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Simpósio-História e religiões: diálogos e hibridações. AFRICANIDADES NA HISTORIOGRAFIA E NA LITERATURA BRASILEIRA (SÉCULO 19 e 20) Maria do Carmo Brazil. Professora Titular em História do Brasil da Universidade Federal da Grande Dourados/UFGD (Brasil). Docente do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFGD. Luciana Araujo Figueiredo. Licenciada em Pedagogia pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul/Campus de Dourados, Mestranda em Educação pela FAED/UFGD (2008). O instituto da escravidão colonial indiscutivelmente permanece como tema instigante de investigação e de produção na área das humanidades. Identidade étnica, fios de esperança e a constante luta pela sobrevivência ou contra a discriminação fazem parte da vida social do negro brasileiro. Com base nesse pressuposto propomos refletir o tema africanidades, expressão ligada às raízes da cultura brasileira, sobretudo crenças, costumes, religiões e tradições oriundas da cultura africana, a partir da produção historiográfica e literária dos séculos 19 e 20. À esteira desse objetivo, também propomos análise sobre os cenários da infância de crianças escravizadas nascidas no Brasil, sua trajetória, seu cotidiano, suas redes de relações sociais, suas conquistas e limites no campo educacional. Nosso primeiro passo foi perscrutar o discurso literário de Joaquim Manoel de Macedo (1869) e Gilberto Freyre (1933), no intuito de verificar como estes literatos discutiram relações étnicas, experiências, reconstruções identitárias e perspectivas do segmento afro-descendente. Nessa aproximação com o tema chegamos à premissa inolvidável de se revisitar o rico manancial literário e historiográfico que tangenciou a questão das africanidades e da sociedade ao longo do processo de mudança nas relações de trabalho e na educação. Palavras chaves: Cultura brasileira, produção historiográfica, discurso literário. O rastro da escravidão indiscutivelmente permanece como tema instigante de investigação e de produção na área das humanidades, sobretudo no que se refere à identidade étnica, luta pela sobrevivência ou contra a discriminação 1 . As dimensões sociais, políticas e culturais do escravismo são hoje objetos de abordagens, enfoques e temas inovadores. Apesar dos bons ventos soprarem em favor das reflexões sobre a escravidão, os estudos sobre a África não conheceram o mesmo grau de interesse no Brasil 2 . O continente negro continuou até os últimos anos da década de 1980, sendo o patinho feio da historiografia brasileira, no dizer do historiador brasileiro Mario Maestri Filho (1994) 3 . 1 BRAZIL, M.C. Escravidão, liberdade e educação. Aportes para o debate sobre instituições e poder (Simpósio temático) : IX Encontro Regional da ANPUH/MS. As linguagens da história e os ofícios do historiador. Campo Grande MS : Editora da UFMS, 2008. v. 1. p. 1-10. 2 BRAZIL, M. C. . Fronteira Negra. Dominação, violência e resistência escrava em Mato Grosso, 1718-1888. 1. ed. Passo Fundo: Editora Universidade de Passo Fundo, 2002, p. ??? 3 MAESTRI, Mário. História do Brasil e a África Negra Pré-colonial. Porto Alegre: I Seminário Nacional sobre História da África/Universidade Federal do Rio Grande do Sul, set. de 1994. p. 1. (Conferência)

Africanidades na historiografia e na literatura brasileira

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Simpósio-História e religiões: diálogos e hibridações.

AFRICANIDADES NA HISTORIOGRAFIA E NA LITERATURA BRASILEIRA

(SÉCULO 19 e 20)

Maria do Carmo Brazil. Professora Titular em História do Brasil da Universidade Federal da Grande Dourados/UFGD (Brasil). Docente do Programa de Pós-Graduação em Educação

da UFGD.

Luciana Araujo Figueiredo. Licenciada em Pedagogia pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul/Campus de Dourados, Mestranda em Educação pela FAED/UFGD (2008).

O instituto da escravidão colonial indiscutivelmente permanece como tema instigante de investigação e de produção na área das humanidades. Identidade étnica, fios de esperança e a constante luta pela sobrevivência ou contra a discriminação fazem parte da vida social do negro brasileiro. Com base nesse pressuposto propomos refletir o tema africanidades, expressão ligada às raízes da cultura brasileira, sobretudo crenças, costumes, religiões e tradições oriundas da cultura africana, a partir da produção historiográfica e literária dos séculos 19 e 20. À esteira desse objetivo, também propomos análise sobre os cenários da infância de crianças escravizadas nascidas no Brasil, sua trajetória, seu cotidiano, suas redes de relações sociais, suas conquistas e limites no campo educacional. Nosso primeiro passo foi perscrutar o discurso literário de Joaquim Manoel de Macedo (1869) e Gilberto Freyre (1933), no intuito de verificar como estes literatos discutiram relações étnicas, experiências, reconstruções identitárias e perspectivas do segmento afro-descendente.Nessa aproximação com o tema chegamos à premissa inolvidável de se revisitar o rico manancial literário e historiográfico que tangenciou a questão das africanidades e da sociedade ao longo do processo de mudança nas relações de trabalho e na educação.

Palavras chaves: Cultura brasileira, produção historiográfica, discurso literário.

O rastro da escravidão indiscutivelmente permanece como tema instigante de investigação e de produção na área das humanidades, sobretudo no que se refere à identidade étnica, luta pela sobrevivência ou contra a discriminação1.

As dimensões sociais, políticas e culturais do escravismo são hoje objetos de abordagens, enfoques e temas inovadores. Apesar dos bons ventos soprarem em favor das reflexões sobre a escravidão, os estudos sobre a África não conheceram o mesmo grau de interesse no Brasil2. O continente negro continuou até os últimos anos da década de 1980, sendo o patinho feio da historiografia brasileira, no dizer do historiador brasileiro Mario Maestri Filho (1994)3.

1 BRAZIL, M.C. Escravidão, liberdade e educação. Aportes para o debate sobre instituições e poder (Simpósio temático) : IX Encontro Regional da ANPUH/MS. As linguagens da história e os ofícios do historiador. Campo Grande MS : Editora da UFMS, 2008. v. 1. p. 1-10. 2 BRAZIL, M. C. . Fronteira Negra. Dominação, violência e resistência escrava em Mato Grosso, 1718-1888. 1. ed. Passo Fundo: Editora Universidade de Passo Fundo, 2002, p. ???3 MAESTRI, Mário. História do Brasil e a África Negra Pré-colonial. Porto Alegre: I Seminário Nacional sobre História da África/Universidade Federal do Rio Grande do Sul, set. de 1994. p. 1. (Conferência)

Base das relações de trabalho durante os períodos colonial e imperial a escravidão negra no Brasil foi nutrida pelo tráfico de africanos por mais de três séculos (1530-1850). A intensificação do rentável negócio ocorreu nas primeiras décadas do século 16, quando o tráfico transformou-se na maior transferência forçada de homens escravizados que a humanidade já conheceu.

Além da própria força de trabalho, milhares de malungos4 carregaram também para as Américas as línguas, culturas, crenças, técnicas e tradições negro-africanas5. Manoel Moreno Fraginals, estudando o cotidiano dos africanos traficados para a América, salientaque “desapareceram, subitamente, nexos familiares e sociais, antigas hierarquias, ritos religiosos, paradigmas de comportamento, hábitos alimentares e se lhes impunha, coercitivamente, um esquema de trabalho produtivo sem sentido para eles” 6.

Quando o tráfico foi interrompido em 1850, a África teria perdido em termos demográficos, entre mortalidade, migrações espontâneas e compulsivas cerca de 100 milhões de homens, mulheres e crianças, deixando o continente negro esvaído explicado pelos mais de três séculos de hemorragia contínua7. A diáspora forçada selou, portanto, os destinos da África.

1. Africanidades e preconceito

Para o africano livre, o trabalho era uma ação fundada na sobrevivência e na necessidade8. Quando o africano capturado para o tráfico chegava ao continente americano, passava a realizar uma atividade que, para ele, não tinha o menor sentido9. Esse choque decultura e de concepção contribuía também para as manifestações de rebeldia10. Os cativos recusavam-se a pensar e aceitar os valores impostos pela estrutura dominante. A extrema dificuldade encontrada pelos africanos em receber os padrões civilizatórios europeus foi evidenciada nos discursos do jesuíta Jorge Benci em fins do século 18: “ [...] desbastar os mais grossos de seus erros e superstições à força de grandes marteladas.]”11.

Ao se perscrutar o discurso literário de Joaquim Manoel de Macedo é possível verificar traços significativos de conflitos étnicos durante o Segundo Império brasileiro. O livro As vítimas-algozes. Quadros da escravidão12 escrito por Joaquim Manoel de Macedo constitui-se de três novelas que traduzem o universo dramático da escravidão. Através das histórias de Simeão, Pai-Raiol e Lucinda, Macedo se propõe a convencer o público-leitor (segmento senhorial) de que a escravidão criava vítimas-algozes e que, portanto, devia ser eliminada, sem prejuízo aos escravizadores13.

Segundo o conto macediano, Pai-Raiol era um cativo africano, feiticeiro e envenenador, vendido e revendido várias vezes graças ao instinto maldoso, ao ódio e aos ciúmes impregnados na figura desse escravizado. Pai-Raiol, com cativo assenzalado, viviaos rigores das péssimas condições de vida e de trabalho do trabalhador rural. A reação

4 Segundo o dicionário Houaiss, esse era o título pelo qual os escravos africanos se tratavam quando vinham na mesma embarcação5 MAESTRI, M. Ibidem. p. 326 FRAGINALS, Manuel Moreno. O engenho. Complexo econômico-social cubano do açúcar. Tradução Sônia Rangel e Rosemary C. Abílio. São Paulo: Hucitec/Editora da Unesp; Brasília: Cnpq, 1989, v. 2, p. 9-10. 7 MAESTRI, Mario. História da África Negra Pré Colonial. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1988, p. 43.8 BRAZIL, M. C. Fronteira Negra. Op. cit., p.32.9 Ibidem.10 Ibidem.11BENCI, S.B. Jorge. Economia cristã dos senhores no governo dos Escravos. (Livro Brasileiro de 1700). Com um estudo preliminar de Pedro de Alcântara Figueira e Claudiney M. M. Mendes. São Paulo, Grijalbo, 1977.12 MACEDO, Joaquim Manuel de. As vítimas-algozes. Quadros da Escravidão (romances). 3ª. Edição comemorativa do Centenário da Abolição. Estabelecimento do texto e notas por Rachel Teixeira Valença, com um estudo introdutório de Flora Süssekind. São Paulo: Editora Scipione, 1988.13 BRAZIL, M. C. Fronteira Negra...Op.cit. p. 101-105.

contra a escravização é explicada no conto como plano estratégico de vingança pessoal do africano, que contava com a cumplicidade de Esméria, uma crioula de serviços domésticos.

Macedo construiu a imagem de Pai-Raiol a partir da visão senhorial. Para estesegmento, um africano resistente culturalmente, não raro, era descrito de forma preconceituosa, ou seja, como feiticeiro que falava com animais através de seu olhar paranormal , cujos feitiços, faziam eclodir doenças e mortes entre animais e senhores,

ameaçando a segurança e a economia do núcleo de produção. É claro que os mistérios delineados por Macedo faziam parte de um recurso ficcional, usado para demonstrar ao leitor a necessidade emancipacionista14. A intenção era levar escravizadores a destruir a espinha dorsal da resistência negra, ou seja, a própria escravidão.

O envenenamento era um aspecto singular do universo escravista brasileiro. O mitodesse procedimento vingador causava o pânico constante entre os senhores, determinando a elaboração de penas severas e específicas para punir escravos criminosos.

Se alguns senhores e autoridades preferiam a repressão às práticas religiosas e lúdicas afro brasileiras, outros, viam na tolerância uma forma de evitar as lutas dos escravizados contra a instituição que os oprimia. Nos mais remotos recantos do Brasil, a repressão ao batuque e aos cultos religiosos ou míticos inseriu-se nas proibições dos códigos de posturas que possuíam todas as cidades da região15. A repressão não se limitava ao uso da força. As manifestações recreativas, com raízes culturais africanas, eram também reprimidas ideologicamente16. Elas eram vistos de forma preconceituosa e moralista pelos representantes da estrutura dominante.

A figura de Pai Raiol imaginada traduz uma das variadas formas de luta dos negros escravizados pela constituição e reprodução da identidade étnica no Brasil. A resistência ao escravismo determinou a permanência das raízes culturais africanas na história brasileira evidenciada, sobretudo, na música, na religião, no folclore e na formação da própria língua. Durante os longos séculos de escravidão, os negros encontravam espaços para amenizar os rigores do dia-a-dia na dança, nos rituais, nas crenças e no canto17.

As práticas culturais afro-brasileiras, mescladas aos materiais culturais europeus e nativos, representam fragmentos da consciência rebelde construídos na luta contra a aviltante condição servil18.

2. Escravidão e infância sob os olhares dos literatos

Em relação ao universo da criança escravizada observamos o “quase-emudecimento” historiográfico, documental e memorialístico sobre esta temática. Além disso, as crônicas sobre o escravismo colonial omitiram aspectos do cotidiano e vivênciasde cativos, nativos, agregados, pobres, mulheres e crianças19. A vida diária da do trabalhador escravizado e da criança negra escravizada, em particular, pode ser pinçada ou retirada das entrelinhas das crônicas e dos registros oficiais, na literatura conforme detectaram José Roberto de Góes e Manolo Florentino num texto do século 18: “(Antonil) descreveu o calvário de escravos pais e de escravos filhos. Estes também haviam de ser batidos, torcidos, arrastados, espremidos e fervidos. Assim era que se criava uma criança escrava20”

14 Ibidem.15 Ibidem.16 Ibidem.17 Ibidem, p.126-131.18 Ibidem. 19 FIGUEIREDO, Luciana; BRAZIL, M. C.. Criança afro-brasileira no século 20. Educação e Literatura -considerações de pesquisa. In: II Seminário de Pesquisa - Memória, História, Política e Gestão. Dourados, MS: Editora da UFGD, 2008. v. 1. p. 1-15.20 GÓES, José Roberto de; FLORENTINO, Manolo. Crianças escravas, crianças dos escravos. In: DEL PRIORI, Mary (org.). História das Crianças no Brasil. 6ª edição. São Paulo: Contexto, 2007.

José Roberto de Góes e Manolo Florentino lembram que a criança, sob o cativeiro, tinha que aprender ofício e também aprender a ser escravo21. A aprendizagem tinha relação com o nível de adestramento apresentado pela criança escravizada, pois o trabalho era o domínio privilegiado da “pedagogia” do segmento senhorial22. Não raro este “treinamento” era realizado sob linguagem do chicote, parte intrínseca da escravidão.

Na obra de Gilberto Freyre (1933; 1935) é possível encontrar esparsamente cenas do cotidiano e redes de relações do trabalhador escravizado, em geral e da criança afro-brasileira, em particular, durante o passado escravista23. Gilberto Freyre (1933) interpretava os castigos como função de manter a ordem patriarcal: “(...) O castigo ao escravo como o castigo ao filho da família fazia parte de sistema de educação, de assimilação e de disciplina - o patriarcal - que não podia desmanchar-se em ternuras (...)24”.

Os castigos jamais podiam assumir a função educadora conforme aduziu Freyre, pois o sistema negreiro se sustentava pelo terror constante revestido por seu duplo objetivo: sufocar rebeldias e garantir o pleno funcionamento da organização econômica25.

A despeito do discurso patriarcal e benevolente presente na obra Casa Grande e Senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal de Gilberto Freyre, algumas de suas teses foram retomadas para refletir, sobretudo, acerca da criança brasileira.

Estudos realizados, sobretudo por Peter Burke, revelavam que desde 1921, o jovem Freyre tinha a ambição de tomar a criança brasileira como tema de análise: O que eu desejaria era escrever uma história como suponho ninguém ter escrito com relação a país algum: a história do menino brasileiro – da sua vida, dos seus brinquedos, dos seus vícios –, desde os tempos coloniais até hoje26.

Burke fez surpreendente descoberta sobre o projeto de Freyre em escrever a história da criança brasileira: Entre 1921 e 1930, a versão publicada do diário de Freyre refere-se ao projeto da história da criança no Brasil não menos do que sete vezes. Quatro dos artigos que escreveu para o Diário de Pernambuco nos anos 20 tratavam da infância, das crianças e seus livros e brinquedos27.

Burke lembra que A nouvelle histoire francesa defendeu amplamente a utilização de novas fontes para responder às novas questões levantadas sobre o passado. Se Le Roy Ladurie (1972), analisou detidamente os exames médicos disponíveis nos arquivos militares para estudo sobre a história do corpo no início do século 19, Burke lembra que Freyre “recorreu a um âmbito extraordinariamente amplo de fontes para compor a obra Casa-grande & senzala”. Para Burke a escrita de Freyre foi um notável tour de force, sobretudo no que diz respeito às “descrições de escravos fugitivos – inseridas nos jornais por seus proprietários” a ponto de ser comparado ao estudo dos recrutas franceses realizado por Le Roy Ladurie28.

Para escrever Sobrados e mocambos: decadência do patriarcado rural no Brasil (1936) Freyre recorreu a uma significativa diversidade de fontes, impensada à época pelos estudiosos das ciências humanas, pois o advento Revolução Francesa da Historiografia(1929) liderado Lucien Febvre e Marc Bloch propondo novos problemas, novas abordagens, novos objetos na abordagem histórica ainda era algo relativamente recente no meio

21 Ibidem.22 Ibidem.23 FIGUEIREDO, Luciana; BRAZIL, M. C. . Criança afro-brasileira ...Op.cit., p. 1-15.24 FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala. Rio de Janeiro: Record, 1995.25 BRAZIL, M. C. Fronteira Negra...Op.cit. p. 87.

26Cf. BURKE, Peter. Gilberto Freyre e a nova história. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 9(2): 1-12, outubro de 1997, p. 3.27 Ibidem, p. 3.28 Ibidem, p. 4

científico. Na escrita de Sobrados e mocambos de Freyre lançou mão de diários, iconografias, folclore, tradição oral, arquivos pessoais, papéis de velhos engenhos, documentação notarial, anúncios de jornais, inventários post-mortem, teses de escolas de medicina, depoimentos de viajantes, literatura oitocentista, anúncios de cativos fujões, etc29.

Apesar das considerações positivas realizadas por Peter Burke no referente à obra mundialmente conhecida de Gilberto Freyre, alguns estudiosos não pouparam críticas:

Sobrados e mocambos constitui sentido e poderoso elogio... ao senhor de engenho... Freyre... com emoção e carinho, relata como viviam, como bebiam, como se banhavam; registra as superstições, as crenças, aslendas, as idiossincrasias, sobretudo dos senhores, sinhás, sinhozinhos, das casas grandes rurais e, principalmente, dos sobrados urbanos do século 1930.

De acordo com essa tendência crítica, o sociólogo realizou um empreendimento baseando nas recordações pessoais, narrando as vivências do Menino-Freyre “nos engenhos e sobrados de familiares e conhecidos ou relatadas por confidentes ilustres”31:

Refere-se à sua meninice de neto de gente, além de patriarcal, rural, com sobreviventes, na convivência doméstica ou familial, de escravos [sic] ou de servos [sic] nascidos nos dias da escravidão. Freyre lembra que crescera ouvindo histórias da negrinha Isabel e aprendendo palavrões como o malungo Severino e ouvindo da negra Felicidade, outrora escrava de suaavó materna, suas experiências dos dias antigos. Como em Casa Grande e Senzala o sociólogo refere-se apenas rapidamente aos depoimentos e memórias dos cativos, apesar de escrever a quatro décadas da Abolição, em época em viviam ainda dezenas de milhares de homens e mulheres que haviam sofrido o cativeiro32.

Para o historiador inglês Peter Burke, o sociólogo brasileiro saiu à frente no que se refere ao interesse em estudar a família se comparado à obra L’enfant et la vie familiale en l’ancien regime de Philippe Ariès, escrito em Paris em 1960.

A grande contribuição de Ariès foi colocar a infância no centro das discussões históricas, empreendimento capaz de abrir caminhos para outros estudos sobre a história da criança, com base, sobretudo, nas fontes literárias, em diferentes regiões e períodos33.

No artigo intitulado Gilberto Freyre e a nova história, publicado em 1997, Burke lembra que a “nova história” francesa baseou sua pretensão e novidade também no desenvolvimento de novas abordagens e métodos, numa perspectiva multidisciplinar, procedimento empregado por Freyre já nos anos 1930. Nessa aventura sociológica Freyre trouxe a lume a história da criança com base nas histórias ouvidas na meninice e contadas por velhos trabalhadores domésticos, conforme observações de Burke:

A história da criança atraiu seu interesse por si mesma, como uma desculpa para discutir sua própria infância, e como um microcosmo da cultura brasileira. Embora Freyre nunca tivesse realizado seu plano original, não o abandonou completamente. Se voltarmos para Casa-grande & senzala, logo

29 MAESTRI, Mario. Gilberto Freyre: da Casa Grande ao Sobrado. Gênese e dissolução do patriarcalismo escravista no Brasil. Algumas Considerações. Cadernos do Instituto Humanitas (IHU). São Leopoldo, RS: Universidade do Vale do Rio dos Sinos/Unisinos, Ano 2, n.6, 2004, p. 12-13. Cf.FREYRE, Gilberto. Sobrados e mocambos: decadência do patriarcado rural no Brasil. São Paulo, 1936, 405, p.30 MAESTRI, Mario. Gilberto Freyre: da Casa.... p. 13-14.31 Ibidem. 32 Ibidem. 33 BURKE, Peter. “A terceira geração”. Do porão ao sótão. In: A Escola dos Annales -1929-1989. A revolução francesa da historiografia. Trad. Nilo Odália. 2ª. edição. São Paulo: Editora Universidade Estadual Paulista(Edunesp), 1991, p. 81-83.

fica óbvio que fragmentos substanciais do “projeto secreto” estão embutidos no texto, indo das bonecas, pipas, piões, bolas e outros brinquedos e jogos das crianças brancas, negras e índias até o “sadismo patriarcal”, os estudos e a disciplina dos colégios jesuítas e a breve discussão sobre a educação das meninas34.

A problemática do negro continua sendo profundamente repensada nos Programas de Pós-Graduação das principais Instituições de Ensino Superior, e principalmente nos diversos setores da sociedade brasileira, contemplando temas relativos à comunicação, religião, educação, literatura, relações étnicas, história e vida rural.

3. Africanidades e infância no Brasil atual

A concepção de infância é uma noção historicamente construída e conseqüentemente vem mudando ao longo dos tempos, não se apresentando de forma homogênea nem mesmo no interior de uma mesma sociedade e época. Assim é possível que, por exemplo, em uma mesma cidade existam diferentes maneiras de se considerar as crianças pequenas dependendo da classe social a qual pertencem e do grupo étnico a que fazem parte.

Em nossa realidade, a maioria das crianças brasileiras enfrenta um cotidiano bastante adverso que as conduz muito cedo a precárias condições de vida, ao trabalho infantil, ao abuso e exploração por parte dos adultos. Outras crianças são protegidas de todas as maneiras, recebendo de suas famílias e da sociedade todos os cuidados necessários ao seu desenvolvimento.

E como compreendemos a construção da infância negra?

Em suas cartas Ina Von Binzer35, preceptora que veio ao Brasil na época da escravidão educar os filhos dos nobres, relata de forma crítica como ela pensava sobre a questão da escravidão brasileira e a relação entre escravos e senhores: “Neste país os pretos representa o papel principal [...] todo o trabalho é realizado por pretos, toda a riqueza é adquirida por mãos negras”. 36

Neste contexto, para a autora, a utilização da mão de obra infantil nos trabalhos domésticos era comum, como forma de prover suas necessidades básicas:

Há um mulatinho de doze anos, com cara de malandro e uma invencível predileção pelas roupas sujas e pelas cambalhotas que se tornaram sua maneira habitual de andar; sua obrigação é a de espantar as moscas, junto à mesa, com uma bandeirola [...]. Além disso, o menino deve servir o café. 37

Com a abolição da escravatura em 1871, a autora chama a atenção para a situação da criança negra após sua libertação:

Foi determinado apenas que do dia de sua promulgação em diante, 28 de setembro de 1871, ninguém mais nasceria escravo no Brasil. Quem já vivia como cativo nessa época, assim permanecerá até a morte, até o resgate ou até a libertação. Os pretinhos nascidos agora, não têm nenhum valor para seus donos, senão o de comilões inúteis. Por isso não se faz nada por êles,

34 Ibidem.35 BINZER, Ina Von. Os Meus Romanos: alegrias e tristezas de uma educadora no Brasil; Trad. Alice Rossi e Luisita da Gama Cerqueira. - 3ª ed. - Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.36 Ibidem, p.3437 Ibidem, p.19

nem lhes ensinam como antigamente qualquer habilidade manual, porque, mais tarde, nada renderão. 38

Isto demonstra que as crianças negras foram deixadas sem nenhuma perspectiva de futuro, os senhores só tinham interesse nelas enquanto serviam como um futuro trabalhador que lhes rendesse mão de obra.

Esta reflexão também é realizada por Mary Del Priore39, segundo a autora a criança negra sofria em decorrência da condição de escrava a que estava submetida. O período de infância era bastante reduzido e sua cultura negada.

Assim a criança negra torna-se figura invisível e de pouca importância na historiografia brasileira. Não raro, crianças negras nascidas nas senzalas brincavam com as crianças brancas durante toda a infância, ao passo que ao atingir a idade de sete anos, as crianças negras iam trabalhar e as crianças brancas estudar, a criança era vista como mão de obra futura.

Para a autora o Brasil foi o último país a acabar com o triste sistema escravocrata e traços desse período ainda refletem na nossa sociedade atual.

A população negra de uma forma geral e especificamente as crianças negras, ainda enfrentam certa invisibilidade frente aos demais grupos sociais e isso prejudica a sua inserção social e a negligência na efetivação dos direitos fundamentais.

Estudos recentes mostram que desde o Brasil colonial até os dias atuais esta realidade não foi alterada. Em seu trabalho, o antropólogo João Baptista Pereira40 discute o que é ser criança negra no Brasil e tece duas considerações: a primeira é ser pobre e abandonada, que estão na rua sem às mínimas condições de vida a que tem direito e tratadas com discriminação e preconceito, onde em muitos casos a rua se torna a sua "casa" ficando sem os referenciais da família, vivendo em situações desumanas de pedintes a mercê da exploração dos adultos, carregando uma carga de preconceito e racismo onde são vistos como delinqüentes que futuramente estarão nos estabelecimentos carcerários do país e também demonstra nos censos realizados, que a criança negra é a que menos tem acesso aos bens culturais, que estão colocados à margem da sociedade.

A pesquisadora Neuza Maria Mendes de Gusmão41, em sua pesquisa intitulada: Fundo de memória: infância e escola em famílias negras em São Paulo, realizada com homens e mulheres negros de diferentes idades retratou os desafios enfrentados pelas famílias negras em relação à infância de seus filhos vivida na escola como uma trajetória marcada de dificuldades para a permanência na escola pelo motivo da renda familiar, o trabalho dos seus filhos surgindo como alternativa financeira:

O trabalho surge como imposição de vida que afeta e determina drasticamente o fim da infância, independentemente da idade que se tenha, e, também, o fim da escola como lugar de aprendizagem, já que sempre há que se optar - ou estuda ou trabalha. A opção, na verdade inexiste, pois, para o negro brasileiro, o trabalho se faz inevitável.42

38 Ibidem, p.34.39 DEL PROIRE, Mary. História das crianças no Brasil. 1. ed. São Paulo: Contexto, 1999.40 PEREIRA, João Baptista Borges. A criança negra: identidade étnica e sociabilização. Cadernos de Pesquisa. São Paulo: Fundação Carlos Chagas, n. 63, novembro 1987.41 GUSMAO, Neusa Maria Mendes de. Fundo de memória: Infância e escola em famílias negras de São Paulo. Caderno Cedes, ano XVIII. n. 42, outubro 1997.42 Ibidem, p.69

Diante desta realidade percebe-se que os negros estão economicamente em situação de desvantagem em relação às demais etnias, gerando com isso problemas de ordem material e cultural.

A partir deste contexto percebe-se que a infância da criança negra, através dos tempos, vem sendo marcada por fatores como: a desigualdade, a exclusão social e inserção no mercado de trabalho acabando por comprometer toda sua infância.

4. Considerações finaisAtravés dos discursos literários de Joaquim Manoel de Macedo Joaquim Manoel de

Macedo (1869) e Gilberto Freyre (1933) é possível verificar traços significativos de conflitos étnicos, relações étnicas, experiências, reconstruções identitárias, lutas intermináveis envolvendo o segmento afro-descendente.

A busca de referências que ajudem a compor a identidade étnica brasileira tem estimulado debates, simpósios e de conferências. Entretanto, permanece pertinente a proposta de Artur Ramos de que é preciso recorrer ao exame das « sobrevivências negras (...) folclore, religião, organizações sociais e artes plásticas » 55 para compreender a contribuição da cultura africana no Brasil.

Nessa aproximação com o tema chegamos à premissa inolvidável de se revisitar o rico manancial literário e historiográfico que tangenciou a questão das africanidades e da sociedade ao longo do processo de mudança nas relações de trabalho e na educação.

55Citado por Marco Antonio de CARVALHO. Cultura Negra. São Paulo. Editora Três, s/d. p.8.