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AFROGRAFIAS DO TEATRO NEGRO EM SÃO PAULO JÉSSICA GOMES DO NASCIMENTO * Este artigo compartilha uma pesquisa em andamento que se concentra no estudo de 10 dramaturgias elaboradas na cidade de São Paulo. Como eixo temático, a pesquisa aborda a dramaturgia como um tipo linguagem artística favorecida pela imaginação. Com as peças de autoria negra têm se verificado dinâmicas territoriais que revelam modos de existência, estruturas de sentimentos, produções, comunicações e memóriasda população negra por meio do teatro. Palavras-chave: Dramaturgia. Autoria Negra. Teatro Negro. A pesquisa se concentra no estudo de 10 dramaturgias de autoria negra escritas entre os anos de 2006 e 2019 na cidade de São Paulo. A singularidade e a aproximação entre estas peças teatrais está no fato de tomarem como signo de representação as cores, os fenótipos, as experiências, lugares e memórias de sujeitos negros (MARTINS, 1995). Os textos teatrais utilizados nesta pesquisa, em sua maioria, participam de projetos artísticos de coletivos teatrais, que buscam narrativas para interpretar os múltiplos aspectos que constituem experiências singulares e coletivas protagonizadas pela população negra. Dentro do processo de triagem do levantamento das fontes, verifiquei que na cidade de São Paulo este trabalho tem sido realizado por diferentes dramaturgas, dramaturgues e dramaturgos tais como 1 : Allan da Rosa, Dione Carlos, Maria Shu, José Fernando Peixoto de Azevedo, Jé Oliveira, Sérgio Pires, Cidinha da Silva, Luiz Silva (Cuti), Jhonny Salaberg, Dirce Thomaz, Lucas Moura, Lu Maza, Rudney Borges dos Santos, dentre outros. Essa produção também se faz pelos coletivos artísticos dentro de processos colaborativos em que, de maneira geral, a dramaturgia é criada em conexão com o trabalho que se estabelece em sala de ensaio. Entre os coletivos de performance e Teatro Negro atuantes na cidade de São Paulo destacam- se: Invasores Companhia Experimental de Teatro Negro, Cia Os Crespos, Coletivo Negro, * Mestranda do Departamento de História da PUC-SP, bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, CAPES, Brasil. 1 No texto me comunico através da linguagem não-binária, compreendendo a necessidade de buscar formas de linguagem em que mulheres (trans/cis), homens (trans/cis), e não-binários possam existir na leitura, na escrita, no diálogo e nas variadas possibilidade da língua.

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AFROGRAFIAS DO TEATRO NEGRO EM SÃO PAULO

JÉSSICA GOMES DO NASCIMENTO*

Este artigo compartilha uma pesquisa em andamento que se concentra no estudo de 10

dramaturgias elaboradas na cidade de São Paulo. Como eixo temático, a pesquisa aborda a

dramaturgia como um tipo linguagem artística favorecida pela imaginação. Com as peças de

autoria negra têm se verificado dinâmicas territoriais que revelam ‘modos de existência,

estruturas de sentimentos, produções, comunicações e memórias’ da população negra por meio

do teatro.

Palavras-chave: Dramaturgia. Autoria Negra. Teatro Negro.

A pesquisa se concentra no estudo de 10 dramaturgias de autoria negra escritas entre os

anos de 2006 e 2019 na cidade de São Paulo. A singularidade e a aproximação entre estas peças

teatrais está no fato de tomarem como signo de representação as cores, os fenótipos, as

experiências, lugares e memórias de sujeitos negros (MARTINS, 1995). Os textos teatrais

utilizados nesta pesquisa, em sua maioria, participam de projetos artísticos de coletivos teatrais,

que buscam narrativas para interpretar os múltiplos aspectos que constituem experiências

singulares e coletivas protagonizadas pela população negra.

Dentro do processo de triagem do levantamento das fontes, verifiquei que na cidade de

São Paulo este trabalho tem sido realizado por diferentes dramaturgas, dramaturgues e

dramaturgos tais como1: Allan da Rosa, Dione Carlos, Maria Shu, José Fernando Peixoto de

Azevedo, Jé Oliveira, Sérgio Pires, Cidinha da Silva, Luiz Silva (Cuti), Jhonny Salaberg, Dirce

Thomaz, Lucas Moura, Lu Maza, Rudney Borges dos Santos, dentre outros. Essa produção

também se faz pelos coletivos artísticos dentro de processos colaborativos em que, de maneira

geral, a dramaturgia é criada em conexão com o trabalho que se estabelece em sala de ensaio.

Entre os coletivos de performance e Teatro Negro atuantes na cidade de São Paulo destacam-

se: Invasores Companhia Experimental de Teatro Negro, Cia Os Crespos, Coletivo Negro,

* Mestranda do Departamento de História da PUC-SP, bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de

Nível Superior, CAPES, Brasil. 1 No texto me comunico através da linguagem não-binária, compreendendo a necessidade de buscar formas de

linguagem em que mulheres (trans/cis), homens (trans/cis), e não-binários possam existir na leitura, na escrita, no

diálogo e nas variadas possibilidade da língua.

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Capulanas Cia de Arte Negra, Cia Carcaça de Poéticas Negras, O bonde, Cia Carolinas, e Selo

Homens de Cor.

Para iniciar o compartilhamento dessa pesquisa em andamento, serão apresentadas

imagens recolhidas a partir da leitura das fontes de trabalho:

1. Um menino negro, morador de algum extremo da cidade, corre para não ser baleado

em uma perseguição policial, que sem justificativa, o surpreende enquanto compra

pão em uma padaria no primeiro dia do ano. Apesar de correr, seu corpo vai sendo

invadido por inúmeras balas de arma de fogo. Com o corpo cheio de ‘buraquinhos’

(termo que nomeia a trama), o menino realiza rotas de fuga para escapar dos policiais.

Ora correndo a pé, ora como um gato deslizando entre os fios de iluminação pública,

nadando entre córregos, surfando por cima dos trens, o menino descobre ligações da

sua corporeidade negra no Caribe e em África.

2. No dia 8 de maio de 2015, jornais do mundo todo divulgaram a mesma notícia:

‘menino africano é encontrado dentro de uma mala na fronteira espanhola.’ O texto

divulgado com a imagem de um garoto negro dentro de uma mala rosa, com os olhos

tarjados com fita preta para legalizar a exposição da infância, alertava, entre as

propagandas que cercavam a informação ligeira compartilhada pela imprensa, um

momento da história de Adou Nery Ouattara. O menino, nascido em 27 de setembro

de 2007 em Abijan, a maior cidade da Costa do Marfim, quer ser jogador de futebol

como o Messi, e jogar no Barcelona ou no Paris Saint-Germain. Em época de copa,

pretende representar seu país, contrariando os desejos de seu pai, que vislumbra para

ele um bom caminho na medicina.

3. O tráfico de escravizados estava proibido no Brasil desde 1830 em acordo com a

Inglaterra, e desde 7 de novembro de 1831 pela lei de escritura nacional, que declarou

no Art. 1º que “Todos os escravos, que entrarem no território ou portos do Brazil,

vindos de fóra, ficam livres”. Se valessem as leis, Mahommah Baquaqua,

sequestrado em 1845 em Zooggoo na África Central (atual municipalidade de

Djougou, no Benim), deveria ser declarado livre assim que pisasse no território

brasileiro. Seu traficante receberia a multa de duzentos mil réis, além de pagar as

despesas da reexportação para qualquer parte da África — reexportação que o

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Governo faria de maneira efetiva e breve. Baquaqua, no entanto, foi escravizado por

cerca de dois anos em Pernambuco, depois foi levado para o Rio de Janeiro, onde

trabalhou na tripulação do navio Lembrança, que transportou café para os Estados

Unidos da América em 1847. Em Nova York, Baquaqua foi abordado por

abolicionistas locais, que o incentivaram a fugir do navio. Preso durante a fuga, foi

enviado ao Haiti, onde passou a viver com o reverendo Judd, um missionário batista.

De volta aos Estados Unidos, devido à instabilidade política no Haiti, Mahommah

estudou por três anos no New York Central College, em McGrawville. Em 1854, foi

para o Canadá e, no mesmo ano, teve sua autobiografia publicada nos Estados

Unidos, em inglês. No Brasil, o texto só foi publicado em 13 de maio de 2017.

4. Na rua José Barros Magaldi, n° 1121, no Jardim São João, em São Paulo, encontra-

se uma pequena África — mulheres negras habitam uma casa onde desenvolvem,

entre elas, laços ancestrais. A Goma Capulana tem pequenos cômodos: um quintal,

uma cozinha, uma sala de espera, quarto, garagem e jardim. Nesta espacialidade

íntima, Audre, Sônia, Mameto, Ana Paula, Antônia e Sangoma, discorrem sobre o

ciclo das águas do corpo: lágrima, saliva, sangue, suor e sêmem. Histórias sobre dor

e cura são ditas em voz alta, talvez a vizinhança escute inclusive o toque do atabaque.

Na memória do canto, da dança, nas gargalhadas, vai se abrindo a musculatura física

que diz sobre os espaços de cura. No jardim, uma porção de folhas entrega a

descoberta dos segredos de Ossaim, orixá senhor das folhas sagradas, das ervas

medicinais e litúrgicas, identificado no jogo do merindilogun pelo odu iká, e

representado material e imaterialmente pela cultura jeje-nagô através do

assentamento sagrado denominado igba ossaim. Sua importância é primordial.

Nenhuma cerimônia pode ser realizada sem sua interferência.

5. “Seja bem-vindo, esse é o Raio X do Brasil. Você está entrando no mundo da

informação, autoconhecimento, denúncia e diversão.” A voz de Edi Rock aparece

forte, mas não é 1993. O DJ cita Ogum iê, abertura do disco Sobrevivendo no Inferno.

Um homem negro faz um pacto com um microfone na mão: “— Eu gostaria que

vocês imaginassem que aqui é uma favela ou o Zaíra”. Atualmente Zaíra é um bairro

do Município de Mauá, dividido em sete partes, tem aproximadamente 110 mil

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habitantes, grandes morros, vielas e escadarias com 210 pés de altura. No entanto, o

homem com microfone pede a imaginação de um Zaíra sendo iniciado. Nesta

narrativa fabular sobre o homem negro urbano, o mestre de cerimônias vai mixando

entrevistas de homens negros de várias idades e ocupações. Entre os informantes da

história: Akins Kintê, Allan da Rosa, Aloysio Letra, Fernando Alabê, João

Nascimento, KL Jay, Melvin Santhana, Renato Ihu, Salloma Salomão, Seu Luíz

Livreiro, Will Oliveira e Zinho Trindade.

6. Antes de começar o espetáculo, um ator sai à rua, abre uma mala e troca de roupa em

frente ao teatro. Vai se transformando, solicitando a ajuda dos transeuntes para calçar

o sapato e o suspensório. De repente, inicia o diálogo: “— Você já fez alguma loucura

de amor? Eu desejo fazer uma loucura de amor”. Chove da janela de um edifício,

papéis, doces e brinquedos. Clichês romanticos são desenhados no meio da calçada.

Duas pessoas são convidadas a segurar uma grande faixa com uma frase-declaração:

“— Tudo isso é pra você!”. O ator vai dizendo uma porção de coisa bonitas, como

se escrevesse uma carta para alguém que não volta mais. Ninguém aparece. O público

entra no teatro e encontra um quarto manifesto, um cenário que dá a impressão de

intimidade: “— Querido Madame Satã, quem não ama ainda está morto. Eu amei.

Não durou muito. Mas foi um ano de muito amor”, diz o ator. Liga uma câmera de

vídeo, e se prepara para um grande show. A faixa do lado de fora dizia: “— BEIJE

O SEU PRETO EM PRAÇA PÚBLICA”.

7. Ida da Silva é o nome de uma arquiteta que projeta a restauração da dignidade de

pessoas negras. Ela diz que os espaços em que as mulheres negras, como eu, como

ela, foram colocadas, são pequenos demais para habitar, para existir, para sonhar. Ida

conseguiu um grande contrato de trabalho em uma empreiteira para a construção de

moradias. Depois de três meses de trabalho apresentou o desenho da planta. O projeto

era tão bonito que o contratante branco não acreditou que uma mulher negra fosse

capaz de imaginá-lo. No entanto, verificou-se um problema: “— Ida, você esqueceu

de imaginar o quarto de empregadas? Onde elas irão passar a noite?”.

8. Dentro da Escola de Arte Dramatica (EAD - USP), uma situação singular se

evidenciou: quatro pessoas negras juntas em um mesmo processo de criação. No final

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do semestre, duas mulheres e dois homens negros sobem ao palco, totalmente nus,

para realizar um debate de forma viceral. O que é ser negro na sociedade brasileira?

Talvez tentassem desnudar os olhares de platéias majoritariamente brancas. O

movimento de coro avança, com um suor coletivo, um esforço conjunto, e uma

vivência partilhada. Neste jogo a singularidade de cada ator e atriz negra é

apresentada: Mirella estudou em escola particular; Rauny não sabia que era negro até

um dia desses, quando foi surpreendido consigo mesmo; Lucas canta Negro Drama

da perspectiva de um homem negro gay; Ivi conta piadas racistas e convida a platéia

a se constranger.

9. Na Vila Rica de Nossa Senhora de Pilar de Ouro Preto, uma mulher escravizada

comete infanticídio. O Crime está previsto no artigo 123 do Código Penal Brasileiro

— é a eliminação da vida do próprio filho, recém-nascido ou nascente, praticado pela

própria mãe. O crime na Vila Rica acontece como um sacrifício. Age é o Vudum

caçador e deus da mata. Age é o nome dado ao menino que Jazão, capitão do mato,

quer escravizar. No entanto, Medéa Negra vai até o menino de noitinha e coloca um

punhado de ervas na boca dele, para que não o matem na mina mais tarde. O menino

morre no colo da mãe. Medéa é dura, mas range.

10. Depois de trabalhar em “casa de família”, dona Filomena da Cabula realizou o sonho

de ter um negocinho próprio — armou uma barraca na rua e se fez camelô. Depois

de adulta, voltou para a escola para aprender as letras com uma mocinha bem mais

jovem do que ela. Certo dia, cumprindo as tarefas escolares, depois de muito matutar

com o problema da escrita, foi tomada por um transe com o lápis na mão. Rabiscou

o papel e saiu o que devia:

Imagem 1 – Redação de Dona Filomena da Cabula2

2 Transcrição: o minino mamava piquenodi colo. Cugava o leitimcusegado. Adona alternava aquelis peito branqin

no seu bico. A teta esquerda o peito esquerdo era boludo e lizinho. Naponta um grão cordelaranja. Que ele agarrava

forti, que nem homem. Ela amaçavaalientreaztetas, os peitos pálidos. Fazia dengim cari carinho dava educasao. O

leitibranzinrralo na boca pretin a. o peito diretco ,muxo e rececado, qe nem um pano de prato gasto, exgarsado.

Exgarsado. O Nenê tiño ela de familhaamadileite. E maisningem na redon Era cua única companniarremedio pra

colida o minino.

² Neste contexto o termo refere-se às categorias mentais que sustentam socialmente a ideia de diferença racial que,

embora não exista biologicamente, estão presentes nas representações e imaginários coletivos.

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Fonte: DA ROSA, 2008, p.75.

Observando essas dramaturgias de autoria negra, tenho refletido sobre como essas ações

imaginadas para peças teatrais têm questionado as imposições hegemônicas que criam

impedimentos para o uso do espaço comum — tratam-se de fronteiras imaginadas a partir da

atualização constante determinismo² de que fundaram teorias racistas sobre os povos africanos

e seus descendentes. As fontes selecionadas para esta pesquisa e mencionadas nos fragmentos

são, respectivamente:

Quadro 1: fontes selecionadas para pesquisa

Nome da peça Autoria Ano de estreia

Buraquinhos, ou o vento é inimigo

de picumã Jhonny Salaberg 2018

Quando eu morrer vou contar tudo a

Deus Maria Shu 2019

Baquaqua Dione Carlos 2017

Sangoma Cidinha da Silva e Capulanas Cia de Arte 2013

Farinha com açucar Jé Oliveira 2016

Cartas a Madame Satã ou me

desespero sem notícias suas José Fernando Peixoto de Azevedo 2015

Medea Mina Jeje Rudney Borges dos Santos 2018

Ida Coletivo Negro e Renata Martins 2016

Isto é um negro? Tarina Quelho e Mirela Façanha 2017

Da Cabula Allan da Rosa Não encenada

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Fonte: elaborado pela autora, 2020.

Os materiais selecionados são textos com os quais tive contato como atriz, professora

de teatro e espectadora do Teatro Negro. Sou uma mulher negra, nascida em uma família de

afrodescendentes migrantes, filha de mãe mineira e pai pernambucano. Fui criada na cidade de

Itaquaquecetuba, extremo leste da região metropolitana de São Paulo, região geográfica

localizada no entorno da nascente do rio Tietê. Iniciei meus estudos no teatro aos 14 anos de

idade em um espaço cultural vinculado à Secretaria de Cultura da cidade. Posteriormente,

convivi artisticamente com os coletivos teatrais e literários que atuam nas cidades de Suzano

(Teatro Contadores de Mentira e Teatro da Neura), Poá (Núcleo Teatral Opereta), Mogi das

Cruzes (Cia do Escândalo), e no Itaim Paulista, último distrito da zona leste

do município de São Paulo (Sarau O Que Dizem Os Umbigos).

Decidi-me artista muito cedo, mas me foi informado que ‘as artes não eram para o nosso

bico’. Apesar dos determinismos raciais e sociais, minha mãe sempre foi artesã — cria, pinta e

comercializa bonecos de gesso nos fundos do nosso quintal. Meu pai, ao chegar em casa, depois

do trabalho na indústria metalúrgica, onde presta serviços há mais de 30 anos, troca de roupa e

bate novamente o martelo nos restos de metal que encontra na rua — confecciona gambiarras

que são verdadeiras obras de arte. Minha irmã mais velha é conhecida pela sua linda voz e

afinação, disputadíssima, canta em todos os casamentos da família com meus primos fazendo

o acompanhamento no violão. Somos artistas, mas somente eu me meti a chamar isso que

fazemos em casa de profissão.

Busquei uma formação acadêmica através da EDUCAFRO, instituição que tem a missão

de promover a inclusão da população negra e pobre nas universidades públicas e particulares

por meio de cursinhos comunitários. Não obtive sucesso no vestibular, mas tive uma formação

política e racial que me orientou sobre os meus direitos. Posteriormente, durante os meus

estudos para desenvolvimento dessa pesquisa, encontrei no jornal Quilombo, vida, problemas

e aspirações do negro, dirigido por Abdias do Nascimento entre 1948 a 1950, registros que

como princípio, se aproximam da minha experiência formativa. Na instalação do Conselho

Nacional das Mulheres Negras em maio de 1950, a idealizadora do conselho, Dr ª Maria de

Lourdes Vale Nascimento (2003: p. 98), declara “Este departamento feminino tem por objetivo

lutar pela integração da mulher negra na vida social, pelo seu alevantamento educacional,

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cultural e econômico”. Foi também na EDUCAFRO que ouvi pela primeira vez o nome Teatro

Experimental do Negro (TEN).

Em 2013, me matriculei no Curso de graduação em Comunicação das Artes do Corpo,

fui bolsista do PROUNI na PUC-SP, onde a mensalidade ultrapassava 2 salários mínimos à

época. Posteriormente, depois de prestar quatro vezes o vestibular da Escola De Arte Dramática

da Universidade de São Paulo, instituição vinculada à Escola de Comunicação e Artes

(EAD/ECA/USP) consegui a minha vaga, e me formei no ano de 2019. Em todos estes cursos,

pessoas como eu, negras e negros, eram poucas, portanto, se fez necessário tentar formular,

imaginar e responder perguntas sobre o corpo negro nas artes.

Desenvolvi interesse pelo estudo das dramaturgias porque fui ensinada nessas

instituições de formação artística a ler a história apoiada em textos teatrais. Então, por

afetividade, passei a pesquisar dramaturgias escritas para o Teatro Negro. O título provisório

Afrografias do Teatro Negro em São Paulo foi inspirado no livro Afrografias da memória:

Reinado do Rosário no Jatobá, escrito pela pesquisadora Leda Maria Martins e publicado pela

primeira vez em 1997. Lendo o livro pode viajar como as palavras e com a descrição das vozes

que ressoam inscrevendo os sujeitos no circuito da tradição e da transmissão: “a palavra é sopro,

hálito, dicção, acontecimento e performance, índice de sabedoria” (MARTINS, 1997: p.146).

A mesma pesquisadora no livro A cena em sombras, texto originalmente apresentado

como tese no ano de 1991 à Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais

(UFMG) para obtenção do grau de Doutora em Letras, na área de Literatura Comparada, realiza

um estudo sobre o teatro negro no Brasil e nos Estados Unidos e toma o termo negro, como o

primeiro desafio de pesquisa. Em suas palavras:

A análise de expressões do Teatro Negro me leva a sublinhar que sua distinção e

singularidade não se prendem, necessariamente, à cor, fenótipo ou etnia do

dramaturgo, ator, diretor, ou sujeito que se encena, mas se ancora nessa cor, fenótipo,

na experiência, memória e lugar desse sujeito, erigidos esses elementos como signos

que projetam e representam. (MARTINS, 1995, p. 26)

A partir da leitura das fontes dramatúrgicas com os quais tenho trabalhado, tenho verificado

em pesquisa que, em diversas perspectivas, o que esses fragmentos apresentam não são uma

redescoberta, nem tampouco um retorno às origens africanas, e sim uma construção de um

produto elaborado pelas particularidades de uma experiência em diáspora, que capacita através

da cultura, “a nos produzir a nós mesmo de novo” (HALL, 2013: p. 49).

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Neste momento estou iniciando a escrita da dissertação do mestrado em História pela

PUC-SP. De início, busquei compreender as conjunturas que movimentam a escrita de

dramaturgias de autoria negra na cidade de São Paulo entre os anos de 2008 e 2019. Contudo,

me pareceu necessário buscar entendimento e reconhecimento sobre um extenso período de

tentativas de apagamentos da presença negra no Brasil, bem como suas referências históricas e

culturais. Realizei este caminho a partir dos registros sobre a história do Teatro Negro no Brasil,

verifiquei livros, dissertações e teses, biografias de artistas, livros de Cias de Teatro Negro,

jornais publicados em versão fac-símile, como a seção Afro-Latino-América do jornal Versus

(1977 a 1979) e o jornal Quilombo, vida, problemas e aspirações do negro (1948 a 1950), e os

anais do Fórum Nacional de Performance Negra publicados em três edições (2005, 2006 e

2009).

Destaco para esta pesquisa, a importância do encontro com o estudo desenvolvido pelo

teatrólogo e antropólogo cubano Júlio Moracen Naranjo, À sombra de si mesmo: um estudo do

teatro negro caribenho (2004), que a partir do trabalho de pesquisa em campo realizado em três

países (Brasil, Cuba e Haiti) pode afirmar que “para além da composição geográfica, o Teatro

Negro Caribenho é pensado em termos culturais” (NARANJO, 2004: p. 111). Segundo o autor,

existe no Drama Negro brasileiro fatores culturais afro-caribenhos, de modo que se pode

observar nas injunções rituais, performáticas, e figurativas, semelhanças entre as experiências

afro-diaspóricas.

São importantes para este estudo as dimensões territoriais e simbólicas que permeiam

o trabalho de descendentes de africanos frente às pressões de todo tipo exercidas contra a

população negra. As micro-Áfricas, conceito formulado pelo pesquisador Amailton Magno de

Azevedo (2006), propõem ao historiador a verificação dos lugares culturais, físicos ou

ideológicos onde povos africanos e afro-brasileiros são agentes da sua própria cultura e da sua

própria história, reafirmando referências e relações com a África.

Como metodologia, trabalho com as fontes dessa pesquisa de maneira transdisciplinar.

Até o momento, realizei estudos individuais e, para cada dramaturgia, busco realizar perguntas

próprias diante dos possíveis caminhos que os textos me apresentam. Por vezes os dramas

dialogam com a história do teatro brasileiro, com a semiótica, a antropologia, referências

epistemológicas yorubantu, e outros saberes. Essa comunicação transdisciplinar, busca

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contemplar a própria natureza da atividade teatral, uma modalidade artística intrinsicamente

dialógica, que orquestra em sua execução, signos de variados ramos do conhecimento e do saber

(MARTINS, 1995).

Dentro do percurso imaginado para o desenvolvimento da pesquisa, e considerando o

tempo previamente estabelecido para realização da dissertação, pretendo, a partir do início deste

terceiro semestre, concluir a capitulação e continuar o trabalho de estudo e escrita sobre as peças

selecionadas.

Tenho verificado que os textos selecionados para trabalho e a própria arte dramatúrgica

me possibilitam realizar reflexões sobre a imaginação e as autorias negras que estabelecem

ações para o teatro, e como essa arte realiza intervenções políticas e poéticas na cidade de São

Paulo.

REFERÊNCIAS

AZEVEDO, Amailton Magno. A memória musical de Geraldo Filme: os sambas e as micro-

Áfricas em São Paulo. 2006. Tese (Doutorado em História) — Faculdade de História,

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo 2006.

AZEVEDO, José Fernando Peixoto de. Cartas a Madame Satã. In: LIMA, Eugenio;

LUDEMIR, Julio (org.). Dramaturgia negra. Rio de Janeiro: Funarte, 2018.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Lamparina, 2019.

HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. 2 ed. Belo Horizonte: UFMG,

2013.

MARTINS. Leda Maria. Afrografias da memória: o Reinado do Rosário no Jatobá. São

Paulo: Perspectiva; Belo Horizonte: Mazza Edições, 1997.

MARTINS. Leda Maria. A cena em sombras. São Paulo: Perspectiva, 1995.

MORACEN NARANJO, Julio. À sombra de si mesmo: um estudo do teatro negro caribenho.

2004. Tese (Doutorado em Integração da América Latina) — Programa de Pós-Graduação em

Integração da América Latina, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2004.

NASCIMENTO, Maria de Lourdes Vale. Instalação do Conselho Nacional de Mulheres

Negras. In: Quilombo, vida, problemas e aspirações do negro. 34. ed. São Paulo: Fundação

de Apoio à Universidade de São Paulo, 2003.

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OLIVEIRA, Jé. Farinha com açúcar ou sobre a sustança de meninos e homens. In: LIMA,

Eugenio; LUDEMIR, Julio (org.). Dramaturgia negra. Rio de Janeiro: Funarte, 2018.

ROSA, Allan da. Da Cabula. São Paulo: Global. 2008.

SALABERG, Jhonny. Buraquinhos ou o vento é inimigo de Picumã. 1. ed. Rio de Janeiro:

Cobógó, 2018.

SANTOS, Rudney Borges dos. Medea Mina Jeje. In: LIMA, Eugenio; LUDEMIR, Julio

(org.). Dramaturgia negra. Rio de Janeiro: Funarte, 2018.

SHU, Maria. Quando morrer vou contar tudo a Deus. In: LIMA, Eugenio; LUDEMIR, Julio

(org.). Dramaturgia negra. Rio de Janeiro: Funarte, 2018.

SILVA, Cidinha da. Sangoma; In: SILVA, Cidinha. O Teatro Negro de Cidinha da Silva.

Belo Horizonte: Laboratório editorial, 2019.

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