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AFROGRAFIAS DO TEATRO NEGRO EM SÃO PAULO
JÉSSICA GOMES DO NASCIMENTO*
Este artigo compartilha uma pesquisa em andamento que se concentra no estudo de 10
dramaturgias elaboradas na cidade de São Paulo. Como eixo temático, a pesquisa aborda a
dramaturgia como um tipo linguagem artística favorecida pela imaginação. Com as peças de
autoria negra têm se verificado dinâmicas territoriais que revelam ‘modos de existência,
estruturas de sentimentos, produções, comunicações e memórias’ da população negra por meio
do teatro.
Palavras-chave: Dramaturgia. Autoria Negra. Teatro Negro.
A pesquisa se concentra no estudo de 10 dramaturgias de autoria negra escritas entre os
anos de 2006 e 2019 na cidade de São Paulo. A singularidade e a aproximação entre estas peças
teatrais está no fato de tomarem como signo de representação as cores, os fenótipos, as
experiências, lugares e memórias de sujeitos negros (MARTINS, 1995). Os textos teatrais
utilizados nesta pesquisa, em sua maioria, participam de projetos artísticos de coletivos teatrais,
que buscam narrativas para interpretar os múltiplos aspectos que constituem experiências
singulares e coletivas protagonizadas pela população negra.
Dentro do processo de triagem do levantamento das fontes, verifiquei que na cidade de
São Paulo este trabalho tem sido realizado por diferentes dramaturgas, dramaturgues e
dramaturgos tais como1: Allan da Rosa, Dione Carlos, Maria Shu, José Fernando Peixoto de
Azevedo, Jé Oliveira, Sérgio Pires, Cidinha da Silva, Luiz Silva (Cuti), Jhonny Salaberg, Dirce
Thomaz, Lucas Moura, Lu Maza, Rudney Borges dos Santos, dentre outros. Essa produção
também se faz pelos coletivos artísticos dentro de processos colaborativos em que, de maneira
geral, a dramaturgia é criada em conexão com o trabalho que se estabelece em sala de ensaio.
Entre os coletivos de performance e Teatro Negro atuantes na cidade de São Paulo destacam-
se: Invasores Companhia Experimental de Teatro Negro, Cia Os Crespos, Coletivo Negro,
* Mestranda do Departamento de História da PUC-SP, bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior, CAPES, Brasil. 1 No texto me comunico através da linguagem não-binária, compreendendo a necessidade de buscar formas de
linguagem em que mulheres (trans/cis), homens (trans/cis), e não-binários possam existir na leitura, na escrita, no
diálogo e nas variadas possibilidade da língua.
2
Capulanas Cia de Arte Negra, Cia Carcaça de Poéticas Negras, O bonde, Cia Carolinas, e Selo
Homens de Cor.
Para iniciar o compartilhamento dessa pesquisa em andamento, serão apresentadas
imagens recolhidas a partir da leitura das fontes de trabalho:
1. Um menino negro, morador de algum extremo da cidade, corre para não ser baleado
em uma perseguição policial, que sem justificativa, o surpreende enquanto compra
pão em uma padaria no primeiro dia do ano. Apesar de correr, seu corpo vai sendo
invadido por inúmeras balas de arma de fogo. Com o corpo cheio de ‘buraquinhos’
(termo que nomeia a trama), o menino realiza rotas de fuga para escapar dos policiais.
Ora correndo a pé, ora como um gato deslizando entre os fios de iluminação pública,
nadando entre córregos, surfando por cima dos trens, o menino descobre ligações da
sua corporeidade negra no Caribe e em África.
2. No dia 8 de maio de 2015, jornais do mundo todo divulgaram a mesma notícia:
‘menino africano é encontrado dentro de uma mala na fronteira espanhola.’ O texto
divulgado com a imagem de um garoto negro dentro de uma mala rosa, com os olhos
tarjados com fita preta para legalizar a exposição da infância, alertava, entre as
propagandas que cercavam a informação ligeira compartilhada pela imprensa, um
momento da história de Adou Nery Ouattara. O menino, nascido em 27 de setembro
de 2007 em Abijan, a maior cidade da Costa do Marfim, quer ser jogador de futebol
como o Messi, e jogar no Barcelona ou no Paris Saint-Germain. Em época de copa,
pretende representar seu país, contrariando os desejos de seu pai, que vislumbra para
ele um bom caminho na medicina.
3. O tráfico de escravizados estava proibido no Brasil desde 1830 em acordo com a
Inglaterra, e desde 7 de novembro de 1831 pela lei de escritura nacional, que declarou
no Art. 1º que “Todos os escravos, que entrarem no território ou portos do Brazil,
vindos de fóra, ficam livres”. Se valessem as leis, Mahommah Baquaqua,
sequestrado em 1845 em Zooggoo na África Central (atual municipalidade de
Djougou, no Benim), deveria ser declarado livre assim que pisasse no território
brasileiro. Seu traficante receberia a multa de duzentos mil réis, além de pagar as
despesas da reexportação para qualquer parte da África — reexportação que o
3
Governo faria de maneira efetiva e breve. Baquaqua, no entanto, foi escravizado por
cerca de dois anos em Pernambuco, depois foi levado para o Rio de Janeiro, onde
trabalhou na tripulação do navio Lembrança, que transportou café para os Estados
Unidos da América em 1847. Em Nova York, Baquaqua foi abordado por
abolicionistas locais, que o incentivaram a fugir do navio. Preso durante a fuga, foi
enviado ao Haiti, onde passou a viver com o reverendo Judd, um missionário batista.
De volta aos Estados Unidos, devido à instabilidade política no Haiti, Mahommah
estudou por três anos no New York Central College, em McGrawville. Em 1854, foi
para o Canadá e, no mesmo ano, teve sua autobiografia publicada nos Estados
Unidos, em inglês. No Brasil, o texto só foi publicado em 13 de maio de 2017.
4. Na rua José Barros Magaldi, n° 1121, no Jardim São João, em São Paulo, encontra-
se uma pequena África — mulheres negras habitam uma casa onde desenvolvem,
entre elas, laços ancestrais. A Goma Capulana tem pequenos cômodos: um quintal,
uma cozinha, uma sala de espera, quarto, garagem e jardim. Nesta espacialidade
íntima, Audre, Sônia, Mameto, Ana Paula, Antônia e Sangoma, discorrem sobre o
ciclo das águas do corpo: lágrima, saliva, sangue, suor e sêmem. Histórias sobre dor
e cura são ditas em voz alta, talvez a vizinhança escute inclusive o toque do atabaque.
Na memória do canto, da dança, nas gargalhadas, vai se abrindo a musculatura física
que diz sobre os espaços de cura. No jardim, uma porção de folhas entrega a
descoberta dos segredos de Ossaim, orixá senhor das folhas sagradas, das ervas
medicinais e litúrgicas, identificado no jogo do merindilogun pelo odu iká, e
representado material e imaterialmente pela cultura jeje-nagô através do
assentamento sagrado denominado igba ossaim. Sua importância é primordial.
Nenhuma cerimônia pode ser realizada sem sua interferência.
5. “Seja bem-vindo, esse é o Raio X do Brasil. Você está entrando no mundo da
informação, autoconhecimento, denúncia e diversão.” A voz de Edi Rock aparece
forte, mas não é 1993. O DJ cita Ogum iê, abertura do disco Sobrevivendo no Inferno.
Um homem negro faz um pacto com um microfone na mão: “— Eu gostaria que
vocês imaginassem que aqui é uma favela ou o Zaíra”. Atualmente Zaíra é um bairro
do Município de Mauá, dividido em sete partes, tem aproximadamente 110 mil
4
habitantes, grandes morros, vielas e escadarias com 210 pés de altura. No entanto, o
homem com microfone pede a imaginação de um Zaíra sendo iniciado. Nesta
narrativa fabular sobre o homem negro urbano, o mestre de cerimônias vai mixando
entrevistas de homens negros de várias idades e ocupações. Entre os informantes da
história: Akins Kintê, Allan da Rosa, Aloysio Letra, Fernando Alabê, João
Nascimento, KL Jay, Melvin Santhana, Renato Ihu, Salloma Salomão, Seu Luíz
Livreiro, Will Oliveira e Zinho Trindade.
6. Antes de começar o espetáculo, um ator sai à rua, abre uma mala e troca de roupa em
frente ao teatro. Vai se transformando, solicitando a ajuda dos transeuntes para calçar
o sapato e o suspensório. De repente, inicia o diálogo: “— Você já fez alguma loucura
de amor? Eu desejo fazer uma loucura de amor”. Chove da janela de um edifício,
papéis, doces e brinquedos. Clichês romanticos são desenhados no meio da calçada.
Duas pessoas são convidadas a segurar uma grande faixa com uma frase-declaração:
“— Tudo isso é pra você!”. O ator vai dizendo uma porção de coisa bonitas, como
se escrevesse uma carta para alguém que não volta mais. Ninguém aparece. O público
entra no teatro e encontra um quarto manifesto, um cenário que dá a impressão de
intimidade: “— Querido Madame Satã, quem não ama ainda está morto. Eu amei.
Não durou muito. Mas foi um ano de muito amor”, diz o ator. Liga uma câmera de
vídeo, e se prepara para um grande show. A faixa do lado de fora dizia: “— BEIJE
O SEU PRETO EM PRAÇA PÚBLICA”.
7. Ida da Silva é o nome de uma arquiteta que projeta a restauração da dignidade de
pessoas negras. Ela diz que os espaços em que as mulheres negras, como eu, como
ela, foram colocadas, são pequenos demais para habitar, para existir, para sonhar. Ida
conseguiu um grande contrato de trabalho em uma empreiteira para a construção de
moradias. Depois de três meses de trabalho apresentou o desenho da planta. O projeto
era tão bonito que o contratante branco não acreditou que uma mulher negra fosse
capaz de imaginá-lo. No entanto, verificou-se um problema: “— Ida, você esqueceu
de imaginar o quarto de empregadas? Onde elas irão passar a noite?”.
8. Dentro da Escola de Arte Dramatica (EAD - USP), uma situação singular se
evidenciou: quatro pessoas negras juntas em um mesmo processo de criação. No final
5
do semestre, duas mulheres e dois homens negros sobem ao palco, totalmente nus,
para realizar um debate de forma viceral. O que é ser negro na sociedade brasileira?
Talvez tentassem desnudar os olhares de platéias majoritariamente brancas. O
movimento de coro avança, com um suor coletivo, um esforço conjunto, e uma
vivência partilhada. Neste jogo a singularidade de cada ator e atriz negra é
apresentada: Mirella estudou em escola particular; Rauny não sabia que era negro até
um dia desses, quando foi surpreendido consigo mesmo; Lucas canta Negro Drama
da perspectiva de um homem negro gay; Ivi conta piadas racistas e convida a platéia
a se constranger.
9. Na Vila Rica de Nossa Senhora de Pilar de Ouro Preto, uma mulher escravizada
comete infanticídio. O Crime está previsto no artigo 123 do Código Penal Brasileiro
— é a eliminação da vida do próprio filho, recém-nascido ou nascente, praticado pela
própria mãe. O crime na Vila Rica acontece como um sacrifício. Age é o Vudum
caçador e deus da mata. Age é o nome dado ao menino que Jazão, capitão do mato,
quer escravizar. No entanto, Medéa Negra vai até o menino de noitinha e coloca um
punhado de ervas na boca dele, para que não o matem na mina mais tarde. O menino
morre no colo da mãe. Medéa é dura, mas range.
10. Depois de trabalhar em “casa de família”, dona Filomena da Cabula realizou o sonho
de ter um negocinho próprio — armou uma barraca na rua e se fez camelô. Depois
de adulta, voltou para a escola para aprender as letras com uma mocinha bem mais
jovem do que ela. Certo dia, cumprindo as tarefas escolares, depois de muito matutar
com o problema da escrita, foi tomada por um transe com o lápis na mão. Rabiscou
o papel e saiu o que devia:
Imagem 1 – Redação de Dona Filomena da Cabula2
2 Transcrição: o minino mamava piquenodi colo. Cugava o leitimcusegado. Adona alternava aquelis peito branqin
no seu bico. A teta esquerda o peito esquerdo era boludo e lizinho. Naponta um grão cordelaranja. Que ele agarrava
forti, que nem homem. Ela amaçavaalientreaztetas, os peitos pálidos. Fazia dengim cari carinho dava educasao. O
leitibranzinrralo na boca pretin a. o peito diretco ,muxo e rececado, qe nem um pano de prato gasto, exgarsado.
Exgarsado. O Nenê tiño ela de familhaamadileite. E maisningem na redon Era cua única companniarremedio pra
colida o minino.
² Neste contexto o termo refere-se às categorias mentais que sustentam socialmente a ideia de diferença racial que,
embora não exista biologicamente, estão presentes nas representações e imaginários coletivos.
6
Fonte: DA ROSA, 2008, p.75.
Observando essas dramaturgias de autoria negra, tenho refletido sobre como essas ações
imaginadas para peças teatrais têm questionado as imposições hegemônicas que criam
impedimentos para o uso do espaço comum — tratam-se de fronteiras imaginadas a partir da
atualização constante determinismo² de que fundaram teorias racistas sobre os povos africanos
e seus descendentes. As fontes selecionadas para esta pesquisa e mencionadas nos fragmentos
são, respectivamente:
Quadro 1: fontes selecionadas para pesquisa
Nome da peça Autoria Ano de estreia
Buraquinhos, ou o vento é inimigo
de picumã Jhonny Salaberg 2018
Quando eu morrer vou contar tudo a
Deus Maria Shu 2019
Baquaqua Dione Carlos 2017
Sangoma Cidinha da Silva e Capulanas Cia de Arte 2013
Farinha com açucar Jé Oliveira 2016
Cartas a Madame Satã ou me
desespero sem notícias suas José Fernando Peixoto de Azevedo 2015
Medea Mina Jeje Rudney Borges dos Santos 2018
Ida Coletivo Negro e Renata Martins 2016
Isto é um negro? Tarina Quelho e Mirela Façanha 2017
Da Cabula Allan da Rosa Não encenada
7
Fonte: elaborado pela autora, 2020.
Os materiais selecionados são textos com os quais tive contato como atriz, professora
de teatro e espectadora do Teatro Negro. Sou uma mulher negra, nascida em uma família de
afrodescendentes migrantes, filha de mãe mineira e pai pernambucano. Fui criada na cidade de
Itaquaquecetuba, extremo leste da região metropolitana de São Paulo, região geográfica
localizada no entorno da nascente do rio Tietê. Iniciei meus estudos no teatro aos 14 anos de
idade em um espaço cultural vinculado à Secretaria de Cultura da cidade. Posteriormente,
convivi artisticamente com os coletivos teatrais e literários que atuam nas cidades de Suzano
(Teatro Contadores de Mentira e Teatro da Neura), Poá (Núcleo Teatral Opereta), Mogi das
Cruzes (Cia do Escândalo), e no Itaim Paulista, último distrito da zona leste
do município de São Paulo (Sarau O Que Dizem Os Umbigos).
Decidi-me artista muito cedo, mas me foi informado que ‘as artes não eram para o nosso
bico’. Apesar dos determinismos raciais e sociais, minha mãe sempre foi artesã — cria, pinta e
comercializa bonecos de gesso nos fundos do nosso quintal. Meu pai, ao chegar em casa, depois
do trabalho na indústria metalúrgica, onde presta serviços há mais de 30 anos, troca de roupa e
bate novamente o martelo nos restos de metal que encontra na rua — confecciona gambiarras
que são verdadeiras obras de arte. Minha irmã mais velha é conhecida pela sua linda voz e
afinação, disputadíssima, canta em todos os casamentos da família com meus primos fazendo
o acompanhamento no violão. Somos artistas, mas somente eu me meti a chamar isso que
fazemos em casa de profissão.
Busquei uma formação acadêmica através da EDUCAFRO, instituição que tem a missão
de promover a inclusão da população negra e pobre nas universidades públicas e particulares
por meio de cursinhos comunitários. Não obtive sucesso no vestibular, mas tive uma formação
política e racial que me orientou sobre os meus direitos. Posteriormente, durante os meus
estudos para desenvolvimento dessa pesquisa, encontrei no jornal Quilombo, vida, problemas
e aspirações do negro, dirigido por Abdias do Nascimento entre 1948 a 1950, registros que
como princípio, se aproximam da minha experiência formativa. Na instalação do Conselho
Nacional das Mulheres Negras em maio de 1950, a idealizadora do conselho, Dr ª Maria de
Lourdes Vale Nascimento (2003: p. 98), declara “Este departamento feminino tem por objetivo
lutar pela integração da mulher negra na vida social, pelo seu alevantamento educacional,
8
cultural e econômico”. Foi também na EDUCAFRO que ouvi pela primeira vez o nome Teatro
Experimental do Negro (TEN).
Em 2013, me matriculei no Curso de graduação em Comunicação das Artes do Corpo,
fui bolsista do PROUNI na PUC-SP, onde a mensalidade ultrapassava 2 salários mínimos à
época. Posteriormente, depois de prestar quatro vezes o vestibular da Escola De Arte Dramática
da Universidade de São Paulo, instituição vinculada à Escola de Comunicação e Artes
(EAD/ECA/USP) consegui a minha vaga, e me formei no ano de 2019. Em todos estes cursos,
pessoas como eu, negras e negros, eram poucas, portanto, se fez necessário tentar formular,
imaginar e responder perguntas sobre o corpo negro nas artes.
Desenvolvi interesse pelo estudo das dramaturgias porque fui ensinada nessas
instituições de formação artística a ler a história apoiada em textos teatrais. Então, por
afetividade, passei a pesquisar dramaturgias escritas para o Teatro Negro. O título provisório
Afrografias do Teatro Negro em São Paulo foi inspirado no livro Afrografias da memória:
Reinado do Rosário no Jatobá, escrito pela pesquisadora Leda Maria Martins e publicado pela
primeira vez em 1997. Lendo o livro pode viajar como as palavras e com a descrição das vozes
que ressoam inscrevendo os sujeitos no circuito da tradição e da transmissão: “a palavra é sopro,
hálito, dicção, acontecimento e performance, índice de sabedoria” (MARTINS, 1997: p.146).
A mesma pesquisadora no livro A cena em sombras, texto originalmente apresentado
como tese no ano de 1991 à Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG) para obtenção do grau de Doutora em Letras, na área de Literatura Comparada, realiza
um estudo sobre o teatro negro no Brasil e nos Estados Unidos e toma o termo negro, como o
primeiro desafio de pesquisa. Em suas palavras:
A análise de expressões do Teatro Negro me leva a sublinhar que sua distinção e
singularidade não se prendem, necessariamente, à cor, fenótipo ou etnia do
dramaturgo, ator, diretor, ou sujeito que se encena, mas se ancora nessa cor, fenótipo,
na experiência, memória e lugar desse sujeito, erigidos esses elementos como signos
que projetam e representam. (MARTINS, 1995, p. 26)
A partir da leitura das fontes dramatúrgicas com os quais tenho trabalhado, tenho verificado
em pesquisa que, em diversas perspectivas, o que esses fragmentos apresentam não são uma
redescoberta, nem tampouco um retorno às origens africanas, e sim uma construção de um
produto elaborado pelas particularidades de uma experiência em diáspora, que capacita através
da cultura, “a nos produzir a nós mesmo de novo” (HALL, 2013: p. 49).
9
Neste momento estou iniciando a escrita da dissertação do mestrado em História pela
PUC-SP. De início, busquei compreender as conjunturas que movimentam a escrita de
dramaturgias de autoria negra na cidade de São Paulo entre os anos de 2008 e 2019. Contudo,
me pareceu necessário buscar entendimento e reconhecimento sobre um extenso período de
tentativas de apagamentos da presença negra no Brasil, bem como suas referências históricas e
culturais. Realizei este caminho a partir dos registros sobre a história do Teatro Negro no Brasil,
verifiquei livros, dissertações e teses, biografias de artistas, livros de Cias de Teatro Negro,
jornais publicados em versão fac-símile, como a seção Afro-Latino-América do jornal Versus
(1977 a 1979) e o jornal Quilombo, vida, problemas e aspirações do negro (1948 a 1950), e os
anais do Fórum Nacional de Performance Negra publicados em três edições (2005, 2006 e
2009).
Destaco para esta pesquisa, a importância do encontro com o estudo desenvolvido pelo
teatrólogo e antropólogo cubano Júlio Moracen Naranjo, À sombra de si mesmo: um estudo do
teatro negro caribenho (2004), que a partir do trabalho de pesquisa em campo realizado em três
países (Brasil, Cuba e Haiti) pode afirmar que “para além da composição geográfica, o Teatro
Negro Caribenho é pensado em termos culturais” (NARANJO, 2004: p. 111). Segundo o autor,
existe no Drama Negro brasileiro fatores culturais afro-caribenhos, de modo que se pode
observar nas injunções rituais, performáticas, e figurativas, semelhanças entre as experiências
afro-diaspóricas.
São importantes para este estudo as dimensões territoriais e simbólicas que permeiam
o trabalho de descendentes de africanos frente às pressões de todo tipo exercidas contra a
população negra. As micro-Áfricas, conceito formulado pelo pesquisador Amailton Magno de
Azevedo (2006), propõem ao historiador a verificação dos lugares culturais, físicos ou
ideológicos onde povos africanos e afro-brasileiros são agentes da sua própria cultura e da sua
própria história, reafirmando referências e relações com a África.
Como metodologia, trabalho com as fontes dessa pesquisa de maneira transdisciplinar.
Até o momento, realizei estudos individuais e, para cada dramaturgia, busco realizar perguntas
próprias diante dos possíveis caminhos que os textos me apresentam. Por vezes os dramas
dialogam com a história do teatro brasileiro, com a semiótica, a antropologia, referências
epistemológicas yorubantu, e outros saberes. Essa comunicação transdisciplinar, busca
10
contemplar a própria natureza da atividade teatral, uma modalidade artística intrinsicamente
dialógica, que orquestra em sua execução, signos de variados ramos do conhecimento e do saber
(MARTINS, 1995).
Dentro do percurso imaginado para o desenvolvimento da pesquisa, e considerando o
tempo previamente estabelecido para realização da dissertação, pretendo, a partir do início deste
terceiro semestre, concluir a capitulação e continuar o trabalho de estudo e escrita sobre as peças
selecionadas.
Tenho verificado que os textos selecionados para trabalho e a própria arte dramatúrgica
me possibilitam realizar reflexões sobre a imaginação e as autorias negras que estabelecem
ações para o teatro, e como essa arte realiza intervenções políticas e poéticas na cidade de São
Paulo.
REFERÊNCIAS
AZEVEDO, Amailton Magno. A memória musical de Geraldo Filme: os sambas e as micro-
Áfricas em São Paulo. 2006. Tese (Doutorado em História) — Faculdade de História,
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo 2006.
AZEVEDO, José Fernando Peixoto de. Cartas a Madame Satã. In: LIMA, Eugenio;
LUDEMIR, Julio (org.). Dramaturgia negra. Rio de Janeiro: Funarte, 2018.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Lamparina, 2019.
HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. 2 ed. Belo Horizonte: UFMG,
2013.
MARTINS. Leda Maria. Afrografias da memória: o Reinado do Rosário no Jatobá. São
Paulo: Perspectiva; Belo Horizonte: Mazza Edições, 1997.
MARTINS. Leda Maria. A cena em sombras. São Paulo: Perspectiva, 1995.
MORACEN NARANJO, Julio. À sombra de si mesmo: um estudo do teatro negro caribenho.
2004. Tese (Doutorado em Integração da América Latina) — Programa de Pós-Graduação em
Integração da América Latina, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2004.
NASCIMENTO, Maria de Lourdes Vale. Instalação do Conselho Nacional de Mulheres
Negras. In: Quilombo, vida, problemas e aspirações do negro. 34. ed. São Paulo: Fundação
de Apoio à Universidade de São Paulo, 2003.
11
OLIVEIRA, Jé. Farinha com açúcar ou sobre a sustança de meninos e homens. In: LIMA,
Eugenio; LUDEMIR, Julio (org.). Dramaturgia negra. Rio de Janeiro: Funarte, 2018.
ROSA, Allan da. Da Cabula. São Paulo: Global. 2008.
SALABERG, Jhonny. Buraquinhos ou o vento é inimigo de Picumã. 1. ed. Rio de Janeiro:
Cobógó, 2018.
SANTOS, Rudney Borges dos. Medea Mina Jeje. In: LIMA, Eugenio; LUDEMIR, Julio
(org.). Dramaturgia negra. Rio de Janeiro: Funarte, 2018.
SHU, Maria. Quando morrer vou contar tudo a Deus. In: LIMA, Eugenio; LUDEMIR, Julio
(org.). Dramaturgia negra. Rio de Janeiro: Funarte, 2018.
SILVA, Cidinha da. Sangoma; In: SILVA, Cidinha. O Teatro Negro de Cidinha da Silva.
Belo Horizonte: Laboratório editorial, 2019.
12