179

Agatha christie - o cão da morte

  • Upload
    ludover

  • View
    329

  • Download
    73

Embed Size (px)

DESCRIPTION

 

Citation preview

Page 1: Agatha christie - o cão da morte
Page 2: Agatha christie - o cão da morte

O que acontece quando a Rainha do Crime envereda pelo universo do sobrenatural? Nos doze contos que compõem o livro, o “quem matou” dá lugar à inexplicável e macabra presença da morte. No eixo central de cada enredo estão estranhos fenômenos, como uma marca de pólvora em formato de cão, além de elementos clássicos nas histórias de contato com o outro mundo, desde casas mal-assombradas até pesadelos que se tornam reais. O cão da morte marca a publicação de “Testemunha da acusação”, famosa história de tribunal que depois daria origem a uma peça – da própria autora – e a um filme, estrelado pela diva Marlene Dietrich.

Page 3: Agatha christie - o cão da morte

OCÃODAMORTE

IQuemprimeiromefalousobreocasofoiocorrespondenteamericano

William P. Ryan. Jantávamos em Londres, na véspera do seu retorno aNovaYork,eacabeipormencionarminhaidaaFolbridgenodiaseguinte.

Elelevantouorostoeperguntouespantado:–Folbridge,emCornwall?Sóumaemcadamilpessoas sabequeháumacidadezinha chamada

Folbridge em Cornwall. O normal é associarem o nome à Folbridge deHampshire.AperguntadeRyanmedeixoucurioso.

–Sim.Vocêconhece?Eledeudeombroseperguntouseeuconheciaumapropriedadedelá

chamadaTrearne.Fiqueimaisinteressadoedisse:– Pois bem.Na verdade, é para lá que estou indo. É a residência da

minhairmã.–Masqueironiadodestino!–exclamouWilliam.Sugeriqueeleparassedefazersuspenseeexplicassedeumavezque

históriaeraaquela.– Bem – disse ele. – Para fazer isso, tenho de lhe contar uma

experiênciaporquepasseilogonoiníciodaguerra.Suspirei.Estávamosem1921,eaúltimacoisaqueeuqueriaeraque

melembrassemdaguerra.GraçasaDeus,estavacomeçandoaesquecê-la.Alémdisso,eususpeitavaqueaquiloqueWilliamP.Ryantinhaparacontareraumadessashistóriasintermináveis.

Maseujánãopodiadetê-lo.– Como você deve saber, no início da guerra eu estava na Bélgica,

trabalhando como correspondente. Numa cidadezinha... não importa onome. Um verdadeiro im demundo.Mas havia lá um enorme convento.Freirasvestidasdebranco...comoéquesãochamadas?Nãomelembrodonome da ordem. Bem, não importa. Esse pequeno burgo estava bem nocaminhodastropasalemãs.Osbocheschegavam...

Comecei amemexer na cadeira, nervoso.William P. Ryan ergueu amãoparaqueeumeacalmasse.

– Não se preocupe. Esta não é uma história das atrocidades dosalemães.Atépoderiatersido,masnãofoi.Parafalaraverdade,forameles

Page 4: Agatha christie - o cão da morte

quesederammal.Rumaramnadireçãodoconventoe,quandochegaramlá,acoisafoipelosares.

–Oh!–disseeu,assustado.– Estranho, não? No início, imaginei que os boches estivessem

celebrando alguma coisa e feito alguma macacada com os própriosexplosivos.Masparecequeelesnãotraziamconsigonadadotipo.Estavamlongedeserosreisdadinamite.Mas,então,eulhepergunto:oqueéqueumbandodefreirasiriaentenderdeexplosivosviolentos?

–Émesmoestranho–concordei.–Euquisouviraopiniãodoscamponeses.Elesestavampordentrode

tudo. Tratava-se de um verdadeiro milagre moderno, cem por centogenuínoedee icáciacomprovada.Parecequeasfreiraseramconhecidas.Havia entre elas uma aspirante a santa, que entrava em transe e tinhavisões.Afaçanhafoiobradela.Invocouumraioparadar imaosmalditosbocheseacaboucomelesbemdireitinho,e tambémcomtudoqueestavaaoredor.Ummilagredegrandeeficácia!

Williamfezumapausaedepoiscontinuou:– Nunca descobri direito o que aconteceu. Não tive tempo de

investigar. Era a época dos milagres. Falava-se de anjos protegendo astropas britânicas na Batalha deMons e não sei o quemais. Escrevi umahistória de arrancar lágrimas, carregando no lado religioso, e enviei aomeu editor. O jornal vendeu como água. Nos Estados Unidos, adoravamessascoisas.

Williammeolhoudesconfiado,depoisacrescentou:– Não sei se você me entende... mas, ao escrever sobre o assunto,

acabeime interessando. Eu queria saber o que realmente aconteceu. Nolugar, nãohavianenhumapista. Sóduasparedes icaramdepé. Emumadelas, a explosão deixara gravada a igura enorme de um cão. Oscamponeses tinham horror daquela marca, que chamavam de o cão damorte, e à noite jamais iam naquela direção. Essas superstições sãocuriosas.Fiqueicomvontadedeveratalsantaqueprovocaraaquilotudo.Corriaoboatodequeelanãomorrerae foraà Inglaterracomumbandode outros refugiados. Ao investigar o seu paradeiro, descobri que estavaemTrearne,Folbridge,Cornwall.

Assenticomacabeça.–No inícioda guerra,minha irmã recebeumuitos refugiadosbelgas.

Cercadevinte–eufalei.– Bem... sempre tive vontade de conhecer a santa. Queria ouvir da

boca dela a história do desastre. Mas acabei me envolvendo com outros

Page 5: Agatha christie - o cão da morte

problemas e esquecendo do assunto. Quem é que vai a Cornwall, a inal?Umlugartãocontramão...Parafalaraverdade,nemmelembravamaisdenadadissoatévocêmencionarFolbridgeagorahápouco.

–Vouperguntaràminhairmã...Eladevesaberalgoarespeito.Masjáfaztempoqueosbelgasforamrepatriados,éclaro.

– Eu sei. Mesmo assim, caso sua irmã se lembre de alguma coisa,qualquerinformaçãomeinteressa.

–Nãosepreocupe.Repassoparavocêtudoqueelasouber–disseeu,cordial.

Eessafoianossaconversa.

IISóvolteiamelembrardahistóriadoisdiasdepoisdaminhachegada

aTrearne.Eueminhairmãtomávamoschánoterraço.– Kitty, entre os seus refugiados belgas não havia uma freira? –

perguntei.–VocêserefereàirmãMarieAngelique?–Achoquesim...Fale-medela.–MeuDeus!Quecriaturamaisestranha.Elaaindaestáporaqui,você

nãosabia?–Oquê?Nacasa?–Não,não.Novilarejo.Vocêselembradodr.Rose?Assenticomacabeça.–Aquelesenhoroctogenário?–Não!Esseeraodr.Laird,quejámorreu.Odr.Roseveioparacásó

há alguns anos. Émuito jovem e tem a cabeça cheia de novas ideias. Eleicou extremamente interessado pela irmã Marie Angelique. Ela temalucinações e coisas do gênero, que do ponto de vista médico sãofenômenos curiosíssimos.Coitada,não tinhaparaonde ir. Completamentemaluca,sevocêmeentende...Bem,comoeudizia,elanãotinhaparaondeir,eodr.Rosearranjouparaelaumlugarzinhonovilarejo.Parecequeeleestáescrevendoumlivro...não!Umamonografiasobreocaso.

Elafezumapausaedepoisperguntou:–Masoquevocêsabesobreela?–Ouviumahistóriacuriosa.Contei a ela tintim por tintim o que Ryan tinha me dito. Kitty icou

muitointeressada.– Ela pareciamesmo uma pessoa capaz de fazer alguém voar pelos

Page 6: Agatha christie - o cão da morte

ares...–disseela,desconfiada.– Preciso ver essa mulher – falei, pois já não me continha mais de

curiosidade.–Mas é claro. Quero ver que impressão ela lhe causa. Procure o dr.

Rose.Porquenãovaiagoramesmo,depoisdochá?Aceiteiasugestão.Encontrei o dr. Rose em casa e me apresentei a ele. Era um jovem

muito simpático, apesar de alguma coisa no seu comportamento ter medeixadodesconfiado.Suacordialidadepareciaumpoucoforçada.

Porém, assim que mencionei a irmã Marie Angelique, seus olhosrevelaram um genuíno interesse. Ele ouviu minha história com toda aatenção.

–Ah!–disseele,balançandoa irmativamenteacabeça.–Issoexplicamuitacoisa.

Lançou-memaisumavezumolharinteressadoedepoiscontinuou:–O caso é realmente forado comum.A religiosa chegou aquidepois

desofreralgumtipodeabaloemocional.Estavaemestadodechoque.Foravítima de alucinações muito severas. A personalidade dela é muitopeculiar.Osenhornãogostariadevê-la?Édifícilexplicar...

Sem pensar duas vezes, acompanhei-o até um pequeno chalé naperiferiadovilarejo.Folbridgeéum lugarmuitopitoresco.Ficana fozdorioFol, namargem leste.Amargemoeste émuito íngremeparapermitirqualquerconstrução,apesardehaveraliumaqueoutrahabitaçãoàbeiradospenedos.Esseeraocasodacasadomédico.Delapodiamservistasasondasqueláembaixosechocavamcontraasrochasescuras.

O chalé ao qual nos dirigíamos icavamais para o interior, longe dapraia.

–Éaquiquemoraaenfermeiradacomunidade–explicouodr.Rose.–PediaelaquerecebesseairmãMarieAngelique.Émelhorqueela iquesoboscuidadosdeumaprofissional.

–Elapareceumapessoanormal?–perguntei,curioso.– É melhor que o senhor julgue por si mesmo – respondeu ele,

sorrindo.Quando chegamos, a enfermeira arrumava a bicicleta. Pequena e

atarracada,tinhaumarbem-humorado.–Bomdia,enfermeira.Comoestáindoasuapaciente?–perguntouo

médico.–Comosempre,doutor.Estálá,sentada,comasmãosentrelaçadasea

cabeçaemoutrolugar.Muitasvezesnemrespondequandofalocomela.É

Page 7: Agatha christie - o cão da morte

verdadequeoqueelaentendedeinglêséaindamuitopouco.Roseinclinouacabeçanumgestodecompreensãoe,aomesmotempo

em que a enfermeira saiu pedalando, dirigiu-se até a porta da casa, deuumabatidinhadeleveeentrou.

AirmãMarieAngeliqueestavasentadapertodajanela,numacadeiradeespaldaralto,evirou-separaomédicoquandoeleentrou.

Seu rosto era estranho: pálido, quase transparente, e de olhosenormes,quepareciamrefletirumatragédiasemfim.

–Bomdia,irmã–disseodoutoremfrancês.–Bomdia,monsieurledocteur.–Gostariadeapresentar-lheumamigomeu,osr.Anstruther.Fiz uma reverência que ela retribuiu inclinando levemente a cabeça,

comumsorrisoindistinto.– Como a senhora está hoje? – perguntou o médico, sentando-se ao

ladodela.–Comosempre.Elafezumapausaedepoiscontinuou:–Nadameparecereal.Sãodiasquepassam?Oumeses,anos?Eunão

sei.Apenasmeussonhosparecemreais.–Aindatemmuitossonhos?– Sempre, sempre... O senhor entende? Parecem mais reais do que

aquiloquevivo.–Sãosonhosdoseupaís?DaBélgica?Elanegoucomacabeça.–Não.Sonhocomumpaísquenuncaexistiu.Nunca.Masosenhor já

sabedisso.Jálheexpliqueiinúmerasvezes.Elafezumapausa,depoisdisseabruptamente:–Talvezestesenhortambémsejamédico...Ummédicodedoençasdo

cérebro?–Não, não... – disseRose, para tranquilizá-la,mas quando ele sorriu

noteioquãopontiagudoeraoseucanino.Aquilolhedavaumardelobo.Elecontinuou:–Acheiqueasenhorafossegostardeconhecerosr.Anstruther.Elejá

estevenaBélgicaeouviufalardoseuconvento.Os olhos dela moveram-se na minha direção. Suas bochechas se

avermelharamligeiramente.–Ah,não sepreocupe.Nãoénadademais.Outrodia jantei comum

amigo que me descreveu as paredes que sobraram entre as ruínas do

Page 8: Agatha christie - o cão da morte

convento.–Ruínas!Foi uma exclamação suave. Dita mais para ela mesma do que para

nós.Olhandoparamimoutravez,elaperguntou,hesitante:–Eporacasooseuamigodissealgumacoisa...sobrecomooconvento

foidestruído?–Numaexplosão–respondi.Emseguida,acrescentei:–Oscamponesestêmmedodeandarnaqueladireçãoànoite.–Medodequê?–De umamarca deixada pela explosão numa das paredes. Eles têm

ummedosupersticiosodessamarca.–Masmediga,meusenhor...Vamos,mediga!Quemarcaéessa?–Tema formadeumcão.Umcãoenormequeeles chamamde “cão

damorte”.– Ah! – fez ela, deixando escapar entre os lábios o gritinho agudo. –

Entãoéverdade...Tudodequeme lembroéverdade.Não foiumsimplespesadelo.Aconteceu.Aconteceumesmo!

–Oquefoiqueaconteceu,irmã?–perguntouomédico,emvozbaixa.Elasevirouparaele,exaltada.–Eu lembrei. Sei como foi.Euestavanodegrau, odegraudoaltar, e

useiopodercomocostumavausar.Advertiquenãoseaproximassem.Quefossemempaz.Masnãomeouviram,ignorarammeuaviso.Então...–disseela inclinando-se, ao mesmo tempo em que fazia com a mão um gestocurioso–tivedesoltarnelesocãodamorte...

Elainclinou-separatrás,trêmulaedeolhosfechados.Omédicoselevantou,pegouumcopodoarmário,encheu-ocomágua

até ametade e adicionou uma ou duas gotas de um frasco que trazia nobolso.

Elesedirigiuaelaedisse:–Beba.Ela obedeceumecanicamente. Seus olhos estavamdistantes, como se

contemplassealgumadasvisões.– Mas então era tudo verdade – disse ela. – Tudo. A cidade dos

círculos,aspessoasdocristal...Tudoverdade.–Éoqueparece–disseRose.Ele falava num tom baixo e suave, a im de encorajá-la e evitando

interrompersualinhadepensamento.

Page 9: Agatha christie - o cão da morte

–Conte-memaissobreacidade–pediuele.–Acidadedoscírculos,éassimquesechama?

Elarespondeudeformamecânica,semprestaratenção.– Havia três círculos. O primeiro era para os escolhidos, o segundo

paraassacerdotisaseoúltimoparaossacerdotes.–Enocentrodetudo,oquehavia?Elaprendeuofôlegoedissenumtomdeprofundaadmiração:–Acasadocristal...Depoislevouamãodireitaàtesta,ondetraçoucomodedouma igura

misteriosa.Deolhos fechados,elabalançavanumaespéciede transe,atéquede

repentefoicomose levasseumsafanão,queafezacordareseendireitarnacadeira.

–Oquefoi?–perguntouela,confusa.–Quefoiqueeudisse?– Nada. Não se preocupe – disse Rose. – A senhora precisa de um

descanso.Vamosdeixá-larepousar.Quandosaímos,elapareciazonza.–Bem–disseRose,doladodefora–,oqueosenhorachou?Elemeolhoudeesguelha.–Imaginoqueelaestejatotalmentedesnorteada–comenteipesaroso.–Aspalavrasdelalhepareceramabsurdas?– Para falar a verdade, ao ouvi-la fui tomadopela impressão de que

elatinhafeitooquedizia:realizadoalgumtipodemilagre.Elaseexpressadeformaconvincente,acreditanoquediz.Maséporissomesmoque...

–Queosenhorachaqueelaestádesnorteada.Muitobem.Masagoravejaacoisaporumângulodiferente.Eseelarealizoumesmoummilagre?E se ela realmente destruiu um prédio e junto com ele centenas depessoas?

–Comaforçadopensamento?–perguntei,esboçandoumsorriso.– Eu não diria exatamente dessa forma. É possível causar uma

destruição sem tamanho como simples toquedeum interruptor ligado aumsistemademinas.

–Ah,sim...masessaéumaoperaçãomecânica.–Mecânica,podeser,oqueemúltimainstânciasigni icaatomadaeo

controle de forças da natureza. O funcionamento de uma central elétricanãodiferemuitodaqueledeumatempestadederaios.

–Pode ser,masnão temos como controlar uma tempestadede raiossenãopormeiosmecânicos.

Rosesorriu.

Page 10: Agatha christie - o cão da morte

–Voufazerumadivagação.Existeumasubstânciachamadagaultéria.Ela existe na natureza como um vegetal, mas é possível sintetizá-la emlaboratório.

–Eoquetemisso?– O que quero dizer é que, muitas vezes, há duas maneiras de se

chegaraummesmoresultado.Asintéticaéumadelas,éanossamaneira.Pode haver outra. Os faquires da Índia fazem coisas extraordinárias quesãomuito di íceis de explicar. Aquilo que chamamos de sobrenatural é onaturalcujasleisdesconhecemos.

–Osenhorestáquerendodizerque...–sugeri,fascinado.–Estouquerendodizerquenãoposso ignorarahipótesedequeum

ser humano seja capaz de entrar em contato com uma imensa forçadestrutivaeusá-laaseu favor.Umaocorrênciadessaspodeserchamadadesobrenatural,masissonãoquerdizerquedefatooseja.

Arregaleiosolhos.Eleriu.– É apenas uma especulação, nada mais – disse ele. – Diga-me, o

senhor prestou atenção no gesto feito por ela ao mencionar a casa docristal?

–Elacolocouamãonatesta.–Exatamente,edesenhouumcírculo,assimcomooscatólicosfazemo

sinal da cruz. E agora vou lhe contar uma coisa interessante, sr.Anstruther.Apalavracristalaparececomtantainsistêncianasdivagaçõesdaminhapacienteque izumexperimento.Pegueiumcristalemprestadodeumamigoeumdiaomostreiaelasemavisar,paratestarasuareação.

–Eentão?–Bem,oresultadofoicuriosoesugestivo.Ocorpodelaenrijeceu.Ela

olhava para o cristal como se não pudesse acreditar no que via. Emseguidacaiudejoelhos,murmuroualgumaspalavrasedesmaiou.

–Quepalavras?–Palavrasestranhas.Eladisse:“Ocristal!Aféaindavive!”.–Queinusitado!– E também curioso, o senhor não acha? Há outra coisa esquisita.

Quando ela voltou a si, depois do desmaio, não se lembrava de nada.Mostrei o cristal a ela eperguntei se sabiaoque era. Ela respondeuqueparecia um cristal daqueles usados para prever o futuro. Perguntei se játinhavistoalgumantes.Elarespondeu:“Nunca,monsieurledocteur”.Comoa expressão dela era de assombro, quis saber o que a incomodava. Elarespondeu:“Émuitoestranho.Nuncaviumcristaldesses,enoentantome

Page 11: Agatha christie - o cão da morte

parece que o conheço muito bem. Há alguma coisa... se eu pudesselembrar!”. O esforço de memória deixou-a tão abalada que a proibi depensar no assunto. Isso foi duas semanas atrás. Estou só esperando omomentocerto.Provavelmenteamanhãtentoumoutroexperimento.

–Comocristal?–Comocristal.Queroqueelaolhedentrodele.Oresultadodeveser

interessante.–Achaqueelavaienxergaralgumacoisa?–perguntei,curioso.As palavras saíram da minha boca sem que eu desse a elas maior

importância,masoseuresultadofoi inesperado.Rosecoroue icoutenso.Parecia outra pessoa. Ficou mais formal, e passou a me tratar comdistância.

–Seriaumaluzsobrecertasdoençasmentaisquepoucoconhecemos.OcasodairmãMarieAngeliqueémuitointeressante.

Mas alguma coisa me fazia questionar se o interesse de Rose eramesmoexclusivamenteprofissional.

–Osenhormepermitiriaassistir?–perguntei.Podetersidoimpressãominha,masmepareceuqueelehesitouantes

deresponder.Tiveasensaçãodequeminhapresençaseriaumestorvo.–Claro.Nãovejoproblemaalgum.Depois,eleacrescentou:–Atéquandoosenhorficanaregião?–Atédepoisdeamanhã.Acho que a resposta o agradou. Seu rosto se descontraiu, e ele

começouafalardeumexperimentorecentecomcobaiasdelaboratório.

IIIConforme havíamos combinado, encontrei com o médico no dia

seguinte e fomos juntos ver a irmã Marie Angelique. Ele estavadescontraídoebem-humorado.Imaginoqueestivessetentandodesfazeramáimpressãoquemecausaranodiaanterior.

–Oqueeudisseontemnãodeveserlevadomuitoasério–observousorrindo.–Sófaltaosenhorsairdaquiachandoquesouuma icionadoporciênciasocultas.Meupiordefeitoéoexagero.

–Émesmo?–Sim.Nãoresistodiantedapossibilidadedeapimentarumahistória,

especialmenteseelatemalgodefantástico.Elesoltouumarisada,comoadealguémquesedivertereconhecendo

Page 12: Agatha christie - o cão da morte

emsimesmoumafraqueza.Quando chegamos ao chalé, a enfermeira precisava tratar de um

assuntocomRose,efuideixadoasóscomairmãMarieAngelique.Seusolhosmesondavamcominteresse.Eladisse:– A amiga enfermeira me contou que o senhor é irmão da dona

daquela casa enorme, na qual fui acolhida com toda a generosidade aochegardaBélgica.

–Issomesmo–confirmei.–Suairmãéumamulhermuitoboa.Elaficouemsilêncio,comoserefletisseconsigomesma.Depoisdisse:–Monsieurledocteur...étambémumhomembom?Fiqueiconstrangido.– Por que pergunta? É claro que ele é umhomembom, quer dizer...

achoquesim.–Ah!–fezela.Depoisdeumapausa,acrescentou:–Elecertamentetemsidomuitogenerosocomigo.–Estoucertodisso.Elamelançouumolharaflito.–Monsieur...quefalacomigoagora...tambémachaqueestoulouca?–Porqueeuachariaumacoisadessas,irmã?Aideianunca...Elasacudiuacabeçanegativamente,interrompendoomeuprotesto.– Estou louca? Eu não sei... Não consigo me lembrar de tudo... e as

coisasdequemelembro!Elasuspirou,enaquelemomentoRoseentrounoquarto.Omédicoa cumprimentouanimado, explicandooquequeriaqueela

fizesse.– Certas pessoas têm o dom de enxergar coisas em cristais. Fico

pensandoseasenhora,irmã,nãoteriaessedom.Elapareceualarmada.–Não,não...eunãopossofazerisso.Tentarpreverofuturo...épecado.Rose foi pego de surpresa. Ele não previra aquela objeção da freira.

Maslogodeuumjeitodecontorná-la:–Asenhoraestácerta.Nãoéo futuroquedevemostentarenxergar,

masalgodiferente:opassado.–Opassado?– Sim.Hámuitas coisas estranhasnopassado. Coisasquenos vêmà

memória num lampejo e depois esquecemos.Não tente ver o futuro, quenão nos é permitido. Apenas segure o cristal... assim. Agora olhe dentro

Page 13: Agatha christie - o cão da morte

dele,profundamente.Issomesmo.Concentre-seumpoucomais.Asenhorase lembra, não? Sim, a senhora se lembra epodeouvir aminhavoz.Voulhefazeralgumasperguntas,certo?Podemeouvir?

Obediente,airmãMarieAngeliquepegouocristal,quemanejavacomtodoocuidadonumaatitudedegrandereverência.Aoolharparaele,seusolhosficaramtotalmentebrancosesuacabeçacaiu.Pareciadormir.

Gentilmente,omédicotirouocristaldasmãosdelaeocolocousobreamesa.Elelevantouumadaspálpebrasdela.Emseguida,sentou-seaomeulado.

–Precisamosesperarqueelaacorde.Nãovaidemorarmuito,imagino.Eleestavacerto.Depoisdecincominutos, a irmãMarieAngeliquese

mexeu.Seusolhosseabriramcomoseelaemergissedeumsonho.–Ondeestou?–Aqui...emcasa.Asenhoracochilouumpouco...chegouasonhar?Elaconcordoucomacabeça.–Sim,sonhei.–Sonhoucomocristal?–Sim.–Comofoiosonho?– Vão dizer que estou louca, monsieur le docteur. No meu sonho, o

cristaleraumsímbolodivino.ChegueiaverumoutroCristo,quepregavasobreocristalemorreupelaprópria fé...Viseusseguidoresperseguidos,dizimados...Masa fésobreviveu.Sim...porquinzemil luascheias...Quinzemilluascheias!

–Equalotempodecadaluacheia?–Trintaluasnormais.Sim,depoisdesepassaremquinzemil luas...e,

é claro, eu era a sacerdotisa do quinto signo na casa do cristal. Nosprimeirosdiasdachegadadosextosigno...

Ela franziu o cenho, e uma expressão de medo tomou conta do seurosto.

– Cedo demais – murmurou. – Cedo demais. Um erro... Sim, melembro!Osextosinal...

Ela fezmençãodese levantar,depoisdeixou-secairnovamenteparatrás,passouamãosobreorostoemurmurou:

– Mas o que estou dizendo? Estou delirando. Essas coisas nuncaaconteceram.

–Acalme-se.Maselaolhavaparaeleangustiadaeperplexa.–Monsieur le docteur , eu não entendo. Por que tenho esses sonhos,

Page 14: Agatha christie - o cão da morte

essas fantasias? Eu tinha apenas dezesseis anos quando entrei noconvento. Nunca viajei. Mas sonho com cidades, pessoas estranhas,costumesesquisitos.Porquê?

Elapressionouacabeçacomambasasmãos.–Jáahipnotizaramalgumavez,irmã?Asenhorajáentrouemtranse?– Nunca fui hipnotizada,monsieur le docteur . Mas quando rezava na

capela,meu espírito foi diversas vezes levado domeu corpo, e eu icavacomo morta por horas. Era um estado de beatitude, dizia a madresuperiora... um estado de graça. Sim! – disse ela, prendendo o fôlego. –Lembroqueochamávamosdeestadodegraça.

– Gostaria de tentar um experimento, irmã – disse Rose num tomobjetivo. – Ele pode pôr um ponto inal nessas meias lembranças. Voupedir que olhemais uma vez no cristal. Em seguida vou pronunciar umacertapalavra, e a senhora vaime responder comumaoutra. Seguiremosfazendoissoaté icarmoscansados.Concentreoseupensamentonocristal,nãonaspalavras.

Descobri o cristal e o entreguei à irmã Marie Angelique. Notei areverência com que ela o segurou. Sobre o veludo negro, o cristal jaziaentre as suas mãos magras, e nele estavam focados seus olhosmaravilhosamente profundos. Houve ummomento de silêncio, e então omédicofalou:

–Cão.ImediatamenteairmãMarieAngeliquerespondeu:–Morte.

IVNãovoudescreveroexperimentodoinícioao imemdetalhes.Elefoi

entremeado de muitas palavras sem importância nem sentido,pronunciadas pelo médico em certos momentos. Outras palavras eramfrequentemente repetidas, e às vezes geravam uma mesma resposta,outrasvezesrespostasdiferentes.

Na casa domédico, naquelamesma noite, discutimos o resultado doexperimento.

Ele limpou a garganta e puxou para perto de si o caderno deanotações.

–Sãoresultados interessantesessesaquechegamos,muitocuriosos.Comorespostaàspalavras sextosigno,obtivemosváriasoutras:destruição,roxo,cão,poder , depoisnovamentedestruição e por impoder.Mais tarde,

Page 15: Agatha christie - o cão da morte

como o senhor deve ter notado, inverti ométodo. Em resposta à palavradestruição, ela dissecão. À palavraroxo, poder , à palavracão, mortenovamente, e à palavrapoder, cão. Tudo isso faz sentido conjuntamente,masnasegundavezemquerepetidestruiçãoelarespondeucommar,queparecesertotalmenteirrelevante.Comorespostaàspalavras quintosigno,obtivemosazul, pensamentos, pássaro , novamenteazul e, por im, umaexpressão sugestiva:abrir a mente para ament e. Do fato de quequartosignoprovocouarespostaamarelo,edepoisluz,edo fatodequeprimeirosigno foirespondidocomapalavra sangue,deduzoquecadasignoremeteaumacorparticulareprovavelmente tambémaumsímboloespecí ico.Odoquintosignoépássaro.Odosexto,cão.Entretanto,eudiriaqueoquintosigno representa o que em geral chamamos de telepatia, a abertura damente para outras mentes. O sexto signo tem relação certamente com opoderdedestruição.

–Eoquemarsignifica?– Confesso que isso não sei explicar. Eu mesmo proferi depois a

palavra,eelarespondeubarco.Arespostaqueeladeuàspalavras sétimosigno foi primeirovida, e depoisamor. Aoitavo signo, ela respondeunenhum.Concluoportantoqueseteéonúmerototaldesignos.

–Masosétimosignonãofoialcançado–disseeu,seguindoumaideiaqueacabavademeocorrer–,jáquepelosextoveioadestruição!

–Ah!Éissoqueosenhorpensa?Masnãoconvémlevartãoasériooquesãoapenasdivagaçõesdeumamenteperturbada.Ointeressequeelastêméapenasmédico.

–Investigadoresdefenômenosparanormaistambémseinteressariamporelas.

OsolhosdeRosesecontraírameeleobservou:– Meu caro senhor, não tenho o menor interesse em levar isso a

público.–Masentãoqualéoseuinteresse?–Meramentepessoal.Voutomarnotadocaso,éclaro.–Entendo.Porém, pela primeira vez tive a impressão de que realmente eu não

entendia.Levantei-me.–Bem,boanoite,doutor.Amanhãvoltoàcidade.–Ah!Pareceu-mequesuaexclamaçãoexpressavasatisfaçãooualívio.– Boa sorte com suas investigações – desejei semmuita ênfase. – E

não solte o cão da morte em mim da próxima vez em que nos

Page 16: Agatha christie - o cão da morte

encontrarmos!Cumprimentávamo-nos com um aperto de mão quando eu disse

aquilo, e pude sentir o susto que ele tomou. No momento seguinte,entretanto, o médico já retraía os lábios num sorriso disfarçado querevelavaapontadosseuscaninosmisteriosos.

– Para alguém interessado em poder, nada seria mais fascinante! –disseele.–Ter,napalmadamão,avidadecadaserhumano.

Seuslábiosseretesaramaindamais.

VEssefoiofinaldaminhaconexãodiretacomocaso.Maistarde,ocadernodeanotaçõeseodiáriodomédicovieramparar

em minhas mãos. Vou reproduzir aqui algumas passagens. Tenho deressaltarquenãotiveacessoaelessenãoumbomtempodepois.

5deagosto.Descobertadeque“osescolhidos”dairmãM.A.sãoaquelesquereproduziramaraça.Aparentemente,eramtidosemgrandeestimae exaltados mais do que os sacerdotes. Contrastar com os primeiroscristãos.7 de agosto. Convenci a irmãM. A. ame deixar hipnotizá-la. Conseguiinduzi-la ao sono hipnótico e ao transe, mas não estabeleci qualquercontato.9deagosto.Houvenopassadoumacivilizaçãomuitomaisdesenvolvidaqueanossa?Éestranhoquetalvezsóeutenhaachavedessaresposta...12 de agosto. A irmã M. A. não é sugestionável quando hipnotizada.Entretanto,elaentraemtransemuitofacilmente.Difícildeexplicar.13deagosto.A irmãM.A.mencionouhojequeem“estadodegraça”o“portal deve estar fechado, a menos que outro comande o corpo”.Interessante,masincompreensível.18deagosto.Oprimeirosignonãoésenão... (palavrasapagadas)...masentão quantos anos levaremos para alcançar o sexto? E se houver umatalhoaopoder?20 de agosto. Vou receber aqui a irmã M. A. junto com a enfermeira.Avisei-lhequeeranecessáriomanterapacientesoboefeitodamor ina.Será que enlouqueci? Ou serei eu o super-homem, tendo na palma dasmãosumpoderdevidaemorte?

(Finaldodiário)

Page 17: Agatha christie - o cão da morte

VIAcho que foi no dia 29 de agosto que recebi a carta. Era dirigida a

mim, por intermédio daminha cunhada, numa caligra ia estranha.Abri oenvelopecomcertacuriosidade.Diziaoseguinte:

Chermonsieur... Apesar de tê-lo visto apenas duas vezes, senti que eradignodaminhaconfiança.Sejamreaisounão,meussonhossetornarammaisclarosnosúltimos tempos...Eumacoisaéabsolutamentecerta:ocãodamortenãofoiumsonho...Nosdiasdequelhefalei(nãoseisesãoreaisounão),aquelequeeraoguardiãodocristalreveloucedodemaisosexto signo às pessoas... Omal entrou em seus corações. Elas tinhamopoder de matar à vontade, e mataram sem levar em conta a justiça,tomadaspelaraiva.Estavamembriagadaspelodesejodepoder.Quandovimos o que acontecia, nós que ainda éramos puros sabíamos que ocírculo de novo não se completaria e que não chegaríamos ao sinal davida eterna. Aquele que seria o próximo guardião do cristal precisavaagir. O que é velho perece, e o novo pode retornar depois de erasin indáveis.Elesoltouocãodamortesobreomar(tomandoocuidadodenãofecharocírculo),easáguasselevantaramassumindoaformadeumcãoqueengoliuaterratoda...Outravezmelembrodisso...nosdegrausdoaltarnaBélgica...Odr.Rose éumdosnossos.Ele conheceoprimeiro signoea formadosegundo,apesardeosigni icadodelesserdestinadoapenasaalguns.Eleaprenderiacomigoosexto.Resistiatéagora,masestouenfraquecendo,monsieur,enãoébomqueumhomemadquiraopoderantesdotempo.Muitos séculos devem se passar até que o mundo esteja pronto parareceberemsuasmãosopoderdevidaemorte.Euimploroasuaajuda,monsieur...Emnomedabondadeedaverdade,ajude-me...Antesquesejatardedemais.SuairmãemCristo,

MarieAngeliqueDeixei o papel cair. A cartame pegou de surpresa, e eu não sabia o

que fazer. Estava quase acreditando nas ideias da pobre coitada! Umacoisa era certa: o dr. Rose, em seu zelo pelo caso, extrapolara suasobrigaçõesprofissionais.Euirialáe...

Derepente,percebiquehaviaumacartadeKittyentreorestantedacorrespondência.Abri-aimediatamenteeli:

Page 18: Agatha christie - o cão da morte

Algohorrívelaconteceu.Vocêse lembradochalédodr.Rose,que icavano alto de um penhasco? Foi levado por um deslizamento de terra nanoite passada. Morreram o doutor e aquela pobre freira, irmã MarieAngelique. Os escombros que se veem na praia são terríveis. Tudoamontoadona formadeuma iguraestranha,quede longepareceumcãoenorme...

Acartacaiudaminhamão.Os outros fatos podem ser coincidência. Um tal de sr. Rose, que

descobri depois ser um parente rico do médico, morreu subitamente namesma noite. Pelo que dizem, fulminado por um raio. Nenhum temporalatingiraaregião,masumaouduaspessoasdisseramterouvidootrovão.Adescargaelétricadeixounocorpoumaqueimaduraestranha.Afortunadomortoficariaparaosobrinho,odr.Rose.

Ficopensandonapossibilidadedeodr.RoseterobtidodairmãMarieAngelique o segredo do sexto signo. Ele sempreme pareceu um homemsemescrúpulos.Elenãohesitariaemtiraravidado tiose tivessecertezade que não poderiam acusá-lo. Uma frase na carta da irmã MarieAngelique não saía daminha cabeça...tomando o cuidado de não fechar ocírculo.Talvezodr.Rosenão tenha tidoessecuidado... talvez tenhaagidodeformaprecipitada,semtomarnenhumaprecaução.Dessaforma,aforçadesencadeadaretornoucontraele,fechandoocírculo...

Mas é claro que tudo isso é absurdo! Os acontecimentos podem serexplicadosdeformainteiramentenatural.Ofatodeodoutoracreditarnasalucinaçõesda irmãMarieAngeliqueé aprovadequeelemesmoestavadesequilibrado.

Masàsvezeseutambémsonhocomumcontinenteperdidonofundodo mar, no qual viveram os homens de uma civilização muito maisavançadaqueanossa...

Ou será que a irmãMarieAngelique teria o domde uma espécie derecordaçãoemsentidoinverso,deformaqueacidadedoscírculos icassenofuturoenãonopassado?

Absurdo.Tudonãopassavadealucinação!

Page 19: Agatha christie - o cão da morte

OSINALVERMELHO

– Nãome diga, que emocionante! – exclamou a bela sra. Eversleigh,arregalando seus olhos adoráveismas ligeiramente entediantes. – Dizemmesmoqueasmulherestêmumsextosentido.Seráverdade,sirAlington?

Océlebrealienistasorriu,sarcástico.Suaconvidadafaziapartedeumtipo que não lhe provocava senão desdém: o das pessoas bonitas ebobinhas. Alington West era uma autoridade suprema em doençasmentais. E ele tinha plena consciência de sua posição e importância. Umhomemligeiramentepomposo,detamanhoforadocomum.

– Fala-se muita bobagem, sei bem disso, sra. Eversleigh. Quesignificadopodeterumaexpressãocomoessa,“sextosentido”?

– Vocês cientistas são tão sérios! Eu acho extraordinário como àsvezes parece que antecipamos mesmo certas coisas. Sabemos, sentimosque elas vão acontecer, é o que quero dizer... Um fenômeno realmenteesquisito.Vocêmeentende,Claire,nãoentende?

Elaapelavaparaaan itriãcomumombroligeiramentemaisaltoqueooutroefazendoumbeicinhodeenfado.ClaireTrentnãorespondeu.

Era um jantarzinho íntimo. Claire e o marido, Violet Eversleigh, sirAlingtonWest e o sobrinho dele, Dermot West, um velho amigo de JackTrent.

JackTrenteraumhomemexpansivo,comumsorrisobem-humoradoecapazdeumaboagargalhada.Foielequempegouofiodaconversa.

–Masé claroqueentendemos,Violet!Suamelhoramigamorrenumacidentede trem.Você imediatamente se lembradeque sonhou comumgato preto na última terça-feira. Bingo! Você sabia que algo terrível iriaacontecer...

–Não,não.Deformaalguma,Jack.Vocêestáconfundindopremoniçãocom intuição. Se bem que... sir Alington, vocês cientistas admitem aexistênciadepremonições,não?

–Atécertoponto,talvez...–respondeuomédicocomcautela.–Masascoincidências explicam muita coisa e, depois que a história acontece, aspessoasexagerammuito.Éprecisolevarissoemconta.

–Eunãoacreditoempremonições–sentencioupor imClaireTrent,comtodaaconvicção.–Todaessaconversasobreintuiçãoesextosentidoé uma bobagem. Passamos pela vida como um trem atravessa a noiteescura,esemamínimanoçãodeondevamoschegar.

Page 20: Agatha christie - o cão da morte

–Háalgodeerradonasuacomparação,sra.Trent–declarouDermotWest,levantandoacabeçapelaprimeiravezeentrandonadiscussão.

Ao dizer aquilo, seus olhos cinza, muito claros, emitiram um brilhoestranho,quecontrastoumarcadamentecomsuatezbronzeada.

–Asenhoraseesqueceudossinais.–Sinais?–Sim.Verde,seestátudobem.Vermelho,seháperigo!–Vermelho,seháperigo!Vejacomofiqueiarrepiada–declarouViolet

Eversleigh,erguendoobraço.Dermotfezumacaretaecontinuou:–Éapenasummododefalar,éclaro.Perigoàfrente!Sinalvermelho!

Cuidado!Osr.Trentolhouinquisitivamenteparaele:– Meu caro, você fala como se tivesse uma grande experiência no

assunto.–Masé...temsido,querodizer.–Poisentãoconteparanós.–Possodarumexemplo.NaMesopotâmia, logodepoisdo armistício,

voltei para minha tenda com um pressentimento muito forte de perigo.Sinalvermelho!Cuidado!Nãosabiaaqueaquilosereferia.Deiumavoltano acampamento, investiguei aqui e ali, incomodei as pessoas. Em suma,tomeitodasasprecauçõespossíveiscontraumataquedosárabes.Depoisvoltei à tenda. Logo que entrei, fui tomado novamente pelo mesmopressentimento,dessavezaindamaisforte.Perigo!Acabeiindodormirdoladodefora,enroladonocobertor.

–Edaí?–Namanhãseguinte,quandoentreinatenda,aprimeiracoisaquevi

foiumafacaenorme,decercademeiometro,atravessadanaminhacama,onde eu estaria dormindo. Logo descobri do que se tratava... um dosempregadosárabes.O ilhodeleforamortoporumespião.Poisbem,agoraeugostariade saberoqueo tioAlington temadizer sobre essahistória,umexemplodaquiloqueeuchamodesinalvermelho...

Oespecialistasorriucomceticismo.–Umahistóriabeminteressante,meucaroDermot.–...Mascomrelaçãoàqualosenhortemalgumasrestrições?–Sim.Nãoduvidodequevocêtenhapressentidoalgumperigo.Tudo

sepassouexatamentecomovocênosconta.Oqueeuquestionoéaorigemdopressentimento.Deacordocomvocê,elaseriaexterna.Algumacoisadefora teria in luenciado a suamente.Mashoje emdia sabemosquequase

Page 21: Agatha christie - o cão da morte

tudovemdedentro,donossosubconsciente.–Ah,osubconsciente!–exclamou JackTrent.–Hojeemdiaquem já

nãoouviufalardele?SirAlingtonprosseguiusemdaratençãoàinterrupção.– Pode ser que através de um gesto, de um olhar, esse árabe tenha

traído a si mesmo e deixado transparecer algo da sua intenção.Conscientemente,meucaroDermot,vocêpodenãose lembrar,enaquelemomento talvez nem tenhapercebido,mas o fato icou registradono seusubconsciente.Osubconscientenuncaesquece.Eacreditamosqueelesejacapazinclusivederaciocinarededuzirindependentementedaconsciênciaedavontade.Oseusubconsciente,portanto,concluiuquealguémtentariaassassiná-loedeuumjeitodetransmitiressealertaàsuaconsciência.

–Éumaexplicaçãoconvincente–admitiuDermot,sorrindo.–Massemamenorgraça–considerouasra.Eversleigh.–Tambémépossívelqueoseusubconscientetenhapercebidoaraiva

que esse homem sentia de você. Aquilo que se costumava chamar detelepatia certamenteexiste,mesmoqueconheçamosmuitopouco sobreofuncionamentodessefenômeno.

–Vocêteriaalgumoutroexemploparanosdar,Dermot?–perguntouClaire.

– Ah, sim! Mas nada de muito espetacular. E suponho que tudopoderiaserexplicadocomocoincidência.Umavezrecuseiumconviteparaviajaraocampo,peloúnicomotivodequepressentiperigo.Olugarpegoufogo na semana seguinte. E então, tio Alington, qual o papel dosubconscientenessahistória?

–Receioquepapelalgum–respondeuAlington,comumsorriso.– Mas o senhor deve ter alguma outra explicação. Vamos lá, não é

precisofazercerimôniacomigo.– Bem, neste caso, sobrinho, imagino que você tenha recusado o

convitepelasimples razãodequenãoqueria ir.Depoisdo incêndio,vocêconvenceu a si mesmo de que tivera um pressentimento, e até hojeacreditanisso.

–É inútil–disseDermot,comumarisada.–Nadadoqueeudigavaiconvencê-lo.

– Não se preocupe, sr. West – exclamou Violet Eversleigh. – Euacreditopiamentenoseusinalvermelho.FoinaMesopotâmiaaúltimavezqueosentiu?

–Sim...issoaté...–Como?

Page 22: Agatha christie - o cão da morte

–Nada.Dermot icou em silêncio. As palavras que ele quase dissera eram

“sim,issoatéhojeànoite”.Elastinhamsurgidodaformamaisespontânea,dandovozaumpensamentodoqualelenãoestiveraconsciente,masquesabia ser verdade. O sinal vermelho brilhava com toda a força naescuridão.Perigo!Perigoiminente!

Masporquê?Queperigopoderiahaverali?Estavanacompanhiadeamigos.Anãoserque...bem,haviaumcertotipodeperigo.EleolhouparaClaire Trent... sua palidez, sua fragilidade e o requinte com que elainclinavaacabeçadourada.Masesseperigojáexistiaháumbomtempoenuncaseconcretizara.JackTrenteraoseumelhoramigo.Maisdoqueisso,ele era o homem que salvara a sua vida em Flandres e quase foracondecoradocomacruzdavitória.Umótimosujeito,umdosmelhoresqueconhecia. Era um maldito azar que Dermot tivesse se apaixonado pelamulherdeJack.Masaquelapaixãoteriadeterum im.Osofrimentoteriade acabar. A solução era esperar que o tempo passasse e o sentimentodiminuísse.Elanãosabiadenada,esesoubessenão levariaasério.Umaestátua, uma bela estátua feita de ouro, mar im e coral rosa pálido... Umbrinquedodivino,enãoumamulherreal...

Claire... pensar naquele nome, soletrá-lo para si mesmo, era comomexernuma ferida... Ele tinhade superaraquilo. Já seapaixonaraoutrasvezes...Mas não daquela maneira! Alguma coisa lhe dizia:não daquelamaneira. Bem, era isso. Nenhum perigo ali, apenas sofrimento. O sinalvermelhodeviaserparaalgumaoutracoisa.

Eleolhouaoredorepelaprimeiravezpercebeucomoaquelareuniãoera estranha. Seu tio, por exemplo, jamais participava desse tipo dejantarzinho informal. Até aquela noite, Dermot nemmesmo sabia que sirAlingtonconheciaosTrent.

Tudo se justi icavapelomotivoporque estavamali. Esperavamumacélebremédiumquedeviacomandarparaelesumasessãoapóso jantar.Sir Alington admitia ter um certo interesse em espiritismo. Aquela era adesculpadareunião.

A palavra icou ecoando na suamente.Desculpa. Seria a sessão umameradesculpapara justi icarapresençadoespecialistanojantar?Seeraassim, qual seria o verdadeiro motivo da reunião? Detalhes desconexosassomaram à sua cabeça, banalidades às quais nunca dera importância,aquilotudoqueseutiochamariade“registrosdosubconsciente”.

O ilustredoutor tinhaolhadoparaClairedemaneiraestranha,muitoestranha,maisdeumavez.Eracomoseavigiasse.Ela icavaconstrangida.

Page 23: Agatha christie - o cão da morte

Contraía as mãos em movimentos repentinos. Estava nervosa,terrivelmentenervosa,etalvez...amedrontada?Doqueelateriamedo?

Dermotcaiuemsievoltouaprestaratençãonaconversadamesa.Asra.Eversleightinhaconseguidoextrairdomédicoumdiscurso:

–Minhacara–disseele–,oqueéaloucura?Possoassegurar-lhequequanto mais estudamos o assunto mais temos di iculdade de nosposicionar.Aspessoastodasseiludem,eésóquandopassamaacharquesão o czar da Rússia que é necessário calá-las ou contê-las. Mas há umlongocaminhoatéseatingiresseponto.Eondedevemostraçarumalinhademarcandoonde termina a sanidade e começa a loucura? Issopode serfeito, mas vou lhe dizer uma coisa: se alguém é tomado por uma ideiadeliranteenãocomentanadaarespeito,nãoteremoscomodistingui-lodeumapessoanormal.A extraordinária sanidadedos insanoséumassuntodosmaisinteressantes.

Satisfeito com a impressão que seu discurso causara, sir Alingtontomouumgoledevinhoeabriuumlargosorriso.

– Sempre ouvi dizer que eles são muito espertos – observou a sra.Eversleigh.–Osdoidos,querodizer.

– Muito. E eliminar a loucura de alguém pode ter resultadoscatastró icos. Como os psicanalistas ensinam, precisamos de certasfantasias para viver. Uma pessoa excêntrica di icilmente se tornarealmenteperigosa.Masumhomem– acrescentouele, comumapausa–ou uma mulher que se comporte de forma absolutamente normal eprevisívelpodesernaverdadeumriscoparaasociedade.

Ele dirigiu o olhar calmamenteparaClaire, do outro ladodamesa, edepoisdevoltaparaocopodevinho,doqualbebeuumgole.

Dermot sentiu um calafrio. O que ele queria dizer com aquilo?Ondequeriachegar?Nãofaziasentido...

–Realmente,éprecisodarvazãoaonossoeuinterior–suspirouasra.Eversleigh. – Temos de tomar cuidado para não reprimir a própriapersonalidade.Éterrívelnospodarmosporcausadosoutros...

–Carasra.Eversleigh–protestouomédico–,não foibemissooqueeu quis dizer. A causa do mal está no cérebro... Às vezes, o mal édesencadeado por fatores externos, mas tem sempre uma origemcongênita.

–Ah, a hereditariedade é tão triste! – suspirou ela, confusa. – Pensonaspessoastísicasetudomais...

–Atuberculosenãoéumadoençahereditária–observousirAlington,cortante.

Page 24: Agatha christie - o cão da morte

–Ah, não? Sempre achei que fosse...Mas a loucura é. Que horror!Oquemaiséhereditário?

–Gota–dissesirAlington,sorrindo.–Edaltonismo...esteúltimocasoémuito interessante. A doença é transmitida diretamente aos homens, enasmulheres permanece latente. Hámuitos casos de homens daltônicos.Masadoença só semanifestanumamulher caso tenhaestado latentenamãeemanifestanopai.Essetipodehereditariedadenãoémuitocomum.Éoquesechamadeherançaligadaaosexo.

–Masqueinteressante!Eessenãoéocasodaloucura?– A loucura pode ser transmitida de forma indiferente a homens e

mulheres–disseomédico,solene.Clairelevantou-sederepente,empurrandosuacadeiraparatráscom

tal veemência que a fez girar e cair. Estavamuito pálida, e omovimentonervosodosseusdedoschamouaatençãodetodos.

–Vocêsnãovãodemorarmuitocomessaconversa,vão?–perguntounumtompreocupado.–Asra.Thompsonjádeveestarchegando.

– Deixe-me tomar mais um cálice de porto e me juntarei a vocês –declarou sir Alington. – A inal de contas, vim aqui para ver o espetáculodessaextraordináriasra.Thompson,nãoémesmo?Eestoucurioso!

Claire respondeu com um meio sorriso e dirigiu-se para a sala deestarcomasra.Eversleigh.

– Acho que exagerei na conversa, meu caro – disse o médico,dirigindo-se ao an itrião. – É o tipo do assunto que interessa apenas aprofissionais.

–Deformaalguma–respondeuTrent,poreducação.Ele parecia tenso e preocupado. Pela primeira vez, Dermot sentiu-se

poucoàvontadenacompanhiadoamigo.Entreosdois,haviaumsegredoquenemaumvelhoamigoseconta.Asituaçãotodapareciairreal.Elenãosabia o que pensar. Como saber o signi icado de alguns olhares e donervosismodeumamulher?

Ficarampoucotemposaboreandoorestodovinhoechegaramàsaladeestarnoexatomomentoemqueanunciavamasra.Thompson.

Amédiumeraumamulhergordinhademeia-idade.Usavaumvestidohorrorosodeveludomagentaefalavaaltodemais.

– Espero que eu não esteja muito atrasada, sra. Trent! – disse ela,animada.–Asenhoratinhaditonovehoras,nãoémesmo?

–Asenhorachegounahoracerta,nãosepreocupe–disseClairenasuavozdoceeligeiramenterouca.–Esteéonossopequenogrupo.

Nenhumaapresentaçãofoifeita,comoeraevidentementedepraxe.A

Page 25: Agatha christie - o cão da morte

médiumperscrutouatodoscomseuolharpenetrante.– Acho que vamos obter bons resultados – observou ela, sem

delongas. – Odeio quando saio e ico impedida de satisfazer às pessoas.Não há nada mais irritante. Mas tenho a impressão de que Shiromako(meuguiajaponês)nãovaiternenhumadi iculdadedesemanifestarhoje.Estoumesentindotãobem!Atérecuseiumpoucodomolhowelshrarebit ,pormaisqueeusejaloucaporqueijoderretido.

Dermot escutava, descon iado. Era tudo tão prosaico que chegava aserengraçado!Masseráqueelenãoestavasendodurodemais?A inaldecontas, era tudo natural... Os poderes que os médiuns alegavam possuireram poderes naturais, mesmo se mal compreendidos. Um grandecirurgião pode ter uma dor de barriga antes de uma operação delicada.Porqueseriadiferentecomasra.Thompson?

Cadeiras foramdispostasnumcírculo.Cadeiras leves, quepudessemsermanejadascomfacilidade.Dermotobservouqueninguémperguntavanada. Nemmesmo sir Alington examinava as condições em que a sessãoiria decorrer. Aquilo tudo só podia ser um embuste. A sra. Thompsonestava ali como uma desculpa, e o motivo da visita de sir Alington eraoutro. A mãe de Claire, lembrou-se Dermot, tinha morrido no exterior.Haviaummistérioemtornodasuamorte...Hereditariedade...

De repente ele voltou a si, e os outros já tomavam os seus lugares.Apagaramasluzes,excetoadeumabajurvermelhoque icavanumamesaafastada.

Porummomento, não se ouvianada exceto a respiraçãoprofunda econtrolada da médium. Aos poucos, ela foi icando mais barulhenta. Atéque, quandomenos se esperava, umestrondoveiodooutro ladoda sala,fazendocomqueDermotpulassenacadeiradesusto.Obarulhoserepetiusaindo de uma outra parede. Começaram então batidas ritmadas numcrescendo. Elas se extinguiram dando lugar a uma risada estridente edesdenhosaqueecooupelasala.Depoisveioummomentodesilêncio,quefoi quebrado por uma voz estranha, aguda, saída da boca da sra.Thompson.

–Estouaqui,senhores.Sim,estouaqui.Têmperguntasafazer?–Quemévocê?Shiromako?–Sim.Shiromako.Hámuitoquemorri.Agoratrabalho.Muitofeliz.Foram dados detalhes da vida de Shiromako. Previsíveis, sem

qualquer interesse, como Dermot já ouvira milhares de vezes. Todosestavamcontentes, satisfeitos.Vierammensagensdeparentesvagamentedescritos. Descrições tão vagas que se adequariam a qualquer situação.

Page 26: Agatha christie - o cão da morte

Umasenhoradeidade,amãedealguémpresente,tomouapalavraporumtempo,professandovelhasmáximascomosefossemasúltimasnovidadesdeumassuntointeiramentedesconhecido.

– Outra pessoa gostaria de falar agora – anunciou Shiromako. –Alguémquetemumamensagemimportanteparaumdoscavalheirosaquipresentes.

Houve um momento de silêncio e outra voz falou, prefaciando asobservaçõescomumagargalhadademoníaca.

–Hahaha!Melhornãovoltaremparacasa.Melhornãovoltaremparacasa.Escutemoqueestoudizendo.

–Quemestáfalando?–perguntouTrent.– Um de vocês três. Se eu fosse ele, não voltaria para casa. Perigo!

Sangue!Nãomuitosangue,masosu iciente.Nãovolteparacasa!Nãovolteparacasa...–repetiuavoz,enfraquecendo.

Ela caiu em silêncio. Dermot sentiu o sangue subir ao rosto. O avisoeraparaele,sópodiaser.Naquelanoite,eleestavacorrendoalgumtipoderisco.

Amédiumsuspirou,depoissoltouumgemido.Elaestavavoltandoasi.Asluzesforamacesaseelaseaprumounacadeira,piscandoumpoucoosolhos.

–Deutudocerto,minhacara?Esperoquesim.–Foitudomuitobem,obrigada,sra.Thompson.–Shiromako?–Sim,elefalou,eoutraspessoas...Asra.Thompsonbocejou.–Estoumorta.Absolutamente exausta. Isso acaba coma gente.Bem,

estoucontenteque tenhasidoumsucesso.Receavaquepudessenãodarcerto.Tiveumpressentimentodesagradável.Háalgumavibraçãoestranhanestasala.

Elavirouacabeçaporcimadecadaumdosombros,olhandoparaoscantos.Teveumaespéciedearrepioedisse:

–Nãomeagrada...Alguémentrevocêsfaleceurecentemente?–Como?–Algumparente, amigos?Não?Bem, sequisesse sermelodramática,

diriaqueháumcheirodemortenoaressanoite.Masdeveserapenasaminha imaginação. Atémais ver, sra. Trent. Fico contente que a sessão atenhadeixadosatisfeita.

Noseuvestidodeveludomagenta,asra.Thompsondeixouasala.–Esperoqueasessãotenhalheinteressado,sirAlington–murmurou

Page 27: Agatha christie - o cão da morte

Claire.– Foi uma noite extremamente interessante, minha cara. Agradeço

muito pela oportunidade. Desejo uma boa noite a todos vocês. Preciso ir.Vãosairparadançar,não?

–Osenhornãovaicomagente?–Não,não.Nuncadurmodepoisdasonzeemeia.Boanoite.Boanoite,

sra. Eversleigh.Ah!Dermot, gostariade trocarumapalavrinha comvocê.Será que poderia vir comigo? Você pode reencontrá-los mais tarde nasGraftonGalleries.

–Éclaro,tio.Nosencontramosláentão,Trent.Poucas palavras foram trocadas entre o tio e o sobrinho no curto

trajeto até aHarley Street. Sir Alington se desculpoupor desviarDermotdoseucaminho,egarantiuquesóprecisariadeleporalgunsminutos.

–Querquepeçaaomotoristaparaesperar?–perguntoueleenquantodesciamdocarro.

–Ah,nãosepreocupe,tio.Eupegoumtáxi.–Estábem.NãogostodeobrigarCharlsonatrabalharatétarde.Boa

noite,Charlson.Agora...ondediaboseuboteiaminhachave?O carro se afastou enquanto sir Alington vasculhava inutilmente os

bolsosembuscadachave.–Deve ter icadonomeuoutrocasaco–disseelepor im.–Toquea

campainha,porfavor.AchoqueJohnsonaindaestáacordado.E, de fato, em menos de sessenta segundos a porta foi aberta pelo

imperturbávelJohnson.– Esqueci as chaves, Johnson – explicou sir Alington. – Leve dois

uísquescomsodaatéabiblioteca,porfavor.–Podedeixar,sirAlington.Omédicocaminhouatéabibliotecaeacendeuas luzes.Fezumsinal

paraqueDermotfechasseaportadepoisdeentrar.–Nãovoutomarmuitodoseutempo,Dermot,masháalgoquepreciso

lhe dizer. Será que estou imaginando coisas ou você tem mesmo umacerta...tendressepelamulherdeJackTrent?

Dermotficouvermelho.–JackTrentémeumelhoramigo.–Medesculpe,mas issonão respondeàpergunta. Imaginoquevocê

me considere puritano demais no que diz respeito a divórcio e assuntosrelacionados, mas sou obrigado a lembrá-lo de que você é meu únicoparentepróximoemeuherdeiro.

–Ninguémestápensandoemdivórcio–disseDermot,irritado.

Page 28: Agatha christie - o cão da morte

–Éclaroquenão,eeuseimuitobemporquê.Nãopossolhedizerdoque se trata, mas gostaria de alertá-lo. Claire Trent não é mulher paravocê.

Ojovemencarouoolhardotiosempestanejar.–Eu seidisso, emaisdoqueo senhor imagina, semepermitedizer.

Tambémseiporquefoiaojantar.–Como?Omédicopareciaconfuso.Eleperguntou:–Oquevocêsabe?–Tenhocertezadequeosenhorfoilácomoumprofissional.SirAlingtoncaminhavadeumladoparaooutro.– Você está certo, Dermot. Eu não poderia lhe contar eu mesmo,

apesardequemaiscedooumaistardetodosvãoficarsabendo...Dermotfranziuocenho.–Osenhorentãojátemcerteza?–Sim.Afamíliasofredeinsanidade...peloladodamãe.Umcasotriste,

muitotriste.–Nãopossoacreditar.–Imaginoquenãomesmo.Paraumleigo,hápoucossinaisaparentes.–Eparaumespecialista?–Aevidênciaéindubitável.Numcasocomoesse,opacientedeveser

internadooquantoantes.–MeuDeus! – exclamouDermot. –Nãopodem fazer isso a troco de

nada.–MeucaroDermot!Ointernamentonãoseria indicadoseocasonão

pusesseemriscooconvíviosocial.–Umriscogravíssimo,suponho.Sópodeseralgumamaniahomicida.

Eraesseocasodamãe?Dermot deu as costas ao tio com um rugido e escondeu o rosto na

palmadasmãos.Claire...apalidez,oscabelosdourados!–Sinto-menaobrigaçãodealertá-lo–continuouomédico, friamente.

–Ascircunstânciassãograves.–Claire...–murmurouDermot.–MinhapobreClaire.–Defato,éumapenaparaela.Derepente,Dermotergueuorosto.–Eunãoacredito.–Oquê?– Disse que não acredito. Médicos se enganam. Todo mundo sabe

disso.Eosespecialistassetornamfanáticos.

Page 29: Agatha christie - o cão da morte

–MeucaroDermot!–exclamousirAlington,irritado.– Já lhedissequenãoacredito.E,mesmoque fosseverdade,nãome

importo.EuamoClaire.Seelaquiservircomigo, levo-apara longe...muitolonge. Fora do alcance de médicos intrometidos. Vou defendê-la, cuidardela,protegê-lacommeuamor.

–Vocênãovaifazernadadisso.Poracasoenlouqueceu?Dermotsoltouumarisadadebochada.–Éclaroquevocêsópodiadizerisso.–Porfavor,Dermot...–orostodesirAlingtonestavaroxoderaiva.–

Sevocê izerumacoisadessas,umacoisavergonhosacomoessa...éo im.Vouterdesuprimiraajudaqueagoraestoulhedando,efaçotambémumnovotestamentodeixandotudooquetenhoparadiversoshospitais.

–Façaoqueacharmelhor.Omalditodinheiro é seu–disseDermotnumavozabafada.–Ficareicomamulheraquemamo.

–Umamulherque...– Diga mais uma palavra sobre ela e... por Deus! Terei de calá-lo –

gritouDermot.Um tinir de copos fez com que ambos se virassem. No calor da

discussão, não haviam percebido que Johnson entrara na sala trazendoconsigo os drinques. Seu rosto continuava imperturbável como o de umbomempregado,masDermotseperguntavaoquantoeletinhaouvido.

– Jábasta, Johnson–disse sirAlington, bruscamente. –Vocêpode irdormir.

–Obrigado,senhor.Boanoite.Johnsonsaiu.Os dois homens se olhavam. A interrupçãomomentânea acalmara a

tempestade.– Tio – disse Dermot –, eu não devia ter falado com o senhor desse

jeito.Entendooseupontodevista.MasjáfazmuitotempoqueamoClaireTrent.Nunca falei sobre isso comela, porque JackTrent é omeumelhoramigo. Mas nas circunstâncias atuais isso já não é relevante. E não sãoquestões inanceirasquevãomedeter.Essa ideiaéabsurda.Achoque jádissemostudooquetínhamosanosdizer.Boanoite.

–Dermot...– É inútil discutir. Boa noite, tio Alington. Me desculpe, mas é assim

quetemdeser.Elesaiuapressado, fechandoaporta.Ocorredorestavaescuro.Eleo

atravessou,abriuaportadafrenteebateu-aatrásdesi.Na rua, chamou um táxi que parara numa casa logo adiante para

Page 30: Agatha christie - o cão da morte

deixarumaencomenda.OmotoristaolevouatéasGraftonGalleries.Dermot icouporuminstanteparadonaportadeentradadosalãode

baile.Sentia-sedesnorteado,acabeçagirando.O jazzestridente,osorrisofácil dasmulheres... Era como se ele estivesse prestes a pisar numoutromundo.

Estaria sonhando? Era inacreditável a discussão que acabara de tercom o tio. Claire passou por ele lutuando, como um lírio, no seu vestidobranco e prateado que, colado ao corpo, ressaltava ainda mais a suaelegância.Elasorriuparaele,umsorrisocalmoesereno.Sópodiaserumsonho.

Amúsica terminou. Ela se aproximoudele, sorriu junto ao seu rosto.Como se sonhasse, ele convidou-a para dançar. A música estridenterecomeçava,eClaireestavaemseusbraços.

Elesentiuqueelafraquejava.–Estácansada?Preferepararumpouco?–Sevocênãoseimporta.Gostariadeiraumlugarondepudéssemos

conversar.Tenhoalgoalhedizer.Não era sonho. Ele se deu conta e foi como levar umbaque. O rosto

delajánãotinhanadadecalmoesereno.Estavatomadodeansiedade,depânico.Quantoelasabia?

Eleencontrouumcantinhomaisisolado,ondesentaram-seladoalado.–Bem–disse ele, imprimindoà vozuma falsa leveza. –Há algoque

vocêgostariademecontar?–Sim.Ela olhava para baixo e brincava nervosamente com a borla que

enfeitavaseuvestido.–Nãoseicomocomeçar...–disse.–Vocêpodeserfrancacomigo,Claire.–Gostariaquevocê...seafastasseporumperíodo.Ele foi pego totalmente de surpresa. Jamais esperava que ela lhe

dissesseaquilo.–Querqueeumeafaste?Porquê?–Émelhorsermossinceros,não?Eu...seiquevocêéumcavalheiroe

meuamigo.Queroqueseafaste,porque...estougostandodevocê.–Claire...Eleficoumudo.Nãoconseguiadizermaisnada.–Porfavor,nãovápensarqueeusouloucaosu icienteparaimaginar

que... que um dia você também se apaixone por mim. É que... ando umpoucotristee...Achomelhorvocêseafastar.

Page 31: Agatha christie - o cão da morte

– Claire, por acaso você não percebeu... não percebeu o quanto meimporto...Desdequeaconheci...

Surpresa,elalevantouosolhos.–Seimporta?Desdequando?–Desdeocomeço.– Ah! – exclamou ela. – Então por que nãome disse nada? Naquela

época, poderíamos ter icado juntos. Agora... é tarde demais. Não, não...Estoulouca.Nãoseioquedigo.Jamaispoderíamosficarjuntos.

–Claire,porqueéquevocêdissequeagoraé tardedemais?Omeutio... ele tem algo a ver com isso? O que ele sabe sobre você? O que elepensa?

Elafezquesimcomacabeçaelágrimasrolaramdosseusolhos.– Escute, Claire, não dê ouvidos a nada disso. Esqueça. Vou levá-la

para longedaqui.VamosparaosMaresdoSul,paraalguma ilha.Lávocêseráfelizepodereiprotegê-la.Cuidareidevocêparasempre.

Eleabraçou-a,puxando-aparapertodesi.Ela começoua tremeratéqueselivroudele.

–Ah,não.Por favor, seráquevocênãoentende?Agoraé impossível.Seriahorrível,horrível.Sempreprocureiagircorretamente,eagora... issoseriaerrado.

Ao ouvir aquelas palavras, ele hesitou. Ela lhe lançava um olhar desúplica.

–Porfavor–insistiuela–,nãoseriacorreto...Sem mais uma palavra, Dermot levantou-se e deixou-a. As palavras

delatinham-noconvencido,eelesesentiaincapazdeargumentar.Aosairembuscadochapéuedocasaco,esbarrouemTrent.

–Eentão,Dermot!Jávaitãocedo?–Sim.Nãoestoucomvontadededançarhoje.–Maldita noite! – desabafouTrent, angustiado. –Mas omelhor é eu

nãoficarmequeixando.A ideia de que o amigo pudesse se abrir com ele deixou Dermot

horrorizado.Erasóoquelhefaltava!–Bem,atélogo–apressou-seemdizer.–Estouindoparacasa.–Paracasa?Oespíritodissequeeramelhornão...–Masvouarriscar.Boanoite,Jack.O apartamentodeDermotnão icava longe.Resolveu ir caminhando,

na esperança de que o ar fresco da noite pudesse ajudá-lo a esfriar acabeça.

Abriuaportacomachaveefoiatéoquarto,ondeacendeualuz.

Page 32: Agatha christie - o cão da morte

Naquelemesmomomento,pelasegundaveznaquelanoite,aquiloqueele caracterizara como um sinal vermelho se impôs com toda a força. Aintensidade do alerta era tão grande que por um momento ele até seesqueceudeClaire.

Perigo! Ele estava em perigo. Naquelemomento, naquele quarto, eleestavaemperigo.

Emvãotentouminimizarparasimesmoorisco,iludindoomedo.Issoporque talvez, no fundo, ele não quisesse deixar de acreditar nopressentimento. Até aquelemomento, o sinal vermelho fora providencial,permitindo que ele evitasse desastres em momentos decisivos. Achandograçadaprópriasuperstição,Dermotdeuumaolhadanoapartamento.Erapossível que algum meliante tivesse entrado e se escondido em algumlugar. Mas não havia ninguém. O seu criado, Milson, saíra de folga, e oapartamentoforadeixadovazio.

Dermot voltou para o quarto e despiu-se lentamente, com a caraamarrada.Asensaçãodeperigoeramuitoforte.Foiatéagavetaapanharum lenço e de repente tomou um susto que o deixou paralisado. Haviaalgumacoisaestranhanomeiodagaveta,umobjetosólido.

Seus dedos nervosos afastaram os lenços, e ele tirou da gaveta oobjetoqueescondiam:umrevólver.

Totalmente perplexo, Dermot examinou-o com cuidado. Era de ummodelo pouco comum, e havia indícios de que tivesse sido usadorecentemente. Fora isso,Dermot não sabiamais nada. Alguém colocara orevólver na gaveta naquela mesma noite. A arma não estava lá quandoDermotsevestiraparaojantar,dissoeletinhacerteza.

Ele ia guardá-la de volta na gaveta quando a campainha tocou,assustando-o. A campainha não parava de tocar, e o barulho ecoavainfernalpeloapartamentosilenciosoevazio.

Àquela hora, quem poderia ser? A resposta emergiu como umapulsaçãoinstintivaepersistente:perigo,perigo,perigo!

Obedecendo a um impulso que não sabia de onde vinha, Dermotapagoualuz,enrolou-senumsobretudoqueestavadobradonoencostodacadeiraefoiatéocorredor.

Havia dois homens do lado de fora. Dermot pôde distinguir umuniformeazul.Umpolicial!

Eleabriuaporta.–Sr.West?–perguntouohomemqueestavanafrente.Dermot teve a impressão de que anos tinham se passado antes de

conseguir responder. Na verdade, foram necessários apenas alguns

Page 33: Agatha christie - o cão da morte

segundosparaqueelerespondessenavozimpessoaldoseucriado:–O sr.West ainda não voltou. O que os senhores querem com ele a

essahoradanoite?–Aindanãovoltou,é?Entãoachomelhorentrarmoseesperarmospor

eleaídentro.–Não,não,deformaalguma.– Meu caro, sou o inspetor Verall, da Scotland Yard, e temos um

mandadodeprisãocontraoseupatrão.Estáaqui.Aturdido,Dermotdeuoufingiudarumaolhadanopapeleemseguida

perguntou:–Masporqueisso?Qualaacusação?–Assassinato.DesirAlingtonWest,daHarleyStreet.Sua cabeça começou a girar, e Dermot cedeu diante das

desagradáveisvisitas.Elefoiatéasaladeestareacendeualuz.Oinspetoroseguiu.

–Dêumabuscapelacasa–ordenoueleaooutrohomem.Depois,dirigiu-seaDermot:–Você iqueaqui.Nempenseemsairparaprevenirseupatrão.Qual

éoseunome?–Milson,senhor.–Quehorasvocêsupõequeseupatrãoretorne?–Eunãosei.Achoquesaiuparadançar.FoiatéasGraftonGalleries.– Faz uma hora que ele saiu de lá. Tem certeza de que não voltou

aqui?–Achoquenão.Setivessevoltado,euoteriaouvidoentrar.Naquelemomento,ooutrohomemveiodasalaaolado.Trazianamão

umrevólver,quelevouatéoinspetor,exultante.Com uma expressão de satisfação estampada no rosto, o inspetor

declarou:– Issopõeumponto inalànossavisita.Eledeve terentradoesaído

sem fazerbarulho.Deveestarescondidoemalgumoutro lugar.Émelhoreuir.Cawley,você icaaqui,casoeleretorne.E iquedeolhonessesujeito.Elepodesabermaiscoisassobreopatrão.

Oinspetorsaiuapressado.DermotsevaleudaprolixidadedeCawleyefezcomqueopoliciallhecontassetodososdetalhesdocaso.

– É tudo muito simples – revelou Cawley. – Logo descobriram oassassinato.Johnson,ocriado,acabaradeirsedeitarquandoimaginouterouvidoumtiro.EledesceunovamenteeencontrousirAlingtonmorto,comum tiro no coração. Em seguida nos ligou e, quando chegamos lá, nos

Page 34: Agatha christie - o cão da morte

contouahistória.–Eissoexplicatudo?–arriscouDermot.–Maséóbvio.OjovemWestacompanhouotioatéemcasa,eJohnson

ossurpreendeubrigando.Ovelhoameaçavaescreverumnovotestamento,eoseupatrãoameaçavamatá-lo.Cincominutosdepois,ouve-seumtiro.Oquemaissepoderiaquerer?Estátudomuitoclaro.

E estava mesmo. Dermot sentiu o coração fraquejar quando se deuconta da inquestionável evidência que pesava contra ele. Perigo,realmente.Equeperigo!Nãohavianadaafazersenãofugir.Pôsacabeçapara funcionar. Ofereceu um chá ao policial, que imediatamente aceitou.Elejátinharevistadooapartamentoesabiaquenãohavianenhumaportanosfundos.

Dermotpôdeiratéacozinha.Chegandolá,pôsachaleiranofogoefezalgumbarulho,mexendo nas xícaras e nos pires. Depois foi rapidamenteaté a janela de guilhotina e ergueu o vidro. O apartamento icava nosegundo andar, e do lado de fora havia um pequeno elevador de carga,utilizadoparatransportarmercadorias.

Numa fração de segundo, Dermot estava do outro lado, agarrado aocabodoelevadordecarga,peloqualdescia.

Chegou embaixo com as mãos sangrando e, minutos depois, saiucuidadosamentepelos fundosdoprédio.Aovirarnumaesquina, tromboucom um homem parado na calçada. Para a sua surpresa, era Jack Trent,quejáestavaapardasituação.

–MeuDeus,Dermot!Rápido,nãofiquezanzandoporaqui.Pegando-opelo braço, levou-o por uma rua transversal e depois por

outra.Entraramemumtáxiquepassavaporalidesocupado,eTrentdeuaomotoristaoseupróprioendereço.

– Por enquanto, é o lugar mais seguro. Lá podemos pensar no quefazerdepoisparadespistaressesidiotas.Vimaquinaesperançadepoderalertá-loantesdachegadadapolícia,masjáeratarde.

–Eunemsabiaquevocêjáestavaapardessahistória.Jack,vocênãoacreditaque...

–Éclaroquenão,nemporumminuto.Conheçovocêmuitobem.Mas,independentemente disso, a coisa está bem complicada para o seu lado.Elesapareceramfazendoperguntas...AquehorasvocêchegounasGraftonGalleries, quando saiu etc. Dermot, quem poderia ter feito uma coisadessascomovelho?

– Nem imagino. Seja lá quem for, acho que guardou o revólver naminhagaveta.Deveternosseguidoeobservadodeperto.

Page 35: Agatha christie - o cão da morte

– Aquela sessão foi mesmo muito estranha.Não volte para casa!Perigo!OavisoeraparaovelhoWest.Elevoltouparacasaelevouumtiro.

–Eparamimtambém–disseDermot.–Volteiparacasaedeidecaracomaarmadocrimeeuminspetor.

– Bem, espero que eu pelo menos me safe – disse Trent. – Aquiestamos.

Ele pagou o táxi, abriu a porta e conduziu Dermot pelas escadasescurasatéumquartinhonoprimeiroandar.

Dermot entrou na peça enquanto Trent acendia as luzes. Depois deentrar,Trentdisse:

–Aquiébemseguro.Agorapodemosbotaracabeçaparafuncionarebolarumplano.

– Agi como um idiota – disse Dermot, de repente. – Eu devia terencarado tudode frente.Agoramedou conta. Foi tudoumaarmação.Doquevocêestárindo?

Trent estava recostado na cadeira e ria de tal forma que seu corpochegava a chacoalhar. O som da sua risada era grotesco, e havia algo dehorrívelemsuafigura.Seusolhosemitiamumbrilhosinistro.

–Uma armaçãomuito bem feita – disse ele, arquejando. –Meu caroDermot,vocêcaiucomoumpatinho.

Trentpegouotelefone.–Oquevocêvaifazer?– Chamar a Scotland Yard. Dizer a eles que tenho aqui o que

procuram.Guardadoasetechaves.Sim,tranqueiaportaquandoentreieachaveestánomeubolso.Enãoadiantavocê icarolhandoparaessaoutraporta atrás de mim. Leva ao quarto de Claire, e ela sempre a deixatrancadapelo outro lado. Claire temmedodemim, você sabia? Já faz umtempo.Bastaqueeupensenaquelalongafaca...umafacabema iada.Não,vocênão...

Dermotpularanadireçãodoamigo,quedesúbito izeraaparecerumrevólverameaçador.

– Fazpar comooutro – sorriuTrent. –Ooutroque coloquei na suagaveta,depoisdeatirarnovelhoWest...Oquevocêestáolhandoatrásdemim?Aporta?Nãoadianta.MesmoseClaireaabrisse,etalvezela izesseisso por você... eu atiraria antes de você dar o primeiro passo. Não nocoração, não paramatá-lo. Só para feri-lo e impedir que fugisse. Sou umexcelente atirador, você sabe. Já salvei sua vida uma vez. Fui o maisestúpido.Oqueeuqueroévê-loenforcado.Eafaca...afacaéparaClaire...a bela Claire, tão branquinha, de pelemacia. O velhoWest sabia. Foi por

Page 36: Agatha christie - o cão da morte

issoqueveioaquiestanoite,parametestar.Elequeriame tranca iaremalgumhospícioparaqueeu icasse longedafaca,paraqueeunãoferisseClaire. Mas fui mais esperto. Roubei a chave dele e a sua. Fui emborapoucodepoisdechegarnosalãodedança.Vivocêsairdacasadovelhoeentrei. Emmenosdeumminuto já o tinhamatado.Depois fui para o seuapartamento e deixei lá o revólver. Estava de volta às Grafton Galleriespoucodepoisdevocêchegar.Coloqueiassuaschavesdevoltanoseubolsoquando nos despedimos. Não me importo de lhe confessar isso tudo.Ninguém está ouvindo mesmo e quando você for enforcado sabendo doque iz... Deus, que coisamais engraçada! O que você estámatutando? Oquevocêestáolhando?

–Estoupensandoemalgoquevocêdisseantes.Trent,vocêteriafeitomelhoremnãovoltarpracasa.

–Como?–Olheparatrás!Trent virou-se de súbito. Na soleira da porta que dividia os dois

quartosestavamClaireeoinspetorVerall...Trentfoirápido.Deuumúnicodisparoenãoerrou.Caiuatravessado

por cima da mesa. O inspetor correu para o seu lado, enquanto Dermotolhava para Claire como se estivessem num sonho. Uma torrente depensamentosinvadiuseucérebro.Otio,abriga,oseucolossalengano.AsleisdaInglaterraquejamaispermitiriamaClaireseparar-sedeummaridoensandecido. “É umapenapara ela...”O planodela e de sirAlington, queTrent farejara... As palavras angustiadas dela: “horrível, horrível!”. Sim,masagora...

Oinspetorlevantou.–Eleestámorto–disseoinspetor,constrangido.– Sim, Jack era um excelente atirador – disse Dermot, e foi como se

ouvisseavozdoamigo.

Page 37: Agatha christie - o cão da morte

OQUARTOHOMEM

Canon Par itt parou ofegante. Correr atrás de trens já não condiziamaiscomasuaidade.Suaaparêncianãoeramaisamesma,eaperdadasilhueta elegante acarretara uma perda correspondente de fôlego. TudofaziapartedatendênciaqueCanonexpressavacomdignidadeaodizer“éomeucoração,sabe?”.

Ele deixou-se afundar aliviado num canto da cabine de primeiraclasse. O calor do ambiente era extremamente reconfortante. Do lado defora,anevecaía.Eraumasortepegarumassentodecantonumaviagemdemoradacomoessaduranteanoite.Terdesesentarnomeiodeoutraspessoas seriahorrível.Nãodavaparaentenderporqueaquele tremnãotinhaumvagão-leito.

Osoutrostrêscantos jáestavamocupadose,aoperceber isso,CanonPar itt se deu conta de que o homem sentado na outra ponta estavasorrindoparaele,comoseoreconhecesse.Eraumsujeitobembarbeado,que estava icando grisalho nas têmporas e cujo rosto não lhe eraestranho. Que ele trabalhava com a lei era visível na sua aparência.Ninguém poderia duvidar. E, de fato, sir George Durand era um famosoadvogado.

–Bem,Par itt–observouele,comuma ironiabem-humorada–,vocêtevemesmoqueapertaropasso,não?

– O que não é nada bom para o meu coração, receio – retorquiuCanon.–Masquecoincidênciaencontrá-loaqui,sirGeorge.Estáindoparaonorte?

– Newcastle – respondeu sir George, lacônico. – Falando nisso –acrescentouele–,poracasovocêconheceodr.CampbellClark?

O homem sentado do mesmo lado que Canon na cabine inclinougentilmenteacabeça.

–Nosconhecemosnaplataformadaestação–continuouoadvogado.–Outracoincidência.

Canon Par itt olhou com interesse para o dr. Campbell Clark. Ele jáouvirafalardomédico.Eraumconhecidoespecialistaemdoençasmentais.Seu mais recente livro,O problema do inconsciente , estava entre os maisdiscutidosdoano.

CanonPar ittreparounamandíbulaquadrada,nosolhosazuisfriosecalmos,nocabeloruivoquenãotinhanenhumtoquedecinza,masestava

Page 38: Agatha christie - o cão da morte

icando escasso. A impressão que se tinha era a de um homem de umapersonalidademuitoforte.

Seguindo um impulso perfeitamente natural, Canon olhou para oassentobemàsua frente,esperandoencontrarnovamenteumsorrisodereconhecimento. Mas o quarto ocupante da cabine era um completodesconhecido.Possivelmenteumestrangeiro.Eraumhomemligeiramentebronzeado,deaparênciainsigni icante.En iadonumsobretudo,elepareciadormirprofundamente.

– Canon Par itt, de Bradchester? – perguntou o dr. Campbell Clark,animado.

Canonsentiu-selisonjeado.Osseussermõescientí icostinhammesmoatraídoaatençãodeumbomnúmerodepessoas,especialmentedepoisdeserem comentados pelos jornais. Bem, era disso que a igreja precisava:umaabordagemmoderna,afinadacomosnovostempos.

– Li o seu livro com grande interesse, dr. Clark – declarou ele. –Apesardaspassagensmaistécnicasquetivedificuldadeemacompanhar.

Durandseintrometeunaconversa:– Você prefere conversar ou dormir, Canon? Confesso que sofro de

insôniaeportantosouafavordaprimeiraopção.– Ah, certamente! Sem dúvida – disse Canon. – Di icilmente durmo

nessasviagensnoturnas,eolivroquetrouxeémuitochato.– Nossa reunião aqui não deixa de ser algo notável – observou o

médico,comumsorriso.–RepresentamosaIgreja,aleieamedicina.– Di icilmente icaríamos sem assunto – disse Durand, com uma

risada. – A Igreja fala da perspectiva espiritual, eu falo da perspectivamundanada lei e você, doutor, temumaperspectivamais ampla, que vaido meramente patológico ao parapsicológico! Não deixaríamos nenhumângulosemexplorar.

–Mas icariafaltandoalgumacoisa.Háalgoquevocêdeixoudefora–disseodr.Clark–equecreioserimportante.

–Oquê?–perguntouoadvogado.–Opontodevistadohomemcomum,essequeencontramosnasruas.–Masessepontodevistaémesmoimportante?Nãoéverdadequea

opiniãodaspessoasnasruaségeralmenteincorreta?–Ah,quasesempre.Masaopiniãodohomemcomumtemumacoisa

que falta à do especialista: umviés pessoal.Não é possível nos livrarmosinteiramente desse viés. Descobri isso na minha pro issão. Para cadapaciente realmente doente queme procura, aparecem outros cinco cujosproblemas se resumem a di iculdades de convivência com as pessoas da

Page 39: Agatha christie - o cão da morte

própria casa. As queixas podem ser diversas, uma cãibra na mão doescritor,umadorno joelhodadonadecasa,mastudoseresumea isto:odesconfortoproduzidopeloatritoentreasmentes.

–Amaioriadosseuspacientestemproblemasdenervos, imagino...–disseCanon,numtomdepreciativo.

Seusprópriosnervoslhepareciamemexcelenteestado.–Ah!Eoqueissosigni ica?–retorquiuomédico,semperdertempo.

–Nervos!Aspessoaspronunciamapalavranumtomdesdenhoso,comoosenhor acaba de fazer. Até mesmo riem a respeito. Elas dizem: “Não énada,sãosóosnervos...”.Mas,meuDeus!Aliestáaraizdetudo.Sabemoscomo curar doenças e diversos tipos de indisposições, mas avançamosmuitopouconoquedizrespeitoaoconhecimentodascentenasdecausasobscurasquepodematacarosnervos.

–MeuDeus!–declarouCanonPar itt,quejamaisesperaraporaquelaresposta.–Émesmo?

–Oquesepodefazer?–continuouodr.CampbellClark.–Nosvelhostempos considerávamos o homem um simples animal, corpo e alma, comênfasenaalma.

–Corpo,almaeespírito–corrigiuoclérigo,polidamente.– Espírito? – questionou o doutor com uma careta. – O que os

religiosos queriam dizer com isso? Acho que nunca explicaram direito,talvezpormedodoassunto.

Canonlimpouagargantasepreparandoparaumdiscurso,masparaasua tristezaomédiconão lhedeuamenoroportunidadede tomara fala.Clarksimplesmentecontinuou:

–Eépossívelqueotermomaisadequadosejaespíritosenãoespírito.–Espíritos?–repetiusirGeorgeDurand, levantandoassobrancelhas

comassombro.–Exatamente.Os olhos de Campbell estavam agora ixos no advogado. Inclinou-se

paraafrenteedeuumtapinhanopeitodooutrohomem.– Você tem mesmo certeza de que há apenas um ocupante desta

estrutura?–perguntouelecomarsério.–Poisé issoqueocorpoé.Umacasa que devemosmobiliar, por sete, vinte, quarenta, setenta anos! E noinaloinquilinosemuda,levandosuascoisas,umaporuma,atéqueacasadesmorona, emruínas.Vocêéodonoda casa, temosdeadmitir,masporacasonuncasentenelaapresençadeoutraspessoas?Empregadosquesemovem cuidadosamente, com passos leves e silenciosos, e são notadosapenaspelo trabalhoque realizam?Um trabalhoquevocênão se lembra

Page 40: Agatha christie - o cão da morte

deterfeito.Ouainda,amigos...Estadosdeânimopelosquaisvocêpassa,equeotornam“umaoutrapessoa”,comosecostumadizer.Vocêéoreidocastelo,comcerteza,masnãoseesqueçadequealiestãotambémobobodacorteeoutrasfiguras...

–MeuDeus,Clark!– resmungouoadvogado.–Assimvocêmedeixanuma posição di ícil. Seria a minha mente como um campo de batalha,disputado por diferentes personalidades em con lito? É essa a últimapalavradaciência?

Omédicodeudeombros.– Se o corpo é um campo de batalha, por que seria diferente com a

mente?–Muitointeressante–disseCanonParfitt.–Aciênciaémuitocuriosa...Eelepensava:“Quetemaparaumsermão!”.Mas o dr. Campbell Clark se recostara novamente na poltrona, e

quando voltou a falar foi num tom desapaixonado e meramenteprofissional:

–Parafalaraverdade,oquemelevaaNewcastleestanoiteéumcasode dupla personalidade. Um caso muito interessante, de um sujeitoneurótico,éclaro,masgenuíno.

– Dupla personalidade? – repetiu sir George Durand, pensativo. – Émais comum do que se imagina, não é verdade? Há também casos deamnésia.Outrodiasediscutiaissonotribunal,emrelaçãoauminventário.

Odr.Clarkmoveuacabeçaafirmativamente.– O caso mais clássico – disse ele – foi o de Felicie Bault. Talvez

tenhamouvidofalar...–É claro–disseCanonPar itt. –Li a respeitonos jornais.Mas já faz

umbomtempo...seteanos,senãomeengano?Odr.Clarkassentiucomacabeça.– Amoça se tornou uma dasmais famosas da França. Cientistas de

todoomundoviajaramparaconhecê-la.Elatinhanadamenosquequatropersonalidadesdistintas.EramconhecidascomoFelicie1,Felicie2,Felicie3etc.

–Masnãofoiemrelaçãoaessecasoquesesugeriuapossibilidadedeumafraude?–perguntousirGeorge,desconfiado.

–AspersonalidadesFelicie3eFelicie4eramquestionáveis–admitiuomédico.–Masosfatosmaisimportantespermanecemacimadequalquersuspeita. Felicie Bault era uma camponesa daBretanha. A terceira numafamília de cinco ilhos. O pai era alcoólatra e a mãe sofria de problemasmentais.Numacessodeloucuramotivadopelabebida,opaiestranguloua

Page 41: Agatha christie - o cão da morte

mãe e acabou recolhido a uma instituição, onde passou o resto da vida.Felicietinhacincoanosdeidade.Algumasalmascaridosasseinteressarampelas crianças, e Felicie foi criada e educada por uma solteirona inglesa,quemantinhaumabrigoparamenoresabandonados.Maserapoucooquesepodiafazerpelamenina.Elaeradescritacomomuitolerda.Sóaprendeualereescrevercomextremadi iculdadeepareciaincapazdedesenvolverhabilidades manuais. Essa inglesa, a srta. Slater, tentou educá-la para oserviço doméstico e encaminhou-a para diversos empregos quando amenina atingiu a idade apropriada. Mas Felicie não permaneceu emnenhumdesseslugares,porcausadesuaestupidezepreguiça.

O doutor fez uma pausa. Canon descruzou as pernas e puxou paramaispertodocorposeucobertordeviagem.Viuqueohomemsentadoàsuafrentesemovera.Osolhosdele,queatéentãopermaneciamfechados,estavam abertos, e havia neles algo de inde inido e debochado queincomodou Canon. Era como se o homem ouvisse secretamente o quediziam.

–Existeumafotogra iadeFelicieBaultaosdezesseteanosdeidade–continuouomédico.–Alielaaparececomo ísicorústicoepesadodeumacamponesa. Nada nessa imagem sugere que em pouco tempo ela setornaria uma das mulheres mais famosas da França. Mas de fato, cincoanos mais tarde, Felicie Bault teve uma severa crise nervosa. E ao serecuperar começou amanifestar estranhos fenômenos. Os fatos que vourelatar foram atestados por eminentes cientistas. A personalidadedenominada Felicie 1 era indistinguível da Felicie Bault dos últimos 22anos. Felicie 1 escrevia em francês com muita di iculdade e cometendoumasériedeerros.Elanãofalavanenhumaoutralínguaeeraincapazdetocar piano. Felicie 2, ao contrário, falava luentemente o italiano e tinhaalgumdomíniodoalemão.Asuacaligra iaeradiferentedadeFelicie1,eela escreviamuito bem em francês. Além disso, discutia política e arte etocavapianodemaneiraapaixonada.Felicie3tinhamuitascaracterísticasem comum com Felicie 2. Inteligente e aparentemente bem-educada, adiferença entre as duas era de ordem moral. Felicie 3 tinha umcomportamento inteiramente depravado. Ela conhecia todas as gírias eexpressões chiques do demi-monde de Paris. Falava de forma vulgar,blasfemando contra a religião e as “pessoas de bem”. Por im, existiatambémFelicie4,umacriaturaquepareciavivernomundoda lua,muitopiedosa, com o dom da clarividência. Essa quarta personalidade,entretanto, não pôde ser veri icada de forma inteiramente satisfatória.Paraalgumaspessoas,elaeradeliberadamenteforjadaporFelicie3,uma

Page 42: Agatha christie - o cão da morte

espécie de peça pregada por ela no público crédulo. Posso dizer que(talvez com a exceção de Felicie 4) cada uma das personalidades eradistintaeseparada,enãotinhaconhecimentodasoutras.Felicie2erasemdúvida a mais preponderante e às vezes durava por duas semanas, noinal das quais Felicie 1 aparecia de súbito para icar um ou dois dias.Depois disso talvez aparecessem Felicie 3 ou 4, mas as duas raramenteicavam no comando por mais de algumas horas. Cada mudança eraacompanhadaporumaseveradordecabeçaesonoprofundo.Haviaumaperda completa de memória com relação aos outros estados, e apersonalidade emquestão assumia a vida damoça comoque a partir domesmo momento em que a tinha deixado, sem qualquer consciência dapassagemdotempo.

– Impressionante – murmurou Canon. – Impressionante mesmo. Ouniversotemmaravilhasquedesconhecemos.

– O que sabemos com certeza é que ele está cheio de astutosimpostores–observouoadvogadosecamente.

– O caso de Felicie Bault foi investigado por advogados, médicos ecientistas – declarou o dr. Campbell Clark, sem perder tempo. – MaîtreQuimbellier, você se lembra dele? Fez uma investigação minuciosa ecomprovouoquediziamoscientistas.A inaldecontas,ocasonãoéassimtão surpreendente. Já conhecíamos o ovo de duas gemas e as bananasgêmeas,não?Porqueéqueumúnicocorponãopoderiaabrigarumaalmadupla?

–Umaalmadupla?–protestouCanon.Odr.CampbellClarkfixouneleseusolhosazuispenetrantes.– E como poderíamos chamar? Quer dizer, se a personalidade é a

alma...– Ainda bem que tais casos só ocorrem com pessoas estranhas –

observou sir George. – Se fosse um fenômeno comum, traria muitascomplicações.

–Trata-sedeumfenômenoanormal,éclaro–concordouomédico.–Éumapenaquenão tenham feito umestudomais demorado,mas amorteinesperadadeFeliciepôsumfimàhistóriatoda.

–Foiumamorteestranha,nãoéverdade?Semelembrobem...–disseoadvogado,pensativo.

Odr.Campbellconcordoucomacabeça.– Um caso muito di ícil de explicar. Certa manhã, a moça foi

encontradamorta na cama. Era evidente que havia sido estrangulada. E,paraasurpresageral,provou-sedeformade initivaqueestrangularaasi

Page 43: Agatha christie - o cão da morte

mesma.Asmarcasnopescoçoeramdosseusprópriosdedos.Uma formadesuicídioqueexigeumaforçadevontadesobre-humana,apesardenãoser isicamente impossível. Nunca se descobriu o que a levou a umasituação dessas. É claro que seu equilíbrio mental era precário. Seja lácomofor,amortetrágicapôsumfimàsinvestigaçõessobreocaso.

Foi então que o homem sentado na frente de Canon soltou umagargalhada.

Os outros três pularam de susto. Sequer se lembravamda presençado quarto homem. Quando olharam para o lugar onde ele estava, aindaenroladonosobretudo,ohomemriudenovo.

–Peçodesculpas,senhores–disseele,numinglêsperfeito,quetinhaaindaassimumlevesotaqueestrangeiro.

Ele se aprumouna cadeira, revelandoo rostopálido eumbigodinhopreto.

– Sim, me desculpem – disse ele, inclinando a cabeça debochado. –Mas,realmente!Éessaaúltimapalavradaciência?

– O senhor sabe alguma coisa sobre o caso que discutíamos? –perguntouomédico.

–Sobreocaso?Não,maseuaconhecia.–FelicieBault?–Sim.EtambémAnnetteRavel.VocêsnuncaouviramfalardeAnnette

Ravel,nãoéverdade?Masahistóriadeumaéahistóriadaoutra.Podemacreditar no que estou dizendo. Não se sabe nada sobre Felicie Bault senãoseconheceahistóriadeAnnetteRavel.

Eletirouorelógiodobolsoeconferiuashoras.– Sómaismeiahorapara apróximaparada.Tenho tempopara lhes

contarahistória.Querdizer,seestãointeressados.–Porfavor,conte-nosoquesabe–pediuomédico.–Masquemaravilha–disseCanon.–Quemaravilha.Sir George Durand apenas se ajeitou no banco, de forma a poder

dirigirtodaasuaatençãoàhistóriaqueseriacontada.–Meunome–começouoestranhocompanheirodeviagem–éRaoul

Letardeau.Vocêsacabamdemencionarumainglesaquededicouavidaaobrasde caridade, a srta. Slater. Eunascinaquele vilarejodepescadoresda Bretanha, e quandomeus paismorreram num acidente de trem foi asrta. Slater quemme resgatou e salvou de um asilo. Ela tomava conta decerca de vinte crianças, meninas e meninos. Entre elas estavam FelicieBaulteAnnetteRavel.Paraquevocêsentendamocaso,éprecisoqueeulhes descreva a personalidade de Annette. Ela era ilha daquilo que se

Page 44: Agatha christie - o cão da morte

costuma chamar de uma “mulher de vida fácil”, que morrera tísica,abandonada pelo amante. A mãe fora dançarina, e o sonho de Annettetambémeradançar.Aprimeiravezqueavi,Annettetinhaonzeanos.Umiapodegente,deolhosmuitovivos,oradebochados,orapromissores,massempre radiantes. Imediatamente, sim, imediatamenteela fezdemimseuescravo.“Raoul,façaisso”,“Raoul,façaaquilo”.Eeuobedecia.Elaeracomoumarainhaparamim,esabiadisso.

“Íamos juntos até a praia, nós três, pois Felicie nos acompanhava.Chegandolá,Annettetiravaossapatoseasmeiasedançavanaareia.Issoatéperderofôlegoecairnochão.Entãoelanoscontavatudooquequeriaserefazernofuturo:

“–Eu vou ser famosa. Sim,muito famosa.Vou ter centenas,milharesde meias de seda, da seda mais ina. Vou morar num apartamento dosmaischiques.Meusamantesserãojovens,belosemuitoricos.TodaaParisvai me assistir dançar. As pessoas vão se emocionar, gritar, icar loucascomigo dançando.Mas não dançarei no inverno. Nessa época irei para osul embusca do sol. Vou ter uma casa de campo rodeada de laranjeiras.Voucomer laranjas tomandosol,deitadaemalmofadasdeseda.Quantoavocê,Raoul,prometonuncaesquecê-lo,nãoimportaoquantoeuforricaefamosa. Você vai ser meu protegido, e também um homem de sucesso.Felicie vai ser a minha criada... Não, não... ela é muito atrapalhada paraisso...Olheparaasmãosdela.Sãograndesdemais!

“Felicieacabavaseirritandocomabrincadeira,eAnnetteaprovocavaaindamais.

“– Sim, Felicie... você é tão re inada, tão elegante! Uma princesadisfarçadadesapo!

“–Pelomenosmeuspaiseramcasados,aocontráriodosseus–urravaela,rancorosa.

“–Sim,eseupaimatouasuamãe.Umbelocasal.Enadamaisbonitodoqueserafilhadeumassassino.

“– Pior o seu, que abandonou sua mãe até que ela apodrecesse –retorquiaFelicie.

“–Ah,sim!Éverdade...pauvremaman–admitiaAnnette,pensativa.–Éprecisoserforteesaudável.Forteesaudável...

“–Soufortecomoumcavalo!–exclamavaFelicie.“E de fato ela era. Ela tinha o dobro do tamanho de qualquer outra

menina na casa. E nunca icava doente.Mas eramuito burra, entendem?Burra como uma besta de carga. Nunca entendi por que ela e Annetteandavam sempre juntas. Acho que Felicie era fascinada por Annette, ao

Page 45: Agatha christie - o cão da morte

mesmotempoemqueaodiava.PorqueAnnettenãoa tratavamuitobem.Eladebochavadoquantoeralerdaeestúpidaeahumilhavanafrentedosoutros. Felicie icava lívida de raiva. Às vezes eu imaginava que ela iriasaltar com seusdedos grossosnopescoçodeAnnette e esganá-la. Felicienãoeracapazderevidarcomamesmarapidezosinsultosinteligentesdaoutramenina,mashaviaaprendidoumarespostaquesemprefuncionava.Era a referência à sua própria saúde e força. Ela descobrirainstintivamente que Annette invejava a sua força, e que essa era umavantagemquetinhasobreaoutra.

“Umdia,Annettemeprocurouexultante:“–Raoul–disseela–,hojevamosnosdivertiravalercomaburrada

Felicie.Vamosmorrerderir.“–Oquevocêvaifazer?“–Venhacomigoatéatrásdogalpãoquelheconto.“Annette encontrara um velho livro sobre hipnotismo. O assunto era

bemmaiscomplexodoqueelapodiaentender,maspôdepôrempráticaoqueleraemcertaspassagens.

“–Umobjetobrilhante,éissooqueelesdizem.Useiaboladelatãodacabeceira daminha cama, que dá para girar. Fiz comque Felicie olhasseparaelaontemànoite.Pediqueelaseconcentrassenoobjetosemtirarosolhos dele, enquanto eu o fazia girar. Raoul, tive medo! Os olhos delaicaramestranhos.Muitoestranhos.Disseaelaquedeviafazertudooqueeumandasse,eelamerespondeuquefaria.Aísugeriaelaquelevasseatéopátioparacomer,hojeaomeio-dia,umsebodevela.E,sealguém izessealgumapergunta,eladeveriadizerqueaqueleeraobolomaisgostosoquejácomera.Oh,Raoul!Imagineagraça!

“–Maselajamaisvaifazerumacoisadessas–objetei.“– O livro diz que sim. Não que eu acredite totalmente nesse livro,

mas...Seforverdade,vaisermuitoengraçado!“Tambémacheia ideiamuitoengraçada.Avisamosasoutrascrianças

e ao meio-dia estávamos todos no pátio. Pontualmente, Felicie apareceusegurandoumtocodevela.Senhores,vocêsacreditariamseeulhesdisserqueelacomeçouamordiscá-losolenemente?Quantoanós,nãopodíamosacreditarnoquevíamos!Umporum,íamosatéelaeperguntávamos:

“–Estábomissoquevocêestácomendo,Felicie?“Eelarespondia:“–Maséclaro.Éobolomaisgostosoquejácomi.“Não nos aguentávamos e estourávamos de rir. O barulho lá pelas

tantas parece ter acordado Felicie, que se deu conta do que estava

Page 46: Agatha christie - o cão da morte

fazendo.Elapiscouosolhosconfusa,olhouparaavelaedepoisparanós.Passouamãopelatestaemurmurou:

“–Masoqueéqueestoufazendoaqui?“–Comendovela!–gritamos.“– Fui eu que iz você comer. Eu que iz você comer! – exclamou

Annette,dançando.“Feliciearregalouosolhos.ElafoiatéondeAnnetteestavaedisse:“– Então foi você?Você queme fez passar por esse ridículo? Parece

quemelembrodealgumacoisa...Ah!Voumatá-laporisso.“Ela disse aquilo numa voz calma, sem se alterar, mas Annette

disparoueseescondeuatrásdemim.“–Salve-me,Raoul!Estoucommedo.Era sóumabrincadeira,Felicie,

sóumabrincadeira.“–Eunãogostodesse tipodebrincadeira–disseFelicie.–Vocêestá

meouvindo?Euodeiovocê.Odeio.“Derepente,Felicieexplodiunumchorocompulsivoedesapareceuda

nossavista.CreioqueAnnetteseassustoucomoresultadodabrincadeirae não repetiu aquilo.Mas, daquele dia emdiante, a in luência dela sobreFeliciepareceuaumentar.

“Hoje em dia penso que Felicie devia odiá-la, mas ainda assim nãoconseguiaselivrardasuain luência.ElaseguiaAnnettecomosefosseumcachorro.

“Pouco tempo depois, encontraram um emprego para mim, e eu sóvoltavapara casa emalguns feriados.Nunca levarama sério o desejo deAnnettedesetornarumadançarina,maseladesenvolveuumabelavoz,easrta.Slaterconsentiuquefosseestudarcanto.

“Annette não era preguiçosa. Ela trabalhava febrilmente, semdescanso. E a srta. Slater tinha de controlá-la para que ela não seexcedesse.Umdiaelamedisse:

“– Você sempre gostou de Annette. Diga a ela que não se desgastetanto.Ultimamenteandoutossindo.Nãogostodisso.

“Um tempo depois, tive de me afastar para longe por causa dotrabalho.RecebiumaouduascartasdeAnnette,masdepoisnãotivemaisnotícias.Acabeiindoparaoexteriorporcincoanos.

“Inteiramenteporacaso,quandoretorneiaParisfuisurpreendidoporumpôsterqueanunciavaumaapresentaçãodeAnnetteRavelli, comumafoto da moça. Reconheci-a imediatamente e fui ao teatro para vê-la.Annettecantavaemfrancêseemitaliano.Elaeramaravilhosanopalco.Aofinaldoespetáculo,fuiatéocamarim,eelamerecebeu.

Page 47: Agatha christie - o cão da morte

“– Raoul! – exclamou, estendendo-me as suas mãozinhas pálidas. –Queesplêndido!Porondeandoutodosessesanos?

“Teria contado tudo a ela, mas acho que não estava realmenteinteressada.

“– Veja só! – disse ela, indicando com um gesto os buquês de loresespalhadospeloquarto.

“–Asrta.Slaterdeveestarorgulhosa–eudisse.“–Aquelavelha?Defato.Elamemandouparaoconservatório,sabia?

Para que eu fosse uma cantora de recitais. Mas sou uma artista! É noteatrodevariedadesquepossorealmentemeexpressar.

“Naquele exato momento, entrou no camarim um homem de meia-idade,bonitoemuitobemvestido.LogoviqueeraoprotetordeAnnette.Ohomemmeolhoudesconfiado,eAnnetteexplicouquemeuera.

“–Umamigodeinfância.VeioaParis,viumeupôsteretvoilà!“Ohomemfoimuitogentilebem-educado.Enquantoeuaindaestava

ali,deudepresenteaAnnetteumbraceletederubisediamantes,queelemesmo prendeu em seu pulso. Levantei-me para ir embora, e ela soltouumsuspiroelançou-meumolhardetriunfo.

“– Cheguei onde eu queria, não cheguei? Você está vendo? Tenho omundodiantedemim.

“Masaodeixaro camarimaouvi tossir, uma tosse áspera e seca.Eusabiaoquesignificava.Aherançadamãetísica.

“Encontrei-adois anosmais tarde.Tinhavoltadoparaa casada srta.Slater. Sua carreira acabara. Estava sendo consumida pela tuberculose, eosmédicosdiziamquenadapodiaserfeito.

“Ah! Lembro-me daquele dia como se fosse hoje, e acho que jamaisvou esquecer. Ela estava deitada numa espécie de cabana armada nojardim.Mantinham-na do lado de fora dia e noite. As bochechas estavamcavadasevermelhas,osolhosbrilhantesefebris,eelatossiasemparar.

“Annette me cumprimentou com uma espécie de desespero quemeassustou.

“– É tão bom vê-lo, Raoul. Sabe o que osmédicos dizem? Que possonão melhorar. Dizem isso nas minhas costas, é claro. Na minha frentedizemapenascoisasagradáveiseconsoladoras.Masétudomentira,Raoul,tudomentira! E eunão voume entregar dessa forma.Morrer? Comumavida todapela frente?Oque importaéanossavontadedeviver.Éoquedizemosgrandesmédicos.Nãosou fraca,nãovoumedeixar levar. Jámesintomuitomelhor,muitomelhor,vocêentende?

“Ela se erguia apoiando o corpo no cotovelo, a im de que suas

Page 48: Agatha christie - o cão da morte

palavras fossemouvidasdentrodecasa,masacaboutendoumataquedetossequesacudiuseucorpotodo.

“– Essa tosse... não é nada – disse ela, com a voz entrecortada. –Tampouco tenho medo de hemorragias. Vou surpreender os médicos. Oquecontaéavontade.Lembre-sedisso,Raoul.Euvouviver.

“Eraumacenahorrível,entendem?Realmentehorrível.“Naquelemesmomomento, FelicieBault apareceu comumabandeja.

Umcopode leitequente.Elaalcançou-oparaAnnetteeobservou-abebercomumaexpressãoqueparamimpareceuincompreensível.Umaespéciedesatisfaçãopetulante.

“Annette também percebeu o olhar. Ela atirou o copo no chão comforça,fazendocomqueseespatifasse.

“–Vocêviuacaradela?Agoradeuparameolhardessamaneira.Estáfelizquevoumorrer!Sim,paraelaéummotivoderegozijo.Fazcomqueelasesintaaindamaisforteesaudável.Olheparaela,nunca icadoente!Equevantagemhánisso?Paraqueprestaessacarcaça?Não temutilidadenemparasimesma.

“Felicieinclinou-seejuntouoscacosdocopopartido.“–Nãomeimportocomoqueeladiz–cantarolou.–Queimportância

pode ter? Pelo menos sou uma moça respeitável. Quanto a ela, não vaidemorarmuitoparaque conheça as chamasdopurgatório. Souumaboacristãemecalo.

“–Vocêmeodeia!–gritouAnnette.–Vocêsempremeodiou.Maseuaindadominovocê.Possoobrigá-laafazeroqueeuquiser.Agoramesmo,bastaumapalavraminhaparavocê cairde joelhosaquinagramadiantedemim.

“–Vocêéabsurda–disseFelicie,temerosa.“– Mas é verdade. Você vai fazer. Para me agradar. Ajoelhe-se. É

Annettequemestápedindo.Dejoelhos,Felicie.“Sejapelotomextraordináriodesúplica,sejaporalgumaoutrarazão

maisobscura,Felicieobedeceu.Elacaiuvagarosamentedejoelhos,comosbraçosmuitoabertoseumaexpressãoindefinida,estúpida,norosto.

“Annetteatirouacabeçaparatrásesoltouumagargalhada.“– Veja que cara de estúpida! Que coisa mais ridícula! Pode se

levantar agora, Felicie, obrigada! Não adianta icar com essa caraamarrada.Écomotemdeser:eudominoevocêobedece.

“Exausta, ela voltou a se recostar sobre os travesseiros. Com todacalma,Feliciepegouabandejaecomeçouacaminharnadireçãodacasa,lançando para trás, por cima do ombro, um olhar duro de ressentimento

Page 49: Agatha christie - o cão da morte

quemeassustou.“QuantoAnnettemorreu,eunãoestavalá.Masseiquefoiumamorte

horrível. Ela lutou contra a morte até o im, como se pudesse vencê-la,agarrada à vida com desespero. Já sem fôlego, ela não podia deixar derepetir:

“– Eu não vou morrer, estão me ouvindo? Eu não vou morrer. Vouviver,viver.

“Asrta.Slatermecontoutudoissoquandovolteiláparavisitá-la,seismesesdepois.

“–Meu pobre Raoul – disse ela, gentilmente –, você a amava, não éverdade?

“–Muito.Masoqueeupoderiaterfeito?Nãovamosmaisfalarsobreisso.Elaestámortaagora.Tãocheiadevida,tãovibrante,masmorta.

“Asrta.Slatereraumamulhersensível.Elamudoudeassunto.Estavamuito preocupada com Felicie. A moça tivera uma espécie de colapsonervoso muito esquisito, depois do qual seu comportamento mudararadicalmente.

“– Você acredita – declarou a srta. Slater, depois de uma brevehesitação–queelaestáaprendendoatocarpiano?

“Não acreditei. Felicie aprendendo a tocar piano? Absurdo. Ela seriaincapazdedistinguirumanotadaoutra.

“–Masdizemqueela temtalento–continuouasrta.Slater.–Eunãoconsigo entender... sempre a considerei... bom, você sabe, Raoul, elasemprefoiumameninalentaeestúpida.

“Euassenticomacabeça.“–Elaestácommodostãoestranhos.Nãoseioquepensar.“Minutos depois, entrei na sala de leitura. Felicie tocava piano. Ela

tocavaamesmacançãoqueouviAnnettecantaremParis.Podemimaginara minha surpresa. E então, percebendo que eu entrara na sala, elainterrompeuamúsicaeolhouparamim.Eraumolharirônicoeinteligente.Porummomentopenseique...

“–Veja!–disseela.–SenãoéomonsieurRaoul!“Éimpossívelparamimdescreveraformacomoeladisseaquilo.Para

Annette, eu nunca deixara de ser Raoul. Felicie, ao contrário, sempremechamava de monsieur, porque nos conhecêramos já crescidos. Mas elaagora dizia aquilo de uma forma inteiramente diferente. Era como se, aoexagerarumpoucoomonsieur,elasedivertissecomafrase.

“–Ora,Felicie–gaguejei–,comovocêestádiferente.“– Estou? – perguntou ela, re letindo. – Que estranho.Mas chega de

Page 50: Agatha christie - o cão da morte

tantas formalidades. A partir de agora vou chamá-lo de Raoul. Nãobrincávamos juntos quando crianças? A vida foi feita para a gente sedivertir.VamosfalarumpoucodapobreAnnette,mortaeenterrada.Seráqueestánopurgatório?

“E ela cantarolou um trecho demúsica. Desa inada,mas as palavraschamaramaminhaatenção.

“–Felicie,vocêfalaitaliano?“–Eoquetemisso?Talvezeunãosejatãoestúpidaquantopareça–

disseela,soltandoumagargalhada.“–Queestranho...–murmurei.“–Voulhedizerumacoisa.Souumaexcelenteatriz,emboraninguém

nunca tenha suspeitado. Posso representar diversos papéis, e de formamuitoconvincente.

“Ela soltououtra gargalhadae correupara foradoquarto antesqueeupudessedetê-la.

“Eu a vi mais uma vez antes de ir embora. Dormia numa cadeira.Dormia profundamente e roncava. Fiquei observando-a, fascinado erepugnado. Semmaisnemmenoselaacordou, comose levasseumsusto.Seusolhosdurosesemvidaencontraramosmeus.

“–MonsieurRaoul...–disseelamecanicamente.“– Sim, Felicie. Estou indo. Gostaria de ouvi-la tocar mais uma vez

antesdeir.“–Tocar?Tocaroque,senhorRaoul?“–Piano,comohojedemanhã.“Elameolhoudesconfiada.“–Comoéqueumadesajeitadacomoeupoderiatocarpiano?“Ela fezumapausa, como se re letisse, e entãopuxou-meparaperto

dela.“–MonsieurRaoul, coisasesquisitasestãoacontecendonessacasa!É

preciso tomar cuidado. Mexem nos relógios. Sei muito bem o que estoudizendo.Eétudocoisadela...

“–Delaquem?“– Annette. Estava sempre me atormentando, quando viva. Agora,

morta,saidasepulturaparamepregarpeças...“Olhei irme nos olhos dela, que, arregalados, estavam tomados de

horror.“–Elaéruim.Realmenteruim.Escuteoqueeuestoudizendo.Annette

não hesitaria em roubar o pão da sua boca, o casaco das suas costas,aalmadoseucorpo...

Page 51: Agatha christie - o cão da morte

“Elaapertoumeubraçocomforça.“– Tenhomedo,muitomedo. Escuto a voz dela. Não nomeu ouvido,

mas naminha cabeça – disse Felicie, batendo com a ponta dos dedos natesta. – Annette vai me levar daqui, para longe. O que vou fazer? O queserádemim?

“Ela estava a ponto de gritar de desespero. Tinha nos olhos o terrorbestialdeumanimaldesgarrado.

“De repente ela sorriu. Um sorriso calmo e ao mesmo tempodeterminadoquemedeixouarrepiado.

“–Seissoacontecer,monsieurRaoul...tenhomãosmuitofortes,muitofortes...

“Atéentão,eununcarepararadireitonasmãosdela.Agoramedavamarrepios. Dedos quadrados e brutais. Terrivelmente fortes, como elamesma dissera. Fui tomado de uma náusea di ícil de descrever. Eram asmesmasmãoscomqueopaidelaestrangularaamãe...

“FoiaúltimavezqueviFelicieBault.Logodepoisdisso,viajeiparaaAméricadoSul.Retorneidelásódoisanosdepoisdamortedela.Lialgumacoisa nos jornais sobre a vida dela e suamorte súbita. Esta noite, iqueisabendo demais coisas pormeio dos senhores. Felicie 3 e Felicie 4? Elaeramesmoumaótimaatriz!”

Otremderepentediminuiuamarcha.Odesconhecidoseaprumounobancoeabotoouosobretudo.

– Qual é a sua teoria sobre o caso? – perguntou o advogado,inclinando-separafrente.

– É di ícil de acreditar... – disse Canon Par itt, e voltou a icar emsilêncio.

Omédiconãodissenada.EleolhavafixamenteparaRaoulLetardeau.–Roubar o pão da sua boca, o casaco das suas costas, a alma do seu

corpo...–repetiuofrancêsemvozbaixa.Eleselevantou.–Paramim,ahistóriadeFelicieBaultéahistóriadeAnnetteRavel.Os

senhoresnãoaconheceram.Eusim.Elaeramuitoapegadaàvida...Com amão na porta, pronto para deixar a cabine, ele de repente se

virou,inclinou-seedeuumabatidinhanopeitodeCanonParfitt.–Monsieurledocteur acabadenosinformarqueissotudo–disseele,

dando outra batidinha no estômago de Canon e fazendo o clérigoestremecer – é apenas uma residência. Agora me diga. O que o senhorfariaseencontrasseumladrãonasuacasa?Atirarianele,não?

– Não – exclamou Canon. – De forma alguma. Pelomenos não neste

Page 52: Agatha christie - o cão da morte

país.Mas suas palavras não foram ouvidas pelo desconhecido, que saiu

batendoaportadacabine.Oclérigo,oadvogadoeomédicoforamdeixadosasós.Oquartocanto

ficouvazio.

Page 53: Agatha christie - o cão da morte

ACIGANA

IMacfarlane já tinha reparado que seu amigo, Dickie Carpenter, não

gostavadeciganas.Elenuncasouberaomotivodaquelaaversãopeculiar.Mas, quandoonoivadodeDickie eEstherLawes se rompeu, as reservasentreosdoishomenscaíramporterra.

Macfarlaneeranoivodairmãmaisjovem,Rachel,hácercadeumano.Ele conhecia ambas as irmãs Lawes desde criança. De temperamentocalmoeponderado,elerelutaraemadmitiraatraçãocadavezmaiorquecomeçara a sentir pelo rosto ainda ligeiramente infantil de Rachel e porseus ternos olhos castanhos. Não era tão bela quanto Esther, mas muitomaisverdadeiraedoce.OsdoishomenstinhamsetornadomaispróximosdepoisdonoivadodeDickiecomairmãmaisvelha.

Eagora,depoisdepoucassemanas,aquelenoivadoacabara,eDickie,umsujeitodescomplicado,estavaarrasado.Atéaquelemomento,avidadojovemdecorrera tranquila.Acarreiranamarinha forabemescolhida.Eletinha uma inclinação nata para a vida no mar. Era meio viking. Suanatureza simples e primitiva era imune a qualquer sutileza de ordemintelectual.Elepertenciaàquelaclassepoucoarticuladadejovensinglesesquesãoalheiosàsprópriasemoçõesetêmdi iculdadedeexplicaroquesepassanaprópriacabeça.

Macfarlane, um escocês austero, com uma imaginação célticaescondida em alguma parte, escutava e fumava enquanto o amigo sedebatia para dar vazão a uma torrente de pensamentos incoerentes. Elesabia que o desabafo estava por vir, mas esperava algo diferente. Paracomeçar,EstherLawesnãofoisequermencionada.Apenas,aoqueparece,umalembrançaaterrorizantedainfância.

–Tudocomeçoucomumsonhoquetivequandocriança.Nãoerabemumpesadelo.Ela...acigana,vocêentende?Apareciaemtodosessessonhosantigos. Mesmo em sonhos bons. Quer dizer, sonhos bons na cabeça deumacriança,comfestas,bolos,brinquedos.Euestavafeliz,brincando,ederepentesentia,sabia,queselevantasseosolhoselaestarialá,depé,comosempremeobservando...Comolhostristes,entende?Comoseelasoubessede alguma coisa que eu não sabia... Não sei explicar por que aquilo meincomodava tanto...masme incomodava! Sempre! Eu acordava berrando,empânico,eminhababádizia:“Dickiesonhoucomaciganadenovo!”.

Page 54: Agatha christie - o cão da morte

–Edeciganasdeverdade?Nuncatevemedo?– Só recentemente vi uma. Também foi estranho. Eu estava atrás de

umdos ilhotesdanossacadela.Eletinhafugido.Saípelaportadojardimeseguiporumdoscaminhosquelevavampela loresta.MorávamosemNewForest naquela época, como você sabe. Acabei chegando a uma clareiraondehaviaumapontedemadeirasobreumriacho.Bemaoladodaponteestava uma cigana... com um lenço vermelho amarrado na cabeça...exatamente comono sonho. Fui tomadopelomedo! Ela olhouparamim...do mesmo jeito... como se soubesse de algo que eu não sabia, como selamentassealgumacoisa.Eentão,sacudindoacabeça,eladissecomcalma:“Seeufossevocê,nãoirianessadireção”.Nãoseiporque,masaquilomeapavorou. Saí correndo pela ponte. Acho que estava podre. De qualquerforma,apontecaiu,e fui levadopelacorrenteza.Umacorrentebemforte.Quasemeafoguei.Quasemeafoguei! Jamaisvouesquecer.Emepareceuquetudotinharelaçãocomacigana.

–Bem,elaavisouparavocênãoatravessar.–Decertaforma,sim–admitiuDickie.Depoisdeumapausa,elecontinuou:– Eu não lhe contei esse sonho por causa do que aconteceu depois.

Achoquenão,pelomenos.Osonhoécomoocomeçode tudo,entende?Édaliquevemessasensaçãoesquisitadequefalo.Essacoisaquetenhocomciganas.MasagoravoucontaroqueaconteceunaprimeiranoiteemquefuiàcasadosLawes.Eutinhaacabadodevoltardacostaoeste.EragozadoestardevoltaàInglaterra.OsLaweseramvelhosamigosdaminhafamília.Achoquedesde os sete anos eu não tinhamais visto as duas irmãs.MasArthur era um grande amigo meu e, depois que ele morreu, Esthercostumava me escrever umas coisas. Cartas de cair o queixo! Bonitas.Faziam com que eu me sentisse melhor. O que não eram boas eram asminhas respostas. Queriamuito poder vê-la. Era estranho conhecê-la tãobemsomenteatravésdascartas.Aprimeiracoisaque izquandochegueifoi ir à casadosLawes.Esthernão estava,mas voltaria ànoite. Sentei aoladodeRachelduranteojantare,aoolharparaascoisasnamesa,tiveumpressentimento estranho. Era como se alguémme observasse. Aquilomedeixavaconstrangido.Foientãoqueeuavi.

–Viuquem?– A sra. Haworth... Você não está prestando atenção no que estou

dizendo?AtéagoravocêestavafalandosobreEstherLawes ,Macfarlaneestevea

pontoderesponder,irritado,masseconteve.Dickiecontinuou:

Page 55: Agatha christie - o cão da morte

–Elaeramuitodiferentedosoutros.EstavasentadaaoladodovelhoLawes e inclinava a cabeça atentamente para ouvi-lo. Tinha uma espéciede tule esquisito ao redor do pescoço. O tule estavameio torto, eu acho,porque icavadepé atrásda cabeçadela, como se fosseuma chama... Euperguntei a Rachel: “Quem é essa mulher? Aquela morena, com umaecharpe vermelha?”. Ela respondeu: “Alistair Haworth? Está usando umaecharpevermelha,maselaéloira.Completamenteloira!”.

“Eelaera,entende?Ocabelodelaerabemclaro,chegavaabrilhar.Eeu podia ter jurado que era preto! Os olhos pregam peças estranhas nagente...Depoisdo jantar,Rachelnosapresentou.Caminhamospelo jardimeconversamossobrereencarnação.”

–Reencarnação,você?– Pior. Me lembro de ter dito que era uma bela forma de explicar

aqueles encontros esquisitos em que você conhece alguémpela primeiravez,masécomosejáconhecesseantes.Eladisse:“Vocêquerdizeramoràprimeira vista...”. Ela falou aquilo de um jeito esquisito. Meio sôfrego edescontrolado.Me lembroudealgumacoisa,maseunão sabiaoqueera.Continuamos tagarelandopormais um tempo até que o velho Lawes noschamou para o terraço. Esther chegara e queriame ver. A sra. Haworthpôsamãonomeubraçoedisse:“Vocêvaientrar?”.“Sim”,respondi.“Achomelhor,mas...”Eaí,aí...

–Oquefoi?– Issoémuitoesquisito.A sra.Haworthdisse: “Seeu fossevocê,não

iria...”.Elefezumapausa,depoiscontinuou:– Aquilo não cheirava nada bem. Me apavorei. Me apavorei mesmo,

entende?Épor issoque lhe conteido sonho... Eladisse exatamente comonosonho.Eladisseaquilocomcalma,comosesoubessedealgoqueeunãosabia.Nãoeraapenasumamulherbonitaquequeriaminhacompanhianojardim.Falavacomoseestivessepreocupadaetriste.Comosesoubesseoque aconteceria... Acho que fui meio grosseiro. Dei-lhe as costas e volteiparaacasa.Volteiparaacasacorrendo.Pareciaqueláeuestariaseguro.Desde o início, elame provocaramedo. Foi um alívio ver o velho Lawes.Esther,aoladodele...

Dickiehesitouporumminutoedepoismurmurou,semexplicar:–Semdúvida,nomomentoemqueavi...sentiacordanopescoço.Macfarlane se lembrou imediatamente de Esther Lawes. Uma vez,

ouvira descreverem-na como “um metro e oitenta de pura perfeiçãojudaica”.Umadescriçãoestranha,quedecertaformacondiziacomaaltura

Page 56: Agatha christie - o cão da morte

da moça, fora do comum, seu rosto alongado, branco como mármore, onariz ligeiramente adunco e cabelos e olhos de um negro profundo eesplendoroso. Sim, era impossível queDickie, em sua simplicidadepueril,não se deixasse fascinar. Esther nunca causara a Macfarlane o menorarrepio,maseletinhaconsciênciadabelezaarrebatadoradamoça.

–Eentão–continuouDickie–,noivamos.–Naquelemesmodia?– Bem, uma semana depois. E bastaram quinze dias para que ela

descobrisse que não dava amínima paramim – disse ele, soltando umagargalhadaamarga.–Foinavésperadaminhavoltaaonavio.Euvinhadovilarejo pelo bosque quando a vi. A sra. Haworth, quero dizer. Ela usavauma boina militar e me deu um susto! Já lhe contei o meu sonho...Caminhamosjuntosporumtempo.Nadademais,vocêentende?

–Nada?–repetiuMacfarlane,queolhavacuriosoparaoamigo.Éestranhocomoaspessoasrevelamcoisasquenemelassabem.– Então, quando eu estava prestes a retornar para casa, ela me

segurou.Eladisse: “Vocêvai chegar a tempo.Antesdoquedevia.Eu nãovoltariatãocedosefossevocê...”.Entãoeusoubequealgodehorrívelestavaà minha espera. E... assim que cheguei em casa, encontrei Esther. Foiquandoelamedissequeeunãosignificavanadaparaela...

Macfarlanegrunhiu,solidárioaoamigo.–Easra.Haworth?–eleperguntou.–Nuncamaisavi,atéontemànoite.–Ontemànoite?– Sim. Na enfermaria do dr. Johnny. Fui lá para que dessem uma

olhadanaminhaperna,aquelaquemachuqueinaconfusãocomotorpedo.Estavameincomodando.Ovelhomédicomedisseparaoperar.Aoperaçãoseria bem simples. E então, quando estava indo embora, esbarrei numagarota que vestia um blusão vermelho por cima do uniforme deenfermeira.Eladisse:“Seeufossevocê,nãofariaessaoperação...”.Eraasra.Haworth! Saiu andando tãodepressaquenão conseguidetê-la. Encontreioutra enfermeira e perguntei sobre ela.Mas a enfermeira disse que nãohavianinguémcomaquelenometrabalhandoali...Bizarro...

–Vocêtemcertezadequeeraela?–Masclaro...elaémuitobonita,entende?Elefezumapausa,depoisacrescentou:–Devofazeraoperação,certo...masnocasodejáteremlançadomeus

dados...–Quesituação!

Page 57: Agatha christie - o cão da morte

– Não deve ser nada, é claro. Mas mesmo assim me sinto melhoragora,depoisdetermeabertocomvocê...Essahistóriadaciganatemmaiscoisas.Sepelomenoseuconseguisselembrar...

IIMacfarlanesubiucaminhandoaestradinhadeserta.Entrounoportão

da casa quase no topo do morro. Passou a mão pelo queixo e tocou acampainha.

–Asra.Haworthestá?–Sim,senhor.Vouchamá-la–aempregadadeixou-oesperandonuma

peça comprida de teto baixo, com janelas que davam para o campo. Elefranziuocenho.Seráquenãofariaumpapelão?

De repente ele estremeceu. Uma voz cantava em algum lugar noandardecima:

Acigana...

Moranoaltodomorro...A voz se interrompeu. O coração de Macfarlane batia acelerado.

Abriramaporta.O cabelo completamente loiro, quase escandinavo, foi para ele uma

surpresa. Apesar das palavras de Dickie, ele a imaginara uma cigana decabelos escuros... Dickie também dissera, com certa ênfase: “Ela é muitobonita”. Beleza indiscutível é uma coisa rara. E era isso que AlistairHaworthpossuía,umabelezaindiscutível.

Eleserecompôsecaminhounadireçãodela.–Receioqueasenhoranãomeconheça.Conseguioseuendereçocom

osLawes.SouumamigodeDickieCarpenter.Elaolhoufixamenteparaeleporummomentooudoisedepoisdisse:–Estavadesaída,paraumavoltanocampo.Vocêmeacompanha?Elaabriuaportadevidroesaiu.Eleaseguiu.Umhomemrobusto,de

aparênciaestúpida,estavasentadonumacadeiradevime,fumando.–Meumarido!Vamosdarumavoltanocampo,Maurice.Depoisosr.

Macfarlanevaialmoçarconosco.Vocêvai,nãoémesmo?–Aceitooconvite,obrigado.Ele acompanhou-a subindo a encosta. Perguntava a si mesmo: “Mas

porque,meuDeus?Porquesecasarcomaquilo?”.Alistaircaminhounadireçãodeumasrochas.– Vamos sentar aqui. Agora você pode me contar o motivo da sua

Page 58: Agatha christie - o cão da morte

visita.–Comoasenhorasabequeeutinhaalgoparacontar?– Sempre sei quando coisas ruins vão acontecer. O caso de Dickie é

complicado,nãoémesmo?– Ele teve de fazer uma pequena operação, que foi muito bem-

sucedida.Masseucoraçãodeviaestar fraco,porqueeleacaboufalecendoporcausadaanestesia.

Elenãopodia saber comoela reagiria,masnãoesperavapor aqueleolharprofundamentemelancólico.Eleouviu-amurmurar:

–Novamente,esperar...esperar,tantotempo...Elaolhouparaeleeperguntou:–Oquevocêdizia?– Nada. Dizia apenas que alguém o avisou que a operação seria

perigosa.Umaenfermeira.Eleachavaquefosseasenhora.Eramesmo?Elasacudiuacabeçanumanegativa.–Não,eunão.Mastenhoumaprimaqueéenfermeira.Elaseparece

comigonocrepúsculo.Deveserisso...Elafezumapausa,depoisperguntou:–Masqueimportânciatem?Seusolhosderepentebrilharam,elarespiroufundoedisse:–Ah!Masqueengraçado...Vocênãoentendeu?Macfarlaneficouatrapalhado.Elatinhaosolhoscravadosnele.–Acheiquevocêtivesseentendido...Pareciaque...–Entendidooquê?– É um dom, uma maldição, chame como quiser. Achei que você

também tivesse. Olhe para aquele vão entre as rochas. Apenas olhe. Nãolhepareceque...

Ela se interrompeuaorepararqueeleestremecerae imediatamenteperguntou:

–Bem,vocêviualgumacoisa?– Deve ter sido a minha imaginação. Por um momento, o vão me

pareceucheiodesangue!Elaassentiucomacabeça.– Eu sabia que você tinha. Aquele é o lugar onde os antigos

adoradores do sol sacri icavam as suas vítimas. Eu sabia disso antesmesmodeme contarem.Ehámomentosemque sei exatamente comosesentiam... comoseeu tivesseestado lá.Eháalgonessaregiãoqueme fazsentir em casa... É natural que eu tenha o dom, é claro. Sou umaFerguesson.Naminhafamília,hámuitoscasosdepremonição.Minhamãe

Page 59: Agatha christie - o cão da morte

eraumamédiumfamosaantesdesecasarcommeupai.OnomedelaeraCristing.

– Por “dom” você quer dizer a capacidade de ver as coisas antes deelasacontecerem?

– Sim, em relação ao futuro ou ao passado; é a mesma coisa. Porexemplo, vi você se perguntar por que me casei com Maurice. É quesempresoubequeumaameaçaterrívelpesavasobreele.Euqueriasalvá-lo... Nós, mulheres, somos assim. Com o meu dom, posso impedir que adesgraçaocorra...Nemsempreissoépossível.NãopudeajudarDickie.Elenãoentendia...etinhamedo.Eramuitojovem.

–Vinteedoisanos.– E eu tenho trinta. Mas não foi isso o que quis dizer. Podem nos

dividir em comprimento, altura, profundidade... A divisão cronológica é apior–concluiuela,caindoemsilêncio.

Ouviramorepicardeumgongovindodacasalogoabaixo.Durante o almoço, Macfarlane teve a chance de observar Maurice

Haworth. Era louco pela mulher, sem dúvida. Nos seus olhos lia-se aafeição imperturbável e feliz de um cão.Macfarlane reparou também nadelicadezacomqueaesposaotratava.Haviaalgodematernalnosgestosdela.Depoisdoalmoço,elepediulicença.

– Fico hospedado na pousada lá embaixo pormais um ou dois dias.Seráquepossovisitá-ladenovo?Amanhã,quemsabe?

–Sim,mas...–Masoquê?Elapassourapidamenteamãosobreosolhos.–Nãosei...Tenhoaimpressãodequenãonosveremosmais...Adeus.Ele desceu calmamente pela estradinha. Contra a sua vontade, uma

mão fria parecia envolver e apertar o seu coração. Nada que ela tivessefalado,éclaro,mas...

Um carro a toda velocidade fez a curva na esquina. Ele se protegeurecostando-se contra a cerca. Por pouco não foi atingido. Uma palidezestranhatomoucontadoseurosto.

III– Meu Deus... meus nervos estão em frangalhos – murmurou

Macfarlaneparasimesmoaoacordarnamanhãseguinte.Ele repassou com frieza um por um os eventos da tarde anterior. O

carro, o atalho até a pousada e a súbita névoa que fez com que ele se

Page 60: Agatha christie - o cão da morte

perdesse, consciente da proximidade de um pântano perigoso. Então aqueda da chaminé externa da pousada, e o cheiro de queimado queinvadiraoseuquartoduranteanoiteequeeledescobriraserdacinzanotapeteemfrenteàlareira.Nadademais.Nadademais!Senãofossepelaspalavrasdelaeacertezaqueeletinhadequeelasabia...

Pulouimediatamentedacama.Tinhadevê-laoquantoantes.Aquiloiaquebrarofeitiço.Querdizer... seelechegasseláasalvo.MeuDeus,masquebobagem!

Mal conseguiu tomar o café. Às dez horas subia pela estradinha. Àsdezemeiabatianaporta.Sóentãosepermitiuumsuspirodealívio.

–Osr.Haworthestá?Era amesma senhora que lhe abrira a porta no dia anterior.Mas o

rostodelaestavamudado,descompostodetristeza.–Ah,senhor!Masentãoaindanãosabe?–Nãoseidoquê?–Apatroa,coitadinha.Foiotônico!Todaanoiteelatomava.Ocapitão,

coitado,está foradesi.Foielequempegouo frascoerradodaprateleira,noescuro...Chamaramomédico,masjáeratarde.

Macfarlane lembrou-se imediatamente do que ela dissera: “Sempresoube que uma ameaça terrível pesava sobre ele... com o meu dom, possoimpedirqueadesgraçaocorra...Nemsempre issoépossível ”.Ninguém fogedo destino. Estranha fatalidade que semanifesta atémesmo naquilo quesalva.

Avelhaempregadacontinuou:– Coitadinha da patroa, tão bela, tão gentil. Sempre se desculpando

quandonospediaparafazeralgumacoisa.Nãopodiaverninguémsofrer.Elahesitouporummomentoedepoisacrescentou:–O senhor gostaria de subir para vê-la? Pelo que ela disse, imagino

queaconheçadeanos.Eladissequeseconheciamhámuitotempo...Subindo as escadas,Macfarlane acompanhou amulher até a sala de

onde ouvira alguém cantar no dia anterior. Havia vitrais no topo dasjanelas. Eles lançavamuma luz avermelhada sobre a cabeceirada cama...Uma cigana com um lenço vermelho amarrado na cabeça. Absurdo. Seusnervos estavam lhe pregando peças. Ele deu uma última olhada para ocorpodeAlistairHaworth.

IV–Umasenhoraquervê-lo,senhor.

Page 61: Agatha christie - o cão da morte

–Hum?Macfarlaneolhavaparaasuasenhoriacomosevisseumfantasma.–Medesculpe,sra.Rowse,euestavadistraído...– Verdade, senhor? Coisas estranhas acontecem por essas colinas

duranteanoite.Háamulherdebranco,oferreirododiabo,omarinheiroeacigana...

–Ummarinheiroeumacigana?–Éoquedizem.Quandoeuerajovem,contava-sequeosdoistinham

sidoinfelizesnoamor...Masjáfazmuitoquenãosãovistos.–É?Talvezagoravoltemaaparecer...–Senhor!Oquedevodizeràmoçaqueestáláembaixo?–Quemoça?– A que veio vê-lo. Está esperando na recepção. Srta. Lawes, foi o

nomequeeladeu.–Ah!Rachel! Ele sentiu uma contração esquisita, como uma mudança de

perspectiva.Eleestiveraespiandoumoutromundo.TinhaseesquecidodeRachel, pois Rachel pertencia a esta vida, apenas... De novo, uma curiosamudança de perspectiva, como se escorregasse de volta para ummundodetrêsdimensões.

Macfarlane abriu a porta da recepção. Lá estava Rachel, com seusternos olhos castanhos. E a realidade invadiu-o como uma onda de calor.Eleacordavadeumsonho,eestavavivo.Vivo!Pensouconsigomesmo:“Sóháumavidadaqualpodemosestarcertos!Esta!”.

–Rachel–eledissee,levantandooqueixodela,beijou-a.

Page 62: Agatha christie - o cão da morte

ALÂMPADA

IEra uma casa antiga, sem dúvida. Toda aquela quadra era de casas

antigas,cujaseveridadedasfachadascombinavamuitobemcomoespíritodaquelacidadezinha,orgulhosade terumacatedral.Masacasadeno19davaaimpressãodeseramaisvelhadetodas.Soleneepatriarcal,pareciatambém a mais cinza, a mais alta, a mais fria. Austera e há muitodesabitada,exibiacomoqueumselopeculiardedesolaçãoqueadistinguiaeacolocavaacimadasoutraspropriedades.

Emqualqueroutracidade,ninguémdeixariadesereferiraelacomomal-assombrada,masoshabitantesdeWeyminsternãoachavamamenorgraçaemfantasmas.Elesconsideravamquenãoeradebom-tomqualquerconversasobreoassunto.Por isso,nunca falavamsobreacasadeno19,queficouporanosafioàvendaeparaalugar.

IIAinda de dentro do carro, a sra. Lancaster lançou um olhar de

aprovaçãoàcasa.Elavinhaacompanhadapelocorretor,que,normalmentetagarela, estava de fato eufórico diante da possibilidade de se ver livredaquela residência. Ele abriu a porta com a chave sem interromper suatorrentedecomentáriosapreciativos.

– Desde quando a casa estava vazia? – perguntou de repente a sra.Lancaster, a quem o palavrório interminável do corretor já começava acansar.

Aperguntaconstrangeuosr.Raddish(daRaddish&Foplow).–Ah...bem...hum...Jáfazalgumtempo...–disseele,confuso.–Éoquesepercebe–disseasra.Lancaster,secamente.Eramedonhoofriodaquelesaguãomal iluminado.Eteriafeitoasra.

Lancaster estremecer se ela tivesse um poucomais de imaginação e nãofosse uma mulher tão prática. A sra. Lancaster era alta. Os olhosprofundamente azuis contrastavamcomabasta cabeleiranegra, quemalcomeçaraasetingirdecinza.

Elapercorreua casa,doporãoao sótão, fazendoperguntasobjetivasquando julgavanecessário.Depoisde terminadaa inspeção, retornouatéumdosquartosquedavamdefrenteparaaruaeencarouocorretorcom

Page 63: Agatha christie - o cão da morte

umaexpressãodecidida.–Qualéoproblemacomestacasa?Aperguntadesconcertouosr.Raddish.–Bem...hum...Umacasasemmobíliaésempreumpoucodesolada...–

murmurouelenadefensiva.– Não faz sentido algum – concluiu a sra. Lancaster. – O aluguel é

muitobaixoparaestetipodemoradia.Temdehaverummotivo.Acasaéassombrada?

Osr.Raddishtomouumsustocomapergunta,mascontinuoucalado.Asra.Lancastercravouneleosolhos.Depoisdeummomentooudois,

eladisse:– Bem, é claro que isso tudo não passa de uma bobagem e nãome

impedede icarcomacasa.Nãoacreditoem fantasmas.Mas infelizmenteos empregados são pessoas crédulas, que se assustam por qualquermotivo.Seriamelhorqueosenhormeexplicasseexatamenteporqueestacasaétidacomoassombrada.

–É...hum...Nãoseimuitobem...–gaguejouocorretor.–Poiseutenhocertezadequeosenhorsabe–disseela,semlevantar

a voz. – E eu não posso alugar a casa sem que me explique. O queaconteceuaqui?Umassassinato?

–Não,não!–exclamouosr.Raddish,chocadocomaideiadequealgotãogrotescopudesseteracontecidonumaregiãorespeitávelcomoaquela.–É...apenasumacriança.

–Umacriança?–Sim.Nãoconheçoahistóriaemdetalhes–continuouele,hesitante.–

É claro que há muitas versões diferentes, mas parece que há cerca detrinta anos um homem chamadoWilliams alugou esta casa. Não se sabianada sobre ele. O homem não tinha empregados. Não tinha amigos.Di icilmente saía de casa durante o dia. Ele tinha um ilho, um meninopequeno. Doismeses depois de alugar a casa, o homem foi a Londres e,chegando lá, foi reconhecido como sendo um “procurado” da polícia. Nãoseiexatamentesobqualacusação.Deviaserumaacusaçãograve,porqueem vez de se entregar ele acabou se matando. Enquanto isso, o meninocontinuavavivendoaqui sozinhonacasa, comopoucodecomidaque lhefora deixada. Esperou dias e dias pela volta do pai. Infelizmente, haviamlhepassadoaorientaçãodeque sobhipótesealgumadevia sair à ruaoufalarcomestranhos.Eraumacriaturinhapequenaeindefesa.Quantomaisfrágil e doente icava, menos sonhava em desobedecer à ordem que lhehaviam dado. Durante a noite, os vizinhos, sem saber que o pai estava

Page 64: Agatha christie - o cão da morte

ausente,ouviamecoarseussoluçospelasolidãodesoladadacasavazia.Osr.Raddishfezumapausa.–Bem... a criançamorreude fome– concluiu ele, nomesmo tomem

queanunciariaquecomeçavaachover.– E é o fantasma dessa criança que as pessoas imaginam que

assombreacasa?–perguntouasra.Lancaster.–Ninguém leva ahistóriamuito a sério – apressou-se emdizero sr.

Raddish. – Nunca se viu nada, nada. As pessoas comentam apenas queouvem, mas isso é ridículo, claro... um choro de criança. A senhoraentende?

Asra.Lancastercaminhounadireçãodaportadafrente.–Gosteimuitodacasa–disseela.–Nãovouencontrarnadaparecido

poressepreço.Voudarmaisumapensadaeemseguidaoprocuro.

III–Estábemacolhedor,nãoé,papai?Asra.Lancasterexaminavaorgulhosaasuanovaresidência.Tapetes

de cores vibrantes, móveis bem polidos e uma in inidade de bugigangashaviamtransformadoporcompletoaatmosferadesoladadacasadeno19.

Ela falava com um senhor de idade, alto, magro, de ombros muitoinclinadoseumrostofrágil,quemaispareciaumamiragem.Osr.Winburnnãoeraparecidocoma ilha.Sempreabsortonummundodepensamentosnebulosos,seutemperamentoestavalongedeserpráticoeresolutocomoodela.

–Sim–respondeuelecomumsorriso.–Ninguémimaginariaqueestaéumacasamal-assombrada.

–Papai,nãodigabobagem!Elogononossoprimeirodia...Osr.Winburnsorriu.– Muito bem, minha querida. Façamos de conta que fantasmas não

existem...–E,porfavor–continuouasra.Lancaster–,nãodiganadanafrente

deGeoff.Eleseimpressionacomtudo.Geoff era o ilho da sra. Lancaster. A família era composta pelo sr.

Winburn,asuafilhaviúvaeGeoffrey.Achuvacomeçouabaterdeencontroàjanela:tap-tap,tap-tap...–Escute...passinhosdecrianças?–perguntouosr.Winburn.–Paramiméachuva–respondeuasra.Lancaster,sorrindo.–Masisso...issosãopassos!–exclamouopai,inclinando-separaouvir

Page 65: Agatha christie - o cão da morte

melhor.Asra.Lancastersoltouumagargalhada.O sr. Winburn riu também, constrangido. Estavam tomando chá no

salão. Ele estava de costas para as escadas, até que virou a cadeira paraencará-lasdefrente.

OpequenoGeoffreyestavadescendo,devagaremeiodormindo,comoseestranhasseonovoambiente.Asescadaseramdecarvalhopolidoenãotinhamcarpete.Omeninosedirigiuatéamesaeparoudoladodamãe.Osr. Winburn estremeceu. Enquanto a criança atravessava o salão nadireção da mesa, ele ouviu nitidamente o barulho de outros passos naescada, como se alguém seguisse Geoffrey. Passos arrastados, sofridos. Osr.Winburn contraiu os ombros, a imde tirar a imagemda cabeça. “É achuva,semdúvida”,pensou.

– Que biscoitos são esses? – perguntou Geoff, com o aradmiravelmentedistantedequemdescobriasozinhoumfocodeinteresse.

Amãepuxouopratoparapertodabordadamesa.–Então,meufilho...estágostandodasuanovacasa?–perguntouela.–Muito–respondeuGeoffrey,enchendoabocadebiscoitos.Edepois,aindadebocacheia:–Muito,muito,muito...–numcontentamentoevidente.Ele caiu novamente em silêncio, ansioso por apanhar o resto dos

biscoitosquehaviamficadonoprato.Depoisdeencherabocapelaúltimavez,eleirrompeunumdiscurso:–Mamãe,Janedissequehásótãosaqui...possoir láagora?Achoque

háumaportasecreta,apesardeaJaneterditoquenão.Masachoquetem,etambémcanos,canosd’água!–exclamoueleemêxtase.–Possoexplorá-los, e... ver a cal-dei-ra? – soletrou ele, pronunciando as sílabas com taldeleitequefezcomqueoavôseconstrangesse.

Aquela súbita alegria de criança não lhe invocava mais nada senãobanhodeáguafriaeumacontapesadaaserpagaaoencanador.

–Vamosverossótãosamanhã,querido–disseasra.Lancaster.–Porquevocênãoconstróiumabelacasaou locomotivacomosseus tijolinhosdemontar?

–Nãoqueroconstruirnenhumacasa.Nemcasa,nemlocomotiva.–Porquevocênãoconstróiumacaldeira?–perguntouoavô.OrostodeGeoffreyseiluminou.–Comcanos?–Sim,commuitoscanos.Geoffreycorreuparaapanharosseustijolos.

Page 66: Agatha christie - o cão da morte

A chuva continuava a cair. O sr. Winburn ouvia com atenção. Sim,havia sido o barulhoda chuvaque ele escutara, apesar de quepareciampassos.

Naquelanoite,eleteveumsonhoestranho.Caminhava pelas ruas de uma cidade. Aparentemente, uma cidade

grande, mas uma cidade de crianças. Lá não havia adultos, só crianças,uma in inidade delas, que corriam até aquele homem estranho eperguntavam:“Vocêotrouxe?”.Eeracomoseosr.Winburnsoubessedoque estavam falando, pois sacudia a cabeça numa negativa, com umaexpressão triste no rosto. Ao receberem a resposta, as crianças seafastavamindignadasecomeçavamachorar,soluçando.

Acidadeeascriançasdesapareceram,eeleacordousozinhonacama.Mas os soluços continuavam em seus ouvidos. Apesar de bem acordado,podia ouvi-los distintamente. Lembrou-se de que Geoffrey dormia noquarto logo abaixo do seu, mas o som vinha de cima. Ele se sentou eacendeuumfósforo.Ossoluçossubitamentesilenciaram.

IVOsr.Winburnnãocomentounadacoma ilhasobreosonhoouoque

acontecera depois. Mas tinha certeza de que não fora nenhuma peçapregadaporsua imaginação.Naverdade,duranteodiaelevoltouaouviros soluços. O vento sibilava pela chaminé, masaquele era um ruídodiferenteeinconfundível:pequenossoluçoscontidos,decortarocoração.

Descobriu também que não era o único a ouvi-los. A empregadacomentara com a copeira que “a babá não devia cuidar direito deGeoffrey”, pois ouvira o menino chorar a manhã toda. Geoffrey desceraparatomarocafédamanhãradiantedefelicidade.Nãopodiaserelequemestiverachorando,massimaquelaoutracriançacujospassosarrastadosjáhaviamassustadoosr.Winburnmaisdeumavez.

Sóasra.Lancastercontinuavasemouvirnada.Talvezosseusouvidosnão estivessem a inados o su iciente para captar os sons emitidos de umoutromundo.

Atéodiaemqueelatambémtomouumsusto.–Mamãe...–queixou-seGeoffrey.–Porquenãopossobrincarcomo

outromenino?A sra. Lancaster, que estava sentada à escrivaninha, levantou a

cabeça,comumsorrisoamarelo.–Quemenino,querido?

Page 67: Agatha christie - o cão da morte

–Não seionomedele.Estavano sótão, sentadono chãoe chorando.Saiu correndoquandome viu. Acho que éenvergonhado – disse ele, numtom desdenhoso –, não é um menino corajoso. Quando eu brincava commeus tijolos no quarto, vi ele parado na porta me olhando. Parecia tãotriste... Acho que queria brincar comigo. Eu disse: “Vamos montar umalocomotiva”,maselenãorespondeu.Ficoumeolhandocomo...sevisseumbolodechocolatequeestivesseproibidodecomer!

Geoff suspirou. Lembranças tristes lhe vinham à cabeça. Lá pelastantas,acrescentou:

– Perguntei a Jane quem ele era, disse que queria brincar com ele,maselarespondeuquenãotinhanenhumoutromeninonacasa.Mandoueuparardeinventarhistórias.AJaneàsvezeséumpoucochata...

Asra.Lancasterselevantou.–Janeestácerta.Nãohánenhumoutromeninonacasa.–Maseuvi!Mãe...porqueéquenãopossobrincarcomele?Parece

tãotristeesozinho.Euqueriaajudar.Asra.Lancasteriadizermaisalgumacoisa,masfoiinterrompidapelo

pai:–Geoff –disseele, com todaa calma–, essepobremeninoestá, sim,

triste e sozinho, e talvez você possa fazer alguma coisa para ajudar.Masvocê mesmo terá de descobrir como... É parecido com uma charada,entende?

–Tenhodefazertudosozinho,porquesoucorajoso?–Sim,porquevocêécorajoso.Quando o menino saiu do escritório, a sra. Lancaster disse ao pai,

irritada:–Masqueabsurdo,papai!Encorajaromeninoaacreditarnastolices

ditaspelosempregados...–Nenhumempregadocontounadaaele–respondeuovelhosemse

alterar.–Eleviuoqueeu ouvi...Aquiloquetalvezeupudesseenxergarsetivesseaidadedele.

–Queabsurdo!Eunãovejoenemescutocoisaalguma.Osr.Winburnsorriu,semdizernada.Umsorrisoirônicoecansado.–Quesentidopodehavernumacoisadessas?–insistiua ilha.–Epor

que você foi dizer a ele que poderia ajudar... ajudar esse, esse... Mas éimpossível!

Ovelholançouaelaumolharpensativo.–Porqueimpossível?Lembre-sedaspalavras:

Page 68: Agatha christie - o cão da morte

QuelâmpadatemoDestinoparaguiarSuascriançasqueerrampelaEscuridão?

“Aintuiçãodoscegos”,responderamosCéus[1]– É o que Geoffrey tem: conhecimento intuitivo, como todas as

crianças. Nós o perdemos ao crescer. Nos afastamos da fonte. Algumasvezes,quandoenvelhecemos,recuperamosalgumacoisa,masalâmpadajánãobrilhamaiscomamesmaintensidadedainfância.ÉporissoqueachoqueGeoffreypodeajudar.

– Sinceramente, eu não entendo – murmurou consigo mesma a sra.Lancaster.

–Eu tambémnãoentendo.Aquele... aquelemeninoestáemapuroseprecisaser...libertado.Mascomo?Nãosei...Sãosoluçostãoagoniados,edeumacriança!

VUm mês depois daquela conversa, Geoffrey adoeceu gravemente. O

ventodo leste soprava gelado, e ele não era uma criança forte.Omédicosacudiuacabeça,preocupado,edissequesetratavadeumcasodi ícil.Aosr.Winburn,eleacabouconfessandoquenãotinhamuitasesperanças.

–Ainfecçãoqueeletemnopulmãonãocededejeitonenhum...Foi ao cuidar de Geoff que a sra. Lancaster tomou conhecimento da

outra criança. No início, os soluços eram indistinguíveis do vento. Aospoucos, eles se tornarammaisdistintos, inconfundíveis.Atéque chegouomomento em que ela os ouvia quando estava tudo calmo. Soluços decriança,repetitivos,deumamonotoniadesesperadora.

O estado de saúde de Geoff piorou ainda mais. Nos momentos dedelírio,elefalavaotempotododooutromenino.

–Queromuitoajudá-loair!–exclamava.A fase seguinte foi de letargia. Imóvel na cama, ele mal respirava,

afundado numa apatia completa. Não havia nada a fazer senão esperar.Veioentãoumanoitelimpaesemvento,emquetudopareciaparado.

A criança de repente se contraiu. Seus olhos se abriram e focaramdiretamente na porta, ignorando amãe. Ele tentou dizer alguma coisa. Amãeseinclinouafimdecaptaraspalavrassussurradas.

–Estábem,estouindo...–murmurouele,afundandonoleito.Tomadadepânico,asra.Lancasteratravessouoquartonadireçãodo

pai. Em algum lugar perto deles, a outra criança estava rindo. Um risoalegre, satisfeito, ecoava triunfante pelo quarto. Um riso de timbre

Page 69: Agatha christie - o cão da morte

metálico.–Estoucommedo,estoucommedo...–murmurouela.Opaipassouobraçoaoredordosombrosda ilha.Umasúbitarajada

deventofezcomqueosdoisestremecessem.Masarajadapoucodurou,eaatmosferaficoucalmacomoantes.

Não se ouvia mais o riso, e o que atraiu a atenção dos dois foi umruído fraco, que de iníciomal podiam distinguir. O ruído foi aumentandoaté que puderam identi icá-lo: passos, passos leves, que começavam apartir.

Tap-tap, tap-tap... lá iam eles, os passinhos vacilantes e bemconhecidos. E agora semisturava a eles o som de outros,mais rápidos edeterminados.

Emcomumacordo,correramatéaporta.Dooutrolado,seguiamjuntososdoismeninos:tap-tap,tap-tap.Asra.Lancasterlevantouorosto,espantada.–Sãodois!Dois!Pálida, ela sevoltouparaa cama.Opai segurou-a, apontandoparao

outrolado.–Lá–disseele.Tap-tap,tap-tap...cadavezmaisfraco.Eentão,silêncio.

[1] Versão de Edward Fitzgerald para uma das estrofes de Os Rubayat , do poeta persa OmarKhayyam.(N.T.)

Page 70: Agatha christie - o cão da morte

ORECEPTORDERÁDIO

I–Eviteaborrecimentoseemoçõesfortes–disseodr.Meynell,notom

reconfortantequeosmédicoscostumamafetar.Como acontece em muitos casos, tais palavras tranquilizadoras mas

semsentidodeixaramasra.Hartermaisconfusadoquesatisfeita.–Háumacertafraquezacardíaca–continuouomédico,semperdera

pose –, mas nada que deva alarmá-la, eu garanto. Ainda assim –acrescentouele– talvezsejamelhor instalarumelevadorzinhonacasa.Oqueasenhoraacha?

Asra.Harternãosabiaoquedizer.O dr. Meynell, ao contrário, parecia convencido. A razão pela qual

preferia atender a pacientes ricos era que podia dar vazão à suaimaginaçãonahoradeprescrevertratamentosparaosmalesdeles.

– Sim, um elevador – disse o dr.Meynell, que não conseguia pensarem nadamais apropriado. – Vai lhe poupar esforços desnecessários. Emdiasagradáveis,asenhorapodefazercaminhadas,semprenoplano.Evitesubidasedescidas.Eomaisimportante–disseele,subitamente–:procuresedistrair.Nãofiquematutandosobreoseuestadodesaúde.

Comosr.CharlesRidgeway,sobrinhodasra.Harter,omédicofoimaisexplícito:

–Nãomeentendamal...Suatiapodeeprovavelmentevaiduraranos...Masqualquerchoqueouesforçoexageradopodelevá-lanumátimo–disseele, estalando os dedos. – Ela tem de levar uma vida tranquila. Nada deexageros,nadadesecansar.Poroutrolado,nãoébomque iquetrancadadentrodecasamatutandoepensandoembobagens.Elatemdesedistrair.

–Distrair–repetiuCharlesRidgeway,pensativo.Charles era um jovem atencioso, mas também alguém que sabia

promoverosprópriosinteressessemprequepossível.Naquelanoite,elesugeriuacompradeumreceptorderádio.A sra. Harter, já bastante incomodada com a perspectiva de ter de

instalarumelevadornacasa,acabouseirritando.Charlestevedevenceromauhumordatia.

–Aspessoasinventamessascoisas,masqualautilidade?–lamentouela.–Asondas...asondaselétricas,podeserquemefaçammal.

Charles assumiu um ar superior e argumentou que aquela hipótese

Page 71: Agatha christie - o cão da morte

eraumabobagem.Masasra.Harter,quenadaconheciasobreoassunto,nãomudoude

opiniãoepermaneceucética.–Todaaquela eletricidade... –murmurouela, pensativa. –Vocêpode

dizer o que quiser, Charles, mas algumas pessoas são sensíveis àeletricidade.Antesdetempestades,eusempretenhoenxaquecasterríveis–lembrouela,sacudindoacabeçaemsinaldedesaprovação.

Mas Charles era um jovem paciente. Ele também não se deu porvencido.

–QueridatiaMary–disseele–,permita-meexplicar-lheumacoisa...Ele entendia bastante do assunto e fez um discurso sobre os

diferentes tipos de válvulas emissoras, alta e baixa frequência,amplificadoresecondensadores.

A sra. Harter, afogada num mar de palavras que não conhecia, serendeu.

–Bem,Charles...–murmurouela.–Sevocêachamesmo...– Querida tia Mary... – disse Charles entusiasmado. – É exatamente

aquilodequea senhoraprecisa.Vaidistraí-la, evitarque iquepensandoembobagens.

O elevador recomendado pelo dr. Meynell foi instalado alguns diasmaistardeeporpouconãosigni icouamortedasra.Harter.Comomuitasmulheres da sua idade, ela tinha horror de ver pessoas estranhascirculandopelacasa.Suspeitavaqueestivessemdeolhonasuaprataria.

Depois do elevador, chegou o rádio. A sra. Harter contemplouhorrorizadaaenormecaixacheiadebotões,quedestoavadamobília.

Foi preciso todo o entusiasmo de Charles para reconciliá-la comaqueleobjetorepelente.

Ele aproximou-se do aparelho e, semmaiores di iculdades, colocou-oparafuncionar.

Sentada na sua cadeira de espaldar alto, a sra. Harter continuoucalada,convencidadequeanovidadesólhetrariaaborrecimentos.

–Presteatenção,tiaMary.EstamoscaptandoumsinaldeBerlim,nãoéesplêndido?Asenhoraestáouvindo?

–Nãoescutonadaanãoserunsestalidoseessechiadoirritante.Charlescontinuavagirandoosbotões.–Bruxelas!–anunciouele,entusiasmado.–Émesmo?–retorquiuasra.Harter,irônica.Charles girouos botõesmais umavez e umuivo sobrenatural ecoou

pelasala.

Page 72: Agatha christie - o cão da morte

– E agora parece que você sintonizou o canil – disse a velha, quemesmocomtodaasuaidadesabiaserespirituosa.

–Boapiada,tiaMary!Eunãodissequeseriadivertido?Asra.Harternãopôdeesconderosorriso.GostavamuitodeCharles.

Poralgunsanos,elaviveranacompanhiadeumasobrinha,MiriamHarter.Faria da moça a sua herdeira, mas a convivência entre as duas foidesastrosa.Miriameraimpacientee incapazdedesenvolveruminteresselegítimopelatia.Estavasemprefora,“batendopernaporaí”,comodiziaasra. Harter. E acabou por envolver-se com um jovem totalmenteinadequado. Miriam foi enviada de volta aos cuidados da mãe, com umabrevenotaindicandoqueforaaprovadapelatia.Elacasoucomorapazemquestão, e a sra. Harter costumava enviar-lhes todo ano, no Natal, umacaixadelençosouumenfeitedemesa.

Desapontada com as sobrinhas, a sra.Harter voltou sua atenção aossobrinhos.A convivência comCharles foraum sucessodesdeo início. Eletinha respeito pela tia e ouvia com atenção as histórias que ela contavasobrequandoerajovem.NissoorapazeramuitodiferentedeMiriam,quelogo icava enfadada com aquelas reminiscências e o dizia abertamente.Charles jamais se impacientava, era sempre educado, sempre alegre.Inúmerasvezespordiaelerepetiaparaatiaoquantoelaeraadorável.

Satisfeita com a nova aquisição, a sra. Harter escreveu ao advogado,dando-lhe as orientações necessárias para que redigisse um novotestamento.Otestamentofoienviadoparaela,queoaprovoueassinou.

E agora, atémesmo com relação ao rádio, Charles obtinhaumanovavitória.

A sra. Harter, inicialmente avessa à ideia da instalação do aparelho,acabou por tolerá-lo e por im deixou-se fascinar pela novidade. QuandoCharles saía de casa, ela aproveitava o rádio aindamais. O problema deCharleseraqueelenãopodiadeixá-loquieto.Asra.Hartergostavadesesentar confortavelmente em sua cadeira para escutar um concertosinfônico,ouumaconferênciasobreLucréciaBórgiaouavidano interiordos lagos. Não era bem o caso de Charles. No seu entusiasmo pelasestações estrangeiras, ele mandava pelos ares a beleza de qualquertransmissão, que acabava entrecortada por chiados dissonantes. Eraquando Charles saía para jantar com amigos que a sra. Harter maisaproveitava o rádio. Ela apertava um ou dois botões, sentava na suacadeiradeespaldaraltoesedistraíacomoprogramadanoite.

Foidepoisdetrêsmesesdeorádiotersidoinstaladoquecomeçaramasprimeirasmanifestações.Charlesestavafora,jogandobridge.

Page 73: Agatha christie - o cão da morte

O programa daquela noite era um recital de baladas. Uma sopranobem conhecida estava cantando uma velha canção escocesa e, no meiodela, algo estranho aconteceu. Amúsica de repente foi interrompida porumchiadoeestalos,quecontinuaramporumperíodoedepoiscessaram.Houveumsilênciocompleto,eentãoumzumbidobaixinhofoiouvido.

Semsaberexatamenteporque,asra.Harterteveaimpressãodequeo aparelho sintonizava algo muito distante, e então ouviu-se clara edistintamenteavozdeumhomem,comsotaqueirlandês.

–Mary...vocêestámeescutando?AquiéoPatrick...Nãovoudemorarmuitoparachegar.Vocêvaiestarpronta,não?

Então,quasequeinstantaneamente,acançãoescocesavoltouaecoarpela sala. A sra. Harter sentava-se rígida, com ambas asmãos agarradasaos braços da cadeira. Estivera sonhando? Patrick! A voz de Patrick!Naquela sala, falando com ela. Não, só podia ter sido um sonho. Umaalucinação,talvez.Eladeviatercochiladoporumminutooudois.Quecoisamais curiosa... dormir e ouvir a vozdomaridomorto, comoquepairandono ar acimada sua cabeça.O que é que ele tinha dito?Não vou demorarmuitoparachegar.Vocêvaiestarpronta,não?

Uma premonição, quem sabe? Fraqueza cardíaca. Ela estavamesmoficandovelha.

–Éumaviso,sópodeser–murmurouasra.Harterparasimesma.Levantando-se com di iculdade da cadeira, ela não pôde deixar de

acrescentar:–Etodoodinheirogastocomoelevador.Quedesperdício!Ela não contou nada da sua experiência para ninguém,mas por um

diaoudoisficoupreocupada.E então aconteceu uma segunda vez. Novamente, ela estava sozinha

na sala. O rádio transmitia um concerto sinfônico que foi interrompidocomoantes.Denovoosilêncio,asensaçãodecontataralgodistanteeavozdePatrick,diferentedecomoelasoavaemvida, rarefeita, longínqua,comalgodesobrenatural.

–AquiéoPatrick,Mary.Voubuscá-lamuitoembreve...Depois disso um estalo, um chiado, e a orquestra ecoava pela sala

novamente.A sra. Harter deu uma olhada no relógio. Não, ela não cochilara.

Acordada, em pleno uso das suas faculdades, ela tinha ouvido a voz dePatrick. Estava certa de que não era nenhuma alucinação. Confusa, elatentouse lembrardetudoaquiloqueCharles lheexplicarasobreateoriadasondas.

Page 74: Agatha christie - o cão da morte

SeriapossívelquePatricktivessemesmofaladocomela?Quesuavozlutuasseatravésdoespaço?Haviacomprimentosdeondaqueseperdiam,oualgodogênero.Charles falaradebrechasnasescalas.Talvezasondasqueseperdessemexplicassemoschamadosfenômenosparanormais.Sim,porquenão?Patrick falaracomela.Elesevaliadaciênciamodernaparaalertá-lasobreoqueiriaocorrer.

Asra.Hartertocouacampainhaparachamaracriada,Elizabeth.Elizabetheraumamulheraltaemacilenta,decercadesessentaanos

de idade. Por trás daquela igura aparentemente in lexível escondia-seumaprofundaafeiçãopelapatroa.

– Elizabeth – disse a sra. Harter quando a empregada apareceu –,vocêselembradoquelhefalei?Agavetamaisalta,àesquerda,naminhaescrivaninha. Está trancada com aquela chave longa, com a etiquetabranca.Jáestátudoprontoearrumadonaquelagaveta.

–Prontoearrumado,senhora?–Paraomeu enterro – resmungou a sra.Harter. –Você sabemuito

bem do que estou falando, Elizabeth. Você mesmame ajudou a guardartudolá.

OrostodeElizabethcomeçouasecontrairdeformaestranha.–Oh,porfavor!Não iquepensandoembobagem...Asenhoraparecia

tãobemnosúltimosdias!– Mais cedo ou mais tarde, todos temos de ir – disse a sra. Harter,

fazendovaleroseusensoprático.– Já tenhomaisdesetenta,Elizabeth.Enãosefaçadeboba,porfavor.Váchoraremoutrolugar.

Elizabethsaiudasalafungando.A sra. Harter acompanhou-a com os olhos e murmurou consigo

mesma:– Que velhamais boba... Mas a verdade é que elame adora. Adora.

Quantoéqueestoudeixandoparaela?Cem,cinquentalibras?Jáfaztantotempoqueelaestácomigo...

A dúvida não lhe saiu da cabeça, e no dia seguinte ela escreveu aoadvogadopedindoqueenviasseotestamentoparaeladarumaolhada.FoinomesmodiaemqueCharlesfezumcomentárioqueaespantou.

–Equeméaquelesujeitoestranhonoquartodehóspedes?Mere iroao quadro na parede, em cima da lareira. Um sujeito de suíças e umchapéudecastor.

Asra.Harterlançouaeleumolharsevero.–ÉoseutioPatrickquandojovem–disseela.–Ah,desculpe,tiaMary.Eunãofaleidepropósito,eunãosabia...

Page 75: Agatha christie - o cão da morte

Inclinando levemente a cabeça, a sra. Harter aceitou o pedido dedesculpas.

Semsabercomocontinuaraconversa,Charlesarriscou:–Équeeuestavapensando...Eleseinterrompeu,hesitante,easra.Harterinterveio,resoluta:–Desembuche,meurapaz.Oquevocêiadizer?–Nada–falouele.–Nadaquefaçamuitosentido,aomenos...Asra.Harterachoumelhornãoinsistirnaquelemomento.Maistarde

duranteodia,quandoestavamsozinhos,elavoltouaoassunto.– Eu gostaria de saber, Charles... de onde veio esse interesse pelo

retratodoseutio?Charlespareceuconstrangido.–Mas eu lhe disse, tiaMary. Foi uma bobagem queme passou pela

cabeça,maisnada.– Charles – disse a sra.Harter, num tom autoritário –, eu insisto em

saber...– Bem, se a senhora faz mesmo questão... Ontem à noite, quando

chegava emcasa, pensei tê-lo visto... o homemque estáno retrato, querodizer,olhandopara fora,pela janela,amaisafastada.Algumefeitoda luz,imagino.Fiqueiimaginandoquempudesseser.Umrosto...tãovitoriano,seasenhorameentende!MasaíElizabethmedissequenãohavianinguémna casa. Mais tarde, acabei passando pelo quarto de hóspedes e vi oretratonaparede,emcimadalareira.Eraosujeitoqueeutinhavisto,semsombra de dúvida! Mas isso é fácil de explicar. Alguma coisa do meusubconsciente. Eu já tinha visto o quadro e a imagem icou impressa naminhamente, semqueeudesseaelaatenção.Depois, semmedarconta,euaprojeteinajanela.

–Ajanelamaisafastada,vocêdisse?–perguntouasra.Harter.–Sim,porquê?–Pornada–murmurouasra.Harter.Mas ela estremeceu.Aquele eraoquartousadopelomaridopara se

vestir.Naquelamesmanoite,Charlessaiunovamente.Ansiosa,asra.Harter

sentou-se para ouvir o rádio. Se ela ouvisse, pela terceira vez, a vozmisteriosa, seria uma prova de initiva de que estava mesmo em contatocomooutromundo.

Apesardeseucoraçãobatermaisrápido,elanãosesurpreendeuaoouvir a transmissão ser interrompida da mesma maneira e, depois dobrevemomentodesilêncio,avozfracaedistante,comosotaqueirlandês.

Page 76: Agatha christie - o cão da morte

–Mary, agoravocê estápreparada.Voubuscá-lana sexta... Sexta, àsnoveemeia...Nãotenhamedo,nãovaidoernada...Estejapronta...

E então, quase que interrompendo a última frase, a música deorquestravoltouaretumbarviolentapelasala.

A sra. Harter permaneceu tensa por um minuto ou dois, sentadaimóvelnacadeira.Orostomuitopálido,oslábiosrepuxados.

Derepente,elase levantoue foiatéaescrivaninha.Comamãomeiotrêmula,escreveuasseguintesfrases:

Estanoite, às 21h15, ouvi distintamente a voz domeu falecidomarido.Ele disse que viria me buscar sexta-feira, às 21h30. Caso eu venha amorrer nesse dia e nessa hora, gostaria que esses fatos se tornassemconhecidosdopúblico,comoprovadapossibilidadedecomunicaçãocomomundoespiritual.

MaryHarterA sra. Harter releu o que havia escrito, depois colocou amensagem

numenvelopeemqueescreveuonomeeoendereçododestinatário.Emseguida ela tocou a campainha, e Elizabeth logo apareceu. A sra. Harterlevantou-sedaescrivaninhaeentregouoenvelopeàvelhacriada.

–Elizabeth–disseela–,casoeuvenhaafalecernasexta-feiraànoite,gostariaqueesteenvelopefosseentregueaodr.Meynell.

Diantedasugestãoaparentementeabsurda,Elizabeth fezmençãodeprotestar,masasra.Harterfoimaisrápida:

–Não,não.Nãoquerodiscutir sobre isso.Você já comentoudiversasvezescomigoqueacreditaempremonições.Poismuitobem.Euagorativeumapremonição.Emaisumacoisa:emmeu testamento,deixeiparavocêumaquantiadecinquentalibras.Gostariadedeixar-lhecem.Seeumesmanãoconseguiriraobanco,osr.Charlesdeveseencarregardisso.

Osprotestoschorososdacriadaforammaisumavez ignorados.Logonamanhãseguinte,asra.Harterfaloucomosobrinho:

– Lembre-se, Charles... se alguma coisa acontecer comigo, quero queElizabeth receba cinquenta libras a mais do que deixei para ela notestamento.

– Mas como a senhora anda melancólica nesses últimos dias... –observou Charles. – O que poderia lhe acontecer? De acordo com o dr.Meynell, em cerca de vinte anos estaremos celebrando o seu centésimoaniversário!

A sra.Harter sorriu afetuosamenteparao sobrinho, semdizernada.

Page 77: Agatha christie - o cão da morte

Depoisdeumminutooudois,elaperguntou:–Quaissãoosseusplanosparaasexta-feiraànoite,Charles?Aperguntaosurpreendeu.– Para falar a verdade, os Ewingme convidaram para jogar bridge.

Mas,seasenhoraprefere,euficoemcasa...– Não – declarou, enérgica, a sra. Harter. – Certamente que não,

Charles.Éumanoiteemquevoupreferirestarsozinha.Osobrinhoolhouparaeladescon iado,masnãofoicapazdeobterda

tiamaisnenhumainformação.Elaeraumavelhacorajosaedeterminada,esentiaquedeviaenfrentarsozinhaaquelaestranhasituação.

Na sexta-feira ànoite, a casaestavaemsilêncio.Comode costume, asra.Hartersentou-senasuacadeiradeespaldaralto,depoisdeaproximá-la da lareira. Estava tudo preparado. Pela manhã, ela fora ao banco esacara as cinquenta libras em dinheiro que entregara pessoalmente aElizabeth, apesar dos protestos chorosos da criada. Depois, organizaratodasassuascoisaseetiquetaraalgumasdassuasjoiascomosnomesdeamigosouparentes.Por im,escreveraaCharlesumbilhetecomalgumasinstruções.OjogodecháWorcesteririaparaasuaprimaEmma.AsjarrasdeSèvres,paraojovemWilliametc.

Naquelemomento,elatinhaemmãosumenvelopecomprido,doqualtirouumdocumentodobrado.Aqueleeraoseutestamento,quehaviasidoenviado pelo sr. Hopkinson, a pedido dela. Ela já o lera com atenção, eagorao consultava apenaspara refrescar amemória. Eraumdocumentopequeno, resumido.Deixavacinquenta librasparaElizabethMarshall, emconsideraçãoàsua idelidadeeserviços.A irmãeumaprimadeprimeirograureceberiamambasquinhentaslibras.Orestantedaherançairiaparaoseuqueridosobrinho,CharlesRidgeway.

Asra.Harterbalançoua cabeçaemsinalde satisfação.Charles seriamuitoricodepoisdamortedela.Nadamaisjusto,vistoqueseportaracoma tia damelhor forma possível. Sempre gentil, sempre atencioso, sempreprontoaalegrá-lacomalgumcomentárioespirituoso.

Orelógiomarcava20h27.Elaestavapronta.Eestavatranquila,muitotranquila.Porém, repetiaessasúltimaspalavraspara simesma inúmerasvezes.Seucoraçãobatiaestranhamentedescompassado.Eosnervos,semqueelapercebesse,estavamtensosapontodeseromperem.

Noveemeia.Orádioestava ligado.Oqueelaouviria?Avozusualdolocutor anunciando a previsão do tempo ou aquela outra voz distante,pertencenteaumhomemquehaviafalecido25anosantes?

Mas ela não ouviu nenhuma das duas. O que ela ouviu foi um ruído

Page 78: Agatha christie - o cão da morte

familiar,muito familiar,masquenaquelanoite fezcomqueela sentisseoseucoraçãocongelar.Alguémmexianaporta.

Outravez.Eentãofoicomoseumarajadageladadeventoinvadisseasala.Asra.Harternãotinhamaisnenhumadúvidasobreoqueacontecia.Estavacommedo...Maisdoqueisso:estavaapavorada.

Umpensamentoseimpunhaaela:“Vinteecincoanosémuitotempo.Patrickagoraéumestranhoparamim”.

Pânico!Eraissoquetomavacontadela.Passosdoladodeforadaporta.Passosquehesitavam.Eentãoaporta

seabriu,silenciosamente...Asra.Harterlevantou,cambaleante.Olhavaparaaportaedeixoucair

oquetinhanasmãos.Um grito sucumbiu em sua garganta. Na obscuridade do vão de

entrada,estavauma igurafamiliar,debarbaesuíçascastanhas,vestindoumcasacoforademoda,emestilovitoriano.

Patrickvierabuscá-la!Seucoraçãodeuumúltimopulo,depoisse imobilizou,aterrorizado,e

elacaiuencolhidanochão.

IIFoiláqueElizabethaencontrou,umahoradepois.O dr. Meynell foi imediatamente chamado, e Charles Ridgeway

retornouàspressasdojogodebridge.Masnadapodiaserfeito.Só dois dias depois Elizabeth se lembrou do bilhete que lhe fora

entreguepelapatroa.Odr.Meynellleu-ocomgrandeinteresseemostrou-oaCharlesRidgeway.

– Uma coincidência curiosa – disse ele. – Sem dúvida, sua tia estavatendo alucinações coma voz domaridomorto. Essas experiências devemtê-la deixado tão abaladaque, quando chegou a hora, ela não suportou ochoque.

–Autossugestão?–perguntouCharles.– Alguma coisa nesse sentido. Eu lhe aviso assim que souber do

resultadodaautópsia,masnãocreioqueelanostraganenhumasurpresa.Numcasocomoaquele,eraconvenientepedirumaautópsia.Charlesconcordoucomacabeça.Nanoiteanterior,quandoosempregadosdormiam,eleremoveraum

ioquesaíadetrásdoaparelhoderádioeiaatéoseuquarto,noandardecima. Além disso, como era uma noite fria, ele pedira a Elizabeth que

Page 79: Agatha christie - o cão da morte

acendessea lareirado seuquarto.Nela, elequeimouumabarbae suíçascastanhas.Nobaúque cheiravaa cânfora,no sótão, eleguardoualgumasroupasdeestilovitorianoquepertenciamaofalecidotio.

Aparentemente,elenãocorrianenhumrisco.Oplano,queserevelouum sucesso, lhe ocorrera pela primeira vez quando o dr. Meynell lhedissera que a tia poderia ainda durar muitos anos, caso se cuidasse.Qualquer choque ou esforço exagerado... A ideia fora o su iciente parafazer o jovem rir consigo mesmo. Ele, que era tão atencioso, o sobrinhopreferidodatia.

Quando o médico foi embora, Charles voltou a tratar das suasobrigações. Nem tudo estava pronto para o funeral. Era precisoprovidenciar passagens de trem para o retorno de parentes vindos delonge. Alguns deles passariam a noite na casa. Charles cuidoupessoalmentedetodosessesdetalhes.

Elenão conseguiaparardepensar:masquegolpede sorte! Tiravam-lhe umpeso dos ombros. Ninguém, emuitomenos o seu tiomorto, tinhaconhecimentodasdi iculdadesporqueCharlesestavapassando.Elecorriaoriscoatémesmodeserpresoporcausadosnegóciosescusosemqueseenvolvera.

A menos que conseguisse levantar uma quantia considerável dedinheirono espaçodepoucosmeses seria levado à ruína completa. Bem,mas agora ele estava salvo. Charles sorriu consigo mesmo. Aquelabrincadeirinha o salvara.Eraumhomemrico.Nuncaduvidaradequeumdiaoseria.Asra.Harternãoescondiaassuasintenções.

Como se estivesse em sintonia com aqueles pensamentos, Elizabethapareceu na porta para informar-lhe de que o sr. Hopkinson haviachegadoegostariadefalarcomele.

Já era tempo, re letiu Charles. Reprimindo a vontade que tinha deassobiar, ele assumiu uma expressão consternada, condizente com omomento da morte da tia, e se dirigiu à biblioteca. Chegando lá,cumprimentouovelhoadvogadoquepormaisde25anosdesempenharaopapeldeconselheirodasra.Harteremmatériasjurídicas.

O advogado sentou-se, a pedido de Charles, e depois de umatossidinhasecadeuinícioàconversa.

– Confesso que não entendimuito bem a sua carta, sr. Ridgeway. Osenhordáaentenderqueotestamentodasra.Harterestariaconosco?

Charlesarregalouosolhosparaele.–Maséclaro.Foioqueminhatiadisse.–Oh!Sim,sim,semdúvida.Eleestavamesmoconosco...

Page 80: Agatha christie - o cão da morte

–Estava?–Éoqueeudizia...Asra.Harterescreveupedindoqueenviássemoso

testamentoparaelanaúltimaterça-feira.Um mal-estar tomou conta de Charles. Ele teve um pressentimento

desagradável.–Devemencontrá-lojuntocomosoutrosdocumentosqueeladeixou–

continuouoadvogado,calmamente.Charles permaneceu em silêncio. Ele tinha medo de se trair. Já

revirara os documentos deixados pela sra. Harter, e o testamentocertamente não estava entre eles. Foi o que ele disse ao advogado dali aum ou doisminutos, depois de recuperar o autocontrole. Mas sentiu umarrepionaespinhaaoouviraprópriavoz.Elapareciatãoirreal.

–Alguémjáexaminouospertencesdela?–perguntouoadvogado.Charles respondeuqueElizabeth,a criadada tia,osexaminara.Osr.

Hopkinson sugeriu que a chamassem. No minuto seguinte ela apareceu,empertigada, e respondeu a todas as perguntas que lhe izeram, semalteraraexpressãoseveradorosto.

Elaexaminaratodasasroupaseosobjetosdeusopessoaldapatroa.Estava certa de que nem o testamento nem nenhum outro documentoparecidoestavaentreeles.Elaconheciaotestamento,poisapatroaotinhaemmãosnamanhãdomesmodiaemquemorrera.

–Vocêtemcertezadisso?–insistiuoadvogado.–Sim,senhor.Elamemostrouotestamentoefezcomqueeuaceitasse

cinquenta libras em dinheiro. O testamento estava num envelopecomprido,azul.

–Muitobem–disseosr.Hopkinson,satisfeito.–Mas agorame lembrei de uma coisa – continuouElizabeth. – Acho

que o mesmo envelope azul estava em cima dessa mesa na manhãseguinte,masvazio.Coloquei-onaescrivaninha.

–Melembrodetê-lovistolá–disseCharles.Ele se levantou e foi até a escrivaninha. Em umminuto encontrou o

envelope e o entregou ao sr. Hopkinson. O advogado moveu a cabeçaafirmativamente.

–Estefoioenvelopenoqualdespacheiotestamentonaúltimaterça-feira.

OsdoisolharamparaElizabeth.–Possoserútilemmaisalgumacoisa?–perguntouela,poreducação.–Nomomentonão,obrigado.Elizabethsaiuemdireçãoàporta,masoadvogadovoltouachamá-la:

Page 81: Agatha christie - o cão da morte

–Umminuto–disseele.–Haviafogonalareiranaquelanoite?–Sim,senhor.Sempreaacendemos.–Obrigado.Podeir.Elizabeth saiu. Charles inclinou-se para frente, apoiando a mão

trêmulasobreamesa.–Oqueosenhorimaginaqueaconteceu?Osr.Hopkinsonbalançouacabeça.–Épossívelqueotestamentoaindaapareça.Casocontrário...–Casocontrário?–Sópodemosconcluirumacoisa.Asua tiapediuqueenviássemoso

testamento a ela a im de destruí-lo. Como ela não queria que Elizabethficassenoprejuízo,deu-lheapartedelaemdinheiro.

–Masporquê?–exclamouCharlesforadesi.–Porquê?Osr.Hopkinsontossiu.Umatosseseca.–Osenhornãoteve...hum...nenhumdesentendimentorecentecoma

suatia,sr.Ridgeway?–murmurouele.Charlesbufou.– É claro que não. Sempre nos demos muito bem. Éramos muito

próximos.–Ah!–suspirouosr.Hopkinson,semencará-lo.FoiumchoqueparaCharlesperceberqueoadvogadonãoacreditava

nele. O que esse velho miserável sabia? É possível que algum rumor arespeito dos negócios escusos de Charles tivesse chegado até ele. E oadvogadoagorasupunhaqueomesmorumortivessechegadoaosouvidosdatia,equeporissoosdoistinhambrigado?

Mas não houvera nenhuma briga! Para Charles, aquele era ummomento di ícil. Ninguém colocara em dúvida as suas mentiras, masquandofalavaaverdadenemporissoacreditavamnele.Queironia!

Éclaroqueatianãoqueimaraotestamento!Éclaro...Foi então que ele lembrou. Diante dos olhos viu a imagem da velha

senhora, comumadasmãos apertada contra o peito... algo escapandodaoutra...umpapel...caindonasbrasas...

O rosto de Charles estava lívido. Ele ouviu a própria voz, rouca,perguntar:

–Esenãoencontraremotestamento?– Temos o testamento anterior, de setembro de 1920. Nele, a sra.

Harterdeixatudoparaasobrinha,MiriamHarter,agoraMiriamRobinson.Oqueéqueessepaspalhãoestádizendo?Miriam?Casadacomaquele

sujeitinho ordinário, mãe de quatro fedelhos insuportáveis? E então ele

Page 82: Agatha christie - o cão da morte

bolaratodoaqueleplanoparaqueelaficassecomtudo?Otelefonetocouestridenteaoseulado.Elelevantouofonedogancho.

Eraavozdomédico.– É você, Ridgeway? Achei que fosse gostar de saber. A autópsia foi

concluída.Acausadamorteéexatamenteaquelaqueeusupunha.Masnaverdade o problema cardíaco da sua tia eramuitomais sério do que eususpeitava.Pormaisqueela secuidasse, seriadi ícilquevivessemaisdoquedoismeses.Penseiqueissopudesselheservirdeconsolo.

– Como? – disse Charles, atônito. – O senhor poderia repetir? Nãoestououvindodireito...

–Dequalquerforma,elanãoviveriamaisdoquedoismeses–disseomédico, num tommais alto. –As coisas sempre acabamse resolvendodamelhorforma...

Mas Charles já tinha batido o fone no gancho. A voz do advogadopareciavirdemuitolonge:

–MeuDeus...Osenhorestábem?Quefossemtodosparaoinferno!Oalmofadinhadaqueleadvogado,o

intrometido do médico. Para ele, Charles, nenhuma esperança. Talvez asombradeumaprisão...

Eracomosealguémestivessebrincandocomele.Umabrincadeiradegatoerato.Alguémdeviaestarrindo...

Page 83: Agatha christie - o cão da morte

TESTEMUNHADAACUSAÇÃO

IO sr. Mayherne ajeitou o pincenê e limpou a garganta com a

tossezinha seca de sempre. Então ele olhou novamente para o homem àsuafrente,ohomemacusadodehomicídiopremeditado.

O sr.Mayherne era umhomempequeno, de gestos controlados, quesevestiademodoelegante,paranãodizerafetado,etinhaumpardeolhoscinzentosmuitovivosepenetrantes.Estavalongedeserbobo.Defato,suareputação como advogado era excelente. Quando falava com um clientecostumavaserseco,semcomissoparecerantipático.

–Devoenfatizar,maisumavez,agravidadedoseucaso.Éprecisoquemecontetudo.

LeonardVole,queatéentãoestiveracomosolhoscravadosnaparedebrancaàsuafrente,olhouparaoadvogado.

– Eu já sei – disse ele, desanimado. – O senhor não para de repetirisso.Masaindanãoconseguientendercomoéqueestousendoacusadodehomicídio.Homicídio!Umcrimetãocovarde...

Osr.Mayherneeraumhomemprático,avessoasentimentalismos.Eletossiu mais uma vez, tirou o pincenê, limpou-o com todo o cuidado ecolocou-odevoltasobreonariz.Depoisdisso,eledisse:

– Muito bem, sr. Vole. Vamos fazer o possível para tirá-lo dessaenrascada... edevemosconseguir.Devemosconseguir!Maséprecisoqueeu esteja a par de todos os fatos. Tenho de saber que riscos estamoscorrendo.Sódepoisdissoépossívelestabelecerumalinhadedefesa.

O jovem continuava a lançar a ele o mesmo olhar atônito edesesperançado. Até então, o sr. Mayherne tivera certeza da culpa doprisioneiro. O caso não deixava dúvidas. Mas agora até ele começava afraquejar.

–Osenhorachaquesouculpado–disseLeonardVole,emvozbaixa.–Mas juroporDeusquenãosou!Seiquetodosos indíciosapontamparamim.Écomosetivessemmeapanhadonumarede.Asmalhasdaredemeprendem,epormaisquememexanãoconsigomesoltar.Masnãofuieu,sr.Mayherne,nãofuieu!

Era de se esperar que ele alegasse inocência.Mayherne sabia disso.Ainda assim, estava impressionado. Podia ser mesmo que Leonard Volefosseinocente.

Page 84: Agatha christie - o cão da morte

– Está bem, sr. Vole – disse ele, solene. – Absolutamente tudo leva acrer que seja culpado, mas vou dar-lhe um voto de con iança. Agora, éimportante re letirmos sobre os fatos. Quero que me conte, com suasprópriaspalavras,exatamentecomoconheceuasrta.EmilyFrench.

– Foi por acaso, na Oxford Street. Vi uma senhora de idadeatravessando a rua. Ela carregava um monte de pacotes. Ao chegar nomeiodarua,derrubou-osetentoujuntá-los,equasefoiatropeladaporumônibus. Ela acabou dando um jeito de voltar para a calçada, tonta eassustadacomaspessoasgritandonosseusouvidos.Recupereiospacotes,limpei-osomelhorquepude,reamarreiaalçadeumdeleseentreguei-osdevoltaaela.

–Entãofoicomoselhesalvasseavida?– Ah, não! Fiz apenas uma gentileza. Ela icoumuito impressionada,

meagradeceuefusivamente.Dissealgosobreeuserdiferentedamaioriados jovensdehoje.Nãome lembromuitobemdaspalavrasqueelausou.Despedi-melevantandoochapéuefuiembora.Nuncaimagineiencontrá-ladenovo.Masavidaécheiadecoincidências.Naquelamesmanoite,acabeivendo-a na casa de um amigo, durante uma festa. Ela me reconheceuimediatamenteepediuquefôssemosapresentados.Descobrientãoquesechamava Emily French e vivia em Cricklewood. Conversamos por umtempo.A impressãoqueelamepassou foi ade serumadessas senhorasde idade que se impressionam facilmente com as pessoas. Dava umaimportância exagerada ao que eu tinha feito. Agi por educação. Ao irembora,elafezquestãodesedespedirdemimemeconvidouparavisitá-la. Respondi que seria um prazer, é claro, e ela então pediu-me paraescolher umdia durante a semana. Eu não queria ir,mas teria sido umagrosserianãodizernada.Por isso,acabeisugerindoosábado.Depoisqueela saiu, meus amigos me contarammais coisas sobre ela. Uma senhoraricaeexcêntrica,queviviacomumaempregadaenadamenosdoqueoitogatos.

– Entendo – disse o sr. Mayherne. – Então foi naquelamesma noitequetomouconhecimentodafortunadela?

–Eunãopergunteinadaarespeito–protestouLeonardVole.Osr.Mayhernefezumgestoafimdequeeleseacalmasse.– Tenho de examinar o caso sob a perspectiva daqueles que vão

acusá-lo. A srta. French não parece uma mulher rica. Ela vive de formasimples, atémesmo humilde. Qualquer um pensaria que ela passava pordi iculdades inanceiras,anãoserquelhedissessemocontrário.Quemfoiquelhecontouqueelaeraumamulherrica?

Page 85: Agatha christie - o cão da morte

–Meuamigo,GeorgeHarvey,odonodacasaondedavamafesta.–Eeledeveselembrardeterlhepassadoessainformação?–Nãosei.Issojáfazumtempo.–Certamente,sr.Vole.Vejabem,oprimeiropassodaacusaçãovaiser

focarnas suasdi iculdades inanceiras.A sua situação inanceiranão eraboa,era?

LeonardVoleficouvermelho.– É verdade – disse ele, em voz baixa. – Tenho dadomuito azar nos

últimostempos.–Certamente–repetiuosr.Mayherne.–E,comoeudizia,estandoem

di iculdades inanceiras, veio a conhecer essa mulher rica e fez de tudopara se tornar amigo dela. Se pudéssemos defender a ideia de que nãosabiaqueelaeraricaequeavisitouapenasporeducação...

–Masfoiissomesmooqueaconteceu.–Suponhoquesim.Nãoduvidodisso.Estouexaminandoocasosobo

ponto de vista da acusação.Muita coisa vai depender damemória do sr.Harvey.Seráqueelevaiselembrardaconversa?Poderíamossugeriraelequeelaaconteceumaistarde...

LeonardVolere letiuporummomento,depoisdisse,pálido,mascomfirmeza:

–Nãoacreditoqueessasejaumaboaestratégia,sr.Mayherne.Muitasdas pessoas que estavam presentes ouviram o comentário que ele fez.Fizeramatépiadacomofatodeeuterconquistadoavelhinharica.

Oadvogadotentoudisfarçaroseudesapontamento,fazendoumgestoamplocomamão.

–Quepena–disseele.–Maseuoparabenizopelasuasinceridade,sr.Vole. Conto com o seu discernimento. A sua objeção foi totalmenteprocedente. Seria um desastre se adotássemos a estratégia sugerida pormim.Vamosdeixá-ladelado.Osenhorconheceuasrta.French,foivisitá-lae tornaram-seamigos.Precisamosdeuma justi icativapara tudo isso.Porqueumjovemde33anos,bonito,praticantedeesportesecheiodeamigosiria passar tanto tempo com uma senhora de idade com quem tem tãopoucoemcomum?

LeonardVole lançouosbraçosparaoaltoemsinaldequenão tinhaumaresposta.

– Eu não sei. Eu realmente não sei. Depois da primeira visita, elainsistiu para que eu voltasse. Disse que era muito sozinha e infeliz. Foidi ícil recusar. Elame tratou tão bem, demonstrou tanta afeição pormimque iquei constrangido. Veja bem, sr. Mayherne... tenho uma natureza

Page 86: Agatha christie - o cão da morte

fraca. Eume deixo levar. Não sei dizer “não”. O senhor pode duvidar sequiser,masaverdadeéquedepoisdaterceiraouquartavisitacomeceiasimpatizar com a velha. Minha mãe morreu quando eu era jovem e fuicriado por uma tia, que também morreu antes de eu completar quinzeanos.Talvezissoofaçarir,masgostodeserpaparicado.

Osr.Mayhernenãoriu.Emvezdisso,tirouepoliuopincenê.Sinaldequerefletia.

–Aceito a sua explicação, sr. Vole – disse ele, por im. – Faz sentido,psicologicamente falando.Masaopiniãodo júripodeseroutra.Por favor,prossiga.Quandofoiqueasrta.Frenchlhepediuparadarumaolhadanosnegóciosdela?

– Depois da terceira ou quarta visita. Ela não sabia quase nada definançaseestavapreocupadacomalgunsinvestimentosquefizera.

Osr.Mayherneolhoufirmenosolhosdele.–Vamoscomcalma,sr.Vole.Acriada, JanetMackenzie,a irmaquea

patroatinhaumconhecimentobastanterazoáveldefinançasequecuidavapessoalmente dos seus negócios. Os depoimentos dos gerentes de bancoconfirmamesseponto.

–Oqueeuposso fazer?–perguntouele,muitosério.–Foioqueelamedisse...

Osr.Mayhernecontemplou-oemsilêncio.Nãodissenada,masagoraestavamais convencido da inocência de Leonard Vole. Amentalidade demuitasmulheresdeidadeeramesmoaquela.Asrta.Frenchseapaixonarapelo joveme inventavapretextosparaqueeleavisitasse.Por issoalegounão ter conhecimento de inanças e pediu a ele que a ajudasse. Essa eratambém uma forma de lisonjeá-lo. A srta. French estava longe de seringênua.Aodaraimpressãodequereconheciaasuperioridadedojovem,elao seduzia.Ela tambémnão teriaporqueesconderdelea sua fortuna.Eraumamulherforteedecidida,dispostaapagaroquefosseprecisoporaquiloquequeria.Todas essas ideiaspassaram rapidamentepela cabeçadosr.Mayherne,quenadadissesobreelasefezumaoutrapergunta:

–Eosenhoratendeuopedidodela?Ajudou-acomosnegócios?–Sim.–Sr.Vole–disseoadvogado–,voufazerumaperguntamuitosériae

é fundamental que me responda com a verdade. O senhor passava pordi iculdades inanceiras. E estava tomando conta dos negócios de umavelha senhora que, segundo ela mesma alegava, não entendia nada deinanças. Em nenhummomento o senhor se apossou do lucro das açõesque estava negociando?Não fez nenhuma transação que pudesse passar

Page 87: Agatha christie - o cão da morte

desapercebidaembenefíciopróprio?Ooutroiaresponder,maselenãodeixou:– Espere um momento antes de responder. Podemos seguir dois

caminhosdiferentes. Podemos enfatizar a suahonestidade e a probidadecomquecuidoudosnegóciosdela,mostrandoquenãohavianecessidadede cometer um assassinato porque haviameios in initamentemais fáceisde obter o dinheiro. Mas se a acusação vier a saber de algum desviocometido,sepuderemprovarqueosenhor,falandofrancamente,enganoua velha, então a saída será dizer que não haviamotivo para assassinato,umavezqueelavivajáeraumaboafontederenda.Achoqueadiferençaéóbvia.Portanto,gostariaquepensasseumpoucoantesderesponder.

MasarespostadeLeonardVolefoiimediata:–Lideicomosnegóciosdasrta.Frenchdeformatotalmentehonesta.

Nunca cometi qualquer irregularidade. Pelo contrário, agi sempre nointeressedela,quefavorecicomopude.Qualquerpessoaqueinvestigueosfatosvaicomprovaroqueestoudizendo.

–Bem, eu lhe agradeço–disseo sr.Mayherne. –O senhor tirouumpesodaminha consciência. Seriauma tolice tentarmentirparamimnumcaso de tamanha gravidade, e eu o cumprimento por sua honestidade einteligência.

–Éclaro–disseVole,semdemora–,opontomaisforteameufavoréaausênciadeummotivo.Digamosqueeuviessecultivandoumaamizadecomessa senhora comoobjetivodeobtervantagens inanceiras... Essaé,se entendi bem, a sua teoria. Bem, nesse caso, com amorte dela,minhasexpectativasseriamfrustradas,não?

O advogado olhou irme nos olhos dele. Depois tirou o pincenê,reproduzindo de forma deliberada aquele gesto que costumava repetirinconscientemente. Só depois de ajeitá-lo de volta sobre o nariz é quevoltouafalar:

–Sr.Vole...poracasonãosabeque,notestamento,elalhedeixoutodaafortuna?

–Oquê?–perguntouoprisioneiro,levantando-sedeumpulo.Eleestavaobviamenteconsternado,enãoerafingimento.–MeuDeus!Oqueosenhorestádizendo?Entãoeladeixouodinheiro

paramim?Osr.Mayhernefezquesimcomacabeça.Volevoltouaafundar-sena

cadeira,cobrindoorostocomambasasmãos.–Querdizerquenadasabiasobreotestamento?–Maséclaroquenão!

Page 88: Agatha christie - o cão da morte

– Essa não é a opinião da criada, Janet Mackenzie. Ela a irmoutaxativamentequeapatroaoteriaconsultadocomrelaçãoaesseassunto.Asrta.Frenchteriareveladoassuasintençõesaosenhor.

– Como? Mas ela está mentindo! Espere um pouco... Janet é meiocaduca. Ela era mais iel à patroa do que um cão de guarda. E nãosimpatizava comigo. Era ciumenta e descon iada. Eu diria que a srta.FrenchconfessousuasintençõesàcriadaequeJanetnãoentendeudireitoalguma coisa que a patroa disse. Ela deve ter se convencido de que tivealgumain luênciasobreadecisãodasrta.French.Eagoraelaacreditaquefoiaprópriapatroaquemlhedisseisso.

– A raiva e o ciúme não seriam o su iciente para fazê-la mentir deformadeliberada?

LeonardVolepareciachocado.–Não,não!Porqueelafariaumacoisadessas?–Eunãosei–declarouosr.Mayherne,pensativo.–Maselarealmente

nãogostadosenhor.Ojovemgrunhiaemdesespero.–Agora estouentendendo–murmurouele. –É aterrador.Vãodizer

queeuain luenciei,quea izescreverumtestamentodeixandotudoparamim.Edepoisquefuilá,naquelanoite,quandonãohaviamaisninguémnacasa...Enodiaseguinteencontraramocorpo!MeuDeus,éhorrível!

–Estáenganadoquantoanãohavermaisninguémnacasa–disseosr.Mayherne. –Conformedeve se lembrar, era a folgade Janet. Ela saiu,mas retornou mais ou menos às nove e meia para pegar um molde decosturaquehaviaprometidoaumaamiga.Entroupelaportados fundos,subiuasescadas,apanhou-oesaiunovamente.Elaouviuvozesnasaladeestar,não foi capazde identi icaroquediziam,masécapazde jurarqueeramdasrta.Frenchedeumhomem.

–Àsnoveemeia–repetiuLeonardVole–,àsnoveemeia...Derepenteeleselevantou:–Estousalvo!Estousalvo!–Comoassim,salvo?–exclamouosr.Mayherne,surpreso.– Às nove emeia eu já tinha voltado para casa.Minhamulher pode

provarisso.Faltavamaindacincominutosparaasnovequandosaídacasada srta. French. Cheguei em casa às 21h20. Minha mulher estava meesperando.Oh!GraçasaDeus,graçasaDeus!AbençoadosejaomoldedecosturadeJanetMackenzie.

Exaltado como estava, não chegou a reparar que o semblante doadvogado mal se alterara. Mas a pergunta feita a seguir fez com que

Page 89: Agatha christie - o cão da morte

voltasseasi:–Quementão,nasuaopinião,teriaassassinadoasrta.French?– Ora... um assaltante, por exemplo, como suspeitaram de início. A

janela foi forçada.Mataram-na comumgolpedepéde cabra, encontradoao lado do corpo. Vários objetos desapareceram da casa. Não fossem assuspeitas absurdas de Janet e a raiva que ela sente de mim, asinvestigaçõesdapolíciateriamcontinuadonorumocerto.

– A hipótese não vai convencer ninguém, sr. Vole – declarou oadvogado. – Os objetos que desapareceram valem muito pouco. Foramlevadosapenasparadespistarapolícia.Asmarcasque icaramna janelaestão longe de serem conclusivas. Além disso, pense bem no que estádizendo. Se àsnoveemeiao senhornãoestavamais lá, dequemseria avozmasculinaqueJanetouviunasaladeestar?Asrta.Frenchnãoestariatendoumaconversaamigávelcomoladrão...

–Não...realmentenão–disseVole.Ele parecia confuso e desencorajado. Lá pelas tantas, como se

recuperasseaesperança,disse:– De qualquer forma, tenho um álibi. O senhor precisa falar agora

mesmocomaminhaesposa,Romaine.– Certamente – concordou o advogado. – Eu já teria me encontrado

comelasenãoestivesseviajandodesdequeosenhorfoipreso.AScotlandYard me informou que ela chega hoje à noite. Assim que eu sair daqui,devoprocurá-la.

Voleassentiueumaexpressãodealíviotomoucontadoseurosto.–Romainevailhecontartudo.MeuDeus!Quegolpedesorte.–Peloqueentendo,osenhortemumagrandeafeiçãoporsuaesposa,

correto?–Maséclaro.–Eela?–Éumaesposamuitodedicada.Elafariaqualquercoisapormim.Elefaloucomentusiasmo,masocoraçãodoinspetorbateuaindamais

fraco. O depoimento de uma excelente esposa... quem se deixariaconvencer?

– Alguém mais o viu retornar às 21h20? Alguma empregada, porexemplo?

–Nãotemosempregada.–Nãoencontrouninguémduranteotrajetodevolta?–Ninguémqueeuconhecesse.Partedotrajeto izdeônibus.Podeser

queomotoristaselembredemim.

Page 90: Agatha christie - o cão da morte

Osr.Mayhernesacudiuacabeça,cético.– Então não há ninguém que possa con irmar o depoimento da sua

esposa?–Não.Maseémesmonecessárioqueoutrapessoaoconfirme?–Talveznão.Esperoquenão–apressou-seemdizerosr.Mayherne.

–Masháumaoutracoisa.Asrta.Frenchsabiaqueeracasado?–Claro.–Esuaesposanuncafoijuntovisitá-la?Porquê?Pelaprimeiravez,LeonardVolepareciahesitaremdarumaresposta.–Bem...eunãosei.– Há outra coisa que talvez não saiba. Janet Mackenzie alega que a

patroa nada sabia sobre a sua esposa e esperava poder casar com osenhornofuturo.

Voleriu.–Masqueabsurdo!Temosquarentaanosdediferença.–Nãoseriaoprimeirocaso.Eofatopermaneceomesmo:suaesposa

nuncaseencontroucomasrta.French.–Não...–hesitouele,denovo.–Permita-medizer...–prosseguiuoadvogado–asuaatitudeestáme

parecendomeioabsurda.Vole icou vermelho, hesitou por um momento, mas em seguida se

abriu:– Vou confessar-lhe tudo de uma vez por todas. Eu estava passando

por di iculdades, como sabem. Esperava que a srta. French pudesse meemprestar algum dinheiro. Ela gostava de mim e pouco se interessavapelas brigas que estavam ocorrendo entre mim e minha mulher. Elaachava que eu e minha mulher havíamos nos desentendido de vez evivíamosseparados,foioqueacabeipercebendo.Sr.Mayherne...euqueriao dinheiro... para Romaine. Não disse nada e deixei que a srta. Frenchacreditasse no que quisesse. Ela me tratava como se eu fosse um ilhoadotado.Eraoqueeladizia, jamais se falouemcasamento...CasamentoécoisadaimaginaçãodeJanet.

–Eissoétudo?–Sim.Étudo.Haviaounão,aodizeraquilo,umasombradehesitaçãonavozdele?O

advogado não sabia ao certo. Ele se levantou e cumprimentou-o com umapertodemão.

–Atémaisver,sr.Vole.Depoisolhouparaorostoexaustodorapazeacrescentouquasesem

Page 91: Agatha christie - o cão da morte

pensar:–Acreditonasuainocência,apesardetodososindíciossugeriremque

éculpado.Esperopoderprová-laedessaformafazerjustiça.Volesorriuparaeleedisse,empolgado:–Osenhorvaiverquenãohánadadeerradocommeuálibi.Edenovonãoreparouqueoadvogadosequerlherespondeu.–Tudovaidependerdodepoimentode JanetMackenzie–disseosr.

Mayherne.–Oqueestáclaroéqueelaoodeia.–Quemotivoteriaelaparameodiar?–protestouojovem.Oadvogadobalançouacabeça,pensativo,edeixouasala.–Eagoraéavezdasra.Vole...–disseeleparasimesmo.Estavarealmentesurpresocomorumoqueascoisastinhamtomado.Os Vole moravam numa casinha simples, perto da delegacia de

PaddingtonGreen.Osr.Mayhernefoiatélá.Quematendeuaportafoiumamulheralta,mal-arrumada,certamente

umaempregada.–Asra.Volejáretornou?–Fazumahora.Masnãoseivaipoderrecebê-lo.– Se a senhora puder entregar a ela o meu cartão... – disse o sr.

Mayherne,calmamente.–Estoucertodequevaimereceber.A mulher olhou para ele descon iada, limpou a mão no avental e

pegouocartão.Depoisdisso,fechouaportanacaradoadvogadoedeixou-oesperandonodegraudoladodefora.

Nãodemoroumuito, entretanto, para que voltasse, e dessa vez ela otratoudeummodoligeiramentediferente.

–Entre,porfavor.Ela conduziu-o a uma minúscula sala de estar. O sr. Mayherne

examinavadistraídoumagravuranaparedequandofoisurpreendidoporuma mulher alta e pálida, que entrara na peça sem fazer qualquerbarulho.

–Sr.Mayherne?Acreditoquesejaoadvogadodomeumarido.Estevecomele?Sente-se,porfavor.

Antes de ouvi-la, o sr. Mayherne não se dera conta de que não erainglesa. Agora, observando-a mais de perto, ele reparava nas bochechassalientes,nabastacabeleiranegraquechegavaaserazuladaenosgestosrequintadosqueelaàsvezesesboçavacomasmãos.Eravisivelmenteumaestrangeira.Tinhaumar estranhamente calmo.Tão calmoque chegavaadeixá-lo constrangido. O sr. Mayherne tinha a nítida impressão de estardiantedealgoquenãocompreendiadireito.

Page 92: Agatha christie - o cão da morte

–Nãohámotivoparadesespero... – começouele,masemseguida seinterrompeu.

Romaine Vole não corria o risco de se desesperar. Ela estavamuitocalmaesegura.

– Por favor, seja franco comigo. Preciso saber de tudo. O senhor vaimecontartudooquesabe,não?Comecepelopior...

Elahesitouporummomentoedepoisrepetiuafrasecomumaênfasequepareceuestranhaaoadvogado:

–Pelopior.Osr.Mayhernefaloudaconversaquetiveracomomaridodela.Asra.

Voleescutoucomatenção,concordandodevezemquandocomacabeça.–Entendo–disseela,depoisqueeleterminou.–Elequerqueeudiga

queelechegouemcasaàs21h20naquelanoite?–Nãofoiessaahoraemqueelechegou?–perguntouosr.Mayherne,

contrariado.–Não é issooque importa... – replicou ela friamente. –Dizendoque

foi,possosalvá-lo?Vãoacreditaremmim?O sr. Mayherne não esperava por aquilo. Ela havia compreendido

rápidodemaisoessencialdaquestão.– É só o que preciso saber – disse ela. – Meu depoimento vai ser

suficiente?Alguémmaisvaipoderatestaroqueestoudizendo?Haviaumaimpaciêncianojeitodelaqueoincomodava.–Atéomomento,nãotemosnenhumaoutratestemunha–respondeu

ele,hesitante.–Entendo–disseRomaineVole.Ela se endireitou na cadeira e permaneceu calada por um ou dois

minutos.Sorriaconsigomesma,comdiscrição.Oadvogadoficavacadavezmaispreocupado.–Sra.Vole–disseele–,seicomodevesesentir...–Émesmo?Imaginoquesim...–Dadasascircunstâncias...–Dadasascircunstâncias,souobrigadaaagirsozinha.Eleolhoudesconcertadoparaela.– Mas minha cara sra. Vole, a senhora está alterada. Sendo uma

esposatãodedicada...–Como?A frieza com que ela fez a pergunta assustou-o. Ele repetiu,

desconfiado:–Sendoumaesposatãodedicada...

Page 93: Agatha christie - o cão da morte

Romaine Vole sacudiu a cabeça lentamente numa negativa, com omesmosorrisoestranhonoslábios.

–Foioqueeledisse?Quesouumaesposadedicada?Masclaro!Nãoduvido.Comosãoestúpidososhomens...

Derepenteelaselevantou.Todaatensãoqueoadvogadopressentiraestarcontidanaqueleambienteexplicitou-senotomdevozdela:

–Poisdigaaelequeoodeio.Odeio,odeiomesmo.Esperoqueelesejacondenadoaoenforcamento.

O advogado recuou diante da paixão com que os olhos delaflamejavam.

Eladeuumpassonadireçãodeleecontinuou,aindaindignada:–Talvezajudeseeulhedisserqueelenãovoltouparacasaàs21h20,

mas às 22h20! Ele alega que não sabia nada sobre o dinheiro que iriaherdar.Eseeulhedisserqueelesabia,contavacomodinheiroecometeuo assassinato para pôr as mãos nele? E se eu lhe disser que ele meconfessoutudoissoaquimesmo,quandochegouemcasa,naquelanoite?Eque havia sangue no casaco dele? E então? Digamos que eu revele tudoissoaojúri!

Elaolhava ixamenteparaele,comosequisessedesa iá-lo.Comcertoesforço,eleconseguiuesconderacrescenteconsternaçãoedissenumtomapaziguador:

–Ninguémpodeobrigá-laadeporcontraoseumarido...–Elenãoémeumarido!As palavras saíram tão rápidas que ele icou na dúvida se tinha

entendido.–Oquefoiqueasenhoradisse?–Elenãoémeumarido.Osilênciofoitalquesepoderiaouviraquedadeumalfinete.–EutrabalhavacomoatrizemViena.Meumaridoestávivo,masnum

hospício.Porissonãopodíamoscasar.Agoraestoualiviada.Elabalançavaacabeçaafirmativamente,afimdeenfatizaroquedizia.–Gostariade saberuma coisa –disseo sr.Mayherne, afetandouma

calma e frieza que ele evidentemente já não tinha. – Por que a senhoraestátãomagoadacomLeonardVole?

Elasacudiuacabeçanegativamenteesorriu.–Gostariamesmo?Éumapena.Nadadireisobreisso.Osr.Mayhernedeuatossidinhahabitualeselevantou.–Bem,achoquenossaconversachegouaofim.Devofazermaisalgum

contatocomasenhora,depoisdeconversardenovocommeucliente.

Page 94: Agatha christie - o cão da morte

Elaseaproximoudele,fitando-ocomseusolhosnegroseprofundos.– O senhor acreditava mesmo na inocência dele quando veio aqui

hoje?Honestamentefalando...–Sim,euacreditava–respondeuosr.Mayherne.–Osenhorémesmoingênuo–disseela,rindo.– E continuo acreditando – declarou ele, para encerrar. – Boa noite,

madame.Osr.Mayhernesaiudasala, levandonamemóriaaexpressãopasma

dorostodela.– Vai ser um trabalho deHércules – disse para simesmo, enquanto

caminhavapelarua.Tudo era estranhíssimo. A mulher, misteriosa e perigosa. Mulheres

podemserterríveisquandotêmumacartanamanga.O que se podia fazer? Aquele jovem não tinha onde se segurar. Era

possível,éclaro,queeletivessemesmocometidoocrime.“Não”, disse o sr. Mayherne para si mesmo. “Há evidências demais

contraele.Nãoacreditonessamulher.Elaestavablefandootempotodo,ejamaisvairepetiressasdeclaraçõesdiantedojúri.”

Elesesentiriamelhorsetivessemaiscertezadisso.

IIO inquérito foi rápido e dramático. As principais testemunhas da

acusação eram Janet Mackenzie, a empregada da falecida, e RomaineHeilger,austríaca,amantedoacusado.

O sr. Mayherne ouviu calado as declarações incriminadoras da sra.Heilger,quereproduziammaisoumenosaquiloqueelajálhedissera.

Oacusadoteriaagoradesedefenderdiantedojúri.Osr.Mayhernejánãosabiamaisoquefazer.OcasodeLeonardVole

eraumcasoperdido,pormaisprestígioquetivesseoadvogadodedefesa.Se conseguissem pelo menos pôr em dúvida o depoimento da

austríaca...“Masessepareceumbecosemsaída”,disseeleparasimesmo.Já fazia um tempo que o sr. Mayherne resolvera concentrar as

energias num outro ponto. Se Leonard Vole falava a verdade e tinhadeixado a casa da morta às nove horas, quem era o homem que Janetouviraconversandocomasrta.Frenchàsnoveemeia?

Uma resposta para aquela questão e também uma saída para o sr.Vole apareceu na forma de um sobrinho baderneiro, que no passado

Page 95: Agatha christie - o cão da morte

extorquira da tia boas quantias em dinheiro. O advogado descobrira queJanetMackenziegostavadorapazenuncadeixaradedefendê-lodiantedapatroa.Erabempossívelqueohomemcomquemasrta.Frenchestiveradepois de Leonard Vole deixar a casa fosse esse sobrinho, que agoraestavadesaparecido.

Aquela fora a única linha de investigação do advogado que trouxeraum resultado concreto. As outras não levavam a parte alguma. Ninguémvira Leonard Vole chegar em casa ou sair da casa da srta. French.Ninguém vira nenhum outro homem entrar ou sair da casa emCricklewood.

Foinavésperadojulgamentoqueosr.Mayhernerecebeuumacartaquefezcomquemudassecompletamenteoseuentendimentodocaso.

A carta chegou no correio da tarde. Vinha escrita em papel comum,com um garrancho horroroso, e fora colocada num envelope encardido,comoselotorto.

Osr.Mayhernetevedelê-laduasvezesparaentender:

Carosenhor:

Seiqueéocamaradada leiqueageemnomedo jovemcolega.Sequerpôr um im às tretas da gringa mascarada, dê as caras essa noite napensãoShaw,emStepney.Nãomenosqueduzentas libras.Falarcomasra.Mogson.Oadvogadoleuereleuaquelamensagemestranha.Podianãopassar

de uma brincadeira, mas por algum motivo ele descon iava que amensagem era genuína e representava mesmo uma esperança para oacusado. O depoimento de Romaine Heilger fora extremamentecomprometedor, e a linha que a defesa iria adotar parecia poucoconvincente: não se poderia levar em conta evidências apresentadas porumamulherqueadmitialevarumavidaimoral.

Osr.Mayherneestavaconvencido.Eraseudever fazerde tudoparasalvaroseucliente.Eletinhadeiràquelapensão.

Nãofoimuitofácilacharolugar,umedi ícioemruínasnumaperiferiafedorenta.Quandochegou,perguntoupelasra.Mogsoneindicaram-lheumquartonoterceiroandar.Bateunaportaumaveze,comonãorespondiam,bateudenovo.

Depoisdasegundabatida,ouviuumbarulhodepéssearrastandodolado de dentro. A porta foi aberta, mas com cautela: uma fresta larga osuficienteparaqueespiassemparaoladodefora.

Page 96: Agatha christie - o cão da morte

Quemestavanoapartamentoeramesmoumamulher,quederepentesoltouumarisadinhaeterminoudeabriraporta.

–Entãoévocê,querido...–disseelanumavozofegante.–Veiomesmosozinho? Não está me escondendo nada? Sem truques? Está bem, podeentrar.Entre,porfavor...

Comcerta relutância,o advogadoentrounaqueleaposento imundoeapertado,noqual tremeluziaumlampiãoagás.Nocantohaviaumacamadesarrumada e, mais ao lado, uma mesa simples de madeira com duascadeiras que pareciam bambas. O sr. Mayherne também tinha agora achance de apreciar por inteiro a igura da locatária daquele cubículodesagradável. Uma mulher de meia-idade, um pouco corcunda, cujocachecolenroladoapertadoaoredordopescoçoedacabeçaajudavaapôrem ordem uma cabeleira grisalha e desgrenhada. Ao perceber que eraobservada,soltounovamentesuarisadinhainsípida.

–Quersaberporquemeescondodesse jeito?Minhabelezaoseduz,hum?Nãosepreocupe,voulhemostrar...

Elaafastouocachecol,fazendocomqueoadvogadoautomaticamenterecuassediantedamanchadisformeavermelhada.

–Entãovocênãoquermebeijar,querido?–disseela,cobrindo-sedenovocomocachecol.–Poismepareceuquepudesseestarinteressado...Jáfui uma bela garota, você sabia? E não faz assim tanto tempo. Vitríolo,querido,vitríolo...acausadissotudo.Ah!Masavingançaéumpratoquesecomefrio...

E, ao dizer isso, explodiu numa torrente de palavras obscenas que osr. Mayherne tentou em vão conter. Por im, ela caiu em silêncio,retorcendoasmãos.

– Agora chega – disse o advogado, indignado. – Vim aqui apenasporquetenhorazõesparacrerqueasenhoratemalgumainformaçãoquepodeinocentarmeucliente,LeonardVole.Temounão?

Elalançouaeleumolharlânguidoemalicioso.– E quanto ao dinheiro, querido? – sussurrou ela. – Duzentas libras,

vocêesqueceu?–Asenhoratemaobrigaçãodedizeroquesabe.Epodeserintimada

afazê-lo.–Sintomuito,meucaro.Estouvelhademaisejánãomelembrodireito

dascoisas.Porduzentaslibras,possolhedarumaqueoutraindicação.Docontrário...

–Quetipodeindicação?–Oqueachariadeuma carta?Uma cartadela?Não importa comoa

Page 97: Agatha christie - o cão da morte

consegui.Issonãointeressa.Masquerominhasduzentaslibras.Osr.Mayherneolhouparaelafriamenteenquantorefletia.–Dou-lhedezlibras,nadamais.Esomentedepoisdeolharacarta.–Dezlibras?–exclamouela,indignada.–Vinte–disseosr.Mayherne.–Eéminhaúltimaoferta.Ele se levantou comose fosse sair.Então, olhando-ade cimaabaixo,

tiroudobolsoumacarteiraecontou21libras.–Ésóoquetenho–disseoadvogado.–Épegaroulargar.Mas ele já sabia que a visão do dinheiro seria o su iciente para

convencê-la.Emvãoamulherresmungouepraguejou,atéquepor imseentregou.Indoatéacama,elaretiroualgodedebaixodocolchãovelho.

–Aquiestãoasmalditascartas–rosnouela.–Aquelheinteressaestánotopo.

Elaatirouopacoteemcimadele,quedesatou-oeexaminouascartasuma por uma, de forma metódica, com sua habitual frieza. A mulherolhava-oansiosa,semnadaconseguirinferirdoseurostoimpassível.

Ele leu cada uma das cartas e então voltou à que estava no topo,lendo-aumasegundavez.Depoisdisso,amarrou-ascomcuidado.

Eramcartasde amor, escritasporRomaineHeilgerparaumhomemquenãoeraLeonardVole.Acartanotopodapilhatraziaamesmadatadaprisãodorapaz.

–Oqueeudisseeraverdade,não?–queixou-seamulher.–Acartavaiacabarcomela,certo?

Osr.Mayherneguardouascartasnobolsoeentãoperguntou:–Comofoiqueteveacessoaessacorrespondência?–É issooquequersaber?–perguntouela,comumsorriso.–Seide

outra coisa que pode lhe interessar mais... Também tem a ver com asmentiras da estrangeira. Procure descobrir onde ela estava às 22h20naqueledia.Aocontráriodoqueainfelizdiznodepoimento,emcasaéquenãoera.VáatéocinemaemLionRoad.Certamentenãovãoteresquecidodeumajovemcomoela...

–Queméessehomem?–perguntouosr.Mayherne.Avozdela icoumaispesadaerouca.Nãoparavaderetorcerasmãos,

atéquelevouumadelasatéorosto.–Eleéosujeitoquemefezisso.Anosatrás...quandoelaorouboude

mim. Corri atrás diversas vezes, até que ele me atirou essa porcaria norosto! E ela achou graça... graça da minha cara! Faz anos que venhoesperandoporessaoportunidade.Fiqueideolho,nuncaperdia infelizdevista. E agora a apanhei de verdade! Apanhei mesmo, não é, senhor

Page 98: Agatha christie - o cão da morte

advogado?Elavaipagarcaro,vaisofrer,nãovai?–Devemprendê-laporperjúrio–disseosr.Mayherne,calmamente.– Ser presa... é o que ela merece! Mas já vai, querido? E o meu

dinheiro?Odinheirinhoqueprometeu?Semdizermaisnada, o sr.Mayherne colocouasnotas sobreamesa.

Depois disso, ele respirou aliviado e deixou aquele apartamento sórdido.Olhandoparatrás,viuavelha,quecontavaodinheiro.

Elenãoperdeutempo.FoirelativamentefácilacharocinemaemLionRoad, e o porteiro não hesitou em identi icar Romaine Heilger, quandoconfrontadocomuma fotogra ia.Ela foraao cinemana companhiadeumhomem,umpoucodepois das dez horas, na noite emquestão.Oporteironão prestou muita atenção no acompanhante, mas da mulher ele selembrava bem, porque ela pediu a ele informações sobre o ilme queestavam exibindo. Os dois icaram até o inal, cerca de uma hora maistarde.

O sr. Mayherne estava satisfeito. Romaine Heilger contara umamentiradepoisdaoutranoseudepoimento.Etudoporcausadoódioqueela sentia pelo acusado. O advogado se perguntou se um dia eledescobririaomotivodaqueleódio.OqueLeonardVole izeracontraela?Orapaz icara perplexo ao saber da atitude de Romaine. Para Leonard, ocomportamentodelapareciamesmo incompreensível,apesardequeosr.Mayhernepôde observar quedepois do primeiro susto os protestos deleficavamcadavezmenosconvincentes.

Leonard sabia o motivo daquele ódio. O sr. Mayherne estava certodisso.Maso clientenãoquis revelar-lhe os fatos, quepermaneceramumsegredoconhecidoapenasporLeonardeRomaine.

O advogado consultou o relógio. Não havia tempo a perder. Eraprecisoincluiraquelesnovosdadosnadefesadoacusado.Elechamouumtáxi.

O julgamento de Leonard Vole pelo assassinato de Emily Frenchcausou um grande alvoroço. O acusado era um jovem atraente, quesupostamente cometera um crime cruel. As pessoas se interessavamtambémporRomaineHeilger, a principal testemunhada acusação.Haviafotosdelanosjornaiseváriosboatossobreasuaorigem.

Oprocesso teve início com relativa tranquilidade.Tratou-seprimeirodecertasevidênciasdeordemtécnica.Emseguida,ouviu-seodepoimentodeJanetMackenzie.Elabasicamenterepetiuoquejádissera.Aointerrogá-la,adefesaconseguiufazercomquecaísseduasvezesemcontradiçãoaoexplicar a natureza da relação de Leonard Vole com a srta. French. O

Page 99: Agatha christie - o cão da morte

advogadoenfatizouo fatodequenãohavianenhumaevidênciadequeavoz ouvida por ela na sala de estar aquela noite fosse do sr. Vole. E eleconseguiu dar a entender ao júri que boa parte do depoimento daempregadaeramotivadapelociúmeepelaraivaqueelatinhadoacusado.

Chamaramentãoaoutratestemunha.–SeunomeéRomaineHeilger?–Sim.–Asenhoraéaustríaca?–Sim.– Nos últimos três anos, a senhora tem vivido com o acusado e se

apresentadocomosuaesposa?Por um momento, os olhos de Romaine Heilger encontraram os do

homem no banco dos réus. A expressão dela tinha algo de curioso,enigmático.

–Sim.Asquestõesseseguiram,eelafoitecendooseuenredoincriminador.

Nanoiteemquestão,oacusadosaíralevandoconsigoumpédecabra.Eleretornara às 22h20 e confessara ter matado a velha senhora. Tinha ospunhosmanchados de sangue e queimara a camisa no forno da cozinha.Ele a aterrorizara com ameaças, a im de que ela nada contasse sobre oocorrido.

O depoimento de Romaine acabou por reverter completamente oânimodo júri,quede inícioparecia favorávelaoacusado.E, conformeelaavançava com o seu relato, o próprio Leonard Vole ia se retraindo decabeçabaixa,comoseadivinhasseaprópriacondenação.

E no entanto a impressão que se tinha era a de que o promotortentavaconteraanimosidadedeRomaine.Eleprovavelmentepreferiaqueelaparecesseumatestemunhamaisisenta.

Extremamente alinhado e ao mesmo tempo solene, o advogado dedefesaselevantou.

Sem se alterar, ele declarou que o depoimento dela fora uma farsaardilosamenteencenadado inícioao im,equeelanemmesmo icaraemcasa na noite em questão. Romaine era apaixonada por outro homem eestava tentando deliberadamente obter a condenação de Vole por umcrimequeelenãocometera.

Romainenegoucategoricamenteasalegações.Eentãoseguiu-seodesenlaceinesperado,arevelaçãodacarta.Elafoi

lidaemvozalta,emmeioaumsilênciotensoquetomoucontadotribunal.

Page 100: Agatha christie - o cão da morte

Max, meu querido, o destino colocou Leonard em nossasmãos! Ele foipreso por assassinato... sim, pelo assassinato de uma velha! Logo ele,incapaz de ferir uma mosca! Mas inalmente tenho a chance de mevingar daquele frouxo! Direi que voltou pra casa sujo de sangue e quemeconfessouocrime.Vãocondená-lo,Max... e,quandoeleestiverparaser enforcado, vai se dar conta de que fui eu quem pôs a corda nopescoçodele...FoiRomainequemdeuumjeitodeenviá-loparaoquintodosinfernos.Finalmenteafelicidade,meuamor.Afelicidade!

Haviaespecialistaspresentesprontosparaatestarqueacaligra iaeramesmo de Romaine Heilger, mas isso não foi necessário. Totalmentesurpreendia pela revelação da carta, ela perdeu o controle e acabouconfessando tudo. LeonardVole retornara à casanohorárioditopor ele:21h20.Romaineinventaratodaaquelahistóriaafimdedestruí-lo.

Depois de a austríaca ser desmascarada, o trabalho da acusaçãotambém acabou comprometido. Outras testemunhas foram chamadas, epor im o próprio acusado contou a sua versão dos fatos, de uma formaobjetivaesemcairemqualquercontradição.

O promotor tentou reacender o debate, mas sem sucesso. Arecapitulação do caso feita pelo juiz não foi inteiramente favorável aoacusado, mas apontou uma direção clara ao júri, que precisou de poucotempoparachegaraoseuveredito:

–Consideramosoréuinocente.LeonardVoleestavalivre!O pequeno sr. Mayherne levantou-se. Ele precisava cumprimentar o

seucliente.Mas de repente deu por si limpando vigorosamente o pincenê. Na

noiteanterior,aesposarepararaqueogestoestavasetornandoumhábitodo marido. Era curioso. As pessoas di icilmente se davam conta dospróprioshábitos.

O caso fora interessante,muito interessante. Em especial pela iguraexóticadaquelamulher,RomaineHeilger.

Na casa em Paddington, ela lhe parecera uma mulher pálida ereservada. Agora, diante da atmosfera sóbria e formal do tribunal, ela sedestacavacomabelezadeumaflortropical.

Se ele fechasse os olhos, podia vê-la, alta e radiante, com o corpodelicadoligeiramenteinclinadoparafrente,porvezesretorcendoasmãos,num gesto inconsciente. Como eram curiosos os hábitos das pessoas.Aquele gesto obsessivo com asmãos era um hábito damoça, supunha o

Page 101: Agatha christie - o cão da morte

advogado. Mas ele o lembrava de uma outra pessoa. Quem? Não faziamuitoqueviraalguém...

Quandose lembrou,nãopôdeconterumgemido.AmulhernapensãoShaw!

Ficou imóvel, a cabeça girando. Impossível, impossível!MasRomaineHeilgereraatriz...

Um colega da defesa aproximou-se e deu-lhe uma palmadinha noombro.

–Já faloucomonossohomem?Ocoitadoescapouporpouco...Vamoscumprimentá-lo.

Mas o advogado desvencilhou-se do colega. Só uma coisa lheimportavanaquelemomento:ficardefrentecomRomaineHeilger.

Elesóaviumaistarde,bemlongedali.– Não é que o senhor adivinhou? – disse a moça, depois que o

advogadoseabriucomela.–Odetalhedamanchafoiapenasmaquiagem,quealuzfracadolampiãoagásmeajudouaesconder.

–Masporquê?Porquê?– Por que foi que eu me decidi a agir sozinha? – disse ela com um

sorriso,lembrando-sedaúltimavezqueusaraaquelaspalavras.–Porquerepresentoutodaessacomédia?– Ora, eu precisava salvá-lo! O depoimento de uma esposa dedicada

nãoseria convincente...Melhordoqueninguém,o senhorsabiadisso.Foiumaquestãodepsicologiademassas.Eraprecisoque eu apresentasse aevidência como se estivesse sendo forçada, coagida pela lei... Só assim omeu depoimento seria capaz de desencadear uma reação a favor doacusado.

–Masetodasaquelascartas?– Se eu lhe entregasse apenas uma, a mais importante, ela poderia

parecerforjada.–Eessehomem,chamadoMax?–Nuncaexistiu!– Eu ainda acho, srta. Heilger – disse o pequeno sr.Mayherne, num

tom de mágoa –, que poderíamos tê-lo salvo de uma forma mais, mais...convencional!

–Eunãopodiaarriscar.Osenhorachavaqueeleerainocente...–Easenhorasabia?Entendo...–Não,meu caro sr.Mayherne... De initivamente, o senhor ainda não

entendeu.Eeusabia:eleeraculpado!

Page 102: Agatha christie - o cão da morte

OMISTÉRIODAJARRAAZUL

IJack Hartington calculou friamente a tacada. Parando ao lado da

bolinha, olhou para o tee, examinando a distância. Em seu rosto estavaagoraestampadatodaasuaraiva.Comumsuspiroafastouotaco,ameaçouduasvezese,antesdeacertarpropriamentenabolinha,aniquilouumtufodegramaeumdente-de-leão.

Quandosetem25anosdeidadeeaúnicaambiçãonavidaédiminuiro número de tacadas que normalmente se dá numa partida de golfe, serforçado a dedicar tempo e atenção à tarefa ingrata de ganhar o pão decada dia torna-se um grande problema. Dos sete dias da semana, Jackpassavacincoemeioencarceradonumescritório,quemaislhepareciaumcaixãodemogno,nocentrodacidade.Astardesdesábadoeodomingoelededicava religiosamente ao que a vida tinha de importante.O excesso dezelo izeratambémcomqueelealugasseumquartoemumpequenohotelnas imediaçõesdocampodeStourtonHeath.Assim, todososdias, Jackselevantavaàsseisdamanhãa imdeterachancedepraticaroseuesporteporumahoraantesdetomarotremqueolevavaaocentrodacidade.

A única desvantagem do plano é que lhe parecia isiologicamenteimpossível acertar o que quer que fosse àquela hora da manhã. Comtacadas desastradas, ele desperdiçava todas as chances. Quando tentavamandar a bola alta, ela saía risivelmente rasteira, e emqualquer umdospercursosparecia-lheimpossívelfinalizaroburaco.

Jack suspirou, agarrou o taco com força e repetiu para simesmo aspalavrinhasmágicas:“Braçoesquerdoesticadoecabeçabaixa”.

Girou o corpo e então, de repente, parou, petri icado pelo gritoestridentequevarouosilênciodaquelamanhãdeverão:

–Socorro!Ajudem,porfavor!Estãomematando!Avozdamulheremseguidadesapareceunumaespéciedegorgolejo

angustiado.Jackdeixoucairotacoeseprecipitounadireçãodeondevinhaosom.

Erade algum lugarnãomuitodistante.Apartedopercurso emque Jackestava era peculiarmente selvagem e isolada. Havia poucas casas. Naverdade, próximo dali, havia apenas um pequeno chalé, que semprechamaraaatençãodeJackpeloaspectopitoresco,comoquepertencenteauma outra época. Foi para lá que ele correu. O chalé icava escondido

Page 103: Agatha christie - o cão da morte

embaixodeumdeclivecobertodeurzes.Eraprecisocontorná-las,masemmenosdeumminutoJackestavaaoladodoportão,abrindootrinco.

Havia uma moça no jardim, e por um momento Jack pensou quepudesseserelaquemgritara.Maslogomudoudeideia.

Ela carregava na mão uma cestinha cheia de ervas daninhas, e eraevidente que até então estivera abaixada recolhendo-as de um largocanteiro de amores-perfeitos. Os próprios olhos dela eram como amores-perfeitos, escuros e aveludados, de uma cor que puxava mais para ovioleta do que propriamente para o azul. Aliás, ela toda era um amor-perfeito,noseuvestidinhopúrpuradelinho.

A moça lançou a Jack um olhar ao mesmo tempo incomodado e desurpresa.

–Medesculpe–disseele.–Foivocêqueacaboudegritar?–Eu?Claroquenão.AsurpresadelaeratãogenuínaqueJack icouconfuso.Amoçatinha

umabelavoz,maciaecomumsuavesotaqueestrangeiro.–Masvocêtambémdeveterouvido!–exclamouele.–Veiodealgum

lugaraquiperto.Elacravouneleosolhos.–Nãoouvinada.Jack, por sua vez, também cravou os olhos nela. Era realmente

impossível que a moça não tivesse ouvido aquele grito agoniado desocorro.EnoentantoelaestavatãocalmaqueJacktambémnãopodiacrerqueestivessementindo.

–Veiodealgumlugaraquiperto–insistiuele.Elaagoralançava-lheumolhardesconfiado.–Masquetipodegritoera?–Socorro!Ajudem,porfavor!Estãomematando!–Socorro!Ajudem,porfavor!–repetiuamoça.–Senhor,euachoque

lhepregaramumapeça.Queméquematariaalguémaqui?Jackolhouaoredorcomoseesperasseencontrarumcadávercaídono

jardim. Deu-se conta do ridículo da ideia, mas nem por isso podia negarqueogritoqueouviraerarealenãofrutodasuaimaginação.Tentouolharatravésdosvidrosdochalé.Tudopareciacalmoeemordem.

–Querrevistaracasa?–perguntouamoça,secamente.Elasemostravatãoexplicitamentearrediaàideiadequealguémpor

ali pudesse ter gritado que Jack acabou icando mais confuso do quenunca.

–Medesculpe–disseele,desistindo.–Ogritodevetervindodeoutro

Page 104: Agatha christie - o cão da morte

lugarmaisláparacima.Elecumprimentou-atirandoobonéeseretirou.Olhandoporcimado

ombro,viuqueelavoltaratranquilamenteacuidardocanteiro.Porumtempoeleainda icouprocurandoentreosarbustos,massem

encontrar nada de extraordinário. E no entanto ele tinha certeza de queouvira o grito. Por im, acaboudando abuscapor encerrada e correudevoltaparacasa,naesperançadeaindaconseguirengolirocafédamanhãantes de pegar o trem. Como sempre, chegou na plataforma segundosantes da partida. Já dentro do vagão, ao se sentar, tinha a consciêncialigeiramente pesada. Não seria sua obrigação relatar à polícia o queouvira? Ele só não o izera por causa do ceticismo da moça. Ela dera aentenderqueeleestavainteressadonela.Talvezatédissesseissoàpolícia.Eleestavamesmosegurodequetinhaouvidoogrito?

A essa altura ele já não estava tão convencido como antes. Era oresultado natural de tentar reviver uma emoção perdida. Teria eledistorcidoogritodealgumpássaro,comosefosseavozdeumamulher?

A ideiadeixou-o irritado.A voz eradeumamulher, ele ouviramuitobem. Lembrava-se até de ter olhado para o relógio, momentos antes deouvirogrito.Seapolíciaseinteressassepelofato,elepoderiadizerqueopedidodesocorroocorreraàs7h25.Aqueledadopoderiaserútilparaasinvestigações.

À noite, ao voltar para casa, ele examinou ansiosamente os jornaisvespertinos,paraversenoticiavamalgumcrime.Masnãohavianenhumanotícia desse tipo, e ele já não sabia se aquilo era motivo para que sealegrasseounão.

Amanhãseguinteestavaúmida.Tãoúmidaqueatémesmoojogadorde golfe mais fanático perderia o entusiasmo. Jack relutou até o últimomomento para levantar, empurrou goela abaixo o café damanhã, correuparapegarotremenovamenteexaminouos jornais.Nãorelatavamnadadeparticularmentehorripilante.Osvespertinostambémnãotraziamnadanaquelesentido.

–Que coisamais estranha... –murmurou Jack consigomesmo. –Mastalvez tenha sido realmente uma brincadeira de alguém. Garotosbrincandoescondidosnosarbustos.

Namanhãseguinte,elesaiumaiscedo.Eaopassarpelochalé,viucomo rabo dos olhos que a moça estava de novo cuidando do jardim. Umhábito, evidentemente. Ele deu uma excelente tacada de aproximação etorceuparaqueelativessereparado.Aodarapróximatacada,olhouparaorelógio.

Page 105: Agatha christie - o cão da morte

–Setehorasevinteecincominutos...–murmurouele.–Seráque...As palavras congelaram nos seus lábios. De algum lugar atrás dele,

surgiuomesmogritoquetantooespantaradaoutravez.Ochamadoa litodeumamulher.

–Socorro!Ajudem,porfavor!Jackvoltoucorrendo.Amoçaestavaparadaaoladodoportão.Parecia

assustada,eJacksedirigiuaela,exclamando,triunfante:–Agoravocêouviu,hein?Os olhos dela estavam muito arregalados, e conforme Jack ia se

aproximando ela recuava e olhava de volta para a casa, como se fossecorrerparadentroeseproteger.

Amoçabalançouacabeçanegativamente:– Não ouvi coisa alguma – disse, ainda com os olhos arregalados,

olhandoparaele.Jack icouperplexo.Mastalfoiasinceridadecomqueelafalouqueele

nãotevecomopôremdúvidaoqueeladizia.Enoentanto...De repente ele a ouviu dizer mansamente, como se procurasse

entendê-lo:–Osenhortemalgumtraumadeguerra,certo?De repente ele entendeu omedodela, por que ela recuava e olhava

paraacasa.Elaotomavaporalgummaluco.Eentão,comosetivesselevadoumbanhodeáguafria,elecaiuemsi.

Estaria ela certa? Será que ele estaria sofrendo de alucinações?Horrorizado com aquela ideia, ele se virou e saiu tropeçando, sem dizernenhumapalavra.Amoçaolhou-oseafastar,soltouumsuspiro,balançouacabeçaevoltouacuidardojardim.

Jack re letiu consigomesmo: “Seeuouvir essemalditogritodenovo,às 7h25, então estou sofrendo de algum tipo de alucinação.Mas não vououvir...”.

Durante todoo restantedodia ele se sentiu angustiado, e foi para acamamaiscedoafimderesolveraqueledilemalogonamanhãseguinte.

Comotalvezfossedeseesperarnumcasocomoesse,elepermaneceuacordadometadedanoiteeacabouselevantandoatrasado.Jáeram7h20quandoeleconseguiusairdohotel.Correunadireçãodoscamposdegolfe,certo de que não conseguiria chegar a tempo no local fatídico. Mascertamente, se fosse apenas uma alucinação, a voz seria ouvida emqualquerlugar.Semtirarosolhosdorelógio,elecontinuoucorrendo.

Às 7h25, Jack ouviu o eco do chamadodistante de umamulher.Nãoerapossíveldistinguiraspalavras,maseleestavaconvencidodequeerao

Page 106: Agatha christie - o cão da morte

mesmo grito dos outros dias e de que vinha do mesmo local, de algumlugarpróximoaochalé.

Por mais estranho que fosse, aquilo tranquilizou-o. Devia ser algumtipodebrincadeira,eaprópriamoçadeviaestarenvolvida.Eletirouosacodegolfedoombroepegouumtaco.Dariaalgumas tacadasnadireçãodochalé.

A moça estava no jardim como sempre. Naquela manhã, ela olhoudiretamenteparaelee,quando Jack tirouoboné, lhe respondeucomumbom-dia, um pouco tímida. Ela pareciamais atraente do que nunca, foi oqueelepensou.

– Um belo dia, não? – disse Jack, entusiasmado, mas em seguida seenvergonhoucomabanalidadedafrase.

–Defato,umbelodia.–Ébomparaasplantas,imagino...A moça esboçou um sorriso, deixando aparecer uma covinha

extremamentesedutora.– Nem tanto! Minhas lores precisam de chuva. Veja, estão todas

secas...Jackaceitouoconvitequeelafezcomumgestoepassouporcimado

murobaixinho,queseparavaojardimdocampo.– Elas parecem bem – disse ele, consciente de que suas palavras

provocavamnamoçaumolhardecomiseração.–O sol dequalquer formaébom–disse ela –, pois sempre sepode

regarasplantas.Eo solnosdá forçae revigora,não?Hojeo senhorestácomumaspectomuitomelhor.

O tom encorajador com que ela disse aquelas palavras acabou porirritá-lo. “Maldição. Está novamenteme tratando comoum louco”, pensouele.

–Nãohánadadeerradocomigo–protestouele.–Issoéótimo–disseelaimediatamente,afimdetranquilizá-lo.Jacktinhaaimpressãodesagradáveldequeelanãoacreditavanele.Eleretornouaocampo,deumaisalgumastacadasecorreuparacasa,

a imdetomarocafédamanhã.Enquantocomia,sentiu-seexaminadopelohomem que sentava à mesa ao lado. Não era a primeira vez que aquiloacontecia. Era um homem de meia-idade, que trazia no rosto umaexpressão viril e intensa.Usavaumabarbanegra e bemaparada, e seusolhos eram verdes e penetrantes. Os gestos do homem passavam asegurançaeatranquilidadedaquelesquetêmaconsciênciadepertenceraos altos escalões de uma determinada pro issão. Jack sabia que ele se

Page 107: Agatha christie - o cão da morte

chamavaLavington e já ouvira comentáriosdeque eraummédicomuitorespeitadonasuaespecialidade.ParecequemoravanaHarleyStreet.

Adiferençaeraque,naquelamanhã, Jacknãotinhanenhumadúvidadequeestavasendosilenciosamenteobservado.Issooassustou.Eracomosetrouxesseestampadonatestaoseusegredo.Seráqueessehomem,porcausa da sua pro issão, era capaz de adivinhar que havia algo de erradocomsuascélulascinzentas?

Aideialheprovocouumarrepio.Estariamesmo icandomaluco?Seriatudo uma alucinação ou estavam todos mancomunados para lhe pregarumapeça?

Derepente,veio-lheàcabeçaummeiosimplesdepôraquelasituaçãoàprova.Atéentãoeleestiverapraticandosozinho.Esedapróximavezelelevasse alguém? Nesse caso, apenas três coisas poderiam ocorrer: a vozpoderiaficaremsilêncio,ambospoderiamouvi-laouapenaseleouviria.

Jack tomou as providências necessárias para efetivar o seu plano.Lavingtoneraapessoaqueelequeriajuntodesi.Aconversaentreosdoisemergiu naturalmente. Era como se o homem mais velho estivesseesperando há tempos por aquela oportunidade. Ele estava visivelmenteinteressado em Jack, e não foi di ícil ao jovem sugerir a possibilidade deambos se encontrarem para praticar um pouco de golfe. O encontro foicombinadoparaamanhãseguinte,antesdocafé.

Começaram a partida um pouco antes das sete horas. Era um diaperfeito,limpo,semventoenãomuitoquente.Omédicojogavabem,eJack,muito mal. Não conseguia parar de pensar um minuto no que poderiaacontecer.Atodomomentoeleolhavasub-repticiamenteparaorelógio.Às7h20, eles estavam perto do chalé, na tentativa de completar o sétimopercurso.

A moça, como sempre, estava no jardim e não levantou a cabeçaquandoelespassaram.

Duasbolinhasestavamnogramado:ade Jack,pertodoburaco, adomédico,umpoucomaisatrás.

–Nãoacredito–disseLavington.–Achoquevouconseguir...Elese inclinouparacalcularamelhorposição. Jackcontinuavarígido,

comosolhosgrudadosnorelógio.Eramexatamente7h25.A bola correu macia pela relva, parando na borda do buraco, onde

hesitouporummomentoantesdecair.–Boatacada–disseJack.Suavozsoavaroucaeirreconhecível.Eleestendeuobraço,sacudindo

orelógiodepulso,depoissuspiroualiviado.Nadatinhaacontecido.Ofeitiço

Page 108: Agatha christie - o cão da morte

sequebrara.–Seosenhornãoseimportadepararumminuto...gostariadefumar

umcachimbo.Nooitavopercurso,eles izeramumapausa.Jackencheueacendeuo

cachimbo, com dedos que tremiam um pouco, contra a sua vontade. Umgrandepesoforaretiradodosseusombros.

–Quedialindo!–disseelecontente,observandoocampoàsuafrente.–Éasuavezdecomeçar,Lavington.

E então aconteceu. Nomomento em que omédico acertava na bola.Umgritodemulher,agudoeagonizante:

–Socorro!Ajudem,porfavor!Estãomematando!OcachimbocaiudasmãosnervosasdeJackenquantoeleseviravana

direção de onde vinha o som. Em seguida lembrou-se do companheiro eolhouparaele,ofegante.

Lavington olhava para o campo, protegendo os olhos com uma dasmãosporcausadosol.

–Meiocurto,maspelomenospasseioobstáculo.Omédiconãoouviraogrito.Jack sentia como se omundo girasse ao seu redor. Deu um ou dois

passosparafrenteecapotou.Quandovoltouasi,estavadeitadonarelva,eLavingtonseinclinavasobreele.

–Muitobem,muitobem.Agora,comcalma...–Oqueaconteceu?–Parecequevocêdesmaiou,meujovem.–Deus!–disseele,edepoisgemeu.–Qualéoproblema?Algoopreocupa?–Jálheconto,masgostariadelheperguntarumacoisaantes.Omédicoacendeuoseuprópriocachimbo,sentando-senobanco.– Sinta-se à vontade para me perguntar o que quiser – disse ele,

relaxado.–Osenhortemandadomeobservandonosúltimosdias.Porquê?UmbrilhopassoupelosolhosdeLavington.– A sua pergunta é um pouco estranha. As pessoas se olham por

váriosmotivos,emuitasvezessemnemsedarconta...– Pare de me enrolar, eu não sou burro. Fiz a pergunta por um

motivo...OsemblantedeLavingtonsecontraiu.–Com todaa sinceridade, voudizer-lheumacoisa.Vocêdá sinaisde

quealgumacoisagraveoaflige.Fiqueiintrigadoparasaberoqueera.

Page 109: Agatha christie - o cão da morte

–Poisvoulhecontar,então–disseJack,consternado.–Estou icandolouco.

Ele fez uma pausa dramática e, como sua declaração não pareciasurtirnomédicooefeitoesperado,repetiu:

–Estouficandolouco,osenhornãoentende?–Curioso–murmurouLavington.–Defato,muitocurioso.Jackficouindignado.– Posso imaginar que para o senhor não signi ique nada alémdisso.

Médicossãomesmoinsensíveis.– Procure se acalmar, meu jovem, você não está falando coisa com

coisa.Paracomeçar,defatoestudei,masnãoexerçoapro issãodemédico.Estritamentefalando,nãosoumédico...Nãocuidodocorpodaspessoas,éoquequerodizer.

Jacklançouaeleumolhardesconfiado.–Edamente?–Damente sim, de certa forma.Mas o queme interessamesmoé a

alma.–Oh!– Posso perceber o deboche no seu tom de voz,mas temos de usar

alguma palavra para referir o princípio ativo que pode ser separado dasua morada carnal, o corpo, e existir sem ele. Não é possível ignorar aalma, meu jovem. É algo mais do que um termo religioso, inventado porpadres. Mas podemos chamá-la de mente, ou subconsciente, se preferir.Você pareceu se ofender com algo que eu disse há pouco, mas possoassegurar-lhe que me deixa realmente intrigado o fato de um jovemperfeitamente normal e equilibrado deixar-se a ligir pela fantasia de quevaienlouquecer.

– Mas vou enlouquecer mesmo. Sinto-me à beira de um colapsonervoso.

–Medesculpe,masdomeupontodevistanãoparece.–Estoutendoalucinações.–Ànoite,depoisdojantar?–Não,demanhãcedo.–Impossível–disseomédico,reacendendoocachimboqueapagara.–Estoulhedizendoqueescutocoisasqueninguémmaisouve.–Umhomememmilpodeveras luasde Júpiter.O fatodeosoutros

999nãopoderemvê-lasnãosigni icaqueelasnãoexistam,emuitomenosqueomilésimohomemsejaumlunático.

–AsluasdeJúpitersãoumfatocientíficocomprovado.

Page 110: Agatha christie - o cão da morte

–Nada impedequeasalucinaçõesdehoje se transformemnos fatoscientíficosdeamanhã.

Apraticidadede Lavington estava surtindo efeito sobre Jack.Mesmosembaixaraguarda,eleagorasesentiamuitomaiscalmoealiviado.Porum minuto ou dois, o médico olhou para ele com atenção e balançou acabeçapositivamente.

–Assimestámelhor–disseele.–Vocês jovensestãodeterminadosanão acreditar em nada que contradiga sua iloso ia de vida. E quandoacontecealgumacoisaquepõeemxequeessa iloso ia icamapavorados.Masme expliquemelhor omotivo por que pensa que está icando louco.Depoisdeouvira suaexplicação,podemosdecidirmelhor sevaleapenaounãointerná-lo.

Jack narrou a série de ocorrências estranhas da forma mais ielpossível.

–Mas o que eu não consigo entender – disse ele – é por que nestamanhãtudoaconteceuàsseteemeia,cincominutosmaistarde.

Lavingtonrefletiuporumminutooudois.Emseguida,eleperguntou:–Quehorassãoagoranoseurelógio?–Quinzeparaasoito–respondeuJack,depoisdeconsultá-lo.–Entãoétudomuitosimples.Omeuestámarcando7h40.Oseuestá

adiantado em cincominutos. Esse é um ponto interessante e importante.Naverdade,naminhaopinião,éachavedoproblema.

–Emquesentido?Jackcomeçavaaseinteressar.–Bem,aexplicaçãomaisóbviaéque,naprimeiramanhã,vocêouviu

mesmo o grito. Pode ter sido brincadeira de alguém ou não. Nas outrasmanhãs,vocêseautossugestionouaouvi-loexatamentenamesmahora.

–Tenhocertezaquenão.– Não estou falando de nada consciente, é claro. O subconsciente às

vezesnospregapeças.Masaexplicaçãodequalquer formanãoéboa.Sefosse um caso de autossugestão, você teria ouvido o grito quando o seurelógiomarcava 7h25, e nãomais tarde, quando achava que omomentotinhapassado.

–Maseentão?–Bem, só podemos inferir uma coisa, correto? Esse grito de socorro

ocupaum lugarno tempoenoespaçoperfeitamentebemde inido:pertodessechalé,às7h25.

–Sim,masporquesouoúnicoaouvi-lo?Nãoacreditoemfantasmas.Paramim, histórias de espíritos e gente que volta domundo dosmortos

Page 111: Agatha christie - o cão da morte

não passam de conversa iada. Não entendo por que só eu ouço essemalditogrito!

– Bem, nomomento não temos uma resposta para isso. O curioso éque osmelhoresmédiuns sãomuitas vezes as pessoasmais céticas. Nãosão as pessoas que se interessam por fenômenos ocultos que veem asmanifestações.Nãosabemosporque,masalgumaspessoasveemeouvemcoisas que as outras nãopercebem... E, emnovede cadadez casos comoesse, elas não gostam do que veem ou ouvem e supõem estaremenlouquecendo, exatamente como você alega. É como a eletricidade.Algumas substâncias sãoboas condutoras, outrasnão, epormuito tempotivemosde aceitar o fato sempodermos explicá-lo.Hoje emdia, sabemospor que isso é assim. No futuro, sem dúvida, alguém vai ser capaz deexplicarporquevocêouveogrito,maseueamoçadochalénãoouvimos.Todas as coisas são regidas por leis naturais. Estritamente falando, osobrenaturalnãoexiste, entende?Nãovai sernada fácildescobrir as leisque governam os fenômenos paranormais, mas todo pequeno progressoquefizermosnessadireçãoébem-vindo.

–Masoqueeudevofazer?Lavingtondeudeombros.–Bem,meujovem,vocêvaitomarumcafédamanhãreforçadoeem

seguidapartirparaacidade,sem icarsepreocupandocomcoisasquenãocompreende.Sejaprático.Quantoamim,voudarumavoltaporaíeversedescubro alguma coisa sobre o chalé ali embaixo. Eu diria que ele é ocentrodonossomistério.

Jacklevantou-sedeumpulo.–Osenhorestácerto.Sógostariadedizerque...–Sim?Jackficouvermelho.– Estou certo de que não há nada de errado com aquela moça... –

murmurouele.Lavingtonaparentementesedivertiacomasituação.–Vocênãomedisseque se tratavadeumabelamoça!Bem, anime-

se...Acreditoqueomistériosejaanterioraela.Nanoitedaqueledia,Jackvoltouparacasaemgrandeexpectativa.Ele

depositara toda a sua con iança emLavington. A naturalidade comque omédicotrataraoassunto,suacalmaesensopráticohaviamimpressionadoJack.

Quando Jack desceu para o jantar, encontrou seu novo amigo nosaguão.Omédicosugeriuquesentassemnumamesmamesa.

Page 112: Agatha christie - o cão da morte

–Algumanovidade?–perguntouJack,ansioso.– Descobri a história do chalé. Inicialmente moravam ali, como

locatários,umvelhojardineiroesuaesposa.Ovelhomorreueamulhersemudouparaacasadafilha.Odonodochaléresolveuentãomodernizá-lo,edepoisdissovendeu-oaummoradordacidade,queoutilizavaduranteosinais de semana. Cerca de um ano atrás, o chalé foi novamente vendido,dessavezaosenhoreàsenhoraTurner,maridoemulher.Ocasaleraumpouco estranho. Ele era inglês, e a mulher, de uma beleza exuberante eexótica, parecia ser descendente de russos. Levavam uma vida pacata,raramente recebiam visitas ou iam além dos jardins do chalé. Haviarumores de que tinham medo de alguma coisa, mas não creio que taisrumorestenhamalgumfundamento.

“Eentão,derepente,foramembora.Certamanhã, izeramasmalasenuncamaisvoltaram.DeLondres,osr.Turnerenviouinstruçõesparaquevendessemo chalé omais depressa possível. Amobília foi oferecida pelametadedopreço, e a casaacabou sendovendidaao sr.Mauleverer.O sr.Mauleverermoroulánãomaisdoqueduassemanas,edepoiscolocouumanúncio para que a alugassemmobiliada. As pessoas que estão lá agorasão um professor de francês tuberculoso e a ilha dele. Não fazmais doquedezdiasquemoramali.”

Jackescutoutudoemsilêncio.–Nãocreioqueessasinformaçõesnoslevemmuitolonge.– Gostaria de saber mais sobre os Turner – disse Lavington,

calmamente. – Eles deixaram o chalé cedo pela manhã... Parece queninguémosviusair.Osr.Turnertemsidovistoporaí,masomesmonãosepodedizerdasra.Turner...

Jackficoubranco.–Masnãopodeser!Osenhorachaque...– Acalme-se, meu jovem. Qualquer pessoa na hora em que está

morrendo exerce uma grande in luência sobre o lugar onde se encontra.Esse princípio é válido especialmente nos casos de morte violenta. Épossívelqueolugarabsorvaessain luência,retransmitindo-a,porsuavez,aumreceptorsensível;nocaso,você.

– Mas por que eu? – perguntou Jack, indignado. – Deviam procuraralguémquepudesselhesserútil.

–Vocêestápensandonaforçaemquestãocomoumaforçainteligente,agindo com um propósito de inido. Mas trata-se de uma força cega emecânica.Nãoacreditoemalmaspenadas,queassombremumlugarcomumobjetivoespecí ico.Masoqueeu tenhovistomuitasemuitasvezes, a

Page 113: Agatha christie - o cão da morte

ponto de não poder mais acreditar que se trate de coincidência, é umaespéciedeclamorcegoporjustiça.Trata-sedeummovimentosubterrâneode forças trabalhando de forma obscura para alcançar algum tipo demeta...

Ele se sacudiu arrepiado, como se quisesse exorcizar uma ideia ixa,depoisvoltou-separaJackcomumsorriso.

–Vamosdeixaroassuntoumpoucodelado,pelomenosporestanoite–sugeriu.

Jackconcordouimediatamente,masnãoachoutãofáciltiraroassuntodacabeça.

Duranteo inaldesemana,elemesmofezalgumasinvestigações,masnãodescobriunadaalémdoqueomédicolhedissera.Eledesistiudejogargolfeantesdocafédamanhã.

A próxima peça do quebra-cabeça apareceu de forma inesperada.Uma noite, ao voltar para casa, Jack foi informado de que uma jovemesperavaparafalarcomele.Parasuacompletasurpresa,eraajovemqueele vira no jardim no chalé cuidando dos amores-perfeitos, imagem quenuncalhesaíradacabeça.Elaestavanervosaeconfusa.

–Peçodesculpasporvirprocurá-lodestamaneira.Masprecisodizer-lheumacoisa...

Elaolhouaoredor,hesitante.–Venhacomigo–disseJack,prontamente, levando-aatéumasalinha

abafada,comamobíliaforradadeveludovermelho,quenaquelemomentoestavavazia.

–Sente-se,porfavor,senhorita...–Marchaud.FeliseMarchaud.– Sente-se, por favor, srta. Felise Marchaud. Agora podemos

conversar.Felise sentou-se.A corverde-musgoda roupaqueelaestavausando

pareciatornaraindamaisatrevidooseubelorosto.Aoseulado,ocoraçãodeJackbatiacadavezmaisrápido.

– Bem... não faz muito que estamos aqui, e desde que chegamosouvimosrumoresdequeacasaeramal-assombrada.Nenhumempregadoqueria icarlá.Maseutinhaachadoolugarumagraçaenãomeimportavadeterdefazeralimpezaecozinhar.

“Que anjo. Ela é perfeita”, pensou o jovemapaixonado, sem com issocomprometersuaaparênciacircunspecta.

– Não acredito em fantasmas. Bem, não acreditava, até dias atrás.Senhor,durantequatronoitestenhosonhadosemprecomamesmacoisa.

Page 114: Agatha christie - o cão da morte

Umamulher bonita, alta e loira, segurando uma jarra azul de porcelana.Alguma coisa a a lige. Ela olha para a jarra e para mim, como se meimplorasse para fazer alguma coisa, mas... Ela não pode falar! E nãoconsigo adivinhar o que ela quer! Nas duas primeiras noites o sonho foiapenasisso,masnanoiteseguintesecomplicou.Logoqueaimagemdelaedajarradesapareceu,ouviosgritosdamulher.Tenhocertezadequeeramosgritosdela,osenhorentende?Aspalavrasdelaeramasmesmasqueosenhormedisse na outramanhã: “Socorro!Ajudem, por favor! Estãomematando!”. Acordei apavorada. Tentei me convencer de que tudo nãopassava de umpesadelo, de que o fato de as palavras serem asmesmaseraumasimplescoincidência.Masontemànoiteosonhoserepetiu.Oqueissosignifica?Oquevamosfazer?

Felise estava apavorada. Com o rosto pálido, ela apertava as mãosumanaoutraeolhavaansiosapara Jack.O rapazafetavaumasegurançaquenaverdadenãotinha.

– Está bem,mademoiselleMarchaud, não se preocupe. Gostaria querepetisse essa história para umamigomeu, que tambémestá hospedadoaqui,odr.Lavington.

Felisesepronti icouafazeroqueelepedia,eJacksaiuparaprocurarLavington.Eleretornoucomoamigopoucosminutosdepois.

Enquanto Jack os apresentava, Lavington examinou a moça com oolhar.Emseguida,comumaspoucaspalavrastranquilizadoras,encorajou-aacontarsuahistória,queeleescutouatentamente.

–Curioso–disseomédicoquandoelaterminou.–Asenhoritacontouosonhoaoseupai?

Felisebalançouacabeçanumanegativa.– Não quis preocupá-lo com isso. Ele ainda está muito doente – os

olhos dela se umedeceram. – Evito comentar com ele qualquer coisa quepossaagitá-lo.

–Entendo–disseLavington, solidário.–Ficocontenteque tenhanosprocurado, mademoiselle Marchaud. Hartington tem passado porexperiências semelhantes às suas, comobem sabe. Acredito que estamosmuitopertodasoluçãodomistério.Asenhoritanãolembrademaisnada?

Feliseteveumsobressalto.–Maséclaro! Iameesquecendodomais importante.Veja, senhor,o

que foi que encontrei no fundo de um armário, atrás de uma prateleira,paraondedeveterescorregado.

Elaexibiaumpapeldedesenhoamarrotado.Neleestavapintado,comaquarela, o retrato de uma mulher. O retrato não estava acabado, mas

Page 115: Agatha christie - o cão da morte

dava uma boa ideia da modelo. Uma mulher alta, loira, mas que nãoparecia inglesa. Estava parada ao lado de umamesa, sobre a qual haviaumajarraazuldeporcelana.

– Encontrei isso hoje pela manhã – explicou Felise. –Monsieur ledocteur, esta é amulher que vi emmeu sonho. A jarra azul também é amesma.

– Extraordinário – declarou Lavington. – A chave do mistério écertamentea jarraazul.Pareceumaantiga jarrachinesa.Temumpadrãoforadocomum.

–Échinesa,sim.Nãofazmuito,viumabemparecidanacasadomeutio,queécolecionadordeporcelanachinesa.

–Umajarrachinesa–murmurouLavingtonconsigomesmo.Ele icoure letindoporumminutooudois,eentãolevantouacabeça.

Seusolhosemitiamumbrilhoestranho:–Hartington,desdequandooseutiotemessajarra?–Desdequando?Eunãosei...–Pense.Fazpoucoqueeleacomprou?–Eunão sei...mas sim, achoque sim, agorame lembro.Não souum

grande apreciador de porcelana chinesa, e ele me mostrava as suasaquisiçõesmaisrecentes.Ajarraestavaentreelas.

–Issofazmenosdeummês?OsTurnerdeixaramochaléhácercadedoismeses.

–Sim,achoquefazmenosdeummês.–Seutiocostumafrequentarfeirasdeantiguidade?–Sim,eleestásempreviajandopelointerioratrásdelas.– Então pode ser que ele tenha encontrado numa delas a jarra que

pertencia aos Turner. Uma coincidência curiosa, e talvez um exemplo dealgum tipo de força obscura buscando por justiça. Hartington, éfundamental que você pergunte ao seu tio onde foi que ele comprou ajarra.

OrostodeJackassumiuumaexpressãodesolada.– Temo que isso seja impossível. Ele deixou a Inglaterra e está

viajando pelo continente. Não sei nem mesmo para onde eu poderiaescrever.

–Quandoelevolta?–Daquiatrêssemanas,talvezummês,pelomenos.Houveummomentodesilêncio.Feliseolhavaa litaoraparaomédico,

oraparaJack.–Nãohánadaquepossamos fazer antes de ele voltar? – perguntou

Page 116: Agatha christie - o cão da morte

ela,timidamente.–Sim–respondeuLavington,tentandoconteropróprioentusiasmo.–

Trata-se de uma estratégia pouco comum, mas é possível que funcione.Hartington,vocêprecisaconseguirparanósessajarra.Traga-aatéaquie,se mademoiselle nos permitir, passaremos uma noite no chalé, levandoconoscoajarraazul.

Jacksentiuumligeiromal-estartomarcontadoseucorpo.–Masoquevocêesperaqueaconteça?–perguntouele,desconfiado.–Nãofaçoamenorideia,masdescon ioqueomistérioseresolvaeo

fantasma descanse. É possível que a jarra tenha um fundo falso, comalguma coisa nele escondida. Se nada se manifestar, teremos de usar anossaprópriaimaginação.

Felisebateuasmãosumanaoutra.–Éumaótimaideia!–exclamou.Seusolhosbrilhavamdeempolgação.Jacknãocompartilhavadaquela

alegria.Naverdade,sesentiaacabrunhadoefaziaumgrandeesforçoparaque os outros não percebessem. O médico agia como se a sua sugestãofosseperfeitamentenatural.

–Quandovocêpodepegarajarra?–perguntouFeliseaJack.–Amanhã–respondeuele,hesitante.Jack já não podia voltar atrás e, para manter a calma, precisava

reprimir com todas as forças a lembrança angustiante daquele grito desocorroquevinhalheassombrandotodasaquelasmanhãs.

Na noite seguinte, ele foi até a casa do tio e apanhou a jarra azul.Quando a viu, icou ainda mais convencido de que era idêntica àquelapintadaemaquarelanoretrato,masnãofoicapazdeencontrarqualquerfundofalso,pormaisqueaexaminasse.

EramonzehorasquandoeleeLavingtonchegaramaochalé.Feliseosesperava e abriu silenciosamente a porta antes de eles terem tempo debater.

–Entrem–murmurouela.–Meupaiestádormindonoandardecimaenãoqueroacordá-lo.Fizumcaféparavocês.

Ela conduziu-os até a pequena e acolhedora sala de estar. Umaespiriteiraforadeixadanalareirae,inclinando-sesobreela,amoçaserviuparaelesumpoucodecafé.

Jack desempacotou a jarra chinesa que protegera sob diversascamadas de papel. Quando bateu os olhos no objeto, Felise abriuinvoluntariamenteaboca.

–Sim,sim!–exclamoueladerepente,emvozbaixa,masemocionada.

Page 117: Agatha christie - o cão da morte

–Éessamesma,tenhocerteza!Enquanto isso, Lavington ia preparando a sala. Ele retirou todos os

enfeites de uma mesinha e colocou-a no centro da peça. Ao redor dela,ajeitoutrêscadeiras.Depoisdisso,pegoudeJackajarraazuledeixou-anocentrodamesa.

– Agora – disse ele – estamos prontos. Apague as luzes. Ficaremossentadosaoredordessamesa.

JackeFeliseobedeceram.Noescuro,avozdeLavingtonfalounovamente:–Nãopensememnada,oudeixemopensamentoseguirseupróprio

rumo.Não forcem amente. É possível que umde nós tenha capacidadesmediúnicas. Se assim for, essa pessoa vai entrar em transe. Lembrem-sede que não há nada a temer. Mantenham o coração livre do medo edeixem-selevar,levar...

A voz dele foi se esvaindo, e fez-se silêncio. A cada minuto quepassava, o silêncio parecia crescer e se intensi icar de novaspossibilidades.ParaLavington,erarelativamentefácilafastaromedo,masnãoeramedooque Jack sentia. Ele estava empânico. E tinha certezadequeFelisesentiaomesmo.Derepente,eleouviuavozdela,umsussurroaterrorizado:

–Algumacoisahorrívelvaiacontecer.Estousentindo.–Nãosedeixedominarpelomedo.Nãolutecontraainfluência.A sala parecia ter icado mais escura, e o silêncio mais pungente.

Aquiloqueosameaçavaestavacadavezmaispróximo.Em vão Jack tentou conter os tremores que tomaram conta do seu

corpoquandosentiuaoladoapresençadeumaforça.Mas de repente a tensão se aliviou e, de olhos fechados, ele foi

invadido por uma paz estranha que o levou pelo escuro como umatorrente...

IIQuando Jack voltou a si, sua cabeça estava pesada, pesada como

chumbo.Quelugareraaquele?O calor do sol lhe envolvia o corpo e, ao olhar para o céu, enxergou

algunspássaros.Foientãoqueselembroudasessão,dasalinha,deFeliseedomédico.

Oqueacontecera?Sentou-seeolhouaoredor,comacabeçalatejando.

Page 118: Agatha christie - o cão da morte

Eleestavanobosque,pertodo chalé, sozinho.Ao consultaro relógio,descobriuespantadoqueerameio-diaemeia.

Jack fez um grande esforço para se levantar e correu omais rápidoquepôdenadireçãodo chalé.Deviam ter se assustado como fatodeelenãosairdotranse,eporissolevaram-noparafora,aoarlivre.

Chegandoaochalé,elebateucomforçanaporta.Ninguémrespondeu.Era como se não estivessem ali. Deviam ter ido buscar ajuda. Ou talvez...uma sensação esquisita e desagradável tomou conta do seu corpo.O queaconteceraduranteanoite?

Voltou ao hotel o mais rápido que pôde. Quando se dirigiu aoescritório, a im de fazer algumas perguntas, recebeu uma formidávelpancadanascostasquequaseoatirounochão.Aovirar-seindignado,deudecaracomumvelhodecabelosbrancosquesorriadivertido.

–Nãomeesperavaporaqui,meujovem?–perguntouosujeito.–Ora,tioGeorge!Imaginavaqueestivesseaquilômetrosdedistância,

quemsabetalveznaItália...–Ah...maseunãoestava.ChegueiemDoverontemànoite.Penseiem

dirigiratéacidade,eresolvidarumapassadaaquiparavê-lo.Eoquefoiquedescobri?Anoitetodanarua,hein?Arrá!

– Tio George – protestou Jack, com veemência –, tenho uma históriaextraordináriaparalhecontar.Osenhornãovaiacreditar...

–Achoquenãovoumesmo...–disseovelho,rindo.–Mastente,meurapaz.

–Antesprecisocomeralgumacoisa.Estoumortodefome.Jack saiu à frentenadireçãoda sala de jantar e, emmeio à refeição

reforçada,contouasuahistória.–Esabe-seláoquefoiqueaconteceucomeles...Otioestavaàbeiradeumataquedeapoplexia.–Ajarra!–conseguiudizer inalmente,depoisdeumgrandeesforço.

–Ajarraazul!Ondefoiparar?Jack arregalou os olhos, espantado, e submergiu à torrente de

palavraspronunciadaspelotio:–Peçaúnicanaminhacoleção!PorcelanaMingautêntica,valendono

mínimo dez mil libras! Praticamente um presente de Hoggenheimer, omilionário americano! Nomundo todo, não há nada igual! Mas o que foiquevocêfezcomaminhajarraazul?

Só então Jack começou a entender a situação. Ele deixou a salacorrendo.EraprecisoencontrarLavington.

Ajovemqueatendianoescritórioolhouparaelefriamente.

Page 119: Agatha christie - o cão da morte

– O dr. Lavington deixou o hotel ontem, tarde da noite, e pediu queentregassemessebilheteaosenhor.

Jackdesdobrouopapelnafrentedela.Amensagemiadiretoaoponto:

Meucarojovem,Chegamos en im aomomento em que o sobrenatural é desbancado ounão?Fantasiadoemjargãocientífico,eleserenova.AbraçocalorosodeFelise,doseupaidoente,emeumesmo.Temosdozehorasdevantagem,queprecisamosaproveitarbem.Cordialmente,AmbroseLavington,

Médicodaalma.

Page 120: Agatha christie - o cão da morte

OESTRANHOCASODESIRARTHURCARMICHAEL

(Tiradodasnotasdofalecidodr.EdwardCarstairs,eminentepsicólogo)

ISeimuitobemqueháduasformasdistintasdeentenderosestranhos

etrágicosacontecimentosquevounarraraseguir.Aminhaopiniãoéumasó.Pediramqueeucontasseahistóriaemtodososseusdetalhes,edefatopenso que, para o bem da ciência, fatos estranhos e inexplicáveis comoessesnãodevemcairnoesquecimento.

Entreiemcontatocomocasoatravésdotelegramadeumamigo,odr.Settle. Nesse telegrama já vinhamencionado o nome Carmichael,mas deresto muito pouca coisa era explicitada. Atendendo ao chamado do meuamigo, peguei o trem das 12h20 de Paddington a Wolden, emHertfordshire.

Eu já tinha ouvido falar de Carmichael. Eu chegara a conhecer ofalecido sirWilliam Carmichael deWolden, apesar de que em onze anosnuncamaisovira.Sabiaqueeletinhaum ilho,oatualbarão,quedeveriaagora ser um jovem de 23 anos. Lembrava-me de ter ouvido rumoressobre o segundo casamento de sir William, mas nada além de umareferênciadepreciativaàsegundaladyCarmichael.

Settleesperavapormimnaestação.–Quebomquevocêveio–disseele,estendendoamão.–Entendoquesetratadeumcasonaminhaárea?–Exatamente.– Um caso envolvendo amente de uma pessoa? Com consequências

estranhas?–arrisquei.Naquele momento já tínhamos apanhado a minha bagagem e

sentávamos numa dessas carruagens de duas rodas, que nos levaria daestação atéWolden, a uns cinco quilômetros de distância. Settle icou umminutooudoisemsilêncio,entãoderepenterespondeuàminhaquestão:

– É um caso incompreensível! Trata-se de um jovem de 23 anos,normal sob todososaspectos.Um jovemsimpático,menospretensiosodoque amaioria na idade dele, cuja inteligência não chega a ser brilhante,mas está acima damédia damaioria dos jovens da classe alta britânica.Certanoite, estandoemperfeito estadode saúde, vaidormir enamanhãseguinteéencontradovagandopelacidadecomoumretardado,incapazde

Page 121: Agatha christie - o cão da morte

reconhecerquemquerqueseja.–Ah!–disseeu,curioso.–Ocasoparecemesmo interessante.Perda

completadamemória?Equandofoiqueissoocorreu?–Ontempelamanhã.Dia9deagosto.– E você não tem conhecimento de nenhum choque que possa tê-lo

levadoaesseestado?–Não.Aparentemente,nadaaconteceu.Fiqueidesconfiado.–Vocêestámeescondendoalgumacoisa?–Hum...não...Ahesitaçãodeleconfirmouasminhassuspeitas.–Éprecisoquemecontetudo.–OquevoulhecontarnadatemavercomArthur,mascomacasa.–Comacasa?–repeti,surpreso.– Você tem lidado com casos assim, não é verdade, Carstairs? Você

temestudadofenômenosdaschamadascasasmal-assombradas...Qualéasuaopiniãoarespeito?

– De cada dez casos, nove são fraudes – respondi. –Mas quanto aodécimocaso...bem,tenhovistocoisasquesãoabsolutamenteinexplicáveissobumpontodevistamaterialista.Euacreditoemfenômenosocultos.

Settle concordou com a cabeça. Naquele momento adentrávamos osportõesdapropriedade.Eleapontoucomochicoteparaumavelhamansãopintadadebranco,queficavaaopédeumacolina.

–Aquelaéacasa–disseele.–Eháalgumacoisanela.Algumacoisaestranha e perigosa. Todos sentimos isso... E não sou um homemsupersticioso.

–Equeformaessacoisaassumequandosemanifesta?–perguntei.Elelevantouorosto,olhoufixamenteparaohorizonteedisse:– Pre iro não dizer nada. Não quero in luenciá-lo. Assim, se você vir

algumacoisa,éporquerealmenteexistealgo.–Sim,émelhordessa forma.Masgostariaquevocêmecontasseum

poucomaissobreafamília.–SirWilliam–disseSettle– foi casadoduasvezes.Arthuré ilhoda

primeiraesposa.Noveanosdepoiselecasoudenovo,edaladyCarmichaelatual não sabemos muita coisa. Ela é só metade inglesa; tem sangueasiático,imagino.

Elefezumapausa.–Settle–disseeu–,vocênãogostadeladyCarmichael.Eleadmitiusemrodeios.

Page 122: Agatha christie - o cão da morte

– É verdade, não gosto dela. Ela tem algo de sinistro... Bem,continuando, com essa segunda esposa, sir William teve outro ilho, queestá agora com oito anos de idade. SirWilliammorreu três anos atrás, eArthur herdou a propriedade e o título. Ele vive em Wolden com amadrastaeomeio-irmão.Devodizer-lhequeapropriedadejánãosignificaquasenadaemtermos inanceiros.ElaconsomepraticamentetodaarendadeArthur.Tambémnão foimuitooque sirWilliamdeixouàesposa,masArthur se dá muito bem com a madrasta e viu com bom olhos apermanênciadelanacasa.Aconteceque...

–Sim?– Há dois meses, Arthur se envolveu com uma bela jovem, a srta.

PhyllisPatterson.Elefezumapausaeemseguidaacrescentouemvozbaixa:–Deveriamsecasardaquiaummês.Elaestámorandonacasa.Você

podeimaginarcomoficouabalada...Concordeicomacabeçasemnadadizer.Nos aproximávamos da casa. À nossa direita, o gramado se estendia

inde inidamente sobreo terrenoque iaperdendoa inclinação.Nãomuitodistante, vi uma igura encantadora caminhando na direção da casa. Eraumajovemcarregandoumacestaderosas.Comoestavasemchapéu,osolacentuava extraordinariamente o brilho dos seus cabelos loiros. Um gatopersa de cor cinza se enroscava preguiçoso ao redor das suas pernas,conformeelaandava.

Curioso,olheiparaSettle.–Éasrta.Patterson–disseele.–Coitadinha.Quefiguraelafazcomaquelasrosaseogato!Ouvi um ruído e virei-me subitamente para omeu amigo. As rédeas

tinhamescapadodassuasmãos,eseurostoestavapálido.–Masoquefoi?–perguntei.Foiprecisoumtempoparaqueeleserecuperasse.Dali a um ou doisminutos, entrávamos na casa, e eu o seguia até o

salãoverdeondeserviamochá.Ao entrarmos, umamulher de meia-idade, que não havia perdido a

beleza, levantou-se da mesa e caminhou na nossa direção com a mãoestendida.

– Lady Carmichael, gostaria de apresentar-lhe meu amigo, dr.Carstairs.

É di ícil eu descrever a repulsa instintiva que tomou conta de mimquando segurei a mão dessa mulher charmosa e imponente, cujo andar

Page 123: Agatha christie - o cão da morte

lânguido imediatamente me fez lembrar a referência de Settle ao seusangueoriental.

– O senhor é muito bem-vindo, dr. Carstairs – disse ela, numa vozmelodiosa de contralto. – Agradecemos imensamente por suadisponibilidadeemnosajudar.

Deiumarespostamaisoumenosformal,eelamealcançouumaxícaradechá.

Empoucosminutos,amoçaqueeuvirado ladodefora,nogramado,entrou na sala. O gato já não a acompanhava,mas ela ainda carregava acestacomasrosas.Settledeumeunomeaela,quenãoconseguiuconteraemoção:

–Ah,dr.Carstairs!Odr.Settlenosfaloutantodosenhor!TenhofédequevaiconseguirfazeralgumacoisapelonossopobreArthur.

Asrta.Pattersoneracertamenteumajovemmuitobonita,apesardasbochechaspálidasedasolheirasquecercavamosseusolhosfrancos.

–Minhajovem–disseeuparaanimá-la–,defatonãohámotivoparadesespero. Esses casos de perda de memória, de mudança depersonalidade, em geral duram pouco tempo. A qualquer momento, opacientepodevoltarasi.

Elasacudiuacabeçanumanegativa.–Masnãocreioqueessesejaumcasodemudançadepersonalidade

– disse ela. – Não se trata de outra personalidade. Esse jovemsimplesmentenãoéArthur!Eu...

–Phyllis, querida–disse ladyCarmichael, comsuavozenvolvente–,aquiestáoseuchá.

E amaneira como ela pousou os olhos namoça revelou-me que nãotinhaomaiordosapreçospelafuturanora.

Asrta.Pattersonrecusouochá,eeuperguntei,paraaliviara tensãodomomento:

–Nãovãodarumpoucodeleiteouumabolachaaogatinho?Elaolhouparamimdeummodoestranho.–Gatinho?–Aquelequeestavacomasenhoritanojardim.Fuiinterrompidoporumbarulho.LadyCarmichaeltinhaderrubadoo

bule, e a água quente escorria pela mesa, pingando no chão. Tenteiremediarasituaçãolevantandoumpoucoatoalha.PhyllisPattersonolhouinquisitivamenteparaSettle.Eleselevantou.

–Vocênãogostariadeveronossopacienteagora,Carstairs?Num piscar de olhos eu o seguia. A srta. Patterson vinha conosco.

Page 124: Agatha christie - o cão da morte

Subimosaoprimeiroandar,eSettletirouumachavedobolso.– Às vezes ele se põe a caminhar sem rumo – explicou. – É por isso

quenormalmentetrancoaportaquandosaiodacasa.Elegirouachavenafechaduraeentrou.O jovemestavasentadonoparapeitoda janela,emcujovidrobatiam

os últimos raios do sol poente. Curiosamente, ele não se mexia. Estavaencolhido,masosmúsculossemantinhamrelaxados.Noiníciopenseiqueele não percebera a nossa entrada, até que me dei conta de que nosobservavaportrásdaspálpebrasimóveis.Nomomentoemqueseusolhosencontraramosmeus,elepiscou,maspermaneceuparado.

– Venha até aqui, Arthur – disse Settle, para animá-lo. – A srta.Pattersoneumamigomeuvieramfazer-lheumavisita.

Ojovemapenaspiscouecontinuousentadonoparapeito.Mas,porummomentooudois,percebidenovoqueelenosobservavafurtivamente.

–Nãovaiquerero seuchá?–perguntouSettleemvozalta, comosefalassecomumacriança.

Ele colocou na mesa um copo cheio de leite. Surpreso, levantei assobrancelhas,eSettlesorriu.

–Engraçado–disseele–,aúnicacoisaqueesterapazbebeéleite.Depois de um brevemomento, sem se apressar, sir Arthur foi como

que se desenrolando, saindoda sua posição encolhida, até que caminhoucalmamenteatéamesa.Observeide imediatooquantoerasilencioso.Elenão fazia qualquer barulho ao caminhar. Quando se aproximou damesa,colocouumapernanafrente,eaoutraalongouextraordinariamenteparatrás. Ele prolongou esse exercício o máximo que pôde, e em seguidabocejou. Eu nunca vira ninguém dar um bocejo daqueles. Era como se abocafosseengolirorostotodo.

Ele agora dava atenção ao copo, inclinando-se até os lábiosencostaremnoleite.

Respondendoaomeuolharsurpreso,Settledisse:–Elenãoutilizaasmãos.Parecequeregrediuaumestadoprimitivo.

Estranhíssimo,vocênãoacha?Senti que Phyllis Patterson se encolhia de encontro amim. Coloquei

solidariamenteaminhamãonoseubraço.Finalmente Arthur Carmichael terminou de beber o leite e então se

alongoudenovo.Emseguida,comosmesmospassossilenciosos,voltouaoparapeitodajanela,ondeseencolheucomoantes,piscandovezqueoutraparanós.

Asrta.Pattersonnospuxouatéocorredor.Elaestavatodatrêmula.

Page 125: Agatha christie - o cão da morte

–Oh,dr.Carstairs–exclamouela–,essenãoéele!Euseiquenãoéele!Nãopodeser!

Sacudiacabeçatristemente,concordandocomela.–Océrebronospregapeçasesquisitas,srta.Patterson.Confesso que as características incomuns do caso me deixaram

confuso. Até então, eu nunca vira o jovem Carmichael, mas a maneirapeculiar como ele andava, como piscava para nós, me pareceucompletamenteincoerente.

O jantar,naquelanoite,decorreuemrelativosilêncio,cabendoamime a lady Carmichael sustentar a conversa. Quando as mulheres seretiraramdamesa,Settlemequestionouquantoà impressãoquemeforacausadapelaanfitriã.

– Devo confessar – disse eu – que não gostei nada dela, mas nãosaberiaexplicaromotivodessaantipatia.Vocêestácertoquantoaela tersangueoriental.Eudiriaque,alémdisso,ela tempoderesparanormais.Éumamulherdeumintensomagnetismo.

Settle estava a ponto de fazer uma observação importante, masacabousecalando.Depoisdeumminutooudois,declarou:

–Elaémuitodedicadaaofilho.Voltamosanosreunircomasmulheresparatomarocafé,servidono

salão verde. Estávamos conversando sobre os acontecimentos do diaquandoumgatocomeçouamiarlastimosamentedoladodeforadaporta.Comoninguémparecia tomarnenhumaatitude e gostomuitode animais,depoisdeummomentoacabeimelevantando.

–Possodeixarocoitadinhoentrar?–pergunteialadyCarmichael.Muitopálida,elafezumgestoquaseimperceptívelcomacabeça,que

interpretei como sendo um assentimento. Fui até a porta e a abri,mas ocorredorestavavazio.

–Estranho–eudisse.–Poderiajurarqueouviumgato.Quandovolteiamesentar,repareiquetodosmeobservavam.Aquilo

meconstrangeu.Fomosdormircedo.Settlemeacompanhouatéoquarto.–Vocêtemtudodequeprecisa?–perguntouele,olhandoaoredor.–Sim,obrigado.Settle icou um tempo ali parado, como se quisessemedizer alguma

coisa.Resolviajudá-lo:–Vocêmedissequehaviaumproblema coma casa...mas até agora

nãonoteinadadeestranho.–Vocêsesenteàvontadeaqui?

Page 126: Agatha christie - o cão da morte

– Não, de forma alguma. Mas isso me parece normal, dadas ascircunstâncias. As pessoas aqui passaram por um trauma desagradável.Masnãovejonadadeanormalnacasaenquantotal.

–Bem, então, boanoite –disse Settle, abruptamente. –E tenhabonssonhos.

Sonhar eu realmente sonhei. O gato cinza da srta. Patterson deixouuma impressão indelével no meu cérebro. Sonhei com o pobre animalpraticamenteanoitetoda.

Acordei assustado e imediatamenteme dei conta de por que o gatonão me saía da cabeça. Do lado de fora do meu quarto, a criatura nãoparava de miar. Era impossível dormir com aquela algazarra. Acendi aminha vela e fui até a porta. O corredor estava vazio, mas os miadoscontinuavam. Uma outra ideia então me ocorreu. O animal devia estarpreso em algum lugar, de onde não conseguia sair. À esquerda docorredor, icava o quarto de lady Carmichael. Decidi virar à direita e,depoisdedaralgunspassos,ouviderepenteomiadoatrásdemim.Vireieosomserepetiu,bemdistintamente,aomeulado.

Algumacoisanocorredor,provavelmenteumacorrentedear,fezcomque eu estremecesse e voltei sem demora ao meu quarto. Depois disso,tudo icou em silêncio e acabei dormindo de novo para acordar, no diaseguinte,numagloriosamanhãdeverão.

Enquanto me vestia, avistei pela janela a criatura que perturbara omeu sono. O gato cinza movia-se furtivamente pelo gramado na direção,acreditei, de um bando de pássaros que chilreavam e alisavam as penasnãomuitolongedali.

Masentãoumacoisaestranhaaconteceu.Ogatopassoupelomeiodospássaros,renteaalgunsdelesquenemporissosemoveram.Oqueeuviaerainteiramenteabsurdo!

Fuiincapazdedeixardemencionarofatoduranteocafédamanhã.–Asenhorasabequetemumgatomuitoestranho?–disseeua lady

Carmichael.Ouvi ela raspar a xícara no pires e reparei que Phyllis Patterson

olhava ixamente para mim, com a boca entreaberta e a respiraçãoacelerada.

Houve ummomento de silêncio, e então lady Carmichael disse numtomvisivelmenteirritado:

–Achoqueosenhorestáenganado.Aquinãohánenhumgato.Nuncativegatoalgum.

Eraevidentequeeucometeraumagafe, entãomudei imediatamente

Page 127: Agatha christie - o cão da morte

deassunto.Mas iquei intrigado. Por que motivo lady Carmichael negava

terminantementeapresençadeumgatonacasa?Erapossívelqueogatofossedasrta.Patterson,queomantinhaescondidoecontraavontadedadona da casa. Talvez lady Carmichael sentisse uma dessas estranhasantipatias por gatos que são tão comuns hoje em dia. Aquela era umaexplicaçãoesdrúxula,masaúnicaemquenaquelemomentoeuconseguiapensar.

Nossopacientecontinuavanamesmasituação.Tiveachancedefazerneleumexamemaisdetidodoquenanoiteanterior.Sugeriquepassasseomáximodetempopossívelcomafamília.Issomedariachancedeobservá-lo quando tivesse baixado a guarda. Além disso, podia ser que a rotinafamiliar voltasse a acender nele uma fagulha de inteligência. Mas ocomportamento dele não se alterou. Era calmo e dócil, aparentementedistraído, mas na verdade intensamente atento. Em segredo, nosobservava. Uma coisa certamente me surpreendeu: a afeição quedemonstravapelamadrasta.Asrta.Pattersoneleignoravacompletamente,masprocuravasemprequepossívelsentar-seaoladodeladyCarmichael.Numa ocasião, chegou a roçar a cabeça no ombro dela, numademonstraçãotoscadecarinho.

O caso me preocupava. Eu sentia que a chave para o enigmainevitavelmenteescapavaaomeuentendimento.

–Esseéumcasorealmenteestranho–disseeuaSettle.–Sim–concordouele.–Émuitoesquisito.Tive a impressão de que eleme olhava descon iado. Lá pelas tantas

perguntou:–Ocasonãoolembradenada?Aspalavrasdelemecausaramumcertomal-estar,semelhanteaoque

eusentirajánodiaanterior.–Lembrardoquê?–perguntei.Elebalançouacabeçanegativamente.–Euestavaapenasimaginando...–disseele,masemseguidacalou-se.O caso era misterioso. E eu não conseguia me livrar da sensação

desagradáveldehaverperdidoachaveparaasoluçãodoenigma.Eaindapor cima havia a história do gato cinza, que me parecia igualmenteincompreensível. Por algum motivo, ela estava acabando com os meusnervos.Eusonhavacomgatos,ouviamiadosa todoomomento.Mesentiaobservado pelo animal. Estava a ponto de enlouquecer e não tive outraalternativasenãomeabrircomumcriado:

Page 128: Agatha christie - o cão da morte

– Será que vocêpodeme explicar alguma coisa sobre o gato que euvejo?

–Ogato,senhor?–perguntouele,comoseestivessesurpreso.–Nãohá,nãohavianenhumgatoporaqui?– Lady Carmichael tinha um gato, senhor. Um excelente animal de

estimação.Mastevedesersacrificado.Umapena,eralindo.–Umgatocinza?–pergunteicomcautela.–Sim,senhor.Umpersa.–Etiveramdematá-lo?–Sim.–Temcertezadequefoimesmomorto?–Absoluta, senhor.LadyCarmichaelnãopermitiuqueo levassemao

veterinário, mas tomou ela mesma as providências. Faz menos de umasemana.Eleestáenterradodebaixodafaia-de-cobre–disseoempregadoesaiu,medeixandoasóscommeusprópriospensamentos.

Por que lady Carmichael a irmara taxativamente nunca ter tido umgato?

Tivea impressãodequeahistóriadogatoera importante.EncontreiSettleechamei-oparaumcanto:

–Precisofalarcomvocê,Settle.Haviaounãoumgatonessacasa?Aperguntanãoosurpreendeu.Eracomoseeleaesperasse.–Ouvifalararespeito,masnãoovi–disseele.–Masnaqueleprimeirodia...nogramado,aoladodasrta.Patterson?Eleolhoufixamenteparamim.–Viasrta.Pattersoncaminhandopelogramado,nadamais.Comeceiaentender.–Masentãoogato...Elefezquesimcomacabeça.–Meuobjetivoeracon irmarsevocêouviria,espontaneamenteesem

saberdenada,oquetodosnósouvíamos.–Entãovocêsoescutam?Elemoveuacabeçaafirmativamente.–Éestranho...–murmureidepoisdeumtempo.–Nuncaouvifalarde

gatosassombrandocasas.Conteiaeleoqueocriadomecontara,eelesemostrousurpreso.–Issoénovidadepramim.Nãosabianadaarespeito.–Eoquevocêachaquesignifica?–perguntei,perplexo.Eledeudeombros.– Só Deus sabe! Mas vou dizer-lhe uma coisa, Carstairs. Estou com

Page 129: Agatha christie - o cão da morte

medo.Avozdacoisapareceameaçadora.–Ameaçadora?–perguntei,espantado.–Ameaçadoraparaquem?Elelançouosbraçosparaoar.–Nãoseidizer.Foi só depois do jantar, naquela noite, que compreendi o sentido do

queeledizia.Estávamosnosalãoverde,comonanoitedaminhachegada,quando tudocomeçou:umgatomiavaaltoe insistentedo ladode foradaporta.Masdessavezeleestavamesmobrabo.Ouvíamosummiadoferozeameaçador, demorado. E, quando ele inalmente cessou, garras a iadasrasparamviolentamentedeencontroàporta.

Settlelevouumsusto.–Poderiajurarqueéreal!–exclamou.Elecorreuatéaportaeabriu-adesupetão.Nãohavianadalá.Eleretornoucomosemblanteamuado.Phyllisestavapálidaetrêmula,

lady Carmichael branca como um fantasma. Somente Arthur, de cócorascomoumacriança,comacabeçapressionadacontraojoelhodamadrasta,continuavacalmoeimperturbável.

Deiobraçoàsrta.Pattersonesubimosaooutroandar.–Ah!Dr.Carstairs–gritouela–,qualosentidodissotudo?–Aindanãosabemos,minhajovem–disseeu.–Masvamosdescobrir.

Estouconvencidodequeasenhoritanãocorreperigo.Elameolhoudesconfiada.–Eoqueofazpensarassim?–Umaintuição–respondi,convicto,lembrando-medamaneiracomoo

gatocinzaseenroscavaaoredordosseuspés.Comcertezaaameaçanãosedirigiaaela.

Eu estava caindo de sono e acabei cochilando sem me dar conta.Acordei um pouco depois com o barulho de algo sendo violentamentearranhadoourasgado.Tomeiumsustoepuleidacama.FuiatéocorredoreencontreiSettle,que tambémhavia saídodo seuquarto, logoem frenteaomeu.Osomvinhadanossaesquerda.

–Vocêouviu,Carstairs?Vocêouviu?Corremosnadireçãodoquartode ladyCarmichael.Nãovimosnada,

mas o barulhohavia parado.As chamasdas nossas velas se re letiamnasuperfíciepolidadaportadeladyCarmichael.Olhávamosumparaooutro.

–Vocêsabeoqueera?–sussurrouele.Confirmeicomacabeça.–Asgarrasdeumgatoarranhandoerasgandoalgumacoisa.

Page 130: Agatha christie - o cão da morte

Sentiumarrepio,baixeiavelaeexclamei:–Ali,Settle!Umacadeiraque icavaencostadamaisadiantenaparedeestavacom

oassentotodoarranhadoerasgadoemlongastiras.Nosaproximamoseolhamosdeperto.Eleolhouparamimedisse:–Garrasdeumgato,comcerteza.Ele suspirou fundo, e seus olhos se moveram da cadeira à porta

fechadadoquarto.– Ali dentro está a pessoa a quem se dirige a ameaça. É para lady

Carmichael!–acrescentou.Naquelanoite,nãoconseguimaisdormir.Aquilo játinhapassadodos

limites,precisávamostomarumaatitude.Naminhaopinião,sóumapessoapoderianosajudaraentenderaquelasituação:apróprialadyCarmichael,quesabiamaisdoquenosdissera.

Ao descer para o café namanhã seguinte, ela estavamais pálida doque nunca e apenas brincou com a comida no prato. Aminha impressãoera a de que ela fazia um grande esforço para não se descontrolar. Aolevantarmosdamesa,pediparafalarcomelaefuidiretoaoponto:

–LadyCarmichael, tenho razõesparaacreditarquea senhora correumgrandeperigo.

–Émesmo?–perguntouela,indiferente.–Hánestacasaumacoisa...umapresençaqueéobviamentehostil à

senhora.– Mas que absurdo – murmurou ela, debochada. – Como se eu

acreditassenessetipodecoisa...–Ontemànoite,oassentodacadeiranocorredor,doladodeforado

seuquarto–observeifriamente–,foidestruído.–Foi?Com as sobrancelhas muito erguidas, ela ingia estar surpresa, mas

tivecertezadequeeunãolherevelaranenhumanovidade.–Certamenteumabrincadeirademaugosto–acrescentouela.–Nãofoinenhumabrincadeira–corrigi,preocupado.–Equeroquea

senhoramediga,paraoseuprópriobem...–fizumapausa.–Quelhedigaoquê?– Qualquer coisa que nos ajude a entender o caso – disse em tom

sério.Elasoltouumagargalhada.–Eunãoseidenada.Nada!E nenhuma advertência foi capaz de fazê-la reconsiderar a sua

Page 131: Agatha christie - o cão da morte

a irmação.Maseu continuava convencidodequeela sabiamuitomaisdoquequalquerumdenósetinhaachaveparaasoluçãodoenigma.Sóqueera mesmo impossível arrancar dela uma palavra que fosse sobre oassunto.

Eu me sentia na obrigação de tomar todas as precauções possíveispara impedir que algum mal lhe acontecesse, convencido que estava deque ela enfrentava uma ameaça real e iminente. Naquela noite, antes deela ir se deitar, Settle e eu demos uma busca no quarto. Depois disso,dividimosanoiteemdois turnos, a imdequeeueelepudéssemos icardeguardanocorredor,revezando-nos.

O primeiro turno, até as três horas, coube a mim e decorreu semqualquerincidente.Eujáestavabastantecansadopornãodormirnanoiteanteriore,assimqueSettleveiomesubstituir,volteiimediatamenteparaoquartoecaínosono.Tiveumsonhoengraçado.

Sonhei que um gato cinza estava sentado nos pés daminha cama, eque me olhava ixamente, como se pedisse alguma coisa. Era como sequisessequeeuo seguisse.Obedeci, eelemeconduziupelaescadaatéoandar de baixo, e depois até a ala do outro lado da casa, onde entramosnuma salaque eraobviamente abiblioteca. Eleparoudiantedeumadasestantesdelivroseergueuaspatasdianteirassobreumaprateleirabaixa,meolhandodenovocomosepedissealgo.

Então, subitamente, o gato e a biblioteca desapareceram no ar.Quandoacordei,jáerademanhã.

O turnode Settle tambémdecorreu tranquilo.Mas Settle semostrouvivamente interessado pelo meu sonho. Pedi que me levasse até abiblioteca, e constatei que correspondia ponto por ponto à visão que eutivera dela em sonho. Não tive di iculdade para indicar o lugar exato deondeogatomelançaraoseuúltimoolharmelancólico.

Detivemo-nos por ali um tempo, re letindo. De repente me ocorreuuma ideia, e me inclinei a im de ler os títulos dos livros que icavamnaquelelugar.Noteiqueumlivroestavafaltando.

–Estáfaltandoumlivro–disseeuparaSettle.Eletambémseinclinou.–Vejasó.Umpedaçodeumafolha icoupresonapontadeumprego

aquiembaixo.Comcuidado,eleretirouo fragmentodepapeldabasedaprateleira.

Nãoeramaisqueumcantoda folha,mas trazia impressasduaspalavrassignificativas:“Ogato...”.

–Masquehorror!–disseSettle.–Émuitoesquisito...

Page 132: Agatha christie - o cão da morte

– Precisamos descobrir que livro estava aqui. Você acha que há umjeitodesabermos?

–Talvezhajaumcatálogo.VamosfalarcomladyCarmichael...Sacudiacabeçanumanegativa.–Elanãovainosdizernada.–Vocêacha?–Tenhocerteza.Elasabedealgumacoisaeatéagoranãoseprestoua

colaborar.Preferecorrertodososriscossozinhaaabriraboca.O dia decorreu tão tranquilo que mais parecia a bonança antes da

tempestade.Eeutinhaaestranhaintuiçãodequeoenigmaestavaprestesaseresolver.Tateávamosnoescuro,masembrevealuzseacenderia.Osfatosestavamtodoslá,prontosparaserevelaremaquemsoubessejuntá-losdeformacorreta.

Eahorachegou,pegando-nosdesurpresa!Estávamos sentados no salão verde, como sempre, depois do jantar.

Estávamos em silêncio. E, de fato, o silêncio era tal que um ratinho seatreveua correrpelo chão, atravessandoapeçadeumaponta àoutra, efoinesseinstantequetudoaconteceu.

ArthurCarmichaeldeuumpulodacadeiraondeestava,colocando-seimediatamentenorastrodoanimal,quedesapareceuatrásdeum lambri.Agachadoeatento,Arthurtremiadeexcitação.

Eujánãotinhamaisdúvidasquantoaosigni icadodocomportamentodo jovem. Subitamente, fui capaz de compreender seus passos furtivos esuasolhadelasescusas.Sóhaviaumaconclusãoasertiradadaquelacena,por mais absurda e inacreditável que parecesse. Quanto mais eu meesforçavapornegá-la,maisaconclusãoseimpunhaaomeupensamento.

Do que aconteceu depois eu não me lembro direito. As lembrançasquetenhosãoconfusase irreais.Nãomelembrosequerdeterdadoboa-noite aos outros antes de subir para o quarto. Evitávamosnos encarar, afimdenãotermosconfirmadososnossospioresreceios.

Settle icoudeguardado ladode foradoquartode ladyCarmichael,assumindo o primeiro turno da vigilância. Às três da manhã, ele mechamaria para assumir o seu lugar, mas eu já não me preocupava maiscom lady Carmichael. Deixara-me simplesmente fascinar pela teoriaabsurdaqueeuencontraraparaexplicartodosaquelesfatos.

Eentãoosilênciodanoitesequebrou.AvozdeSettleseergueunumgrito,chamandopormim.Corriatéocorredor.

Com todas as forças, ele esmurrava a porta do quarto de ladyCarmichael.

Page 133: Agatha christie - o cão da morte

– O demônio deu um jeito de apanhá-la. Os dois estão trancados ládentro.

–Mas...–Estáládentro!Comela!Vocêestámeouvindo?Atrásdaportatrancada,umgatomiavafurioso,eaosseusmiadosse

seguiam gritos, um mais terrível que o outro. Reconheci a voz de ladyCarmichael.

–Temosdearrombarestaportaouvaisertardedemais!–gritei.Juntos,nosarremessamosdeombrocontraaporta,comtodaanossa

força.Aportacedeucomumestrondo,equasecaímosdentrodoquarto.Lady Carmichael estava na cama, coberta de sangue. Nunca vi nada

maisrepugnante.Ocoraçãoaindabatia,masosferimentoseramterríveis.Apeledopescoçoestavatodarasgada.

–Asgarras...–murmurei,trêmuloearrepiado.Cuideidos ferimentosomelhorquepude,e sugeriaSettlequenada

comentasse sobre a natureza deles, especialmente com a srta. Patterson.Pedi que expedissem o mais depressa possível um telegrama meu aohospital,solicitandoavindadeumaenfermeira.

Aauroracomeçavaaseinsinuarpelajanela.Olheiparaogramado.– Vista-se e venha comigo – falei a Settle abruptamente. – Lady

Carmichaelvaificarbem.Empoucotempoeleestavapronto,efomososdoisatéojardim.–Oquevamosfazer?–perguntouele.–Desenterrarocorpodogato–disseeu,semdelongas.–Precisome

certificardeque...Encontreiumapánogalpão,ecomeçamosacavardebaixodafaia-de-

cobre. Por im, achamos o que queríamos. Não foi uma descobertaagradável.Oanimalestavamortoháumasemana.Masfoiobastanteparameconvencer.

–Esteéogato–eudisse.–Éidênticoaoqueviquandochegueiaqui.Settle cheirou o ar próximo à tumba. Um cheiro amargo de nozes

aindaeraperceptível.–Ácidoprússico–disseele.Assenticomacabeça.–Oquevocêacha?–perguntouele.–Omesmoquevocê!Minhassuposiçõesnãoosurpreenderam.Eleprovavelmentepensava

omesmoqueeu.–É impossível–murmurou.–Contraria tudooquesabemossobrea

Page 134: Agatha christie - o cão da morte

natureza...Umestremecimentofezcomquesecalasse.Emseguidaacrescentou:–Aqueleratoontemànoite...Mas...Quecoisamaisestranha!– Lady Carmichael – disse eu – é uma mulher estranha. Ela tem

poderesparanormais,hipnóticos.SeusantepassadosvêmdoOriente.Eseela fez uso desses poderes comuma criatura fraca e sugestionável comoArthur Carmichael? Lembre-se, Settle, enquanto Arthur Carmichaelpermanecer um completo imbecil inteiramente submisso à madrasta, apropriedadeficanasmãosdelaedofilho,quevocêmedissequeelaadora.Arthurestavaquasesecasando!

–Masoquepodemosfazer,Carstairs?– Nada – respondi. – Mas faremos o possível para evitar que a

situaçãosedeterioreaindamais.Aos poucos, o estado de saúde de lady Carmichael foi melhorando.

Curados,osferimentosdeixaramapenascicatrizesqueelaprovavelmentecarregariaatéofimdavida.

Nunca senti tanto desânimo. A força que tinha nos derrotadocontinuava solta, impune, e embora no momento parecesse aplacadasabíamos que ela nos concedia nomáximo uma trégua. De uma coisa euestava certo. Assim que lady Carmichael estivesse em condições de semudar,deviaser levadapara longedeWolden.Haviaumachancedequeosfenômenosnãoaacompanhassem.

Osdiaspassaramemarquei amudançade ladyCarmichaelpara18desetembro.Foinamanhãdodia14queaviradainesperadaaconteceu.

EuestavanabibliotecadiscutindocomSettledetalhesdocasodeladyCarmichaelquandoumacriadaentroualarmadanapeça:

– Senhor, por favor, rápido! O sr. Arthur... ele caiu no lago. Foi elecolocaropénobarco,paraobarcodeslizar.Eleperdeuoequilíbrioecaiu.Vitudodajanela.

Fiqueiporummomentoparalisado,masemseguidadeixeicorrendoasala, seguido de Settle. Phyllis estava do lado de fora e já tinha ouvido ahistóriadacriada.

–Nãoéprecisosepreocupar–disseela.–Arthurnadamuitobem.Maseutinhaummaupressentimentoeacelereiopasso.Asuper ície

do lago estava calma. O barco, vazio, estava à deriva um pouco além damargem,enãohaviaqualquersinaldeArthur.

Settletirouocasacoeasbotas.–Vouentrar–disseele.–Pegueooutrobarcoevejasecomocabo

conseguepescaralgumacoisa.Olagonãoémuitoprofundo.

Page 135: Agatha christie - o cão da morte

Perdemos muito tempo procurando. Os minutos corriam. Quandoestávamosprestes adesistir, encontramoso corpodeArthurCarmichael,aparentementesemvida,eotrouxemosparafora.

NuncavouesqueceraagoniaestampadanorostodePhyllis.–Impossível...–murmuravaela,sempoderacreditar.–Acalme-se,vamosdarumjeitodereanimá-lo.A verdade é que eu já não tinha muitas esperanças. O rapaz icara

debaixod’águapormaisdemeiahora. Pedi a Settleque fosse até a casabuscarcobertoresecomeceieumesmoafazerarespiraçãoartificial.

Fizemos tudoqueerapossívelpormaisdeumahora, semconseguirobterdelequalquersinaldevida.PediaSettlequeassumisseomeulugar,emedirigiaPhyllis.

–Receioquejánãosejapossívelfazermaisnada...Elaficoucaladaporummomento,eentãoseatirousobreocorpo:–Arthur!Arthur!Acorde,acorde!–exclamavaemdesespero.Avozdelafoiminguandoatéosilêncio.Derepente,toqueiobraçode

Settle.–Olhe!–eudisse.Um pouco de cor tinha voltado ao rosto do afogado. Coloquei amão

sobreoseupeito.–Continuecomarespiração!–exclamei.–Eleestávoltandoasi.Otempovoava.Emummomentooudois,eleabriaosolhos.Imediatamente pude perceber a diferença. Aqueles eram olhos

inteligentes,olhoshumanos.ElessedetinhamemPhyllis.–Phyllis–murmurouojovem.–Évocê?Acheiquesóviesseamanhã.Elanãoconseguiarespondereapenassorria.Eleolhavaespantadoao

redordesi.–Ondeestou?Masoqueaconteceucomigo?Dr.Settle!–Vocêquaseseafogou,foiissooqueaconteceu–disseSettle,irritado.SirArthurdeuumsorrisoamarelo.–Masoquehouve?Euestavasonâmbulo?Sempremedisseramque

poderiavoltaraacontecer...Settleconcordoucomacabeça.–Temosdelevá-loparadentrodecasa–disseeu.Ojovemarregalouosolhosparamim,ePhyllismeapresentou:–Esteéodr.Carstairs,queestápassandoumatemporadaconosco.EleapoiouumbraçoemmimeoutroemSettle,eocarregamosassim

até dentro de casa. Ao chegar lá, como se tomado subitamente por uma

Page 136: Agatha christie - o cão da morte

ideia,eleperguntou:–Atéodia12estareibemdenovo,certo?–Vocêserefereaodia12deagosto?–Sim,apróximasexta-feira.–Hojeé14deagosto–declarouSettle.Asurpresadorapazeraevidente.–Mas...eupensavaquehojeeradia8!Poracasoestivedoente?Phyllisintercedeurapidamente,comsuavozsuave:–Sim,vocênãoestevenadabem.Arthurfranziuocenho.–Não consigo entender. Parecia estar tudo certo comigo quandome

deitei ontemà noite. Amenos que não tenha sido ontemà noite.De fato,melembrodealgunssonhos.Sonheique...

Elefranziuocenhoaindamais.– Alguma coisa... O que era? Alguma coisa horrível. Alguém me fez

algumacoisa,eeuestavamuitobrabo,furioso...Depoissonheiqueeraumgato,sim,umgato!Quecoisamaisengraçada!Naverdade,osonhonãoeranadaengraçado,maispareciaumpesadelo.Nãoconsigolembrar...écomosetivessesidoapagadodaminhamemória.

Coloqueiamãonoseuombro.–Àsvezes,omelhorémesmoesquecer...–disseeu,gravemente.Ele arregalou os olhos para mim e depois assentiu com a cabeça.

Phyllissuspiroualiviada.Havíamoschegadonacasa.–Mudandodeassunto–dissesirArthur–,eminhamãe,ondeestá?–Elatambémandoudoente–dissePhyllis,depoisdeumapausa.–Émesmo?Coitada!–disseele,numtomrealmentecomovido.–Onde

elaestá?Noquarto?–Sim–disseeu.–Masémelhordeixá-ladescansar...Eumalterminaradedizeraquelaspalavrasquandoaportadasalade

estar se abriu e lady Carmichael, vestindo um longo robe, apareceu nosaguão.

Elaolhava ixamenteparaArthurepôsamãonagarganta.Ohorrorqueemanavadoseurostoeraquaseinumano.Pareciacairsobreelaumasentençainexorável.

Semsedarcontadasituação,Arthuravançounasuadireção.–Olá,mãe!Medisseramqueasenhoratambémandoudoente...sinto

muito.Diantedele,elarecuou,arregalandoosolhos.Eentão,derepente,com

um grito desolado de horror, lady Carmichael desabou para trás, na

Page 137: Agatha christie - o cão da morte

direçãodaporta.Corriemeinclineisobreela,depoisfizumsinalaSettle.– Leve-ospara cima, por favor, e depois volte aqui. LadyCarmichael

estámorta.Settleretornoudepoisdealgunsminutos.–Masoquefoi?Oqueaconteceu?–Um choque – disse eu. – A visão deArthur recuperado foi demais

paraela.Oupodemosdizerquefoiumaespéciedejustiçadivina.–Vocêquerdizer...Olheifixamentenosolhosdeleedeclarei:–Umavidapelaoutra.–Mas...– Foi um acidente que permitiu ao espírito de Arthur Carmichael

retornaraoseuantigocorpo.Elehaviasidoassassinado.Settlemeolhoureceoso.–Comácidoprússico?–perguntoueleemvozbaixa.–Sim–respondi.–Comácidoprússico.

IISettle e eununca revelamosoque sabíamos.Ninguémacreditaria.O

parecer o icial foi o de que Arthur Carmichael sofrera uma perda dememória, e lady Carmichael dilacerara a própria garganta durante umataquehistérico.Ogatocinzanãopassariadeimaginação.

Dois fatos permanecem indubitáveis para mim. Primeiro, a cadeiracom o assento destruído, no corredor. O outro fato é ainda maissigni icativo. O catálogo da biblioteca acabou sendo encontrado depois deumaexaustivaprocura,edescobriu-sequeolivroqueestavafaltandoeraumantigoecuriosovolumesobreapossibilidadedemetamorfosearsereshumanosemanimais!

Outra coisa. Fico feliz em poder dizer que Arthur nunca soube denada.Phyllis guardouo segredodaquelas semanas consigomesma.Estoucertodeque jamaisvairevelá-loaomarido.Eavozqueagorasecalaéamesma que outrora, com gritos desesperados, o arrancou das garras damorte.

Page 138: Agatha christie - o cão da morte

OCHAMADODASASAS

IA primeira vez que Silas Hamer o ouviu foi numa noite fria de

fevereiro. Ele e Dick Borrow estavam voltando de um jantar na casa deBernard Seldon, o psiquiatra. Borrow estivera por um bom tempo emsilêncio, e Silas Hamer, estranhando o comportamento do amigo,perguntou-lhe no que estava pensando. A resposta de Borrow foiinesperada.

–Detodosesseshomensqueencontramoshojeànoite,somentedoispodemsedizerfelizes.Eessesdois,pormaisestranhoquepareça,somoseuevocê.

Era mesmo estranho. Para começar, porque os dois eram muitodiferentesumdooutro:RichardBorrow,opárocodedicado;SilasHamer,ohomemeleganteecomplacente,cujafortunaeraconhecidadetodos.

–Engraçado...Achoquevocêéoúnicomilionáriofelizqueconheço.Hamer icou em silêncio por um momento. Quando falou, foi num

outrotom:–Jáfuiummeninomirradoquecirculavapelasruastremendodefrio

paravenderjornais.Naquelaépocaeuqueria,eagoraconsegui,oconforto,não o poder proporcionado pela riqueza. Eu queria dinheiro não parabrandi-lo como uma força, mas para gastá-lo dispendiosamente... comigomesmo! Não tenho por que negar nada disso. Se diz que o dinheiro nãocompratudo,eéverdade.Maspodecomprartudooqueeudesejo,eassimmebasta.Souummaterialista,Borrow,ummaterialistaconvicto!

O fulgordaruabemiluminadacon irmavaa féprofessadaporele.Aelegância insinuante do corpo de Silas Hamer era reforçada por seuimponentecasacodepele,assimcomooviçodassuasbochechascarnudaspareciaexaltadopelobrilhodaslâmpadas.Ocontrastenãopodiasermaiorentre ele e Dick Borrow, com seu rosto magro e olhos tão penetrantesquantofrios.

–Éoseucomportamentoqueeunãoentendo–declarouHamer.Borrowsorriu.– Vivo nomeio damiséria, da falta, da fome... de todos osmales da

carne!Eoquememantémdepééumavisão.Sóquemacreditaemvisõesé capaz de me entender, e reconheço que você está longe de acreditarnelas.

Page 139: Agatha christie - o cão da morte

–Realmente,eunãoacredito–admitiuSilasHamer,impassível.–Nãoacreditoemnadaquenãopossaver,ouviretocar.

–Entendo.Essaéanossadiferença.Bem,atémais!Estánahoradeaterrameengolir.

EstavamdiantedaentradadaestaçãosubterrâneadometrôquefaziapartedocaminhodeBorrowatésuacasa.

Hamer continuou sozinho. Ele estava feliz por ter dispensado omotoristaepoderretornarapé.Oarestavalimpoeglacial,oqueaguçavaossentidoseotornavamaisconscientedaproteçãoquenteproporcionadapelocasacodepele.

Ele icouumtempoparadonomeio- ioantesdeatravessararua.Umvelhoônibusvinhabalançandonasuadireção,eeleesperoucalmamenteatéque terminassedepassar.Do contrário, teriade correr, e a sensaçãodeterdeseapressarlheeradesagradável.

Do seu lado, um triste dejeto da raça humana rolou bêbado dacalçada.Hamerouviuumgrito,obruscobarulhodosfreios...eemseguida,cada vez mais estupefato, icou olhando para o amontoado lácido defarraposqueagorajazianomeiodarua.

Uma multidão surgiu de repente, junto com uma dupla de policiais,todos se aglomerando ao redor do motorista do ônibus. Fascinado etomado de horror, Hamer não conseguia tirar os olhos daquele vultodesengonçado e sem vida que,minutos antes, não era outra coisa senão,comoele,umsimplesmortal!Hamerestremeceu.

– Foi culpa sua não, doutor – observou um sujeito mal-encarado aoseulado.–Podiafazermaisnada.Erasina.

Hamer arregalou os olhos para ele. A ideia de que fosse possívelsalvar o mendigo nem mesmo passara pela sua cabeça. E agora elerejeitavaaquelasugestãocomoumabsurdo.Setivesseadiantadoopasso,naquelemomento elemesmo poderia... Antes de concluir, Hamer afastouda cabeça aquele pensamento e caminhou para longe da multidão. Eletremiadospésàcabeça.Eraimpossívelnegaromedo,omedoterrívelquea morte lhe causava... Uma morte inesperada, investindo certeira contraricosepobres...

Ele acelerou o passo, mas não conseguiu se livrar do medo que seapoderavadelecomoumamãogelada.

Aquilo não condizia com a sua natureza. Ele não era um homemcovarde.Hácincoanos,nadaoassustariadaquelamaneira.Mascincoanosatrás a vida não lhe era tão prazerosa... Sim, era isso. O apego que eleagoratinhaàvida.Jamaisgostaratantodeviver,eporissoamortesurgia

Page 140: Agatha christie - o cão da morte

nohorizontecomoumaameaçacerteira,implacável!Ele saiu da avenida e entrou numa passagem escura, entre muros

altos, que servia de atalho até a quadra onde icava a sua casa e suainestimávelcoleçãodeobrasdearte.

Obarulhodaavenidaatrásdesifoienfraquecendo,eeleagoraouviaapenasobaquesurdodosseusprópriospassos.

E então, da escuridão à sua frente, outro som emergiu. Sentado deencontro ao muro, um homem tocava lauta. Um membro dessas tribosincontáveisdemúsicosderua,éclaro,masporqueescolheraaquelelugartãopeculiar?Àquelahoradanoite,apolíciacertamente...Aoperceberqueohomemnão tinhapernas,Hamer sedeteveemestadode choque.Duasmuletas jaziamapoiadasdeencontroaomuroaoseu lado.Eaquiloqueohomem tocava não era uma lauta, mas um instrumento estranho, queemitianotasmuitomaisaltaseestridentes.

Ohomemcontinuoutocando,comoseignorasseapresençadeHamer.Ele tinhaa cabeça lançadapara trás, comoseamúsica lhecausasseumagrandealegria,easnotascorriamrápidasumadepoisdaoutra, cadavezmaisaltas...

Que melodia estranha! Estritamente falando, não era sequer umamelodia, mas um motivo não muito diferente do lento ornamento, umgrupeto, feitopelosviolinosemRienzi,sóquerepetidodeumtomaoutro,deumaharmoniaaoutra,esubindosemprecomumaliberdadecadavezmaior.

Hamerjamaisouviraalgocomoaquilo.Eraumamúsicaextravagante,inspiradora...quelheinjetavaumnovotipodeânimo...ederepenteeleseviuagarradoaumaprotuberânciadomuroabaixodesi.Eleagorasótinhaconsciência de uma coisa: era precisomanter-se no chão, no chão a todocusto!

Ederepenteamúsicaparou.Ohomemsempernas tentavaalcançarasmuletas.E lá estavaele, SilasHamer, agarrado feitoum lunáticonumaescoradepedra, pela simples razãodequeele tivera a ideia absurdadequeestavaalevantarvoo...queamúsicaolevavaparaasalturas...

Eleriu.Queideiamaislouca!Éclaroqueseuspésnãotinhamsaídodochãonemmesmoporuminstante,masquealucinaçãoestranha!Orápidotac-tacdemadeiranopavimentomostrouaelequeoaleijadoseafastava.Hamer icou observando-o até que a igura do homem foi tragada pelaescuridão.Quesujeitomaisestranho!

Hamerretomouoseucaminhosempressa. Jánãoconseguia tirardacabeçaalembrançadaquelasensaçãoimpossíveldeestarlevitando...

Page 141: Agatha christie - o cão da morte

E então, seguindo um impulso, ele se virou e seguiu apressado nadireçãoqueohomemtinhatomado.Nãoerapossívelquetivesseidomuitolonge;Hamerlogooalcançaria.

Assimquevislumbroua iguramutiladaqueavançavasebalançandogritou:

–Ei,espereummomento!O homem parou, imóvel, esperando Hamer se aproximar. O aleijado

estavabemdebaixodeumalâmpadaquerevelavaasfeiçõesdoseurosto.SilasHamerretevearespiração,surpreso.Orostodohomemeradeumabeleza absolutamente singular. Que idade ele teria? Certamente não eraum garoto, mas uma das características mais marcantes dos seus traçospareciaserovigoreumajuventudeimpressionantes!

Hamernãosabiacomodarinícioàconversa.–Olá!–disseeleconfuso.–Gostariadesaberqualonomedamúsica

quevocêestavatocandoagorahápouco.Ohomemsorriu...umsorrisoquepareciacontagiartudoaoredor.–Ah...éapenasumavelhacanção.Umacançãomuitovelha,deséculos

atrás.Ela falava comuma clareza singular, como se acentuasse cada sílaba

daspalavrasquedizia.Certamentenãoerainglês,masHamernãosaberiadizerdeondeelevinha.

–Vocênãoéinglês,é?Vemdeonde?Novamente,ohomemsorriu.–Venho...dooutroladodomar.Hámuitotempo.–Vocêdevetersofridoumgraveacidente.Foirecente?–Jáfazumtempo,senhor.–Queazarperderasduaspernas!–Foicomotinhadeser–disseohomem,muitocalmo.Ele olhou ixamente nos olhos de Hamer e disse com certa

pomposidade:–Nãoprestavam.Hamerdeu-lheumxelimevoltouacaminharnadireçãodecasa.Ele

estava confuso e vagamente ansioso. “Não prestavam!” Que coisa maisestranha de se dizer! Evidentemente, teria sido feita uma cirurgia porcausadeumadoença,mas...quemaneiramaisesquisitadefalar!

Hamer chegou em casa taciturno. Emvão tentou tirar o incidentedacabeça. Deitado na cama, quando começou a sentir um pouco de sonoouviu um relógio na vizinhança bater uma hora. Uma batida distinta e,depoisdosilêncioqueseseguiuaela,umsombaixinho, familiar...Hamer

Page 142: Agatha christie - o cão da morte

reconheceu-o imediatamente e seu coração disparou. Quem tocava era ohomem que ele encontrara no atalho... tocava em algum lugar nãomuitodistante.

As notas se seguiam conformeHamer imaginava, o lento ornamento,cativanteealegre,elogoafrasezinhaqueserepetiasemparar...

–Quemúsicamisteriosa–murmurouHamerparasimesmo.–Écomosetivesseasas...

Umaondulaçãodepoisdaoutra, cadavezmaisaltas,mais luminosas,puxando-o para cima. Dessa vez, ele desistiu de lutar e se deixou levar...Para cima, para cima! As ondas sonoras carregavam-no com elas,irresistivelmente.

Cada vez mais alto, acabaram por passar os limites da audiçãohumana,masnemporissodeixaramdesubiresubir...Haveriaumametafinal?Aalturaperfeita?

Subindo...Masalgumacoisaopuxoudevolta,parabaixo.Algumacoisagrande,

pesada e insistente. Ela o puxou semnenhum remorso, puxou-ode volta,parabaixo...

Deitadonacama,eleolhavaparaajanelaemfrente.Então,respirandocomdi iculdade,esticouumbraçoparaforadacama.Ogesto lhepareceuparticularmente di ícil de realizar. Era como se a maciez do colchãopuxasse o seu corpo para baixo. E ele se sentia oprimido pelo peso dascortinasna janela,que impediamaentradada luzedoar.O tetopareciatercedido.Tensoeconfuso,Hamertentoumover-sevagarosamentesobascobertas,masopesodoseuprópriocorpoeraoquemaisoatrapalhava...

II–Precisodeumconselho,Seldon.Seldon afastou ligeiramente a cadeira da mesa. Ele estivera se

perguntando qual seria o motivo daquele jantar tête-à-tête. Desde oinvernoquasenãoviraHamer,enaquelanoitepôdeperceberqueoamigohaviamudadodeumamaneiradifícildedefinir.

–Estoupreocupadocomigomesmo–disseomilionário.Dooutroladodamesa,Seldonsorriu.–Vocêmeparecemelhordoquenunca.–Não–disseHamer.Depoisdeummomentodesilêncio,acrescentou:–Achoqueestouenlouquecendo.

Page 143: Agatha christie - o cão da morte

O psiquiatra levantou as sobrancelhas com súbito interesse.Calmamente, ele se serviu de umpouco de vinho do porto e então disse,olhandoparaoamigo:

–Eporquevocêachaisso?– Por causa de uma coisa que me aconteceu. Uma coisa absurda,

inacreditável.Nãopodeserverdade,eusópossoestarenlouquecendo.–Acalme-seeconte-mequeexperiênciafoiessa.– Eu não acredito no sobrenatural – começou Hamer. – Nunca

acreditei.Mas issoquemeaconteceu... Bem, émelhorque lhe conte tudodesdeoinício.Etudocomeçounoúltimoinverno,numanoitedepoisdeumjantarcomvocê.

Deformabreveeconcisa,elenarrouoseventosquepontuaramasuacaminhadaatéemcasa,bemcomoseuestranhodesfecho.

– Foi então que tudo começou.Não tenho como lhe explicar direito...Erauma sensaçãomaravilhosa!Diferentede tudoque já senti ou sonhei.Bem,desdeentão,elatemserepetido.Nãotodasasnoites,masdevezemquando.Amúsica,aimpressãodequeestousendosoerguido,dequeestouplanando... e depois a queda terrível, a volta inevitável à terra e osofrimento ísico de ter deme levantar da cama. É como descer de umamontanha, o mesmo tipo de dor nos ouvidos... O mesmo tipo, masintensi icado.Etambémumasensaçãoestranhadepeso,desufocamentoeumatensãogeneralizada...

Hamerseinterrompeuefezumapausa.– Os empregados acham que enlouqueci. Eu já não suportava a

opressão do teto e das paredes. Pedi que providenciassemparamimumlugar no alto da casa, aberto para o céu, semmobília nem carpete, semnadaquepudessemesufocar.Masatémesmoascasasdavizinhançameincomodam. Gostaria de viver no campo, num lugar onde pudesserespirar...

ElefixouosolhosemSeldon,depoisperguntou:–Oquevocêacha?Écapazdeexplicarissoporqueestoupassando?– Hum... – disse Seldon – Há várias explicações possíveis. Você foi

hipnotizado ou você mesmo se hipnotizou. Pode haver algum problemacomosseusnervosoutalvezsejaapenasumsonho.

Hamerbalançouacabeçanegativamente.–Nenhumadessasexplicaçõeséboa.– Há outras explicações possíveis, mas em geral não sãomuito bem

aceitas.–Masvocêestápreparadoparaaceitá-las?

Page 144: Agatha christie - o cão da morte

–Sim,boapartedelas!Hámuita coisaquenãopodemosentender, eque não se pode explicar normalmente. Temosmuito o que descobrir, eporissoprocuromanteramenteaberta.

– O que você me aconselha a fazer? – perguntou Hamer, depois deumapausa.

Seldonseinclinoubruscamente:–Várias coisas. SaiadeLondreseváparao campo.Pode serqueos

sonhosdesapareçam.– Não posso fazer isso – objetou Hamer. – Já não consigo viver sem

eles.Eunãoqueroviversemeles.– Ah! Imaginei. Outra alternativa é encontrar esse sujeito, o aleijado.

Vocêestáatribuindoaele todotipodepodersobrenatural.Conversecomele.Quebreoencanto.

Hamersacudiuacabeçanegativamente.–Porquenão?–Tenhomedo–declarouHamer.Seldonfezumgestodeimpaciência.–Nãosedeixeimpressionardessaforma!Essamúsicaquedeuinício

atudoisso...comoelaé?Hamercantarolou-a,eSeldonouviu-adesemblantefranzido.– É como se saísse da abertura do Rienzi. Há algo nela que eleva o

ânimo... é comose tivesseasas.Masnempor isso começoa levitar!Essesvoosdequevocêfala...Sãoelestodosiguais?

–Não,não...–disseHamer,inclinando-separafrente.–Elesevoluem.Cada vez eu vejomais coisas. É di ícil explicar. Sempre tenho consciênciadealcançarumcertopatamar... amúsicame levaaté lá,nãodiretamente,masnumasucessãodeondas,quevãocrescendoatéchegarnumlimite,oqual não se pode ultrapassar. E ico pairando por lá até ser puxado devolta.Émaisumestadodoqueumlugar...Nãonoinício,masdepoisdeumtempo comecei a entender que havia outras coisas ao meu redor,esperando para que eu as descobrisse. Pense em um gatinho. Ele temolhos,masdeinícionãoenxergamuitacoisa.Precisaaprenderaver.Foioque aconteceu comigo. Olhos e orelhas mortais não me adiantavam denada, mas havia algo correspondente a eles que eu precisavadesenvolver... algo que não era corpóreo. Isso fui desenvolvendo aospoucos. Primeiro vieram as sensações luminosas, depois as sonoras, eentãoascores.Tudomuitovagoeconfuso.Eusabiaqueascoisasestavamali, mais do que eu as via ou ouvia. Primeiro foi a luz, uma luz que setornou mais forte e mais clara... depois a areia, extensões de areia

Page 145: Agatha christie - o cão da morte

vermelha...e,aquieali,águacorrendo,canaisdeágua.Seldonrespiroufundo.–Canais!Issoéinteressante.Continue.–Masessascoisasnãoeramimportantes,somentenoinício.Ascoisas

realmente importantes só descobri mais tarde... e primeiro através doouvido. Um som semelhante a um bater de asas... um glorioso bater deasas, quenão sei explicardireito!Nãohánadaparecido com isso aqui. Eentãoeuasvi!Viasasas,Seldon,asasas!

–Masasasdequê?Homens,anjos,pássaros?–Nãosei.Nãoconseguiaver.Pelomenosnãoainda.Masacordelas!A

cordasasas...Éumacorquenãotemosaqui,umacorsurpreendente.–Acordasasas?–repetiuSeldon.–Parececomoquê?Hameratirouasmãosparaoaltonumgestodeimpaciência.– Como é que vou lhe explicar? Seria como explicar o que é o azul

paraumcego.Éumacorquevocêjamaisviu.–Eentão?–Então?Bem,issoétudo.Éatéondeeufui.Ecadavezavoltaépior,

maisdolorosa.Nãoconsigoentender.Estouconvencidodequemeucorpojamaissaidacama.Estouconvencidodequenesselugaraondechegonãoestoupresentefisicamente.Porquesintotantador,então?

Seldonmoveuacabeçaemsilêncio.– É horrível a volta. Há como que umpuxão e depois uma dor, uma

dor em cadamembro, em cadanervo, emeus ouvidosparecemqueimar.Então,tudosetensionaehácomoqueumpeso,umasensaçãohorríveldeaprisionamento.Precisode luz,ar,espaço,principalmentedeespaçopararespirar!Eprecisodeliberdade.

–Equantoatodasasoutrascoisasdequevocêtantogostava?– Issoéomaisdi ícil.Gostodelasmaisdoquenunca.Eessas coisas,

conforto,luxo,prazer,parecempuxarnadireçãocontráriadasasas.Éumalutasemtrégua,queparecenãoterfim.

Seldon icou em silêncio. A história que ele acabara de ouvir eramesmofantástica.Serialoucura,alucinação,outalvezverdade?E,sefosseverdade,porque teriaacontecido justamente comHamer?Nãoerade seesperarquematerialistas,queexaltamacarneenegamoespírito,fossemaquelesaterumacessoprivilegiadoavisõesdooutromundo...

Dooutroladodamesa,Hameroobservavaansioso.–Suponhoqueomelhorsejaesperar–disseSeldon.–Esperarevero

queacontece.–Nãopossomais!Jáchegueinomeulimite!Asuasugestãosómostra

Page 146: Agatha christie - o cão da morte

oquantovocênãomeouviu.Essasituaçãoestáacabandocomigo,essalutainterminávelentre,entre...

–Acarneeoespírito?–sugeriuSeldon.Hamerfranziuocenho.–Podechamá-laassim,sequiser.Dequalquerforma,éinsuportável...

Tenhodemelivrardisso...Mais uma vez, Bernard Seldon inclinou a cabeça num gesto de

compreensão.Eramesmocomplicado.Elefezumaúltimasugestão:–Seeufossevocê,euprocurariaessealeijado.E,aovoltarparacasa,murmurouparasimesmo:–Canaisdeágua...oqueseráqueissoquerdizer?

IIINamanhãseguinte,SilasHamersaiudecasacomumpropósitobem

de inido. Estava decidido a seguir o conselho de Seldon e encontrar ohomemsempernas.Nofundo,Hamerdescon iavaqueabuscaseriainútile que o homem devia ter simplesmente sumido, como que tragado pelaterra.

Mesmo assim, ele foi até a passagem pela qual costumava atalhar,ondeencontraraohomem.Osprédiosaoredordapassagemescureciam-na, dando-lhe um aspecto misterioso. Num certo ponto, na metade docaminho, omuro estava quebrado, e da fenda emanava um facho de luzdourada que iluminava, radiante, uma igura sentada no chão. Sim, era ohomem!

O instrumento de tubos estava encostado no muro ao lado dasmuletas, e o homem cobria as lajotas da calçada com desenhos de gizcolorido.Doisdelesestavamcompletos,cenassilvestresbelasedelicadas,comárvoresbalançandoeumcórregoquepareciareal.

Hamerrefletiuconsigomesmo:seriaaquelehomemummúsicoderuaouumdesenhista?Ouseriaeleaindaalgumaoutracoisa?

Derepente,omilionárioperdeuoautocontroleegritoufurioso:–Quemévocê?PeloamordeDeus,quemévocê?Ohomemolhousorrindoparaelesemnadadizer.–Porqueéquevocênãodiz?Falealgumacoisa!–insistiuHamer.O homem desenhava com uma rapidez inacreditável sobre uma das

lajotas.Hameracompanhoucomosolhosomovimento...Comalgunsgestosprecisos, árvores gigantescas ganhavam forma. E então, sentado numpedregulho, um homem, tocando um instrumento de tubos. Um homem

Page 147: Agatha christie - o cão da morte

comumbelorostoe...pernasdebode.A mão do aleijado fez um movimento rápido. O homem continuava

sentado no pedregulho, mas as pernas tinham desaparecido. Ele olhouparaHamerdenovo.

–Nãoprestam.Hamer,fascinado,tinhaosolhoscravadosnafacedoaleijado,queera

igual à do homem no desenho, de uma beleza estranha e di ícil dedescrever... Daquela face emanava, em estado bruto, uma intensa alegriadevida.

Hamerdeumeia-voltaesaiuquasevoandodapassagememdireçãoàluzdosol,repetindoparasimesmo:

–Éimpossível,impossível!Estoulouco...sonhando!Masaimagemdorostonãolhesaíadacabeça.OrostodePan.Hamer foi até o parque e sentou-se num banco. Naquela hora, o

parque estava vazio. Algumas babás passeavam com seus carrinhosdebaixo da sombra das árvores, e aqui e ali via-se a igura de um ou deoutrovagabundodeitadosobreogramado.

Aspalavras “umvagabundomiserável” signi icavamparaHamerumepítomedapobreza.Masnaqueledia,derepente,eleasinvejava...

Elaslhepareciamasúnicasautenticamentelivres.Andarpelomundosótendocomolimiteaterradebaixodospése,acimadacabeça,océu.Osvagabundosnãoestavamacorrentadosanada.

Hamer imediatamente se deu conta de que aquilo que agora oaprisionava de umamaneira tão implacável era o que ele até entãomaisvalorizara:ariqueza!Elasemprelhepareceraacoisamaisimportantedomundo,eagoraqueele inalmentese sentiaprotegidosobsuaarmaduradourada é que entendia o seu verdadeiro signi icado. Não era senão odinheiroqueoescravizava...

Masseriaissomesmo?Eraessaaliçãoasertiradadasuahistória?Oproblemaeraodinheiroouseuapegoaele?Seuamorpelodinheiro,enãoodinheiroemsi,forjaraosgrilhõesaqueagoraelesesentiasubmetido.

Hamerconheciamuitobemasforçasqueodilaceravam.Deumlado,aforça extraordinária do conforto material que o cercava. Oposto a isso,aquelechamadoimperioso,queeledenominaradeChamadodasAsas.

Enquantoumadasforçasseapoderavadele,aoutradeclaravaguerraenãodesistiadabriga.Insistia,semtrégua...Eleeracapazdeouvi-la...eracomosefalassecomele.

–Nuncavamoschegaraumacordo–pareciadizer.–Nãomecurvoanada,vocêterádeabandonartudopormim.Somenteosquerompemcom

Page 148: Agatha christie - o cão da morte

todasasoutrasforçaspodemmeseguiraondeeulevo...–Nãoposso,nãoposso...–murmuravaHamerconsigomesmo.Algumas pessoas voltavam a cabeça para olhar aquele homenzarrão

falandoconsigomesmo.Oqueestavasendoexigidodeleeraosacri ício,osacri íciodetudoo

quelheeramaiscaro,osacrifíciodeumapartedelemesmo.Partedelemesmo...Eleselembroudohomemsempernas.

IV– Mas que diabos você está fazendo por esses lados? – perguntou

Borrow.De fato, não era um costume de Hamer acompanhar o trabalho dos

missionáriosemEastEnd.[1]–Você sempreme falou dasmaravilhas que poderiam fazer aqui se

tivessemrecursos.Vimparalhedizer:agoravocêtemrecursos.– Muito generoso da sua parte... – disse Borrow, surpreso. – Uma

grandedoação,hum?Hamerdeuumsorrisoamarelo.–Éoqueeudiria.Tudooquetenho,atéoúltimopenny.–Como?Hamer explicou os detalhes rapidamente, como se fechasse um

negócio.Borrowsentiaacabeçagirar.–Vocêestáquerendodizerquemedisponibilizatodaasuafortuna,a

imdequeelasejaempregadanaassistênciadapopulaçãopobredeEastEnd?

–Exatamente.–Masporquê?–Nãotenhocomoexplicar–disseHamer,hesitante.–Vocêselembra

das coisas quemedisse sobre visões fevereiropassado?Bem, tenho tidovisões.

– Esplêndido! – disse ele, inclinando-se para frente e com os olhosbrilhando.

–Nãoénadaesplêndido–disseHamer,mal-humorado.–Nãodouamínima para os pobres de East End. O que eles precisam é dedeterminação! Eu era completamente pobre e saí da pobreza.Mas agoratenho deme livrar do dinheiro, e não con io em nenhuma dessas outrasassociações que existem por aí. Você eu conheço. Use o dinheiro paraalimentaralmasecorpos,edepreferênciacorpos.Seioqueéafome,mas

Page 149: Agatha christie - o cão da morte

vocêpodeusarodinheirocomoacharmelhor.–Nuncaouvifalardeumcasocomoesse...–murmurouBorrow.– Jáestátudodecidido–declarouHamer.–Osadvogados inalmente

concluíramapapelada,eeu jáassinei tudo.Posso lhedizerquepasseiasúltimas semanas só tratando disso. Não é nada fácil se ver livre de umafortunacomoaminha.

–Masestáguardandoalgumacoisaparavocê,não?–Nenhumpennyqueseja–disseHamer,animado.–Querdizer,nãoé

bemverdade...Tenhodoisnomeubolso.Elesedespediu,semesperarqueoamigosere izessedasurpresa,e

deixouaigreja,seguindopelasvielasmal-cheirosasdobairro.Aspalavrasque ele acabara de pronunciar com tanta animação voltavam a ele comumasensaçãodeperda.“Nenhumpenny!”Dasuaimensafortuna,nãolherestava nada. Ele temia, temia a pobreza, a fome e o frio. O sacri ício eraamargo.

E,noentanto,Hamertinhaconsciênciadequeascoisasaoseuredorjá não tinham o mesmo peso. Elas não o ameaçavam nem oprimiam. Orompimentodosgrilhõeseradolorido,masavisãoda liberdadeestava lápara lhedar força.Assuasnecessidadesmateriaispodiamenfraquecerochamado,masnãoteriamcomoeliminarumaforçaimortal.

Aatmosferajátinhaalgodeoutono,eoventosopravagelado.Hamersentia frio e começou a tremer, depois teve fome. Havia se esquecido decomer. A fome lhe lembrou do futuro. Era inacreditável que ele tivesseaberto mão de tudo. Das facilidades, do conforto, do calor! Seu corpogritava, impotente.Eentãoasensaçãoagradáveleedi icantedeliberdadetomoucontadeledenovo.

Hamerhesitou.Estavapertodaestaçãodometrô.Tinhadoispenniesno bolso. Pensou em tomar o metrô até o parque onde, duas semanasatrás, vira os vagabundos dormindo no gramado. Era essa a única ideiaqueeletinhadoquefazerdalipordiante.Admitiaparasimesmoapróprialoucura; ninguém em sã consciência teria agido como ele. Mas a loucuratinhaumaspectofascinanteemisterioso.

Ele agora iria até a área aberta do parque, e era signi icativo queizesse o trajeto de metrô. O metrô representava para ele todos oshorrores de uma vida con inada, de sepultura. Hamer ascenderia dessaprisãoaogramadoeàsárvores,queoprotegeriamdopesodas casasaoredor.

Oelevadorlevou-osemdemoraaoandardebaixo.Oarestavapesadoe sufocante. Ele parou bem na ponta da plataforma, longe damassa das

Page 150: Agatha christie - o cão da morte

pessoas.Àsuaesquerda,estavaaaberturadotúnel,deondeotremsairiasinuosocomoumacobra.Aqueleambienteemanavaalgoderuim.Aoladodele, havia apenas um jovem corcunda, sentado num banco, afundado,provavelmentebêbado.

De longe, o rugido do trem começava a se fazer ouvir. O jovem selevantou do banco e se arrastou até o lado de Hamer, à beira daplataforma,deondeolhavaparaotúnel.

Então... foi tudo tão rápido que nem parecia real! O jovem perdeu oequilíbrioecaiu.

Centenas de pensamentos cruzaram a mente de Hamer. Ele viu umvulto desengonçado ser atropelado por um ônibus, e ouviu uma voz quedizia:

–Foiculpasuanão,doutor.Podiafazermaisnada.Erasina.E agora ele tinha certeza de que era o único a poder salvar aquela

vida.Nãohaviamaisninguémporperto.Otremestavapróximo.Tudoissopassou por sua cabeça com a velocidade de um raio. Um instante delucidezcristalina.

Nãotinhamaisqueumsegundoparaagir,edepoisdaquelemomentoamorte seria implacável. O trem surgia veloz pela curva do túnel, e nãopoderiaserdetido.

Apavorado,Hamerpegouojovemnosbraços.Oqueguiavaseucorpotrêmulo não era nenhum impulso heroico, mas o comando de uma forçaestranha que exigia o seu sacri ício. Num esforço derradeiro, Hamerarremessouorapazparaaplataforma,caindoparatráselemesmo...

O medo desapareceu junto com tudo que o puxava para baixo. Eleestavalivredosseusprópriosgrilhões.Porummomento,teveaimpressãodequeouviaa lautadePan.Então,maispertoemaisalto,engolindotudoquehaviaaoseuredor,umru lardeasasinumeráveisabraçou-oelevou-oconsigo.[1]RegiãodeLondresemquehistoricamenteseconcentramimigranteseapopulaçãomaispobre.(N.T.)

Page 151: Agatha christie - o cão da morte

AÚLTIMASESSÃO

Raoul Daubreuil atravessou o Sena cantarolando. Era um jovemfrancês atraente, de 32 anos, com um rosto corado e um bigode preto.Engenheiro de pro issão. Não demorou muito para que chegasse à RueCardonet, na qual procurava pelo prédio de número 17. A mulher quecuidavadaportariaolhouparaeledetrásdobalcãoemurmurouumbom-dia, ao qual ele respondeu com um sorriso. Raoul Daubreuil subiu asescadas até o apartamento no terceiro andar. Do lado de fora, enquantoesperava que atendessem à campainha que acabara de tocar, voltou acantarolar. Aquela era umamanhã em que ele se sentia particularmenteanimado.Aportafoiabertaporumamulherdeidade,cujorostoenrugadologoseabriuemsorrisosquandoelaviuquemeraavisita.

–Bomdia,monsieur.–Bomdia,Elise–respondeuRaoul.Elepassouparaovestíbuloetirouasluvas.–Asuapatroaestáesperandopormim,nãoéverdade?–perguntou

ele,olhandoporcimadoombro.–Exatamente,monsieur.Elisefechouaportaesevoltouparaele.– Se o senhor puder fazer a gentileza de passar ao pequenosalon,

madame não deve demorar a atendê-lo. No momento, ela estádescansando.

Raoulseviroueolhoufirmenosolhosdela.–Algumproblema?–Bem...Elise suspirou. Ela passou à frente dele, abrindo a porta do salon.

Raoulentroueelaoseguiu.–Bem...–continuouela–eradeseesperarqueacoitadinhaestivesse

mesmo exausta.Séances,séances eséances sem im!Não está certo, não énatural. Não é o que o bom Deus espera de nós... isso énegociar com odiabo!Éoqueeupenso,edigocomtodasasletras.

Raouldeuumabatidinhanoombrodelaafimdetranquilizá-la.– Vá com calma, Elise.Não exagere.Não está certo atribuir ao diabo

tudoaquiloquenãocompreendemos.Elisebalançouacabeçanãomuitoconvencida.–Ah, se é assimque pensam... –murmurou ela, por im. –O senhor

Page 152: Agatha christie - o cão da morte

pode dizer o que quiser, mas não me convence. Madame está cada vezmaispálida,cadavezmaismagra...easdoresdecabeçaqueelatem!

Elalevantouasduasmãosatéastêmporas.–Não,não...issonãoestácerto!Ficarsemetendocomessesespíritos...

Osespíritosbonsestãonoparaíso,osoutrosnopurgatório,e...–Oseuentendimentodavidadepoisdamorteésurpreendentemente

simplista,Elise–disseRaoul,afundando-senumapoltrona.Avelhasenhoraseempertigouelançouaeleumolhardesconfiado.–Souumaboacatólica,monsieur.Elafezosinaldacruzecaminhouemdireçãoàporta.Masaocolocar

amãonamaçanetasedeteve.– E depois que casarem,monsieur... pretendem levar isso adiante? –

perguntouela,numavozangustiada.Raoulsorriuafetuosamente.–Vocêéumacriatura iel,Elise.Emuitodedicadaàsuapatroa.Fique

tranquila. Quando ela estiver casada comigo, será o im das séances.MadameDaubreuilnãovaimais“negociarcomodiabo”,comovocêdiz.

Eliseficoutodabobaesorriu.–Osenhorpromete?Raoulassentiu,sério.–Sim...–disseele,maisparasimesmodoqueparaela.–Seráo im

dasséances. Simone temumdommaravilhoso,que temusado livremente,mas agora ela já fez sua parte. E você está certa, Elise. Simone vememagrecendoe estápálida.A vidadosmédiuns édi ícil, penosa, exigindoterrivelmente dos nervos. Você sabia, Elise, que sua patroa é uma dasmédiuns mais impressionantes de Paris, da França? Pessoas do mundotodoaprocuram,porquesabemquecomelanãohátruquesnemfraude.

Elisetorceuonariz.– Fraude! Realmente.Madame seria incapaz de enganar atémesmo

umacriança.– Ela é um anjo – disse o jovem, embevecido. – E farei tudo o que

estiveraomeualcanceparaquesejafeliz.Vocênãoconfiaemmim?Eliseseendireitouedissenumtomdigno,livredequalquerafetação:– Tenho servido à patroa por muitos anos, monsieur. Com todo o

respeito, posso dizer que tenho por ela uma imensa afeição. Se nãoacreditasse na sinceridade dos seus sentimentos com relação a ela... ehbien,monsieur! Eu lutaria com todas asminhas forças para impedir essecasamento.

Raoulsorriu.

Page 153: Agatha christie - o cão da morte

– Muito bem, Elise! Você é uma amiga iel, e conto com a suaaprovação agora que lhe assegurei que as sessões espíritas da patroaestãocomosdiascontados.

Ele esperava que a criada recebesse a sua frase jocosa com umsorriso,esesurpreendeuaoverqueelacontinuavaséria.

–Eseosespíritosquiseremcontinuar?Eseelesnãoabriremmãodassessões?

Raoularregalouosolhos.–Ora,ora!Masoqueéquevocêestádizendo...–Éverdade–insistiuElise.–Eseelesnãoabriremmãodassessões?–Euachavaquevocênãoacreditavaemespíritos,Elise!–Nãodissequeacredito–respondeuela, teimosa.–Éumabobagem

acreditaremespíritos.Mesmoassim...–Mesmoassimoquê?– Não sei explicar, monsieur. Sempre achei que esses tais médiuns

não passassem de impostores se aproveitando da dor daqueles queperderam seus entes queridos.Mas não é esse o caso demadame. Ela éboa,elaéhonesta,ela...

Elisebaixouavozedissenumtommisterioso:–Coisasacontecem.Nãosetratadetruques,coisasacontecem,eéisso

oquemeassusta.Deumacoisaestoucerta,monsieur:issonãoestácerto.ÉcontraanaturezaeobomDeus,ealguémvaiterdepagar...

Raoullevantou-sedacadeira,foiatéelaedeuumapalmadinhanoseuombro.

–Acalme-se,Elise–disseele,sorrindo.–Tenhoumaboanotíciaparavocê. Veja, hoje é a última dasséances. A última. Depois de hoje não vaihavermaisnenhuma.

–Masentãoháumahoje?–perguntouela,desconfiada.–Aúltima,Elise,aúltima.Elisesacudiuacabeça,desconsolada.–Madamenãoestábem...–começouela.Mas suas palavras foram interrompidas quando a porta se abriu e

umamulher alta, loira, entrouna sala. Ela eramagra e delicada, comumrostodemadonadeBotticelli.OsolhosdeRaoulfaiscaram,eElisedeixouasalarápidaediscretamente.

–Simone!Elepegounassuasasmãosdela,pálidasealongadas.Depoisbeijou-

as,enquantoeladiziaonomedele:–Raoul,meuquerido...

Page 154: Agatha christie - o cão da morte

Elebeijouasmãosdelanovamenteeolhoufirmenosseusolhos.–Simone,mascomovocêestápálida!Elisemedissequevocêestava

descansando.Vocênãoestádoente,está?–Não.Nãoestoudoente!Elelevou-aatéosofáesentou-seaoseulado.–Masoqueé,então?Amédiumesboçouummeiosorriso.–Vocêvaiacharqueestouexagerando–murmurouela.–Exagerando?Nunca!Simone retirou a mão das mãos dele. Depois endireitou-se e disse,

olhandofixamentenadireçãodotapete:–Estoucommedo,Raoul.Eleesperouumminutooudois,naexpectativadequeelacontinuasse.

Comoelanadafalou,eleresolveuincentivá-la:–Medodoquê?–Sómedo,maisnada.Raoulolhouparaelaperplexo,eemrespostaSimonelançouaeleuma

olhadelarápida.–Sim,euseiqueéabsurdo,maséoquesinto.Ummedoestranho,e

nadamais.Nãoseiporque,masnãoconsigomelivrardaideiadequealgohorrívelestáprestesaacontecercomigo...Algohorrível,horrívelmesmo.

Elaolhavafixamenteparafrente.Raoulabraçou-agentilmente.– Minha querida – disse ele –, você não deve desistir! Sei como é

exaustivaavidadosmédiuns.Tudooquevocêprecisaédeumpoucodedescanso.

Simoneolhouparaeleagradecida.– Sim, Raoul, você está certo. É disso que preciso: descanso e um

poucodetranquilidade.Elafechouosolhoseserecostounobraçodele.–Edeumavidafeliz–murmuroueleemseuouvido.Raoul cingiu-a mais proximamente. Simone, de olhos fechados,

respiroufundo.–Quandoestoucomvocê,sinto-meprotegida–disseela.–Esqueçoda

minha vida, da minha vida de médium. Mas nem você tem ideia do queessavidasignifica,Raoul.

Elesentiuocorpodamoçaseenrijecer.Maisumavez,Simoneolhavafixamenteparafrente.

–Sentonaquelevãoe icoesperando.Aescuridãoéhorrível,Raoul.Éa escuridãodovazio,donada.Éprecisoentregar-se àquilo, seperder... E

Page 155: Agatha christie - o cão da morte

depois, não sei mais de nada, não sinto nada, e inalmente começa oretorno, demorado e doloroso, o acordar do sono... um acordar que éterrivelmenteexaustivo.

–Eusei–murmurouRaoul–,eusei.–Estoutãocansada–murmurouSimone.Ela sentia o peso do corpo, que a puxava para baixo, enquanto dizia

aquelaspalavras.–Masvocêémaravilhosa,Simone.Eletomouasmãosdelanassuasetentouanimá-la.–Vocêéúnica.Amaiormédiumqueomundojáconheceu.Amoçabalançouacabeçaimperceptivelmente,sorrindodeleve.–É verdade, é verdade– insistiu ele, tirandoduas cartasdobolso. –

Veja, esta é do professor Roche do Salpêtrière, e esta, do dr. Genir deNancy,implorandoparaquevocêoreceba.

–Ah,não!Simonelevantou-sedeumpulo.–Nãoposso,nãoposso.Chega,Raoul.Vocêprometeu!Raoularregalouosolhos,perplexo.Elaolhavaparaele trêmulacomo

umanimalassustado.Eleselevantouepegouamãodela.– Está bem, está bem – disse o rapaz. – Você tem razão, tínhamos

combinado.Masestoumuitoorgulhosodevocê,Simone.Porissomencioneiascartas.

Elaoolhoudesoslaio.–Entãonãoprecisorecebermaisespíritos?– Não, não. A menos que você queira, ocasionalmente, para algum

dessesamigos...Elainterrompeu-o,nervosa:–Não,nuncamais.Éperigoso,estoulhedizendo.Eusinto!Simoneapertouambasasmãosdeencontroàtestaporummomento

eemseguidacaminhouatéajanela.–Me prometa que nuncamais – disse ela por cima do ombro, num

tommaisbaixo.Raoulcaminhouatéelaecolocouasmãossobreosombrosdamoça.– Querida, prometo que a sessão de hoje será a última – disse,

sentindo-aestremecerdesusto.–Sessãodehoje?–murmurouela.–Ah,sim...Tinhameesquecidode

madameExe.Raoulconsultouorelógio.–Elaestáparachegaraqualquermomento.Massevocênãosesente

Page 156: Agatha christie - o cão da morte

bem,Simone...Era como se a moça não o ouvisse. Estava perdida nas próprias

divagações.– Ela é uma mulher estranha, Raoul. Uma mulher muito estranha.

Vocêsabequeeu...Bem,eutenhohorroraela!–Simone!Otomdeleeradereprovação,eelapercebeu.–Sim,Raoul,seiqueparavocê,comoparaqualquerfrancês,asmães

são sagradas.Éumagrosseriaminha sentir tal antipatiaporumamulherdelutoporcausadamorteda ilha.Mas...Nãoseicomoexplicar...Elaétãograndeepreta...easmãosdela!Raoul,você járeparounasmãosqueelatem?Sãomãosenormesefortescomoasdeumhomem.Ah!

Simoneestremeceuefechouosolhos.Raoulrecuouedissefriamente:–Realmentenãopossoentender,Simone.Vocêémulherenãodevia

icar indiferenteao sofrimentodeumamãe.Umamãequeperdeua ilhaúnica...

Simonefezumgestodeimpaciência.– Ah, mas é você que não está entendendo, meu amigo! Num caso

desses,nãohánadaquesepossafazer.Desdeaprimeiravezemqueavi,eu...

Elalançouosbraçosparaoalto,depoiscontinuou:–Sempretivemedo!Você lembra como foidaprimeiravez?Demorei

muitoamedecidiratendê-la.Eupressentiaqueelametrariaazar.Raouldeudeombros.–Eoqueaconteceu,naverdade,foiooposto–disseele,secamente.–

As sessões têm sido desde então um tremendo sucesso. O espírito dapequenaAmeliefoicapazdecontrolarvocêsemnenhumadi iculdade,easmaterializaçõesforamsurpreendentes.OprofessorRochetinhamesmodeestarpresentenaúltima.

–Materializações... – repetiu Simone em voz baixa. –Diga-me, Raoul,elas são assim tão surpreendentes? Você sabe que não sei nada do queacontecequandoestouemtranse.

Eleassentiucomacabeça,entusiasmado.– No início, a imagem da criança aparecia numa espécie de névoa –

explicou–,masnaúltimasessão...–Oqueaconteceu?–Simone–prosseguiuele,calmamente–,acriançaqueestava láera

uma criança real, de carne e osso. Eu até mesmo a toquei... Maspercebendoqueo toque faziamuitomalavocênãopermitiquemadame

Page 157: Agatha christie - o cão da morte

Exe izesse omesmo. Tivemedo de que ela se descontrolasse e que issoafetassevocênegativamente.

Simonevirou-senovamenteparaajanela.– Naquela sessão, voltei a mim completamente acabada. Raoul, você

temcerteza, temcertezadeque issoestá certo?Você sabeoquea velhaElisepensa...Nãoestamosnegociandocomodiabo?–perguntouela, sempoderconterumarisadanervosa.

–Vocêsabequaléaminhaopinião–disseRaoul,taxativamente.–Aolidarmos com o desconhecido, sempre há perigo, mas a causa é nobre.Agimosemnomedaciênciaedoconhecimento. Inúmerossãoosmártiresda ciência, no mundo todo, pioneiros que pagaram um preço para queoutros pudessem seguir os seus passos em segurança. Há dez anos vocêvem trabalhando pela ciência às custas de um enorme desgaste do seusistemanervoso.Vocêjáfezasuaparte,edeagoraemdianteestálivre.

Simonesorriuparaele,satisfeita.Pareciaterrecuperadoacalma.Elaolhourapidamenteparaorelógioemurmurou:

–MadameExeestáatrasada.Épossívelquenãovenha.– Acho que ela vai vir – disse Raoul. – O seu relógio está um pouco

adiantado.Simonecaminhoupelasala,ajeitandoosenfeitesaquieali.– Ficomeperguntandoquemé essamulher,madameExe...Deonde

elavem?Nadasabemossobreela!Raouldeudeombrosnovamente.–Aspessoas,emgeral,preferemnãoseexporquandoprocuramum

médium.Éumaprecauçãoquetodostomam.–Imaginoquesim–concordouSimone,semprestarmuitaatenção.Um vasinho de porcelana que ela estava segurando escorregou dos

seus dedos e se espatifou no piso da lareira. Ela se virou imediatamenteparaRaoul.

– Você está vendo? – perguntou. –Não estou nada bem. Raoul, vocêmeachariaumacovardeseeurecusasseatendermadameExehoje?

Diantedaexpressãodesoladadojovem,Simoneficouvermelha.–Vocêprometeu–disseelecalmamente.Elarecuouemdireçãoàparede.–Nãovourecebê-la,Raoul.Eunãovourecebê-la.Ao ver que ele mantinha a mesma expressão de terna censura, ela

estremeceu.– Não é no dinheiro que estou pensando, Simone.Mas você deve se

lembrar da quantia que essamulher lhe ofereceu na última sessão. Uma

Page 158: Agatha christie - o cão da morte

quantiaenorme...Elainterrompeu-odesafiadora:–Hácoisasmaisimportantesqueodinheiro.– Certamente – concordou ele, com um sorriso. – É o que estou

dizendo. Veja o caso dessamulher, umamulher rica, mas umamãe queperdeu a ilha. Se você não está mesmo doente, se isso é apenas umcaprichoseu,seráquetemcoragemdesenegaraatenderumpedidodela,opedidodeverafilhapelaúltimavez?

Semsabermaisoquedizer,Simonedesistiu,lançandoosbraçosparaoalto.

–Ah,quetortura!Estábem,vocêestácerto.Voufazercomoquer,masseiexatamenteoqueéquemaismeassusta...apalavra“mãe”.

–Simone!–Hácertasforçaselementares,primitivas,Raoul...Amaioriadelasfoi

destruídapelacivilização,masamaternidadecontinuaaocuparomesmolugar.Animais,sereshumanos,sãotodosiguaiscomrelaçãoaisso.Nãohánadanomundocomoaquiloqueumamãesenteporum ilho.Estáalémdalei, da piedade. É uma força capaz de qualquer coisa, de destruir semremorsostudoqueestiveremseucaminho.

Ela se interrompeu, umpouco ofegante, e de repente olhoupara elecomumsorriso.

–Estouforademimhoje,Raoul,eusei.Elepegounasmãosdela.– Deite-se por um ou dois minutos – pediu ele. – Descanse até ela

chegar.–Muitobem...–disseelasorrindo,edeixouasala.Raoul icouporalgunsminutosre letindo,entãofoiatéaporta,abriu-

aeatravessouopequenocorredoratéumasaladooutrolado.Eramaisoumenos semelhante à sala de estar onde estivera,mas no canto havia umvão, nomeio do qual estava colocada uma poltrona. Cortinas pesadas develudo preto tinham sido arranjadas de forma que pudessem se fecharsobreovão.Elisearrumavaasala.Pertodovão,elacolocaraduascadeiraseumamesinharedonda.Namesahaviaumtamborim,umacorneta,lápisepapel.

–Aúltimavez...–murmurouElise,severamassatisfeita.–Queriaquejátivesseterminado!

Ouviu-seobarulhoestridentedacampainhaelétrica.– É ela – disse a velha empregada. – Estámais para um general do

que para umamulher. Por que não faz como qualquer pessoa decente e

Page 159: Agatha christie - o cão da morte

vai rezar pela alma da ilha numa igreja? Por que não acende uma velaparaNossaSenhora?SeráqueelanãoconfianobomDeus?

–Váatenderaporta,Elise–ordenouRaoul,perdendoapaciência.Elaergueuosolhosparaele,masobedeceu.Emumoudoisminutos,a

empregadavoltavacomavisita.–Vouavisarapatroaqueasenhoraestáaqui,madame.Raoul veio do canto da sala para cumprimentar madame Exe. As

palavrasdeSimonevoltaramàsuamente:“tãograndeepreta”...Ela era mesmo enorme, e o luto pesado que vestia, tipicamente

francês, parecia exagerado no caso dela. Sua voz era profunda, quasecavernosa.

–Receioqueestejaumpoucoatrasada,monsieur.– Só algunsminutos – disse Raoul, sorrindo. –Madame Simone está

descansando. Infelizmente, tenhode lhedizerqueelanãoestánadabem.Estáexaustaecomosnervosàflordapele.

Naquelemomento,madameExeestavaapontoderecolheramãocomqueocumprimentava,masemvezdissoapertouadelecommaisforça.

–Eporissonãovaimereceber?–perguntoucontrariada.–Maséclaroquevai,madame.Ela suspirou de alívio e afundou-se numa cadeira, soltando um dos

véusquecobriamoseurosto.– Ah, monsieur! – murmurou. – Ninguém é capaz de imaginar,

ninguém é capaz de conceber o signi icado dessas sessões para mim, aalegriaqueelasmetrazem!Minhapequena!MinhaAmelie!Vê-la,ouvi-la,atémesmo,talvez...poderestenderminhamãoetocá-la.

Raouldeclarouimediatamente,numtomperemptório:– Madame Exe... como posso lhe explicar... em hipótese alguma a

senhora deve deixar de seguir as minhas orientações, caso contráriocorreremosumgrandeperigo!

–Perigo?Eu?– Não, madame... a médium. Esses fenômenos que ocorrem são em

parte conhecidos pela ciência. Vou tentar explicar-lhe da forma maissimples possível usando alguns termos técnicos. Um espírito, para semanifestar, temdeusarasubstância ísicadomédium.Asenhora jáviuovaporde luídoquesaidabocadeSimone?Éessevaporquecondensaeassume a aparência ísica do antigo corpo do espírito desencarnado.Acredita-sequeesseectoplasmasejaumasubstânciadomédium.Umdiatalvez isso seja provado, atravésdepesageme testes cuidadosos,mas aomexer com o fenômeno o médium corre um grande perigo, e essa é a

Page 160: Agatha christie - o cão da morte

nossa maior di iculdade. Resumindo: tocar na materialização podesignificaramortedomédium.

MadameExeescutara-ocomatenção.–Muitointeressante,monsieur.Masdiga-me...nãoexisteummomento

emque amaterialização está tão avançada que pode se separar damãe,digo,damédium?

–Issonãopassadeespeculação,madame.Elanãosedeuporconvencida.– O senhor diz isso porque o fato nunca ocorreu ou porque seria

impossível?–Nasituaçãoemquenosencontramos,inteiramenteimpossível.–Mastalveznofuturo?A entrada de Simone salvou-o de ter de dar uma resposta. A moça

parecia abatida e pálida, mas evidentemente tinha recuperado oautocontrole. Ela se aproximou e cumprimentoumadame Exe. Raoul nãopôdedeixardeperceberoarrepiosentidopelajovem.

–Lamentoqueestejaindisposta–dissemadameExe.– Não é nada – respondeu Simone de forma brusca. – Podemos

começar?Elafoiatéovãodasalaesentounapoltrona.Derepente,opróprioRaoulsentiuumaondademedopassarporsi.– Você está fraca demais – declarou ele. – É melhor cancelarmos a

sessão.MadameExevaientender.–Monsieur!–dissemadameExe,levantando-seindignada.–Sim,sim...Émelhorcancelarmos,estoucertodisso.–MasmadameSimoneprometeu-meumaúltimasessão.–Éverdade–concordouSimone,emvozbaixa.–Eestouprontapara

cumprirminhapromessa.–Eulheagradeçoporisso–disseaoutramulher.–Nãoquebroasminhaspromessas–disseSimone, friamente.–Não

tema, Raoul. A inal de contas, esta é a última vez, a última vez, graças aDeus!

Ao sinal dela, Raoul fechou as pesadas cortinas ao redor do vão.Fechoutambémascortinasdasjanelas,deformaaqueasala icassemaisescura. Por im, indicou uma das cadeiras a madame Exe e preparou-separasentarnaoutra.MadameExe,entretanto,hesitou.

–Osenhormedesculpe...Tenhoconfiançaabsolutanasuaintegridadee na integridade de madame Simone. Mesmo assim, para que meutestemunhotenhaummaiorvalor,tomeialiberdadedetrazerissocomigo.

Page 161: Agatha christie - o cão da morte

Elatirouumrolodecordadabolsa.–Madame!–gritouRaoul.–Issoéuminsulto.–Umaprecaução.–Uminsulto,eurepito.– Não entendo a sua objeção, monsieur – observou madame Exe

friamente.–Senãohánenhumtruque,osenhornadatematemer.Raoulsoltouumagargalhadadesdenhosa.– Posso assegurar-lhe de que não tenho nada a temer, madame.

Amarreminhasmãosetambémmeuspés,sequiser.A declaração não surtiu o efeito que ele esperava, e madame Exe,

avançandodecididacomseurolodecorda,selimitouamurmurar:–Obrigada,monsieur.DerepenteSimone,atrásdacortina,gritou:–Não,não,Raoul!Nãopermitaumacoisadessas.MadameExenãoconteveumarisadinhaeobservou,sarcástica:–Amédiumestácommedo...–Sim,estoumesmo.– Preste atenção no que você está dizendo, Simone – gritouRaoul. –

MadameExeparecedesconfiarquesomoscharlatães.–Issoésóparaqueeupossatercerteza–dissemadameExe,jásem

acharamenorgraçanaquilo.ElaamarrouRaoulcomtodoocuidadonacadeira.– A senhora é mesmo habilidosa, madame. Espero que esteja

satisfeita,poismalconsigomemexer–observoueleironicamentequandoelaterminou.

Madame Exe não respondeu. Limitou-se a caminhar pela sala,examinandodepertooslambrisdasparedes.Emseguida,trancouaportaque levava para o corredor e, guardando consigo a chave, voltou à suacadeira.

–Agora–disseela,numavozindescritível–estoupronta.Os minutos passavam. Atrás da cortina, o ruído da respiração de

Simonetornava-secadavezmaispesadoeagonizante.Derepente,oruídosilenciou, dando lugar a uma série de murmúrios estranhos. Entãonovamentehouvesilêncio,aoqualseguiram-sepercussõesnotamborim.Acornetafoiatiradanochão.Ouviu-seumarisadasarcástica.Ascortinasdovão onde se encontrava a médium tinham sido ligeiramente abertas, deforma que Simone pôde ser vista com a cabeça caída sobre o peito.MadameExesuspirou.Umvaporsaíaondulandodabocadamédium.Elecondensoue,gradualmente,assumiuaformadeumamenina.

Page 162: Agatha christie - o cão da morte

–Amelie!MinhapequenaAmelie!A igura ia se tornando cada vez mais nítida, e madame Exe

rumorejava.Incrédulo,Raoultinhaosolhoscravadosnamenina.Elenuncaviraumamaterializaçãotãobem-sucedida.Tratava-secertamentedeumacriançareal.Eraumacriançadecarneeossoqueestavaaliparada.

–Mamãe!–disseamenina,nasuavozsuave.–Minha ilha!Minha ilha!–gritoumadameExe, e fezmençãode se

erguerdacadeira.–Cuidado,madame!–advertiuRaoul.A materialização avançou hesitante, atravessando o espaço

demarcadopelascortinas.Comoumacriançadeverdade, icoualiparadaummomento,debraçosestendidos:

–Mamãe!–Oh!–gritoumadameExe.Novamenteelaseergueudacadeira.–Madame–exclamouRaoul–,amédium...–Precisotocá-la!–gritoumadameExe,comumavozrouca.Eladeuumpassoàfrente.–PeloamordeDeus,madame!Controle-se–gritouRaoul.Eleestavarealmentealarmado.–Sente-seimediatamente.–Minhapequena,tenhodetocá-la.–Madame,sente-se.Estoumandando!Raoul se retorcia desesperado, tentando se livrar das amarras, mas

madame Exe era mesmo habilidosa e tinha feito bem o seu trabalho. Orapazestavapreso.Umasensaçãodedesastreiminenteseapoderoudele.

–EmnomedeDeus,madame,sente-se!–berrouRaoul.–Lembre-sedamédium.

MadameExevirou-separaele,soltandoumagargalhadahistérica.–Masquemeimportaamédium!Queroaminhacriança.–Asenhoraestáforadesi!–Ameninaéminha,minha!Sanguedomeusangue,estoulhedizendo.

Voltouàvida,estárespirando.Raoul abriu os lábios, sem nada dizer. Mas que mulher! Agia sem

nenhum remorso, como um animal selvagem, levada apenas pela paixão.Oslábiosdacriançaseabriram,eatravésdelesecoou,pelaterceiravez:

–Mamãe!–Venha,querida,nãotenhamedo!–exclamoumadameExe.Comumgestodecidido,elaapanhouacriançaemseusbraços.Detrás

Page 163: Agatha christie - o cão da morte

dascortinas,saiuumurroprolongadodeprofundaa lição,umgritocomoRaouljamaisouvira.

Imediatamenteeleexclamou:–Simone!Simone!–aomesmotempoemquepercebiamadameExe

passarcorrendoaoseulado,abriraportaedispararescadaabaixo.Detrásdas cortinas, o grito continuava a ecoar, umgrito comoRaoul

jamaisouvira.Ogritoseextinguiucomumaespéciedegorgolejo.Eentãoouviu-seobaquesurdodeumcorpocaindonochão...

Raoul faziade tudopara se livrardas amarras.O seudesesperoeratal que ele acabou simplesmente por arrebentar a corda de tanto fazerforça.EnquantoRaoulainda lutavapara sedesvencilharda cadeira,Eliseentrounasaladesesperada.

–Madame!–exclamouela.–Simone!–gritouRaoul.Juntos,osdoiscorrerameabriramascortinas.Raoulespiouparaochão.–MeuDeus!–murmurou.–Sangue...AvozdeElise,tensaefalhada,seguiu-seàdele:– Madame está... morta. Parece que encolheu! Metade do tamanho...

MeuDeus,monsieur,masoquefoiqueaconteceuaqui?!–Eunãosei–respondeuRaoul.–Eunãosei!–repetiuele,levantando

avoz.–Sintocomosetivesseenlouquecido...Simone!Simone!

Page 164: Agatha christie - o cão da morte

S.O.S

I–Ah!–disseosr.Dinsmeademsinaldeaprovação.Ele deu um passo para trás e examinou amesa satisfeito. A luz das

chamas das velas re letia na velha toalha branca, nas facas, nos garfos enosdemaisacessórios.

–Estátudopronto?–perguntouasra.Dinsmead.Ela era uma mulher um pouco sem graça, pálida, que começava a

perderocabeloeestavasemprenervosa.–Sim,tudopronto–respondeuomaridocomumasatisfaçãoferoz.Eleeraumhomemalto,deombrosligeiramentecaídos,comumrosto

grande e vermelho. Tinha olhinhos pequenos e redondos, que viviampiscandodebaixodassuasgrossassobrancelhas,eumapapadalisa.

–Limonada?–sugeriuasra.Dinsmead.Omaridosacudiuacabeçanumanegativa.–Comesse tempo,nadamelhordoqueumbomchá.Veja comoestá

ventando.Umaxícaradecháquenteéoqueseprecisanumanoite comoessa.

Eledeuumapiscadinhaevoltouaexaminaramesa.– Ovos, carne curada, pão e queijo são o que gostaria para o jantar.

Vamoslá,querida.Charlotteestánacozinhaprontaparaajudar.Asra.Dinsmeadlevantou,enrolandocomcuidadoonovelode lãcom

oqualtricotava.–Charlotteestáumamoça–murmurouela.–Umabelamoça,eudiria.– Ah! – disse o sr. Dinsmead. – A imagem damãe... Mas apresse-se,

estamosperdendotempo.Ele caminhava pela sala, cantarolando consigo mesmo. De repente

aproximou-sedajanelaeolhouparafora.–Tempofeio.Dificilmenteteremosvisitas.Emseguida,eletambémdeixouasala.Cerca de dez minutos depois, a sra. Dinsmead entrou trazendo um

pratodeovosfritosseguidapelasduas ilhas,comorestodojantar.Atrásdelasvinhamosr.Dinsmeadeseu ilho Johnnie.Osr.Dinsmeadsentouàcabeceiradamesa.

–Graçasvosdou,meubomDeus,por teresmedadodecomeretc.–disse ele, jocoso. – E bendito seja o homemque inventou os enlatados. O

Page 165: Agatha christie - o cão da morte

quefaríamos,afastadoscomoestamosdetudo,senãopudéssemoscontarcomumenlatadodecarne,nassemanasemqueoaçougueiroseesquecedenosfazerumavisita?

Elecortouumpedaçodecarne.–Oque icomeperguntandoéporqueconstruirumacasacomoessa,

a quilômetros de tudo – disse a sua ilha Magdalen, mal-humorada. –Ninguémnuncaapareceporaqui...

–Não,ninguém.Nenhumaalma...–disseopai.– Não consigo entender por que o senhor a comprou, papai – disse

Charlotte.–Nãoconsegue?Bem,tiveminhasrazões...Eleolhourapidamenteparaaesposa,quefranziuocenho.–Ealémdisso,éassombrada–disseCharlotte.–Jamaisdormiriaaqui

sozinha.–Masquebobagem–disseopai.–Nuncavicoisaalguma.Algumde

vocêsviu?–Vernão,mas...–Masoquê?Emvezderesponder,Charlotteestremeceudeleve.A chuva de repente avolumou-se, batendo em cheio de encontro ao

vidro da janela. A sra. Dinsmead derrubou a colher, que caiu tilintandosobreabandeja.

–Nervosa?–perguntouosr.Dinsmead.–A tempestadeestá forte, ésóisso.Nãosepreocupe.Estamostodosprotegidosaquidentro,aoladodalareira, e ninguém vai aparecer para nos incomodar. Bem, seria ummilagre se alguém aparecesse aqui hoje. E milagres não acontecem –concluiuele,enfatizandoprazerosamenteaquelasúltimaspalavras.

Masmalelastinhamdeixadoasuaboca,ouviu-sesubitamentealguémbaternaporta.Osr.Dinsmeadnãosemexeuemurmurou,atônito:

–Masquediabos...Elepermaneceudebocaaberta,enquantoasra.Dinsmeadsoltavaum

gritinho e ajeitava o xale ao redor do pescoço. Magdalen, vermelha,inclinou-senadireçãodopai.

–Omilagreaconteceu–disseelaemvozbaixa.–Émelhorosenhoriratender.

IIVinte minutos antes, Mortimer Cleveland fora obrigado a parar o

Page 166: Agatha christie - o cão da morte

carrodebaixodechuvaenomeiodaneblina.Eramuitoazar.Furaropneuduasvezesemmenosdedezminutos.Eagoraláestavaele,presonomeiodaquelascolinasisoladasdeWiltshire,comanoitecaindoesemnenhumaperspectivade encontrarumabrigo.Ninguémmandara ele tomar aqueleatalho. Se tivesse continuado pela estrada principal, não estaria perdidonaquela estradinha de terra, provavelmente a quilômetros de qualquerhabitação!

Ele olhou perplexo ao redor, até que viu o brilho de uma luz numaencosta logo acima. No momento seguinte, a neblina escondeu-acompletamente,mas esperando compaciência ele conseguiu vislumbrá-ladenovo.Depoisdecogitarporalgunssegundos,eledeixouocarroesubiuaencosta.

Não demorou muito para que Mortimer Cleveland se visse livre daneblinaepudesseperceberclaramentealuzquebrilhavadajaneladeumpequenochalé.Pelomenosali talvezconseguisseumabrigo.Eleapressouo passo, inclinando a cabeça para frente, a im de enfrentar a ventaniafuriosaeachuva,quepareciamfazerdetudoparamantê-loafastadodali.

Clevelanderaumaespéciedecelebridade.Nãoqueseunomeousuasatividades fossem conhecidos pela maioria das pessoas. Ele era umaautoridadenaciênciadamenteetinhaescritodoislivrosexcelentessobreo subconsciente. Era membro da Sociedade de Pesquisa de FenômenosParanormais e um estudante de ocultismo, interessado em tudo o quepodiacontribuirparaobomandamentodassuasinvestigações.

Ele era naturalmente sensível aos ambientes e, por causa de umtreinamento deliberado, desenvolvera ainda mais esse dom. Quandoinalmente alcançou o chalé e bateu na porta, pôde pressentir umavibração, um aumento de interesse, como se as suas faculdades seaguçassem.

Eleouviacomtodaanitidezomurmúriodasvozesdoladodedentro.Ao bater na porta, fez-se um súbito silêncio. Ouviu-se o ruído de umacadeirasendoempurradaparatrásenominutoseguinteaportafoiabertaporumrapazdecercadequinzeanos.Clevelandolhouporcimadoombrodorapazeenxergouacenaquesepassavaládentro.

Parecia o quadrode umvelhomestre holandês.Umamesa redonda,na qual estava servida uma refeição, com uma família sentada ao redor,uma ou duas velas e a luz das chamas se re letindo por tudo. O pai, umhomem grande, sentava-se de um lado da mesa. Do lado oposto, umamulherzinha de cabelos grisalhos e rosto assustado. De frente para aporta, olhando diretamente para ele, estava uma moça. Seus olhos

Page 167: Agatha christie - o cão da morte

arregalados se ixavam nos dele, enquanto a mão segurava um coposuspensonametadedocaminhoatéaboca.

Cleveland imediatamente percebeu o quanto ela era bela, de umabeleza pouco comum. O cabelo, basto e avermelhado, emoldurava o seurostocomoumaneblina.Osolhos,grandeseafastados,eramdeumcinzacristalino.Abocaeoqueixopareciamosdeumaantigamadonaitaliana.

Por ummomento, icaram todos em silêncio. Então Cleveland entrounasalaecontouoquelheacontecera.Depoisdechegarao imdahistória,houve outro momento de silêncio constrangedor, até que por im,penosamente,opaiselevantou.

–Porfavor,entre,senhor...Cleveland?–Esseéomeunome–respondeuMortimer,sorrindo.– Ah, sim. Poismuito bem, sr. Cleveland. Infelizmente faz um tempo

muitofeiomesmo,nãoéverdade?Aproxime-sedalareira.Vocêpodefazerofavordefecharaporta,Johnnie?Nãofiqueaíparadoanoitetoda.

Cleveland avançou e sentou-se numbanquinho demadeira perto dofogo.Johnnietrancouaporta.

–Chamo-meDinsmead–disseooutrohomem.Agoraeleestavamaisanimado.–Essaéaminhamulher,eessassãoasminhasduas ilhas,Charlotte

eMagdalen.Pelaprimeiravez,Clevelandviuorostodamoçaqueestiverasentada

decostasparaele.Eraquasetãobonitaquantoairmã,apesardeseremdetipos muito diferentes. Seu cabelo era bem preto, o rosto pálido comomármore, o nariz delicadamente aquilino e a boca discreta. Era umaespéciedebelezafria,austera,quaseproibitiva.Quandoouviuopaidizeroseu nome, ela inclinou ligeiramente a cabeça, lançando ao estranho umolharintensoquepareciaquererdescobrirossegredosdele.Eracomosea jovem o avaliasse, como se ela o analisasse segundo seus próprioscritérios.

–Algumacoisaparabeber,sr.Cleveland?–Obrigado–disseMortimer.–Umaxícaradecháseriaótimo.O sr.Dinsmeadhesitouporummomento, pegou cadaumadas cinco

xícarasdamesaeesvaziou-asumadepoisdaoutranumatigelaquehavianamesa.

– Esse chá está frio – disse ele bruscamente. – Você faz outro paranós,querida?

Asra.Dinsmead levantou-se imediatamenteesaiuapressadadasalalevando o bule.Mortimer teve a impressão de que ela estava agradecida

Page 168: Agatha christie - o cão da morte

porpodersairdali.Logo trouxeram o chá recém-feito, que serviram para a visita

inesperadacomumbelopratodecomida.Osr.Dinsmeadnãoparavadefalar.Eleeraexpansivo,genial, loquaz.

Eleseabriuecontouaoestranhotudosobresimesmo.Nãofaziamuitoeletinhaseaposentado.Costumava trabalharnoramodaconstrução.Eleeamulher haviam decidido que um pouco de ar puro lhes faria bem e porisso mudaram-se para o interior, onde já tinham vivido antes. Aquela,obviamente, não era uma boa época do ano para mudanças, outubro enovembro,maselesnãoquiseramesperar.

–Nuncasesabeoqueavidavainostrazer–disseopaidefamília.Haviamentãocompradoaquelechalé,adozequilômetrosdequalquer

habitaçãoeatrintaquilômetrosdequalquercoisaquesepudessechamarde cidade.Mas eles não reclamavam. As ilhas achavam um pouco chato,maseleeamulhergostavamdosilêncio.

Eassimosr.Dinsmeadseguiufalando,deixandoMortimerquasequehipnotizadocoma luênciadoseudiscurso.Nadademuitointeressante,oslugares-comunsdavidafamiliar.Enoentanto,assimqueviraointeriordacasa,Mortimerdiagnosticaraalgumaoutracoisa,algumainquietação,umatensãoemanandodeumadaquelascincopessoas,eelenãosabiadequaldelas. Bobagem, seus nervos estavam em frangalhos! Ficaram todosassustadoscomasuachegadainesperada,nadamais.

Ele tocou na questão de um lugar onde pudesse passar a noite erecebeuumarespostaimediata.

– O senhor vai ter de icar com a gente. Não há nada mais aquilômetros de distância. Podemos dar-lhe uma cama, e apesar demeuspijamasjáestaremumpoucogastossãomelhordoquenada.Suasroupasestarãosecaspelamanhã.

–Émuitagentilezasua.–Deformaalguma–disseooutro,bem-humorado.–Comoeuacabei

de dizer, numa noite como essa, nem um cachorro se deixa na rua.Magdalen,Charlotte,subamparaprepararoquarto.

As duas deixaram a sala. Mortimer podia ouvi-las se movimentandoacimadasuacabeça.

– É compreensível que duas belas jovens como as suas ilhas achemumpoucochatomorarporaqui–disseCleveland.

–Sãobonitas,não?–disseosr.Dinsmead,orgulhoso.–Diferentesdemim e da mãe. Somos um casal simples, mas muito iel. Não é verdade,Maggie?

Page 169: Agatha christie - o cão da morte

Asra.Dinsmeadsorriu,constrangida.Elavoltaraatricotar.Asagulhasbatiamumacontraaoutra.Elatricotavadepressa.

Vieramanunciarqueoquartoestavapronto.Mortimer,agradecendomaisumavez,dissequegostariadeserecolher.

– Vocês se lembraram de colocar uma garrafa de água quente paraaquecer a cama? – perguntou a sra. Dinsmead, subitamente preocupadacomareputaçãodasuacasa.

–Sim,mãe.Duas.– Está certo – disse o sr. Dinsmead. – Subam com ele e vejam se

precisademaisalgumacoisa.Magdalenfoiatéa janela,a imdecerti icar-sedequeestavamesmo

bem fechada. Charlotte deu uma última olhada na jarra e na bacia dopequenolavatório.Depois,asduasficaramesperandoaoladodaporta.

– Boa noite, sr. Cleveland. Tem certeza de que não precisa de maisnada?

–Sim,estátudocerto,srta.Magdalen.Ficoenvergonhadoporter-lhesdadotodoessetrabalho.Boanoite.

–Boanoite.Elas saíram fechando a porta atrás de si. Mortimer Cleveland icou

sozinho.Despiu-se lentamente,enquantoaproveitavaparare letir.Depoisde vestir o pijama rosa do sr. Dinsmead, pegou as próprias roupasmolhadasecolocou-asdoladodeforadaporta,comolheforasugerido.Doandardebaixo,chegavaatéeleorumordavozdoseuanfitrião.

Que homemmais falador! Um tipo esquisito, e na verdade a famíliatodaerameioesquisitaouestariaeleimaginandocoisas?

Mortimer voltou lentamente para o quarto e trancou a porta. Ficouparadoaoladodacama,refletindo.Ederepentetomouumsusto.

Amesademognoaoladodacamaestavacobertadepó.Eescritasali,claramentevisíveis,trêsletras:S.O.S.

Mortimer arregalou os olhos sempoder acreditar no que via. Aquilocon irmava os seus pressentimentos e suspeitas. Então ele estava certo.Haviaalgumacoisadeerradonaquelacasa.

S.O.S.Umpedidodeajuda.Masdequemseriaodedoqueescreverana poeira? DeMagdalen ou de Charlotte? Ambas tinham passado por alipor um breve momento antes de deixar o quarto. Qual das duas teriasecretamentebaixadoamãoatémesaeescritodiscretamenteasletras?

Ele tinha diante de si o rosto das duas moças. Magdalen, morena edistante.Charlotte,aquemeleviraprimeiro,deolhosgrandes,assustados,osquaisabrigavamumbrilhoestranho...

Page 170: Agatha christie - o cão da morte

O sr. Cleveland voltou até porta e abriu-a. Já não se ouvia mais orumordavozdosr.Dinsmead.Acasaestavaemsilêncio.

Elerefletiu.– Não há nada que eu possa fazer esta noite – disse ele consigo

mesmo.–Amanhã...Bem,melhoresperarparaveroqueacontece.

IIIClevelandacordoucedo.Eledesceu,atravessouasaladeestaresaiu

atéo jardim.Eraumabelamanhã, frescaeagradáveldepoisdachuvadanoite anterior. Outra pessoa também acordara cedo. No inal do jardim,Charlotteseinclinavasobreacercaolhandoparaovale.Elecaminhouatéela, sentindo a pulsação aumentar. O tempo todo, Mortimer estiveraconvencidodequeforaCharlottequemescreveraamensagem.Aochegarpertodela,amoçavirou-separaele.

–Bomdia–disseela.Seus olhos eram francos como os de uma criança e não davam a

entenderaexistênciadenenhumsegredo.– Uma bela manhã – disse Mortimer, sorrindo. – O contraste não

poderiasermaioremrelaçãoànoitepassada.–Éverdade.Mortimer quebrou um raminho de uma árvore próxima, com o qual

começouadesenharaoacasonocaminhodeareiaaseuspés.Derepente,ele traçou um S, depois um O, e então outro S, observando a moçaatentamente.Mas, comoantes, não foi capazdepercebernenhum indíciodequeelaoentendesse.

–Vocêsabeoquerepresentamessasletras?–acabouporperguntar.Charlottefranziuocenho.–É amensagemque se costumaenviardenaviosquandoeles estão

emperigo,não?Mortimerfezquesimcomacabeça.–Alguémescreveu issonamesinhaao ladodaminhacama,ontemà

noite–disseeleemvozbaixa.–Penseiqueasenhoritativesseescrito.Elaolhouparaelearregalandoosolhos.–Eu?Oh,não.Entãoeleseenganara, reconheceu,eoseudesapontamento tomoua

formadeumapontadaagudanabocadoestômago.Pareciatãoóbvio!Erararoquesuasintuiçõesoenganassemdaquelaforma.

–Temcertezadequenãofoivocê?–insistiuele.

Page 171: Agatha christie - o cão da morte

–Maséclaro.Lentamente, os dois caminharam juntos de volta ao chalé. Charlotte

parecia preocupada com alguma coisa. Ela respondeu distraidamente àspoucasobservaçõesque ele fez. Ede repente, sempodermais se conter,confessouapressadaemvozbaixa:

– É estranho que o senhor venha me perguntar sobre essas letras,S.O.S.Eunãoasescrevi,élógico,maspoderiamuitobemtê-lasescrito.

Eleparoueolhouparaela,quecontinuou:–Pareceloucura,eusei,masandomuitoassustada...Quandoosenhor

chegou aqui ontem à noite, me pareceu como se fosse a solução de umproblema.

–Doqueasenhoritatemmedo?–Eunãosei.–Nãosabe?– Acho que... da casa! Desde que chegamos aqui, essa sensação

esquisita que tenho não deixou de aumentar. É como se eles estivessemdiferentes,papai,mamãe,Magdalen.Parecemoutros.

Mortimer icou em silêncio, sem saber o que dizer, e antes quepudesseabrirabocaparafalarqualquercoisaCharlottecontinuou:

–Dizemqueestacasaéassombrada.–Como?–perguntouele,interessado.–Éverdade.Umhomemassassinouaesposaaqui.Fazalgunsanosjá.

Sósoubemosarespeitodepoisquenosmudamos.Papaidizquefantasmasnãoexistem,masnãoestoutãocertadisso...

Mortimerrefletiaconsigomesmo.–Diga-me...poracasoocrimefoicometidonoquartoemquedormi?–Nãoseinadaarespeitodisso–respondeuCharlotte.–Ficoimaginandose...–murmurouMortimer,maisparasimesmodo

queparaamoça–Sim,ébempossível.Charlotteolhouparaeledesconfiada.–Asenhoritaporacaso–perguntouMortimergentilmente–sabese

possuialgumtipodecapacidademediúnica?Elaarregalouosolhos.– Foi a senhorita quem escreveu S.O.S namesinha domeu quarto –

continuou ele, calmamente –, e creio que sabe disso. Inconscientemente,quero dizer. Qualquer crime contamina o ambiente em que é cometido.Uma mente sensível como a sua pode ser in luenciada por esse tipo deforça. A senhorita tem reproduzido as sensações e impressões da vítima.Muitos anos atrás, ela deve ter escrito S.O.S naquelamesa, e a senhorita

Page 172: Agatha christie - o cão da morte

inconscientementeimitou-aontemànoite.OrostodeCharlottepareciailuminado.–Achoque entendo.O senhorpensaque essa éumaboa explicação

paraoqueaconteceu?Umavoz chamou-ado ladodedentroda casae ela entrou,deixando

Mortimer no jardim. Ele caminhou um pouco por ali, re letindo. Estariaaquela explicação correta? Dava conta dos fatos? Explicava a tensão queelesentirananoiteemqueentraranacasa?

Talvez, enoentantoele tinhaa sensaçãoestranhadeque foraa suachegada repentina que perturbara algo no ambiente. Mortimer pensouconsigo mesmo: “A explicação paranormal pode dar conta do caso deCharlotte,masnãododasoutraspessoas.Todos icaramincomodadoscomaminhachegada,excetoJohnnie.Seja láqual foroproblema, Johnnienãoestáenvolvido”.

Eletinhacertezadisso.Nãosabiaporque,mastinhacerteza.Naquele exato momento, Johnnie saiu do chalé e se aproximou da

visita.–O café está servido.O senhor não gostaria de entrar? – perguntou

ele,abruptamente.Mortimernotouqueosdedosdorapazestavamtodosmanchados.Ao

perceber que estava sendo observado daquela maneira, Johnnie soltouumagargalhada.

–Estousemprelidandocomprodutosquímicos.Papai icaenfurecido.Elequerqueeutrabalhecomconstrução,masgostomesmoédequímicaelaboratórios.

Na janela logo em frente a onde eles estavam apareceu o sr.Dinsmead,comseurosto franco, jovialesorridente.Aovê-lo,Mortimersesentiuaindamenosàvontadeemaisdesconfiado.

Por im,Mortimerentrou, constatandoqueasra.Dinsmead jáestavasentadaàmesa.Comsuavozapática,eladeu-lheumbom-diaquenãofezsenãoreforçaraimpressãodequesuapresençaaincomodava.Magdalenfoiaúltimaaaparecer.Elacumprimentou-oacenando ligeiramentecomacabeçaesentou-senacadeiraopostaàdele.

–Osenhordormiubem?–perguntouelade súbito. –Acamaestavaboa?

Ela olhava para ele muito séria, e Mortimer não pôde deixar deconstatar que as respostas positivas que ele deu às questões a deixaramumpoucodesapontada.Oqueelaesperavaouvir?

Elesevoltouparaoanfitrião.

Page 173: Agatha christie - o cão da morte

– Pelo que entendi, o seu ilho se interessa por química... – disse elemaliciosamente.

Asra.Dinsmeaddeixoucairaxícara,quesequebrousobreopires.–Maggie!Tenhamaiscuidado,porfavor...Mortimerpercebeuumtomderepreensão,deadvertêncianavozdo

marido. O sr. Dinsmead voltou-se para ele e desandou a falar sobre asvantagens do ramo da construção e sobre a necessidade de se imporemlimitesaosjovens.

Depoisdocafé,Mortimerfoisozinhoaojardima imdefumar.Aqueleera omomento em que devia deixar o chalé. Passar a noite ali era umacoisa,masparaestenderasuavisitaeleteriadeencontrarumadesculpa.Equedesculpairiaalegar?Oproblemaéquerelutavaemdeixarolugar.

Re letindo sobre o assunto, Mortimer seguiu por um caminho quelevava ao outro lado da casa. Os seus sapatos tinham um soladoemborrachado e quase não faziam barulho. Ele passava pela janela dacozinha quando ouviu a voz do sr. Dinsmead do lado de dentro. O que odonodacasadiziachamouimediatamenteasuaatenção:

–Éumagrandequantia.Asra.Dinsmeadrespondeualgumacoisa,masnumtombaixodemais

paraqueMortimerpudesseouvir.Emseguidaosr.Dinsmeadobservou:–Cercade60millibras,disseoadvogado.Mortimer não tinha intenção de icar ouvindo a conversa, mas

desacelerou o passo. A menção ao dinheiro parecia con irmar as suassuspeitas. Sessentamil libras estavam em jogo, o que tornava a situaçãomaisdefinidaemaisgrave.

Magdalen saiu da casa, mas a voz do pai chamou-a de volta paradentro.Quemacabouporjuntar-seàvisitafoioprópriosr.Dinsmead.

– Uma manhã tão boa como esta é uma coisa rara. Imagino que oproblemadoseucarronãotenhapiorado.

“Quersaberquandovouembora”,pensouMortimerconsigomesmo.Em voz alta, ele agradeceu mais uma vez ao sr. Dinsmead pela

hospitalidadeprovidencial.–Imagine...Nãofoinada–disseooutro.Magdalen e Charlotte saíram juntas da casa e caminharam demãos

dadas até um banco rústico, um pouco distante dali. O cabelo escuro deuma contrastava agradavelmente com o avermelhado da outra e,obedecendoaumimpulso,Mortimerdisse:

–Suasfilhassãotãodiferentes,sr.Dinsmead...O outro homem, que naquele momento acendia o cachimbo, fez um

Page 174: Agatha christie - o cão da morte

gestobruscocomamãoedeixoucairofósforo.–Osenhoracha?–perguntouele.–Sim,suponhoquesejaverdade.Seguindooutraintuiçãorepentina,Mortimersugeriu,numtomdevoz

maissuave:–Maséclaroquenãosãoambassuasfilhas...Dinsmead olhou para ele, hesitou por um momento e acabou

admitindo.–Osenhoré inteligente.Umadelas foiabandonadapelospais.Nósa

pegamosquandoaindabebêeacriamoscomosefossenossa.Acoitadinhanãosabedenada,mas teremosdecontaraela logo–declarouohomem,soltandoumsuspiro.

–Porcausadealgumaherança?–sugeriuMortimeremvozbaixa.Osr.Dinsmeadlançouaeleumolhardesconfiado.Entãosedecidiuqueomelhoreraserfranco,tãofrancoquechegoua

setornaragressivo:–Éestranhoqueosenhordigaumacoisadessas.–Soumeiotelepata–disseMortimercomumsorrisoamarelo.–Oqueaconteceéoseguinte.Aopegá-la, foicomose izéssemosum

favor à mãe dela. Eu acabara de entrar no ramo de construção. Algunsmesesatrás,repareinumanúncionojornalquesereferiaaumacriança...tinha de ser a nossa Magdalen! Me encontrei com os advogados, quedisseram uma porção de coisas mas nada explicaram. Eles estavamdescon iados, é claro, mas agora tudo foi esclarecido. Vou levá-la atéLondresna semanaque vem.Elanada sabe sobre isso. Parecequeopaidela era um desses judeus muito ricos. Ele só soube da existência damenina algunsmeses antes demorrer. Contratou então alguns detetivesparatentarencontrá-laedeixouaelatodaasuafortuna.

Mortimerouviuahistóriaatentamente.Elenão tinhanenhumarazãopara duvidar do que acabara de ouvir. A história explicava a beleza deMagdalen, seus cabelos escuros, seus modos altivos e distantes. Aindaassim,algumaoutracoisaestavasendoescondida.

Para não despertar suspeitas, resolveu dar a entender que icaraconvencido.

– Uma história muito interessante, sr. Dinsmead. Parabéns à srta.Magdalen.Umabela jovemeagoraumaherdeira.Temum futuroe tantopelafrente.

–Éverdade–concordouopai,entusiasmado.–Eelaé tambémumamoçamuitodedicada.

Eledavatodosossinaisdenutrirpelafilhaumaafeiçãogenuína.

Page 175: Agatha christie - o cão da morte

– Bem – disse Mortimer –, é melhor eu ir. Tenho de agradecer-lhemaisumavez,sr.Dinsmead,pelahospitalidadeprovidencial.

Acompanhadopelo an itrião, ele entrouna casa para se despedir dasra.Dinsmead.Elaolhavapelajanela,decostasparaaporta,distraída.Aoouvir a voz domarido que anunciava, em tom jovial, que o sr. Clevelandestava indo embora, ela tomou um sustou e imediatamente se virou,deixandocairalgumacoisaqueseguravanamão.Mortimerjuntouoobjetodo chão, um retrato emminiatura de Charlotte feito num estilo em vogavinte anos atrás. Mortimer repetiu a ela os agradecimentos que jáproferira ao marido. Ele observou mais uma vez o olhar assustado e asmiradasfurtivasqueamulherocasionalmentelhelançavapordebaixodaspálpebrascontraídas.

Asduasmoçasnãoapareceram,eMortimernempensouemprocurá-lasparasedespedir.Eletinhaoutraideiaquelogosereveloucorreta.

Mal tinha descido cerca de oitocentosmetros da casa na direção deonde deixara o carro na noite anterior quando os arbustos ao lado daestradasemexeramedelesemergiu,logoàsuafrente,Magdalen.

–Precisofalarcomosenhor–disseela.–Eusei–disseMortimer.–FoivocêquemescreveuS.O.Snamesado

meuquartonanoitepassada,não?Magdalenfezquesimcomacabeça.–Porquê?–perguntouMortimer,gentilmente.A moça virou para o lado e começou a arrancar as folhas de um

arbusto.–Eunãosei–disseela.–Honestamente,nãosei.–Diga-me–insistiuMortimer.– Sou uma pessoa prática – disse ela. – Não ico imaginando e

fantasiandocoisas.Seiqueosenhoracreditaemfantasmaseespíritos.Nãoacredito em nada disso e, quando lhe digo que há algo muito estranhonaquelacasa–continuouela,apontandoparaoaltodaencosta–,estoumereferindo a algo concreto. Não é apenas um eco do passado. Desde queestamos aqui, papai está diferente, mamãe está diferente, Charlotte estádiferente.

Mortimerinterveio:–Johnnieestádiferente?Magdalen olhou para ele, e seus olhos indicavam que a moça se

surpreenderacomapertinênciadapergunta.–Não.Sóagoratenhomeperguntadosobreisso.Johnnienãomudou.

Eleéoúnicoquenãofoiafetado.Ontemduranteochá,porexemplo...

Page 176: Agatha christie - o cão da morte

–Easenhorita?–perguntouMortimer.–Euestavaassustada...muitoassustada.Assustadacomoumacriança.

Epapaiestavamuitoesquisito.Realmenteesquisito.Esquisitoéapalavraquemelhorcaracterizaoseuestado.Elefalavademilagres,eentãorezei,rezeiparaqueummilagreacontecesse,enamesmahoraosenhorbateunaporta...

Elaparouabruptamente,cravandoosolhosnele.– Devo parecer uma louca, falando desse jeito – disse ela, num tom

desafiador.– Não – disse Mortimer –, pelo contrário, você parece muito lúcida.

Pessoassaudáveissemprepressentemoperigoquandoeleestápróximo.– O senhor não está entendendo, talvez... Não era por mim que eu

temia...–Entãoporquem?Denovoelasacudiuacabeça,confusa.–Nãosei.Masemseguida,continuou:–EscreviS.O.Sseguindoumimpulso.Eutinhaaimpressãoabsurdade

quenãomedeixariamfalarcomosenhor.Osoutros,eudigo.Maseunãoseioqueeuqueriadosenhor.Nãosei.

–Nãosepreocupe.Confieemmim–disseMortimer.–Masoqueosenhorpodefazer?Mortimerdeuumsorrisoamarelo.–Possopensar.Elaolhouparaeleconfusa.–Sim–insistiuMortimer–,muitacoisapodeserresolvidaassim,mais

doquese imagina.Diga-me,poracasoalgumapalavraou frasechamouasuaatençãologoantesdojantarnaquelanoite?

Magdalenfranziuocenho.–Achoquenão–disseela.–Ouvipapaidizeralgumacoisaàmamãe

sobre Charlotte ser parecida com ela, e depois ele riu de uma formaesquisita,mas...nãoseioquepodehaverdeerradonisso...

–Charlottenãoéparecidacomasuamãe.Ele icou re letindopor umminuto oudois e depois levantouo rosto

para Magdalen, que continuava olhando para ele, na expectativa de queMortimerpudesseajudá-la.

–Volteparacasaenãosepreocupemaiscomisso.Deixecomigo.Obediente, ela seguiu pelo caminho de volta ao chalé. Mortimer

continuou descendo mais alguns passos e em seguida deitou-se no

Page 177: Agatha christie - o cão da morte

gramado. Ele fechou os olhos, tentou se desligar de qualquer esforço deraciocínio consciente e acompanhou uma série de iguras que sedesdobravamnasuamente.

Johnnie! Era sempre Johnnie quem lhe aparecia, completamenteinocente,livredequalquersuspeita,livredeintrigase,nãoobstanteisso,opivô ao redor do qual tudo girava. Mortimer lembrou-se do barulho daxícara da sra. Dinsmead quebrando-se sobre o pires naquela manhã. Oqueadeixaratãonervosa?Areferênciafeitaporeleàpaixãoqueorapaztinhapelaquímica?Naquelemomento, nãoprestaramuita atençãono sr.Dinsmead, mas agora ele o via com nitidez, segurando a xícara a meiocaminhodaboca.

Aquela imagem lembrou-o novamente de Charlotte, a moça que elehaviavistoaoabriraportadochalénanoitepassada.Elaoencararaporcimadabordadaxícara.Àquela lembrança,seguiu-seumaoutra:adosr.Dinsmead esvaziando as xícaras de chá, uma depois da outra, e dizendo“Estecháestáfrio”.

Mortimerselembravadovaporquepairavanoarsobreatigelaeasxícaras.Nãoerapossívelqueocháestivessetãofrio.

Algumacoisacomeçouaseagitarnoseucérebro.Alembrançadeumacontecimentorecente,cercadeummêsatrás.Orelatodoenvenenamentodeuma família inteirapelodescuidodeumrapaz.Umpacotedearsênicodeixado na despensa escorrera sobre o pão na prateleira de baixo.Mortimerleraarespeitonosjornais.Talvezosr.Dinsmeadtambémtivesselido.

Ascoisascomeçavamaficarmaisclaras...Meiahoradepois,MortimerClevelandlevantava-sedeumpulo.

IVA noite caíra mais uma vez sobre as colinas deWiltshire. No chalé,

ovospochéeumalatadebolodecarne.Asra.Dinsmeadtraziadacozinhaobuledechá.Afamíliasesentavaaoredordamesa.

– Que diferença com relação ao tempo de ontem – disse a sra.Dinsmead,olhandopelajanela.

– Sim – concordou o sr. Dinsmead. – Hoje está tão calmo que seriapossívelouviraquedadeumal inete.Maseentão,querida...poderiafazerofavordenosservir?

Asra.Dinsmeadencheuasxícarasedistribuiu-asao redordamesa.Então,aocolocarobuledevolta,deuumgritinho,apertandoamãocontra

Page 178: Agatha christie - o cão da morte

o peito. O sr. Dinsmead virou a cadeira na direção aonde apontavam osolhosapavoradosdaesposa.MortimerClevelandestavaparadonovãodaporta.

Mortimerdeuumpassoàfrente,sedesculpando.–Receiotê-laassustado.Volteiporummotivo.–Ummotivo?–gritouosr.Dinsmead,muitovermelhoecomasveias

dopescoçosaltando.–Quemotivo?Éoqueeugostariadesaber...–Umaxícaradechá.Com um gesto rápido,Mortimer tirou um tubo de ensaio do bolso e,

pegando uma das xícaras da mesa, derrubou no tubo um pouco doconteúdodela.

– Mas o que você está fazendo? – exclamou o sr. Dinsmead,engasgado.

Osr.Dinsmeadestavaagorapálidocomocal.Osanguedesapareceradoseurostonumpassedemágica.

–Osenhorlêosjornais,nãoéverdade?Tenhocertezadequesim.Àsvezeslemosnotíciassobreoenvenenamentodeumafamíliainteira.Algunsse recuperam, outros não. Neste caso, uma não se recuperaria. A culpaseriada carneenlatada...mase seomédico suspeitassedealgumaoutracoisa?Háumpacotedearsêniconadispensa.Naprateleiralogoabaixoháumpacotede chá.Háumburacobemconvenientenaprateleirade cima.Naturalmente, a conclusão a se tirar é que o arsênico contaminouacidentalmente o chá. O seu ilho Johnnie seria repreendido por umdescuido,enadamais.

–Eunãofaçoamenorideiadoqueosenhorestáfalando!–exclamouosr.Dinsmead,aindasemfôlego.

–Poisachoqueosenhorfaz,sim.Mortimerpegououtraxícaraederramouumpoucodoseuconteúdo

emoutrotubodeensaio.Elecolouumaetiquetavermelhanumdostuboseumaazulnooutro.

–Otubocomaetiquetavermelhacontémochádaxícaradasua ilhaCharlotte, e o outro, o chá da xícara da sua ilhaMagdalen. Sou capaz dejurar que no primeiro vamos encontrar quatro ou cinco vezes mais dearsênicodoquenosegundo.

–Osenhorestálouco!–exclamouDinsmead.–Não,nãoestou.Nemumpouco.Aocontráriodoquemedissehoje,

Charlotteéameninaqueosenhoradotou.Aimagemdamãe,comoprovaaqueleretratoemminiaturaquetiveemminhasmãosantesdeirembora.AcheiqueoretratofossedaprópriaCharlotte,maseraobviamentedamãe

Page 179: Agatha christie - o cão da morte

dela. Sua ilha legítima, Magdalen, seria feita herdeira da fortuna, e peladi iculdade de manter a outra o tempo todo escondida o senhor decidiucolocarumapitadadearsêniconofundodaxícara.

A sra. Dinsmead soltou uma gargalhada histérica e começou a sebalançarparafrenteeparatrásnacadeira.

–Chá–gritouela–,foiissooqueeledisse...Cháenãolimonada.–Caleaboca,mulher–rugiuomarido,furioso.Dooutro ladodamesa,CharlottearregalavaosolhosparaMortimer.

Elesentiuumamãonoseuombro.EraMagdalen,quetentavaafastá-lodamesa.

–Esses...–disseela,apontandoparaostubos–Papai...vocênão...Mortimersegurou-apelobraço.–Minha jovem–disseele–,vocênãoacreditanopassado.Eusim.E

percebialgodeerradonaatmosferadestacasa.Seoseupainãotivessesemudado para cá, é possível, possível eu digo, que ele nunca tivesseconcebidoumplano comoesse.Estou levandoessesdois tubosde ensaiocomigo,paraquesirvamdegarantiaàvidadeCharlotteagoraenofuturo.Fora isso, não devo fazer mais nada, em agradecimento à mão queescreveuS.O.S.

FIM