenção de futuros dissabores, Matilde decidiu tomar providências: “Umas rezas a
Nossa Senhora das Almas Injustiçadas pode ajudar, mas parece pouco, o melhor é defumar a
casa, e ela, mais Catarina e D. Inocência andaram a queimar ervas poderosas por todos os
cantos, bichanando orações de desagravo”. (PEPETELA, 1999, p. 340). Apesar das iniciativas
domésticas para afastar os maus espíritos, logo um acontecimento fantástico aconteceu no
aposento principal da sanzala Van Dum, causando estranhamento e intranquilizando a família:
Um armário de madeira maciça da sala de jantar começou a tiritar de frio, fazendo tilintar os raros cristais que repousavam no seu interior. Baltazar
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olhou para o outro armário, mais pequeno, que ficava no corredor da sala. Tranquilo e mudo, como convinha a um armário. Se a terra tremesse, os dois móveis teriam o mesmo comportamento. Chamaram Matilde, que estava a tratar do pequeno Henri. Mas quando ela chegou já o armário da sala tinha parado seu acesso de febre. Deve ter sido do caruncho, pensou em voz alta o meu dono, desvalorizando a situação. (PEPETELA, 1998, p. 340).
O estranho movimento do sólido móvel levou o patriarca Van Dum a escarnecer do
evento, alegando a presença de cupins roedores de madeira, mas para sua surpresa um
segundo acontecimento de dimensão ameaçadora ocorreu: O candeeiro da sala explodiu e
espalhou óleo por todos os lados, um acontecimento que levou Matilde e outras mulheres a
iniciarem rezas de devoção, com o objetivo de aplacar desgraças que se anunciavam, mas
teimoso Baltazar “enquanto atirava o resto do vinho para a toalha que ardia, berrou, parem lá,
mulheres, isto não é feitiço nenhum, o candeeiro estava velho e rebentou com o calor, nada de
mais natural”. (PEPETELA, 1999, p. 340). Tal artefato sólido fora construído para durar
muitos anos, mas o holandês não cedia em sua convicção a respeito da ocorrência de um
simples acontecimento natural de madeira envelhecida e atacada por insetos. Sua explicação
racional não convencia de forma alguma a seus familiares, assustados com o primeiro sinal
enviado pelos ares em ritual de magia feito por tia Anita.
Para amenizar o desencadeamento de fatos que poderiam prejudicar ainda mais seu
pai e a paz familiar, um dos irmãos mais novos de Ambrósio, Hermenegildo, para
reestabelecer a concórdia, decidiu visitar a cunhada que o questionou: “- Estão assustados?
Souberam das minhas diligências por quem, pelo Ambrósio? Claro. Não sei como a tia Anita
vai fazer, mas os avisos vão ser cada vez mais fortes até eu obter o que mereço”.
(PEPETELA, 1999, p. 340). Ao aparentemente tranquilo pai, o preocupado filho tentou
esclareceu que não havia uma elucidação simples sobre as ocorrências na sala de estar, mas,
sim, que a dimensão era espiritual, encomendada por Angélica que “Procurou uma vingança
suave. São só avisos, o armário, o candeeiro... Só avisos. Mas que serão cada vez mais
fortes”. Atônito com a simples compreensão do filho sobre a existência de poderes
sobrenaturais e fantásticos, Baltazar explodiu: “-Tretas! Só vocês é que acreditam no poder
das feitiçarias, ignorantes e supersticiosos... Mais uma razão para não querer nada com essa
degredada”. (PEPETELA, 1999, p. 344).
Em vão soaram os pedidos de armistício de Hermenegildo para Baltazar que se sentia
acuado e desmerecido pelos familiares, que o coagiam a pagar pelo sustento do casal para
findar os falatórios sobre a decadência moral de Ambrósio e consequentemente a da “gloriosa
família”. E o poder de tia Anita atingiu outra esfera e se manifestou como ameaça à
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integridade física do patriarca: ele caiu de um grande rombo formado repentinamente no meio
da rede e, ao servir a jarra de vinho ficou com a asa na mão, depois que o recipiente se
desintegrou espalhando bebida para todos os lados e atemorizando cada vez mais os
familiares. Casmurro, Baltazar não recuava e Matilde decidiu fazer uma visita à Angélica para
evitar um mal pior:
-Vim falar consigo porque lá em casa todos estamos aterrorizados, menos o meu pai. A cada coisa que acontece, ele fica mais teimoso. Diz que nunca será forçado a fazer um acordo. Ontem ficou sem rede e com a asa de uma jarra na mão. Mas não cede. E não vai ceder se não houver uma cedência de outro lado. Por isso lhe peço. Mande para com os avisos. (PEPETELA, 1999, p. 349).
A brasileira concordou com a solicitação de Matilde e apenas informou que estava
programada a segunda fase do trabalho espiritual de tia Anita: “a dos ferimentos ligeiros, fase
já muito perigosa porque pode a todo o momento derrapar. Quem tem a certeza que um
ferimento ligeiro não mata o outro?” (PEPETELA, 1999, p. 349).
A fraterna visita de Matilde à casa do Coqueiro, ao tumultuado lar de Angélica e de
Ambrósio, sinalizou que o patriarca tinha entendido a mensagem espiritual enviada, atitude
que selou as relações familiares, pois a jovem brasileira, que somente gostaria de ser tratada
como uma pessoa normal, tinha prometido “desencomendar os preparos de tia Anita” e
estendia o “ramo da paz”. Os episódios fantásticos provocados pelos feitiços encomendados
para persuadir Baltazar a aceitar sua nora prostituta e a pagar uma pensão para ela e
Ambrósio, que causaram profundo estranhamento em Baltazar e familiares na sanzala Van
Dum, foram interrompidos solenemente.
CONCLUSÃO
No romance A Gloriosa Família: No tempo dos flamengos (1997) são apresentadas
as cosmogonias africanas em confronto com o Santo Ofício, com missionários intolerantes e
com europeus que não conseguiam entender a dimensão extraordinária de acontecimentos que
lhes causavam estranhamento, termo utilizado por Todorov (2007).
Para o teórico búlgaro, a essência do gênero fantástico consiste na invasão do mundo
real por um acontecimento estranho que não pode ser explicado pelas leis racionais. Diante
dessa ambiguidade e incerteza suscitadas em uma personagem ou mais envolvidas pelo
episódio sobrenatural se compreende a natureza do estranhamento.
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No inusitado encontro de três pessoas, unidas em um trabalho espiritual – a
mandante, a brasileira Angélica, a executora, a angolana tia Anita, e a vítima, o holandês
Baltazar, elementos reais se “movimentaram”, inesperadamente, e criaram uma atmosfera
misteriosa e inquietante.
Os estranhos eventos ocorridos na casa dos Van Dum - o tilintar do armário, a
estranha explosão do candeeiro e os inusitados acidentes com a rede e a jarra de vinho - que
refletiram o espaço do desconhecido, provocaram reações de temor em Matilde, Catarina, D.
Inocência e outras mulheres e a aparente impassibilidade no patriarca Van Dum que hesitava
em reconhecer a profundidade dos acontecimentos fantásticos a ele endereçados como forma
de chantagem. A mente do holandês ficou intrigada por causa do efeito do ocorrido fantástico,
pelo rompimento do acordo cultural europeu de essência racional sobre a representação e a
compreensão da realidade.
A revelação do espaço do desconhecido aos órgãos dos sentidos europeus,
especificamente para Baltazar Van Dum desvenda a sua crença, sim, na visão de mundo
espiritual africana, mesmo que ele negasse. Para contornar a situação de avisos intimidatórios
enviados por meio de feitiçaria que poderiam escalar e alcançar uma dimensão perigosa, o
flamengo, admoestado pelos familiares, concorda em pagar uma pensão para seu filho
Ambrósio e, assim, garantir para ele e sua companheira Angélica uma existência digna longe
das tabernas e paz na sanzala, livre de sinais fantásticos.
REFERÊNCIAS: OPOKU, Kofi A. A religião na África durante a época colonial. In: BOAHEN, Albert A. (Ed.). História Geral da África. 2. ed. rev. Brasília: UNESCO, 2010. v. 7. p. 591-624. TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 2007. (Debates; n. 98). PEPETELA. A Gloriosa Família: No tempo dos flamengos. 2. impr. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
ICONOGRAFIA
Figura 1- Galinha de angola utilizada em rituais de oferendas. Disponível em:< http://delas.ig.com.br/bichos/guia-de-bichos/animais-exoticos/galinha-dangola/4fa165bc23640cb30b4f839f.html>. Acesso em: 3 fev. 2013.
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A morte em Villiers de l’Isle-Adam e Edgar Allan Poe
Etienne Souza Santos de LIMA (UNESP – FCL – Assis – PIBIC/CNPq)
Norma DOMINGOS (UNESP – FCL – Assis)
RESUMO: Muitas obras de Villiers de l’Isle-Adam (1838-1889) são marcadas por traços que revelam a influência do escritor americano Edgar Allan Poe (1809-1849), sendo assim, propomos uma análise dos contos “A tortura pela esperança” (“La Torture par l’Espérance”), de Villiers, e “O poço e o pêndulo” (“The Pit and the Pendulum”), de Poe. O objetivo principal é ponderar sobre um tema que está muito presente em suas obras, a morte, e, também, tentar entender como ela se apresenta nessas narrativas fantásticas. De fato, é possível perceber uma série de elementos linguísticos que representam a morte que tem, ainda, como plano de fundo, um outro tema perturbador, a inquisição. PALAVRAS-CHAVE: morte; narrativa fantástica; Edgar Allan Poe; Villiers de l’Isle-Adam, sobrenatural. RÉSUMÉ: De nombreuses œuvres de Villiers de l'Isle-Adam (1838-1889) sont marquées par des traits qui révèlent l'influence de l'écrivain américain Edgar Allan Poe (1809-1849), ainsi, on propose une analyse de contes «La torture par l'espoir», de Villiers, et "Le puits et le pendule" ("The Pit and the Pendulum"),de Poe. L'objectif principal est réfléchir sur un sujet qui est très présent dans leurs œuvres, la mort, et aussi essayer de comprendre comment elle se présente dans ces récits fantastiques. En effet, on peut y voir un certain nombre d'éléments linguistiques qui représentent la mort qui a aussi comme arrière-plan, un autre problème inquiétant, l'inquisition. MOTS-CLÉS: mort; récit fantastique; Edgar Allan Poe; Villiers de l’Isle-Adam ; extraordinaire.
Edgar Allan Poe (1809-1849) e Villiers de l’Isle-Adam (1838-1889) vivenciaram um
tempo totalmente marcado pelo materialismo e racionalismo provenientes do progresso, de
uma nova ordem econômica e social que se estabeleceu no século XIX; ambos se colocaram
contra as tendências de sua época, porque acreditavam que o homem é constituído de razão, e
também de imaginação. Eles parecem desejar transcender o mundo palpável e chegar a um
mundo ideal. Esses dois autores incorporaram o modelo do homem solitário que, sob o
domínio da morte, se apega à convicção cristã da imortalidade, à ideia de que a morte não é o
fim, mas a salvação. Como vemos no texto de Poe (2012, p.246 ): “Nem mesmo na morte
tudo está perdido. Do contrário, não haveria imortalidade para o homem.”
Existe nesses dois textos uma curiosa reflexão sobre condição humana em relação à
morte, isso porque o homem é o único animal da natureza que tem o discernimento de que se
encontra vivo e a certeza de que um dia irá morrer. Esse entendimento sobre a vida e a morte
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sempre foi uma inquietação literária e das artes em geral. De fato, a consciência sobre vida e
morte é um fator marcante na história da humanidade.
Esses dois textos que analisamos, A tortura pela esperança e O poço e o pêndulo,
são marcados por uma grande sensibilidade do olhar enclausurado de ambos os personagens
principais, que foram presos pela inquisição. Percebe-se neles também uma tendência de
limitar a vida à dúvida, ao sonho e até mesmo ao delírio: “Depois disso, lembro-me de uma
sensação de monotonia e de umidade. Depois, tudo é loucura – a loucura da memória que se
agita entre coisas proibidas”. (POE, 2012, p.246)
Para Todorov (2004), há uma diferença entre narrativas que tratam o sobrenatural e
ele cria categorias para as três possibilidades de experiência: afirmação do sobrenatural,
negação e dúvida. A dúvida apareceria em relação a uma explicação lógica ou não de
determinado acontecimento.
Num mundo que é exatamente o nosso, aquele que conhecemos, sem diabos, sílfides nem vampiros, produz-se um acontecimento que não pode ser explicado pelas leis deste mesmo mundo familiar. Aquele que o percebe deve optar por uma das duas soluções possíveis; ou se trata de uma ilusão dos sentidos, de um produto da imaginação e nesse caso as leis do mundo continuam a ser o que são; ou então o acontecimento realmente ocorreu, é parte integrante da realidade, mas nesse caso esta realidade é regida por leis desconhecidas para nós (TODOROV, 2007, p. 30-31).
Todorov (2007, p. 31) resume a noção de fantástico a partir de um conceito: “O
fantástico é a hesitação experimentada por um ser que só conhece as leis naturais, face a um
acontecimento aparentemente sobrenatural”. A hesitação é provocada pela ambiguidade da
história. Esta, por sua vez, suscita a dúvida no leitor. Tal característica é provocada pela
utilização recorrente de vários procedimentos de escritura, como por exemplo, o uso frequente
do imperfeito. O fantástico se sustenta com a participação do narrador ou personagem na
criação da atmosfera da dúvida em relação à autenticidade da experiência sobrenatural.
A infalibilidade da morte gera a busca de uma explicação para a posteridade da vida,
conferindo, por vezes, à morte aspectos metafóricos alusivos à plenitude do próprio ciclo
vital. Podem ser destacados registros desde Sócrates ou Platão, pois eles falaram da
imortalidade e da reencarnação. O Cristianismo relata, também, a morte e a ressurreição de
Cristo. E tantas outras religiões buscam uma explicação para o além da vida. Nas obras desses
dois autores há vários apontamentos sobre a morte que. por vezes, nos remetem ao
espiritualismo, ou até mesmo ao ocultismo.
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A particularidade da morte é o mistério, a incerteza e o medo daquilo que não se
conhece. Todos esses atributos da morte têm desafiado as mais diversas culturas, que
buscaram respostas nos mitos, na filosofia, na arte e nas religiões, pontes que podem tornar
compreensível aquilo que não se conhece a fim de diminuir a angústia. Esses poetas,
assombrados por essa inquietante condição humana, a morte, sentem-na como uma intrusa e
simbolizam o estereótipo do homem imerso nos mistérios terrenos. Eles retratam as pessoas
escravizadas pelo destino e pelas forças terrestres as quais lhes fogem do controle. Para o
escritor, o escape da realidade é feito pelo entorpecimento da consciência perante a morte e é
essa fuga do real que move os contos “O poço e o pêndulo”, de Edgar Allan Poe, e “A tortura
pela esperança”, de Villiers de l’ Isle-Adam.
Nesses contos, existe um movimento totalmente relacionado ao medo e que aparece
na inquietude ao se descrever os acontecimentos subsequentes ao fenômeno da morte. Eles
nos encaminham para uma ideia de morte drasticamente plurissignificativa, embora, de um
modo geral, seja possível pensar apenas em duas maneiras de entendê-la. A primeira seria
uma visão na qual não existe na morte transitoriedade, mas sim o nada, isto é, nessa visão, a
morte é o fim, como consequência da vida que é breve. Essa hipótese compreende a
materialidade, o concreto, o que pode gerar um maior temor diante da morte, pois se tem a
impressão da destruição da individualidade do ser humano. Esta teoria pode ser desesperadora
no ponto de vista desses poetas uma vez que:
[...] quanto mais o homem descobre a perda da individualidade por detrás da realidade putrescente de uma carcaça, tanto mais fica traumatizado, e quanto mais ele é afetado pela morte, tanto mais descobre que ela é a perda irreparável da realidade. (MORIN, 1970, p. 33)
Villiers de l’Isle-Adam e Edgar Allan Poe, nesses textos parecem compactuar com
uma segunda hipótese, aquela em que a morte não caracteriza o fim, mas sim uma mudança,
ou transformação. Se conceituarmos a compreensão de morte como mudança, teremos um
leque para as várias possibilidades de explicação da fase subsequente à vida. Desse ponto de
vista, é comum que se relacionem constantemente os atos da vida material à fase pós-morte.
Esses dois grandes escritores, nessas duas narrativas, tratam do assunto de forma
muito semelhante: a vida verdadeira para eles só começa após a morte. No quesito literatura
fantástica, Edgar Allan Poe e Villiers de l’Isle-Adam foram ousados, mas para este estudo
limitamo-nos a analisar a expressão da morte, sobretudo por ser um assunto que instiga
muitos autores e que permanece para a literatura como uma incógnita.
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O conceito talvez mais comum dado à morte é de uma viagem, um portal que ao ser
passado nos leva junto de nossos antepassados e nos coloca em confronto com a própria
consciência do que fizemos. Ao longo do texto, frequentemente, os personagens são
representados como espíritos, gerando a oposição homem-espírito, proveniente da crença na
sobrevivência da alma mesmo depois da decomposição do corpo e que representaria a
salvação, a qual poderia garantir a manutenção da individualidade do homem.
Em “A tortura pela esperança” e “ O poço e o pêndulo”, a oposição é evocada pelos
protagonistas como resultado de uma elaboração psíquica, sensorial e até mesmo intelectual.
No texto de Poe, essa evocação é sugerida pelas alucinações, e até mesmo pela
ambientação fantasmagórica da sombria cela onde se encontrava: um verdadeiro mundo
subterrâneo das trevas. Em Villiers (2005, p. 324, grifos do autor, tradução nossa, grifo do
autor), a manifestação aparece como fruto da imaginação do encarcerado, sobre estar ou não
morto:
[...] NÃO FORA VISTO!... Assim, na horrível angústia de suas sensações, uma idéia atravessou-lhe o cérebro: "Estaria já morto, para que não me vissem?" Uma horrível impressão tirou-o da letargia: ao fitar o muro, colado a seu rosto, julgou ver, diante dos seus, dois olhos ferozes que o espreitavam!... Levantou a cabeça num transe violento e brusco, os cabelos arrepiados!... Mas, não! Sua mão acabara de perceber, tateando as pedras: era o reflexo dos olhos do inquisidor que ele tinha ainda em suas pupilas, e que ele refratara em duas manchas da muralha. (VILLIERS DE L’ISLE-ADAM, 2005, p. 324, grifo do autor)
Assim, em ambos os contos, a manifestação dessa dicotomia (vida e morte) pode ser
entendida como um auxílio do eu perante a morte, isto é, o sujeito possui sua identidade
fragmentada em partes distintas: carne (material) e alma (espiritual).
Outro fator relevante é que tempo e morte são temas totalmente interligados da
significação do ser humano, uma vez que, segundo Emmanuel Lévinas (2003, p.112): “ O
tempo não é então, nem a projeção do ser em direção ao seu fim [...] nem a imagem móvel da
eternidade imóvel [...] É a atualização do inacabado”. É dessa forma que o protagonista do
conto de Poe parece lidar com o tempo de espera da morte, angustiado, ele não consegue
saber quanto tempo se passou desde que sua sentença foi proferida. O tempo em ambos os
contos parece ser pura esperança.
Na literatura, de acordo com o momento histórico e o pensamento filosófico, as
ocorrências do tema podem variar. Edgar Morin (1997) fez um estudo sobre essa duplicidade
nas culturas arcaicas e comprovou que as civilizações antigas eram muito ligadas à morte, e
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sua presença era intensa na vida do homem primitivo, e mesmo que isso os deixasse com
medo, a única alternativa que lhes restava era aprender a lidar com ela. Algo muito comum
nas principais manifestações em relação ao sentimento da morte é a sombra, elemento
presente em ambos os textos e que aqui ilustramos com um excerto de “A tortura pela
esperança”, no qual percebmos a oposição luz e sombra, representando repectivamente vida e
morte:
Esticando-se então, rastejou até o rés desse patamar - Sim, era mesmo um corredor, mas de comprimento desmedido! Um dia pálido, um clarão onírico iluminava-o: lamparinas, suspensas das abóbadas, azulavam, em intervalos, a cor melancólica do ar: - o fundo longínquo era todo sombra. Nem uma porta lateral, em toda essa extensão! De um só dos lados, à sua esquerda, seteiras, com grades em cruz, cravadas nas paredes, deixavam entrar o crepúsculo - que devia ser o da noite, dados os rubros feixes de luz que cortavam, de quando em quando, o lajeado. E que silêncio assustador!... Porém, ao longe, na profundeza dessas brumas, uma saída podia conduzir para a liberdade! A vacilante esperança do judeu era tenaz, pois era a última. (VILLIERS DE L’ILSLE-ADAM, 2005, p. 322, tradução nossa).
Podemos concluir que o medo que existia da sombra na Antiguidade persiste até os
dias de hoje: dizemos que um lugar é assombrado ou mal assombrado, no sentido que aquele
lugar possui sombras, e, no sentido figurado, quando fazemos referência a um ambiente onde
habitam fantasmas.
A literatura, de uma forma geral, sempre tratou das dores e dos questionamentos
humanos, sendo vida e morte dois deles e que muitas vezes são representados de inúmeras
formas: por meio de oposições (claro/escuro, dia/noite, barulho/silêncio, ausência/presença,)
sinestesias, nuanças, musicalidade, entre tanto outros. Em síntese pode-se dizer que se
valoriza a vida porque se sabe que vai morrer, ou não se valoriza a vida pelo mesmo motivo, e
a morte é o desconhecido da vida:
Em outras condições de espírito, poderia ter tido a coragem de acabar de vez com a minha miséria, mergulhando num daqueles poços; mas eu era, então, o maior dos covardes. Tampouco podia esquecer o que lera a respeito daqueles poços: que a súbita extinção da vida não fazia parte dos planos de meus algozes. (POE, 2012 p. 283).
Benjamin (1985) afirma que na Idade Média morrer era um espetáculo público na
vida do indivíduo. No século XIX, a sociedade burguesa evitava qualquer contato com a
morte no universo dos vivos, assim, instituições especializadas zelavam pelas práticas
funerárias para evitar que o homem tivesse esse “espetáculo da morte”. Ainda, durante o
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período de luto (período de putrefação do cadáver que tem duração de aproximadamente um
ano), os parentes do finado eram deixados em total isolamento do convívio social e suas
roupas negras traziam a marca do tabu que os tornava intocáveis. Esse isolamento gera uma
consciência desesperadora, pois diante da morte qualquer humano se torna impotente. Esse
desespero foi mostrado, muitas vezes, na literatura, com a invocação do sobrenatural.
O luto é inadaptação social, porém, individual em relação a morte, e processo social
de adaptação, uma vez que se trata de um período de cicatrização de uma ferida dos
indivíduos sobreviventes, para que eles possam voltar a se relacionar, como os outros. Cabe
ressaltar aqui o que nos diz Morin (1997):
O problema de conviver com a morte vai inscrever cada vez mais profundamente em nosso viver. Isso desemboca num como-viver, cuja dimensão é a um só tempo pessoal e social. Mais uma vez o caminho da morte deve conduzir-nos de modo mais profundo na vida, assim como o caminho da vida deve conduzir-nos de modo mais profundo na morte. (MORIN 1997, p.11)
Isso advém de uma especificidade da espécie humana , porque somos a única espécie
em que a morte está presente ao longo da vida, com a exclusividade de acompanhar a morte e
seus rituais funerários, e acima de tudo, somos a única espécie que acredita em sobrevivência
ou renascimento, após a morte.
Outro fator interessante de ser lembrado e que é claramente discutido no texto de
Villiers é sobre a esperança e a sentença de morte e do qual o autor russo Dostoievski (2002,
p. 45) também trata:
A morte por sentença é desproporcionalmente mais terrível que a morte cometida por bandidos. Aquele que os bandidos matam, que é esfaqueado à noite, em um bosque, ou de um jeito qualquer, ainda espera sem falta que se salvará, até o último instante… Mas, no caso de que estou falando, essa última esperança, com a qual é dez vezes mais fácil morrer, é abolida com certeza; aqui existe a sentença, e no fato de que, com certeza, não se vai fugir a ela, reside todo o terrível suplício, e mais forte do que esse suplício não existe nada no mundo. […] Quem disse que a natureza humana é capaz de suportar isso sem enlouquecer? Para quê esse ultraje hediondo, desnecessário, inútil? (DOSTOYEVSKI, 2002, p. 45)
A pena de morte é a total tortura pela esperança, como vemos no texto de Villiers:
Repousa, então, em paz esta noite. Serás incluído amanhã no auto de fé: isto é, serás submetido ao quemadero, fogueira premonitória das Chamas
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Eternas: ele arde, como sabes, só à distância, meu filho, e a Morte leva, ao menos, duas horas para chegar (muitas vezes três), por causa dos panos molhados e gelados com que temos o cuidado de proteger a fronte e o coração dos holocaustos. Vocês serão apenas quarenta e três. Considera que, estando colocado na última fila, disporás do tempo necessário para invocar Deus, para lhe ofertar esse batismo do fogo, que é do Espírito Santo. Tem então esperança na Luz e durma (VILLIERS DE L’ILSLE-ADAM, 2005, 322, tradução nossa).
No conto de Edgar Allan Poe (2012, p. 280) temos por sua vez: “[...] Conhecia
demasiado bem o caráter de meus juízes para duvidar de que o resultado de tudo aquilo seria a
morte, e uma morte mais amarga do que a habitual”.
Mesmo a morte sendo vista como o começo de uma vida verdadeira para os
simbolistas, como um homem pode ter algum tipo de esperança diante da pena de morte e da
forma cruel com que será executado? A presença obsessiva da morte desencadeia uma
desesperança dos personagens, que por sua vez não sabem se estão vivos ou mortos. O que
ilustra também a epígrafe do texto villieriana extraída do texto de Poe: "Oh! Uma voz, uma
voz, para gritar!..." (VILLIERS DE L’ISLE-ADAM, 2005, 319). É o apelo de uma voz que
denuncia o “massacre” a que são submetidas as pessoas condenadas à morte.
Essa mesma crítica à pena de morte é observada no texto de Poe (2012, p.275), que
também aparece no início, como epígrafe de seu texto: “Aqui, a multidão ímpia de carrascos,
insaciada, alimentou sua sede violenta de sangue inocente. Agora, salva a pátria, destruído o
antro do crime, reinam a vida e a salvação onde reinava a cruel morte”
Nas narrativas em questão, tudo evoca a morte, ela é de tal forma o centro que todos
os seus elementos são por ela modificados. Essas marcas são, por exemplo, em “O poço e o
pêndulo”, do autor americano, o espaço de um ambiente fúnebre,: “[...] eu sabia que a
surpresa, ou uma armadilha que levasse ao suplício constituíam uma parte importante de tudo
o que havia de grotesco naqueles calabouços de morte” (POE, 2012, p. 279); os ruídos
sonoros da morte: “[...] com o grito agudo de uma alma penada; para o meu coração, com o
passo furtivo de um tigre!”(POE, 2012 p. 287); a iluminação dos ambientes: “[...] E qual é
esse abismo? Como, ao menos, poderemos distinguir suas sombras das do túmulo” (POE,
2012, p. 276).
E, em “A tortura pela esperança”, do autor francês, o espaço: “[...] um calabouço
perdido (VILLIERS DE L’ILSLE-ADAM, 2005 p. 319, tradução nossa); o som da morte:
“[...] Mas a velha esperança sussurrou-lhe, na alma, aquele divino Talvez, que reconforta nos
maiores desesperos!” (VILLIERS DE L’ILSLE-ADAM, 2005 p. 322, grifo do auto, tradução
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nossa); iluminação dos ambientes: “[...] Disfarçado por uma espécie de obscuridade lívida,
distinguiu primeiro um semicírculo de paredes terrosas recortadas por degraus em espiral”
(VILLIERS DE L’ILSLE-ADAM, 2005 p. 321, tradução nossa).
Finalmente, os contos aqui estudados parecem ilustrar o percurso realizado pelos
personagens que se alienam no mundo da imaginação, no mundo das sombras, isto é, o
inconsciente, reivindicando, assim, sua mortalidade por meio da negação da morte como
aniquilamento: nesses textos o corpo é apenas uma corrente que aprisiona a alma e o ser
humano só se liberta com a morte.
REFERÊNCIAS:
BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre a literatura e história da cultura. Tradução de Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1985. DOSTOIÉVSKI, Fiódor M.O idiota. Tradução Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2002. LÉVINAS, Emmanuel. Deus, a Morte e o Tempo. Coimbra: Almedina, 2003. MORIN, E. O Homem e a Morte. Tradução de João Guerreiro Boto. Lisboa: Publicações Europa-América, 1970. POE, E. A. O poço e o pêndulo. In ______. Antologia de contos extraordinários. Seleção e tradução Brenno Silveira, 2 ed. Rio de janeir o: Bestbolso, 2012. p. 245-290 TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 2004. VILLIERS DE L’ISLE-ADAM, Auguste, comte de. La torture par l’espérance. In: ______.Contes cruels suivis de Nouveaux contes cruels. Paris: José Corti, 2005. p. 319-326.