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Agamben, um filósofo para o século 21 Leia o primeiro texto do dossiê da edição 180, que também conta com um artigo exclusivo do pensador italiano TAGS: 180, dossiê
Cláudio Oliveira
Para aqueles que, como eu, se iniciaram na filosofia entre o fim dos anos 80 e o início dos anos 90 do século passado,
havia um sentimento desencantado de não viver mais num mundo habitado por grandes filósofos. Naquele momento,
todos, ou quase todos os grandes filósofos do século 20, ou já estavam mortos (Freud, Benjamin, Wittgenstein,
Merleau-Ponty, Bataille, Adorno, Arendt, Heidegger, Sartre, Lacan, Foucault, Althusser) ou já estavam no fim de suas
vidas e iriam morrer nos anos seguintes (Debord em 1994, Deleuze em 1995, Lyotard em 1998, Blanchot em 2003,
Derrida em 2004). Nós, enquanto estudantes, invejávamos nossos professores que tinham sido testemunhas da
construção do pensamento do século 20, muitos deles tendo escrito livros ou publicado teses sobre autores vivos, cujos
cursos alguns deles chegaram a frequentar. O sentimento que nos acometia então era o de não sermos mais
contemporâneos da filosofia ou de não haver mais nenhuma filosofia contemporânea a nós, vivendo o tempo de um
hiato que parecia não ter fim. Esse quadro iria mudar significativamente nos anos seguintes.
Nós não sabíamos, mas nesses mesmos anos, uma série de novos pensadores começava a surgir e a publicar seus
primeiros livros. Dentre eles, um dos que vieram a assumir uma importância fundamental no pensamento
contemporâneo foi o filósofo italiano Giorgio Agamben, nascido em Roma, em 1942, e que já tinha publicado, na Itália,
seu primeiro livro, O homem sem conteúdo, em 1970. Agamben, como outros pensadores de sua geração (eu citaria
Alain Badiou [1937- ], Jacques Rancière [1940- ], Lacoue-Labarthe [1940–2007], Jean-Luc Nancy [1940- ], Jacques-
Alain Miller [1944- ], Peter Sloterdijk [1947- ], Slavoj Zizek [1949- ], Georges Didi-Huberman [1953- ], dentre outros),
tinha se formado num contato íntimo com aquela geração anterior e buscavam desdobrar as consequências teóricas
das obras daqueles filósofos, estabelecendo, ao mesmo tempo, novos paradigmas de pensamento.
Em 1966, com 24 anos, Agamben foi um dos seis participantes, em Le Thor, na Provence francesa, de um seminário
conduzido por Heidegger e que aconteceria de novo, em 1968, agora já com um número maior de participantes. Esse
contato pessoal com Heidegger o marcaria profundamente e somente a descoberta da obra de Benjamin, algum tempo
depois, lhe daria um contraponto ou algo que Agamben chamará, mais tarde, numa entrevista, de um antídoto em
relação à influência da obra de Heidegger em seu pensamento.
Em 1974, já com um livro publicado, Agamben vai para a França, onde se aproxima de Pierre Klossowski, Guy Debord
e Italo Calvino. Com este último, constrói o projeto de uma revista que jamais será realizado. Graças a Francis Yates,
que ele havia conhecido através de Calvino, entre 1974 e 1975, Agamben vive em Londres, onde trabalha intensamente
em suas pesquisas no Instituto Aby Warburg. Esse período, entre Paris e Londres, gerará seus próximos dois
livros, Estâncias e Infância e História, publicados respectivamente em 1977 e 1978. Ainda nesse período final dos anos
1970, Agamben realiza um seminário, entre 1979 e 1980, que dará origem a seu quarto livro, A linguagem e a morte,
publicado na Itália em 1982. Este livro, além de ser um acerto de contas com Heidegger e Hegel, é também o momento
em que Agamben inicia uma discussão com Derrida, o pensador que talvez tenha feito a passagem entre a geração
anterior e a sua.
Os anos 1980 são marcados por uma produção menos abundante da obra de Agamben. Além de A linguagem e a
morte, que pode ser entendido como um livro produzido ainda nos anos 1970, Agamben publica apenas um pequeno
livrinho, Ideia da prosa, em 1985, onde a indistinção entre filosofia e literatura, na forma de pequenos ensaios (tendo
por tema os mais diversos assuntos) é levada ao seu extremo. O pequeno número de livros publicados nesse período
talvez se explique por outras atividades que ele desenvolveu na mesma época.
Em 1986, Agamben passa a ser um dos diretores de programa – junto com outros filósofos, como Lacoue-Labarthe,
Jacques Rancière, Barbara Cassin, José Gil, Fernando Gil, Gianni Vattimo – do Collège International de Philosophie
de Paris, que tinha sido fundado em 1983, pela iniciativa de François Châtelet, de Jacques Derrida, de Jean-Pierre
Faye e de Dominique Lecourt. Em 1989, outros autores, como Alain Badiou, Michel Deguy e Paul Virilio também se
tornam diretores de programa do Collège. Nesse período, em Paris, Agamben frequenta, entre outros, Jean-Luc
Nancy, Jacques Derrida e Jean-François Lyotard.
Filósofo antiacadêmico
Os anos 1980 são também aqueles em que Agamben inicia uma carreira docente, com a qual ele jamais se identificará
totalmente, tendo permanecido um filósofo essencialmente antiacadêmico. Em 1988, ele começa a ensinar na
Universidade de Macerata, e alguns anos depois, na Universidade de Verona. A partir de 2003, ele assume a cadeira de
Filosofia Teorética no Istituto Universitario di Architettura (IUAV) de Veneza, do qual pede demissão em 2009, para
se dedicar exclusivamente à escrita de sua obra.
A década de 1980 é marcada também pelo envolvimento de Agamben com a edição das obras completas de Walter
Benjamin em italiano pela Editora Einaudi, de Turim, projeto que ele coordenou de 1982 a 1993. Envolvido com esse
trabalho, Agamben descobre, na biblioteca de Paris, vários importantes manuscritos perdidos de Benjamin, que os
tinha deixado com Georges Bataille pouco antes da sua morte. Depois da publicação de alguns volumes, Agamben
abandona o projeto por discordâncias com a editora.
A década de 1990, ao contrário da década anterior, é marcada por uma extensa publicação de livros, dentre os quais se
destaca o primeiro volume da tetralogia Homo Sacer, O poder soberano e a vida nua, publicado em 1995, livro que o
tornará célebre mundialmente (não por acaso, foi este o primeiro livro de Agamben a ser publicado no Brasil, em
2002). Mas, antes disso, ele publica dois pequenos livrinhos, cuja importância não pode ser diminuída em sua obra: A
comunidade que vem, em 1990, eBartleby ou da contingência, que foi publicado na Itália, em 1993, junto com uma
tradução do texto de Deleuze, Bartleby ou da forma, num único volume intitulado Bartleby, a fórmula da criação,
embora os textos tenham sido escritos de modo totalmente independente, em períodos diferentes. Agamben, no
entanto, tinha assistido, em Paris, os últimos cursos de Deleuze, os quais ele compararia, mais tarde, com os
seminários de Heidegger em Le Thor, que ele seguira na sua juventude, como dois momentos fundamentais, embora
bem distintos, de sua formação.
Ainda na segunda metade da década de 1980, se dá a publicação de novos livros, como Categorias
italianas (1996), Meios sem fim (1996) e O que resta de Auschwitz (1998), volume III de Homo Sacer, publicado, no
entanto, antes dos tomos que constituiriam o segundo volume da tetralogia. Esses últimos anos da década de 1990 são
marcados também por extensas viagens aos Estados Unidos, a convite de universidades americanas, onde Agamben
ministra cursos que darão origem a novos livros, como O tempo que resta, publicado em 2000. Essas viagens
culminarão no convite para ser Professor da New York University, em 2003, convite que Agamben recusa, em protesto
contra os novos dispositivos de controle impostos pelo governo americano aos cidadãos estrangeiros, após os
acontecimentos do 11 de Setembro.
De 2000 para cá, Agamben publica vários volumes da tetralogia Homo Sacer, como Estado de exceção (2003), O
reino e a glória (2007), O sacramento da linguagem: arqueologia do juramento(2008), Altíssima pobreza (2011)
e Opus Dei: arqueologia do ofício (2012), além de outros livros que não pertencem à tetralogia, mas que são
estreitamente afins à sua problemática, como O aberto: o homem, o animal (2002), Profanações (2005) e Signatura
rerum: sobre o método (2008). Surgem ainda pequenos textos ou coletâneas de textos escritos em diferentes
momentos, como A potência do pensamento: ensaios e conferências (2005), O que é um dispositivo? (2006), O
amigo (2007), Ninfas(2007), O que é o contemporâneo? (2007) e Nudez (2009).
A primeira década do século 21 é também o momento em que a obra de Agamben começa a ser traduzida no Brasil,
com um atraso de mais de 30 anos, é verdade. Editoras como a EDUFMG, a Boitempo e a Autêntica lideram esse
processo. É também o momento da sua primeira (e única até agora) vinda ao Brasil. Em 2005, ele faz conferências em
São Paulo (na USP), no Rio de Janeiro (na Casa de Rui Barbosa e na Universidade Federal Fluminense) e em
Florianópolis (na Universidade Federal de Santa Catarina).
Diálogo permanente
O pensamento de Agamben traz algumas características comuns a outros autores da sua geração. Em primeiro lugar,
há entre eles um diálogo permanente. Nesse sentido, é muito comum nas obras de Agamben não só a referência aos
filósofos que constituem sua formação (como Heidegger, Benjamin, Foucault, etc.), mas também aos seus
contemporâneos, como Derrida, Nancy e Badiou, dentre outros. Há também uma característica fundamental em sua
obra que é o atravessamento por discursos provenientes de muitos campos do saber, para além do filosófico, como o
direito, a teologia, a linguística, a gramática histórica, a antropologia, a sociologia, a ciência política, a iconografia, a
psicanálise, a literatura e as outras artes em geral, dentre elas o cinema. Sobretudo, caracteriza o pensamento de
Agamben, em consonância com os filósofos de sua geração, uma recusa em lidar com aquilo que entendemos
tradicionalmente como as disciplinas filosóficas (tais como metafísica, ontologia, ética, estética, política, lógica) como
campos distintos do saber filosófico.
Essa visão tradicional da filosofia gerou um primeiro equívoco na recepção da obra de Agamben, tanto no Brasil como
no mundo, que consistiu em entendê-la como podendo ser dividida em duas fases, uma primeira, dedicada a
investigações estéticas, e uma segunda, iniciada com a publicação do primeiro volume de Homo Sacer, em 1995,
dedicada a investigações políticas. Para Agamben, a distinção entre política, estética, ética, lógica e ontologia não faz
mais o menor sentido. Pelo contrário, poderíamos dizer que um dos esforços fundamentais desenvolvidos em sua obra
é precisamente a demonstração da implicação necessária entre esses diversos campos do saber que compreendemos
tradicionalmente como distintos. Nesse sentido, toda especulação filosófica de Agamben sobre o fenômeno da arte é
também uma especulação no campo da política e da ontologia, por exemplo. Uma obra como A comunidade que vem,
publicada em 1990, busca precisamente demonstrar que um conceito que costumamos entender como essencialmente
político, como o conceito de comunidade, só pode ser entendido a partir de seu aspecto lógico e, consequentemente,
também ontológico. Do mesmo modo que, como podemos ver em A linguagem e a morte (1982), a construção de uma
ética em seu pensamento se dá a partir de uma discussão que parece eminentemente ontológica (Heidegger, Hegel) e
linguística (Jakobson, Benveniste). Em outras palavras, para Agamben, toda política ou ética expressam uma
compreensão lógico-ontológica, e toda ontologia ou lógica já são, em si mesmas, políticas, assim como o problema da
arte em nosso tempo e em qualquer outro não pode ser entendido se permanecemos numa perspectiva simplesmente
estética em sua abordagem, como o demonstram claramente as páginas de O homem sem conteúdo, seu primeiro
livro.
Pensamento de Agamben
No presente dossiê, os artigos reunidos mostram claramente essa característica do pensamento de Agamben. Assim,
Oswaldo Giacoia nos mostra como toda a problematização agambeniana da forma jurídica da política moderna,
desenvolvida em Homo Sacer, só pode ser entendida a partir de uma reconstituição da “gênese da pessoa humana
como moderno sujeito de direito”, detectando “a proveniência da forma direito na forma universal do valor de troca
das mercadorias na sociedade capitalista”. Discussões econômicas, teológicas, jurídicas e políticas são indistinguíveis
nesse âmbito de reflexão e só um atravessamento por todos esses campos do saber pode nos levar a uma compreensão
adequada do fenômeno em jogo. Do mesmo modo, Susana Scramim nos ensina, ao se deter nos primeiros livros de
Agamben, que sua abordagem da poesia de Baudelaire visa mostrar “o potencial de estranhamento que carregam os
objetos quando perdem a autoridade que deriva de seu valor de uso e que garante sua inteligibilidade tradicional, para
assumir a máscara enigmática da mercadoria”. De novo aqui, investigação literária e econômico-política se
indistinguem e o modo correto de ler Baudelaire só é possível a partir de uma referência a Marx. Valeria Bonacci
igualmente nos demonstra como as pesquisas agambenianas sobre a noção ontológica de potência, que acompanham
suas indagações políticas, permitem aprofundar a lógica do exemplo e caracterizar ulteriormente a relação entre regra
e vida, em seu estudo sobre a vida monástica, desenvolvido emAltíssima pobreza, o que faz com que este livro só possa
ser corretamente compreendido à luz das investigações desenvolvidas por Agamben na década de 1980, em A
comunidade que vem e Bartleby ou da contingência. William Watkin, por sua vez, ao desenvolver a ideia de que,
diferentemente das filosofias do século 20, a filosofia de Agamben não é mais uma filosofia da diferença, mas da
indiferença, nos mostra como a noção de indiferença é aquela que está em ação no próprio método arqueológico de
Agamben, usando como exemplo de aplicação desse método calcado na noção de indiferença a abordagem
agambeniana da noção de Vida, que ele entende como uma assinatura. Se “a lógica da assinatura Vida é ilógica”, como
procura demonstrar Watkin, então não precisamos dela. Em última instância, a mensagem geral da obra de Agamben,
segundo o estudioso inglês, é que “graças à indiferença, podemos revelar historicamente os meios pelos quais podemos
viver sem a Vida”. De novo aqui, discussões lógico-ontológico-metodológicas têm como consequência uma dimensão
ético-política fundamental. Por fim, Andrea Cavalletti se detém no conceito agambeniano de inoperosidade,
desenvolvido sobretudo em seus últimos livros, para nos explicar como esse conceito, em Agamben, é dependente de
uma longa reflexão sobre o conceito de potência desenvolvido em vários livros anteriores à tetralogia Homo Sacer.
Segundo Cavalletti, ao construir o conceito de inoperosidade, em contraposição à noção
de desoeuvrement desenvolvida nas obras de Bataille, Blanchot e Nancy e a partir de uma releitura da leitura
heideggeriana do problema da potência em Aristóteles, Agamben nos dá um novo paradigma ao mesmo tempo ético e
político.
Para concluir, gostaríamos de dizer que o presente dossiê não teria sido possível sem a contribuição do próprio Giorgio
Agamben, que não só nos enviou para esta edição um texto inédito, o belíssimo “Sobre a dificuldade de ler”, como
também nos ajudou no contato com os autores estrangeiros, cujos trabalhos sobre sua obra ele não só conhece, como
admira.
Cláudio Oliveira
é professor associado do Departamento de
Filosofia da Universidade Federal Fluminense.
Coordena a Série Agamben para a Editora Autêntica