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Agatha christie - o estranho caso da velha curiosa

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Amiga de longa data da simpática Miss Jane Marple, Elspeth McGillicuddy decide um dia ir visitá-la. Para chegar à pequena aldeia onde vive a amiga apanha o comboio que a levará até Brackampton, de onde seguirá para St. Mary Mead. Quando o comboio em que ela segue deixa a estação passa paralelo a um outro e, ao olhar pela janela da sua carruagem Miss McGillicuddy vê, numa fracção de segundo alguém a cometer um crime. Numa imagem que durou apenas um breve instante, mas que ela jamais esquecerá, ela viu uma mulher a ser estrangulada por um homem. A polícia, no entanto, não acredita na sua história pois nenhum corpo foi encontrado. Única testemunha ocular de um crime em que ninguém acredita poderá ela contar com a ajuda da sua amiga Miss Marple para desvendar o mistério?

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I

Mrs. McGillicuddy seguia arfando pela plataforma no rastro docarregador que transportava sua mala. Mrs. McGillicuddy era baixa ecorpulenta, aopassoqueo carregadorera alto emagro.Alémdisso,Mrs.McGillicuddy ia carregada com grande quantidade de embrulhos,resultadodeumdiadecomprasparaoNatal.Assim,acorridaeradesiguale o carregador dava já a volta pela ponta da plataforma quando Mrs.McGillicuddyestavanomeio.

Havia pouca gente, naquele momento, na plataforma nº 1, poisacabara de partir um trem, mas do outro lado da linha uma multidãoapressada corria na direção do metrô, dos depósitos de bagagens, dassalasdechá,dasagênciasde informações,dosquadrosdehoráriosedasduassaídas.

Mrs.McGillicuddy,depoisde recebervários encontrões, conseguiuchegar à entrada da plataforma nº 3, onde depositou um embrulho nochão,enquantorebuscavaabolsaàprocuradobilheteque lhepermitiriapassarpeloguarda,deaspetocarrancudo,postadojuntoàcancela.

Nessemomento,umavoz,forteemboracortês,proferiuporcimadesuacabeça:–Otremparadonocaisnúmerotrêsparteàsquatrohorasecinquenta minutos para Brackhampton, Milchester, Waverton,EntroncamentodeCarvil,RoxetereestaçõesseguintesatéChadmonth.Ospassageiros que vão para Brackhampton e Milchester devem viajar noúltimovagãodo trem.OspassageirosparaVanequay têm transbordo emRoxeter. – A voz se calou com um estalido e depois tornou a falar paraanunciar a chegada à plataforma nº 9, às quatro horas e trinta e cincominutos,dotremprocedentedeBirminghamedeWolverhampton.

Mrs. McGillicuddv encontrou o bilhete e apresentou-o. O homemfurou-oemurmurou:–Àdireita...últimovagão.

Mrs. McGillicuddv entrou na plataforma e encontrou seu

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carregador,comaraborrecido,olhandoparaoar,àportadeumvagãodaterceiraclasse.

–Aquitemasuamala.–Viajonaprimeiraclasse–informouMrs.McGillicuddv_. – Já podia ter me dito – resmungou o carregador, olhando

desdenhosamente para o casaco de tweed de corte masculino que Mrs.McGillicuddyvestia.

Mrs.McGillicuddy, embora já o tivesse dito, não estava disposta adiscutir.Estavacompletamentesemfôlego.Ocarregadortornouapegaramalaecaminhouatéovagãoseguinte,ondeMrs.McGillicuddvse instalounum luxuoso compartimento em que era a única ocupante. O trem dasquatro e cinquentanãoeramuitoprocurado,pois a clienteladaprimeiraclasse preferia o expresso damanhã ou o trem das seis e quarenta comvagão-restaurante.Mrs.McGillicuddyestendeuumagorjetaaocarregador,quearecebeu,desapontado,achando-amaisprópriadeumpassageirodaterceiraclassedoquedaprimeira.Masaidosasenhora,emboradispostaagastar dinheiro para viajar confortavelmente depois de uma noite deviagem,queatrouxeradoNorte,edeumdiadecomprasfebril,nuncasemostravaextravaganteemmatériadegorjetas.

Recostou-senoacolchoadomaciodoassento,soltandoumsuspiro,eabriuumarevista.Cincominutosdepois,soaramapitoseo trempartiu.Arevista escorregou damão deMrs. McGillicuddy, a cabeça desta pendeupara o lado e três minutos depois a corpulenta dama dormia. Seu sonodurou cerca de trinta e cinco minutos. Acordou restaurada. Ajeitando ochapéu,que lhecaíraparao lado,endireitou-senoassentoecontemplou,atravésdajanela,apaisagemquefugia.Aessahoradodia,umdiatristeeenevoado de dezembro – faltavam apenas cinco dias para o Natal –, jáestava muito escuro. Londres mostrava-se triste e enevoada e o campoigualmente,embora,devezemquando,essamonotoniafosseinterrompidapelasluzesdascidadesedasestaçõesporondeotrempassava.

–Últimoserviçodechá–avisouumempregado,abrindoaportadocorredor.

Mrs.McGillicuddyjátomarachánumgrandeestabelecimentoe,porconseguinte, naquela altura, achava-se bem alimentada. O empregadoprosseguiu seu caminho pelo corredor, proferindo o mesmo aviso numavoz monótona. Mrs. McGillicuddy ergueu o olhar para a rede onderepousavam seus vários embrulhos e nesse olhar havia uma expressãosatisfeita. As toalhas de rosto tinham sido uma compra excelente e eramprecisamente o que Margaret desejava, a espingarda de pressão de ar

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paraMobbyeocoelhoparaJeanerammuitosatisfatórios,eocasaquinhocurtoque compraraparaanoite, quentee vistoso, era exatamenteoqueela própria queria. A camisola de lã para Hetor também... seu espíritocomprazia-serefletindosobreascomprasquefizera.

Seu olhar satisfeito voltou-se para a janela. Na outra linha férreapassouumtremcomumsomásperoerepentino,fazendovibrarasjanelase sobressaltandoMrs.McGillicuddy. Poucodepois, o trememque viajavapassouporumaestação.Emseguida,subitamente,começouaabrandaravelocidade, em obediência ao que parecia um sinal. Rodou durante unsminutos, parou e, pouco depois, voltou a avançar e a ganhar velocidade.Nesse momento, outro trem que seguia por linha diversa, no mesmosentidoqueodeMrs.McGillicuddyaproximou-see,duranteummomento,os dois correram paralelamente. Mrs. McGillicuddy olhou através dasjanelasdosdoistremsparaosvagõesparalelos.Amaiorpartedascortinasestava baixada,mas alguns ocupantes eram visíveis. O outro trem não iamuitocheioelevavamuitosvagõesvazios.

No momento em que os dois trems davam a impressão de estarparando, a cortina de um dos vagões ergueu-se de repente. Mrs.McGillicuddyolhouparaovagãoiluminadodaprimeiraclasseque icavaaapenasalgunsmetrosdedistância.Voltadodecostasparaelaeencostadoàjanelahaviaumhomem.Suasmãosenvolviamopescoçodeumamulher,viradaparaeleelentamente,implacavelmente,aestrangulavam.Amulhertinha o rosto roxo e congestionado e os olhos começavam a sair-lhe dasórbitas. EnquantoMrs.McGillicuddy os observava, fascinada, a cena teveseudesfecho:ocorpotornou-sefrouxoevergou,soboapertodasmãosdohomem.

Nomesmomomento,otremdeMrs.McGillicuddyvoltouareduzirra marcha e o outro ultrapassou-o, desaparecendo da vista, momentosdepois.

Quaseautomaticamente,amãodeMrs.McGillicuddyelevou-seatéoio de alarme e depois parou, irresoluta. No im das contas, de que valiapuxar o alarmedo trememque ela viajava?O horror quepresenciara atão pouca distância e as circunstâncias fora de comum em que a cenaocorreraadeixaramparalisada.Eranecessário agir imediatamente...mascomo? A porta de seu compartimento abriu-se e um revisor pediu: –Bilhete,porfavor.

Mrs.McGillicuddyvirou-separaelecomveemência:–Umamulheracaba de ser estrangulada – informou. –Num tremque passou por este,agoramesmo.Euvi.

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O revisor olhou-a com um ar de dúvida:– Como disse, minhasenhora?

–Umhomemestrangulouumamulher!Numtrem.Euvi...pelajanela–acrescentou,apontandoparaesta.

Orevisorpareciaextremamenteincréduo.–Estrangulou?–perguntou,comincredulidade. – Sim, ele a estrangulou! Já disse que vi. O senhor tem de fazer

qualquercoisa,imediatamente.O revisor pigarreou, como se se desculpasse: –Não acha possível,

minha senhora, que tenha cochilado um pouco e... hum... – calou-se,prudentemente.

–Cochilei,defato,masseachaqueoqueconteifoisonhoestámuitoenganado.Jálhedissequevi.

Os olhos do revisor pousaramna revista aberta, caída no assento.Na página exposta via-se um homem estrangular uma moça, enquanto,numaporta,outrohomemderevólverempunhoameaçavaopar.

Orevisorprocurouserpersuasivo.–Nãoachapossível,minhasenhora,que,depoisdelerumahistória

excitanteedeteradormecido,possateracordadoumpoucoconfusa...Mrs.McGillicuddyinterrompeu-o. – Eu vi – insistiu. – Estava tão acordada como o senhor. Naquele

momento olhei através desta janela para a janela do outro trem e vi umhomemestrangularumamulher.Querosabersevaitomarasprovidênciasnecessárias.

–Bem...minhasenhora... – Suponho que tenciona fazer alguma coisa, não é verdade? O

revisorsuspiroudemodorelutanteeconsultouorelógiodepulso. – Chegaremos a Brackhampton exatamente em sete minutos.

Informarei oqueacabademe contar.Emquedireção seguiao tremquemencionou? – Na mesma deste trem, é evidente. Certamente não supõeque eu pudesse ter visto tudo isso se esse trem houvesse passado comoumaflechaemsentidooposto.

A expressão do revisor dava a entender que este achava Mrs.McGillicuddycapazdeveroquequerquefosseondeafantasiaditasse.

–Podecon iaremmim,minhasenhora–assegurou.–Participareisua informação. Talvez seja melhor me dar seu nome e endereço...simplesmenteparaocasodesernecessário...Mrs.McGillicuddydeu-lheoendereco que teria nos próximos dias e seu endereco permanente naEscócia.Depoisde anotá-los, o revisor retirou-se como ardeumhomem

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quecumpriraseudeveresesaírabemdeumincidentecomumelementoenfadonhodopúblicoviajante.

Mrs.McGillicuddv icoudesobrolhofranzidoevagamenteinquieto.O revisor informariade fato participar o que ela contara? Ou prometeraapenas para acalmá-la? Agora, o trem voltava a reduzirr a marcha eatravessavaumagrandecidadeiluminada.

Mrs.McGillicuddv abriu amalinha demão, rebuscouno interior eretirou um recibo, em cujo verso garatujou rapidamente umas palavras.Meteu-o num envelope que, por sorte, levava na mala e escreveu nelequalquercoisa.

Otremparounumaestaçãocheiadegente.Ahabitualvozdetodasas estaçõesentoava: –O tremqueacabade chegar àplataformanúmeroum é o que parte às cinco horas e trinta e oitominutos paraMilchester,Waverton, Roxeter e estações seguintes até Chadmonth. Os passageirosquevãoparaMarketBasingseguemnotremagoraparadonocaisnúmerotrês.

Mrs. McGillicuddy olhou ansiosamente ao longo da plataforma.Tantospassageirosetãopoucoscarregadores!Ah,aliestavaum!Chamou-ocomumavozautoritária.

– Carregador! Faça favor de levar isto imediatamente ao chefe daestação.

Estendeu-lheoenvelopeeumxelim. Depois, soltando um suspiro, recostou-se no assento. Fizera o que

pudera. Seu espírito concentrou-se, por um instante, com desgosto, noxelim...Meio-xelimteriasidosuficiente.

Em seguida, voltou a evocar a cena que presenciara. Horrível,absolutamente horrível... Apesar de ser uma mulher de nervos de aço,estremeceu. Que coisa estranha... que coisa fantástica acontecera, a ela,ElspethMcGillicuddy! Se a cortina da vagão não se tivesse erguido...Masisso por certo fora obra da Providência. A Providência quisera que ela,Elspeth McGillicuddy, testemunhasse o crime. Seus lábios se cerraramnumalinhaquedenotavaohorrorquesentia.

Ouviram-se vozes gritando, apitos e portas se fechando comestrondo.O tremsaiu lentamentedaestação,àscincoe trintaeoito.UmahoraecincominutosdepoisparavaemMilchester.

Mrs.McGillicuddypegouseusembrulhosemalaedesceudotrem.Olhou para ambos os lados do cais. O seu espírito reiterava a opiniãoanterior:nãohaviacarregadoressu icientes.Osquehaviapareciamestarocupados com asmalas de correio e comos vagões de bagagem. Parecia

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que, hoje em dia, competia aos passageiros transportarem a própriabagagem. Mas ela não podia andar com a mala, o guarda-chuva e todosaquelesembrulhos.Esperaria.Porfim,conseguiuarranjarumcarregador.

–Táxi?–Esperoquehajaalguémaminhaespera–redarguiu.Láfora,àportadaestaçãodeMilchester,ummotoristadetáxi,que

estiveraobservandoasaídadaspessoas,adiantou-se. – ÉMrs.McGillicuddy? – perguntou. – Vai para SaintMaryMead?

Mrs. McGillicuddy con irmou sua identidade, e o carregador foidevidamente recompensado. O carro, transportandoMrs. McGillicuddy, amala e os embrulhos, afastou-se na noite. Depois de um percurso dequinze quilômetros, o táxi seguiu ao longo da familiar rua da aldeia eacabou por parar.Mrs.McGillicuddy desceu e subiu o caminho de tijolosaté a porta. Uma criada demeia-idade veio abrir e omotorista pousou amala e os embrulhos no interior da casa.Mrs.McGillicuddy atravessou osaguãoeentrounasaladeestarondeadonadacasa,umasenhoraidosaedeaparênciafrágil,aguardava.

–Elspeth!–Jane!Beijaram-see,semqualquerpreâmbulo,Mrs.McGillicuddycomeçou

afalar.–Oh,Jane!–gemeu.–Acabodepresenciarumassassinato!

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II

Fiel aospreceitosque lhe tinhamsido transmitidospela avó epelamãe – entre os quais, a saber, uma verdadeira senhora nunca se podemostrar chocada nem surpreendida, Miss Marple limitou-se a erguer assobrancelhas e a menear a cabeça, dizendo: – Isso é um acontecimentohorrível, Elspeth, e deveras invulgar. Creio que será melhor me contartudosemdemora.

EraprecisamenteissooqueMrs.McGillicuddyqueriafazer.Depoisdesesentaraoladodaamiga,pertodalareira,Mrs.McGillicuddytirouasluvasemergulhounanarrativavivida.

Miss Marple escutava cheia de atenção. Quando, fmalmente, Mrs.McGillicuddy fez uma pausa, para tomar fôlego, Miss Marple falou comdecisão.

–Creioqueamelhorcoisaqueafazer,minhaboaElspeth,éirláemcima, tirarochapéuese lavar.Depoiscearemos...e,enquantoo izermos,nãofalaremosemnadadisto.Depoisdaceia,então,sim,poderemosvoltaranosocupardoassuntoeadiscuti-lo,sobtodososaspetos.

Mrs. McGillicuddy concordou com a sugestão. As duas senhorasjantaram,conversando,enquantocomiam,sobreosváriosaspetosdavidanaaldeiadeSt.MaryMead.MissMarplecomentouanaturaldescon iançaque o novo organista despertava, relatou o escândalo recente acerca damulherdofarmacêuticoereferiu-seàhostilidadeexistenteentreamestra-escolaeo InstitutoFemininodaaldeia.Depois,aconversaversousobreojardimdecadauma.

– As peónias – sentenciouMissMarple, ao levantar-se damesa –são muito falsas. Umas vezes resistem, outras secam. Mas, se chegam acriarraízes,duramumavidainteira,comosecostumadizer,ehojeemdiaexistemvariedadesverdadeiramentebelas.

Voltaram a instalar-se junto à Iareira, desta vez com dois copos e

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umagarrafadeleite.–Estanoite,Elspeth,nãotomascafé–disseMissMarple.–Jáestás

muitoexcitada,oquenãoédeadmirar,eprovavelmentenãoconseguirásdormir.Receitoumcopodomeuvinhodevacae,talvezmaistarde,tambémuma xícara de camomila. Mrs. McGillicuddy concordou e Miss Marpleencheu-lheocopo.

–Jane–começouMrs.McGillicuddy,enquantobebiaumgole–,nãoachasqueoqueconteisetratadeumsonhooudeimaginaçãominha,nãoé?–Claroquenão–assegurouMissMarplecomardor.

Mrs.McGillicuddysoltouumsuspirodealívio. – O revisor – continuou –, esse achou que eu sonhara. Foi muito

delicado,mas... – Acho, Elspeth, que isso foi natural, se atendermos às

circunstâncias.Pareceu...eaindaparece...umahistóriadeveras incrível.Eeras completamentedesconhecida.Não,não tenhodúvida algumadequeviste o que me contaste. É muito extraordinário... mas de forma algumaimpossível. O homem estava virado de costas para ti, segundo dizes. Porconseguinte,nãovisteseurosto?–Não.

–Eéscapazdedescreveramulher?Nova,velha?–Maisnovadoquevelha,entreostrintaeostrintaecincoanos.–Bonita?–Tambémnãopossodizer.Tinhaorostoconvulsionadoe... Miss Marple apressou-se a dizer: – Sim, sim, compreendo

perfeitamente. Como estava vestida? – Com um casaco de peles, de umacorpálida.Estavasemchapéuetinhacabelolouro.

– Não havia nenhuma nota distintiva no homem de que te possasrecordar?Mrs.McGillicuddvlevoualgumtempopensandocuidadosamenteantes de responder: – Era alto... e moreno, creio. Trajava um casaco defazenda grossa e, por conseguinte, não sei bem se era forte oumagro –acrescentou desanimadamente. – Na realidade, estes dados não são degrandeutilidade.

– Já são sim – animou Miss Marple. Fez uma pausa e depoisperguntou:–Tenscertezadequeamoçaacabou...morta?

–Absoluta.Tinhaalínguatodaparaforae...prefronãofalarnisso...–Claro,claro–apressou-seMissMarpleaconcordar.–Amanhãde

manhãesperoquesaibamosmaiscoisas.–Amanhãdemanhã?– Calculo que a notícia saia nos jornais. Depois de esse homem

atacaremataressamulher, icoucomumcadáver.Oquefezcomele?Édepresumirqueseapressouasairdotremnaprimeiraestação...apropósito,

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recordasseovagãotinhacorredor?–Não,nãotinha.– Issoparece indicarum tremquenão fazpercursomuito longo.E

quase certo ter parado em Brackhampton. Digamos que desceu do tremem Brackhampton, talvez depois de ter posto o cadáver num canto doassento, com o rosto escondido pela gola de peles, para, desse modo,retardar suadescoberta. Sim...Achoque foi issoque ele fez.Maso crimenão tardará com certeza a ser descoberto... e calculo que a notícia venhapublicadanosmatutinosdeamanhã.Veremos.

Porém,talnãoaconteceu.MissMarpleeMrs.McGillicuddy,depoisdesecerti icaremdequea

notíciadocrimenãoforapublicadanosjornais,acabaramocafédamanhãem silêncio. Estavam ambas imersas em profundas re lexões. Depois docafé da manhã deram uma volta pelo jardim, mas esse passatempo, emgeralabsorvente,foinessediaumpoucoforçado.MissMarplechamoudefato a atenção da amiga para alguns espécimes raros e novos queadquirira,masofezdistraidamente.

EMrs.McGillicuddy,contraocostume,nãorespondeucomumalistadassuasrecentesaquisições.

–O jardimnãoestácomodeviaestar–disseMissMarple,demodoabstrato. – Dr. Haydoce me proibiu terminantemente que me abaixe ouajoelhe,mas,narealidade,oquepodeumapessoafazersemseabaixarouajoelhar?

–Tenstodaarazão–disseMrs.McGillicuddy.–Comigo,nãoocorreomesmo,mas a verdade é que depois das refeiçõesme custamuitomeabaixar.

Seguiu-seumsilêncioqueMrs.McGillicuddy interrompeu,por im,perguntando:

–Então?Apenasumapalavrainsigni icanteque,comotomcomqueMrs. McGillicuddy a proferiu, icou muito signi ïcativa, e Miss Marplecompreendeuperfeitamenteseusignificado.

Asduassenhorasseentreolharam.–Acho–opinouMissMarple–quedevíamosiràpolíciafalarcomo

sargento Cornish. É inteligente e paciente, além de que nos conhecemosmuito bem. Acho que nos dará ouvidos e comunicará o caso à delegaciadevida.

Emconsequênciadisso,cercadetrêsquartosdehoradepois,MissMarpleeMrs.McGillicuddyconversavamcomumhomemderostoseveroe barbeado, que aparentava os seus trinta e tantos anos e escutava com

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atençãooqueasduasdiziam.FrankCornishrecebeuMissMarplecomummistodecordialidadee

deferência. Ofereceu cadeiras às duas senhoras e perguntou: – Em queposso ser-lhe útil, Miss Marple? Esta retorquiu: – Gostaria que izesse ofavor de ouvir a história que aminha amigaMrs.McGillicuddy tem paracontar.

E o sargento ouviu. Depois de Mrs. McGillicuddy ter acabado orelato, o sargento icou calado durante alguns momentos, indo os quaisdisse:

– Trata-se de uma história muito extraordinária. – Os seus olhostinhamdisfarçadamente feitoumexameapreciativodeMrs.McGillicuddyenquanto esta falava. Esse exame o impressionara demaneira favorável.Tratava-se de uma mulher inteligente, capaz de expor devidamente umcasoe,peloquelheeradadoachar,nadatinhadeexageradaouhistérica.Além disso, Miss Marple, segundo parecia, acreditava na veracidade dorelatodaamigaeeleconheciamuitobemMissMarple.TodososhabitantesdeSt.MaryMeadconheciamMissMarple:deaparênciabonacheirona,masdeespíritotãovivoeargutoquantopossível.

Pigarreou e disse: – Evidentemente que pode ter se enganado...Notequenãodigoqueseenganou...Maspodeterseenganado.Háimensasbrincadeirasdemaugosto...epodenãotersidoumcasosériooufatal.

–Euseibemoquevi–insistiuMrs.McGillicuddyinflexivelmente.“Enãomudadeopinião”,pensouFrankCornish“mastantopodeter

razãocomonão”.Emvozaltadeclarou:–Asenhoracontouoqueviuaosempregados da ferrovia e me procurou para contar também. Procedeucomodevia e pode estar descansada que tambémmandarei proceder aodevidoinquérito.

Calou-se.MissMarplemeneouacabeça,satisfeita.Mrs. McGillicuddy não sentia igual satisfação, mas nada disse. O

sargentoCornishperguntouaMissMarple:–Admitindoqueosfatossejamesses,oqueachaquetenhaacontecidoaocorpo?

– Parece haver apenas duas possibilidades – respondeu MissMarple,semhesitar.–Amaisplausivelé,certamente,terocorpo icadonotrem, mas isso agora parece improvável, uma vez que deveria ter sidoencontrado na noite passada, por outro viajante ou pelo pessoal daferrovia,naúltimaestaçãodoitineráriodotrem.

FrankCornishmeneouacabeçacomumaraprovador.–Aúnicaoutrasaídaaodispordoassassinoseriaatirarocorpodo

tremna linha férrea.Achoquedeve estar aindapara ser descoberto em

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qualquer ponto do trajeto, embora issome pareça umpouco improvável.Masachoquenãopodehaverumaterceirasaída.

–Temosnotíciasdecorposquesãometidosemmalões–disseMrs.McGillicuddy –, mas hoje em dia ninguém viaja com malões e sim commalaspequenas.Ora,nãoépossívelmeterumcorponumamaladessas.

– Sim, concordo com ambas – disse o sargento. – O cadáver,admitindoqueexiste,aestahorajádeveriatersidodescoberto,ouentãooserámuitoembreve.Euasinformareidoquesoubersobreocaso,emborasuponha que possam ler nos jornais. Há, é claro, a possibilidade de amulher não termorrido, apesar de barbaramente atacada. Pode ter sidocapazdesairdotremporseusprópriospés.

–Di icilmente o conseguiria sem ajuda – opinouMissMarple. – E,nessecaso,serianotadaasuasaídaapoiadaemalguém.

–Sim,teriasidonotada–concordouCornish.– E, se alguma mulher foi encontrada desmaiada ou doente num

vagã,e transportadaparaohospital, isso tambémteria sidonotado.Achoque,muitoembreve,ouvirãonotíciasdocaso.

Mas esse dia e o seguinte passaram sem novidade. Na noiteseguinte,MissMarplerecebeuumbilhetedosargentoCornish.

Emreferênciaaoassuntosobreoqualmeconsultou,foramrealizadasaveriguações, semresultado.Nãoseencontrouqualquercadáverdemulher.Nenhumhospitaldispensoutratamentoaumamulhercomodescreveuenãose veri icougualquer casodeumamulherdesmaiadaoudoente ter saumaestação nos braços de um homem. Pode ter certeza de que foi feita umainvestigação. Talvez sua amiga tenha presenciado uma cena como a quedescreveu,masmenossériadoquesupôs.

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III

– Menos séria! Tolices! – proferiu Mrs. McGillicuddy. – Foi umassassinato!Olhavadesa iadoramenteparaMissMarplequelheretribuiuoolhar.

–Vamos, Jane!– incitouMrs.McGillicuddy.Diztambémquefoiumenganomeu!Dizquefoitudoimaginaçãominha!Éissooquepensas,nãoéverdade?

– Qualquer pessoa pode enganar-se – observou Miss Marple comdelicadeza. –Qualquer pessoa, Elspeth... até tu. Achoquenunca devemosnos esquecer disso. Mas, sabes, continuo pensando que é mais provávelquenãotetenhasenganado...Usasóculosparaler,masvêsmuitobemdelonge... e o que viste impressionou-te profundamente. Quando aquichegaste,aindanãoterefizerasdacomoção.

–Éumacoisaquenuncaesquecerei – a iançouMrs.McGillicuddy,estremecendo.–Opioréquenãoseioquefazer!

– Não me parece que possas fazer mais alguma coisa do que jáizeste – disse Miss Marple pensativamente. – Participaste o que viste afuncionários da ferrovia e à polícia. Não, não podes fazer mais coisaalguma.

–Isso,pelomenos,jáéumalívio,porque,comosabes,partoparaoCeilão logodepoisdoNatal,parapassarumtempoemcasadeRoderickenãoqueroadiaressavisitacomquesonhohátantotempo.Éevidentequeseomeudeverfosseadiá-la,euofaria...–acrescentouconscientemente.

–Estoucertadequesim,Elspeth,mas,comojátedisse,achoquejáfizestetodoopossível.

– A polícia é que tem de se encarregar do caso, sentenciou Mrs.McGillicuddy.–Eseapolíciaquerserestúpida...

MissMarpleabanouacabeçacomdecisão.–Não,não–contrariou–,apolícianãoéestúpida. Istoaté tornao

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caso mais interessante, não achas? Mrs. McGillicuddy olhou-a semcompreender, e Miss Marple con irmou sua opinião de que a amiga eraumamulherdeexcelentesprincípios,masdestituídadeimaginação.

– Gostaria de saber o que na realidade aconteceu – disse MissMarple.

–Foiassassinada. – Sim, mas quem a matou, por que e o que aconteceu ao corpo?

Ondeestáeleagora?–Competeàpolíciadescobrirtudoisso. – Exatamente... mas ainda não o descobriu. Isso signi ica que o

homem era inteligente... muito inteligente. Não consigo imaginar –prosseguiuMissMarplefranzindoosobrolho–comosedesembaracoudocorpo...Assassinaumamulhernumacessode fúria...Essecrimenãodeveter sido premeditado, pois nunca se escolheria um tal momento paracometê-lo, nessas circunstâncias, poucosminutos antes de o trem entrarnuma grande estação. Não, deve ter sido uma discussão, por ciúme...qualquer coisa assim. Estrangulou-a. Que outra coisa poderia fazer a nãoser,como jádisse,pôrocorponumcantosdapoltrona,comoseestivessedormindo, rosto coberto, e depois sair do trem tão depressa quantopossível?Nãovejooutrapossibilidade...e,contudo,deveterhavidouma...

MissMarpleperdeu-seempensamentos.Mrs.McGillicuddydirigiu-lheapalavra,porduasvezes,antesdeela

responder.–Estásficandosurda,Jane. – Um pouco, talvez. Parece que as pessoas não proferem as

palavras tão nitidamente como o faziam. Mas o caso agora não foi esse.Creidooquenãoestavatedandoatenção.

–EstavafalandonostremsdeamanhãparaLondres.Achasbomoda tarde?Vou à casadeMargaret e elanãome espera antesdahoradochá.

– Por que não vais antes, no das doze e quinze? Poderíamosalmoçarmaiscedo!–Certamentee...

MissMarpleprosseguiu,abafandoo somdaspalavrasdaamiga:–TalvezMargaretnãose importequenãovás lá lançharequesócheguesporvoltadassete?Mrs.McGillicuddyolhoucuriosamenteparaaamiga.

–Qualéatuaideia,Jane?– Sugiro, Elspeth, que vamos ambas a Londres e que voltemos a

Brackhamptonno trememqueviajastenooutrodia.Depois seguiriasdeBrackhamptonparaLondreseeuviriaatéaquicomotufizeste.Éclaroqueasdespesasdetudoissocorremporminhaconta–MissMarpleacentuou

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bemestepontodaquestão.Mrs.McGillicuddyignorouoaspetofinanceiro.–Quediaboesperas,Jane?–perguntou.–Outroassassinato?– Certamente que não – respondeu Miss Marple chocada. – Mas

confessoqueme agradarivendo euprópria, sob a tua orientação o... o... éna realidademuito di ícil encontrar o termo conveniente... o ambiente docrime.

Assim,nodiaseguinte,MissMarpleeMrs.McGillicuddyachavam-se,emfrenteumadaoutra,juntoàjaneladeumvagãodaprimeiraclassequesaíradePaddington,Londres,àsquatrohorasecinquentaminutos.

Nessa ocasião, nenhum trem corria paralelo ao delas. De vez emquando, cruzavam-se com trens que vinham para Londres. Mrs.McGillicuddyconsultava,repetidasvezes,orelógio.

– É di ícil dizer em que altura foi... tínhamos passado por umaestação...masestávamoscontinuamentepassandoporestações.

– Devemos chegar a Brackhampton dentro de cinco minutos –anunciouMissMarple.

Um revisor apareceu na entrada do compartimento, Miss Marpleergueu o olhar interrogativamente eMrs.McGillicuddymeneou a cabeçadeumladoparaooutro.Nãoeraomesmorevisor.Estefurouosbilheteseretirou-se, cambaleando um pouco, porque o trem, nessa altura,descreveraumacurvaapertada.Aofazê-loreduziuavelocidade.

– Calculo que estejamos chegando a Brackhampton – disse Mrs.McGillicuddy.

–Estamosentrandonossubúrbios–declarouMissMarple. Passavam por luzes, por casas e ruas e bondes. A velocidade do

tremcaiuaindamais.Começaramapassarporcruzamentosdelinhas.–Chegamosdentrodeumminuto–anunciouMrs.McGillicuddy–e,

para dizer a verdade, não parece que este dia tenha sido proveitoso.Sugeriu-te alguma coisa, Jane? – Não – replicou Miss Marple, numa vozhesitante.

– Foi uma lamentável perda de dinheiro – comentou Mrs.McGillicuddy,emboracommenosdesgostodoqueteriaseodinheirofosseseu.

–Apesardisso–declarouMissMarple–,umapessoagostadevercomosprópriosolhosolugarondeumacoisaaconteceu.Estetremchegoucomumatrasodealgunsminutos.Nasexta-feira,oteuchegounahora?–Creioquesim,mas,narealidadenãonotei.

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O trem parou lentamente junto à estação de Brackhampton e foilogoinvadidoporumamultidãoquesemoviaapressadadeumladoparaooutro.

Miss Marple pensou que seria fácil para um assassino se meterentreamultidão, sairdaestaçãonomeiodaquelamassadegentequeseapertava ou até escolher outro vagão e continuar no trem até a últimaestação de seu destino. Era fácil ser um passageiro entremuitos, mas jánãoeraigualmentefácilfazerdesaparecerumcadávernoar.Essecadáverdeviaestaremalgumlado.

Mrs.McGillicuddydesceradotremefalavaagoradocaisdaestaçãocomaamiga,debruçadaàjaneladocompartimento.

–Temcuidadocomvocê,Jane–recomendou.Nãoapanhesfrio.Estaépocadoanoémuitotraiçoeiraejánãoéstãoresistentecomoantes.

–Bemsei–replicouMissMarple.–Enãonospreocupemosmaiscomisto.Fizemosoquepodíamos.MissMarpleaquiesceucomummovimentodecabeçaeaconselhou:

–Não iquesparadaaínofrio,Elspeth.Vê láseéstuquemseresfria.Vaitomarumaboaxícaradechánobufê.Faltamdozeminutosparaoteutremchegar.

–Creioquevouseguirteuconselho.Adeus,Jane. – Adeus, Elspeth. Um feliz Natal. Desejo que encontres bem

Margaret. Diverte-te no Ceilão e dá lembranças minhas ao queridoRoderick...seéqueeleaindaselembrademim,doqueduvido.

– Com certeza que se lembra de ti... muito bem até. Quando eleestava na escola, ajudaste-o num caso qualquer em que desapareceradinheirodeumarmárioeelenuncaseesqueceudisso.

Mrs.McGillicuddyafastou-se,soouumapitoeotremcomeçouasemover.

MissMarplenãoserecostounoassentoquandoo tremcomeçouaganhar velocidade. Em vez disso, icou sentada, muito reta, imersa emprofundacogitação.Tinhaumproblemaaresolver,oproblemadaprópriaconduta futura, e, talvez por estranha coincidência, este se apresentoucomoparaMrs.McGillicuddy,istoé,umaquestãodedever.

Mrs. McGillicuddy dissera que ambas tinham feito tudo todo opossível.NoquesereferiaaMrs.McGillicuddyissoeraverdade,mas,pelapartequelhetocava,MissMarplenãotinhaamesmacerteza.

Com frieza, como um general que planejasse uma campanha,aprecioudevidamenteospróseoscontrasdeumafuturaatitude.Entreosprimeiros,osseguintes:

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1. – Minha longa experiência da vida e conhecimento da naturezahumana.

2.–SirHenryClitheringeseua ilhado(agoracreioquenaScotlandYard)quefoitãosimpáticonocasoLittlePaddocks.

3. – O segundo ilho do meu sobrinho Raymond, David, que está,tenhoquasecerteza,trabalhandonaferroviabritânica.

4.–Leonardo,daGriselda,quesabemuitodemapas.Miss Marple reviu estas anotações e aprovou-as. Eram todas

indispensáveis para investigar,mas reforçavam sua fraqueza ísica. “Nãoposso icar andando de um lado para o outro”, pensou, fazendoinvestigações e descobrindo coisas. Sim, a principal objeção era essa – asua idade e a sua fraqueza, embora, pela idade, sua saúde fosse boa. “Jáestouvelhaparamaisaventuras”,considerou,observandodistraidamentepelajanelaacurvaqueotremdescreviaaolongodeumaravina.

Umacurva...Muitodelevealgolhedespontounoespírito...Precisamenteofatodeorevisorlhesterfuradoosbilhetes...Issosugeriu-lheumaideia.Apenasumaideia.Umaideiainteiramentediferente...“AmanhãdemanhãescrevereiaDavid”,prometeuasiprópria. E, ao mesmo tempo, outra ideia lhe perpassou pelo espírito.

“Certamente.AminhadedicadaFlorence!”MissMarpletraçou,demaneirametódica,oseuplanodecampanha.EscreveuaDavidWest,seusobrinhoem segundo grau, desejando boas-festas e pedindo uma informaçãourgente.

Porsorte,aexemplodosanosanteriores, foiconvidadaa jantarnopresbitério no dia do Natal e pôde conversar sobremapas com o jovemLeonard,queforapassarcomafamíliaasemanadoNatal.

ApaixãodeLeonarderamosmapasdetodasasespécies.Arazãoque levava uma senhora de idade a interrogá-lo sobre um mapa emgrandeescaladeumacertaáreanãolhedespertoucuriosidade.EncontrouomapaqueMissMarplepretendia entreosque formavamsua coleçãoeemprestou-o à idosa senhora, que prometeu termuito cuidado comele edevolverlogoquefossepossível.

– Mapas! – admirou-se Griselda, a mãe de Leonard, que, emborativesseum ilhocrescidopareciamuitojovem.–Paraqueelaquermapas?–Nãosei–replicouofilho.–Creioquenãochegouadizer.

– Gostaria de saber – disse Griselda. – Acho issomuito estranho...Naquelaidade,jánãosedeviasemeternessascoisas.

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Leonard perguntou de que coisa se tratava e Griselda respondeuelucidativamente: – Meter o nariz em coisas estranhas. Por que mapas,gostariaeudesaber...

Pouco tempo depois, Miss Marple recebeu uma carta do sobrinhoDavidWest.

“Querida tia Jane: Que anda fazendo? Já tenho a informação quequeria.

Há apenas dois trems que correspondem ao que disse: o das quatrohorasetrintaetrêsminutoseodascincohoras.OprimeiroparaemHalingBroadway, Barwell Heath, Brackhampton e estações seguintes até MarketBasing.OdascincohoraséoexpressoescocêsquevaiparaCardiff,Newporte Swansea. O primeiro pode ser ultrapassado pelo das quatro horas ecinquenta minutos, embora deva chegar a Brackhampton cinco minutosmais cedo, e o último passa pelo das quatro e cinquenta pouco antes deBrackhampton.

Devo farejar em tudo isto um escândalo de aldeia? Acaso a tia aoregressardeumdiadecomprasnacidade,pelotremdasquatroecinquentaviu,numoutro trem,oministrodaSaúdebeijaramulherdopresidentedaCâmara?Masque importaotrememqueissoaconteceu?Talvezum imdesemana em Porthcawl? Obrigado pela camisa. É exatamente o que euprecisava. Como está o jardim? Calculo que, nesta época do ano, não estejamuitobonito.

SeuafeiçoadoDavid.”MissMarple sorriu e considerou a informação que o sobrinho lhe

dera. Mrs. McGillicuddy fora bem irme ao dizer que o vagão não tinhacorredor. Por conseguinte, não se tratava do expresso Swansea. Tudoindicavaotremdasquatroetrintaetrês.

Parecia-lheinevitávelumaoutraviagem.MissMarplesuspirou,masfezseusplanos.

Voltou a Londres como anteriormente, no trem das doze horas equinzeminutos,porémdestaveznãoregressounodasquatroecinquenta,mas sim no das quatro e trinta e três até Brackhampton. A viagemdecorreusemincidentes,masMissMarpleregistroucertospormenores.Otremnãoiasuperlotado,poispartiraantesdahoradograndemovimento.Dos vagões da primeira classe apenas um tinha ocupante: um senhormuito idoso entretido a ler o New Statesman. Miss Marple viajou numcompartimentovazioe,porocasiãodasduasparadas,HalingBroadwayeBarwell Heath, debrucou-se da janela para observar os passageiros queentravam e saíam do trem. Um pequeno número de passageiros da

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terceira classe entrou em Haling Broadway. Em Barwell Heath saíramváriospassageirosdaterceiraclasse.Ninguémentrouousaiudeumvagãodaprimeiraclasse,excetoosenhoridosoqueliaoNewStatesman.

QuandootremseaproximavadeBrackhamptondescrevendoumacurva,MissMarplepôs-sedepéepostou-se,experimentalmente,decostasviradasparaajanela,cujacortinaerguera.

Sim, eranatural que esta se tivesse erguido com facilidadedevidoao ímpeto da curva apertada que, decerto, desequilibrara alguém queestivessedepéefossebaternacortina.

Espreitouointeriordajanela.Láfora,estavamenosescurodoquequandoMrs.McGillicuddy izeraamesmaviagem,maspoucosevia.Teriadefazeraviagemdedia.

Nodia seguinte foi a Londresno tremdamanhã, comprouquatrofronhas de linho, para aliar a investigação à provisão de necessidadesdomésticas, e regressou num trem que partia de Paddington às doze equinze.Voltouaseacharsozinhanumvagãodaprimeiraclasse.

“A razão está nestes novos impostos”, pensou Miss Marple.“Ninguém se permite viajar de primeira classe, a não ser os homens denegóciosnashorasdemovimento.”Cercadeumquartodehoraantesdachegada prevista a Brackhampton, Miss Marple pegou o mapa queLeonardlhearranjaraecomeçouaobservarapaisagem.Antesjáestudaracuidadosamenteessemapa,edepoisdenotaronomedeumaestaçãopelaqual tinha passado, em breve pôde identi icar o lugar em que estava,quando o trem comecou a reduzir amarcha para fazeer uma curva. Erauma curvamuito apertada. MissMarple, com o nariz colado ao vidro dajanela, estudava o terreno a seus pés, com grande atenção. Dividiu suaatençãoentreocampoláforaeomapa,atéque,por im,otrementrouemBrackhampton.

Nessa noite, escreveu e pôs no correio uma carta para MissFlorenceHill,moradoranonº4daMadisonRoad,emBrackhampton...Namanhãseguinte,aodirigir-seàBibliotecaMunicipal,estudouumguiaeumroteiro de Brackhampton. Até então, nada contrariara a ideia, ainda malconcretizada, que lhe ocorrera ao espírito. O que ela imaginara erapossível.Mas o passo seguinte requeria acção, uma boa dose de acção, ogênerodeacçãoparaoqualnãoera isicamenteapta.Precisavadoauxíliodeoutrapessoa.

Mas... quem? Miss Marple reviu vários nomes e possibilidades,rejeitando todos com ummovimento de cabeça impaciente emorti icado.As pessoas inteligentes em que podia con iar estavam todas muito

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ocupadaseasquenãoeramtãobemdotadasdeespíritonãolheserviam.Depois de chegar a esta conclusão, Miss Marple sentiu-se ainda maisperplexa.Então,subitamente,afrontedesanuviou-se-lhe.

Proferiuumnomeemvozalta:–LucyEyelesbarrow!

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IV

O nome de Lucy Eyelesbarrow era muito conhecido em certoscírculos. Lucy Eyelesbarrow tinha trinta e dois anos. Licenciara-se emMatemática com distincão em Oxford, possuía um espírito brilhante eesperava seguir uma distinta carreira acadêmica. Mas, além disso, LucyEyelesbarrow era dotada de uma boa dose de senso comum. Não podiadeixarde reconhecerqueumavida, toda ela dedistinção académica, erasingularmente mal recompensada. O professorado não a atraía e tinhaprazeremestaremcontatcomespíritosmuitomenosbrilhantesqueoseu.Em resumo, gostava de pessoas, todo gênero de pessoas, não sempre asmesmas.Edeve-sedizertambémquegostavadedinheiro.

Para se ganhar dinheiro deve-se tirar partido das faltas. LucyEyelesbarrow aproveitou-se imediatamente de uma falta muito séria: afaltadetodaespéciedepessoaldomésticohábil.Comgrandeespantodosamigosecolegas,LucyEyelesbarrowdedicou-seaotrabalhodoméstico.

Seu êxito foi imediato. Pouco depois, era conhecida em todas asIlhas Britânicas. Era costume as mulheres dizerem aos maridos: “Sim, jápossoteacompanhar.TenhoLucyEyelesbarrow!”Issosedeviaaque,malLucyEyelesbarrowentravanumacasa, acabavamtodasaspreocupações,aborrecimentos e ansiedades domésticas. Lucy Eyelesbarrow fazia tudo,viatudo,arranjavatudo.Eraextraordinariamentecompetente.Cuidavadepessoasdeidade,tomavacontadecrianças,tratavadosdoentes,cozinhavadivinamente, dava-se bem com qualquermembro do pessoal antigo que,poracaso,houvessenascasas,mostrava-secheiadetatonasrelaçõescompessoasintratáveis,acalmavaosébriosinveteradoseeramaravilhosacomoscães.

Uma de suas regras era nunca aceitar um contrato por tempodeterminado.Seuperíodohabitualnunca iaalémdequinzedias...quandomuito,deummês, emcircunstâncias excepcionais.Masessesquinzedias

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saíam os olhos da cara a quem os pagava! Porém, durante esses quinzedias,avidaeraumparaíso.

Lucy Eyelesbarrow leu e releu a carta de Miss Marple, queconheceradoisanosantesquandotrabalharaparaoromancistaRaymondWest,queaincumbiradecuidardavelhatiaconvalescentedepneumonia.LucyaceitaraolugareforaparaSt.MaryMead.

Simpatizara muito com Miss Marple e esta lhe escrevera agorapedindo um encontro para discutirem um caso invulgar. LucyEyelesbarrow franziuo sobrolho, enquanto re letia.Na realidade, já tinhatodootempotomado.MasapalavrainvulgarearecordaçãoqueguardavadapersonalidadedeMissMarplealevaramatelefonarexplicandonãoserpossível iraSt.MaryMeadporteroque fazernomomento,masdizendoestar livre das duas às quatro da tarde seguinte, e podendo entãoencontrarMissMarpleemqualquerpontodeLondres.Sugeriuoclubedequeerasócia,umlocalquetinhaavantagemdecontarváriosgabinetesdeleiturasombriose,regrageral,vazios.

MissMarple aceitoua sugestãoe, nodia seguinte, encontraram-senolugrcombinado.

LucyEyelesbarrowconduziuavisitaaomaissombriodosgabinetesdeleituraedeclarou:–Receionãotertempodisponível,nestaaltura,mastalvezpossadizerdoquepretendemeencarregar.

–Paradizer a verdade, trata-sedeumcasomuito simples –disseMissMarple.–Invulgar,massimples.Queroquedescubraumcadáver.

Por um momento o espírito de Lucy pensou que Miss Marpleestivesse mentalmente desequilibrada, mas logo rejeitou essa ideia. MissMarple era uma pessoa extraordinariamente lúcida de espírito. Sabiamuitobemoquedissera.

– Que espécie de cadáver? – perguntou Lucy Eyelesbarrow comadmirávelcompostura.

–Umcadáverdemulher–explicouMissMarple.–Ocorpodeumamulherquefoiassassinada,aliás,estrangulada,numtrem.

Lucyergueulevementeosobrolho.–Trata-senaverdadedeumcasoinvulgar.Fale-medele. Depois de Miss Marple ter acabado de contar os fatos, Lucy

Eyelesbarrowperguntou:–Tudoissodependedoqueasuaamigaviu...ouachouver?...

Deixouafraseporterminarcomumpontodeinterrogaçãonofim.–ElspethMcGillicuddynão imaginacoisas,a iançouMissMarple.–

Porissoacreditonoqueeladisse.SetivessesidoDorothyCartright...então

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o caso seria completamente diferente. Dorothy está sempre contadohistórias que, embora tenham uma certa base de verdade, são bastanteimaginosas. Mas Elspeth é o gênero de mulher que di icilmente acreditaemcoisasextraordinárias.

–Compreendo–disseLucy,demodopensativo.–Qualomeupapelno caso? – Tenho muita boa impressão a seu respeito, declarou MissMarple –, e, bem vê, hoje em dia não tenho a robustez ísica necessáriaparamemexerdeumladoparaooutroefazercoisas.

–Querqueeu investigue?É isso?Masapolícianãoo fez?Ouachaquenãoderambastanteatençãoaocaso?

–Não,nãoé isso.Trata-sedoseguinte: tenhouma teoriaacercadocorpodamulher.Temdeestaremalgumlugar.Senãooencontraramnotrem,devetersidojogadodotrem;mastãopoucoodescobriramaolongoda linha. Por conseguinte, iz o mesmo caminho de trem parvendo sehaveriaalgumlugarondeocorpopudessetersidojogadodotrem,semtersidoencontradonalinha...eachei.AslinhasdaferroviafazemlongacurvaantesdeBrackhampton,contornandoumaaltaravina.Achoqueseocorpotivessesidolançadonessacurvateriaidopararnofundodaravina.

–Mascertamenteseriaencontrado...mesmoaí.–Sim.Serianecessárioqueo levassem...Mas jáchagaremosa isso.

Aquiestáolocal...nestemapa. Lucy inclinou-se para estudar o sítio que o dedo de Miss Marple

apontava.–Hojeemdia icamesmonaentradadeBrackhampton–explicou

Miss Marple –, mas originariamente era uma casa de campo com umparque grande e terrenos. Ainda lá está, intata, rodeada por pequenascasas suburbanas. Chama-se Rutherford Hall. Foi construída em miloitocentos e oitenta e quatro por um riquíssimo industrial, chamadoCrackenthorpe. Hoje vive lá com uma ilha um homem de idade, ilho dooriginalCrackenthorpe.Aferroviarodeiametadedapropriedade.

–Equerqueeufaça...oquê?MissMarplereplicou,comprontidão:–Queroquearranjeempregonessa casa.Todomundosequeixade faltadepessoaldomésticoeficiente.Achoquenãoserádifícil.

–Sim,nãocreioquesejadifícil. – Creio que Mr Crackenthorpe tem fama de avarento. Se ele lhe

pagarumsaláriobaixo,eulhedareiadiferencaparaoquesuponhoestejaacimadoqueécorrentepagar.

–Porcausadadificuldade?–Maispeloperigodoquepeladi iculdade.Podeserperigoso.Acho

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queémeudeverpreveni-la. – Não sei se a ideia de perigo me dissuadirá – retorquiu Lucy

pensativamente.–Achoquenão;vocênãoéessegênerodepessoa. –Achaque o perigome atrai?Naminha vida tenhomedeparado

commuitopoucoperigo.Masacharealmentequepossaserperigoso?–Alguémcometeuumcrime–observouMissMarple. –Nãohouve

alarido,nemselevantaramsuspeitasàvoltadele.Duassenhorasdeidadecontaram uma história muito inverosímil. A polícia investigou, mas nadaencontrou que lhe desse consistência. Por conseguinte, para o criminosotudocorreàsmilmaravilhas.

–Oquedevoprocurar?– Quaisquer vestígios ao longo da ravina, um farrapo de roupa,

arbustospartidos...essegênerodecoisas.Lucymeneoucompreensivamenteacabeça.–Edepois?–Estareimuitopertodevocê–continouMissMarple.–

Uma antiga criada minha, a minha dedicada Florence, vive emBrackhampton. Tratou durante anos dos pais, que eram velhos. Jámorreram,mas ela aceitahóspedes... Gentemuito respeitável. Cuidarádemim,cheiadesolicitude,esintoquemeagradaráestarali.Sugiroquedigateruma tiavelha,vivendonasvizinhanças,quedesejaarranjar colocaçãopertodelaequeprecisa tambémdealgumtempo livreparavisitá-lacomfrequência.

Lucyvoltouaaprovaraideiacomummeneiodecabeça.–TencionavapartirparaTaormina,depoisdeamanhã–anunciou.–

Masasfériaspodemesperar.Porém, só posso prometer-lhe três semanas. Depois disso, já estou

comprometida.– Três semanas serão su icientes – declarou Miss Marple. – Se

dentro de três semanas nada conseguirmos encontrar, podemos pôr oassuntodelado.MissMarplefoiemboraeLucy,depoisdeummomentodere lexão, telefonou para a Agência de Empregos de Brackhampton, cujadiretora conhecia muito bem. Expôs-lhe seu desejo de arranjar umacolocaçãonaregiãopoderficarpertoda“tia”.

Depoisdeouvirnomearváriascasasboas,ouviu,por im,onomedeRutherfordHall.

– Acho que essa casa é exatamente o que me convém – declarouLucycomfirmeza.

Aovolantedoseupequenoautomóvel,LucyEyelesbarrowtranspôs

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umimponenteportãodeferro.Malofez,viuoqueoriginalmenteforaumapequenacasadeguarda,masagoraestavacompletamenteemruínas;eradi ícildizer se isso sedeviaa estragos causadospelaguerraouapenasanegligência. Um longo caminho sinuoso, ladeado de ambos os lados porenormesmaciçosderododendros,levavaatéacasa.LucyarfouaoverqueacasaeraumaespéciedeminiaturadoCastelodeWindsor.Osdegrausdepedra, em frente da casa, requeriam atenção e o saibro estava verdedevidoasementesnegligenciadas.

Puxouumsinodemodelo antigo e seu som repercutiuno interiorda casa. Uma mulher de aspeto desalinhado, e que limpava as mãos noavental,veioabriraportaeolhouLucycomdesconfiança.

–Estavaàsuaespera–disse.–Miss “qualquercoisa...barrow”?Aagênciaavisou.

–Muitobem–disseLucy.O interior da casa era terrivelmente frio. Amulher conduziu Lucy

aolongodeumcorredorsombrioeabriuumaportaàdireita.Lucyachou-se, com grande surpresa, numa sala de estar de aspetomuito agradável,emquehavialivrosepoltronasforradascomchintz.

–Vouanunciá-la–disseamulher, retirando-se,depoisde fecharaportaedeterolhadoparaLucycomprofundodesagrado.

Passados alguns minutos, a porta voltou a se abrir. Lucy decidiulogoquegostariadeEmmaCrackenthorpe.Eraumamulherdemeia-idade,de aspeto comum, nem bonita nem feia, en iada numa saia de tweed enuma camisa, o cabelo preto puxado para trás, olhos cor de avelã e umavozmuitoagradável.

– Miss Eyelesbarrow? – perguntou, estendendo a mão. Depois,pareceuhesitante.

–Não sei se este lugar éna verdadeoqueprocura. Compreende,não é bem de uma governanta que preciso para olhar pelas coisas, massimdeumapessoaquetrabalhe.

Lucyreplicouserissooqueamaioriadaspessoasprecisava.EmmaCrackenthorpeprosseguiu,comardedesculpa:–Hámuitas

pessoasqueachamqueumasimpleslimpezadepóésu iciente...masissopossoeufazer.

–Compreendomuitobemoquepretende– interveioLucy.–Querumapessoaquecozinhe, lave,arrumeacasaealimentea fornalha.Muitobem.Éissoqueeufaço.Trabalhonãomemetemedo.

–Receioqueacheacasagrandeeincômoda.É certo que só habitamos uma parte... meu pai e eu. Está quase

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inválido. Vivemos aqui muito sossegados. Tenho vários irmãos, masraramente aparecem. Temos duasmulheres que trabalham por semana:Mrs.KiddervemtodasasmanhãseMrs.Hart,trêsvezesporsemana,paralimpareoutrascoisasnogênero.Temcarro?

– Sim. Pode icar ao ar livre se não houver garagem. Já estáhabituado.

–Oh,hámuitosestábulosvelhos.Quantoaisso,nãohádi iculdade.– Ficou por um momento de sobrolho franzido, e depois prosseguiu. –Eyelesbarrow... é um nome pouco vulgar. Uns amigos meus falaram-menumaLucyEyelesbarrow...osKennedy?

–Sim.EstivecomelesemDevonshirequandoMrs.Kennedvteveumbebé.

EmmaCrackenthorpesorriu. – Disseram-me que nunca tinham passado um tempo tão

maravilhosocomoaqueleemqueesteveemcasadeles.Maseuachavaqueseusaláriofossemuitoalto.Oqueeuofereci...

–Seidissomuitobem–atalhouLucy–,masestou interessadaemicarpertodeBrackhampton.Moraláumatiaidosa,muitodoente,equeroestarpertodela. Foi por issoque aceitei esse salário, contantoquepossateralgumtempolivrenamaiorpartedosdias.

–Comcerteza.Todasastardesatéasseis,selheconvier.–Perfeito.MissCrackenthorpehesitouummomentoantesdedizer:–Meupai

éumhomemdeidadee,porvezes...umpoucointratável.Temamaniadaeconomia e, ocasionalmente, diz coisas que sobressaltam as pessoas. Nãomeagradaria...

Lucy apressou-se a interromper: – Estou muito habituada a lidarcompessoasdeidadeedetodososgêneros.Consigosempremedarbemcomelas.

EmmaCrackenthorpepareceualiviada.DepoisdeconduzirLucyaseuquarto,umquartograndeesombrio

queumpequenoradiadorseesforçavaemvãoporaquecer,mostrou-lheoresto da casa, vasta e desconfortável. Ao passarem por uma porta quedavaparao saguão,umavoz rugiu: –És tu,Emma?Amoça jáveio?Trazaqui.Querovê-la.

EmmacoroueolhouanimadoramenteparaLucy.Asduasmulheresentraramnoquarto. Era ricamente acortinado, emveludo escuro, e tinhamóveis pesados da época vitoriana. O velho Mr. Crackenthorpe estavanumacadeiraderodas, tendoaseuladoumabengaladecastãodeprata.

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Eraumhomemalto,muitomagro,cujacarnependiaempregas lácidas.Orosto assemelhava-se ao de um buldogue de queixo saliente, cabelogrisalhoeolhospequenosedesconfiados.

–Ora,deixe-meolharvocê.Lucyadiantou-se,comcomposturaesorridente. – Há uma coisa de que deve entender antes demais nada. Não é

porquevivemosnumcasarãoquesejamosricos.Nãosomosricos.Vivemosdemaneira simples,ouviubem?Demaneira simples!Éescusadovir comfantasias. O bacalhau é tão bom comoo rodovalho; não se esqueça disso.Nãosuportodesperdícios.Vivoaquiporquemeupaiconstruiuestacasaegosto dela. Depois de eu morrer, poderão vendê-la se quiserem... esuponhoquenãoqueiramoutra coisa.Não têmo sentidoda família. Estacasafoibemconstruída...ésólida,etemimensoterrenoprivativoemvolta.Deste modo, podemos nos sentir retirados do resto do mundo. Sevendêssemos esse terreno para construções, conseguiríamos muitodinheiro,masissonãoaconteceráenquantoeuviver.

Lançouumolharferozàfilha.–Asuacasaéoseucastelo–disseLucy.–Estátroçandodemim?– Certamente que não. Acho que é muito excitante ter uma

verdadeiracasadecampo,rodeadapelacidade.– Exatamente. Daqui não se avista mais coisa alguma, só vemos

camposcomvacasbemnocentrodeBrackhampton.Quandooventosopranestadireção,chega,porvezes,oruídodotrânsito...masdecontrário,ésócampo.

Virou-se para a ilha e acrescentou, sem qualquer pausa oumudança de tom: – Telefona a essemalditomédico. Diz-lhe que o últimoremédionãoprestaparanada.

Lucy e Emma se retiraram. Mr. Crackenthorpe gritou: – E nãodeixesessamalditamulherquelimpaopóentraraqui.Desarrumoutodososmeuslivros.

– Mr Crackenthorpe está inválido há muito tempo? – perguntouLucyaEmma.

–Háalgunsanos...Istoaquiéacozinha.Eraumadivisãoenorme. Lucy perguntou a hora das refeições e inspecionou a despensa.

Depois declarou animada a Emma: – Já sei tudo que é preciso. Não seincomode.Confieemmim.

Emma Crackenthorpe soltou um suspiro de alívio, quando nessa

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noitesubiu,parasedeitar. “OsKennedy tinhamtodaa razão”,pensou. “Émaravilhosa!” Lucy levantou-se às seis na manhã seguinte. Arrumou acasa,preparouvegetais,cozinhoueserviuocafé.AjudadaporMrs.Kidder,fezascamaseàsonzehorassentaram-seambasnacozinhatomandocháebiscoitos. Tranqulizada por Lucy não ser autoritária e também pelo cháforte e açucarado, Mrs. Kidder icou à vontade. Era umamulher baixa emagra,deolhosastutoselábios inos.–Ummiserávelsovinaéoqueeleé.O que ela tem de aturar! Apesar disso, ela não se deixa espezinhar.Quandoprecisa,tambémsabeseimpor.Quandoossenhoresvêmdevisita,elasemprearranjacomidadecente.

–Ossenhores?– Sim. Era uma grande família. O mais velho, Edmund, morreu na

guerra.DepoiséCedric,quevivenoestrangeiro.Ésolteiro.Pintaquadros.Harold vive em Londres... é casado com a ilha de um conde. Depois éAlfred;ésimpáticomas,maisoumenos,ovelhanegradafamília. Jáesteveem apuros, por uma ou duas vezes. Há também omarido da irmã Edith,Bryan.Éumapessoamuitoagradável.Elamorreuháalgunsanos,maselecontinuou a fazer parte da família, e, inalmente, há omeninoAlexander,ilhodeEdith.Está internadonumcolégio,masvemsemprepassarpartedasférias.MissEmmagostamuitodele.

Lucy digeriu todas estas informações, sem deixar de servir chá àinformante.Porfim,Mrs.Kidderpôs-sedepécomrelutância.

–Estamanhã, isto foiumbanquete– comentousonhadoramente. –Querqueaajudeadescascarbatatas?

–Jádescasquei,obrigada.–Érápidanestascoisas!Vistoquenãohánadaparaeufazer,creio

quevouandando. Mrs. Kidder foi embora e Lucy, que ainda dispunha de tempo,

esfregou a mesa da cozinha, o que estava querendo fazer e ainda nãoizera para não ofender Mrs. Kidder, a quem esse trabalho competia.Depois limpou os talheres, até deixá-los reluzentes. Cozinhou o almoço,serviu-o, lavou a louça e às duas e meia estava pronta para começar aexploração. Preparara já bandeja do lançhe, com sanduíches e pão commanteiga,cobertosporumguardanapomolhadoparanãosecarem.

Começoupelojardim,porlheparecerumcomportamentonatural.Ahorta estava pobremente cultivada e apresentava pouca variedade dehortaliça. As estufas encontravam-se em ruínas. Por toda a parte oscaminhos entre os canteiros estavam cheios 38 39 de ervas daninhas.Apenasumcanteiro,juntodacasa,semostravalimpodessaservas,eLucy

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calculouque isso sedevesse aos cuidadosdeEmma.O jardineiro eraumhomemmuito velho, um pouco surdo, que apenas ingia trabalhar. Lucydirigiu-lhe afavelmente a palavra. Vivia numapequena casa adjacente aograndeestábulo.

Aportadosfundosdesteabriaparaumcaminho,quecorriaambosos lados,entresebes,ecruzavaoparque;depoisdeatravessarumtúnel,sobreoqualpassavaotrem,iadesembocarnumapequenaviela.

Os trems sucediam-se com intervalos de poucos minutos sobre otúnel.LucyviuostremsabrandaremoandamentoenquantodescreviamacurvaquecontornavaapropriedadedosCrackenthorpe.

Atravessou o túnel, indo dar à viela. Aquele caminho parecia serpoucousado.Numdoslados, icavaaravinaaocimodaqualpassavamostremse,nooutro,ummuroelevadoque cercavaalgunsedi ícios altosdeuma fábrica. Lucy seguiu pela viela e foi ter a uma rua de casas baixas.Chegava-lheaosouvidosoruído,apoucadistância,dotrânsitonaestrada.Olhou para o relógio. Uma mulher saiu de uma casa próxima e Lucyperguntou-lhe onde havia um telefone público, ali perto. Depois deagradecer a informação dirigiu-se a uma casa, meio loja, meio posto decorreio. O telefone achava-se numa cabina. Lucy marcou um número epediu para falar a Miss Marple. Uma voz de mulher redarguiu comaspereza:–Estáadescansarenãovouincomodá-la!Precisaderepouso...éuma senhora de idade. Quem devo dizer que telefonou? – MissEyelesbarrow.Nãohánecessidadedeincomodá-la.Diga-lheapenasquejácheguei,quetudocorrebemequelhedareinotícias,malastenha.

DesligouevoltouaRutherfordHall.

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V

– Suponho que não haja inconveniente emque pratique umpoucodegolfenoparque,poisnão?perguntouLucy.

– Certamente que não. Gosta de golfe? –Não sou grande jogadora,masnãoqueroperderaprática.Éumaformadeexercíciomaisagradáveldoqueandarapé.

– Fora daqui não há por onde passear – resmungou Mr.Crackenthorpe.–Nadaanãoserestradasasfaltadasecasotasmiseráveistodas iguais. Eles bem gostariam de deitar mão ao meu terreno, paraconstruírem mais casas. Mas, enquanto eu viver, não o farão. E nãotencionomorrer para agradar a quemquer que seja.Note bem!Aquemquerqueseja.

EmmaCrackenthorpepediusuavemente:–Acalme-se,pai. – Eu bem sei o que eles pensam... e por que esperam.Todos eles.

CedriceessehipócritadoHarold.QuantoaAlfred,admira-mequeaindanãometenhadesfechadoum

tiro,paraseverlivredemim.Nãopossogarantirqueonãotenhatentado,por alturas doNatal. Foi uma coisa bemestranha a queme aconteceu.Ovelho Quimper fcou intrigado. Fez-me uma quantidade de perguntasdiscretas.

–Todaagente sofre,devezemquando,demásdigestõesdessas,pai–observouEmma.

–Poissim,poissim,continuaadizerquecomodemais.Entendo.Epor que como de mais? Porque havia comida demais na mesa. Aquelaquantidadedecomidaeraumexageroabsurdo.Agoramelembro...garota.Hoje,noalmoço,mandoucincobatatasenormesparaamesa.Duasbatataschegam para qualquer pessoa. Por conseguinte, daqui por diante nãomandemaisdequatro.Aquintadesperdiçou-se.

– Não se desperdiçou, Mr Crackenthorpe. Usei-a numa omelete à

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espanhola,paraestanoite.–Cosdiabos!–QuandoLucyse retirava, levandoabandejacomo

café, ouviu-o ainda dizer: – Estamoça é uma espertalhona. Tem respostaparatudo.Mascozinhabem...eéagradável.

LucyEyelesbarrowpegouumtacodegolfe,quelevara,efoiparaoparque.

Começouafazerumasériedejogadas.Passadoscincominutos,umabola aparentemente desviada foi cair na ravina do trem. Lucy foi à suaprocura.

Olhou para trás, para a casa. Estava a uma grande distância eninguém parecia interessado no que fazia. Continuou a procurar a bola.Nessatarde,pesquisoucercadeumtercodaravina.Nada.

Nodiaseguinte,porém,obtevealgumresultado.Ameiodaencostadaravina,viuumarbustopartidoe,emsuavolta,

ramosquebrados.Lucyexaminou-os.Numadaspontasvia-seumtrapodepele. Era quase da mesma cor da madeira, de um castanho-claro. Lucycontemplou-o, por um momento, e depois cortou-o cuidadosamente aomeio com uma tesoura que tirou do bolso.Meteu ametade que separoudentro de um envelope que também trouxera consigo. Desceu a encostaescarpadaprocurando.Inspecionoucomatençãoomatoquecobriaosolo.Achoudistinguirumaespéciederastrodeixadoporalguém.Maseramuitoleve...muitomenosnítidodoqueoqueelaprópriadeixara.Deviatersidofeitoháalgumtempoenãoerasu icientementenítidoparaconvencê-ladequenãosetratavaapenasdefantasiadasuaparte.

Começou a pesquisar com cuidado o mato, na base da ravina, noponto exatamente abaixo do arbusto quebrado. Pouco depois, viarecompensadososseusesforcos.Encontrouumestojodepó-de-arroz,umartigo barato. Embrulhou-o num lenço e meteu-o no bolso. Continuou àprocura,masnadamaisachou.

Na manhã seguinte, entrou no carro e foi visitar a tia inválida.Emma Crackenthorpe dissera, amavelmente: – Não se apresse. Poderegressarapenasàhoradojantar.

–Obrigada,masvoltarei,omaistardar,àsseishoras.O nº 4 daMadison Road era uma pequena casa velha, numa viela

suja. Tinha cortinas de renda Nottingham, muito limpas, um degrau de

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entrada reluzente, de branco que estava, e um puxador de latão, bemlustroso.Aporta foi abertaporumamulher alta ede aspeto carrancudo,vestidadepreto,comumcarrapitodecabelogrisalho.

MirouLucy,descon iada,enquantoaacompanhavaatéMissMarple.Esta ocupava a saleta dos fundos da casa, que dava para um pequenojardimquadradoebemtratado.MissMarpleestavasentadanumcadeirão,juntoàlareira,fazendocroché.Lucyentrouefechouaporta.Sentou-senacadeira,emfrenteaMissMarple.

– Parece que tinha razão! – disse. Apresentou os seus achados edeupormenoressobreamaneiracomoosencontrara.

UmleverubordesatisfaçãotingiuasfacesdeMissMarple. – Talvez não devesse sentir-me assim – disse –, mas dá tanta

satisfação a uma pessoa formar uma teoria e provar que está correta!Pegounopequenofarrapodepele.

– Elspeth disse que a mulher trajava um casaco de peles, de corclara. Suponhoqueo estojodopó-de-arroz estivessenumadosbolsosdocasaco e tenha caídoquandoo corpo roloupela ravina abaixo. Seja comofor, nãome parece identi iaquivel,mas talvez venha a ser útil. Não tiroutodaapele?–Não,deixeimetadenoramo.

MissMarpleaprovoucomummovimentodecabeça.–Fezmuitobem.Éumamoçamuitointeligente.Apolíciavaiquerer

examinarolocal.–Vailevaressascoisas...àpolícia?– Bem... por ora, não... – Miss Marple re letiu. – Acho que seria

melhorencontrar,primeiramente,ocorpo.Nãoconcorda?– Sim,masnão acha issodi ícil? Isto é, partindodoprincípioque a

sua teoria está correta. O assassino empurrou o corpo do trem, depois,segundo parece, desceu emBrackhampton e,mais tarde, provavelmente,nessamesmanoite, foi buscar o corpo no local onde o jogara.Mas o queaconteceudepoisdisso?Devetê-lolevadoparaalgumlugar.

–Nãoparaalgumlugar–acentuouMissMarple.–Creioquenãoviuaindaaconclusãológicadocaso,minhaqueridaMissEyelesbarrow.

–Trate-meporLucy.Porquenãoemalgumlugar?– Porque, se assim fosse, seriamuitomais fácilmatar amoça num

lugardesertoedepoisremoverdaliocorpo.Aindanãoapreciou... Lucy interrompeu: – Quer dizer que... que foi um crime

premeditado?–Aprincípionãojulguei isso–retorquiuMissMarple.–Admitique

se tratasse de uma discussão e que o homem se houvesse exaltado e

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estrangulado a moça, vendo-se depois a braços com um problema, quetinha de resolver em poucos minutos. Mas, na realidade, seria umacoincidência muito grande ele ter assassinado a moça num acesso deexaltação e ter olhado para fora da janela precisamente quando o tremdescreviaumacurvanumlocalondepodiajogarocorpo,eondesabiaque,maistarde,poderiairbusaqui-lo.Seotivessejogadoparaaliporacaso,hámuitotempoqueocorpoteriasidoencontrado.

FezumapausaeLucyficou-seaolhá-lacomespanto.–Sabe–prosseguiuMissMarplepensativamente–, foinaverdade

um crime inteligentemente planejado... e creio que também foicuidadosamente executado. Um crime praticado num trem reveste-se deumcaráterdeverasanônimo.Seativesseassassinadoemcasadela,ounacasaondevivia, alguémpodia tê-lovistoentrarousair.Ouseahouvesselevadodecarroparaqualquerpontodocampo,podiaalguémterreparadono carro, no número da placa ou marca. Mas um trem está cheio dedesconhecidos que entram e saem. No compartimento de um vagão,sozinhocomela,foimuitofácil,emespecialseatendermosaqueelesabiaexatamente o que ia fazer em seguida. Sabia, tinha de saber, tudo arespeito a Rutherford Hall, à sua posição topográ ica, isto é, ao seuestranhoisolamento...umailharodeadaporlinhasdetrem.

– Exatamente assim – concordou Lucy.É um anacronismo. A vidaurbanaagita-seàvolta,masnãoaatinge.Oscomerciantesfazemaentregadosgênerospelamanhã,epronto.

– Por conseguinte, tal como diz, concluímos que o assassino foi aRutherford Hall nessa noite. Quando o corpo caiu já estava escuro eninguémdeveriadescobri-loantesdamanhãseguinte.

–Ninguém,naverdade.–Oassassinoiria...como?Decarro?Poronde?Lucyrefletiu.–Háumaviela, emmauestado,ao longodomurodeuma fábrica.

Se calhar foi por ali, passou pelo túnel sob a via férrea e seguiu pelocaminhodosfundos.Depoisdeveterprosseguidoapépelabasedaravina,atéencontrarocorpoeotransportouparaocarro.

– E depois – prosseguiuMissMarple –, levou-o para algum lugar,escolhidodeantemão.Tudo isso foipremeditado.Enãocreioqueo tenhalevado de Rutherford Hall, ou se o fez, não o levou para muito longe.Suponhoqueacoisamaisnaturalteriasidoenterrá-lo.

OlhouinquiridoramenteparaLucy.–Achoquesim–admitiuLucy,pensativa–,masnãodevetersido

fácil.

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–Nãopôdeenterrá-lonoparque.Éumtrabalhoárduoquedarianavista.Mastalvezondeaterrajáestivesserevolvida.

– Talvez na horta,mas esta icamuito perto do jardim. O velho ésurdo...mas,apesardisso,seriaarriscado.

–Háalgumcão?–Não.–Nessecaso,talveznumbarracãoounumadependênciaexterior?– Isso teria sido mais simples e mais rápido... Há muitas

dependênciasvelhaseforadeuso;estábulosemruínas,armazéns,oficinasdasquaisninguémseaproxima.Outalvezsobummaciçoderododendrosoudearbustos,emqualquerlugar.

MissMarplemeneouacabeça,emsinaldeconcordância.–Sim,achoissomuitoprovável. Ouviu-se bater à porta e a carrancuda Florence entrou com um

bandeja. – Faz-lhe bem ter uma visita – disse a Miss Marple. – Fiz-lhe os

biscoitosespeciaisdequeantestantogostava.–Florencesabefazerunsbiscoitosdeliciosos.Sensibilizada,Florencesorriuinesperadamenteesaiudoquarto. – Creio,minha amiga – disseMissMarple –, que serámelhor não

falarmos mais no crime, enquanto tomamos o chá. É um assunto tãodesagradável!Depoisdetomarochá,Lucylevantou-se.

–Vouembora–anunciou.–Comojálhedisse,atualmentenãoviveninguém em Rutherford Hall que possa ser o homem que procuramos.Vivealiapenasumvelho,umamulherdemeia-idadeeumjardineirovelhoesurdo.

– Eu não disse que ele vive lá, observouMissMarple. – Acho quesejaumapessoaqueconhecemuitobemRutherfordHall.Maspoderemosocupar-nosdisso,depoisqueencontrarmosocorpo.

– Parece estar muito certa de que o encontrarei, mas eu nãomesintoassimtãootimista–confessouLucy.

–Tenho certezadeque serábem sucedida,minhaquerida amiga,poisseiquantoéeficiente.

– Sob certos aspectos, sim, mas não tenho prática de encontrarcadáveres.

– Estou certa de que, para isso, basta apenas um pouco de sensocomum–disseMissMarple,demodoencorajador.

Lucy olhou-a e depois riu. Miss Marple correspondeu com umsorriso.

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Na tarde seguinte, Lucy entregou-se, metodicamente, ao trabalho.Olhou todas as dependências exteriores, sondou as sarcas que cercavamos curraisparaporcos,mas emvão.Voltoupara casa e encontrouEmmaCrackenthorpe parada no saguão lendo uma carta que acabava de serentrequepeladistribuiçãodatarde.

– Meu sobrinho chega amanhã... com um colega. O quarto deAlexanderéoque icaemcimadaentrada.Oque icaao ladopoderáserparaJamesStoddard-West.Usarãoobanheiroemfrenteaosquartos.

–Sim,MissCrackenthorpe.Vouprepararosquartos. – Chegarão demanhã, antes do almoço – anunciou. – Calculo que

venhamfamintos.–Tambémacho–disseLucy.–Quemedizdecarneassadaeuma

tortademel?–Alexanderédoidoportortademel. Os dois rapazes chegaram na manhã seguinte. Tinham ambos o

cabelo bem penteado, rostos suspeitosamente angelicais e maneirascorretas. Alexander Eastley tinha cabelo louro e olhos azuis e Stoddard-Westeramorenoeusavaóculos.Noalmoçodiscutiramosacontecimentosmais notórios do esporte mundial. As suas atitudes lembravam as deprofessores idosos discutindo instrumentos paleolíticos. Em comparaçãocomeles,Lucysentia-semuitonova.

Olombosumiunuminstanteenãoficouumamigalhadetorta.Mr.Crackenthorperesmungou:–Vocêsdoismearruinam.Alexanderlançou-lheumolharreprovador.–Seoavônãopudernosdarcarnecomeremospãocomqueijo.–Senãopuderdar?Possodar,sim.Masnãogostodedesperdiçar.–Nãodesperdiçamosnadar.Crackenthorpe–assegurouStoddard-

West,olhandoparaseupratoqueeraumbomtestemunhodessefato.–Qualquerdevocêsdoiscomeodobrodoqueeucomo. – Estamos crescendo – justi icou Alexander. Precisamos ingerir

grandedosedeproteínas.Ovelhoresmungou. Quando os dois rapazes se levantaram da mesa, Lucy ouviu

Alexander dizer, como se se desculpasse, ao amigo: – Não deves darimportância ao que o avô disse. Está de dieta e isso o torna um poucobirrento. É também muito sovina. Suponho que seja um complexoqualquer.

Stoddard-Westretorquiucompreensivamente:–Tinhaumatiaqueestavasemprepensandoqueiafalire,narealidade,nadavaemdinheiro.O

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médicodissequeeraumcasopatológico.Tensaíabola,Alex?Depoisdelavaralouça,Lucysaiu.Chegavaaseusouvidosasvozes

longínquasdosrapazes,nogramado.Seguiunadireçãooposta,descendoocaminhodafrenteedaídirigiu-seaummaciçodearbustoserododendros.Comecou a procurar cuidadosamente, afastando as folhas. Examinoumetodicamente cada arbusto, revolvendo seu interior com um taco degolfe, quando a voz delicada de Alexander Eastley a sobressaltou: –Procuraalgumacoisa,MissEyelesbarrow?

–Umabolade golfe – respondeu. –Aliás,mais doqueuma.Tenhopraticado golfe quase todas as tardes, e já perdi várias bolas. Resolviprocuraralgumas.

–Vamosajudá-la–propôsAlexander.–Muitoobrigada.Acheiqueestivessemjogandofutebol. – Mas não se pode jogar muito tempo, explicou Stoddard-West. –

Ficamoscomcalor.Jogamuitoogolfe?–Gostomuitodejogar,masnãotenhomuitaoportunidade.–Calculo.Éasenhoraquemcozinha,nãoéverdade?–Sim.–Foiquemfezoalmoço?–Fui.Estavabom? – Simplesmentemaravilhoso – declarouAlexander. – A carne que

comemosnocolégioéseca.Gostodacarnevermelhaeemsangue.Aquelatortademeltambémestavamagnífica.

–Têmdemedizerseuspratosfavoritos.–Fazmerenguedemaçã?–Certamente.Alexandersuspiroudecontentamento.–Háumsacocomtacosdegolfe,embaixodasescadas.Oqueacha

jogar,Stoddard? – Esplêndido! Encorajados por Lucy, foram jogar. Quando, mais

tarde,voltouparacasa,encontrou-osnogramadodiscutindoaposiçãodosnúmeros.

– Precisam de uma demão de tinta brança – disse Lucy. –Sacrifiquemumamanhãepintem.

–Boa ideia–orostodeAlexande iluminou-se.–Achoquehá latasdetintanoLongBarn...Vamosver?

–OqueéoLongBarn?–perguntouLucy. Alexander apontou para uma construção comprida, de pedra, um

poucoafastadadacasa,pertodocaminhodosfundos.

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–Émuitovelho–explicou.–Oavôchama-oLeakBarnedizqueéisabelino,mas isso não passa de pretensão. Pertencia à herdade que eraistooriginalmente.Omeubisavôderrubou-aeemseulugarconstruiuestacasa horrível. – Fez uma pausa e acrescentou: – Uma grande parte dacolecção do avô está no celeiro. Coisas que ele tinha mandado doestrangeiro quando era rapaz. Na maioria, são também horríveis. Porvezes,oLongBarnserveparapartidasdewhistle[ jogodecartas]ecoisasnogênero,promovidaspeloInstitutoFeminino.Venhaver.

Lucyacompanhou-osdeboavontade. O celeiro tinha uma enorme porta de carvalho ornamentada com

pregos.Alexander ergueuamãoedtirouuma chavedeumprego ixadosob um pouco de hera, no canto superior direito da porta. Rodou-a nafechadura,empurrouaportaeostrêsentraram.

UmprimeiroerápidoolhardeuaLucyasensaçãodeseacharnummuseusingularmente ruim.As cabeçasdemármorededois imperadoresromanosolharam-nacomferocidade.Notoutambémumenormesarcófagodoperíododecadentegreco-romanoeumaVênus sorrindoafetadamentesobreumpedestaleagarrandoa roupa.Alémdestasobrasdeartehaviaduasmesasdearmar,cadeirasamontoadasediversosobjetos,comoumafoice enferrujada, dois baldes, dois assentos de automóvel comidos pelastraçaseumacadeiradeferropintadadeverdequejáperderaumaperna.

–Creioqueviatintaporaqui–disseAlexandervagamente.Dirigiu-seaumcanto,deonderetirouduaslatasdetintaeunspincéisdecerdassecas.

–Precisamdeumpoucodeaguarrás. Os rapazes resolveram ir à casa buscar um frasco de diluente e

Lucyencorajou-os.Calculavaquesedemorassemalgumtempopintandoosnúmerosparaojogodegolfe.Saíramosdois,deixando-anoceleiro.

–Issoprecisavadefatodeumalimpeza–murmurouLucy. – Não vale a pena – aconselhara Alexander. Ainda se alguém o

quisesseusarparaalgumacoisa,nãodiriaocontrário,masnestaépocadoanonuncaéusado.

–Devopendurarachave,láfora?Éondecostuma icar?–Sim,aquinãohánadaquepossamroubar.Ninguémqueresseshorríveisobjetosdemármoreeaindaqueosquisessem,pesamumatonelada.

Lucyconcordoucomele.Era-lhedi íciltributarqualqueradmiraçãoao gosto do velho Mr. Crackenthorpe, em matéria de arte. Este pareciapossuir um instinto infalível para escolher os piores espécimes dequalquerperíodo.Depoisdeosrapazespartirem,Lucy icouummomento

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parada, olhando em volta. Os seus olhos pousaram no sarcófago edemoraram-senele.

Essesarcófago...Oarnoceleirocheiravalevementeamofo,comosehámuitotempo

não fosse renovado. Aproximou-se do sarcófago. Era coberto por umapesadatampa.Lucyobservou-apensativamente.

Depois saiu, dirigiu-se à cozinha, pegou numa pesada alavança evoltouaoceleiro.

Nãofoiumatarefafácil,masLucyrealizou-acomobstinação. Lentamente, a tampa começou a levantar-se, soerguida pela

alavança.Ergueu-seosuficienteparaLucypoderespreitarointerior.

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VI

Passadosalgunsminutos,Lucy,muitopálida,saiudoceleiro, fechou

aportaàchaveependurou-anoprego. Dirigiu-se rapidamente ao estábulo, tirou o carro e seguiu pela

estradadosfundos.Parouemfrenteàestaçãodoscorreios.Entrounacabinatelefónica

ediscouumnúmero.–DesejofalarcomMissMarple.–Estádescansando.ÉMissEyelesbarrow,nãoéverdade?–Sim. – Agora não vou incomodá-la. É uma senhora de idade e precisa

descansar.–Mastemdeincomodá-la.Éurgente.–Não...–Façaofavordefazerimediatamenteoquelhedigo.Quandoqueria,Lucydavaàvozumaentonaçãoquea tornava tão

incisivacomoaço.Florencereconheciaaautoridade,quandoaouvia.Poucodepois,avozdeMissMarpleperguntava:–Olá,Lucy?Lucyinspiroufundo.

–Tinhatodarazão!–exclamou.–Jáoencontrei.–Umcorpodemulher?– Sim. Uma mulher, com um casaco de pele. Está dentro de um

sarcófago de pedra, numa espécie de celeiro-museu perto da casa. Quequerqueeufaça?Creioquedevoinformarapolícia.

–Sim.Deveinformarapolícia,semdemora. – Mas e o resto? A senhora? A primeira coisa que a polícia vai

querer saber é omotivo de eu levantar uma tampa que pesa toneladas,semrazãoparaisso.Querqueinventeumarazão?Soucapazdeinventar.

– Não – respondeuMissMarple na sua voz séria e suave. – Achoqueaúnicacoisaafazerécontaraverdade.

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–Aseurespeito?–Arespeitodetudo.UmsúbitosorrisoquebrouapalidezdorostodeLucy. – Isso será muito simples, mas receio que não me acreditem

facilmente.Desligou,esperouummomentoedepoistelefonouparaapolícia.–AcabodedescobrirumcadávernumsarcófagoqueestánoLong

Barn,emRutherfordHall. – Que disse? Lucy repetiu o que dissera e, prevendo a pergunta

seguinte,declarouonomeeendereço.Regressouàcasa.Parounoaentrada,pensando. Depois, com uma sacudidela de cabeça, decidiu-se a entrar na

biblioteca, onde Miss Crackenthorpe estava sentada, ajudando o pai aresolveropassatempodaspalavrascruzadasdoTimes.

–Podeconceder-meummomentodeatenção,MissCrackenthorpe?–pediu.

Emmaergueuoolhar,comumaexpressãolevementeapreensivanorosto.Opessoaldomésticocostumarecorrerataistermosparaanunciarasuapartidaiminente.

–Ande,fale–incitouirritadamenteovelhoMr.Crackenthorpe.LucydeclarouaEmma.–Gostariadefalar-lheemparticular. –Quedisparate – resmungouMr. Crackenthorpe. –Diga já aqui o

quetemadizer. – Um momento, pai – interveio Emma, levantando-se e

aproximando-sedaporta. – Que disparate! Isso pode esperar! – obstinou-se o velho, com

irritação.–Achoquenãopodeesperar–declarouLucy.–Queimpertinência!–indignou-seMr.Crackenthorpe. Emma saiu para o átrio e Lucy seguiu-a, fechando a porta da

biblioteca.–Oquehá?Seachaqueosmeninoslhedãomuitoquefazer,posso

ajudá-lae... – Não se trata disso – interrompeu Lucy.Não quis falar diante de

seu pai porque é uma pessoa doente e o que tenho a dizer poderia lhecausar uma comoção. Acabo de descobrir o corpo de uma mulherassassinada,nosarcófagoqueestánoLongBarn.

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Emmafitou-a,perplexa.–Nosarcófago?Umamulherassassinada?Éimpossível!–Lamentomuito,maséaverdade!Játelefoneiàpolícia.Deveestar

chegando,deummomentoparaooutro.UmleveruborassomouaorostodeEmma.–Deviater-meprevenidoprimeiro...antesdeavisarapolícia.–Desculpe. – Não a ouvi telefonar... – O olhar de Emma desviou-se para o

telefonepousadosobreamesadoátrio.–Telefoneidopostodecorreio,àbeiradaestrada. – Mas que extraordinário! Por que não telefonou daqui? Lucy

pensourapidamente.–Receeiqueosmeninosestivessempertoemeouvissem... – Compreendo... Sim... Compreendo... Vem aí... a polícia, não é

verdade?– Já chegou – anunciou Lucy, ao ouvir os freios de um carro em

frenteàporta.Quasenomesmoinstanteacampainharessoounointeriordacasa. – Custou muito, muito... ter de lhe pedir isso – disse o inspetor

Bacon.Saíadoceleiro,segurandoumaEmmaCrackenthorpemuitopálida,

pelo braço. Apesar da expressão do rosto transtornada, EmmaCrackenthorpecaminhavacompassofirmeeereta.

– Estou absolutamente certa de nunca ter visto essa mulher naminhavida.

–Estamosmuitogratos,MissCrackenthorpe.Eratudoquedesejavasaber.Talvezqueirairrepousarumpouco?

–Tenhodevermeupai.TelefoneiaoDr.Quimper,malsoubedisso,eomédicoestánestemomentocomele.

Quando atravessavam o saguão, o Dr. Quimper saiu da biblioteca.Era um homem alto, afável, com uns modos naturais que os doentesachavammuito estimulantes. Trocou com o inspetor um cumprimento decabeça.

– Miss Crackenthorpe acaba de desincumbir-se corajosamente deumdeverdesagradável.

– Muito bem, Emma – felicitou o médico, dando-lhe palmadinhasamistosas no ombro. É umamulher corajosa. Sempre soube. Seu pai estábem. Vá falar com ele e depois vá à sala de jantar tomar um aquilice deaguardente.Trata-sedeumareceitamédica.

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Emmasorriu-lheagradecidaeentrounabiblioteca. –Estamulher valequantopesa – elogiouomédico. –Éumapena

nãose ter casado.Éapenalidadede seraúnicamulhernuma famíliadehomens. A outra irmã já morreu; casou-se aos dezessete anos, segundocreio. Esta é na realidade o que se chama uma esplêndidamulher. Teriadadoumaboaesposaeumaboamãe.

–Creioqueédemasiadamentededicadaaopai,observouoinspetorBacon.

–Naverdade,nãoé tantocomoparece...maspossuio instintoquealgumas mulheres têm de tornar felizes os seus familiares. Compreendequeopaigostadepassarpor inválidoe,porconseguinte,deixa-oseruminválido.Procededomesmomodocomos irmãos.Cedricacha-seumbompintor,comodiabosechama...Harold...sabequantoeladáouvidosàssuasopiniões...edeixaAlfredimpressioná-lacomorelatodashistóriasdosseusexpedientes.Oh,sim,éumamulher inteligente...Nãoénenhumatola.Masdesejaalgumacoisademim?Querqueváolharocadáver,parvendosesetratadealgumerroclínicomeu?

– Sim, gostaria que o visse, Dr. Quimper. Queremos identi iaqui-la.SuponhoquenãosejapossívelpediromesmoaovelhoMrCrackenthorpe.Seriaumacomoçãodemasiadoviolenta?

–Uma comoção violenta?Quedisparate.Nuncameperdoaria, nemao senhor, se não o deixarmos dar uma olhadela. Está muito excitado.Trata-sedoacontecimentomaisexcitantedosúltimosquinzeanos... enãolhecustaráumcentavo!

–Nessecaso,nãotemnadadegrave?–Temsetentaedoisanos–replicouomédico.–Narealidade,éesseoseuúnicomal.Temumasdoresreumáticas...

masquemasnãotem?Artritismo.Tempalpitaçõesdepoisdasrefeiçõeseatribui-as ao “coração”. Mas pode fazer o que quiser! Tenho muitosdoentes como ele. Os que estão de fato doentes insistem,desesperadamente, emqueestãoperfeitamentebem.Vamos lá vero seucadáver.Desagradável,nãoéverdade?

–Johnstonecalculaquetenhamorridoháduasoutrêssemanas.Omédicoparoujuntodosarcófagoeolhou,comfrançacuriosidade

profissionalsemseperturbarcomoqueclassificaradedesagradável. – Nunca a tinha visto. Não era minha doente. Nem sequer me

recordo de tê-la visto em Brackhampton. Devia ter sido uma mulherbonita...

Saíramdoceleiro.ODr.Quimperolhouparaopolicialecomentou:–

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Encontraram-na no... como chamam?... no Long Barn... num sarcófago!Fantástico!Quemaencontrou?

–MissLucyEyelesbarrow!–Ah,aúltimacriada?Masquefazia...nosarcófago?– Isso – replicou o inspetor Bacon, de modo carrancudo – é

precisamenteoquevou lheperguntar.QuantoaMrCrackenthorpe,querfazerofavorde...?

–Voubusaqui-lo.Mr. Crackenthorpe, embrulhadoemxales, chegounumpassovivo,

acompanhadopelomédico.–Desastroso!–exclamou.–Absolutamentedesastroso!Trouxeesse

sarcófago de Florenca, em... ora, deixem-me ver... deve ter sido em milnovecentoseoito...oufoiemmilnovecentosenove?

– Agora, coragem – incitou o médico. – Não será um espetáculoagradável.

–Poucoimportaomeuestadodesaúde.Devocumpriromeudever,não é verdade? Contudo, uma breve visita ao interior do Long Barn foisu iciente. Mr. Crackenthorpe saiu do celeiro, arrastando os pés, comnotáveltristeza.

– Nunca a tinha visto! – declarou. – Que quer isso dizer?Absolutamentedesastroso!NãofoideFlorenca...agoramerecordo...foideNápoles.Umespécimemuitobonito.Eumaidiotavaisemeter ládentroedeixa que a assassinem! Agarrou-se à fazenda do sobretudo, no ladoesquerdodopeito.

–Issoédemaisparamim...Meucoração...OndeestáEmma?Dr....ODr.Quimpersegurou-opelobraço. – Isso já passa – prometeu. – Vou receitar-lhe um pequeno

estimulante.Aguardente.Regressaramàcasa.–Ummomento,porfavor. O inspetor Bacon virou-se. Os dois garotos haviam chegado,

ofegantes, de bicicleta. Tinham nos rostos uma expressão ansiosa eimplorativa.

–Deixe-nosverocorpo,senhor?–Não–retorquiuoinspetor.–Oh,porfavor,deixe-nosvê-lo.Nuncasesabe.Talvezsoubéssemos

quem era. Seja camarada, inspetor. Isso não é justo. Houve um crime,dentrodonossoceleiro.Nãoénaturalqueumaoportunidadedestastornearepetir-se.Sejaesportista,inspetor.

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–Vocêsdoisquemsão?–SouAlexanderEastleyeesteéomeuamigoJamesStoddard-West.–Algumavezviramumamulherloura,comumcasacodepelesde

esquilo,detomclaro?– Não me recordo bem – respondeu astutamente. – Se me

deixassemirvê-la... – Leve-os lá – recomendou o inspetor Bacon ao policial postado à

porta do celeiro. – Também já tivemos a idade deles! – Muito obrigado,inspetor–gritaramosrapazes.

Baconencaminhou-separaacasa.–Eagora–murmurou,carrancudamente–,umaconversacomMiss

LucyEyelesbarrow.DepoisdeacompanharospoliciaissaoLongBarnede ter feitoum

breve resumo de suas ações, Lucy retirara-se para segundo plano, masnãotinhaailusãodequeapolíciajánãoprecisariadela.

Acabaradecortarasbatatasempalitoquandoaavisaramdequeoinspetor Bacon requeria sua presenca. Pondo de lado a grande tigela deáguafria,salgada,emquecolocaraasbatatas,Lucyseguiuopolíciaatéaosítio onde o inspetor a esperava. Sentou-se e aguardou calmamente ointerrogatório.

Declarou o nome... o endereço emLondres e acrescentou: –Dareialgunsnomeseendereçosdepessoasquepoderão fornecer informaçõessobremim,sedesejar.

Os nomes eram bons. Um almirante da Armada, um reitor de umcolégiodeOxfordeumadamadoImpérioBritânico.OinspetorBaconnãopôde deixar de sentir-se impressionado. – Ora, Miss Eyelesbarrow, asenhora foi aoLongBarnprocurar tinta, não é verdade?Depois de a terencontrado, foi buscar uma alavanca, ergueu a tampa do sarcófago eencontrouocorpo.Queprocuravanessesarcófago?

–Procuravaumcorpo–respondeuLucy.– Procurava um corpo... e encontrou! Não acha que isso é um fato

muitoextraordinário?– Sim, é realmente uma história extraordinária. Se não se importa,

explico.–Certamente,éomelhorquetemafazer.Lucyfezumrelatoprecisodosacontecimentosqueatinhamlevado

àsensacionaldescoberta.O inspetorresumiunumavozafrontada:–Foicontratadaporuma

senhora de idade para arranjar colocação nesta casa e buscar na

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propriedadeumcadáver?Éisso?–Sim.–Queméessasenhoradeidade?– Miss Jane Marple. Presentemente, vive no número quatro da

MadisonRoad.Oinspetoranotouaendereço.–Esperaqueeuacreditenestahistória?– Talvez só acredite depois de ter conversado comMiss Marple e

estaconfirmar.–Vouentrevistá-la,sim,masdevesermaluca. Lucyperguntou: –Oquevai contar aMissCrackenthorpe?Ameu

respeito,istoé.–Porquepergunta?–Porquenoque tocaaMiss Jane, já izoque tinhaque fazer,pois

encontrei o corpo que ela queria. Mas continuo contratada por MissCrackenthorpe e há em casa dois garotos famintos e, provavelmente,depois de toda esta agitação, chegarão mais pessoas da família. MissCrackenthorpe precisa de pessoal. Se o senhor for lhe dizer que eu quiseste lugar apenas para procurar cadáveres, é provável que me mandeembora.Senãodisser,podereicontinuarnacasaeserútil.

Oinspetorolhou-acomatenção. – Por ora, não direi coisa alguma seja a quem for – declarou. –

Aindanãoverifiqueiasuahistória.Émuitoprovávelqueatenhainventado.Lucylevantou-se.–Obrigada.Nessecaso,voltareiparaacozinha.

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VII

–EmelhorchamarmosaYard,nãoacha,Bacon?OchefedapolíciaolhavainquiridoramenteparaoinspetorBacon.Esteeraumhomenzarrão,alto e maciço, com uma expressão que parecia dizê-lo terrivelmentedesgostosocomahumanidade.

– Amulher não era daqui – declarou. – Há razão para admitir, aachar pelo vestuário, que fosse estrangeira. Claro que – apressou-se aacrescentar–,porora,nãovoubadalarestaopinião.Esperareiomomentodoinquérito.

Ochefedapolíciaaprovou,comummovimentodecabeça.–Oinquéritoserápuramenteformal,nãoéverdade?–Sim,senhor.Jáfaleicomolegista.–Efoimarcado...paraquando?– Para amanhã. Suponho que os outros membros da família

Crackenthorpe comparecerão. Há a possibilidade de algum deles poderidentifiaqui-la.Virãotodos.

Consultouumalistaquetinhanamão. – Harold Crackenthorpe, desempenha qualquer cargo na City...

suponhoquesejapersonagemimportante.Alfred...nãoseibemoquefaz.Cedric... é o que vive no estrangeiro. Ele pinta! O inspetor proferiu apalavra com uma entonação sinistra e o chefe da polícia sorriudisfarçadamente.

– Não há qualquer razão para acreditar que a famíliaCrackenthorpeesteja relacionadacomocrime,poisnão?–Não,àparteofato de o corpo ter sido encontrado nesta propriedade – replicou oinspetorBacon.

– E é evidentemente possível que esse artista da família possaidentifiaqui-la.Oquemedáquepensaréessaextraordináriafalaçãosobreotrem.

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–Ah, sim. Já foivisitaressasenhora idosa,essa...hum...–olhouderelanciparaaagendapousadasobreamesa–MissMarple?

– Sim, senhor. E mostrou-se absolutamente determinada e precisaquanto ao caso. Se é maluca ou não, ignoro-o, mas sustenta a história...acercadoqueaamigaviuetodooresto.Quantoa isso,achoquesetrataapenas de sugestão... do gênero de coisas que as senhoras de idadeinventam, como verem discos voadores no fundo do jardim e agentesrussos na biblioteca pública. Mas parece não haver qualquer dúvida deque, de fato, contratou amoça, ajudante da dona da casa, para procurarumcadáver...oqueamoçafez.

–Eencontrou–observouochefedapolícia.Bem,nãohádúvidadeque se trata de umahistóriamuito original.Marple,Miss JaneMarple... onomemeparecefamiliar...Sejacomofor,voupediraintervençãodaYard.Achoquetemrazão,quandonãoconsideraestehomicídioumcrimelocal...embora,porenquanto,nãopossamosdarpublicidadeaessefato.

O inquérito revestiu-se de caráter puramente formal. Ninguém seapresentouaidentificaramorta.

Lucy foi chamada a declarar como encontrara o corpo, e foiapresentado o testemunho médico, quanto à causa da morte...estrangulamento. O prosseguimento do processo foi, por conseguinte,adiado.

O dia em que a família Crackenthorpe saiu da sala em que oinquérito fora realizado apresentava-se frio e ventoso. Haviam sidoconvocados cinco membros da família. Emma, Cedric, Harold, Alfred eBryanEastley,maridoda falecidaEdith.Tambémse encontravapresenteMr.Wimborne, advogado de uma irma encarregada dos assuntos legaisdos Crackenthorpe. Viera de Londres especialmente para assistir aoinquérito,apesardograndetranstornoqueisso lhecausara.Demoraram-se todos, por ummomento, na calçada da rua, tiritando de frio. Tinha-sereunidoumagrandemultidão,pormenoresmordazesacercado“CorponoSarcófago”haviamcorridotantopelaimprensadeLondrescomopelalocal.

Ummurmúriocorreu:–Sãoeles...Emmadissevivamente:–Vamosembora.OgrandeDaimlerdealuguelencostou.Emmaentrouneleefezsinal

a Lucy para que izesse o mesmo. Mr. Wimborne, Cedric e Haroldseguiram-nas.BryanEastleydisse:–LevoAlfredcomigonomeucarro.

OmotoristafechouaportaeoDaimlerpreparou-separapartir.–Pare!–gritouEmma.–Vêmaíosmeninos!Estes,apesardosseus

protestosofendidos, tinhamsidodeixadosemRutherfordHall,masagora

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apareciamsorrindojuntoaoedifício. – Viemos nas bicicletas – explicou Stoddard-West. – O policial foi

muitoamávelenosdeixouentrarno fundodasala.Esperoquenão iqueaborrecidacomisso,MissCrackenthorpe–acrescentoudelicadamente.

–Éclaroquenão–respondeuCedricpelairmã.–Tambémjáfomosnovos.Éseuprimeiroinquérito,nãoéverdade?–Foimuitodecepcionante–lamentouAlexander.–Acaboutudomuitodepressa.

–Nãopodemos icaraquiconversando–disseHaroldcomirritação.–Amultidãoéenorme.Etodosesseshomenscommáquinasfotográficas.Aum sinal seu, o motorista afastou-se do passeio. Os rapazes acenaramanimadamente.

– Acabou tudo muito depressa! – repetiu Cedric. – É o que elesacham,pobresinocentes!Estáapenasnoprincípio.

– Tudo isso é muito aborrecido. Muito aborrecido – comentouHarold.–Suponho...

Olhou paraMr.Wimborne, que cerrou os lábios inos emeneou acabeçacomdesagrado.

–Espero–declarousentenciosamente–quetodoestecasotermine,embreve,deformasatisfatória.

A polícia é muito e iciente. Todavia, tudo isto, tal como Harold diz,temsidoaborrecidíssimo.

Enquanto falava olhara para Lucy e nesse olhar era patente odesagrado.

“Se não tivesse sido essa mulher”, pareciam dizer os seus olhos,“queandouameteronarizondenãodevia...nadadistoteriaacontecido.“Este sentimento ou um muito semelhante foi traduzido em palavras porHaroldCrackenthorpe.

–Apropósito...hum...Miss...hum...hum...Eyelesbarrow, o que a levou a espreitar para dentro desse

sarcófago?Lucyjáseperguntaraquandoéqueessepensamentoocorreriaaumdosmembrosdafamília.Previraqueseriaessaaprimeiraperguntaque a polícia lhe faria, mas o que a surpreendia era o fato de, até essemomento,parecernãoterocorridoamaisninguém.

Cedric,Emma,HaroldeMr.Wimborne,todosaolhavam.Asuarespostajáforapreparada,algumtempoantes.–Narealidade–dissenumavozhesitante -,nãooseibem...Achei

quetudoaquiloprecisavadeserlimpoearrumado.E...–hesitou–chegou-meumcheiromuitopeculiaredesagradável...

Contarajácomumimediatoretraimentodetodaagente,peranteo

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aspetodesagradáveldaideia... Mr.Wimbornemurmurou: – Sim, sim, certamente...já há cerca de

três semanas, segundo disse o médico legista... Sabe, acho que todosdevemosprocurarnãodeixarosnossosespíritospensaremnessacoisa -,sorriu encorajadoramente para Emma, que se tornara muito pálida. –Lembre-se–disse–queessadesgraçadanadatinhavendocomqualquerdenós.

–Masnãotemacertezadisso,poisnão?–observouCedric. Lucy Eyelesbarrow olhou-o com interesse. Já anteriormente se

sentira impressionada pelas diferencas bem nítidas que distinguiam ostrês irmãos.Cedric eraumhomemalto, como rosto curtidopelo ar livre,de cabelo negro e despenteado e modos brincalhões. Chegara doaeroporto, com a barba por fazer, e embora se tivesse barbeado, paracomparecernoinquérito,usavaasmesmasroupascomquechegaraequepareciamserasúnicasquetinha:umasvelhascalçasde lanelacinzentaeumcasacocheiodenódoasemuitocoçado.

Pareciaumprotótipodavidaboémiaeorgulhava-sedisso. Seu irmão Harold, pelo contrário, era o quadro perfeito do

gentleman da City e de um diretor de companhias importantes. Era deestaturaaltaeereta,tinhacabelonegro,levementeralonastêmporas,umbigodinho negro e trajava impecavelmente um fato escuro de bom corte,realçadopor uma gravata cinzento-pérola. Parecia o que era, umhomemdenegóciosastutoebemsucedido.

Criticou asperamente: –Na realidade, Cedric, isso parece-me umaobservaçãomuitoimprópria.

–Porquê?No imdecontas,elaestavanonossoceleiro.Quefoielalá fazer? Mr. Wimborne tossiu e disse: 64 ¦ 65 – Se calhar ia a algum...hum... encontro. Segundomedisseram, toda a genteda terra sabiaque achavedesseceleiroestavasuspensadeumprego,àentrada.

O tom com que falou era uma censura à imprudência de talprocedimento. Foi tão nítida que Emma interveio defensivamente: – Essecostume começou durante a guerra. Por causa das patrulhas contraataques aéreos. Havia ali uma pequena lamparina de álcool em quepreparavamcacauquente.Depoisdisso,comonadahaviaaliquepudessedespertar a cobiça de quem quer que fosse, continuamos a pendurar achave nesse prego. Isso convinha também aos membros do InstitutoFeminino. Se a guardássemos conosco, poderia dar-se o caso deprecisarem de utilizar-se do celeiro, numa altura em que não estivesseninguémem casa, e isso seria aborrecido. Apenas commulheres-a-dias e

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semnenhumacriadapermanente... Calou-se. Falara mecanicamente, dando uma explicação sem

interesse,comoseoseuespíritoestivessenoutrolugar.Cedriclançou-lheumrápidoolharintrigado. – Pareces preocupada. Que tens? Harold cortou, exasperado: –

Realmente,Cedric,aindaoperguntas?–Pergunto,sim.Todossabemosqueumadesconhecida foi assassinadanumceleirodeRutherfodHall (pareceummelodrama vitoriano) e todos sabemos que Emma sofreu um choqueaoteressanotícia,mastodosnóssabemostambémqueEmmafoisempreumamoça inteligente e, por conseguinte, não compreendo por que razãoestáaindapreocupada.C'osdiabos,aspessoasacostumam-seatudo.

–Algumaspessoaslevamumpoucomaisdetempoahabituar-seaocrime do que no nosso caso – observou Harold commordacidade. – AtéparecequeemMaiorcaosassassinatossãoumpratodetodososdias...

–IbizaenãoMaiorca–retificouCedric.–Éomesmo.–Deformaalguma...trata-sedeumailhamuitodiferente. Harold continuou: – O que pretendo dizer é que, embora os

assassinatospossamserumacoisahabitualpara ti,quevivesnomeiodelatinos de sangue escaldante, aqui, em Inglaterra, tomamo-los a sério – eacrescentou com irritação crescente: – e, com franqueza, Cedric,compareceresauminquéritopúblico,comessasroupas...

–Quetêmdemal?Sãoconfortáveis.–Sãoimpróprias.–Sejacomo for, sãoasúnicasque trouxe.Aocorrerpara juntoda

família,porcausadesteassunto,nãomedeiaotrabalhodefazeromalão.Sou pintor e os pintores gostam de sentir-se confortáveis dentro do quevestem.

–Nessecaso, continuasa tentarpintar?–Ouve lá,Harold,quandodizestentarpintar...

Mr. Wimborne pigarreou autoritariamente: – Esta discussão éinfrutífera–censurou.–Sehouverqualquermaneiradepoderser-lheútil,minha querida Emma, espero que mo diga antes de eu regressar aLondres.

Aincrepaçãoresultou.EmmaCrackenthorpeapressou-seadizer:–Foimuitoamáveldasuapartetervindo.

–Demodoalgum.Eraaconselhávelapresenca,neste inquérito,deumapessoa que representasse a família. Combinei uma entrevista comoinspetor,arealizaremcasa.Nãotenhoqualquerdúvidadequeasituação

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icará em breve esclarecida. Na minha opinião, parece haver poucasdúvidasquantoaoocorrido.

ComoEmmame disse, toda a gente da terra sabia que a chave doceleiro se encontrava pendurada num prego, do lado de fora daquele.Parece,pois,deverasprovávelqueesseceleiro fosseutilizado,duranteosmeses66¦67deInverno,comopontodeencontrodeparzinhosdaterra.Sem dúvida, travou-se uma discussão e o rapaz perdeu o domínio dosnervos.Horrorizadocomoque izeraoseuolharpousou-senosarcófagoeachouqueestedariaumbeloesconderijo.

Lucypensou: “Sim, issopareceplausível.Eoquequalquerpessoapensa.” Cedric observou: – Disse um parzinho da terra... mas aindaninguémdaterraidentificouamoça.

– Ainda é cedo. Sem dúvida, não tardará que tenhamos essaidenti icação. E é possível que o homem em questão fosse um residentelocal e a moça tivesse vindo de qualquer outro lado, talvez de qualqueroutrapartedeBrackhampton.Brackhamptonéumaterragrande...tem-sedesenvolvidomuitoduranteosúltimosvinteanos.

–Seeufosseumamoçaeresolvesseencontrar-mecomumhomem,não me sujeitaria a que ele me levasse para um celeiro gelado e tãodistanciadodequalqueroutrosítio–objetouCedric.–Prefeririapassaratarde confortavelmente abraçada, num cinema, não acha, MissEyelesbarrow? – Há necessidade de continuarmos a falar no assunto? –queixou-seHarold.

Nesse mesmo momento, o carro parou diante da porta deRutherfordHalletodosseapearam.

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VIII

Ao entrar na biblioteca, Mr. Wimborne pestanejou um pouco,quando os seus olhos velhos e perspicazes se desviaram do inspetorBacon, aquem já fora apresentado,para sepousaremnohomem louroedeaspetosimpáticoqueseachavaportrásdele.

OinspetorBaconfezasapresentações.–Estesenhoréoinspetor-detetiveCraddockdaNewScotlandYard. –NewScotlandYard... hum– proferiuMr.Wimborne, erguendo o

sobrolho.DermotCraddock,quetinhamodosagradáveis,abordoufacilmente

oassunto. – Foi pedida a nossa colaboração neste caso, Mr Wimborne –

esclareceu. – Como representa a família Crackenthorpe, achei de toda ajustiçaquelhedéssemosumapequenainformaçãoconfidencial.

NinguémmelhordoqueoinspetorCraddockseriacapazderevelarumapequenapartedaverdadedandoaentenderquese tratavade todaela.

– O inspetor Bacon com certeza está de acordo – acrescentou,olhandodesoslaioparaocolega.

Esteconcordoucomsolenidadeesemdaraperceberquetudoissojáforacombinado.

–Éoseguinte–declarouCraddock.–Temosrazõesparaacreditar,em virtude de uma informação de que dispomos, que a morta não énaturaldestessítios,queveiodeLondresatéaquiequechegarahápoucodoestrangeiro.ProvavelmentedeFrança,emboranãotenhamosacertezadisso.

Mr.Wimbornevoltouaerguerosobrolho.–Defato?–Porisso–explicouoinspetorBacon-,ochefedapolícia

achouqueaYardestariamaisindicadaparainvestigarocaso.

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– Omeu desejo é ver o caso solucionado semdemora. Como, semdúvida, compreende, todo este assunto tem sido causa de muitosaborrecimentos para esta família. Embora pessoalmente nada tenhamvendocomele,sobqualqueraspeto,sentem-se...

FezumabrevepausaaqueoinspetorCraddockseapressouapôrtermo:–Nãoéagradávelencontrar-seumamulherassassinadananossacasa.Concordoplenamenteconsigo.

68 ¦ 69Agora gostariade ter umabreve entrevista comos váriosmembrosdafamília...

–Paradizeraverdade,nãovejo...–Oquepossamdizer-me?Secalhar,nadadeinteresse...masnunca

se sabe. Na minha opinião, o senhor é a pessoa que melhor me podeinformaracercadestacasaedafamília.

– E que pode ter isso vendo com umamulher desconhecida, queveiodoestrangeiroefoiassassinadaaqui?–Bem,aíéqueestáaquestão–replicou Craddock. – Porque veio ela aqui parar? Teria tido, noutrostempos,algumarelaçãocomestacasa?Teriasido,porexemplo,criadadacasa,noutrostempos?Talvezcriadadequarto.Outeriaaquivindoparaseencontrar com um anterior ocupante de RutherfordHall?Mr.WimborneobjetoucomfriezaqueRutherfordHallforaocupadapelosCrackenthorpe,desdequeJosiahCrackenthorpeaconstruíra,emmiloitocentoseoitentaequatro.

–Issoé interessante–comentouCraddock.Seme izesseumbreveresumodahistóriadafamília...

Mr.Wimborneencolheuosombros.–Hámuitopoucoacontar. JosiahCrackenthorpeeraumindustrial

de doçaria e acumulou uma enorme fortuna. Construiu esta casa. LutherCrackenthorpe,seufilhomaisvelho,residenelaagora.

–Mais algum ilho? –Umoutro,Henry, quemorreunumdesastredeautomóvel,emmilnovecentoseonze.

–EoactualMrCrackenthorpenuncapensouemvenderacasa?–Nãoo pode fazer – replicou secamente o advogado -, emvirtudede umadascláusulasdotestamentodeseupai.

–Talvezmepossadizeralgumacoisaacercadessetestamento.–Porquehei-defazê-lo?OinspetorCraddocksorriu. – Porque, se me apetecer, eu próprio poderei examiná-lo, na

SomersetHouse.Contravontade,Mr.Wimborneesbocouumlevesorriso. –Muito bem, inspetor. Queria apenas dizer que a informação que

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me pediu é absolutamente irrelevante. Quanto ao testamento de JosiahCrackenthorpe, não há qualquer mistério que o rodeie. Deixou a suaenormefortunaemdepósito,devendooseurendimentocaberaseu ilhoLuther,enquantoesteviver,e,pormortedeste,ocapitaldeveserdividido,empartes iguais,pelos ilhosdeLuther:Edmund,Cedric,Harold,EmmaeEdith. Edmund morreu na guerra e Edith morreu há quatro anos. Porconseguinte,pormortedeLutherCrackenthorpe,odinheiroserádivididoentreCedric,Harold,Alfred,EmmaeAlexanderEastlev,flhodeEdith.

–Eacasa?–Seráparao ilhomaisvelhodeLutherCrackenthorpe,seforvivo,ouparaoseudescendente.

–EdmundCrackenthorpeeracasado?–Não.–Porconseguinte,acasairá...?–Paraosegundofilho...Cedric.–MrLutherCrackenthorpenãopodedispordela?–Não.–Enãopodedispordocapital?–Não.–Issonãoseráumpoucoestranho?Suponhoqueopainãogostava

muitodele–observouoinspetorastutamente.–Esupõemuitobem–disseMr.Wimborne.OvelhoJosiahsentia-se

desapontado com o ilho, por este não dedicar o mínimo interesse aosassuntosdafamília,aliás,aassuntosdequalquernatureza.Luther70I71passava o tempo a viajar pelo estrangeiro e a coleccionar objets d'art. Ovelho Josiahnão compreendia esse interessee, por conseguinte,deixouodinheirodepositadoparaageraçãoseguinte.

–Mas,entretanto,ageraçãoseguintenãotemqualquerrendimentoa não ser o que consegue por seus próprios meios ou o que o pai lhesconcede, e o pai, embora tenha um rendimento considerável, não podedispordocapital.

– Exatamente. Mas não consigo relacionar tudo isso com oassassinato de uma desconhecida de origem estrangeira! – Parece nadatervendocomocaso–apressou-seaconcordaroinspetorCraddock-,masapenasqueriaindagartodososfatos.

Mr. Wimborne olhou-o perscrutadoramente e depois, parecendosatisfeitocomoresultadodoexame,pôs-sedepé.

–TencionoagoraregressaraLondres–declarou.–Hámaisalgumacoisaquedesejesaber?perguntou,olhandoparaosdoishomens.

–Não,obrigado,MrWimborne.Osomdogongochegou-lhes,fortíssimo,doátrio.–Valha-meDeus!–exclamouMr.Wimborne.–Deveserumdospequenos,debrincadeira. O inspetor Craddock ergueu a voz, de modo a dominar aquele

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clamor.–Deixaremosafamíliaalmoçarempaz,masoinspetorBaconeeu

gostaríamosdevoltardepois...digamosàsduasevinteecinco...para termosumacurtaentrevista

comcadaumdosmembrosdafamília. –Acha issonecessário? –Bem... –Craddockencolheuosombros.É

apenas uma tentativa. Talvez alguém se lembre de alguma coisa que nosdêumapistaquenospermitadescobriraidentidadedamulher.

–Duvido,inspetor.Duvidomuito,masdesejo-lheboasorte.Comohápouco disse, quanto mais depressa este desagradável assunto seesclarecer,tantomelhorparatodos.

Meneandoacabeça,saiudevagardabiblioteca. Ao regressar do inquérito, Lucy fora logo para a cozinha e

preparavaoalmoçoquandoBryanEastleyentrou.–Possoajudá-la?–perguntou.–Tenhojeitoparaserviçosdecasa.Lucylançou-lheumolharrápido,umpoucopreocupado.Bryanfora

ao inquérito, no seu próprio carro, e, por conseguinte, ainda não tiveramuitotempoparaapreciá-lo.

Oqueviuerabastanteagradável.Eastleyeraumhomemdetrintaetalanosdeidade,deaspetosimpático,decabelocastanho,olhosazuiscomumaexpressãoumpoucoimplorante,edeenormebigodelouro.

–Ospequenosaindanãovoltaram–anunciou, sentando-seaumadas pontas damesa da cozinha.De bicicleta, precisarão de vinte minutosparaaquichegar.

Lucysorriu.–Estavamcomcertezaresolvidosanãoperderpitada.–Nãopodemoscensurá-los.Trata-sedoprimeiro inquéritoda sua

vidajoveme,porassimdizer,noseiodafamília.–Importa-sedesairdamesa,MrEastley?Precisodepousaraquio

pratodeiraoforno.Brv_anobedeceu.–ViveemLondres?–perguntouLucy.–Seissosechamaviver...sim. O tom com que respondera à pergunta traduzia desalento. Esteve

porummomentovendoLucymisturarosingredientesdopudimedepois,soltandoumsuspiro,comentou:–Istoémuitoagradável.

72¦73–Oquê...estacozinha?–Sim.Lembra-meacozinhadacasademeuspais,quandoeueragaroto.

Lucy icou impressionada ao aperceber-se de uma nota de

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abandononapersonalidadedeBryanEastley.Observando-ocommaisatençãonotouqueeramaisvelhodoquea

princípio achara. Devia ter quase qua– renta anos. Custava a crer quefossepaideAlexander.

Recordava-lhe inúmeros pilotos jovens que conhecera, durante aguerra, quando tinha a idade impressionável dos catorze anos.Desenvolvera-se e crescera num mundo de pós-guerra, mas parecia-lhequeBryannãomudaraequeforaultrapassadopelocorrerdosanos.

As suas palavras seguintes con irmaram esta impressão. Voltara asentar-senamesa.

–Éummundodi ícilonosso,nãoacha?–perguntou.–Querodizer,orientarmo-nosnele...nãofomostreinadosparaisso.

LucyrecordouoqueouviraaEmma.–Foipilotodecombate,nãofoi?Recebeuumamedalhadeguerra. – É isso o que nos trama. Recebemos uma condecoração e, em

consequência disso, as pessoas procuram facilitar-nos a vida. Dão-nosemprego e tudo o mais. E uma atitude muito decente da sua parte, mastodosesseslugaressãodecargosdeadministração,paraquenãoestamosaptos.Passaravidasentadoaumamesa,afazercontas.Tiveumasideias,mas não pude sustentá-las. É di ícil arranjar uns tipos que estejamdispostos a empatar dinheiro para inanciar a sua execução. Se eudispusessedecapital...

Calou-se.–NãoconheceuEdie,poisnão?Minhamulher.Não,evidentemente.Eramuitodiferentedetodaestagente.Porum

lado, era mais nova. Estava nas WAAF'. Dizia sempre que o velhote era“pílulas”.

'Women's Auxiliarv Air Force: Corpo Auxiliar Feminino da ForçaAérea. (N. do T ) E é. É terrivelmente agarrado ao dinheiro, mas não olevará comele. Por suamorte, será divididopelos ilhos. A parte deEdiecaberá aAlexander,mas este só poderámexer no dinheiro quando tivervinteeumanos.

–Desculpe,masécapazdetornarasairdamesa?Nessemomento,Alexander e Stoddard-West chegaram, com os rostos corados e muitoofegantes.

– Viva, Bryan – disse Alexander ao pai. – Vieste então para aqui.Masquemaravilhosopudim.

–Saiam-medocaminho–pediuLucy.–Querofazeromolho.–Façamuitomolho.Podeencherduasmolheirasdele?–Posso,sim.

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–Oh,quebom!–exclamouStoddard-West.–Éumacozinheiradeestalo–apreciouAlexander,dirigindo-seao

pai. Lucy teve a impressão momentânea de que os papéis estavam

trocados.Alexanderfalavacomopaicomoumpaicarinhosofalaaofilho. – Podemos ajudá-la, Miss Eyelesbarrow? – ofereceu-se Stoddard-

Westcomdelicadeza.–Sim,podem.Alexander,vábaterogongo.James,écapazdelevar

este tabuleiroparaa casade jantar?Eo senhor,MrEastleyquer levar atravessacomacarne?Eulevareiasbatataseopudim.

– Está aqui um agente da Scotland Yard – informou Alexander. –Achaquealmoçaráconosco?–Dependedoqueasuatiacombinar.

–Nãocreioquea tiaEmmase importe...Émuitohospitaleira,massuponho que o tioHarold ique contrariado. – Alexander saiu da cozinhalevandoabandejaeacrescentouporcimadoombro:–MrWimborneestáagora na biblioteca com esse agente da Yard,mas não ica para almoçar.DissequetinhaderegressaraLondres!Vamos,Stoddard.Ah,jáfoitocarogongo.

Nessemomentoogongosoou.Stoddard-Westeraumartista.Tocou-ocomtodaaforçadequefoicapazeaconversatornou-seimpossível.

Bryan levoua travessa coma carne, Lucy seguiu-o comabandejada verdura e depois voltou à cozinha a buscar as duasmolheiras, cheiasquaseatransbordar.

Mr.Wimborneachava-senoátrio,acalçaras luvas,quandoEmmadesceurapidamenteasescadas.

–Temacertezadequenãopodeficarparaalmoçar,MrWimborne?Vaijáparaamesa.

–Não.Tenhouma entrevista importante, emLondres.O trem temvagão-restaurante.

–Foimuitoamávelemtervindo–disseEmma,reconhecida.Osdoisfuncionáriosdapolíciaemergiramdabiblioteca.Mr.WimbornetomouamãodeEmmanasua. – Não há qualquer motivo para estar preocupada – assegurou. –

Esse senhor é o inspetor-detetive Craddock, da New Scottland Yard, quevem encarregar-se do caso. Volta às duas e um quarto para pedir-lhesqualquer informação que possa facilitar-lhe o inquérito a que tem deproceder. Mas como já lhe disse, não há razão para estar preocupada. –Olhou para Craddock e perguntou: – Permite-me que repita a MissCrackenthorpeoquemecontou?–Comcerteza.

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–Oinspetoracabadedizer-mequeéquasecertonãosetertratadode um crime local. Supõe-se que a mulher assassinada tenha vindo deLondresefosseestrangeira.

Emma Crackenthorpe inquiriu vivamente: – Estrangeira. Seriafrancesa?Mr.Wimborne achara que a sua informação contribuísse paraacalmar Emma Crackenthorpe e a pergunta desta deixou-o um poucosurpreso.OolhardeDermotCraddockdesviou-serapidamentedele,parapousar-senorostodeEmmaCrackenthorpe.

Perguntava-se por que razão elpensandoa que a mulherassassinadafossefrancesaeporquerazãoessepensamentoaperturbaratanto.

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IX

As únicas pessoas que de fato izeram justiça ao excelente almoçopreparado por Lucy foram os dois garotos e Cedric Crackenthorpe, queparecianãotersidoafetadopelascircunstânciasquetinhamdeterminadoo seu regresso a Inglaterra. Na verdade, parecia considerar o caso comoumaboapartidadenaturezamacabra.

LucynotouqueessaatitudedesagradavamuitoaseuirmãoHarold.Este parecia considerar o crime uma espécie de insulto pessoal à famíliaCrackenthorpe e tão grande era a sua sensação de ultraje que malalmoçou.Emmamostrava-sepreocupadaeinfelizetambémcomeupouco.Alfred parecia embrenhado numa série de pensamentos íntimos e faloumuitopouco.Eraumhomemcombomaspeto,derostomorenoecompridocomasórbitasmuitopróximasumadaoutra.

Depois do almoço, os funcionários da polícia voltaram e,delicadamente,pediramlicencaparafalarcomMr.CedricCrackenthorpe.

OinspetorCraddockmostrou-semuitosimpático. – Sente-se, Mr Crackenthorpe. Segundo me disseram acaba de

regressardasBaleares,nãoéverdade?Viveali?–Háseisanos.EmIbiza.Agrada-memaisdoqueestaterratriste.

– Pelo menos apanha muito mais sol do que nós – comentou oinspetorCraddock,demodoafável.

–Esteveaquihápoucotempo,segundocreio...na76¦77quadradoNatal,paraserexato.Oqueofezvoltardenovo,depoisdeumintervalodetempotãocurto?–RecebiumtelegramadeEmma...éaminha irmã.Foiaprimeiravezqueseveri icouumcrimenanossacasa.Nãoqueriaperderpitada...e,porconseguinte,vim.

– Interessa-se por criminologia? – Oh, não há necessidade derecorrermos a termos tão pretensiosos. Acontece apenas que gosto decrimes...deromancesdetetivescos,nadamais!Umcrime-mistério,ocorrido

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no limiar da família, a igurou-se-me uma oportunidade única. Alémdisso,acheiqueapobreEmmanecessitariadeajuda...paratratardovelhote,dapolíciaedetudoomais.

– Compreendo. Foi um apelo aos seus instintos desportivos etambémaosseussentimentosfamiliares.

Não duvido que sua irmã lhe esteja muito grata... embora os seusoutrosdoisirmãostambémtenhamvindopôr-seaseulado.

– Mas não para a animarem e consolarem – observou Cedric. –Harold está terrivelmente transtornado.Não convém, de forma alguma, aum magnate da City ver-se imiscuído no homicídio de uma mulher dereputaçãoduvidosa.

Craddockergueuumpoucoosobrolho.–Era...umamulherdereputaçãoduvidosa?–Bem,nesseaspeto,o

senhoréaautoridade,masaacharpelosfatos,assimmeparece.–Julgueiquetalvezpudessefazerumaideiadequemelafosse.–Ora,vamos, inspetor,osenhor jásabe...ouentãoosseuscolegas

nãotardarãoadizer-lho,queeunãopudeidentifiaqui-la. – Eu disse “fazer uma ideia”, Mr Crackenthorpe – acentuou

Craddock. – Talvez nunca antes tivesse visto essa mulher... mas talvezpudessefazerumaideiadequemelaera...oupodiatersido.

Cedricmeneouacabeçanumanegativa.–Estáamalharemferrofrio.Nãofaçoamenorideia.Calculoqueo

senhorsuponhaqueelaveioaoLongBarnparaseencontrarcomumdenós,nãoéverdade?Masnenhumdenósviveaqui.Asúnicaspessoasqueviviamnacasaeramumamulhereumvelho.

Não acha, decerto, que ela aqui tenha vindo a um encontro com omeu venerando papá, pois não? – A nossa ideia é... e o inspetor Baconconcorda comigo... que essa mulher tenha tido noutros tempos qualquerrelação com esta casa. Isso pode ter sido há um considerável número deanos.Procurerecordar-se,MrCrackenthorpe.

Cedric re letiu, por alguns momentos, e, depois, voltou a menearnegativameneacabeça.

– Tal como a maioria das pessoas, temos tido algumas criadasestrangeiras, mas não me recorda de nenhuma que corresponda àpossibilidadeaqueserefere.Émelhorperguntaraosoutros...Sabemmaisdoqueeu.

–Nãodeixaremosdefazê-lo.Craddockencostou-seaoespaldardacadeiraeprosseguiu:–Como

já ouviu, durante o inquérito, o testemunhomédico não pode determinar

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com grande exactidão a hora da morte. Há mais tempo do que duassemanasehámenosdoquequatro...oqueosituanaquadradoNatal.Osenhor disse-me que viera aqui passar o Natal. Em que dia chegou aInglaterraeemquediapartiu?Cedricrefletiu.

–Ora,deixever...Vimdeavião.ChegueiaquinosábadoanterioraoNatal...portanto,devetersidonodiavinteeumdeDezembro.

– Fez voo direto desde Maiorca? – Sim. Parti de lá às cinco damanhãechegueiaquiaomeio-dia.

–Equandopartiudeaqui?–Nasexta-feiraseguinte,ouseja,nodiavinteesete.

–Obrigado.Cedricsorriu.–Infelizmente,issocoloca-medentrodoperíodoprovávelemquea

morteocorreu.Mas,narealidade,inspetor,estrangularjovensnãoéomeupassatempofavoritodoNatal.

–Esperoquenão,MrCrackenthorpe. O inspetor Bacon limitou-se a apresentar uma expressão

desaprovadora. – Uma tal acção na quadra natalícia seria prova de uma

extraordinária ausência de “paz e de boa vontade”, não acha? Cedricdirigira estapergunta ao inspetorBacon, que apenas emitiuum ruídodedesagrado.

O inspetor Craddock disse, com delicadeza: – Obrigado, MrCrackenthorpe.Étudo.

– Que pensa dele? – perguntou Craddock, depois de Cedric terfechadoaportaatrásdesi.

–Suficientementepretensiososejaparaoquefor.É um tipo de homem que me não agrada. Esses artistas são um

rancho de vidas perdidas, propensos a darem-se com uma classe demulheresduvidosas.

Craddocksorriu. – Tambémme não agrada amaneira como se veste – prosseguiu

Bacon. – Uma absoluta falta de respeito!... Comparecer a um inquéritovestidodaquelamaneira.Hámuito tempoquenãovejoumparde calçastãosujo.Sequer saberaminhaopinião,dir-lhe-eiqueédo tipocapazdeestrangular com facilidadeumamulher, sem sentir quaisquer rebates deconsciência.

–Masnãoestrangulouesta...sesópartiudeMaiorcanodiavinteeum.Eistoéumacoisaquepodemossemcustoverificar.

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Baconlançou-lheumolharperscrutador.–Notoqueaindanãodivulgouaverdadeiradatadocrime. – Não, por ora, não a divulgaremos. Gosto sempre de guardar

algunstrunfosparamaistarde.Baconmeneouacabeçaemsinaldeperfeitoacordo.–Jogue-osnomomentooportuno–aconselhou.–Édefatoomelhorplano.–Eagora–deliberouCraddock-,vamosouviroqueonossocorreto

gentlemandaCitytemparacontar.HaroldCrackenthorpe,delábiosmuitofmos,tinhamuitopoucopara

contar. Tratava-se de um incidente muito desagradável... muito infeliz.Receavaos jornais... Sabia queos repórteres já tinham começado a pedirentrevistas...Tudoisso...eramuitolamentável...

A série de frases deixadas a meio por Harold terminou. Esteencostou-se à cadeira com a expressão de um homem perante um maucheiro.

Atentativadoinspetornãoresultou.Não,Haroldnãofaziaamínimaideiadequemamulherfosse.Sim,passaraoNatalemRutherfordHall.Sópudera ir na véspera do Natal... mas icara lá até ao im da semanaseguinte.

– Muito bem – resumiu o inspetor Craddock, sem insistir nointerrogatório.JáperceberaqueHaroldCrackenthorpenãooajudaria.

Seguiu-se Alfred, que entrou na biblioteca com umadespreocupaçãoquepareciaumpoucoexagerada.

CraddockmirouAlfredCrackenthorpecomumalevesensaçãodeoreconhecer. Certamente já antes vira esse estranhomembro da família...Outeriavistoasuafotogra ianosjornais?NassuasreminiscênciasacercadeAlfredhaviaalgodesagradável.Perguntou-lheapro issãoeobteveumarespostavaga.

–Presentemente, trabalhoemseguros.Atéhápouco tempo, andeiinteressadoemcolocarumnovo tipode alto-falantenomercado.Um tipoabsolutamente revolucionário e com que, na realidade, ganhei muitodinheiro.

O inspetor Craddock mostrou-se apreciativo... e ninguém poderiaimaginarquenotavaaaparênciasu80I81per icialmenteelegantedofatode Alfred e calculava sem errar o baixo preco que custara. A roupa deCedric estava deformada e quase coçada, mas originaria mente fora debomcorteedeexcelentequalidade.No casodeAlfred,porém, tratava-sede uma elegância barata que, só por si, bastava para se perceber a sua

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história. Craddock passou com afabilidade ao interrogatório de rotina.Alfredpareceuinteressado...eatéumpoucodivertido.

– É de fato uma possibilidade ter essa mulher trabalhado aqui,noutrotempo.Emtodoocaso,nãocomocriadadequarto...duvidodequeminha irmã alguma vez tivesse tido uma criada dessas. E creio que, hojeem dia, ninguém as tem. Mas não há dúvida de que há muito pessoaldoméstico estrangeiro. Já tivemos umas polacas... e uma ou duas alemãscheias de temperamento. Mas como Emma não reconheceu essamulher,acho, inspetor,quepodepôrdeparteessapossibilidade.Minha irmã temmuitoboamemóriapararostos.SeamulherveiodeLondres...Apropósito,o que o faz pensar que tenha vindo de Londres? Fizera a pergunta commuita naturalidade, mas os seus olhos mostravam-se perscrutadores einteressados.

OinspetorCraddocksorriuemeneouacabeça. Alfred olhou-o atentamente e concluiu: – Não o quer dizer, hem?

Tinha um bilhete de ida e volta no bolso, não tinha? – Talvez, MrCrackenthorpe.

–Bem,admitindoqueveiodeLondres,talvezotipocomquemsefoiencontrar achasse ser Long Barn o sítio ideal para cometer calmamenteumcrime.

Éevidentequeessetipoconheceavidaaquidecasa.Noseu lugar,inspetor,procurá-lo-ia.

– E o que fazemos – replicou Craddock dando à resposta um tomcalmoeconfiante.

AgradeceuaAlfredemandou-oembora.–Sabe,jáviestetiponalgumlado...–observouCraddockaBacon.Oinspetorproferiuoseuveredicto:–Vivedeexpedientes,mas,por

vezes,queima-se.–Nãocreioquedesejefalarcomigo–começouBryanEastleycomo

sesedesculpasse,entrandonoaposentoedetendo-seàportadeste.–Nãopertencoexatamenteàfamília.

–Ora,deixe-mever.OsenhoréMrBryanEastley,omaridodeMissEdithCrackenthorpe,falecidahácincoanos?–Soueumesmo.

–Foimuitoamávelemprocurar-nos,MrEastley,emespecialsetemconhecimento de qualquer coisa que acha poder ser-nos de algumautilidade.

–Nãoseinadaeoxalásoubesse.Tudo istoparecemuitoestranho,não acha? Ir encontrar-se com um tipo, num celeiro frio e cheio decorrentesdear,ameiodoInverno.Issoamimnãomeservia.

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– É na realidade um fato muito confuso – concordou o inspetorCraddock.

–Éverdadequeeraestrangeira?Parecequeéoquecorreporaí. – Esse fato sugere-lhe algo? – perguntou o inspetor, olhando

perscrutadoramenteparaBryan,masestepareceuamavelmentealheio.–Não,narealidade,não.–Talvezfossefrancesa–sugeriuoinspetorBacon,desconfiado. Bryan denotou uma leve animação. Nos seus olhos azuis

transpareceu uma expressão de interesse e cofou o farfalhudo bigodelouro.

–Defato?GayParee?[Parisalegre]–meneouacabeçaparaambosos lados. – No im de contas, isso parece tornar o caso ainda maisinverosímil, não acha? Re iro-me a uma disputa no celeiro. Suponho queseja a primeira vez que se lhe depara um assassinato num celeiro. Devetersidoumtipo irritado...oucomumcomplexo?Talvezse julgueCalígulaouqualq¦seroutrapersonagemsemelhante.

O inspetor Craddock nem sequer se deu ao trabalho de repudiaressa sugestão e, em vez disso, perguntou com naturalidade: – Sabe sealguém da família possui relações... ou conhecimentos franceses? BryanrespondeuqueosCrackenthorpenãoerammuitojoviais.

– Harold casou respeitavelmente com uma mulher de carahipócrita,filhadeumnobrearruinado.

NãocreioqueAlfredsepreocupemuitocommulheres...Passaavidaa meter-se em negócios escuros, que, por via de regra, acabam mal.SuponhoqueCedricsejaperseguidoporseñoritasespanholasemIbiza.

Asmulheresapaixonam-secomfacilidadeporCedric.Nuncasebarbeiaepareceestarsemprecomacarapor lavar.Não

percebo como é que isso pode atrair asmulheres,mas aparentemente éumfato...achoquenãoestouaser-lhemuitoútil,poisnão?Sorriu-lhes.

–ÉmelhorpediremauxílioaAlexander.EleeJamesStoddard-Westandaminteressadíssimosàprocurade indícios.Apostoqueaindaacabampordescobriralgumacoisa.

O inspetor Craddock formulou votos para que isso se veri icasse,depois agradeceu a Bryan Eastley e disse-lhe que gostaria de falar comMissEmmaCrackenthorpe.

O inspetor Craddock olhou com mais atenção para EmmaCrackenthorpe do que anteriormente. Continuava intrigado com aexpressãoquelhesurpreenderanorosto,antesdoalmoç_o.

Uma mulher calma, que não era estúpida, nem tão-pouco

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inteligente. Devia ser uma dessas mulheres agradáveis, de presencaconfortante, na qual os homens se sentiam inclinados a con iar, e quepossuíam a arte de transformar uma casa num lar, dando-lhe umaatmosferaderepousoedecalmaharmonia.

As mulheres desse gênero eram muitas vezes subestimadas. Portrásdasuaaparênciacalma,possuíamumcaráter irme.Craddockpensouque a chave do mistério da mulher encontrada morta no sarcófagoestivesseescondidanosrecônditosdoespíritodeEmma.

Enquanto estes pensamentos lhe perpassavam pela mente,Craddockiaformulandováriasperguntassemimportância.

– Não creio que haja muita coisa que já não tenha contado aoinspetor Bacon – disse. – Por conseguinte, não a incomodaremos commuitasperguntas.

–Façafavordeperguntaroquequiser. – ComoMrWimborne já lhe disse, chegamos à conclusão de que

essamulhermortanãoeranaturaldestaregião. Issotalvezsejaumalíviopara você... pelomenosMrWimborne assim pensou... mas, na realidade,di iculta-nos o caso, pois, sendo assim, menos facilmente a poderemosidentificar.

– Mas ela não tinha nada... uma mala? Documentos? Craddockmeneouacabeça,numanegativa.

–Não tinhamala, nemquaisquer documentos nas algibeiras?Nãotemqualquerideiadoseunome...

oudosítiodondeveio...absolutamentenada?Craddockpensou:“Elaquersaber...estáansiosíssimaporsaber...

quemamulheré.Ter-se-á sentidoassim,desdeo início.Baconnãomedeuessaimpressão...eéumhomemsutil...

– Nada sabemos a seu respeito – declarou. Foi por isso queesperamos que alguém da família nos pudesse ajudar. Tem a certeza deque não pode? Ainda que não a reconheça... é capaz de lembrar-se dealguém que ela pudesse ser? Craddock achou notar uma ligeira pausa,antesdeEmmaCrackenthorperesponder:

–Nãofaçoamínimaideia.Imperceptivelmente,aatitudedoinspetorCraddockmudou.Nasua

voz havia agora uma leve dureza: –QuandoMrWimborne lhe disse queessamulher era estrangeira, porqueperguntou se seria francesa?Emmanão icou desconcertada. Ergueu ao de leve o sobrolho e respondeu: –Perguntei isso? Ah, sim, creio que sim. Não sei realmente porque operguntei... a menos que fosse porque nos sentimos sempre inclinados

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pensando que os estrangeiros são franceses, até sabermos a suaverdadeira nacionalidade. A maior parte dos estrangeiros que estão nonosso país são franceses, não é verdade? – Não me parece, MissCrackenthorpe, que hoje em dia assim seja. Temos aqui gente das maisvariadasnacionalidades,italianos,alemães,austríacos,escandinavos...

–Sim,suponhoquetemrazão. – Não tinha qualquer razão especial para achar que essamulher

fossefrancesa?Nãoseapressouadizerquenão.Pensouporummomentoedepoismeneouacabeçaparaambososlados,quasecompena.

–Não,narealidade,nãocreio–respondeu.Oseuolharsustentoucalmamenteodoinspetor.CraddockolhouparaoinspetorBacon.Esteinclinou-separaafrente

eapresentouumpequenoestojoparapó-de-arroz. – Reconhece isto, Miss Crackenthorpe? Emma pegou-lhe e

examinou-o.–Não,nãoémeu.–Nãofazamenor ideiadapessoaaquempossaterpertencido?–

Não. – Nesse caso, acho que, por agora, não há necessidade de a

incomodarmospormaistempo.–Obrigada. Dirigiu-lhes um breve sorriso, levantou-se e saiu do aposento.

Craddockachouqueelaseretiraraumpoucoapressadamente,comoquesentindoumcertoalívio.

–Achaqueelasabealgumacoisa?–perguntouBacon.O inspetorCraddock redarguiu tristemente: –De certomodo, é-se

levado pensando que toda a gente sabe um pouco mais do que estádispostoadizer.

– Em geral assim é – concordouBacon, fundamentando-se na sualongaexperiência.–Masacrescentou-,muitasvezesoquesabemnadatemvendocomocasoemquestão.Trata-sedealgumpecadilhofamiliaroudealgumatolicequeaspessoasreceiamquevenhaapúblico.

–Sim,bemsei.Pelomenos... Mas o inspetor Craddock não terminou a frase, porque a porta

abriu-secomviolênciaeovelhoMr.Crackenthorpeentrou,arrastandoospésenumestadodegrandeindignação.

–Bela condutaessadaScotlandYardvir aqui enão tera cortesiadefalar,emprimeirolugar,comochefedafamília!Queméodonodacasa,sempre gostaria de saber? Quem responde? Quem é o dono da casa? –

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Claro que é o senhor, Mr Crackenthorperespondeu Craddock em tomconciliador, levantando-se enquanto falava. –Mas comoo senhor já tinhadeclarado ao inspetorBacon tudo quanto sabia e a sua saúde não é boa,nãoquisemosincomodá-loumavezmais.ODr.Quimperdisse...

–Ora...ora.Nãosouumhomemforte,mas...QuantoaoDr.Quimper,éumaverdadeiravelha...comomédico,muitocompetente,compreendeomeucaso...mastem

amaniademeembrulhar emalgodão-em-rama.Temamaniadenãomedeixarcomer.PoralturadoNatal,senti-meumpoucoenjoadoenãome86¦ 87 largou comperguntas.O que tinha eu comido?Quando?Quem tinhacozinhado?Quemserviraacomida?Fitas, itas, itas!Mas,emboraaminhasaúdetalveznãosejaboa,sinto-meperfeitamentebemparadar-lhestodooauxílioquemeforpossível.Umassassinatonaminhacasa...ouantes,nomeuceleiro!Éumedi íciointeressante,esse!Isabelino.Oarquitetoaquidaterradizquenão...maso tiponão sabeoqueestáadizer.Nemmaisumdia depois de mil quinhentos e oitenta... mas não é disto que estamos afalar. Que querem saber? Qual é a vossa actual teoria? – Por ora, é umpouco cedo para teorias, Mr Crackenthorpe. Andamos ainda vendo sedescobrimosaidentidadedaassassinada.

–Dizemqueéestrangeira?–Achamosquesim.–Umagenteinimigo?–Nãomeparecenatural. – Não lhe parece... não lhe parece! Essa gente pulula por toda a

parte! In iltra-se! O que não percebo é por que razão o Ministério dosEstrangeiros os deixa aqui entrar. Aposto que andam espiando segredosindustriais.Eraoqueelafazia.

–EmBrackhampton?–Háfábricasportodaparte.Háumanasaídadoportãodosfundos.CraddockolhourapidamenteparaBacon,queinformou:–Crackers

&CosyCrisps'.(BolachaseBiscoitos.N.doT.)–Comosabequeéissorealmenteoqueandamafazer?Nãoposso

engolir essa gente. Pois bem, se elanão eraumaespia, quemachamquefosse?Achamqueandavametidacomalgumdosmeuspreciosos ilhos?Seassim fosse, seria comAlfred. ComHarold, não, esse émuito prudente. ECedric não está disposto a viver neste país. Sendo assim, seria uma das“saias”deAlfred.Eumtipoqualquerviolentoseguiu-aatéaqui,pensandoque ela ia encontrar-se com ele e matou-a. Que diz a isto? O inspetorCraddock redarguiu, diplomaticamente, que era decerto uma teoria, masqueMr.AlfredCrackenthorpenãoareconhecera.

– Ora! Temmedo é o que é! Alfred foi sempre um cobarde e foi

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sempretambémummentiroso!Écapazdenosdesmentirnanossaprópriacara.Nenhumdosmeus ilhospresta.Sãoumbandodeabutres,àprocuraque eu morra. É essa a sua verdadeira preocupação na vida – riu-sebaixinho. – Mas podem esperar. Não quero que me iquem a dever umfavor.

Bem, se não lhes posso ser de maior utilidade... sinto-me cansado.Voudescansar.

Retirou-se,arrastandoospés.–Uma“saia”deAlfred?–sublinhouBacon.Naminhaopinião,issoé

umainvençãodovelho.–Fezumapausa,hesitou,eacabouporprosseguir.– Pessoalmente, acho Alfred muito bem... talvez um pouco velhaco

sob certos aspetos...mas actualmente não nos dá dores de cabeça.Note...essetipodaForçaAéreaintriga-meumpouco.

–BryanEastley?–Conheciumoudoistiposcomoele.Sãooquesepode chamar tipos que andam sem governo neste mundo... a vida fê-losconhecer,demasiadocedo,operigo,amorteeaexcitação.Agora,achamavida calma. Calma e insatisfatória. De certo modo, demos-lhes um ossoduroderoer,masnãovejoqueoutracoisapoderíamosterfeito.Masagoratêmo-lostodoselessempassadoesemfuturo.Esãodogêneroquenãoseimportadecorrerriscos...Otipovulgarporta-sebemporinstinto,maisporprudência do que por moralidade. Mas esses tipos não têm medo...Portarem-se “pelo seguro” não faz parte do seu vocabulário. Se Eastleyestivessemetidocomumamulherequisessematá-la...

– calou-se e estendeu umamão, resignado. – Mas 88 ¦ 89 porquehavia de querer matá-la? E se a tivesse morto, porque havia de ter idometê-la no sarcófago do sogro? Não, se quer saber a minha opinião,nenhuma destas pessoas teve qualquer coisa vendo com o crime. Casocontrário,nãoseteriamdadoaotrabalhodepôrocorpoàentradadecasa.

Craddockconcordouqueissoeraestranho.–Hámaisalgumacoisaquequeiraaquifazer?Craddockrespondeu

negativamente.BaconsugeriuregressaremaBrackhamptonetomaremumaxícara

de chá... mas o inspetor Craddock declarou que ia visitar um antigoconhecimento.

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X

MissMarple,sentadaeretacontraumfundodecãesdeporcelanaede presentes de Margate, sorriu com aprovação ao inspetor DermotCraddock.

– Sinto-me tão contente por o terem encarregado do caso –confessou.–Tinhaesperançasdequeassimfosse.

– Quando recebi a sua carta – disse Craddock -, levei-aimediatamenteaSirHenry,daScotlandYard.

Por acaso, ele próprio tinha acabado de saber que a polícia deBrackhampton pedia a nossa intervenção no caso. Achavam que não setratavadeumcrimelocal.

Ochefe icoumuitointeressadonoqueeulheconteiaseurespeito.Suponhoquemeupadrinhojálhetinhafaladodesi.

–QueridoSirHenry–murmurouMissMarple,afetuosamente. – Pediu-me que lhe contasse tudo acerca do caso Little Paddock.

Quer saber o que ele disse depois de me ouvir? – Pois sim, se não forinconfidência.

–Disse: “Bem,como istopareceumcasocompletamenteestrábico,descoberto por duas senhoras de idade que provaram, contra toda aprobabilidade,teremrazão,evistovocêjáconhecerumadessassenhoras,vouenviá-loalipara tratardocaso.”Porconseguinte,aquiestou.Eagora,minha querida Miss Marple, aonde vamos? Como provavelmentecompreende, aminha visita não tem caráter o icial. Não tenho comigo osmeuspajens.Penseique,emprimeirolugar,talvezpudéssemosconversarumpouco.

MissMarplesorriu-lhe. – Tenho a certeza de que uma pessoa que o conheça apenas

o icialmente não calcula como você é tão humano e tão simpático... nãocore.Ora,agora,diga-meexatamenteoquelhecontaram.

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– Creio que já me contaram tudo. O depoimento feito pela suaamiga, Mrs. McGillicuddy, à polícia de Saint Mary Mead, a con irmaçãodesse depoimento pelo revisor das ferrovias e também o bilhete, queencontrei,napossedochefedaestaçãodeBrackhampton.Possodizerqueforam realizadas todas as averiguações de rotina, pelas pessoascompetentes...

pelopessoaldasferroviasepelapolícia.Masnãohádúvidadequeasenhoraossuperou,pormeiodeumfantásticoprocessodesuposições.

–Não foram suposições – contrariouMissMarple. –Mas eu tinhauma grande vantagem. Conhecia Elspeth McGillicuddy. Mais ninguém aconhecia. Não existia qualquer con irmação da sua história e se nãohouvesse participação do desaparecimento de uma mulher, seria muitonatural que pensassem que se tratava de simples imaginação de umasenhora de idade... como acontece frequentemente com senhoras deidade...

masnãocomElspethMcGillicuddy. – Não com Elspeth McGillicuddy – concordou o inspetor. – Sabe,

conto conhecê-la. Oxalá não tivesse ido para Ceilão. A propósito, vamosarranjarmaneiradeaentrevistarmosali.

90 I¦ 91 –Omeu processo de raciocínio não foi de fato original –disseMissMarple.–VemtodoeleemMarkTwain.Orapazqueencontrouocavalo.Limitou-sepensandoaondeiria,sefosseumcavalo,eencontrouocavalo.

– A senhora imaginou o que faria se fosse um assassino cruel eimplaaquivel? – perguntou Craddock, apreciando pensativamente afragilidade cor-de-rosa e brança da idosaMissMarple. – Na realidade, oseuespíritoéfantástico.Seriacapazdeirumpoucomaislongeaopontodecolocar-se no sítio do assassino e dizer-me onde ele se encontra agora?MissMarplesuspirou:–Quemmedera!Nãofaçoideia...nãofaçoamínimaideia. Mas certamente uma pessoa que já lá viveu, ou conhece bemRutherfordHall.

–Concordo.Masissoabre-nosumlargocampodeespeculação.Têmlá trabalhado muitas mulheres-a-dias. Há o Instituto Feminino... e osmembros da Defesa Civil. Toda essa gente conhecia o Long Barn, osarcófago e o lugar onde a chave era colocada. Qualquer pessoa quevivessealipertopodiaterachadoolocalconvenienteparaoseupropósito.

–Sim.Compreendoperfeitamenteassuasdificuldades. – Enquanto não identi icarmos o corpo, não podemos descobrir o

assassino–disseCraddock.

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–Eissotambémserádi ícil?–Acabaremosporláchegar.Andamosa veri icar todas as participações de desaparecimentos demulheres comaquela idade e aparência. Por ora, não há nenhuma que condiga com anossa assassinada. O “laboratório” calcula que tivesse cerca de trinta ecinco anos, que fosse saudável, provavelmente casada e que tivera umilho,pelomenos.O seu casacodepeles erabarato e foi compradonumalojadeLondres.Masnosúltimos trêsmeses foramvendidos centenasdecasacos daqueles a cerca de sessenta por cento de mulheres louras.Nenhuma das empregadas pôde reconhecer a fotogra ia da morta. Asoutraspeçasderoupaparecemserquasetodasdefabricoestrangeiro,nasuamaioriacompradasemParis.Nãotêmmarcasdelavandariasinglesas.JácomunicamoscomPariseandamporláafazeraveriguaçõespornossaconta. É evidente que,mais tarde oumais cedo, alguém se apresentará aparticiparafaltadeumparenteoudeumhóspede.Éapenasumaquestãodetempo.

– A caixa de pó-de-arroz não forneceu qualquer indício? –Infelizmentenão.ÉumgênerodeestojoquesevendeàscentenasnaRuede Rivoli e é um artigo muito barato. A propósito, devia tê-lo entregueimediatamente à polícia, sabe... ou antes, era o que Miss Eyelesbarrowdeviaterfeito.

MissMarplemeneouacabeça,numanegativa. – Mas, nessa altura, não se provara ainda ter sido cometido um

crime – observou. – Se umamoça que anda a praticar golfe, apanha dochão, no meio da erva alta, um estojo velho de pó-de-arroz, sem valoralgum,certamentenãovaiprecipitar-secomeleàpolícia,nãoacha?–MissMarple fez uma pausa e depois acrescentou com irmeza. – Achei muitomaissensatoencontraremprimeirolugarocorpo.

OinspetorCraddockficouembaraçado. – Parece não ter tido qualquer dúvida de que o corpo seria

encontrado? – Certamente que não. Lucy Eyelesbarrow é uma pessoamuitoeficienteeinteligente.

–Tambémoacho!Etãoe icientequemeassusta.Nenhumhomemseatreveráacasarcomela.

–Sabe,nãosoudessaopinião...Éclaroqueohomemquecasarcomela será de um tipo muito especial. – Miss Marple ponderou nisto ummomentoeprosseguiu:–Que talvaiela,emRutherfordHall?–Achoquecon iamnelainteiramente.Apropósito,suponhoqueaindanãosabiamdasrelaçõesdelaconsigo.Nadadissemosaesserespeito.

– Agora, não tem qualquer relação comigo. Já fez o que eu lhe

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pediraquefizesse.–Nessecaso,poderiair-seemboraselheapetecesse?–Sim.–Mascontinualá.Porquê?–Nãomedissequaisasrazões.Éuma

moçamuitointeligente.Suponhoqueficouinteressada.–Nocaso?Ouna família?–Édi ícil–admitiuMissMarple–, fazer

umadistincãoentreasduascoisas.Craddockfitou-a.–Oh,não...não.–Ocorreu-lhealgumpensamentoespecial?–Creioquefoiàsenhoraqueocorreu.MissMarplesacudiuacabeça.DermotCraddocksuspirou.–Nessecaso,tudoquepossofazeré“prosseguiroinquérito”,para

usarumafrasefeita.Avidadeumpolicialétriste.–Estoucertadequeobteráresultados.–Temalgumaideiaasugerir?Maissuposiçõesinspiradas?– Estava pensando em... companhias teatrais, replicouMissMarple

umpoucovagamente.–Andardeumladoparaooutro,talvezcompoucoslaços familiares. É natural que o desaparecimento de uma moça dessassejamuitomenosnotado.

–Talvez tenha razãonisso.Vamosdedicarumaatençãoespecial aesseaspetodocaso.–Depoisperguntou:–Porqueestásorrindo?

– Estava pensando – redarguiuMissMarple –, na cara de ElspethMcGillicuddyquandosouberqueencontramosocorpo.

–Oraessa!–proferiuMrs.McGillicuddy–Oraessa!Faltavam-lheaspalavras. Olhou para o jovem simpático que a visitara, munido decredenciaisoficiaisedepoisparaasfotografiasqueelelheestendera.

–E efetivamente ela – con irmou. –É ela. Coitada!Aindabemqueencontraramo corpo.Ninguém acreditou numapalavra do que eu disse!Nem a polícia, nem o pessoal das ferrovias! É muito aborrecido nãoacreditaremnoquedizemos. Seja como for, ninguémpodedizer quenãofiztudoquepodiafazer.

Ojovemsimpáticoemitiuunsruídosdeconcordânciaapreciativos.–Ondedisseramqueencontraramocorpo?–Numceleirodeuma

casachamadaRutherfordHall,nasaídadeBrackhampton. – Nunca ouvi falar nela. Como é que foi parar lá? O jovem não

replicou.–SuponhoqueJaneMarpleoencontrou.–Ocorpo–declarouo jovem,consultandounsapontamentos– foi

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encontradoporumaMissEyelesbarrow. – Também nunca ouvi falar dela – disse Mrs. McGillicuddy. –

TodaviacontinuoacrerqueaítemamãodeJaneMarple. – Seja como for, Mrs. McGillicuddy, a senhora identi ica esta

fotografiacomosendoadamulherqueviunumtrem?–Sendoestranguladaporumhomem.Identifico,sim.–Écapazdefazerumadescriçãodessehomem?–Eraumhomemalto–respondeuMrs.McGillicuddv.–Quemais?–Moreno.–Equemais? – É tudo o que posso dizer – a irmouMrs.McGillicuddy. – Estava

viradodecostasparamim.Nãochegueiaver-lheorosto. – Não faz ideia da idade dele? Mrs. McGillicuddy pensou um

momento.–Não...narealidade,não. Istoé,nãosei.Tenhoquaseacertezade

quenãoera...muitonovo.Osombrospareciam... bem, colocadosno lugar,não sei se compreende o que quero dizer. – O jovem meneoucompreensivamenteacabeça.

–Maisdetrintaanos,masnãopossosermaisprecisa.Entenda,nãoeraparaelequeeuolhava,massimparaela...comaquelasmãosàvoltadopescoçoeorosto...todoazul...Sabe,àsvezesaindasonhocomisso...

–Devetersidoumaprovahorrível–comentouojovem.Fechouoblocoeperguntou:–QuandovoltaàInglaterra?–Nãoantesdetrêssemanas.Nãoprecisamdemim,certo?Ojovem

se apressou a tranquilizá-la: –Não, não. Presentementenãohánadaquepossafazer.Claroque,seprendermosalguém...

Aconversaficouporaí. O correio trouxe uma carta de Miss Marple, dirigida à amiga. A

caligra ia era pontiaguda, emaranhada e muito sublinhada, porém umalonga prática permitiu a Mrs. McGillicuddv decifrá-la. Nessa cana MissMarplefaziaàamigaumrelatopormenorizadodocasoeeladevoroucadapalavra com grande satisfação. Ela e Jane haviam provado que tinhamrazão.

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XI

– Não consigo compreender – declarou Cedric Crackenthorpe,encostando-se ao muro velho de um longo curral para porcos e itandoLucyEyelesbarrow.

–Oquenãoconseguecompreender?–Oquevocêestáfazendoaqui.–Ganhoavida.–Comoserva?–perguntoudepreciativamente. – Você é antiquado – respondeu Lucy. – Serva, francamente! Sou

uma empregada doméstica, uma doméstica pro issional, ou melhor, umaajudante.

– Você não pode gostar de todos os serviços que tem de fazer...cozinhar,fazerascamas,aspirarpóemergulharosbraçosatéaocotoveloemáguagordurosa.

Lucy riu. – Talvez os pormenores não me agradem, mas, aocozinhar, satisfaçomeus instintos criadores e existe algo emmimque naverdadesecomprazemesclarecerembrulhadas.

–Euvivonumaembrulhadapermanente–declarouCedric. –Masgosto–acrescentouemtomdedesafio.

–Dáaimpressãodisso.–AminhacasaemIbizaéorientadasegundosimples linhasretas.

Três pratos, duas xícaras e pires, uma cama, umamesa e duas cadeiras.Portodaapartehápó,manchasdetintaelascasdepedra...alémdepintartambém esculpo, e ninguém tem autorização para tocar seja no que for.Nãoqueromulheresnasproximidadesdecasa.

–Semexceçãoparaumadeterminadafunção?–Quequerdizercomisso?–Achavaqueumhomemcomassuas inclinaçõesartísticastivesse

algumcasoamoroso.

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– A minha vida amorosa, como você chama, é a minha própriapro issão – replicou Cedric com dignidade. – O que nunca admitirei é ainterferênciadeumamulher imbuídadeespíritodedonadecasaa fazerarrumaçãoelimpeza.

– Como gostaria de visitar a sua casa – disse Lucy. – Seria umdesafio!

–Nãoteráessaoportunidade.–Suponhoquenão.Algunstijoloscaíramdomuro.–Porquerazãodeixaramchegartudoistoaesteestado?Nãofoisó

aguerra,poisnão?–Gostariadepôrtudoistoemordem,nãoéverdade?Quemulher tão intrometida! Já compreendo porque havia de ser você adescobrir o corpo! Não podia sequer deixar um sarcófago greco-romanoempaz!–Fezumapausaeprosseguiu:–Não,nãofoiapenasaguerra.Foitambémmeupai.Apropósito,queachadele?

–Nãotenhotidomuitotempoparapensar.– Não disfarce. E terrivelmente mesquinho e, na minha opinião,

tambémumpoucolouco.Éevidentequenosodeiacomexceção,talvez,deEmma.Issosedeveàmaneiracomomeuavôoeducou.

Lucyfezexpressãoinquiridora.–Omeuavô foiquemfezagrana.ComosCrunchies,osCrakerse

os Cosy Crisps, en im, com toda a doçaria própria para o chá, e depois,comoeraumhomemde ideias largas, começou logo a fabricar aperitivosde bolacha e queijo e, desse modo, quando há algum cocktail ganhamossempre dinheiro. Ora, chegou uma altura em que papai achou que seuespírito era superior aos biscoitos. Andou pela Itália, pelos Balcãs, pelaGréciaeintrometeu-seemarte.Meuavô icoudanado.Achouquemeupainãoprestavacomohomemdenegócioseeraumpobreapreciadordearte,no que tinha razão, e, por conseguinte, deixou todo o seu dinheirodepositadoparaosnetos.Opairecebeoseuusufrutoenquantoviver,masnãopode tocarno capital. Sabeoque ele fez?Deixoude gastardinheiro.Veio para aqui e começou a poupar. Acho que deve ter acumulado umafortuna quase tão grande como a quemeu avô deixou. Entretanto, todosnós,Harold,eu,AlfredeEmmanãorecebemosumcentavoda fortunadoavô. Eu sou pintor e escultor, Harold faz negócios e é agora personagememinente da City... É o único de nós que tem o condão de fazer dinheiro,emborametenhamchegadorumoresdeque,ultimamente,andamuitomaldefundos.Alfred...bem,esseéaovelhanegradafamília.Aindanãoestevepreso, mas foi por pouco. Durante a guerra esteve empregado no

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Ministério do Abastecimento, mas saiu dele inesperadamente emcircunstâncias discutíveis. Depois disso, arranjou também complicaçõescom conservas de frutas... e ovos.Nada de verdadeiramente importante...apenasnegóciosumpoucoirregulares.

–Nãoachainsensatocontarissoaestranhos?–Porquê?Vocêéespiãdapolícia?–Talvez.–Nãocreio.Antesdeapolíciaseinteressarpornós, jávocêestava

aqui.Acho...Calou-seaoverEmmatransporacanceladahorta.–Viva,Em!Parecesmuitochateadacomqualquercoisa.–Eestou.Querofalarcomvocê,Cedric.–Tenhodevoltarparacasa–disseLucy,cheiadetato.–Nãováembora–pediuCedric.–Estecrimeatorna,praticamente,

ummembrodafamília.–Tenhomuitoafazer–insistiuLucy.Vimaquiforaparabuscarum

poucodesalsa. Bateu rapidamente em retirada, até a horta. Os olhos de Cedric

seguiram-na.–Bonitamoça–comentou.–Queméela,narealidade? – É muito conhecida – informou a irmã. – Especializou-se neste

gênerodeprofissão.MasnãotepreocupescomLucyEyelesbarrow,Cedric.Estou muito chateada. Ao que parece, a polícia acha que a morta eraestrangeira,talvezfrancesa.Cedric,nãoachasquepodiaser...Martine?Pormomentos,Cedricficouolhandoairmã,comosenãotivessecompreendido.

–Martine?Masquemdiabo...ah,falasdaMartine?–Sim.Achasque...–PorquediabohaveriadeserMartine?– Ora, se pensarmos bem, o telegrama foi estranho. Deve ter sido,

poucomaisoumenos,pelamesmaaltura...Achasque,no imdecontas,elateriavindoparaaquie...

–Quetolice!PorquehaveriaMartinedevirparaaquieseen iarnoLongBarn?Paraquê?Achoissomuitoimprovável.

–AchasquedevocontaraoinspetorBacon...ouaooutro?– Contar o quê? – Bem... falar-lhe de Martine, da carta que me

escreveu.– Ora, não vás agora complicar as coisas, trazendo à baila uma

quantidade de bagatelas que nada têm vendo com tudo isto. No im decontas,essacartadeMartinenuncameconvenceu.

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–Poisamim,sim.– Tu, minha ilha, foste sempre inclinada a acreditar em coisas

impossíveis, antes do café da manhã. Se queres o meu conselho, icasossegada e calada. Compete à polícia identi icar seu precioso cadáver. EapostoqueHaroldtediráomesmoqueeu.

–BemseiquesimequeAlfredtambémdiriaomesmo.Massinto-me preocupada, Cedric. Estou de fato preocupada. Não sei o que devofazer.

– Nada – sentenciou Cedric com prontidão. Fica calada, Emma.Nuncadevemosiraoencontrodosproblemas,éesteomeumotto.

Emma Crackenthorpe suspirou. Voltou devagar para casa, com oespíritopreocupado.

Quando se aproximava do edí icio, saía o Dr. Quimper e abria aportadovelhoAustin.Aovê-la,parouefoiaoseuencontro.

–O seupai,Emma, estáemesplêndida forma,declarou. –O crimefez-lhe bem. Proporcionou-lhe um novo interesse na vida. Tenho derecomendá-loamaisdoentesmeus.

Emma sorriu mecanicamente. O Dr. Quimper era sempre muitorápidoanotarreações.

–Algumproblema?–perguntou.Emmaolhou-o.Vianão apenasomédico,masumamigo emquem

podiaconfiar.–Estoupreocupada–confessou.–Querdizer-meporquê?Senãoquiserdizer,nãodiga.– Gostaria de dizer. Parte já é do seu conhecimento. O que me

preocupaénãosaberoquefazer.–Achoqueasuaopiniãoé,emgeral,amaisdignadecon iança.Que

sepassa?–Lembra-sedoqueumavez lhecontei,acercadomeuirmão...que

morreunaguerra?–Quesecasou...ouqueriacasarcomumafrancesa?Qualquercoisa

assim?– Sim. Quase logo a seguir eu recebi a carta, morreu. Nunca

soubemos nada dessa moça. Tudo que na realidade sabíamosera o seunomepróprio.Sempreesperamosqueelaescrevesseouaparecesse,masnuncafezumacoisanemoutra.Nuncaouvimoscoisaalguma...atéhácercadeummês,precisamenteantesdoNatal.

– Jáme recordo. Recebeu uma carta, não é verdade? – Sim. Diziaque estava em Inglaterra e que gostaria de vir visitar-nos. Combinou-se

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tudoe,depois,àúltimahora,enviou-nosumtelegramaadizerquetinhaderegressarinesperadamenteaFrança.

– E então? –A polícia acha que essamulher que foi assassinada...erafrancesa.

– Acham isso, não é verdade? A mim, pareceu-me mais do tipoinglês, mas não se pode ter certeza. Nesse caso, o que a preocupa é apossibilidadedeessamulherassassinadapoderseranoivadeseuirmão?

–Sim.– Acho isso deveras improvável – disse o Dr. Quimper, que

acrescentou:–Mas,apesardisso,compreendooquesente.– Não sei se devo contar à polícia... tudo isto. Cedric e os outros

dizem que é absolutamente desnecessário fazê-lo. Que acha? – Hum. – ODr.Quimperapertouoslábios.Ficoucalado,poralgunsmomentos,imersoemprofundospensamentos. – É evidenteque émuitomais simplesnadadizer.Compreendoopontodevistadeseusirmãos.Mas,emtodoocaso...

–Continue.Quimperolhou-a,comumaexpressãoafetuosa.–Eudiria.Seonãofizer,continuarápreocupada.Conheco-abem.Emmacorouumpouco.–Talvezsejatola.–Façaoquequiser,minhaqueridaamiga...enãosepreocupecom

orestodafamília.Seforpreciso,ficareiaseulado,contratodoseles.

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XII

–Garota!Ei,garota!Venhaaqui!Lucyvirouacabeça,surpreendida.O velhoMr. Crackenthorpe acenava-lhe, vigorosamente, por trás de umaporta.

–Precisademim,MrCrackenthorpe?–Nãofaletanto.Entre. Lucy obedeceu ao dedo imperioso. O velho Mr. Crackenthorpe

agarrou-apelobraço,puxou-aparajuntodesiefechouaporta.–Querolhemostrarumacoisa–disse.Lucyolhouemvolta.Achavam-senumapequenadivisãodestinada

aserutilizadacomoescritório,masqueparecia terdeixado,hámuito,deserusadapara tal im.Sobreamesahaviamontesdepapéiscobertosdepó,edoscantosdotetopendiamenormesteiasdearanha.Oarcheiravaabafio.

–Querquelimpeestequarto?–perguntou.OvelhoCrackenthorpesacudiuacabeçademaneiraferoz. – Não, não limpe. Mantenho este quarto fechado a chave. Emma

bemgostariademeteronarizaqui,masnãoconsinto.Éomeuquarto.Estávendoestaspedras?Sãoespécimesgeológicos.

Lucyolhouparaumacolecçãodedozeoucatorzepedacosderocha,algunsdelespolidos,outrosembruto.

–Encantadores–apreciou.–Muitointeressante.–Temtodaarazão.Sãointeressantes.Vocêéumamoçainteligente.

Nãomostroaqualquerpessoa.Voumostrar-lhemaiscoisas.–Émuitoamável,mas,paradizeraverdade,precisodeiracabaro

queestavafazendo.Comseispessoasemcasa... – Comendo à minha custa... É o que todos fazem, quando vêm!

Comer. Mas não se oferecem para pagar o que comem. Sanguessugas!Estão todos à espera de que eumorra.Mas, por ora, nãomorrerei... por

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ora, não lhes darei essa satisfação. Sou muito mais forte do que Emmaacha.

–Estoucertadequeé.–Etambémnãosoutãovelhoassim.Elamefazpassarporinválido,

metratacomosenil.Vocênãomeachavelho,acha?–Certamentequenão–respondeuLucy.–Umamoçainteligente.Venhvendoumacoisa–conduziu-aatravés

do quarto até um enorme móvel de carvalho escuro. Lucy sentia-se umpoucoinquietacomoapertodaquelesdedosqueaseguravampelobraço.Nãohaviadúvidadeque,nessedia,ovelhoMr.Crackenthorpenadatinhade débil. – Está vendo isto? Veio de Lushington... da terra da família deminhamãe.É isabelino.Sãonecessáriosquatrohomensparadesloaqui-lo.Nãosabeoqueguardoládentro,nãoé?Querquemostre?

–Sim–replicouLucydelicadamente.–Écuriosa,nãoéverdade?Todasasmulheressãocuriosas.–Tirou

umachavedobolsoeabriuaportadoarmário inferior.Desteretirouumcofre comumaspeto surpreendentementenovo.Abriueste, tambémcomumachave.–Olheaqui,minha ilha.Sabeoqueéisto?Retiroudocofreumpequeno cilindro embrulhado em papel e desfez um dos seus extremos.Caíram-lhenamãoalgumasmoedasdeouro.

– Olhe para elas, veja-as bem, toque. Sabe o que são? Aposto quenão. É muito nova. São soberanos. Era o que usávamos, antes de todosessessujospedaçosdepapelentraremnamoda.Valemmuitomaisdoquetodosospedaçosdepapel.Hámuitoqueoscoleccionei.Mas tenhooutrascoisas,nestacaixa.Muitascoisasaquiarrumadas.Todaspreparadas,paraofuturo. Emma não sabe... ninguém o sabe. E um segredo só nosso,compreende? Sabe porque lhe disse isto e lhe estive a mostrar estascoisas?–Porquefoi?–Porquenãoqueroquemejulgueumvelhodoenteeinútil. O velho cão tem aindamuita vida.Minhamulhermorreu hámuitotempo.Estavasemprea levantarobjecçõesa tudo.Nãogostoudosnomesque dei aos ilhos, uns bons nomes saxões, não tinha omínimo interessepelaárvoregenealógicadafamília.

Nunca izmuitocasodoqueeladizia,poiseraumsermuitopobrede espírito, ao passo que você é uma moça inteligente. Vou dar-lhe umconselho:nãoseprendaporumhomemnovo.Osrapazesnovossãotolos!Vocêprecisaolharseu futuro.Aguarde...– seusdedosapertaramobraçode Lucy. Aproximou a boca do ouvido da jovem e segredou: – Não digomaisdoque isto:aguarde.Essespobres idiotasachamquenãotardareiamorrer,masenganam-se.Nãomeadmirariasesobrevivessea todoseles.

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Depoisveremos!Sim,sim,depoisveremos.Haroldnãotem ilhos.CedriceAlfred são solteiros. Emma... Emma, essa já não casa. Tem um fraco porQuimper... Mas Quimper nunca se lembrará de casar com ela. HáAlexander, evidentemente... Sabe, gosto deAlexander... É estranho,mas éverdade,gostodeAlexander.

Fez uma pausa durante a qual icou de cenho franzido, e depoisperguntou:–Então,quetemadizer?Hem?–MissEvelesbarrow...

A voz de Emma chegou, abafada, através da porta fechada doescritório. Lucy aproveitou, reconhecidamente, a oportunidade. – MissCrackenthorpe estáme chamando. Tenho de ir. Muito obrigada por tudoquememostrou...

–Nãoesqueça...onossosegredo.–Nãoesquecerei–assegurouLucyprecipitando-separa fora,sem

entender muito bem se tinha acabado de receber uma propostacondicionaldecasamento.

Dermot Craddock estava sentado em sua mesa na New ScotlandYard.

Falava ao telefone, em françês, uma língua em que eratoleravelmenteeficiente.–Foiapenasumaideia...–disse.

–Massempreéumaideia–replicouavoznooutroextremodo io,da Prefeitura de Paris. – Já mandei proceder a um inquérito nessescírculos. O meu agente informou que tem duas ou três hipótesespromissoras para investigação. A menos que exista algum problemafamiliar... ou um amante. Essasmulheres desaparecem com facilidade dacirculação,semquealguémsepreocupecomisso.Foramdarumpasseio,ou existe outro homem. Ninguém se interessa por saber o que lhesaconteceu. É umapena que a fotogra ia queme enviou seja tão di ícil dereconhecer por quem quer que seja. A morte por estrangulamento nãomelhoraoaspecto.Vouagoraestudaroúltimorelatóriodoagentesobreoassunto.Talvezapareçaalgumacoisa.Aurevoir,moncher.

Enquanto Craddock retribuía delicadamente a despedida, alguémpousouumafolhadepapelsobreamesa.

Dizia:MissEmmaCrackenthorpe.Desejafalarcomoinspetor-detetiveCraddock.CasoRutherfordHall.

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Desligouedisseaopolicial:–MandeentrarMissCrackenthorpe. Enquanto aguardava, recostou-se na cadeira, pensativamente.

Então,nãoseenganara.Emmasabiaalgumacoisa... talveznãomuita,masqualquercoisa,possivelmenteútil.Eresolveracontar.

Levantou-se quando ela entrou, estendeu-lhe a mão, instalou-anumapoltronaeofereceu-lheumcigarro,queelarecusou.Depois,seguiu-sebrevepausa.Craddockcalculouqueelaprocuravaaspalavras.Inclinou-separaafrente.

–Temalgoamecontar,MissCrackenthorpe?Possoajudá-la?Temandado preocupada com qualquer coisa, não é verdade? Talvez algo depouca importância e ache que nada tem com o caso,mas que, por outrolado, deve mencionar. Veio com esse im, não é? Talvez diga respeito àidentidadedamorta.Achaquesabequemelaera?

– Não, não, não é bem isso. Para dizer a verdade, é muitoimprovável,mas...

–Masháumapossibilidadequeapreocupa.Émelhordizer... talvezpossamossossegá-la.

Emmanãofaloulogo.Por im,disse:–Jáconhecetrêsirmãosmeus.TinhaoutrochamadoEdmundquemorreunaguerra.Poucoantesde termorrido,escreveu-medeFrança.

Abriu a bolsa e tirou desta uma carta amarrotada. Leu: Espero,Emma,que istonãosejaumchoquepara ti,masvoumecasar... comumamoçafrancesa.Foitudomuitorápido...masseiquegostarásdeMartine...eolharás por ela se algo me acontecer. Contarei todos os pormenores napróxima carta – serei já umhomem casado. Dá a noticia com cuidado aovelhote,sim?

O inspetor Craddock estendeu a mão. Emma hesitou, mas acabouporentregaracarta.Continuouafalar,rapidamente.

–Doisdiasdepoisdereceberessacarta,recebemosumtelegramadizendoqueEdmunddesapareceraeoconsideravammorto.Maistarde,amorte foi anunciada pelas vias o iciais. Foi precisamente antes deDunquerque...umaépocadegrandeconfusão.Noexército,peloquepudesaber, não havia registro do seu casamento... mas, como já disse, essaépocafoidegrandeconfusão.Nuncativenotíciasdamoça.

Depois de a guerra acabar, tentei saber alguma coisa acerca dela,massólheconheciaoprimeironome.

Alémdisso,essapartedeFrança foraocupadapelosAlemães;eradi ícildescobrirqualquercoisasemsaberoapelidodamoçaemaisalgunsdadosaseurespeito.Por im,concluíqueocasamentonãochegaraa106

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107 realizar-se e que, provavelmente, ela se casara com outro homemantesdofimdaguerra,oumorreratambém.

O inspetor meneou a cabeça de modo compreensivo e Emmaprosseguiu:–Imagineminhaimpressãoaoreceberumacarta,hácoisadeummês,assinadaMartineCrackenthorpe.

– Tem a carta? Emma tirou do bolso a carta e entregou-a aCraddock.Eleleucominteresse.Eraumacaligra iafrancesa,inclinada,queindicavapessoaeducada.

Querida Senhora: Espero que a recepção desta carta não constituaum choque. Nem sequer sei se seu irmão Edmund lhe contou que nostinhamos casado.Disse-meque lho diria,masmorreu poucos dias depois donossocasamentoe,nessamesmaaltura,osAlemãesocuparamanossaaldeia.

Depois de acabada a guerra, resolvi não lhe escrever, nem tentarqualquer aproximação, embora Edmundme tivesse dito que o izesse. Mas,entretanto, já reorganizara a minha nova vida e isso não se me a igurounecessário.Porém,agora,asituaçãomudou.Escrevo-lheestacartaporcausado meu ilho. Compreende, é ilho de seu irmão e eu...eu já não lhe possoproporcionar o bem-estar a que tem direito. Parto para Inglaterra napróximasemana.Querterabondadededizerseconsenteemmereceber?Omeuenderecopostal é126ElversCrescent,nº10.Esperoque tudo istonãosejaumgrandechoqueparavocê.

Comtodaaconsideração,MartineCrackenthorpeCraddock icou calado por alguns momentos. Antes de devolver a

carta,tornoualê-lacomatenção.–Oquefez,aorecebê-la,MissCrackenthorpe?–Poracaso,omeucunhadoBryanEastleyestavaconosconahorae

falei a respeito. Depois telefonei ameu irmão Harold, que se encontravaemLondres,econsulteitambémasuaopiniãosobreoassunto.Mostrou-secéticoerecomendou-meamáximaprudência.Emmafezumapausaantesdeprosseguir:–Éevidentequefoiumconselhoprudenteeconcordeiquetinharazão.Masessamoça...SeessamulherfossenaverdadeaMartinedequemeuirmãoEdmundmefalaranacarta,acheiquedevíamosrecebê-lacom amabilidade. Escrevi para o endereco que ela me indicara,convidando-aavisitar-nosemRutherfordHall.Algunsdiasdepois, recebitelegrama de Londres: “Penalizadissima obrigada regressar Françainesperadamente.Martine.”Nãotivemaisqualquernotícia.

–Quandoocorreutudoisso?Emmafranziuosobrolho. –Pouco antesdoNatal. Sei porquedesejava convidá-la apassar o

Natal conosco, mas meu pai não aprovou a ideia e sugeri então que ela

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fossepassaro imdesemanaseguinteaoNatal, enquantoa famíliaaindaestivesselá.AchoqueotelegramachegoupoucosdiasantesdoNatal.

–EachaqueamulhercujocadáverfoiencontradonosarcófagoeraMartine?

– Não, claro que não. Mas, quando o senhor disse queprovavelmenteeraestrangeira...bem,nãopudedeixardepensar...se...

Calou-se. Craddock falou depressa e de modo tranquilizador: – Fez muito

bem em vir contar isto. Vamos sondar o caso. Acho quase certo que amulher que lhe escreveu essa carta tenha voltado, de fato, à França eesteja bemde saúde. Por outro lado, há uma certa coincidência dedatas,como a senhora com certeza já notou. Como já ouviu por ocasião doinquérito, de acordo com a opinião domédico legista, amorte damulherocorreu há cerca de três ou quatro semanas.Mas não se preocupe,MissCrackenthorpeecon ieemnós–acrescentoucomnaturalidade.ConsultouMrHaroldCrackenthorpe?Eseupaieseusoutrosirmãos?

– Tive que dizer a meu pai, claro. Ficou muito fora de si – sorriubrandamente. – Ficou convencido de que se tratava de uma artimanhapara nos extorquir dinheiro. Quando se trata de dinheiro, meu pai seenervacomfacilidade.Fingeacharqueéumhomemmuitopobrequetemdeeconomizar todosos centavos.Creioqueévulgar aspessoasde idadearranjarem obsessões dessa natureza. Evidentemente que isso não éverdade; tem renda muito grande, da qual não chega a gastar a quartaparte...Pelomenos,assimera,atécomeçaremestesimpostostãoelevados.Écertoquetemmuitodinheiroguardado.–Fezumapausaecontinuou:–Falei também no caso aos meus outros dois irmãos. Alfred parece queconsiderou o caso uma brincadeira, embora tambémpensasse ser quasecerto tratar-se de uma impostura. Cedric não semostrou interessado... émuito egoísta. A nossa ideia era receber Martine na presenca do nossoadvogado,MrWimborne.

–QualfoiaopiniãodeMrWimbornesobreoassunto?–Nãochegamosadiscutiroassuntocomele.Tencionávamosfazê-lo

quandochegouotelegramadeMartine.–Nãofezqualqueroutradiligência? – Sim. Escrevi para o endereco de Londres, pondo no envelope a

indicação,Favorfazerseguir,masnãoobtivequalquerresposta.–Umcasobastantecurioso...Hum... O inspetor olhou Emma Crackenthorpe perscrutadoramente e

perguntou:–Qualéasuaopiniãosobreocaso?

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–Nãoseioquepensar.–Qualfoisuareaçãonahora?Achouqueacartafossegenuína...ou

concordou com seu pai e seus irmãos? A propósito, qual foi a opinião deseucunhado?

–Bryanachouqueacartaeragenuína.–Easenhora?–Eu...nãotinhaacerteza.– E como aceitava o caso... admitindo que essa moça fosse de fato

viúvadeseuirmãoEdmund?AexpressãodeEmmasuavizou-se. – Eu gostavamuito de Edmund. Erameu irmão predileto. A carta

pareceu-me exatamente o gênero de carta que umamoça comoMartineescreverianaquelascircunstâncias.Acheiperfeitamentenaturalasériedeacontecimentos por ela referidos. Concluí que, depois da guerra acabar,voltaraasecasarouse juntaraaalgumhomemqueaprotegiaeao ilho.Depois, talvez esse homem tivesse morrido ou a tivesse abandonado e,nessa altura,Martine devia ter achado justo apelar à família de Edmund,comoelepróprioqueriaqueela izesse.Acartapareceugenuínaenatural,masHaroldnotouque,seacartafosseobradeumimpostor,deviatersidoescrita por uma mulher que conhecera Martine, que estava noconhecimentodetodososfatose,porconseguinte,aptatambémaescreverumacartaabsolutamenteplausível.Tivedeadmitiraverdadedisso...mas...

Calou-se.–Queriasecertificar?–perguntouCraddock.Emmaolhou-o,comumaexpressãodereconhecimento.–Sim,queriamecerti icar.Ficariatãocontente,seEdmundtivesse

deixadoumfilho.Craddockmeneoucompreensivamenteacabeça. – Como disse, a carta parece genuína. O que é surpreendente é a

suasequência.AabruptapartidadeMartineparaPariseofatodenãotertornado a ter notícias dela. A senhora havia-lhe respondido gentilmente,dizendo-lheque todosestavamprontosarecebê-la.Porquenão tornouaescrever, ainda que tivesse sido obrigada a regressar a França? Se setratavadeumaimpostura,ofatotemsimplesexplicação.PenseiquetalvezasenhorativesseconsultadoMrWimborneequeestehouvesseprocedidoa um inquérito que a alarmasse.Mas disse-me que não falou no caso aoseu advogado.No entanto, é possível que algumdos seus irmãos o tenhafeito.EpossívelqueessaMartinetenhaumpassadopoucorecomendávelepensassequetratariaapenascomaafeicoadairmãdeEdmundenãocomhomensdenegócios,desconfiados.

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Podeteresperadoextorquir-lhefacilmentedinheiroparaacriança,que,aliás,deveseragoraumrapazdequinzeoudezasseisanos.Mas,emvezdisso,deparou-se-lheumacoisamuitodiferente.No imdecontascreioque seriam levantados sérios aspetos legais. Se Edmund Crackenthorpedeixouum ilho,nascidodomatrimónio,esse ilhoseriaumdosherdeirosdafortunadeseuavô,nãoéverdade?Emmafezquesim,comacabeça.

– Além disso, segundo me disseram, na devida altura, herdariaRutherfordHalle todoo terrenoemvolta.Éprovávelquese tratedeumterrenoagoramuitovaliosoparaconstruções.

Emmapareceuumpoucoespantada.–Sim,nãotinhapensadonisso. –Bem, não se preocupe – tranquilizou o inspetor Craddock. – Fez

muito bem em vir me procurar. Procederei a investigações, mas parecemuito provável que não haja qualquer relação entre a mulher queescreveuacarta(equeprovavelmenteprocuravaextorquir-lhedinheiro)eamulhercujocorpofoiencontradonosarcófago.

Emmalevantou-secomumsuspirodealívio. – Sinto-me satisfeita comigo própria por ter contado tudo isto,

inspetor.Foimuitogentilparamim. Craddock acompanhou-a à porta. Depois telefonou ao sargento-

detetiveWetherall. –Bob, tenhoum trabalhopara você.Vá ao cento e vinte e seis da

Elvers Crescent, número dez. Leve consigo fotogra ias da mulher deRutherfordHall.Vejaoqueconseguedescobriracercadeumamulherquedisse chamar-se Mrs. Crackenthorpe. Mrs. Martine Crackenthorpe, queviviaaliou recebiaali a correspondência, entre,digamos,odiaquinzedeDezembroeofimdessemês.

–Muitobem. Craddock tratou de vários outros assuntos que requeriam a sua

atençãoeàtardefoiprocurarumagentedeteatrodequemeraamigo.Oseuinquéritofoiinfrutífero.

Nessemesmodiaainda,aovoltaraoseugabinete,encontrou,sobreamesa,umacartadeParis.

Asindicaçõesquedeupodemaplicar-seaAnnaStravinski,doBalletMaritski.Sugiroasuavinda.Dessin,Prefeitura.

Craddock soltou um profundo suspiro de alívio e a frontedesanuviou-se-lhe.

–Atéqueenfim!

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XIII

– Foi tão amável em convidar-me para tomar chá consigo – disseMissMarpleaEmmaCrackenthorpe.

MissMarplepareciaumaverdadeirasenhora, idosae terna.Oseuolhar rebrilhava, enquanto examinava os presentes à sua volta. HaroldCrackenthorpenoseufatoescuro,debomcorte,eAlfred,queofereciacomum sorriso encantador o prato de sanduíches a Cedric, de pé, junto àescarpa da chaminé, num casaco de tweed coçado e olhando carrancudoparaorestodafamília.

– A sua visita deu-nos muito prazer – replicou Emma,delicadamente.

Nadadeixavaperceber a cenaque tivera lugar, depoisdo almoço,quandoEmmaexclamara:–Ah,jámeesquecia.DisseaMissEyelesbarrowquepodiaconvidar,hoje,avelhatia,paratomarcháconosco.

–Manda dizer que não venha – disse Harold, de súbito. – Temosaindamuitoqueconversarenãoqueremosapresencadeestranhos.

–Manda-a tomar chá na cozinha, ou noutro sítio qualquer, com amoça–sugeriuAlfred.

–Não,nãopossofazerisso–redarguiuEmmacom irmeza.–Seriaumafaltadeeducaçãodaminhaparte.

–Oh,deixem-navir–propôsCedric.–Podemossondá-laumpouco,acercadamaravilhosaLucy.

Gostariadesabermaiscoisasarespeitodessamoça.Nãomemereceinteiraconfiança.Acho-ademasiadoesperta.–Estámuitobemrelacionadaeéabsolutamentegenuína–declarou

Harold.–Tireiinformações.Achei estranho que andasse ameter o nariz por todos os cantos e

tivessedescobertoocorpo. – Se ao menos soubéssemos quem essa mulher era – lamentou

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Alfred.Haroldacrescentoucolericamente:–Acho,Emma,quenãoestavas

de teu juízo perfeito, quando foste sugerir à polícia que essa mulherassassinada podia ser a noiva francesa de Edmund. Ficarão convencidosdequeaquiveioedequeprovavelmenteumdenósamatou.

–Não,Harold.Nãoexageres.–Haroldtemtodaarazão–interveioAlfred.Nãoseioquetepassou

pela cabeça. Tenho a sensaçãode que sou seguido, por toda a parte, poragentesàpaisana.

–Eudisse-lhequenãoo izesse–declarouCedric -,masQuimperconcordoucomela.

–Esteassuntonãolhedizrespeito–observouHarold,irado.–Quetratedepílulas,depósedaSaúdePública.

–Paremcomadiscussão–pediuEmmaemtomfatigado.–Estoudefato satisfeita por essa velhaMiss Qualquer Coisa vir tomar chá conosco.Far-nos-ábemapresencadeumestranho.Deixaremos,pormomentos,derespirarcontinuamenteomesmoassunto.

Vouarranjar-me.Saiudasala.–EstaLucyEyelesbarrow...–começouHarold,parandoemseguida.

– Como Cedric diz, é de fato estranho que tivesse ido meter o nariz noceleiroetivesseabertoosarcófago...oque,narealidade,éumtrabalhodeHércules. Talvez devamos fazer qualquer coisa. Achei a sua atitude,duranteoalmoço,bastanteantagónica...

– Deixa-a comigo. Não tardarei a descobrir se anda empenhadanalgumacoisa.Porquehaviadeabriro sarcófago?!–Talveznãoseja,naverdade,LucyEyelesbarrow–sugeriuCedric.

– Mas qual seria a vantagem... ? – Harold pareceu terrivelmentetranstornado.–Oh,c'osdiabos.

Entreolharam-secomumaexpressãopreocupadanorosto. – Aí vem essa pestilenta velhota tomar chá. Precisamente quando

queríamospensar. –Discutiremoso assunto esta tarde – decidiuAlfred. – Entretanto

sondaremosavelhota,acercadasobrinha.Porconseguinte,MissMarpleachava-seagorains114I115taladaà

lareira,sorrindoparaAlfred,quelheoferecerasanduíches.–Muitoobrigada...São...?Ah,sim,ovoesardinha.Deliciosas.Creio

que sou muito gulosa, quando tomo chá. Com a idade, compreende... Ànoite, tomo apenas uma refeição muito ligeira... Tenho de ter cui dado –

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virou-se uma vez mais para a sua an itriã. Que linda casa a sua! E temtantascoisasbonitas.

Aqueles bronzes, por exemplo, recordam-me uns que meu paicomprou...naExposiçãodeParis.Devesermuitoagradávelparavocê terosseusirmãosconsigo.

'Muitasvezes"osmembrosdeuma famíliaestãosepa rados:ounaIndia,emboramepareçaque,poraí,jánadahajaafazer;ouemÁfrica...Acostaocidentaltemumclimahorrível!...

–DoisdosmeusirmãosvivememLondres.–Deveseragradáveltê-losperto. – Mas meu irmão Cedric é pintor e vive em Ibiza, uma das ilhas

Baleares.–Ospintoresgostammuitodeilhas,nãoéverdade?Chopin...esteve

emMaiorca, não esteve? Mas esse era músico. É em Gauguin que estoupensando.Umavidatriste...desperdiçada.Eupróprianãoaprecioquadrosde mulheres nativas... e, no entanto, sei que Gauguin é muito apreciado.Nunca gostei muito dessa cor de mostarda acobreada. Quando olhamosparaosseusquadros,parece-nosqueestamoscomicterícia.

OlhouparaCedriccomumarumpoucoreprovador. – Fale-nos de Lucy, nos seus tempos de criança, Miss Marple –

pediuele.Elaolhou-o,desvanecida.–Lucyfoisempremuitointeligente–começou.–Sim,vocêtambém,meu ilho...masnão interrompa.Emaritmética

eraextraordinária.Recordo-medeumavezemquehouveumenganonaconta do açougue e... Miss Marple contou numerosas reminiscências dainfânciadeLucyedestaspassouaacontecimentosdasuaprópriavida,naaldeia. Foi interrompida pela chegada de Bryan e dos rapazes, muitosuados e sujos em consequência de uma entusiástica procura de pistas.Poucodepois,apareceuoDr.Quimper,queergueu levementeosobrolho,aoolharàsuavolta,depoisdetersidoapresentadoàvelhasenhora.

–Esperoqueseupainãoestejamaldisposto,Emma.–Não...istoé,estatardesentiu-seapenasumpoucocansado... –Para fugiràsvisitas, calculo–disseMissMarplecomumsorriso

travesso. – Que bemme lembro domeu querido pai. “Estás à espera detodasessasvelhotas?”,costumavadizeraminhamãe.“Mandaservirem-meochánoescritório.”Eramuitomaroto.

–Porfavor,nãojulgue...–começouEmma,masCedricinterveio.–Quandoosseusqueridos ilhosestãoaquitomasempreocháno

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escritório.Dopontodevistapsicológico issoédeesperar,nãoéverdade,Dr.? O Dr. Quimper, que devorava sanduíches e uma talhada de bolo decafécoma françaapreciaçãodeumhomemquedispõehabitualmentedepouco tempo para gastar nas refeições, respondeu: – A psicologia é umacoisa muito bonita, quando é tratada por psicólogos, mas, hoje em dia, omalestáemquetodaagenteépsicólogaamador.Osmeusdoentescontamexatamente os complexos e neuroses de que sofrem, sem me daremoportunidadede ser eu a lhes dizer. Obrigado, Emma. Tomooutra xícaradechá.Hojenãotivetempoparaalmoçar.

– Acho que a vida de um médico é tão nobre e tão cheia deabnegação–comentouMissMarple.

O Dr. Quimper, depois de engolir uma última porção de bolo,elogiou:–Quebolomagnífico,Emma.Éumaesplêndidadoceira.

–Nãofuieuquemofez.FoiMissEyelesbarrow.–Masvocêsabefazê-losigualmentebons–retorquiuoDr.Quimper

comlealdade. – Quer ir ver meu pai? Levantou-se e o médico seguiu-a. Miss

Marpleobservou-osenquantoseafastavam.–VejoqueMissCrackenthorpeéumafilhamuitodedicada. – Eu próprio não compreendo como ela pode aturar o velhote –

disseCedric. – Esta casa é muito confortável e o pai lhe é muito afeiçoado –

explicouHaroldrapidamente.–Emmasente-sebem.Nasceuparaficarsolteirona.NoolhardeMissMarplehaviaumlevefulgor,quandodisse:–Acha

isso? Harold apressou-se a responder: – Meu irmão não usou o termosolteironanumsentidodepreciativo,MissMarple.

–Oh,nãomeofendi–assegurouMissMarple.–Estavaapenaspensandoseeleteriarazãonoquedisse.Nãoacho

queMissCrackenthorpesejaotipodesolteirona.Achoatéqueéotipodemulherquecasatarde...eéfelizcomocasamento.

–Vivendoaquicomovive,nãoémuitonaturalque issoaconteça–disseCedric.–Nuncafalacomninguémcomquempossacasar.

OfulgordosolhosdeMissMarpletornou-seaindamaisacentudado.–Hásempresacerdotese...médicos.Osseusolhos,ternosemaliciosos,observaramosirmãosdeEmma

Crackenthorpe.Eraóbvioque lhes sugerirauma coisa, quenunca lhes ocorrera e

quenãoachavamsobremaneiraagradável.

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MissMarplelevantou-se,deixandocair,aofazê-lo,umxalezinhodelãeabolsa.

Ostrêsirmãosapanharam-nosatenciosamentedochão. – São muito gentis – agradeceu Miss Marple. Ah, sim, a minha

mantinha azul. Sim, foram muito amáveis em convidarem-me. Vinhapensandocomoseriasuacasa...paraimaginarLucytrabalhandoaqui.

– Tem perfeitas condições domésticas... com um assassinatointramuros–brincouCedric.

–Cedric!–exclamouHarold,numtomsevero.MissMarplesorriuparaCedric.–Sabequemmefazlembrar?OjovemThomasEade, ilhodonosso

diretordobanco.Sempreprontoaimpressionaraspessoas.Estáclaroque,emcírculosbançários,issonãofoibemaceitee,porconseguinte,foipararàsÍndiasOcidentais.Regressouàpátria,pormortedopai,eherdoumuitodinheiro. Isso foi óptimopara ele, pois teve sempremuitomais jeitoparagastardinheirodoqueparaganhá-lo.

LucylevouMissMarpleacasa.Noregresso,uma iguradestacou-seda sombra e parou no fulgor dos faróis, precisamente quando ia virar ocarro, para entrar pela azinhaga dos fundos. A igura estendeu a mão eLucyreconheceuAlfredCrackenthorpe.

– Aqui dentro está-semelhor – observou.Brr, lá fora está um friomedonho.Penseiquemeseriaagradáveldarumavolta,masenganei-me.Asuatiachegoubemacasa?–Sim.Gostoumuitodetervindo.

– Isso viu-se. E engraçado como as pessoas de idade apreciam asreuniões sociais, por muito monótonas que estas sejam. E, na realidade,nadapodiasermaismonótonodoqueRutherfordHall.Nãopossosuportaresteambientemaisdoquedoisdiasseguidos.

Comoéquevocê consegueviver aqui, Lucy?Não se importaqueatrate por Lucy, pois não? – Certamente que não. Não acho a vida aquimonótona.Claroestáquenãovivoaquiatítulopermanente.

–Tenhoestadoaobservá-la...Você,Lucy,éumamoçaespertaemalempregadacozinhandoelimpando.

–Obrigado,maspre irooserviçodecozinhaea limpezaaoserviçodeescritório.

–Tambémeupreferiria,masháoutrasmaneirasdeviver.Podiaserindependente.

–Jásou.–Masnãodestamaneira.Querodizer,trabalharporsuaconta.Não

lheagradaaideia?

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–Talvez.Lucymeteuocarronoestábulo.–Nãoquersecomprometer?–Precisoserconvencida.– Sinceramente, minha lor, você podia me servir. Tem umas

maneirasformidáveis...queinspiramconfiança.–Querqueoajudeavendertijolosdeouro?–Nada tão arriscado como isso. Apenas um nadinha àmargem da

lei... nada mais. – Sua mão pegou o braço de Lucy. – Você, Lucy, é umamoçamuitoatraente.Gostariadetê-lacomosócia.

–Sinto-melisonjeada.–Querdizerquenãosesenteconvencida?Pensenoquelhedisse.

Pense no prazer que tiraria em exceder, em astúcia, todas essas pessoassensatasqueháporaí.Adificuldadeestáemqueénecessáriocapital.

–Tenhopena,masnãotenhonenhum.–Oh,istonãofoiparatestá-la.Dentroembrevetereimãoalgum.O

meu respeitávelpapainãoé eterno.Éumvelhoavarento.Quando fecharosolhos,recebereiumaboadosedegrana.

Quemediza isto,Lucy?–Quais sãoascondições?–Casamento, sequiser.Asmulheresparecemdesejá-lo, sempre!Alémdisso,asmulherescasadasnãopodemserobrigadasatestemunharcontraosmaridos.

– Isso já não é tão lisonjeiro! – Vamos, Lucy. Ainda nãocompreendeu que estou apaixonado por si? Com certa surpresa, Lucyapercebeu-se de uma estranha fascinação. Alfred possuía um certoencanto, devido talvez ao seumagnestismo, nitidamente animal. Riu-se esoltou-sedoseubraçoenvolvente.

–Nãoéhoraebrincar.Tenhodetratardojantar. – Pois sim, você é uma cozinheira maravilhosa. Que há para o

jantar?–Espereeverá!Vocêé tão curiosocomoosgarotos!Entraramem

casaeLucyapressou-seairparaacozinha.Ficouumpoucosurpreendida,aoserinterrompidaemseutrabalhoporHaroldCrackenthorpe.

– Miss Eyelesbarrow, posso falar consigo a respeito de um certoassunto? – Poderá ser mais tarde, Mr Crackenthorpe? Estou um poucoatrasada.

–Claro,claro.Depoisdojantar?–Poissim.Ojantarfoidevidamenteservidoeapreciado.Lucyacaboudelavar

a louça e foi encontrar-se comHarold Crackenthorpe, que a esperava noátrio.

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– Que deseja, Mr Crackenthorpe? – Quer entrar para aqui? –perguntou este abrindo a porta da sala de visitas e entrando primeiro.DepoisdeLucyentrar,fechouaporta.

–Devopartir amanhãdemanhã,muito cedoexplicou -,masquerodizer-lhe que iquei muito agradavelmente impressionado com a suacompetência.

–Obrigada–disseLucy,sentindo-seumpoucosurpreendida.–Achoqueosseustalentosestãomalempregadosaqui...muitomal

empregados.–Achaisso?Poiseunão. ¦cSeja como for, este não pode pedir-me em casa inento” pensava

Lucy. “ Já temmulher. “ 120 ¦ 121 – Sugiro que, depois de se ir emboradaqui,meváprocuraremLondres.Sequisertelefonar-meacombinarumencontro,deixarei instruçõescomminhasecretária.Averdadeéqueumapessoa com a sua capacidade nos seria útil, na irma. Posso oferecer-lhe,Miss Eyelesbarrow, um esplêndido salário e uma perspetiva brilhante.Creio que icará agradavelmente surpreendida – acrescentou com umsorrisomagnânimo.

Lucydisse,comumarmodesto:–Obrigada,MrCrackenthorpe,voupensarnisso.

–Não levemuito tempoa fazê-lo.Uma jovemansiosaporarranjarumaboasituaçãonestemundonãodeveperderestasoportunidades.

Voltouasorrir.–Boanoite,MissEyelesbarrow,durmabem. “Ora, sim senhor...”, pensouLucy “tudo isto émuito interessante. “

Aosubirasescadasparairdeitar-se,cruzou-secomCedric.–Escute,Lucy,precisoconversarcomvocê,acercadeumacoisa.–Querquecasecomvocê,queosigaatéIbizaetratedevocê?Cedricpareceumuitosurpreendidoeumpoucoalarmado.–Nuncamepassoutalcoisapelacabeça.–Desculpe,meenganei.–Queriaapenassaberseháumhoráriodosdostrensaquiemcasa.–Erasóisso?Háumemcimadamesadoátrio.–Sabe–admoestouCedric–,vocênãodeveacharquetodomundo

quersecasarcomvocê.Vocêéumamoçaengraçada,masnãoénenhumabeleza.

Há um nome para isso... Para dizer a verdade, você é a moça domundocomquemmenosmeagradariacasar.Percebeubem?–Asério?–perguntouLucy.–Talvezmeprefiracomomadrasta?

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–Quediz?–exclamouCedric,fitando-a,estupefato.–Ouviumuitobemoqueeudisse–redarguiu,entrandonoquarto

efechandoaporta.

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XIV

DermotCraddockconversavacomArmandDessin,daPrefeituradeParis. Os dois homens já se ti nham encontrado uma ou duas ocasiõesantes e ' davam-sebem.ComoCraddock falava luentemente o françês, amaiorpartedaconversadecorreunesseidioma.

– É apenas uma ideia – acentuou Dessin. – Te nho aqui umafotogra ia do corpo do ballet. Aqui está ela. É a quarta a contar daesquerda...Quediz?–Talvezseja–admitiu -,masnadamaispossodizer.Quemeraela?Quesabea seurespeito?–Quasenada– replicouooutro,comanimação.

– Não era uma bailarina de categoria, compreende, e o BalletMaritskitambémnãoédecategoria.Exibe-senosteatrossuburbanosefaztournées.Nãocontanomesfamosos.Masvoulevá-loaMadameJolietqueéapessoaqueodirige.

MadameJolieteraumasenhorafrancesa,desembaraçada,deolharastuto,depequenobigodeecomboadosedetecidoadiposo.

– A mim a polícia não me agrada! – declarou, olhando-os, desemblantecarrancudo.–Semprequepodem,causam-meaborrecimentos.

–Não, não,madame, não deve dizer isso defendeu-seDessin, queeraumhomemalto,magroedeaspetomelançólico.–Quandoéqueeulhecausei aborrecimentos? – Quando aquela idiota bebeu ácido fénico –respondeuMadameJolietprontamente.–Etudoissoporqueseapaixonoupelochefedeorquestra...quenãogostademulherese temoutrosgostos.Por causa disso, vocês izeramumbicho-de-sete-cabeças, o que não é deformaalgumabomparaomeubeloballet.

– Pelo contrário, isso provoca uma série de lotações esgotadas –assegurou Dessin. – Mas isso passou-se há três anos. Não deve serrancorosa.Queriaapenasfalar-lhedessamoça,AnnaStravinski.

–Quequerquelhediga?–perguntouprudentemente.

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–Érussa?–interessou-seoinspetorCraddock.–Não.Pergunta issoporcausadonome?Todasessasmoçasusam

nomesdesses.Nãoerauma iguraimportante,nãodançavabemenãoerabeleza nenhuma. Elle était assez bien, c'est tout. Dançava razoavelmenteemconjunto...maseraincapazdefazerumsolo.

– Era francesa? – Talvez. Tinha um passaporte françês, mas umavezdisse-mequeeracasadacomuminglês.

– Disse-lhe que era casada com um inglês? Vivo... ou morto?MadameJolietencolheuosombros.

– Ou morto, ou tinha-a abandonado. Como hei-de sabê-lo? Estasmoças...arranjamsempreproblemascomhomens...

–Quandoa viupelaúltimavez? –Esteve comaminha companhiaem Londres, durante seis semanas. Representamos em Torquay, emBournemouth, em Eastbourne, num outro sítio de que nãome recordo eemHammersmuth.Depois regressamos a França,masAnna... não voltou.Enviouapenasumtelegramaaparticiparquesaíadacompanhiaeque iaviver com a família do marido... ou qualquer disparate assim. Eu nãoacrediteinaquilo.Achomaisprovávelquetenhaarranjadoumhomem.

O inspetorCraddockmeneoua cabeça emsinal í de concordância.CompreendeuserissooqueMadameJolietpensavainvariavelmente.

– Não me importei com isso. Posso arranjar moças tão boas oumelhoresdoqueelaparadançare,porconseguinte,encolhiosombrosenão voltei pensando no assunto. Por que haveria deme importar? Essasmoçassãotodasasmesmas:perdemacabeçacomoshomens.

–Quandofoiisso?– O nosso regresso a França? Foi... no domingo antes do Natal. E

Annanosdeixoudois...outrêsdiasantes.Nãomerecordoexatamente. Madame Joliet fez uma pausa e depois inquiriu com um súbito

fulgor de interesse no olhar: – Por que pretendem encontrá-la? Herdoualguma fortuna? – Pelo contrário – replicou o inspetor Craddock comdelicadeza.–Achamosquetenhasidoassassinada.

Madame Joliet voltou a mostrar-se indiferente: – Ça se peut.Acontece.Eraumaboacatólica.Iaàmissaaosdomingoseconfessava-se.

–Algumavezlhefalounum ilho,madame?–Num ilho?Querdizerqueelatinhaum ilho?Achoissomuitopoucoprovável.Todasessasmoçasconhecemumaendereçoútilaondeir.MonsieurDessinsabeissotãobemcomoeu.

–Podetertidoum ilho,antesdehaverabraçadoavidadeteatro–sugeriuCraddock.–Duranteaguerra,porexemplo.

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–Ah!Danslaguerre!Issoésemprepossível.Mas,nessecaso,nadaseiaesserespeito.

–Quaiseramassuascompanheirasmais íntimas?–Posso indicar-lhedoisoutrêsnomes...maselanãoeramuitoíntimadenenhumadelas.

UmaouduasdelastinhamconhecidoAnnarelativamentebem,masdisseramqueestanuncafalavamuitodesiprópriaeque,quandoofazia,eraparadizerquasetudomentiras.

–Gostavade inventar coisas... ter sido amante de umgrão-duque...oudeumgrande inanceiro inglês... ouque trabalharaparaaResistênciaduranteaguerra.

Chegouainventarquetinhaentradonumfilme,emHollywood.Aentrevistapoucoadiantara.Tudoquantopareciaapurar-seéque

AnnaStravinskiforaumagrandementirosa,mastão-poucohaviaqualquerrazãopara acreditarqueo seu corpo fora encontradonumsarcófagoemRutherfordHall.A identi icação feitapelasmoças eporMadame Joliet foimuitoimprecisaehesitante.TodasconcordaramquepareciaserAnna.

Mas,comfranqueza!Aquelecorpotãoinchado...podiaserqualqueroutra pessoa! O único fato que se estabeleceu foi que, no dia 19 deDezembro,AnnaStravinskiresolveranãoregressaraFrançaeque,nodia20deDezembro,umamulhercomoseuaspetoviajounotremdasquatroetrintaetrêsparaBrackhamptoneforaneleestrangulada.

SeamulherencontradanosarcófagonãoeraAnnaStravinski,ondeestava esta agora? A isto, Madame Joliet respondeu de modo simples eseguro:–Estácomumhomem.

Craddockadmitiu,noíntimo,seressaarespostamaisprovável.Haviaumaoutrapossibilidadeaconsiderar,dadoqueAnnadissera,

emcertaocasião,terummaridoinglês. Esse marido teria sido Edmund Crackenthorpe? Isto parecia-lhe

improvável,atendendoàdescriçãodeAnna,quelheforafeitaporaquelesque a conheciam. Eramuitomais provável queAnna tivesse conhecido apequena Martine com su iciente intimidade para estar a par dosnecessáriospormenores.PodiatersidoAnnaquemescreveraaquelacartaaEmmaCrackenthorpee, nesse caso,Annapodia ter-se assustadoao terconhecimento de um inquérito. Pode até ter achado prudente cortar assuasligaçõescomoBalletMaritski.Masondeestavaelaagora?E,denovoeinevitavelmente,arespostadeMadameJolietpareceumaisprovável.

Comumhomem... Antes de partir de Paris, Craddock discutiu comDessin o caso da

mulherchamadaMartine.

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O último assegurouque a Sûreté faria o possível por descobrir sehavia algum registro de casamento realizado entre o tenente EdmundCrackenthorpe,do4.¦RegimentodoSouthshire, euma jovem francesadenomeMartine,poucoantesdaquedadeDunquerque.

Denovonoseugabinete,CraddockouviuainformaçãodosargentoWetherall.

– O cento e vinte seis da Elvers Crescent é uma pensão. Muitorespeitável.

– Algumas identi icações? –Não, ninguém reconheceu a fotogra iacomosendoadamulherque iabuscaracorrespondência,mas tão-poucoachoquefossemcapazesdereconhecê-la...Jálávaiquaseummêseentraesaimuitagentedessacasa.Éumapensãoparaestudantes.

–Podeláterestadosoboutronome. – Apesar disso, não a reconheceram pela fotogra ia. – E

acrescentou:–Corremososhotéis,masonomedeMartineCrackenthorpenão iguranoregistrodequalquerdeles.Deacordocomoseutelefonemade Paris, procedemos a investigações acerca de Anna Stravinski. Esteveregistada com outro elemento da companhia num hotel barato de BrookGreen.Amaioriadegentedeteatroviveaí.Desapareceunanoitedeterça-feira,diadezenove,depoisdoespetáculo.

Craddock, depois de re letir uns momentos, telefonou paraWimborne, Henderson & Carstairs a pedir uma entrevista com Mr.Wimborne.

Pouco tempo depois, foi introduzido num pequeno gabinete, semventilação, onde Mr. Wimborne se achava sentado a uma enorme mesa,cobertacommontesdepapéispoeirentos.

Mr.Wimbornemirouovisitantecomacautelacortêscaracterísticadeumadvogadodefamíliaparacomapolícia...

– Em que posso ser-lhe útil, inspetor? – Esta carta... – CraddockpousouacartadeMartinesobreamesa.

Mr. Wimborne tocou-lhe enfastiado com um dedo, mas não lhepegou.Asfacescoloriram-se-lheaodeleveeapertouoslábios.

– Exatamente, exatamente! – proferiu. – Recebi, ontem demanhã,uma carta de Miss Emma Crackenthorpe informando-me da sua visita àScotland Yard e de... de todas as circunstâncias. Devo dizer que nãocompreendo por que razão não fui consultado acerca desta carta, mal areceberam!Émuitissimoextraordinário!Deviamter-meinformadologo...

OinspetorCraddockprocurouacalmá-lo.–NãofaziaamenorideiaquantoaofatodeEdmundter-secasado–

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queixou-seMr.Wimborne,numavozmagoada.OinspetorCraddocksugeriuotempodeguerracomodesculpa,mas

Wimborne atalhou, com aspereza: – Tempo de guerra! – Depois,considerou e prosseguiu. – Sim, na verdade, quando a guerra estalou,achávamo-nos em Lincoln's Inn Fields e a casa ao lado da nossa foibombardeada e muitos dos nossos arquivos icaram destruídos. Não osimportantes, pois estes tinham sido transferidos para o campo, comomedida de segurança. Mas isso causou uma enorme confusão. Nessaaltura, os assuntos dos Crackenthorpe estavam nas mãos de meu pai.Morreuháseisanos.

ÉpossívelquelhetenhamfaladonessecasamentodeEdmund,mas,peloquesabemos,parecequetalcasamentonuncaserealizoueque,porconseguinte, meu pai não atribuiu importância ao caso. Devo dizer queachotudoistomuitosuspeito.Esseenviodenotícias,depoisdetantosanos,afalarnumcasamentoenum ilholegítimo...é,defato,muitosuspeito.Queprovastinhaela,gostariamuitodesaber?

–Exatamente–concordouCraddock.–Qualseriaasuaposiçãoouadofilho?

–SuponhoqueaideiadelafosselevarosCrackenthorpeasustentá-laeaofilho.

– Sim, mas, quero dizer, a que teriam legalmente direito... se elaprovasseasuapretensão?–Ah,compreendo.–Mr.Wimbornepegounosóculos, que tirara, na sua irritação, e pô-los, olhando com atenção para oinspetorCraddock.

– Bem, por ora, nada.Mas se ela conseguisse provar que o rapazera ilhodoseucasamentolegalcomEdmundCrackenthorpe,nessecaso,orapaz estaria habilitado, por morte de Luther Crackenthorpe, a receberpartedodinheirodeixadopor JosiahCrackenthorpe.Alémdisso,herdariaRutherfordHall,vistoserfilhodoseufilhomaisvelho.

–Alguémquerherdara casa?–Para láviver?Achoquenão.Masessa propriedade, meu caro inspetor, vale uma considerável soma dedinheiro. Uma somamuito considerável. E um terreno esplêndido para aconstruçãoefinsindustriais.

É um terreno que ica agora no coração de Brackhampton. Sim, éumaherançaconsiderável.

– Creio que me disse que por morte de Luther Crackenthorpe éCedricquemaherda,nãoéverdade?–Sim,herdaapropriedade...porserofilhomaisvelhosobrevivente.

– Segundo me deram a entender, Cedric Crackenthorpe não se

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interessamuitopordinheiro.Mr.Wimbornemirou-ocomfrieza. – Sim? Pois eu sinto-me inclinado a não dar importância a

declarações dessa natureza. Não há dúvida 128 129 1 de que existempessoasquesãoindiferentesaodinheiro,masnuncaconhecinenhuma.

Mr.Wimbornesentiuobviamenteprazeremfazerestaobservação.OinspetorCraddockapressou-seaaproveitaresteraiodesol. – Parece que Harold e Alfred Crackenthorpe icaram muito

transtornadoscomachegadadessacarta.–Emuitonatural. – A sua eventual herança icaria diminuída? – Decerto. O ilho de

Edmund Crackenthorpe, continuando a admitir que existe um ilho, teriadireito a um quinto do dinheiro depositado, mas isso é um motivoabsolutamente inadequado para um assassinato, se é isso que pretendedizer.

–Massuponhoqueambosestãocomas inançasmuitoembaixo–murmurou Craddock, sustentando o olhar penetrante de Mr. Wimbornecomabsolutaimpassibilidade.

– Ah! A polícia procedeu a inquéritos? Sim, Alfred está quasesempre sem dinheiro. De vez em quando, nada nele durante um breveespacodetempo...masdepressasesome.Harold,talcomoosenhorpareceterdescoberto,estánestemomentoempreaquiriasituacão.

–Apesardasuaaparênciadeprosperidade inanceira?–Tudoissoéfachada!Metadedessasempresasnemsequersabemsesãosolvíveisounão.Asfolhasdebalançopodemserfeitasdemodoapareceremcorretasaumolhonãoperito.Mas,quandoosactivosdeumacasacomercialestãoregistadosenãosãodefatoactivos,emquesituaçãoseestá?–Naquelaemque,provavelmente,HaroldCrackenthorpeseencontra,istoé,comgrandefaltadedinheiro.

– Ora, ele não o obteria se estrangulasse a viúva do irmão –observouMr.Wimborne.–EninguémmatouLutherCrackenthorpe,oqueconstituiriaoúnicoassassinatoquebeneficiariaorestodafamília.

Porconseguinte,inspetor,nãovejo,defato,aondequerchegar.OpioréqueopróprioinspetorCraddocktambémnãoosabiamuito

bem.

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XV

O inspetor Craddock combinara uma entrevista com HaroldCrackenthorpe no gabinete deste último, e tanto ele como o sargentoWetherall tinham chegado ali pontualmente. O gabinete icava no quartoandar de um grande edi ício de repartições da City. O seu interiordenotava em toda a parte prosperidade e o auge do moderno gosto dedecoração.

Uma jovem impeaquivel informou-se do seu nome, falou nummurmúrio discreto por um telefone interno e depois, levantando-se,conduziu-osaogabineteparticulardeHaroldCrackenthorpe.

Esteachava-se instaladoaumaenormemesadetampodecouroetinhaohabitualaspetoimpeaquivelecon iante.Seseencontravapertodaruína,nadaodenotava.

Olhouosrecém-chegadoscomuminteressefrancoeacolhedor. –Bomdia, inspetorCraddock. Suponhoque a sua visita signi ique

quetemfinalmentealgumanotíciadefinitivaadar-nos. – Lamento,MrCrackenthorpe,masnão é isso. Trata-se apenasde

maisalgumasperguntasquegostariadefazer. – Mais perguntas? Certamente que já respondemos a todas as

perguntasprecisas.–Epossívelqueacheisso,MrCrackenthorpe,mastrata-sesomente

deumaquestãodanossarotinahabitual.–Bem,destavez,oqueé?–perguntou,comimpaciência. – Gostaria que me dissesse exatamente o que fez na tarde e na

noitedodiavintedeDezembroúltimo...digamos,entreastrêshorasdatardeeameia-noite.OrostodeHaroldCrackenthorpeficourubrodecólera.–Achoessaperguntamuitoextraordinária.Quer fazer o favor de me dizer o que signi ica? Craddock sorriu

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amavelmente e respondeu: – Signi ica apenas que desejo saber ondeesteveentreastrêshorasdatardeeameia-noitedesexta-feira,diavintedeDezembro.

–Porquê?–Asuarespostafacilitaráoinquérito.–Nãoseisedevaresponderàsuapergunta. Istoé,semestaraqui

presenteomeuadvogado. – Faça como entender – replicou Craddock.Não é obrigado a

responder a quaisquerperguntas e tem todoo direito à presencadeumadvogado.

– Não estará a avisar-me, de certa maneira? – Não, senhor –a iancou o inspetor Craddock, mostrando-se chocado. – Nada disso. Asperguntasquelhefaço,faço-astambémaváriasoutraspessoas.

Trata-seapenasdeumaquestãodenecessidadedeeliminacóes. – Sim, deceno... Tenho todo o desejo de ser tão útil quantome for

possível.Ora,deixe-mever.Arespostaaoquemeperguntanãoé fácildedar logo, mas nós, aqui, somos muito ordenados. Espero que Miss Ellispossaajudar.

Falou por um dos telefones internos e quase imediatamente umajovemde linhasaerodinâmicas,num fatodesaiae casaconegro,decorteimpeaquivel,entrounogabinete,comumblocodenotas.

–Apresento-lheaminhasecretária,MissEllis.OinspetorCraddock.MissEllis,oinspetorqueriasaberoque izna

tardeenanoitede...dequediadisse?–Desexta-feira,vintedeDezembro. – Sexta-feira, vinte de Dezembro. Espero que tenha alguma

anotação.–Comcerteza.–MissEllisretirou-separavoltarpoucodepoiscom

umcalendário-memorandoquefolheou. – Namanhã do dia vinte de Dezembro, esteve aqui no escritório.

Conferenciou com Mr Goldie acerca da fusão de sociedades Cromartie,almoçoucomLordForthvilleemBerkeley...

–Sim,sim,foinessedia. – Voltou ao escritório cerca das três horas e ditoumeia dúzia de

cartas. Depois saiu para ir às salas Sotheby assistir a um leilão demanuscritos em que estava interessado. Não voltou ao escritório, mastenho aqui indicação para recordar-lhe que nesse dia devia ir jantar aoCateringClub–terminouMissElliserguendooolharinterrogativamente.

–Obrigado,MissEllis.Asecretáriaretirou-sedogabinete. – Recordo-me agoramuito bemde tudo issodisseHarold. –Nessa

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tarde fui ao Sotheby, mas os manuscritos que eu queria foram leiloadosporumprecoexagerado.TomeichánumapequenacasadaJermynStreet,creio que se chama Russells. Passei cerca de meia hora num teatro devariedades e depois fui para casa... Vivo no número quarenta e três deCardiganGardens.OjantardoCateringClubrealizou-seàsseteemeianoCaterer's Hall e depois disso voltei para casa e deitei-me. Acho que istorespondeàssuasperguntas.

–Estátudomuitoclaro,MrCrackenthorpe.Quehoraseramquandofoivestir-seacasa?–Nãomerecordobem.

Creioquefoipoucodepoisdasseis.–Edepoisdojantar?Creioqueeramonzeemeia,quandochegueiàcasa.– Foi o seu criado que lhe abriu a porta? Ou foi Lady Alice

Crackenthorpe?–Minhamulher,LadyAlice,estánoestrangeiro,noSuldaFrança, desde o princípio de dezembro. Eu próprio abri a porta com achavedotrinco.

– Por conseguinte, não há ninguém que possa con irmar a suachegadaacasa,àshorasquediz?Haroldlançou-lheumolharfrio.

–Achoqueoscriadosmeouviramentrar.Tenhoumcasal.Mas,narealidade,inspetor...

– Por favor,MrCrackenthorpe, seimuito bemque este gênerodeperguntasé incomodativo,masestouquaseno im.Temcarro?–Sim,umHumberHawle.

–Éosenhorqueoconduz?–Sim, raramenteouso,anãosernosfins-de-semana.HojeemdiaéimpossíveiconduzirumcarroemLondres.

– Presumo que o utiliza quando vai visitar seu pai e irmã, aBrackhampton?–Sóquando lá tencionofazerumaestadadeendereço.Selávoupassarapenasumanoite,como,porexemplo,sucedeunooutrodia,por causa do inquérito, vou sempre de trem. Há um serviço de tremsexcelenteeéummeiodetransportemuitomaisrápidoqueoautomóvel.Ocarroqueaminhairmãalugavaiesperar-meàestação.

–Ondeguardaoseucarro?–NumagaragemquealugueiportrásdosCardiganGardens.Maisalgumapergunta?–Creioque,porora,étudo– respondeu o inspetor Craddock, sorrindo e pondo-se de pé. – Peco-lhequemedesculpetê-loincomodado.

Quando se encontraram lá fora, o sargentoWetherall, um homemque vivia num estado de permanente descon iança de tudo, observousigni icativamente: – Ele não gostou das suas perguntas... não gostoumesmonadadelas.

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– Se uma pessoa não cometeu um crime é natural que iqueaborrecida se outra pessoa descon ia que o praticou – explicouamenamente o inspetor.E com certeza que um homem ultra-respeitávelcomoHaroldCrackenthorpe,estandoinocente,deve icaraborrecidíssimo.Não há mal nenhum nisso. O que agora precisamos de descobrir é sealguémviudefatoHaroldCrackenthorpenesseleilãoounacasadechá.

Podiamuitobemterviajadonotremdasquatrohorasetrintaetrêsminutos,teratiradoessamulherparaforadotremeter-semetidonoutrotrem para chegar a Londres a tempo de comparecer ao jantar. Tambémpodiaterláidonocarro,nessanoite,termetidoocorponosarcófagoeterregressado.

–Achaque foi ele? –Comohei-de sabê-lo?É alto emoreno;podiater estado nesse trem e está ligado a Rutherford Hall. Agora, vamos aomanoAlfred.

AlfredCrackenthorpevivianumapartamentoemWestHampstead,num enorme edi ício, com parque de estacionamento privativo paraautomóveis.

Alfred Crackenthorpe acolheu-os com muita cordialidade, mas oinspetorachou-onervoso.

–Sinto-meintrigado–disse.–Possooferecer-lhedebeber,inspetorCraddock?–perguntousegurandoconvidativamenteváriasgarrafas.

–Não,obrigado,MrCrackenthorpe.–Ocasoétãofeiocomoisso?–perguntoue logoseriudopróprio

gracejo.Oinspetordeclarouofimdavisita.–OqueeufiznatardeenanoitedodiavintedeDezembro.Porque

haveriadesaber?Ora...issofoi...hámaisdetrêssemanas.–SeuirmãoHaroldsoubedar-meumarespostaexata.–OmanoHaroldtalvez,masomanoAlfrednão–eacrescentoucom

umanotaestranha...talvezumpoucomaliciosa:–Haroldéomembrobemsucedido da família, sempre atarefado, útil, completamente empregado...com tempo para tudo e fazendo tudo com pontualidade. Se tivesse decometer um... assassinato, por exemplo, seria cuidadosamente pontual eexato.

–Háqualquer razãoespecialpara se servirdesseexemplo?–Oh,não.Ocorreu-meapenasàideia...comoumsupremoabsurdo.

–Equantoasi?Alfredestendeuasmãos.–Écomo lhedigo...nãotenhomemóriaparadatase lugares.Sese

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tratassedodiadeNatal...nessecaso, lembrava-me.Passei-o commeupaiemBrackhampton. Para dizer a verdade, não sei Por quê. Está sempre aresmungarporcausadogastoque temcomanossapresenca...masse lánão fôssemos, resmunga– ria, porque o subestimávamos. Na realidade,vamosláparadarsatisfaçãoaminhairmã.

–Eesteanotambémláfoi?–Sim. – Mas, por infelicidade, seu pai estava doente, não é verdade? –

Adoeceu.Estáhabituadoavivercomoumpardalparaglóriadaeconomia,e nesse dia comeu e bebeu exageradamente. Claro está que sofreu asconsequências.

–Foiapenasisso,nãoéverdade?–Comcerteza.Quemais?–Creioqueomédicoestava...preocupado.

–Oh,essetolodoQuimper–proferiuAlfredemtomdesdenhoso.–Nãovaleapenadar-lheouvidos,inspetor.Éumalarmistadapiorespécie.

–Asério?Poisamim,pareceu-meumhomemmuitosensato. – É um rematado idiota. Na realidade, o pai não é inválido algum,

não tem nada no coração, mas engana Quimper por completo. Como énatural, quando o pai se sentiu de fato doente, fez uma ita medonha eobrigouQuimperaandardeum ladoparaooutro, a fazerperguntaseaexaminar tudo quanto ele comera e bebera. Tudo isso foi ridículo! –terminouAlfredcominvulgarcalor.

Craddock icou calado por alguns momentos. AIfred, de súbito,olhou-oeperguntou, competulância: –Masquevema ser tudo isto?Porque querem saber onde estive numa dada sexta-feira, há três ou quatrosemanas? –Nesse caso, recorda-se de que foi a uma sexta-feira? – Creioquefoiosenhorquemodisse.

– Talvez sim – admitiu o inspetor. – Seja como for a sexta-feira,vinte,éodiaemquestão.

–Porquê?–Uminquéritoderotina. – Isso é um disparate. Descobriumais alguma coisa acerca dessa

mulher?Deondeveio?–Anossainformaçãoaindanãoestácompleta.Alfredlançou-lheumolharperscrutador. – Espero que não se deixe sugestionar pela tola teoria de Emma,

segundoaqualpodiatratar-sedaviúvademeuirmãoEdmund.Issoéumautênticodisparate.

– Essa... Martine, nunca apelou para você? – Paramim? Não, queideia.Sóporbrincadeira.

–AchamaisprovávelqueapelasseparaseuirmãoHarold?–Muitomaisprovável.Oseunomeaparececomfrequêncianosjornais.Vivebem.

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Nãomeadmirarianadaqueelatentasseabordá-lo,masnãolevarianada.Haroldétãoagarradocomoovelhote.Emmaéevidentementeoanjo

bomdafamíliaeeraairmãfavoritadeEdmund.Apesardisso,Emmanãoécrédula. Admitiu a possibilidade de essa mulher ser uma impostora e játinha preparado uma recepção de boas-vindas, constituída por toda afamíliaeporumadvogado.

–Foiumamedidamuitosensata–apoiouCraddock.–Chegaramamarcaralgumadataparatalencontro?–DeviaserpoucodepoisdoNatal...ofim-de-semanadodiavintesete...–calou-se.

–Ah!–exclamouCraddockprazenteiramente.–Vejoquecertasdatastêmumsignificadoparavocê.–Nãofoimarcadaqualquerdatacerta.–Masquandofalaramacercadisso?–Nãomerecordo. – E não sabe dizer-me o que fez na sexta-feira, dia vinte de

Dezembro?;–Desculpe...masnãofaçoamínimaideia.– Talvez as pessoas daqui ou algum amigo possa ajudá-lo a

recordar-se...–Talvez.Heideperguntar-lhes.Fareiopossível.Alfredpareciaagoramaissegurodesipróprio.–Nãoseidizer-lheoque iznessedia–disse-,maspossodizer-lhe

oquenãofiz.NãoassassineininguémnoLongBarn.–Porquedizisso,MrCrackenthorpe?–Ora,vamos,meucaroinspetor.Osenhorinvestigaestecrime,não

éverdade?–Creioqueterádeconcluirissoporsipróprioredarguiuoinspetor

afavelmente.–Apolíciaétão“caixinhas”. – Não apenas a polícia. Creio,1¦1ister Crackent horpe, que se o

senhor quisesse conseguiria recordar -se do que fez nessa sexta-feira. Éevidentequepode'terassuasrazõesparanãodesejarrecordar-se...

–Nãomeapanharádessamaneira,inspetor. É de fato muito suspeito, muito suspeito até que eu não consiga

lembrar-me...maséaverdade!Ummomento...NessasemanafuiaLeeds...hospedei-me num hotel, perto do TownHall... nãome recordo do nome...masnãoterãodificuldadeemachá-lo.Devetersidonessasexta-feira.

–Verifiaqui-lo-emos–declarouoinspetorimpassivelmente.Levantou-se. – Lamento, Mr Crackenthorpe, que não tenha podido ser mais

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cooperante! –Éumapouca sorteparamim!Cedric temumbomálibi emIbiza e Harold esteve sem dúvida ocupado nos seus negócios... ao passoqueeunãopossuoqualquerálibi.Eumapena.Tudo istoé tão tolo. Já lhedisse que não assassino pessoas. Por que diabo havia de assassinar umamulherdesconhecida?Paraquê?Aindaqueo cadáver sejaodaviúvadeEdmund, por que havia algum de nós desejar matá-la? Se ela se tivessecasado comHarold, durante a guerra, e subitamente tivesse reaparecido,nesse caso a situaçãodomeu respeitávelmanoHarold seria desastrosa...bigamia e tudo o mais. Mas Edmund! Todos nós teríamos feito pressãosobreopaiparaque lhedesseumamesadaeenviasseogarotoparaumcolégiodecente.Opaihaviade fazerumacena,masnãopoderiarecusar-se a resolver a situação. Não quer beber qualquer coisa antes de se irembora,inspetor?Asério?Lamentomuitonãoterpodidoser-lheútil.

O inspetor Craddock olhou para o excitado sargento: – Que há,Wetherall?

– Já sei quem ele é, senhor inspetor. Tenho andado durante todoestetempoapuxarpelamemóriaederepenteocorreu-me.EstevemetidocomDickyRogersnessecasodeconservas.Nuncaconseguimosnenhumaprova contra ele... é muito esperto. E esteve metido em mais umasembrulhadasdogrupodeSoho.

Aquelecasodosrelógios.CraddockcompreendiaagoraporquemotivoorostodeAlfred lhe

pareceratãofamiliardesdeoiníciodocaso.Nadadaquiloforaimportante...não se conseguira provar coisa alguma contra Alfred que apresentarasempre uma razão plausível e inocente para justi icar a sua intervençãonoscasos.Masapolícia tinhaa convicçãodequea sua inocêncianãoeracompleta.

–Istoesclareceumpoucoascoisas–disseCraddock. – Acha que foi ele? – Não creio que seja um tipo capaz de

assassinar.Masissoexplicaoutrascoisas...arazãoporquenãopôdeapresentar

umálibi.–Sim,ocasopareceestarfeioparaele. – Não, na realidade – contrariou Craddock.É uma atitude

inteligente... sustentar irmemente não se lembrar. Há muitas pessoasincapazesdeserecordaremdoque izerameondeestiveramumasemanaantes. É uma medida especialmente útil, quando não se quer chamar aatenção para a maneira como se passou o tempo; num interessanterendez-vouscomogrupodeDickyRogers,porexemplo.

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–Nessecaso,achaquenão foiele?–Pororanãoestoupreparadoparadefendera inocênciadequemquerqueseja– redarguiuo inspetorCraddock.

Sentado à mesa e de sobrolho franzido, Craddock começou aescrever:Assassino... umhomemalto emoreno!!! Vitima?. . pode ter sidoMartine,noivaouviúvadeEdmundCrackenthorpe.OupodetersidoAnnaStravinski. Desapareceu da circulação, nessa altura, com idade, aspecto evestuário semelhantes ao damorta.Não se sabe de qualquer ligação suacomRutherfordHall.

SefosseumaprimeiramulherdeHarold?Bigamia!SefosseamantedeHarold.Chantagem?!SehouvesseligaçãocomAlfred,podiatratar-sedechantagem. Saberia como mandá-lo para a cadeia? Se houvesse ligaçãocom Cedric... tê-lo-ia conhecido no estrangeiro? Paris? Baleares? ou Avitima ser Anna S e dizer-se Martine. Ou a vitima seria uma mulherdesconhecida morta por um assassino desconhecido? Craddock re letiatristemente na situação. Não se podia fazer progressos num caso sem seconheceromotivo.

SesetratassedoassassinatodovelhoMr.Crackenthorpe...Omotivonãofaltaria.

Algodespontounasuamemória...Escreveumaisalgumaspalavrasnoblocodenotas.ConsultaroDr.Q.,acercadadoencadoNatal.Cedric–álibi.ConsultarMissMarpleacercadaúltimatagarelice.

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XVI

QuandoCraddockchegouaonº4daMadisonRoadencontrouLucyEyelesbarrowcomMissMarple.

Hesitou ummomento antes de expor o seu plano de campanha eacaboupordecidirqueLucyEyelesbarrowpoderiaserumbomaliado.

Depois da troca de cumprimentos, Craddock tirou solenemente acarteiradobolso,extraiudelatrêsxelinsepousou-ossobreamesa.

–Queéisso,inspetor? – Os seus honorários pela consulta. Venho consultá-la... sobre

assassinato! Pulso, temperatura, reações locais, possível causa remota docrime,etc.Souapenasopobreinvestigadorlocalvexado.

Miss Marple olhou-o e piscou o olho. Craddock sorriu-lhes. LucyEyelesbarrowsufocouumaexclamaçãoedepoisriu.

–Ora,inspetorCraddock,nofimdecontas,osenhoréhumano.–Estatarde,nãomeencontroestritamenteemserviço.–Jálhetinhaditoquenosconhecíamos–disseMissMarpleaLucy.

–ÉafilhadodeSirHenryClithering...umamigomeu,muitoíntimo.–Querquelheconte,MissEyelesbarrow,oquemeupadrinhodisse

arespeitodela,quandonosconhemos?Descreveu-acomosendoamelhordetetivequeDeusdeitouaomundo.Aconselhou-meanuncadesprezaras...– Dermot Craddock fez uma curta pausa para procurar o termoapropriado–..hum...

senhorasdeidade.Diziaqueestaseramcapazesdeimaginaroquepodia ter acontecido, o que devia ter acontecido e até o que de fatoacontecera!Equeeramaindacapazesdedizerporqueacontecera.

MissMarpleestavacoradaeconfusa.–QueridoSirHenry–murmurou-,sempretãogentil.Narealidade

não sou inteligente,mas tenho talvez um leve conhecimento da naturezahumana...

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Comosabe,vivonumaaldeia...–eacrescentoucommais irmeza.–Éevidente queme encontro umpouco desfavorecida por nãome achar noprópriolocal.

Achoqueésempredemuitaajudaumapessoarecordar-nosoutra...porqueemtodaapartehá tipossemelhantese issoéumguiadegrandevalor.

Lucy pareceu não a compreender muito bem, mas Craddockmeneouaprovativamenteacabeça.

–Masfoi lá lançhar,nãoéverdade?–Sim.Gosteimuito.FiqueiumpoucodesapontadapornãotervistoovelhoMrCrackenthorpe...

masnãosepodetertudo. – Acha que, se tivesse visto a pessoa que cometeu o crime, teria

sabidoqueeraela?–perguntouLucy. – Oh, não digo isso, querida. Tem-se sempre tendência para fazer

suposições... e, por vezes, em casos graves como um crime sério, essassuposiçõespodemserperigosas.Tudoquantosepodefazeréobservaraspessoas em causa... Ou que podem estar em causa... e ver quem nosrecordam.

–ComoCedriceodiretordobanco?MissMarplecorrigiu:–O ilhododiretordobanco,querida.MrEade,esseeramuitomaisparecidocomMrHarold...

um homem muito observador... mas dando talvez um exageradoapreco ao dinheiro... o gênero de homem também capaz de tudo paraevitaroescândalo.

Craddocksorriueperguntou:–EAlfred?–Umaldrabão–replicoucomprontidãoMissMarple. – Sei queRavmonddeixoude trabalhar comele por causa disso. Quanto a Emma – prosseguiu Miss Marplepensativamente–recorda-memuitoGeraldineWebb;sempremuitocalma,quase insigni icante... emuito dominada pela velhamãe. Pormorte destaherdou uma bonita soma de dinheiro e, com grande surpresa de toda agente, cortou o cabelo, fez uma permanente, partiu num cruzeiro eregressoucasadacomumsimpáticoadvogado.Tiveramdoisfilhos.

Oparaleloeraclaro.Lucyperguntouumpoucoembaraçada:–AchabemterditooquedisseacercadapossibilidadedeEmmacasar?Pareceu-mequeissodesagradouumpoucoaosirmãos.

MissMarplemeneouafirmativamenteacabeça.–Sim.Comomuitoshomens...sãoincapazesdeveroquesepassaà

suafrente.Achoquevocêtambémaindanãotinhareparado. – Pois não – admitiu Lucy. – Nunca pensei nisso. Ambos me

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pareciam...–Muitosvelhos?–interrompeuMissMarple,comumlevesorriso.–

Mas o Dr. Quimper pouco mais conta do que quarenta anos, embora játenha as têmporas grisalhas e seja óbvio que anseie por ter um lar; eEmmaCrackenthorpetemmenosdequarentaanos...estáaindaemmuitoboaidadedecasaredeconstituirfamília.Segundomedisseram,amulherdomédicomorreumuitonova,departo.

– Creio que sim. Emma disse qualquer coisa a esse respeito, nooutrodia.

– Deve sentir-se só – continuouMiss Marple.Ummédico cheio detrabalhoprecisadeumaesposa... deumapessoaqueocompreenda...nãomuitonova.

–Ouça,querida–observouLucy.–Estamos investigandoumcrimeoutratandodecasamento?

Miss Marple piscou o olho. – Creio que sou um pouco romântica.Talvez por ser uma solteirona. Sabe, minha ilha, pela parte que me dizrespeito,seucontratoestáterminado.Senaverdadequerpassarfériasnoestrangeiro,antesdeaceitarumnovocontrato,aindatemtempoparaumabreveviagem.

–EdeixarRutherfordHall?Nunca!Agoratornei-meumverdadeiromastim!Quasetantoquantoosrapazes.Passamtodootempoàprocuradepistas. Ontem examinaram os recipientes do lixo. Uma coisa muitodesagradável...e,narealidade,nãofaziamamínimaideiadoqueestavamprocurando. Se fossem procurá-lo triunfalmente, inspetor Craddock, commontesdepapéisdizendo“Martine,setemapreçoàvidaafaste-sedeLongBarn”...Jásabequetivepenadeleseescondiissonocurraldosporcos!

– Por que nesse sítio, querida? – perguntou Miss Marpleinteressada.–Láháporcos.

–Não,não.Mas...àsvezesvoulá. Por qualquer razão, Lucy corou e Miss Marple olhou-a com

redobradointeresse.–Quemestáagoraláemcasa?–perguntouCraddock. – Cedric e também Bryan passando o im de semana. Harold e

Alfred telefonaramhojedizendoquevêmamanhã.Tenhoa impressãodequeosenhor,inspetor,osalarmou.

Craddocksorriu. – Sacudi-os um pouco. Pedi-lhes queme contassem o que tinham

feitonasexta-feita,diavintededezembro. – E lembravam-se? – Harold, sim. Mas Alfred não... ou não quis

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dizer-mo.–Creioqueosálibisdevemserterrivelmentedi íceisdearranjar–

disseLucy.–Horas,lugaresedatas.Devemtambémserdifíceisdeprovar. – Isso requer tempoepaciência...mas conseguimos. –Consultouo

relógiodepulso.–Tenhode irdaquiapoucoaRutherfordHall falarcomCedric,mas,emprimeirolugar,queroencontraroDr.Quimper.

– Deve apanhá-lo na boa hora. Deve estar acabando a consulta.Tenhoderegressarparaprepararojantar.

– Gostaria que me desse a sua opinião sobre uma coisa, MissEyelesbarrow. Qual é a opinião da família acerca do caso dessaMartine?Lucyreplicouprontamente:–Estão todos furiososcomEmma,porela teridofalar-lhenisso...etambémcomoDr.Quimper,poresteaterencorajadoa fazê-lo. Harold e Alfred estão convencidos de que foi uma tentativa deburla,masEmmanãotemacerteza.Cedrictambémachaocasoestranho,mas não o toma tanto a sério como os outros dois. Por outro lado, Bryanpareceabsolutamentecertodequeéumcasogenuíno.

–Porquê?–Bem,Bryanéassim.Aceitaascoisastaisquaiselasseapresentam.PensaqueeramulherdeEdmund,ouantes,viúva,equetevedesúbitoderegressaraFrança,masquevoltaráadarnotícias.O fatodeela não ter escrito a dar, ou ter dado, qualquer sinal, parece-lhe muitonatural porque ele nunca escreve. Bryan é muito meigo. Parece um cãoquequerqueolevemapassear.

– E a minha ilha leva-o a passear? – perguntou Miss Marple. –Talvezparaocurraldosporcos?Lucyolhou-acomvivacidade.

–Hátantosgentlemennessacasa,aentraremeasaírem.QuandoMissMarpleproferiaapalavra“gentlemen”dava-lhetodoo

seu sabor vitoriano. Tomava-se logo consciência de homens arrojados,talvezcompatilhas,porvezesperversos,massempregalanteadores.

–Vocêéumamoçatãoengraçada–proferiuMissMarple.–Calculoqueacumulemdeatenções,nãoéverdade?Lucycoroulevemente.Certasimagensperpassaram-lhe¦peloespírito:Cedricapoiadoaomurodocurral;Bryan sentado tristemente na mesa da cozinha; os dedos de Alfredencontrando-se com o seus, enquanto a ajudava a levantar as xícaras docafé.

–Osgeratlemen–prosseguiuMissMarple,no tomdeumapessoaque falasse de uma espécie perigosa e estranha – são todos muitoparecidos,sobcertosaspetos...aindaquesejammuitosvelhos...

–Hácemanosatrásseriaqueimadacomobruxa!–exclamouLucy. E contou-lhe a proposta de casamento que lhe izera o velho Mr.

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Crackenthorpe.–Defato,todoselesprocuramseduzir-mesobcertoaspeto.Harold

foimuito correto... ofereceu-me uma boa situação inanceira na City. Nãosuponhoqueissosedevaàminhaatractivapessoa...Devempensarqueseialgumacoisa.

Riu,masoinspetorCraddocknãoaimitou.–Tenhacuidado–recomendou.–Podemmatá-la,emvezdetentar

seduzi-la.–Achoqueissosejamaisfácil–concordouLucy_.Depoisestremeceu.–Acabamospornosesquecerdocaso.Ospequenostêmandadotão

divertidos que quase se pensa no assunto como numa brincadeira. Masnãoéumabrincadeira.

– Pois não – concordou Miss Marple. – O crime não é umabrincadeira.

Ficou calada por alguns momentos e depois perguntou: – Ospequenos não voltarão em breve para o colégio? – Sim, na próximasemana.VãoamanhãparacasadeJamesStoddard-West,ondepassarãoorestodasférias.

– Ainda bem – declarou Miss Marple com ar grave. – Não meagradariaqueacontecessealgumacoisaenquantoestivessemaqui.

– Refere-se ao velho Mr Crackenthorpe. Acha que ele seja apróxima vítima? – Não – respondeu Miss Marple. – Esse não me dácuidado.Referia-meaospequenos.

–Aospequenos?–Bem,aAlexander.–Mascomcerteza...–Sabe,andamportodosos lados...àprocuradepistas.Osrapazes

gostamdessegênerodecoisas...maspodesermuitoperigoso.Craddockolhou-apensativamente. –Não acredita,MissMarple, que se trate do caso de umamulher

desconhecida assassinada por um homem desconhecido, pois não?Relaciona o caso com Rutherford Hall, não é verdade? – Sim, acho queexisteumarelaçãodefinitiva.

–Tudoquantosabemosarespeitodoassassinoéqueéumhomemaltoemoreno.Foiaúnicacoisaque146147asuaamigapôdedizer.EmRutherford Hall há três homens altos e morenos. No dia do inquéritoo icial, ao sair, vi os três irmãos parados no passeio, à espera do carro.Estavam virados de costas para mim e achei espantoso como, nos seus

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pesadossobretudos,seassemelhavamtantoentresi.Trêshomensaltosemorenos.

E,todavia,narealidade,sãotrêstiposcompletamentediferentes.–Tenhoestadopensando...–murmurouMissMarple-,tenhoestado

pensandose,no imdecontas,ocasonãoémaissimplesdoquesupomos.Os assassinatos são muitas vezes simples... e têm um motivo óbvio, umpoucosórdido...

–AcreditanaMriosaMartine,MissMarple?–NãomecustanadaaacreditarqueEdmundCrackenthorpe tivessecasadoou tencionadocasarcom uma moça chamada Martine. Emma Crackenthorpe mostrou-lhe acartadeEdmund,nãoéverdade?Peloque conhecodeEmmaepeloqueLucymeconta,acho-aabsolutamenteincapazdeinventarumacoisadessanatureza...naverdadeparaquehaviade fazê-lo?–Assim,acreditandonaveracidadedeMartine–concluiuCraddock,comumarpensativo–existeummotivo.O aparecimento deMartine comum ilho desferiria um golpena herança de Crackenthorpe... embora não o bastante para decidir ocrime.

Todoselesestãomuitonecessitadosdedinheiro...–Haroldtambém?–perguntouLucy,incredulamente.–AtéHaroldCrackenthorpe,comasuaaparênciadeprosperidade,

não é o inanceiro calmo e conservador que aparenta. Arriscou-semuitoem aventuras indesejáveis. Ora uma boa soma de dinheiro, recebida atempo,podemuitasvezesevitarumdesastre.

–Masseassim...–começouLucy,ecalou-se.–Continue,MissEyelesbarrow...–pediuCraddock.–Compreendo-a,minha ilha–disseMissMarple.–Querdizerque

apessoaassassinadanãoeraaindicada,nessecaso. – Sim. A morte de Martine não traria vantagem a Harold... ou a

qualquerdosoutros...antesde... – Antes de Luther Crackenthorpemorrer. Exatamente. Isso jáme

ocorreu também. Mas, segundo já o médico me disse, a saúde de MrCrackenthorpeémuitomelhordoqueseacha.

– Viverá ainda muitos anos – opinou Lucy. Depois franziu osobrolho.

–Quehá?–perguntouCraddockencorajadoramente.–PoralturadoNatalestevebastantedoentedisseLucy.–Disseque

omédico fez um bicho-de-sete-cabeças por causa disso. “Quem o ouvissehavia de ter pensado que me tinham envenenado.” Foram estas aspalavrasdele.

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OlhouinquiridoramenteparaCraddock. – Sim. Na verdade, é a esse respeito que quero falar com o Dr.

Quimper.–Bem,tenhodeir-meembora–declarouLucy.–Valha-meDeus,jáétãotarde. Miss Marple pousou o tricô e pegou no The Times, aberto no

passatempodaspalavrascruzadas. – Quem me dera aqui um dicionário – murmurou. – Tontina e

Tokay...Confundosempreestasduaspalavras.Creioqueumadelaséumvinhohúngaro.

– Essa é Tokay – disse Lucy, olhando para trás, já à porta. –Masumadelastemcincoletraseaoutratemsete.

–Oh,nãovêmnaspalavrascruzadas–explicouMissMarpledeummodovago.–Eraaquiumaideiaminha.

OinspetorCraddockolhou-acomatenção.Depoisdespediu-seesaiutambém.

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XVII

Craddock teve de esperar alguns minutos, até que Quimperacabasseaconsulta.

Omédicopareciacansadoeabatido.OfereceuumabebidaaCraddocke,comoesteaaceitasse,preparou

tambémumaparavocê. – Pobres diabos – comentou, sentando-se numa poltrona. –Muito

nervosos, muito estúpidos... Tolice. Tive hoje um caso triste. O de umamulherquedeviatersidooperadaháumano.Senessaalturametivesseprocurado,aoperaçãopoderiaterresultado.

Agora é demasiado tarde. Sinto-me transtornado com isso. Averdade éque aspessoas sãoummisto extraordináriodeheroísmoedecobardia. Tinha dores horríveis, mas suportava-as sem se queixar, sóporquetinhamedodeaquivirededescobrirserverdadeoquereceava.Mas diga-me, inspetor, por que veio procurar-me? – Em primeiro lugar,creio dever-lhe os meus agradecimentos por ter aconselhado MissCrackenthorpe a levar-me aquela carta que se supunha ser da viúva doirmão.

– Ah, sim? Bem, não a aconselhei exatamente a ir procurá-lo. Elaqueriafazê-lo,sentia-sepreocupada,mashesitavaporque,claroestá,todososseusqueridosirmãostentavamdissuadi-ladeofazer.

–Porquê?Omédicoencolheuosombros.–Suponhoquereceavamqueessasenhorafossedefatooquedizia

ser. – Acha que a carta fosse autêntica? –Não faço ideia. Nem sequer

chegueiavê-la.Mas talvez se tratasse de uma pessoa que conhecesse os fatos e

estivesse apenas a fazer uma experiência, na esperança de explorar ossentimentosdeEmma.Masnissoenganaram-seporcompleto.Emmanada

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temdetola.Nãodaria lugarnoseucoraçãoaumacunhadadesconhecidasemfazer,emprimeirolugar,algumasperguntaspráticas.

Eacrescentoucomcuriosidade:–Masporquequersaberaminhaopinião?Nadatenhovendocomoassunto.

– Na realidade, vim aqui para perguntar-lhe uma coisa muitodiferente...masnãoseibemcomofazê-lo.

ODr.Quimpermostrou-seinteressado.–Creioquenãohámuitotempo...achoquefoiporalturadoNatal...

MrCrackenthorpeadoeceugravemente. Notou logo umamudança na expressão domédico, que se tornou

maisdura.–Sim.–Suponhoquesetratoudeumaperturbaçãogástricaqualquer?–

Sim. – Isso é di ícil de...Mr Crackenthorpe está sempre a vangloriar-se

da sua saúde, dizendo que tenciona sobreviver àmaior parte da família.Referiu-seasi...desculpe-me,Dr....

–Oh,nãosepreocupeporminhacausa.Nãomemagoocomoqueosmeusdoentesdizemdemim!

–Faloucomoseosenhor tivesse feitoumbicho-de-sete-cabeças.–Quimper sorriu. – Disse que o senhor lhe tinha feito todo tipo deperguntas,parasaberoqueelecomera,onomedapessoaquecozinharaarefeiçãoeaservira.

O médico já não sorria. O seu rosto estava de novo com umaexpressãodura.

–Continue. – Empregou uma frase como... “falou como se achasse que me

tinhamenvenenado”.Fez-seumapausa. – Teve... suspeita desse gênero? Quimper não respondeu logo.

Levantou-seecomecouapasseardeumladoparaooutro.Por im,virou-separaCraddock.

– Que diabo espera que eu lhe diga? Acha que um médico podeformular acusações de envenenamento, a torto e a direito, sem ter umaprovadoqueafirma?

–Gostariaapenasdesaber,semcarátero icial,se...essa ideia... lhepassou pela cabeça? O Dr. Quimper redarguiu demaneira evasiva: –MrCrackenthorpe leva uma vidamuito frugal. Quando a família se reúne, éEmma quem prepara as refeições. Resultado... um aborrecido ataque de

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gastrenterite.Ossintomasindicavamessediagnóstico. Craddock persistiu: – Compreendo. Ficou plenamente convencido?

Nãosesentiu...comohei-dedizer...intrigado?– Está bem, está bem. Sim, iquei na verdade intrigado! Está

satisfeito?– Interessa-mesabê-lo– redarguiuCraddock.Na realidade,deque

suspeitou...ouquereceou?– Os casos gástricos variam, claro, mas havia certos indícios mais

indicativos de envenenamento por arsênico do que uma simplesgastrenterite.Notequeasduascoisassãomuitosemelhantes.Médicosdecategoria maior do que a minha não reconheceram um envenenamentoporarsênico...epassaramcertidãodeóbito,comtodaaboafé.

–Equalfoioresultadodoseuinquérito? –Pareceque aquiloque eu suspeitavanãopodia ser verdade.Mr

Crackenthorpegarantiu-mequetiveraataquessemelhantesantesdeeuoassistir... e com origem na mesma causa, segundo disse. Todos eles sehaviamverificadoemocasiõesderefeiçõesmaislautas.

–Eissofoiquandoacasaestavacheiadegente?Famíliaouvisitas?–Sim.Issopareceu-merazoável,mas,sinceramente,Craddock,não

mesentisatisfeito.ChegueiaescreveraovelhoDr.Morris.Foimeucolegaereformou-sepoucodepoisdeeutrabalharcomele.Crackenthorpetinhasidoseudoenteeinterroguei-oacercadessesataquesqueovelhotivera.

–Equerespostaobteve?Quimpersorriu.–Recebiumadescompostura.Aconselhou-memaisoumenosanão

ser louco. – Encolheu os ombros. – Presumivelmente, fui de fato umrematadolouco.

–Talvez–admitiuCraddock,pensativo.Depoisresolveu-seafalarfrancamente. – Pondo de parte a discrição, Dr., há duas partes que devem

bene iciar consideravelmente com amorte de Luther Crackenthorpe. –Omédicomeneouacabeçaemsinaldeconcordância.–Éumvelho...massãoerobusto.Épossívelquechegueaosnoventaetal,nãoéverdade?

–Muitofacilmente.Temmuitocuidadoeboaconstituição.–Eos ilhos...ea ilha...vãovivendo,commuitasdi iculdades,nãoé

verdade? – Não inclua Emma. Essa não é envenenadora. Esses ataques

apenasseveri icamquandoosoutrosestãoaqui...enãoquandoelaeopaiestãosozinhos.

“Oqueéumaprecauçãoelementar...seforelaaculpada”,pensouo

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inspetor,tendo,porém,ocuidadodenãoodizer.Fezumapausa,escolhendocomcuidadoaspalavras.–Seguramenteque...nestesassuntossouleigo...mas admitindo a hipótese de haver sido ministrado arsênico na

comida...nãoachaqueCrackenthorpetevemuitasorteemnãosucumbir?–Oraissoéqueéestranho–replicouomédico.

– E é precisamente esse fato que me leva a acreditar, tal como ovelhoMorris diz, que fui um rematado tolo. Bem vê, é óbvio que não setrata de um caso de pequenas doses de arsênico ministradas comregularidade... que é o que se pode chamar o método clássico deenvenenamento por arsênico. Crackenthorpe nunca sofreu de qualquerperturbação gástrica. De certomodo, é isso o que faz parecer estranhosesses súbitos e violentos ataques. Por conseguinte, admitindo que não sedevemacausasnaturais,parecequeoenvenenadortemsidopoucohábil,detodasasvezes...oquenãoparecemuitológico.

–Querdizerqueministrouumadoseinsu iciente?–Sim.Poroutrolado, Crackenthorpe tem uma forte constituição ísica e o que poderiaresultarnoutrohomem,nãoresultounele.Hásemprequeatenderaumaidiossincrasia pessoal. Somos levados pensando que o envenenador, amenosque seja extraordinariamente tímido, devia ter aumentado a dose.Por que não o teria feito? Isto é – acrescentou -, se existe de fato umenvenenador,oqueprovavelmentenãoacontece.

– É um problema estranho – concordou o inspetor. – Não parecefazersentido.

– Inspetor Craddock! Ao ouvir que o chamavam em voz baixa eansiosa,oinspetorsobressaltou-se.

Iaprecisamentenessemomentotocaràporta. Alexander e o seu colega Stoddard-West emergiram,

cautelosamente,dassombras.–Ouvimososeucarroequeríamosfalarcomvocê.–Então,entremos–disseCraddock,voltandoaestenderamãopara

a campainha,mas Alexander puxou-lhe pelo casaco com a vivacidade deumcãoimpaciente.

–Encontramosumapista–murmurou.–Sim,encontramosumapista–confirmouStoddard-West.“Diabodemoça!”,pensouCraddock.–Esplêndido!–proferiunegligentemente.Entremosevejamo-la. – Não – insistiu Alexander. – Hão-de interromper-nos. Venha

conoscoaoquartodasarrecadações.

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Comumpoucodemávontade,Craddockcontornoucomelesacasaeatravessouopátiodoestábulo.

Stoddard-West abriu uma pesada porta, esticou-se e acendeu umaluzeléctricadefracaintensidade.

Aquele quarto servia de depósito a tudo que ninguém queria.Cadeirasdejardimpartidas,velhasferramentasenferrujadas,umagrandee velha segadora-mecânica, colchões de arame, canapés e redes de ténisrotas.

–Vimosmuitas vezes para aqui – revelouAlexander. – É um sítioondepodemosestaràvontade.

– E realmente uma pista, senhor – a iancou Stoddard-West, comexcitação, os olhos rebrilhando por trás dos óculos. – Encontrámo-la estatarde.

–Temosandadoàprocuratodosestesdias.Nosarbustos...–Dentrodostroncosdeárvoresocos...–Erevistamososrecipientesdascinzas...–Poracasohavialácoisasmuitointeressantes...–Edepoisfomosàcasadacaldeira... – O velho Hillman tem aí um enorme carro galvanizado, cheio de

desperdíciosdepapel...–Porque,quandoacaldeiraseapagaeelequervoltaraacendê-la... – Qualquer pedaco de papel que ande por aí a voar, agarra-o e

mete-oládentro...–Efoiaíquenósaencontramos... – Encontraram o quê? – perguntou Craddock, interrompendo o

dueto.–Apista.Cuidado,Stoddard,calçaasluvas. Cheio de importância, Stoddard-West, seguindo a tradição do

melhorromancedetetivesco,calcouumpardeluvasbastantesujasetiroudo bolso uma carteira fotográ ica Kodak. Desta retirou com os dedosenluvados e com o maior cuidado um envelope sujo e amarrotado queestendeu,cheiodeimportância,aoinspetor.

Ambos os rapazes sustiveram a respiração, naquele momento deexpetativa.

Craddockpegou-lhecomadevidasolenidade.Gostavadosgarotoseestavadispostoaentrarnoespíritodacoisa.

Tratava-se apenas de um envelope rasgado e com o carimbo docorreio... dirigido a Mrs. Martine Crackenthorpe, 126 Elvers Crescent, nº10.

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– Compreende? – perguntou Alexander excitadamente. – Issomostra que ela esteve aqui... quero dizer, a mulher francesa do tioEdmund...aquelaquemotivoutodaestaconfusão.Deveterestadoaqui,defato, e ter deixado cair o envelope.Não acha? Stoddard-West interveio: –Isto faz pensar que foi ela que assassinaram... isto é, devia ser ela quemestava no sarcófago, não acha, senhor? Esperavam com ansiedade umaresposta.

–Épossível,muitopossível–admitiuCraddock. – Isto é importante, não acha? –Vaimandar procurar impressões

digitais,nãoéverdade?–Comcerteza–assegurouCraddock.Stoddard-Westsoltouumprofundosuspiro.–Tivemosumasorteformidável,nãoacha?Foinonossoúltimodia.–Últimodia?–Sim.Partoamanhãpara casadosStoddard,ondepassaremosos

pouco dias que faltam para as férias acabarem. A casa dos Stoddard éformidável...

–QueenAnne,nãoé?–WilliameMary–corrigiuStoddard-West.–Achueiqueatuamãetinhadito...–Amãeéfrancesa.Nãosabegrandecoisadearquiteturainglesa.–Masteupaidissequefoiconstruída...Craddockexaminavaoenvelope. Lucy Eyelesbarrow era inteligente. Como conseguira falsi icar o

carimbo do correio? Examinou-o mais de perto, mas não tinha luzsuficiente.

Aseu ladoprosseguiuumaacaloradadiscussãosobrearquitetura.Semlhedaratenção,disse:–Agoravamosparaacasa.Forammuitoúteis.

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XVIII

Craddock entrou em Rutherford Hall pelos fundos escoltado pelosdois garotos. Parecia ser essa a entrada de que em regra se serviam. Acozinhaeraarejadaealegre.Lucy,deenormeaventalbranco,tendiaumamassa com o rolo. Encostado ao guarda-louças e observando-a com umaespéciedeatençãocanina,achava-seBryanEastley.

–Viva,pai–saudouAlexander.–Aquioutravez?–Gostodeestaraqui – retorquiu Bryan, que acrescentou: – Miss Eyelesbarrow não seimporta.

–Estáclaroquenãomeimporto–disseLucy.–Boanoite,inspetorCraddock.–Vemfazeruma investigaçãonacozinha?–perguntouBryancom

interesse.–Nãoexatamente.MrCedricCrackenthorpeaindaestáaqui,nãoé

verdade?–Estásim.Querfalarcomele?–Sim,porfavor.–Vouverseestá–ofereceu-seBryan.–Podeteridodarumavolta.Desencostou-sedoguarda-louças.–Muitoobrigada–disse-lheLucy.–Senãotivesseasmãossujasde

farinha,euprópriairia.–Queestáfazendo?–perguntouStoddard-West,comansiedade.–Tortadepêssego. – Que bom! – Falta muito para a hora do jantar?, perguntou

Alexander.–Não.–Cosdiabos!Estoucomfome.–Háumrestodebolonadespensa.Osrapazesprecipitaram-senessadirecção.

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–Osmeusparabéns–felicitouCraddock.–Porquê...exatamente?–Pelasuahabilidade. – Em quê? Craddock indicou a carteira de papel que continha o

envelope.–Estáperfeito.–Dequeestáfalando?–Disto,minhaamiga...disto.Elafitou-osemcompreender.Desúbito,Craddocksentiu-seaturdido.–Nãofoivocêqueforjouisto...eometeunoquartodacaldeirapara

queosmeninosoencontrassem?Depressa...responda.–Nãofaçoamínimaideiadoqueestáfalando,replicouLucy. – Quer dizer que...? Ao sentir Bryan voltar, Craddockmeteu tudo

apressadamentenobolso.–Cedricestánabiblioteca–anunciou.–Podeirlá. Retomou o seu lugar, junto ao guarda-louça. O inspetor Craddock

dirigiu-seàbiblioteca.CedricCrackenthorpepareceuencantadoporveroinspetor.–Maisperguntasporaqui?–perguntou.–Descobriualgumacoisa?–Creioquejáadiantamosalgumacoisa,MrCrackenthorpe.–Jádescobriramquemeraamulher?–Nãotemosumaidentificaçãodefinitiva,masjáfazemosumaideia.–Aindabem.–Emconsequênciadeumaúltima informaçãorecebida,desejamos

obter algumas declarações. Vou começar por você, Mr Crackenthorpe,dadoqueseencontraaqui.

–Não serápormuito tempo.Devopartirpara Ibizadentrodeumdiaoudois.

–Nessecaso,parecequefizbememteraquivindohoje.–Digaoquetemadizer.–Gostariaqueme izesseumrelatopormenorizadodomodocomo

passouasexta-feira,vintedeDezembroúltimo.Cedric lançou-lheumrápidoolhar.Depoisencostou-seàsespaldas

da poltrona, bocejou, assumiu um ar de grande despreocupação e ingiuperder-senumesforcodememória.

–Bem,comojá lhedisse,estavaemIbiza.Opioréquenessaterraosdiassãotodosiguais.Demanhãpintoedastrêsparaascincodatardefaçoasesta.Porvezes,quandoháboaluz,façoumesboco.Depoistomoum

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aperitivo, umasvezes comopresidentedaCâmara, outras comomédico,no caféPiazza.Depoisdisso, uma refeição ligeira. Passo amaiorpartedanoitenoScotty'sBarcomunsmeusamigosdeclassebaixa.Estásatisfeito?

–Prefiroaverdade,MrCrackenthorpe.–Essaobservaçãoémuitoofensiva,inspetor.–Achaisso?Osenhor,MrCrackenthorpe,tinha-meditoquepartiu

deIbiza,nodiavinteeumdeDezembro,equechegouaInglaterranessemesmodia.

–Exatamente.Eentão?EmmaCrackenthorpeentrounabibliotecaeolhouinquiridoramenteparaoirmãoeparaCraddock.

– Ouça, no Natal... cheguei aqui no sábado anterior, não foi? Vimdiretamentedoaeroporto?

– Sim – respondeu Emma surpreendida. – Chegaste por volta dahoradoalmoço.

–Aítem–disseCedricaoinspetor. – Considera-nos certamente muito idiotas, Mr Crackenthorpe –

observou Craddock, amenamente. – Podemos veri icar o que disse. Creioquesememostraroseupassaporte...

Calou-se,numaexpetativa.–Nãoconsigoencontraressamalditacoisa.Aindaestamanhãandei

àprocuradele.Queriamandá-loaCook.–Pensoqueoencontrou,MrCrackenthorpe,masnarealidade,não

énecessário.Os registrosprovamqueosenhorentroude fatonestepaísnanoitededezenovededezembro.Talvezagoraqueiracontar-meosseusmovimentos,desdeessaalturaatéahoradoalmocododiavinteeumdedezembro,horaessaaquechegouaqui.

Cedricpareceudeverasaborrecido. – A vida, hoje em dia, é insuportável – queixou-se encolerizado. –

Todosesses formalismoso iciaisepreenchimentosde impressos.Éoquese ganha com a burocracia. Já uma pessoa não pode andar por onde lheapetece!Hãodeacabarsempreporfazer-nosperguntas.Porquerazãohátodaesta“ ita”porcausadodiavinte?Quehouvedeespecialnodiavinte?–Achamosqueocrimetenhasidocometidonessedia.Éevidentequepoderecusar-searesponder,mas...

–Quem lhedissequeme recuso a responder?Dê-me tempoparaisso. Por ocasião do inquérito, mostrou-se muito vago, quanto à data docrime.Quedescobriramdesdeentão?Craddocknãoreplicou.

Cedricperguntou,olhandodesoslaioparaEmma:Podemosirparaoutraquarta?Emmaapressou-searesponder:–Euvouembora.

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Àporta,parouevoltou-se:–Istoésério,Cedric.Seodiavintefoiodiadocrime,tensdecontarexatamenteaoinspetorCraddockoque izestenessedia.

Saiu,fechandoaporta.–Voltemosaoassunto–começouCedric.–Partide Ibizanaverdadenodiadezenove.Tencionava fazeruma

paradaemParisepassardoisdiasvisitandoamigosquevivemnaFrança.Masaverdadeéquenesseaviãoseguiaumamulhermuito interessante...Umaverdadeirabeldade!RegressavaaosEstadosUnidosetinhadepassarduasnoitesemLondresparatratardeunsassuntos.ChegamosaLondresno dia dezenove e instalámo-nos no KingsWay Palace se é que os seusespiões ainda não descobriram isto! Registei-me com o nome de JohnBrown...nuncaébomdar-seoverdadeironome,nestasocasiões.

–Enodiavinte?Cedricfezumacareta.–Passeitodaamanhãcomumaenxaquecahorrível. – E a tarde, das três em diante? – Ora, deixe-me ver. Andei a

vagueardeumladoparaooutro,comosecostumadizer.VisiteiaNationalGallery...Vium ilme...Depoisbebiqualquercoisanumbar,fuiparaomeuquarto e, por voltadasdezhoras, saí comaminha amiga e andamosporváriosdancings...Nãomerecordodosnomes,maselaconhecia-osatodos.Apanhou uma boa bebedeira e, para dizer-lhe a verdade, de poucomaisme lembro, até que acordei na manhã seguinte... com uma enxaquecaaindapiordoqueadavéspera.Aminhaamiga foi apanharoaviãoe eu,depoisdedespejaráguafrianacabeçaedeterpedidoaofarmacêuticoumremédiohorrível, vimpara cá, ingindo ter chegadodiretamentede Ibiza.Achei que não havia necessidade de ralar Emma. Bem sabe como asmulheressão...Ficamsempremagoadas,senãovamosemlinharetaparacasa. Tive de pedir-lhe dinheiro emprestado para pagar o táxi. Estavacompletamente“nalona”.Nãoserviriadenadapediraovelhote.Nuncadá.Éterrivelmentesovina.Estásatisfeito,inspetor?

– Pode provar alguma coisa do que disse, Mr Crackenthorpe?Digamos,entreastrêshoraseassetehorasdatarde?

– Achomuito improvável. Na National Gallery os empregados noslhamcomindiferenca,alémdequehaviamuitagente.Não,nãomepareceprovável.

Emmavoltou.Seguravanamãoumapequenaagenda.–Quersaberoquecadaumdenós feznodiavintededezembro,

nãoéverdade,inspetorCraddock?–Hum...sim,MissCrackenthorpe. – Acabo de consultar a minha agenda. No dia vinte fui a

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Brackhampton tomar parte numa reunião da Restauração dos FundosParoquiais. Essa reunião acabou antes da uma; almocei no Café Cadenacom Lady Adington e Miss Bartlett que também haviam ido à reunião.Depois do almoço iz umas compras para oNatal, no Lyall, no Swift's, noBoot's e provavelmente em várias outras lojas. Lanchei, por volta dasquatro e quarenta e cinco, no salão de chá Shamrock e depois fui para aestação, encontrar-me com Bryan, que vinha de trem. Cheguei por voltadas seis horas, e vim encontrar meu pai muito maldisposto. Tinha-lhedeixadooalmoçopronto,masMrs.Hart,quedeveriaviràtardeedar-lheochá,nãotinhavindo.Estavatãozangadoquesefechounoquartoenãomedeixouentrar,nemquis falarcomigo.Nãogostaqueeusaiaà tarde,mas,porprincípio,devezemquandoeuofaço.

–Provavelmentetemrazão.Obrigado,MissCrackenthorpe. Não lhe podia dizer que, em virtude de ser mulher, os seus

movimentosnessa tardenão tinhamimportância.Emvezdisso,observou:–Seusirmãoschegarammaistarde,nãoéverdade?

–Alfredchegoujáaofimdanoitedesábado.Dissequetentoufalarcomigoaotelefonenatardeemquesaí...mas

meupai, se estámaldisposto, é incapazdeatendero telefone.Meu irmãoHaroldsóchegounavésperadodiadeNatal.

–Obrigado,MissCrackenthorpe.–Suponhoquenãodevoperguntar...–hesitou–oqueoriginoueste

interrogatório?Craddock tiroua carteiradobolso. Servindo-seapenasdapontadosdedos,extraiudelaoenvelope.

–Nãolhetoque,porfavor,masdiga-meseoreconhece.–Mas...–Emma itou-o,espantada.–Essaletraéminha.Foiacarta

queescreviaMartine.–Foioqueeucalculei.–Mascomoéqueotem?Foiela...?Encontrou-a?–Parecepossível

queatenhamosencontrado,masesteenvelopevaziofoiachadoaqui.–Dentrodecasa?–Napropriedade. – Nesse caso... ela esteve aqui! Ela... Quer dizer... que eraMartine

que estava no sarcófago? – Parece muito provável, MissCrackenthorpeadmitiuCraddock,comsuavidade.

Issopareceu-lheaindamaisprovávelquandoregressouaLondres.Esperava-oumamensagemdeArmandDessin.

Uma das amigas recebeu um postal de Anna Stravinski.Aparentementeahistóriadocruzeiroeraverdadeira!Chegoua¦amaicaeestáapassar,talcomovocêcostumadizer,umtempomaravilhoso.

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Craddock amachucou o papel em que a mensagem fora escrita elançou-oparaocestodospapéis.

– Acho que este dia foi o mais formidável de todos – considerouAlexander, sentado na cama e consumindo pensativamente um pau dechocolate.Descobrirumaverdadeirapista!Asuavozdenotavaummistodeadmiraçãoedereceio.

–A falarverdade,estas férias têmsido formidáveis.Nãocreioquenostorneaacontecerumacoisadestas.

– Espero que a mim não volte a acontecer – declarou Lucy,ajoelhadajuntoaumamala,ondemetiaaroupadeAlexander.

– Pois eu preferia não me ir embora. É capaz de aparecer outrocadáver.

–Esperosinceramentequetalnãoaconteça.–Poisissonoslivroséfrequente.Querodizer,umapessoaqueviu

ou ouviu alguma coisamorre. Pode acontecer-lhe isso a si – acrescentou,preparando-separacomerumsegundopaudechocolate.

–Obrigada.–Nãoqueroqueissolheaconteça–declarouAlexander.–Stoddard

eeugostamosmuitodesi.Achamo-la uma cozinheira extraordinária. Além disso, é muito

inteligente.Lucyreplicou:–Obrigada.Masnãotencionodeixarquemematem,

sóparalhesseragradável. –Nesse caso, veja se temcuidado– recomendouAlexander. –Fez

umapausaeprosseguiu:–Seopaiaquivierdevezemquando,tratedele,sim?–Sim,decerto–prometeuLucyumpoucosur–preendida.

– O mal está em que a v ida de Londres não é boa para o pai –informou-aAlexander.–Sabe,andacomumgênerodemulheresquenãoconvém–abanouacabeçademaneirapreocupada.–Aprecio-omuito,masachoqueprecisa de alguémque cuidedele. Foi uma grandepena amãetermorrido.Bryanprecisadeumlarpróprio.

OlhousolenementeparaLucyepegounoutropaudechocolate.–Nãocomamais,Alexander–pediuLucy.Far-lhe-ámal.–Nãofarátal.Umavezcomiseis,aseguir,enãoadoeci.Nãosoudo

tipobilioso–fezumapausaeprosseguiu:–Bryangostadesi,sabe?–Issoémuitogentildasuaparte.

–Sobcertosaspetosémuitoburro–acrescentouo ilhodeBryan-,masfoiumformidávelpilotodecombate.Émuitocorajoso.Edemuitobomfeitio.

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Fezumapausa.Depois,desviandoosolhosparaoteto,continuou:–Sabe,estouconvencidodeque lhe fariabemtornaracasar-se... comumapessoahonesta...Pormim,nãomeimportarianadadeterumamadrasta...

contantoque,evidentemente,elafosseumapessoadecente...Comumasensaçãodechoque,Lucycompreendeuquenaconversa

deAlexanderhaviaumasegundaintenção. – Todas essas tolices acerca das madrastasprosseguiu Alexander,

continuando a olhar para o teto – estão na realidade fora de moda.Stoddardeeuconhecemosmuitosrapazesquetêmmadrastas...porcausadodivórciodospais e tudo isso... edão-semuitobem.Está claroque issodependedamadrasta...

fezumapausaecontinuou:–Ebomtermosonossolareosnossospais...mas,seamãenosmorreu...

compreende o que eu quero dizer? Se for uma pessoa decente –repetiuAlexanderpelaterceiravez.

Lucysentiu-secomovida.–Achoqueémuitosensato,Alexander.Temosdearranjarumaboa

esposaparaseupai. – Sim– respondeuAlexander, semmuita convicção, e acrescentou

de repente: –Achei quedevia dizer-lhe isto. Bryan gostamuito de si. Eleprópriomedisse...

"Defato”,pensouLucy"háporaquimuitaspessoascasamenteiras.Primeiro,MissMarple, e agora, Alexander!” Por qualquer razão, o curraldosporcosveio-lheàideia.

Levantou-se.–Boanoite,Alexander. – Boa noite – retribuiu o garoto. Deitou-se, pousou a cabeça na

almofada,fechouosolhos,semelhanteaumanjoadormecido,emergulhouimediatamentenosono.

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XIX

– Não é o que se pode chamar conclusivo – comentou o sargentoWetherallcomohabitualarsombrio.

Craddock lia o relatório acerca do álibi apresentado por HaroldCrackenthorpeparaodia20deDezembro.

Tinham-no visto no Sotheby, cerca das três horas e meia, masachava-se que saíra pouco depois disso. No salão de chá Russell nãotinham reconhecido a sua fotogra ia, mas isso não era de surpreender,atendendo a que nesse dia tinham tido a casamuito cheia, e Harold nãoera um habitué. O criado con irmou o seu regresso a casa às sete horasmenosumquarto,parasevestirparaojantar...oqueforaumpoucotarde,poisaqueleestavamarcadoparaasseteemeia.Nãoserecordavadetê-loouvido entrar nessa noite, mas, como já decorrera algum tempo desdeentão, não se lembrava bem e, além disso, era frequente não ouvir Mr.Crackenthorpeentrar.Eleesuamulhergostavamdedeitar-seomaiscedopossível. A garagem onde Harold guardava o carro era uma garagemparticularqueelealugaraenãohavianinguémquereparasseseretiravadeláocarroounão.

–Tudonegativo–suspirouCraddock. – Foi jantar de fato no Caterer's,mas partiu bastante antes de os

discursosterminarem. – E as estações das ferrovias?N ada também. Tinham-se passado

quasequatrosemanaseeramuitoimprovávelquealguémselembrasse. Craddock voltou a suspirar e estendeu a mão para pegar no

relatórioacercadeCedric.Tambémesteeranegativo.–AquiestáodeAlfred–disseosargentoWetherall. üma leve entonação diferente, na maneira como o disse, levou

Craddock a olhá-lo perscrutadoramente: Wetherall tinha a aparênciaprazenteira de umhomemque guardara uma guloseimapara o im.Mas

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parecia que também este relatório não era de molde a satisfazer oinspetor. Alfred vivia sozinho no seu apartamento, de onde saía e paraonde entrava a horas não determinadas. Os seus vizinhos não eramcuriosos e , seja como for, eram funcionários que estavam fora de casadurante a maior parte do dia. l¦'Ias quando os olhos de Craddock seaproximavamdo imdorelató–rio,odedograndedeWetherall indicouoúltimoparágrafo.

O sargento Leakie, encarregado de um caso de roubo deautomóveis,estiveraemLoadofBricks,umaestalagemparacondutoresdeautomóveis naWaddington – Brackhampton Road, de vigia a uns certosmotoristas. Vira, numa mesa próxima da sua, Chick Evans, um doscomponentes da quadrilha de Dicky Rogers. Com ele estava AlfredCrackenthorpe, que ele conhecia de vista, por tê-lo visto testemunhar nocasoDickyRogers.Desconfiaradaqueleencontro.

Issoforaàsvinteeumahorasetrintaminutosdesexta-feira,dia20de Dezembro. Alguns minutos depois, Alfred Crackenthorpe metera-senumautocarro, que seguia na direcção deBrackhampton.WilliamBaker,empregado da estação deBrackhampton, furara o bilhete do senhor queconhecia de vista como sendo um dos irmãos de Miss Crackenthorpe,precisamenteantesdeo tremdasvinteeduashorase cinquentae cincominutos partir para Paddington. Recorda-se desse dia por ter sido omesmo em que uma senhora de idade e tonta jurara ter assistido a umassassinatonumtremdessatarde.

–Alfred?–proferiuoinspetorpousandoorelatóriosobreamesa.–Alfred?–Istopareceindigitá-lo–concluiuWetherall.

Craddockconcordoucomumacenodecabeça.Sim,Alfredpodiaterviajadonotremdasquatrohorasetrintaetrês

minutosparaBrackhamptonecometidoocrimeduranteaviagem.Depois,podiateridodeautocarroatéaestalagemLoadofBricks,saindodestaàsvinte e uma horas e trinta minutos, tendo assim muito tempo para ir aRutherfordHall,transportarocorpo,daravinaparaosarcófago,echegara Brackhampton a tempo de apanhar o trem das vinte e duas horas ecinquentaecincominutosparaLondres.UmdosmembrosdaquadrilhadeDicky Rogers podia até tê-lo ajudado a transportar o corpo, emboraCraddockduvidassedisto.Eramumaspersonagens indesejáveis,masnãoeramassassinos.

–Alfred?–repetiu,especulativamente. A família Crackenthorpe reunira-se em Rutherford Hall. Harold e

AlfredtinhamchegadodeLondresenãotardouaouvirem-sevozesaltase

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irritadas. Por sua própria iniciativa Lucy preparou um refresco com gelo e

levou-onumjarroparaabiblioteca. 168 As vozes chegavam com nitidez ao átrio e indicavam uma

grandeacrimóniacontraEmma.–Aculpafoitodatua,Emma–acusoucolericamenteavozgravede

Harold.–Espanta-mecomopudestesertãonéscia.SenãotivessesidocomessacartaàScotlandYardeprovocadotudoisto...

AvozesganiçadadeAlfredcensurou:–Deviasestarcompletamentelouca!–Agora,nãoaaborrecam–disseCedric.Oqueestá feito, feitoestá.Seriamuitopiorque tivessem identi icadoamortacomosendoMartineenósnuncalheshouvéssemosditoumapalavraaseurespeito.

–Tunãotensquetepreocupar,Cedric–observouHarold,furioso.–Nodiavintenãoestavasnestepaís.MasparaAlfredeparamimasituaçãoémuitoembaracosa.Porsorte,eurecordo-medeondeestive,nessatarde,edoquefiz.

– Não duvido – esclareceu Alfred. – Estou convencido de que setivesses planeado um crime, Harold, prepararias primeiro um cuidadosoálibi.

–Suponhoquenãotenhasálibi–respondeuHarold,comfrieza. –Depende. Sempre émelhornão apresentarumálibi à políciado

queapresentarumquenãopresta.Sãomuitohábeisadescobri-lo.–Seestásainsinuarquemateiessamulher...–Oh,calem-se todos!–gritouEmma.–Eevidentequenenhumde

vocêsmatouessamulher.–Ejáagoradigo-tequeeunãoestavaausentedeInglaterranodia

vinte– revelouCedric. –E apolícia sabe-o!Por conseguinte, somos todossuspeitos.

–SenãotivessesidoEmma...–Oh,nãocomecisoutravez,Harold–gritouaquela. O Dr. Quimper saiu do escritório, onde estivera encerrado com o

velho Mr. Crackenthorpe. O seu olhar pousou-se no jarro que Lucyseguravanamão.

–Oqueéisso?Umfestejo?169–Digaantesqueéóleoparadeitarnomarencapelado.Estãonumadiscussãomedonha.

–Arecriminarem-se?–NamaiorpartecontraEmma.ODr.Quimperfranziuosobrolho. – Isso é verdade? Tirou o jarro damão de Lucy, abriu a porta da

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bibliotecaeentrou.–Boanoite.–Ah,Dr.Quimper,precisodefalar-lhe–declarouavozirritadade

Harold. – Gostaria de saber por que interveio num assunto particular defamíliaeincitouminhairmãarecorreràScotlandYard.

O Dr. Quimper respondeu com serenidade: – Miss Crackenthorpesolicitouomeuconselhoedei-lho.Naminhaopinião,procedeumuitobem.

–Atreve-seadizer...–Pequena!EraochamamentodovelhoMr.Crackenthorpe.Espreitavapelaportaabertadoescritório,mesmoportrásdeLucy. Esta virou-se com certa relutância: – Que deseja, Mr

Crackenthorpe?–Quenosdáhojepara jantar?Querocurry.Você fazumcurrymagnífico.Háanosquenãoocomia.

–Osgarotosnãogostammuitodecurry...–Osgarotos...osgarotos.Que importamosgarotos?Quemimporta

sou eu. E, seja como for, os garotos já se foram embora... Foi um belodesembaraco! Quero uma boa curryada, está a ouvir? – Pois sim, MrCrackenthorpe,tê-la-á.

– Muito bem. Você é boa pequena, Lucy. Cuide de mim, que eucuidareidesi.

Lucy voltou para a cozinha. Pondo de parte a galinha de fricasséque planejara fazer, começou a reunir os ingredientes para o prato decurry. A porta da rua bateu com estrondo e, através da janela, viu o Dr.Quimper afastar-se desabridamente de casa, meter-se no seu carro epartir.

Lucy suspirou. Sentia a falta dos rapazes e, de certomodo, sentiatambémafaltadeBryan.

Sentou-seecomeçouacortarcogumelos.Dequalquermodo,iaprepararumabelarefeiçãoparaafamília.EramtrêshorasdamanhãquandooDr.Quimpermeteuocarrona

garagem, fechou as portas desta e en trou em casa, com ar bastantecansado.Mrs.JoshSimpkinspresentearaafamíliacomumsaudávelpardegémeos.

O Dr. Quimper subira para o seu quarto e começara a despir-se.Olhou para o relógio de pulso. Eram agora três horas e cinco damadrugada.Achegadadaquelesgémeosa talhora foraumaboapartida,mas tudo correra bem. Bocejou. Sentia-se cansado,muito cansado. Olhoucobicosamenteparaacama.

Otelefonetocou.

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ODr.Quimperpraguejoueatendeu.–ODr.Quimper?–Eopróprio.–FalaLucyEyelesbarrow,deRutherfordHall.Achoqueémelhoraquivir.Parecequetodaagenteadoeceu.–Adoeceu?Como?Quesintomasapresentam?Lucydescreveu-lhos. – Vou imediatamente. Entretanto... – deu-lhe umas rápidas

instruções. Depois, tornou a vestir-se com rapidez, preparou o estojo de

emergênciaecorreuameter-senocarro. Tinhampassadoumas três horas quandoomédico e Lucy, ambos

exaustos, se sentaram à mesa da cozinha para beberem umas enormesxícarasdecafé.

O Dr. Quimper esvaziou a xícara até a última gota e pousou-a nopires.

– Era do que eu precisava. Agora, Miss Eyelesbarrow, vamosesclarecerosfatos.

Lucyolhou-o.Os tracosde fadigadelineavam-se-lheclaramentenorostofazendo-oparecermaisvelhoeprofundasolheirasacentuavamasuaexpressãocansada.

– Creio que já não correm perigo – declarou.Mas como sucedeuisto?Quemcozinhouojantar?–Fuieu–respondeuLucy.

–Descreva-mopormenorizadamente.–Sopadecogumelos.Galinhacomarrozdecurry.Docedeleite.–CanapésDiane–dissedesúbitooDr.Quimper.Lucysorriulevementeeconfirmou:–Sim,CanapésDiane. – Muito bem... ora vejamos. Sopa de cogumelos... de lata, não é

verdade?–Claroquenão.Fi-laeu.–Fê-lacomquê?–Comcogumelos,caldodegalinha,leite,manteiga,

farinhaesumodelimão.–Ah!Devemtersidooscogumelos. –Não foramos cogumelos,porqueeu também tomei sopae sinto-

meperfeitamente.–Sim,vocêestáperfeitamente.Nãomeesquecidisso.Lucycorou:–Sequerdizerque... – Não quero dizer tal. Você é uma moça muito inteligente. Se eu

tivesse pensado o que achou, a estas horas também você estaria lá emcimaagemercomdores.Sejacomofor,estoumuitobeminformadoaseurespeito.Dei-meaocuidadodetirarinformações.

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– Por que diabo o fez?Os lábios doDr. Quimper uniram-se numalinhafina.

– Porqueme empenho em tirar informações de todas as pessoasquevêmvivernestacasa.Vocêéumamoçadebona ide,queganhaavidacom este gênero de trabalho e parece nunca ter tido qualquer contactocomafamíliaCrackenthorpe,antesdevirparaaqui.Porconseguinte,nãoéuma amiga de Cedric, de Harold ou de Alfred... que estivesse a ajudá-losnumamáobra.

– Pensa de fato...? – Penso uma quantidade de coisas – retorquiuQuimper-,mastenhodeserprudente.Quandoseémédico,ocasotorna-sepior.Mascontinuemos.Galinhadecurry.Comeudisso?–Não.Depoisdese cozinhar um prato de curry, basta-nos o cheiro para já não termosvontadedecomê-lo,mas,claroestá,queoprovei.Comisopaedoce.

–Comoserviuodoce?–Emtaçasindividuais.–Ondeestáalouçasuja?–Jáalaveitodaearrumei. O Dr. Quimper murmurou por entre os dentes: – Um excesso de

zeloéporvezesinconveniente.–Sim,agoravejoque teria sidopreferívelnãoo ter feito,mas jáé

tarde.–Oqueéquesobrou?–Umpoucodecurry...Estánuma tijela,na

despensa.Sobejoutambémumpoucodesopa,masodocecomeu-setodo.–Bem,levareiocurryeasopa.Levantou-se. – Vou lá acima vê-los uma vez mais. Depois disso, é capaz de

aguentaro “forte” atédemanhã?É capazde cuidarde todos eles?Possomandarparaaquiumaenfermeira,quandoforemoitohoras.

–Gostariaquemedissesse com franquezaoquepensa.Achaquesetratadecomidaemmauestadoou...ou...oudeenvenenamento?–Jálhodisse.Osmédicosnuncapodemachar...

Têm de ter a certeza. Se a análise dessa comida der um resultadopositivo,podereiformularumacerteza.

Casocontrário...–Casocontrário?–repetiuLucy.ODr.Quimperpousou-lheumamãonoombro.–Cuidededuaspessoas,especialmente–recomendou.–Cuidede

Emma. Não quero que lhe aconteça nada demal... – a sua voz traía umaemoçãoquenãoconseguiadisfarçar.–Aindanemsequercomecouavivere, sabe, neste mundo, há poucas pessoas com as qualidades de EmmaCrackenthorpe...

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Emma signi ica muito para mim. Nunca lho disse, mas dir-lho-ei.CuidedeEmma.

–Estejadescansado–prometeuLucy.–Eolhetambémpelovelho.Nãopossodizerquesejaomeudoente

preferido,masémeudoenteediabosmelevemsepermitireiqueomatemsó porque um ou dois de seus antipáticos ilhos, ou talvez os três juntos,queremovelhoforadocaminho,parapoderempôramãonodinheiro.

ODr.QuimperlançouaLucyumsúbitoolharestranho.–Faleimuito,masestejaalertae,incidentalmente,calada.OinspetorBaconpareceusurpreendido. –Arsênico? –perguntou. –Arsênico? – Sim.Estavano curry.Aqui

tem o resto do curry... para o seu amigo lá ir. Apenas procedi a umpequenoteste,masoresultadofoimuitoconclusivo.

– Nesse caso, há um envenenador em jogo? – Assim parece –concluiuoDr.Quimpersecamente.

–Etodoselesestãodoentes...exceptoessaMissEyelesbarrow.–ExcetoMissEyelesbarrow.–Ocasopareceumpoucofeioparaela...–Masquemotivopodiaelater?–Talveztenhaumatara–sugeriu

Bacon.–Hápessoasqueparecemnormaisecontudonãoosão. – Não é esse o caso de Miss Eyelesbarrow. Falan174 do como

médico,MissEyelesbarrowparece tãonormal comoqualquerdenós. SeMiss Eyelesbarrow pôs arsênico na comida, fê-lo por uma razão. Alémdisso, como é umamoçamuito inteligente, havia de ter o cuidado de nãoser a única pessoa não afetada. O que ela faria, o que qualquerenvenenador inteligente faria , seria ingerir um pouco do curryenvenenadoedepoisexagerarossintomas.

– E não se descobriria? – Que ela ingerira menos veneno que asoutras pessoas? Provavelmente, não. No im de contas, as pessoas nãoreagem todas damesmamaneira... amesma quantidade de veneno podeafetar umas pessoas mais do que outras. E certo – acrescentou o Dr.Quimper–que,depoisdadoentemorrer,sepodefazerumaquilculomuitoaproximadodaquantidadedevenenoingerida.

–Nessecaso...–oinspetorfezumapausaparaconsolidarasideias– nesse caso, pode dar-se o caso de uma das pessoas da família estar aexagerar o seu própriomal, para evitar ser alvo de suspeitas. Que diz aisto?–Essa ideia jámeocorreu.E foipor issoquevimprocurá-lo.Ocasoestá agora nas suasmãos.Mandei para lá uma enfermeira de con iança,masnãopodeestaremtodosossítiosaomesmotempo.Naminhaopinião,

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ninguémingeriuumaporçãomortal.–Umerrodoenvenenador?–Não.Parece-memaisprovávelquea

ideia fosse lançar venenono curry emquantidade su icientepara causarsintomas de alimentos em mau estado... que decerto se atribuiriam aoscogumelos. As pessoas acham sempre que os cogumelos são venenosos.Depois, provavelmente, uma das pessoas sentiria um maior mal-estar emorreria.

–Porteringeridoumasegundadose?Omédicoaquiesceucomummovimentodecabeca.

–Foipor issoquevim imediatamenteprocurá-loemandeipara láumaenfermeiraespecial.

– Ela percebe de arsênico? – Certamente, e Miss Evelesbarrowtambém.

O senhor sabemuito bemo que tem a fazer,mas, se eu fosse a si,iria lá e preveni-los-ia de gue foram vítimas de envenenamento porarsênico.Eprovávelqueissoalarmeonossoassassinoquenãoseatreveráalevaracabooseuplano.

O telefone, pousado sobre a mesa do inspetor, retiniu. Baconatendeu:–Okay.Ligueparaaqui–evoltando-separaQuimperinformou.–Éasuaenfermeira.Sim,está?...Éopróprio...Quediz?Umarecaídaséria...

sim...ODr.Quimperestáaqui...Sequiserfalarcomele...Estendeuoauscultadoraomédico.–FalaQuimper...sim...está...Continue.Voujá.Pousouoauscultadorevirou-separaBacon.–Quemfoi?–Alfred–respondeuomédico.–Morreu.

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XX

AvozdeCraddockchegouatravésdofiotelefónico,comumanotadevivaincredulidade.

–Alfred?–admirou-se.–Alfred?O inspetorBacon inquiriu:–Nãoesperava por esta, pois não? – Pois não. Na realidade, era dele que eudesconfiava!Masenganámo-nos.

Seguiu-se ummomento de silêncio. Depois Craddock perguntou: –Estava lá uma enfermeira? Como se explica que ela não o tenha salvo? –Nãopodemoscensurá-la.MissEyelesbarrowestavaextenuadaetinhaidodeitar-se.Aenfermeiratinhadetratardecincodoentes:ovelho,Emma,Cedric,HaroldeAlfred.Nãopodiaestaremtodososladosaomesmotempo.ParecequeovelhoMrCrackenthorpecomeçouaqueixar-semuito,adizerqueiamorrer.Elafoiaoseuquarto,acalmou-oedepoisfoidaraAlfredumpoucodechácomglucose.Elebebeu-oepronto.

– Arsênico? – Assim parece. Certamente que podia ter sido umarecaída,masQuimpernãoédesseparecereJohnstonetão-pouco.

– Pergunto a mim mesmo se a vítima devia ser Alfred – disseCraddock.

Baconpareceuinteressado. – Quer dizer que, ao passo que a morte de Alfred não bene icia

ninguém, a do velho os bene iciaria a todos? Pode ter sido um engano...alguémpodeterachadoqueocháeraparaovelho.

–Têmacertezadequeovenenofoiministradonochá?–Não,claroquenão.A enfermeira, comoboapro issional, lavoua louça toda, xícaras,colheres,bule...tudo.Masparecetersidooúnicométodopratiaquivel.

–Querdizer–perguntouCraddock,pensativamente -,queumdosdoentesnãoestavatãodoentecomoosoutros?Queviuumaoportunidadeedeitouovenenonaxícara?–Ocasonãoserepetirá–a iancouoinspetorBacon,sombrio.–Temos láagoraduasenfermeiras,semcontarcomMiss

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Evelesbarrow,edestaqueitambémdoishomens.Vailá?–Omaisdepressapossível! Lucy Eyelesbarrow atravessou o átrio ao encontro do inspetorCraddock.Pareciapálidaeextenuada.

–Tempassadoummaubocado–observouCraddock.–Temsidocomoqueum longopesadelo.Paradizeraverdade,na

noitepassadajulgueiquetodosmorriam.–Essecurry... – Foi o curry? – Sim,muitobem ligado como arsênico... umaobra

dignadeBórgia.–Seissoéverdade...–concluiuLucy–foi...foicertamente...alguémdafamília.–Nãoháoutrapossibilidade?–Não.Bemvê,sócomeciiapreparar

esse maldito curry muito tarde... já depois das seis horas... porque MrCrackenthorpe pediu-meque o izesse. Tive de abrir uma lata com curryem pó... e, por conseguinte, não podia estar envenenado. Calculo que ocurry disfarcou o gosto, não é verdade? – O arsênico não tem gosto –replicouCraddock,absorto.–Masqueoportunidadeteveoassassino?Qualdeles teve ocasião de envenenar o curry? Lucy pensou um momento erespondeu:–Narealidade,qualquerpessoapodiaterentradonacozinha,enquantoeupunhaamesa.

– Compreendo. Quem estava em casa?O velhoMr Crackenthorpe,Emma, Cedric... – Harold e Alfred. Tinham chegado de Londres. Oh, eBryan...BryanEastley.Maspartiuantesdo jantar.TinhaumencontroemBrackhampton.

Craddock disse pensativamente: – Isso condiz com a doenca dovelho no Natal. Quimper suspeitou que fosse arsênico. Na noite passada,pareceram-lhetodosigualmentedoentes?

–AchoqueMrCrackenthorpe-pai estavapior doque os outros.ODr.Quimpernãoolargou.

Éumbommédico.Cedricfoiquemsequeixoumaisquetodos.–EEmma?–Estevemal.–MasporqueatingiriamAlfred?–perguntouCraddock.–Achaqueovenenolheeradestinado?–Jáme izamesmapergunta!–declarouCraddock.–Se,aomenos,

pudesse descobrir o motivo de tudo isto. Nada parece fazer sentido. Amulher estrangulada e encontrada no sarcófago era Martine, viúva deEdmundCrackenthorpe.

Admitamos isso, pois é quase uma certeza. Tem de haver uma

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relaçãoentreasuamorteeoenvenenamentodeAlfred.Aexplicaçãoestáalgures,noseiodafamília.Epossívelatéqueumdelessejadoido.

–Poisé–concordouLucy.–Tenhacuidadocomvocê–recomendouCraddock.–Lembre-sede

que,nestacasa,existeumenvenenadorequeumdosdoentesqueestáláemcimaprovavelmenteexageraoseumal.

Depois dapartidadeCraddock, Lucy voltoudevagarpara a cama.Ao passar pelo quarto do velho Crackenthorpe, uma voz autoritária,embora um pouco enfraquecida pela doenca, chamou: – Pequena...pequena...évocê?Venhaaqui.

Lucyentrounoquarto.Mr.Crackenthorpeestavadeitadonacama,recostado em almofadas. Lucy achou que para um homem doente o seuaspetoerabastanteanimoso.

–Acasaestácheiadeenfermeiras–queixou-seMr.Crackenthorpe.– Metem o nariz em toda a parte, cheias de importância, tiram-me atemperatura, nãome deixam comer o que quero... isto vai custar-me nãopoucodinheiro.DigaaEmmaqueasmandeembora.Vocêpode tratardemim.

–Está todaagentedoente,MrCrackenthorpe.–disseLucy.–Nãopossotratardetodos,compreende.

–Cogumelos–disseMr.Crackenthorpe.–Oscogumelos sãomuitoperigosos.Foiessagomaquenóscomemosontemànoite.Foivocêqueafez–acrescentouacusadoramente.

–Oscogumelosestavambons,MrCrackent–horpe.–Nãoestouacensurá-la,pequena,nãoestouacensurá-la.Nãoéa

primeira vez que uma coisa dessas acontece. Basta iremmisturados comum fungovenenosoepronto.Ninguém temculpa.Eubemsei quevocê éumaboamoça.Seriaincapazdefazerissodepropósito.ComoestáEmma?–Estatarde,sente-semelhor.

–Ah.EHarold?–Estámelhortambém.–QuehistóriavemaseressadeAlfredteridodestaparamelhor?–

Nãolhedeviamtercontadoisso,MrCrackenthorpe.Ovelhosoltouumagargalhadaforte,deintensodivertimento. – Ouco coisas – explicou. – Não conseguem esconder nada ao

velhote.Elesbemtentam.Porconseguinte,Alfredmorreu,nãoéverdade?Esse jánãovoltaráasugar-meea levar-medinheiro.Todoselesandamàesperaqueeumorra,sabe...eAlfredaindamaisdoqueosoutros.Agorajámorreu.Eoquesepodechamarumaboapartida.

–Nãolhe icabempensarassim,.'¦IisterCrackenthorpe–censurou

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Lucycomseveridade.Mr.Crackenthorpevoltouarir.–Hei-desobreviveratodos,pequena.Verá. Lucy foi para o quarto, pegou no seu dicionário e procurou a

palavratontina.Fechouolivropensativamenteeficouaolharovácuo. –Não entendo por que veiome procurar – disse, com irritação, o

Dr.Morris. – O senhor conhece a família Crackenthorpe há muito tempo –

justificouoinspetorCraddock.–Sim,sim,conhecitodososCrackenthorpe.Lembro-memuitobem

dovelhoJosiahCrackenthorpe.Eraumhomemrude...massagaz.Fezmuitodinheiro – mudou de posição na cadeira e olhou por baixo dassobrancelhas espessas para o inspetor Craddock. – Quer dizer que deuouvidos a esse louco do Quimper. Esses médicos novos, cheios de zelo!Andam sempre com ideias disparatadas! Meteu na cabeça que alguémtentavaenvenenarLutherCrackenthorpe.Tolice!Melodrama!Certamenteque teve ataques gástricos. Tratei-o dessas vezes. Não foram muitofrequentes...masnadatinhamdeespecial.

–ODr.Quimperachouquesim–observouCraddock. – Ummédico não deve achar. No im de contas, espero ainda ser

capazdereconhecerumcasodeenvenenamentoporarsênico. – Muitos médicos de fama têm-se deixado iludir, como no caso

Greenbarrow.–Poissim,poissim–admitiuoDr.Morris–,osenhorestádizendo

com issoque eupodia terme enganado.Mas eunão creio que tenhameenganado!Fezumapausaeprosseguiu:–QuemdiaboachaQuimperquemisturouoarsênico?

–Nãosabe.Estápreocupado.Comoédoseuconhecimento,hánessafamíliaumagrandequantidadededinheiroemjogo.

– Sim, sim, eu sei, e na morte de Luther Crackenthorpe os ilhosreceberão tudo. Sei também que todos estão muito necessitados dedinheiro,masissonãosignificaquesejamcapazesdematarovelho.

–Nãonecessariamente–concordouCraddock.–Sejacomofor–continuouoDr.Morris -, tenhoporprincípionão

suspeitar de coisas sem ter um motivo para o fazer. Admito que o queacaba de contar-me deixa-me umpouco abalado. Ao que parece, trata-sedeumagrandedosedearsênico...mascontinuosemcompreenderporqueveio procurar-me. Tudo quanto posso dizer-lhe é que não suspeitei dele.Talvezdevessetersuspeitado.Talvezdevesseterdadomaisimportânciaa

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essas indisposições gástricasdeLutherCrackenthorpe.Mas isso já lá vai,hámuitotempo.

Craddockconcordouedisse:–Doquedefatoprecisoédeconhecerum pouco mais acerca da família Crackenthorpe. Haverá neles algumadegeneração mental... de qualquer espécie? Os olhos por baixo dassobrancelhas espessas itaram-no com vivacidade: – Sim, compreendo oque pensa. O velho Josiah era perfeitamente normal. A mulher era umaneurótica, com tendência para amelançolia.Morreu pouco depois de terdado à luz o segundo ilho. Creio que Luther herdou dela uma certa...instabilidade. Como rapaz, era igual a muitos outros, mas estava sempreemdisputacomopai.Estesentia-sedesiludidocomo ilhoecreioqueestese ressentiu com isso e que tal ressentimento nem sequer lhe passoudepois de casado. Se já falou com ele, com certeza notou que tem umprofundodesapegopor todosos ilhos, comexcepçãodasmoças,EmmaeEdie...aquemorreu.

– Por que não gosta dos ilhos? – Para compreender isso terá deconsultar um desses psiquiatras modernos. Na minha opinião, Luthernuncaseachoumuitoaptocomohomemesente–-semuitohumilhadocoma sua posição inanceira. Recebe o usufruto da herança, mas não podetocar no capital. Se pudesse deserdar os ilhos é provável que gostassemaisdeles.Sente-sehumilhado,pornãoterpoderesparadeserdá-los.

–Seráporissoqueosatisfaztantoaideiadesobreviveratodos?–perguntouoinspetorCraddock.

– É possível. E também essa a causa da sua avareza. Deve tereconomizado uma considerável parte dos seus rendimentos... a maiorparte,antesdestesimpostostodos,claroestá.

UmanovaideiaocorreuaoinspetorCraddock. – Suponho que tenha deixado essas economias a alguém, em

testamento.Issopodeelefazer.–Sim,emborasóDeussaibaaquemasdeixou.TalvezaEmma,masduvido.OuaAlexander,oneto.–Gostadoneto,nãoéverdade?–Sim,pelomenosgostava.Erafilhodafilhaenãodeumdosfilhos.É

naturalqueissofaçadiferença.EgostavamuitodeBryanEastley,omaridodeEdie.NãoconhecobemBrvanehájáalgunsanosquenãovejoninguémda família.Masdeu-mea impressãodequeesse rapazhaviadesentir-sedeslocado depois de a guerra acabar. Possui todas as qualidadesrequeridas em tempo de guerra: coragem, arrojo e despreocupação pelofuturo, mas não me parece que tenha estabilidade. Provavelmente, não

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serácapazdeaguentar-senumemprego. –Nãoháqualquer taranageraçãomaisnova?–Cedric éum tipo

excêntrico, um desses rebeldes por natureza. Não digo que sejaabsolutamente normal, mas há alguém que o seja? Harold é bastanteortodoxo, e não o considero uma personagem muito simpática; é frio ecalculista.Quantoaooutro,aoquemorreu,achoquenãosedevefalarmaldosmortos.

–Earespeitode...–Craddockhesitou–EmmaCrackenthorpe?–Eumaboamoça,sossegada,masnuncasesabebemnoqueelapensa.Temosseusplanoseassuas ideias,masguarda-ascomela.Temmais irmezadoqueapresenta.

– Conheceu Edmund? – Sim. Acho que era o melhor do grupo.Simpáti–go,alegreedebomcoração.

– Alguma vez ouviu dizer que ia casar ou casara com umamoçafrancesa, antes de ter morrido? O Dr. Morris franziu o sobrolho erespondeu:–Pareceque tenhoumavaga recordaçãoacercadisso,mas jáfoihámuitotempo.

–Foinoprincípiodaguerra,nãoéverdade?–Foi.Achoque,senãotivessemorrido,ter-se-iaarrependidodetercasadocomumaestrangeira.

– Pois há razão para crer que tal casamento se realizou – disseCraddock.

Emfrasesbreves,fezumrelatodosacontecimentosrecentes.–Recordo-medeterlidoqualquercoisanosjornaisacercadeuma

mulher que fora encontrada morta num sarcófago. Foi então emRutherfordHall.

– E há razão para crer que essa mulher era a viúva de EdmundCrackenthorpe.

– Isso parece fantástico. Parece mais uma novela do que umacontecimento da vida real. Mas quem havia de querer matar adesgraçada... isto é, como se relaciona isso com o envenenamento porarsênico da família Crackenthorpe? – De uma de duas maneiras –respondeu Craddock -, mas qualquer delas é muito rebuscada. TalvezexistaumapessoaávidadetodaafortunadeJosiahCrackenthorpe.

– Se assim for, é louca – sentenciouoDr.Morris. –Terádepagarunsimpostosenormíssimossobreosrendimentos.

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XXI

–Oscogumelossãomuitoperigosos–monologouMrs.Kidder.Mrs. Kidder já izera esta observação umas dez vezes, durante os

últimosdias.Lucynãoreplicou. – Eu aqui nunca lhes toco – prosseguiu. – São perigosíssimos. Foi

umamercêdaProvidência só ter havidoumamorte. Podiam termorridotodos,atéasenhora,MissEyelesbarrow.Teveumasortemilagrosa, issoéqueteve.

–Nãoforamoscogumelos–esclareceuLucy.Esseserambons. – A senhora não acredita, mas olhe que os cogumelos são muito

perigosos. Basta haver entre eles um que seja venenoso e pronto. Eengraçado–continuouMrs.Kidder,demisturacomobarulhodospratosetravessasnolava-louças–comoumadesgraçanuncavemsó.O ilhomaisvelho da minha irmã apanhou sarampo, o nosso Ernie caiu e partiu umbraçoeomeumaridoestevecomumacamadadefurúnculos.Tudoistonamesma semana! Custa a acreditar, não é verdade? Aqui aconteceu omesmo–prosseguiu-,primeiro,essecrimeeagoraamortedeMrAlfred,envenenadocomcogumelos.Gostariadesaberquemseráaseguir...Lucypensou,entristecida,quetambémgostariadesabê-lo.

Pegou uma bandeja com xícaras de chá e comecou a subir asescadas.

–Oqueéisto?–perguntouMr.Crackenthorpereprovadoramente.–Cháecremedeleite–respondeuLucy. – Leve – ordenouMr. Crackenthorpe. – Não toco nisso. Já disse à

enfermeiraquequeriaumbife.–ODr.Quimperachaque,porora,nãodevecomerbife. – Já estou praticamente bom – resmungou Mr. Crackenthorpe. –

Amanhã, levanto-me. Como estão os outros? – Mr Harold está muitomelhor.RegressaamanhãaLondres.

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– Que alívio! – exultou Mr. Crackenthorpe.E Cedric... há algumaesperançadequeregresseamanhãàsuailha?–Nãoiráporora.

–Épena.EEmma?Porquenãovemmever?–Estáaindadecama,MrCrackenthorpe.–Asmulheressãosempreumaspiegas.Masvocêéumamoçaforte

–acrescentou.–Nãoparadurantetodoodia,nãoé?–Façomuitoexercício.OvelhoMr.Crackenthorpemeneouacabeçacomaprovação. – É uma boamoça e forte.Não julgue queme esqueci do que lhe

disse no outro dia. Verá logo que tenho razão. Emma não poderá fazereternamenteoquequer. Enãodêouvidos aosoutrosquandodizemquesouumvelhoavarento.Tenhocuidadoemnãomalbarataromeudinheiro.Tenhoguardadaumaboaquantiaeseiquemvaigastarquandoforahora–olhou-aafetuosamente.

Lucy saiudepressadoquarto, evitando ser agarradapelamãodeMr.Crackenthorpe.

FoibuscaroutrabandejaelevouaEmma. – Obrigado, Lucy. Jáme sinto quase boa. Sinto fome e isso é bom

sinal,nãoéverdade?Sinto-mepreocupadaporcausadesuatia.Aindanãotevetempoparairvisitá-la,nãoé?

–Não.–Tenhoreceiodequeelasintaasuafalta.–Nãosepreocupe,MissCrackenthorpe.Elaémuitocompreensiva.–Temtelefonado?–Ultimamente,não. – Então, telefone. Telefone todos os dias. As pessoas de idade

gostamtantodeternotícias. Enquanto descia a buscar nova bandeja, Lucy decidiu que

telefonariaaMissMarple,depoisdelevá-loaCedric.Este,comumaaparência incrivelmenteasseada,estavasentadona

camaaescrever.–Viva,Lucy!–saudou.–Quemalditamistelametrazhoje?Gostaria

que me desembaraçasse dessa enfermeira que me fala empregandosempre “nós”. “Como estamos estamanhã?Dormimos bem?Ai, ilho, quemarotossomosatirararoupadacama”–proferiu,imitandoaenfermeira,numavozdefalsete.

–Parecemuitobem-disposto–observouLucy.–Queestáafazer?–Planos.Planosparaoquehei-defazercomesta

casaquandoovelhote fecharoolho.Aindanão sei se a conserveou sea

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venda. Tem muito valor para ins industriais. A casa serviria para umacreche ou para uma escola. Talvez vendametade da terra e empregue odinheiroafazeralgoextravagantecomaoutrametade.Queacha?–Aindanãoatem–replicouLucy,comsecura.

–Mastê-la-ei.Nãoserádivididacomooresto.Recebê-la-ei inteira. Se a vender por bom preco, o dinheiro será

capital e não rendimento. Por conseguinte, não terei de pagar impostossobreele.Dinheiroparaqueimar.Pensebem.

–SemprejulgueiquedesprezasseodinheiroobservouLucy. – Claro que desprezo o dinheiro, quando não o tenho – replicou

Cedric.–Eaúnicacoisadignaafazer.Vocêéumamoçaencantadora,Lucy.Masacasoesta impressão sedeveao fatodenãoverumamulherbonitahátantotempo?–Esperoquesejaisso.

– Tem ainda de arranjar alguma coisa ou de fazer arrumações? –Parece que já alguém esteve a arrumar isto aqui – observou Lucy,olhando-o.

– Foi essamaldita enfermeira. Já realizaramo inquérito acercadeAlfred?Queaconteceu?–Foiadiado–respondeuLucy.

–Apolíciaestáafazer“caixinha”.Estecasodeenvenenamentoédeassustar–acrescentou.–Émelhortercuidadocomvocê,minhafilha.

–Eoquefaço–retorquiuLucy.–Alexanderjávoltouparaocolégio?–Creioqueestáaindaemcasa

deStoddard-West.Segundoouvi,ocolégiosóreabredepoisdeamanhã.Antesdealmoçar,LucytelefonouaMissMarple. –Custa-memuitoaindanão terpodido irvê-la,mas tenho tido,de

fato,muitoquefazer.–Claro,minha ilha,claro.Alémdisso,porora,nadasepode fazer.

Temosdeesperar.–Sim,masesperarporquê?–ElspethMcGillicuddydeveestarde

volta, muito em breve – disse Miss Marple. – Escrevi-lhe pedindo queregressasse imediatamente. Disse-lhe que era esse o seu dever. Porconseguinte, não se preocupe, minha ilha – acrescentou em tomtranquilizador.

–Nãoachaque...–começouLucy,edepoisparou.–Quehajamaismortes?Esperoquenão,minha lha.Mas,quando

nos havemos com uma pessoa má, nunca se sabe, não é verdade? – Oumaluca–sugeriuLucy.

– Bem sei que é esse o ponto de vistamoderno de considerar as

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coisas,maseunãoconcordo.Lucydesligou,voltouparaacozinhaepegounabandejacomoseu

almoço.Mrs.Kiddertirarajáoaventalepreparava-separapartir. – Sente-se bem, Miss Evelesbarrow? – informou-se, cheia de

solicitude.–Certamentequesim–retorquiuLucycomsecura.Emvezdelevarabandejaparaagrandeesombriacasadejantar,

levou-oparaopequenoescritório.Estavaprecisamenteaacabardecomer,quandoaportaseabriue

BrvanEastleventrou. – Viva! – saudou Lucy. – Mas que visita inesperada! – Também

creio. Como estão todos? – Muito melhor. Harold volta para Londres,amanhã.

–Quepensavocêdocaso?Eranarealidadearsênico?–Era,sim–confirmouLucy.

–Aindanãoveionadanosjornais.–Poisnão.Creioqueapolíciadesejaguardarsegredodoacontecido

atéaomomentoqueacharoportuno. –Mas quem pode ter lançado veneno na comida? – Suponho que

sejaeuapessoamaisindicadadisseLucy.Bryan,ansioso,olhou-a. – Mas não foi você, foi? – perguntou, parecendo um tudo nada

chocado.–Não,nãofui.–Porqueofaria,realmente?Elesnãolhesãonada,não?–edepois

acrescentou:Esperoquemeuregressonãoatenhadesagradado.–Claroquenão.Vaificaraqui? – Bem que gostaria, se isso não fosse um grande incômodo para

você.–Deformaalguma. – Nesta altura, estou desempregado e...bem, me aborreco. Tem a

certezadequenãoseimporta?–Oh,nãosoueuquemtemdeseimportar.IssoécomEmma.–Emmanãomepreocupa–disseBryan.–Foisempremuitogentil

paramim.A suamaneira, já se sabe.Émuito introspectiva.Não sei comoconsegue viver aqui enterrada aturando o velhote. É pena não se tercasado.Agorajáétarde.

–Nãoachoquesejatarde–declarouLucy. – Bem... – Bryan re letiu. – Talvez com um sacerdote. Emma seria

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muitoútilàparóquiaehaviadeirdechapéu,aosdomingos,àigreja.–Issonãomeparecemuitotentador–comentouLucy,levantando-

seepegandonabandeja.–Eulevoisso–ofereceu-seBryan,tirando-lheabandejadasmãos.

Voltaram juntos para a cozinha.Quer que a ajude a lavar a loica? Gostodesta cozinha–acrescentou. –Comefeito,¦ embora reconheçaqueomeugosto não é o da maioria das pessoas, esta casa agrada-me. E um gostoestranho,talvez,maséaverdade.Umaviãopoderiaaterrarcomfacilidadenoparque–acrescentou,entusiasmado.

Pegou num pano de cozinha e começou a limpar as colheres e osgarfos.

–EumapenaquevápararaCedric–comentou.–Aprimeiracoisaque fará será vender toda a propriedade e voltar de novo para oestrangeiro.NãocompreendocomoéquepodehaverpessoasquenãosesintambememInglaterra.Haroldtambémnãoteria interessepelacasaeparaEmmaédemasiadogrande.Mas,sefossepararaAlexander,eleeeusentir-nos-íamos aqui tão felizes como dois garotos. E certo que seriaagradável ter umamulher em casa – olhou pensativamente para Lucy. –Masparaqueestouafalarnisto?ParaAlexanderreceberestacasa,serianecessárioque todoselesmorressemprimeiroqueopaideEmmae issonào é possível, não? Além de que Crackenthorpe parece estar disposto achegaraoscemanos,apenasparaarreliaratodos.Não icoumuitoafetadopelamortedeAlfred,poisnão?–Poisnão–replicouLucy_laconicamente.

–Quevelhoteirritante!–proferiuBryanEastley,demaneirajovial.

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XXII

–Ehorríveloquesedizporaí–disseMrs.Kidder.–Eusóoucooque não posso deixar de ouvir, mas não acredito em nada daquilo. –Aguardouesperancosamente.

–Calculo.Acampainhadaportatocou.–Éomédico.Querqueváabriraporta?–Voueu–declarouLucy.Masnãoeraomédicoesimumamulheraltaeelegante,numcasaco

de arminho. No caminho ensaibrado, ronçava baixinho um Rolls com ummotoristaaovolante.

–PossofalarcomMissEmmaCrackenthorpe?Adesconhecidatinhauma voz atraente e carregava levemente nos “RR”. Aparentava trinta ecinco anos , tinha cabelo escuro e estava dispendiosa e magni icamentemaquilhada.

– Lamento, mas Miss Crackenthorpe está de cama e não podereceberninguém.

– Sei que está doente, mas o assunto que aqui me traz é muitoimportante.

–Receioque...–começouLucy.Avisitante interrompeu-a:–CreioqueéMissEvelesbarrow,nãoé

verdade?–sorriu-lhe.–Meu ilhofalou-medesi.SouLadvStoddard-WesteAlexanderestáagoraemminhacasa.

– Ah! – E preciso na realidade falar com Miss Crackenthorpe –continuou a outra. – Sei tudo a respeitoda suadoenca e garanto-lhequenão se trata de uma visita social. E por causa de uma coisa que ospequenos me contaram... que o meu ilho me contou. Creio que é umassunto importante e gostaria de falar a seu respeito com MissCrackenthorpe. Quer fazer o favor de preveni-la da minha vinda? Lucy

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levouLadyStoddard-Westparaasaladevisitasedeclarou:–VouláacimaprevenirMissCrackenthorpe.

Depois de entrar no quarto de Emma anunciou: – Ladv Stoddard-Westestáláembaixo.Desejafalar-lheemparticular.

–LadyStoddard-West?–repetiuEmma,surpreendida.Espraiou-se-lhe no rosto uma expressão de alarme. – Terá acontecido alguma coisaaosmeninos... aAlexander? –Não, não – tranquilizouLucy. – Estou certade que osmeninos estão bem. Parece que se trata de uma coisa que osmeninoslhecontaram.

– Ah, bem... – Emma hesitou. – Talvez deva recebê-la. Acha queestoubem,Lucy?–Estámuitobem–garantiuLucy.–PossoirbuscarLadyStoddard-West?–Poissim.

Pouco depois, Lady Stoddard-West aproximava-se da cama deEmmaCrackenthorpe,demãoestendida.

–MissCrackenthorpe?Desculpevirincomodá-la.LadyStoddard-Westsentou-senumacadeira,próximodacama.Em

voz baixa e séria começou: – Deve achar a minha visita muito estranha,mas tenho uma razão a justi iaqui-la. E creio que se trata de uma razãoimportante.Ospequenoscontaram-meumascoisas.Compreende-seasuaexcitaçãoporocrimeterocorridoaquieconfessoqueessa ideiatambémnãomeagradou, na altura. Fiquei tãonervosaquequis vir buscar Jamesimediatamente,masmeumarido riu-sedemimedisse ser óbvioo crimenada ter vendo com a casa ou com a família. Alémdisso, pelo que Jamesescrevia nas cartas, ele e Alexander divertiam-se tanto que teria sidocrueldadevirbusaqui-lo.

“Tenho,porém,dedizer-lheoqueelesmecontaram.Disseram-mequeapolícia achavaque essamulher... a que foi assassinada... fosseumamoça francesa que seu irmãomais velho,morto na guerra, conheceu naFrança. É verdade? – Somos forçados a considerar essa possibilidade –respondeuEmma.

– Há alguma razão para acreditar que o cadáver fosse o dessamoça,dessaMartine?

–Comojálhedisse,éumapossibilidade.–Masporque...porquehaviamdepensarqueeraMartine?Tinha

algumascartasentreosseus...papéis?–Não,nadadisso.MaseureceberaumacartadessaMartine.

–Recebeuumacarta...deMartine?–Sim.Umacartaadizer-mequeestava em Inglaterra e gostaria de visitar-me. Convidei-a a aqui vir, masrecebiumtelegramadelaaanunciaroseuregressoaFrança.Talveztenha

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regressado, talvez não. Ignoramo-lo.Mas,mais tarde, foi encontrado aquiumenvelopeque lhe era endereçado, oqueparece indicarque ela tinhavindoparaaqui.Mas,defato,nãocompreendo...

LadyStoddard-Westatalhoucomvivacidade:–Nãocompreendeemquequeissomedizrespeito?Muitonatural.Noseulugar,eutambémnãocompreenderia. Mas, quando soube disso... tive de vir certi icar-meporque...

–Porquê?–Tenhoquedizer uma coisa quenunca tencionaradizer. Eu sou

MartineDubois. Emma olhou estupefacta para a visitante, como se custasse a

entenderoqueouvira.–Asenhora!–exclamou.–AsenhoraéMartine?Aoutracon irmou

meneandoenergicamenteacabeca. – Sou, sim. Compreendo que isto a surpreenda,mas é a verdade.

Conheciseu irmãono iníciodaguerra.Estavaaboletadoemnossacasa.Oresto já sabe, nos apaixonamos, pretendíamos nos casar, mas depoisocorreu a queda de Dunquerque e Edmund foi dado como morto. Maistarde, sua morte foi anunciada o icialmente. Não quero lhe falar dessetempo. Foi há muitos anos e tudo passou. Mas digo que amei muito seuirmão.“Depoissobrevieramasamargasrealidadesdaguerra.Osalemãesocuparam a França. Trabalhei na Resistência. Competia-me ajudar osinglesesa atravessaremaFrançae irempara Inglaterra.Foidessemodoque conheci meu atual marido. Era o icial da Força Aérea, lançado deparaquedas na França, incumbido de realizar uma missão especial.Quando a guerra acabou, nos casamos. Hesitei uma ou duas vezes emescrever-lhesouvirvisitá-la,masresolvinãoofazer.Nãoserviriadenadaavivar recordações tristes.Tenho uma vida nova e não desejo recordar aantiga.

–Fezumapausa,edepoisprosseguiu:–Maspodeacreditarquemedeuumestranhoprazersaberqueomaioramigodemeu ilhonocolégioerasobrinhodeEdmund.AchoAlexandermuitoparecidocomEdmund.

Inclinou-separaafrenteepousouamãonobraçodeEmma. – Mas com certeza compreende, minha boa Emma, que, ao ouvir

essa história do crime de uma mulher chamada Martine e que Edmundconhecera, me senti no dever de vir procurá-la e contar-lhe a verdade.Umadenóstemdeinformaràpolíciaoqueacabodedizer.

–CustoaacreditarquesejaaMartinedequemeuirmãomefalounascartas–suspirouEmma.Abanouacabeçaedepoisfranziuosobrolho,

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perplexa. – Nesse caso, quem me escreveu? Você? Lady Stoddard-Westsacudiuvigorosamenteacabeça.

–Não,não,claroquenão.–Nessecaso...–Emmacalou-se. – Nesse caso, alguém que se dizia Martine queria extorquir-lhe

dinheiro. É o que deve ter sido. Mas quem?, Emma perguntou, comlentidão: – Haviamais alguém a par deste assunto? A outra encolheu osombros.

–Éprovável,masnãohavianenhumapessoaíntimaecomquemeudesabafasse.Alémdisso,desdequeestounaInglaterra,nãofaleinocasoaninguém.Eporqueesperartodoestetempo?Écurioso,muitocurioso.

– Não compreendo. Veremos o que o inspetor Craddock pensadisso. – De súbito, olhou com afeto para a visitante. – Estou tão contenteportê-lafinalmenteconhecido...

– E eu também... Edmund falava muitas vezes de você. Vivo feliz,masnãooesqueco.

Emmasoltouumprofundosuspiro. – E um alívio enorme – confessou. – Enquanto julgávamos que a

mortapudesse serMartine... pareciaque a família tinhaqualquer coisa aver com o crime. Mas agora... oh, é um autêntico peso que me saiu dascostas.Nãoseiquemessainfelizera,masnadatemaverconosco!

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XXIII

Asecretáriaaerodinâmica levouaHaroldCrackenthorpeahabitualxícaradechá.

–Obrigado,MissEllis.Hojevoumaiscedoparacasa.–Achoqueaindanãodevia tervindo,Mr.Crackenthorpe–opinou

MissEllis.–Temumaspetomuitoabatido. – Sinto-me bem – declarou Harold Crackenthorpe. Na realidade,

sentia-se abatido. Não havia dúvida de que vivera ummau bocado, masfelizmente,essemaubocadojápassara.

AchavaextraordinárioqueAlfredhouvessesucumbidoeomesmonão tivesseacontecidoaovelho.No fmde contas, este já tinha... setentaetrêsanos...ousetentaequatroanos?Háanosqueestavadoente.Sehaviaalguém que devesse morrer, esse alguém era o velho. Mas não. ForaAlfred, um homem novo e saudável. Recostou-se na cadeira, suspirando.Aquelamoça tinha razão.Aindanão estava capazde ir ao escritório,masquiservendocomocorriamosnegócios.

Todo o ambiente à sua volta indicava prosperidade; os móveis deboamadeira polida, as poltronasmodernas e caras, tudo en im. Por ora,ainda não corriam rumores acerca da sua situação inanceira. Apesardisso,nãopoderiaevitarodesastrepormuito tempo. Se, aomenos,opaitivesse morrido em lugar de Alfred, como devia ter sido... Praticamente,parecia dar-se bem com o arsênico! Sim, se seu pai tivesse sucumbido...bem, nesse caso, não haveria razão para preocupacões. Mas fora Alfredquemmorrera!Nuncagostaramuitodesseirmãoeagoraqueestavaforado caminho, o dinheiro que ele,Harold, herdaria do velho avarento seriasensivelmenteaumentado,poisseriadivididoapenasporquatro ilhosemvez de cinco. Era muito melhor. O rosto de Harold animou-se um pouco.Levantou-se, pegou no chapéu e no sobretudo e saiu do escritório. Eramelhor repousar ainda umdia ou dois. O carro o esperava lá embaixo e,

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poucodepois,circulavapelasruasdeLondres,acaminhodecasa.Darwin,ocriado,abriu-lheaportaeanunciou:–Asenhorajáchegou.

Haroldolhou-o,ummomento,semcompreender.Alice! Esquecera-se por completo de que a mulher devia chegar

nessedia.Felizmente,Darwinoprevenira,porque,casocontrário,aovê-la,sua expressão atônita o trairia. No im de contas, isso também poucaimportância teria. Nem ele nem Alice acalentavammuitas ilusões acercados sentimentos que nutriam um pelo outro. Talvez Alice gostasse dele...nãoosabia.

Vendo bem as coisas, Alice fora uma grande desilusão. Não seapaixonara por ela, claro, mas, embora fosse uma mulher simples, erasimpática, além de que sua fàmília possuía relações que lhe tinham sidoindubitavelmenteúteis.Nãotantocomopodiamtersido,setivessem ilhos.Estes teriam óptimas relações. Mas não os tinham e apenas existiam osdois,eleeAlice,envelhecendo juntos, semmuitoquedizerumaooutroesemqualquerprazernacompanhiamútua.

Amulherpassavagrandepartedotempocomafamíliae,chegadooinverno,partia,emgeral,paraaRiviera.

Foiencontrá-lanasalaecumprimentou-acerimoniosamente. – Lamento muito não ter ido esperá-la, mas iquei retido na City.

Voltei o mais cedo que me foi possível. Que tal San Raphael? Alicerespondeu-lhequeSanRaphaelestavabem.

Era umamulhermagra, de cabelo louro, de nariz bem arqueado edeolhoscordeavelãevagos.Falavanumavozcansadaemonótona,comaentonação “bem”. Fizera uma bela viagem, embora o canal estivesseagitado.

EmDover,aalfândegafora,comodecostume,muitoaborrecida.–Deviatervindodeavião.Émuitomaissimples.–Concordo,masnãogostodevoar.Nuncagostei.Ficonervosa.–Maspoupa-semuitotempo–observouHarold. Ladv Alice Crackenthorpe não respondeu. Era possível que o seu

problemanavidanãofossepoupartempo,massimocupá-lo. Informou-sedelicadamentedasaúdedomarido.

–OtelegramadeEmmadeixou-memuitoalarmada.Estiveramtodosdoentes,nãoéverdade?

–Sim–confirmouHarold.–Nooutrodia, lino jornalanotíciadeumcasodeenvenenamento

de quarenta pessoas num hotel. Estou certa que é dessas comidasguardadastantotempoemfrigorífcos.

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–Talvez–admitiuHarold. Hesitava em mencionar a palavra arsênico. Mas, quando olhava

paraamulher,sentia-seincapazdeofazer.AchavaquenomundodeAlice,um envenenamento por arsênico não era possível. Era apenas uma coisaque se lia nos jornais e não acontecia na própria família. Contudo,aconteceranafamíliaCrackenthorpe.

À mesa, a conversa manteve o mesmo caráter, delicado,cerimonioso. Alice falou de pessoas conhecidas que encontrara em SanRaphael.

– Há uma encomenda para você sobre amesa do saguão – disseAlice.

–Sim?Nãoreparei. –Ouvidizerqueumamulher tinha sidoassassinadae encontrada

num celeiro, em Rutherford Hall. Suponho que se trate de outroRutherfordHall.

–Não,éomesmo.Naverdade,énossoceleiro.–Sério,Harold?UmamulherassassinadanoceleirodeRutherford

Hall...enuncamedissenadaaesserespeito.–Bem,emprimeirolugar,issoaindafoihápoucotempo–justificou-

se Harold – e, em segundo, trata-se de um caso muito desagradável. Eevidentequenadatemvendoconosco.Fomosobrigadosachamarapolíciaetudoomais.

–Quedesagradável!Descobriramocriminoso?–Aindanão.–Quegênerodemulherera?–Ninguémsabe.Aoqueparece,era

francesa. – Ah, francesa – repetiu Alice, num tom de voz parecido ao do

inspetorBacon.–Devetersidomuitoaborrecidoparatodos.Depoisdo jantar,Harold foibuscaraencomendadequeamulher

lhe falara. Era um embrulho pequeno, bem feito e lacrado. Abriu-oenquantosedirigiaparaasuacadeirajuntoàlareiradoescritório.

Dentro do embrulho estava uma caixinha de comprimidos com orótuloseguinte:“Tomardois,ànoite,aodeitar.”Acompanhava-oumbilhetedofarmacêuticodeBrackhamptoncomaspalavras:“Enviado,apedidodoDr. Quimper. “ Harold Crackenthorpe franziu o sobrolho. Abriu a caixa eolhou para os comprimidos. Sim, pareciam iguais aos que tomara, masestava certo de que Quimper lhe recomendara que não tomasse mais.“Parecomeles,agora”,dissera-lheQuimper.

–Quesepassa?Parecepreocupado.

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–Nãoénada...sãounscomprimidos.Tenho-ostomadoànoite,masestavaconvencidodequeomédicomedisseraquenãotomassemais.

Amulher retorquiu complacidez: – Provavelmente, disse quenãoseesquecessedetomá-los.

–Épossível–admitiuHarold,duvidoso.Olhouparaamulher.Estaobservava-o.Queestariaelapensando?

Aquele seu olhar sereno nada lhe dizia. Eram uns olhos que seassemelhavam às janelas duma casa vazia. Que pensaria Alice a seurespeito?Oquesentiriaporele?Algumavezoamara?Haroldachavaquesim. Ou teria casado com ele na esperança de viver bem e por estarcansada da sua existência pobre? Pois conseguira o que queria. Tinhacarro, uma casa em Londres, ia para o estrangeiro quando queria,comprava vestidos caros, embora nela nunca izessem grande vista. Sim,conseguiraoquequeria.

Alice continuava a observá-lo. Aqueles seus olhos pálidos epensativoscausavam-lhemal-estar.

–Voumedeitar.FoihojeomeuprimeirodianaCitydesdequemerecompus.

– Sim, achoque éumaboa ideia. Estou certadequeomédico lherecomendouprudência.

–Osmédicosrecomendamsempre. – E não se esqueça dos comprimidos, querido, lembrou Alice,

pegandonacaixaedando-aaomarido. Despediram-se e Harold foi para cima. Sim, precisava dos

comprimidos. Teria sidoumerropô-los departe tão cedo.Meteudois nabocaeengoliu-oscomumcopodeágua.

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XXIV

–Ninguémpodia ter feitopior iguradoqueaminha– lastimou-seDermotCraddock,tristemente.

Estava sentado, com as compridas pernas estendidas, na saleta,atravançada demóveis, da dedicada Florence. A sua expressão denotavaprofundocansacoedesânimo.

MissMarpleprocurouanimá-lo:–Não,nãodigaumacoisadessas.Vocêfezoqueerapossível.Fezdefatoumbomtrabalho.

–Achaque izumbomtrabalho?Permitiqueafamíliainteirafosseenvenenada,queAlfredCrackenthorpemorresseequeacontecesseagoraomesmoaHarold.Quediabosucederáaseguir? Issoéoqueeugostariadesaber.

–Comprimidosenvenenados–proferiuMissMarple,pensativa. – Sim, o assassino foi de fato de uma subtileza diabólica.

Assemelhavam-se exatamente aos comprimidos que ele tinha andado atomar. Havia um papel junto à caixa que dizia: “Enviado a pedido do Dr.Quimper." Ora Quimper não encomendou esses comprimidos e ofarmacêuticotão-poucosabesejaoqueforaesserespeito.Não.EssacaixadecomprimidosveiodeRutherfordHall.

– Tem a certeza de que veio de Rutherford Hall? – Sim. Jáprocedemosaum inquérito.Comefeito, trata-sedacaixaquecontinhaoscomprimidossedativosreceitadosparaEmma.

–Ah,percebo.ParaEmma...–Sim.Temassuasimpressõesdigitais,asdeambasasenfermeiras

easdofarmacêuticoqueaviouareceita.ApessoaqueenviouessacaixaaHaroldfoicuidadosa.

–Eoscomprimidossedativostinhamsidosubstituídosporoutros?–Sim.Eesseomaldoscomprimidos.Assemelham-semuitounsaosoutros.

–Temtodaarazào–concordouMissMarple.

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– De que eram os comprimidos? – De acónito. E o gênero decomprimidos venenosos que se dissolvem em água para aplicaçõesexteriores–explicouCraddock.

– E, por conseguinte, Harold tomou-os e morreu – concluiu MissMarple,pensativamente.

– Mas nem por isso deixo de me ter portado como um imbecildurante todo este caso. O chefe da polícia daqui apelou para a ScotlandYard e que ganhou ele com isso? Fiz um autêntico papel de asno! – Nãodigaisso–procurouamenizarMissMarple.

– Digo, sim. Ignoro quem envenenou Alfred, ignoro quemenvenenouHarold e, para cúmulo, não faço amínima ideiada identidadeda mulher assassinada! Este caso de Martine parecia-me estar quaseresolvido, eque aconteceu?AverdadeiraMartine aparece e émulherdeSirRobertStoddard-West.

“Por conseguinte, quem era a mulher encontrada no celeiro? Emprimeiro lugar, convenco-me de que é Anna Stravinski, e depois veri icoqueonãoé...

Calou-seaoouvirotossicarsignificativodeMissMarple.–Temacertezadequenãoé?Craddockfitou-a.–Ora,essepostaldaJamaica... – Pois sim – admitiu Miss Marple -, mas isso não constitui uma

verdadeiraprova,poisnão?Não sei se compreendeoquequerodizer–acrescentou,olhandosignificativamenteparaDermotCraddock.

–Sim,decerto–replicouCraddock,fitando-a.–Claro estáque teríamosprocurado con irmar a veracidadedesse

postal,seocasodeMartinenãoparecessetãogenuíno.–Tãocómodo–corrigiuMissMarple,baixinho.–Maspareciaconsistente–feznotarCraddock.– No im de contas, a carta que Emma recebeu vinha assinada

MartineCrackenthorpe. Lady Stoddard-West não a enviou,mas alguémofez. Alguém que pretendia passar por Martine para tentar extorquirdinheiro.

Nãopodenegarisso.–Poisnão.–HáaindaoenvelopequeEmmalheenderecouparaLondres.Foi

encontradoemRutherfordHall,oqueprovaqueelaesteverealmenteali.–Masamulherassassinadanãoestevelá–acentuouMissMarple. – Pelo menos, não no sentido a que se refere. Ela só veio a

RutherfordHall,depoisdeestarmorta.Foiempurradaparaforadotrem,

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quandoestecontornavaaravina. – Sim, é verdade. Mas o envelope prova, na realidade, que o

assassino estava lá. É de presumir que lhe tenha tirado esse envelopejuntamente com os outros papéis e coisas que ela levava e deixou-o cairporengano...ou...perguntoagoraamimmesmaseteriasidoporengano.Oinspetor Bacon e os seus homens revistaram cuidadosamente toda apropriedade,nãoéverdade?Enãoencontraramesseenvelope.

Estesóapareceumaistarde,nacasadacaldeira.–Issoécompreensível–disseCraddock.Ojardineirotemocostume

deapanhartodosospapéisqueencontraedelevá-losparaali.–Masestavanumsítioondeospequenospodiamencontrá-lo,com

facilidade–observouMissMarple,pensativa. – Acha que o assassino esperava que encontrássemos esse

envelope? – Não sei bem. No im de contas, seria fácil calcular os sítiosonde os pequenos andariam à procura ou até sugerir-lhos... Isto fê-loesquecer-se de Anna Stravinski, não é verdade? – Acha que seja ela? –Acho que alguém icou alarmado ao saber que você começara a fazerinquéritos a seu respeito, nada mais... Acho que esses inquéritoscontrariavamalguém.

–ConsideremosocasobásicodealguémquererpassarporMartine– propôs Craddock. – Esse alguém, por qualquer razão... desistiu desseintento.

Porquê?–Aíestáoquesechamaumaperguntamuitointeressante–apreciouMissMarple.

–AlguémexpediuumtelegramaaanunciaroregressodeMartineaFrança,depoisarranjoumaneiradefazeraviagemparaaquicomamoçae matou-a, durante o caminho. Até aqui, concorda? – Não exatamente –respondeuMissMarple.

–Nãomeparecequeestejaasimplificarocaso.–Asimpli iaqui-lo!–exclamouCraddock.Asenhorameconfunde–

queixou-se.MissMarpleafiançou,numavoztriste,nãoseressaasuaintenção. – Ora, diga-me – pediu Craddock --, acha ou não acha que sabe

queméamulherassassinada?MissMarplesuspirou:–Édi ícildizer. Istoé, não sei quem ela era, mas ao mesmo tempo tenho quase certeza dequemelaera.Nãoseisecompreendeoquequerodizer.

Craddockergueuacabeçaereplicou:–Secompreendooquequerdizer?Nãofaçoamínimaideia.–Olhoupelajanelaeanunciou:–Aívemasua amiga Lucy Eyelesbarrow. Vou embora. Esta tarde, o meu amour

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propreestámuitosensíveleverentrarumamoçaradiantedee iciênciaesucessoésuperioràsminhasforças.

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XXV

–Consulteiapalavratontinanodicionário–declarouLucy.–Jácalculava–redarguiuMissMarple. Lucy recitou lentamente: – “Lorenzo Tonti, banqueiro italiano,

criador, emmil seiscentos e cinquenta e três, de umgênerode anuidadepela qual a parte dos subscritores que morrem é acrescentada à dossobreviventes”–fezumapausaeperguntou.–Éisso,nãoéverdade?Istose ajusta perfeitamente ao caso e era no que a senhora pensava, aindaantesdeestasduasmortesteremocorrido.

Começouaandardemaneiraagitadadeum ladoparaoutro.MissMarpleobservavaumaLucymuitodiferentedaquelaqueconhecera.

–Suponhoqueacausadetudoestánessetestamento–disseLucy.–Umtestamentodessanatureza,estabelecendoque,nocasodesóhaverumsobrevivente,esteherdariatodaafortuna.E,contudo,trata-sedeumafortuna tão grande que o que dela caberia a cada um seriamais do quesuficiente...

–Omalestánavoracidadedaspessoas– sentenciouMissMarple,que se apressou a corrigir: – De algumas pessoas. Muitas vezes é assimque tudo começa. Não se começa por assassinar, nem por quererassassinar, nem por pensar em fazê-lo. Começa-se a ser voraz, a querermais do que se conta receber. – Pousou o tricô sobre os joelhos e olhoupara o espaco à sua frente. – Foi assim que eu conheci o inspetorCraddock.Umcasonocampo,pertodeMcDenhamSpa.

Principiou da mesma maneira, um caráter fraco e amável quequeriaumagrandequantidadededinheiro.Parecia tudotãosimples,quenão podia haver mal nenhum. É assim que as coisas começam... Masterminoucomtrêsassassinatos.

–Talcomoestecaso–comentouLucy.–Jáforamassassinadastrêspessoas.Restamduas,nãoéverdade?–QuerdizerqueháapenasCedrice

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Emma?–Emmanão,poisnãoéumhomemaltoemoreno.Não.Re iro-meaCedriceaBryanEastley.Nunca tinhapensadoemBryanporqueé louro.Tembigodelouroeolhosazuis,mas,sabe...nooutrodia...–calou-se.

– Continue – incitou Miss Marple. – Houve alguma coisa que adeixou impressionada,nãoé verdade? –Foi quandoLadyStoddard-Westiaembora.

Tinha-se jádespedidoe,quando iaaentrarnocarro,virou-separamimeperguntou: “Quemeraaquelehomemaltoemorenoqueestavanoterraco, quando entrei?” A princípio, não percebi a quem se referia,porqueCedricaindaestavadeitado.Porconseguinte,perguntei,umpoucointrigada: “Refere-se a Bryan Eastley?” E ela respondeu: “Exatamente,pertencia aoEsquadrãoLeaderEastley. Esteve escondidononosso sótão,na França, durante a Resistência. Recordo bem de sua igura, dos seusombros.Gostariadevoltaravê-lo.Masnãoconseguimosencontrá-lo.”MissMarplepermaneceucalada,àesperaqueLucycontinuasseafalar.

– E depois – prosseguiu esta – olhei para ele... Estava de pé, decostasparamim,evioquejáantesdeviatervisto.Quemesmoquandoumhomem é louro, seu cabelo parece castanho por causa dos cremes. OcabelodeBryanédeumlouro-acastanhadomaspodeparecernitidamentecastanho.

Porisso,podiatersidoBryanohomemquesuaamigaviunotrem.–Sim,játinhamelembradodisso–confessouMissMarple.–Lembradetudo!–observouLucy,amargurada.–Assimépreciso,minhafilha.–MasnãovejooqueBryanganhariacomisso.OdinheirocaberiaaAlexanderenãoaele.Calculoqueavidaselhe

tornassemaisfácil,masnãopoderiatocarnocapital. – Mas, se algo acontecesse a Alexander antes de ter vinte e um

anos,Bryanreceberiaodinheiro,naqualidadedepai.Lucylançou-lheumolharhorrorizado.–Nãoseriacapazdisso.Nenhumpaioseria...apenasparareceberodinheiro.MissMarplesuspirou.–Engana-se.Eumfatomuitotristeeterrível,maséumarealidade.

As pessoas são capazes de coisas terríveis. Conheco casos muitolamentáveis que bem o atestam. Mas – acrescentou meigamente: – Nãodeve icar chateada, não deve se preocupar. Elspeth McGillicuddy nãotardaráachegar.

–Nãovejooqueissotenhacomocaso.

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– Pois não, talvez não, minha ilha. Mas eu acho que isso éimportante.

– Não posso deixar de estar chateada – confessou Lucy. – Tenhointeresseporessafamília.

– Para você tudo isto émuito penoso porque se sente fortementeatraídaporelesdois, emborademodosdiferentes,nãoéverdade?–Quequerdizer?–perguntouLucy,comvivacidade.

– Referia-me aos dois ilhos de Mr Luther Crackenthorpe –exclamouMissMarple.–Ouantes,ao ilhoeaogenro.Épenaqueosdoismembrosmenosagradáveisdafamíliatenhammorridoequeosdoismaissimpáticos tenham icado.NãoachoCedricCrackenthorpemuitoatraente.Gostadesemostrarpiordoqueéeháneleumanotaprovocadora.

–Àsvezes,desespera-me–confessouLucy.–Sim,masvocêgostadele,nãoéverdade?Vocêéumamoçacheia

devidaeapreciaocombate.Sim,compreendoonderesideessaatracção.Eooutro,MrEastleyé

otipotriste,pareceumgarotoinfeliz.Eevidentequeissotambématrai. –Eumdeleséumassassino–disseLucy, comamargura. –Tanto

pode ser um como outro. Na realidade, nada há que faça parecer ummelhordoqueooutro.Cedricnão ligouamínimaimportânciaàmortedeAlfredoudeHarold.Estámuitobemrecostadoemalmofadas,aplanejaroque há-de fazer com Rutherford Hall. Claro está que já percebi que é ogênero de pessoa que exagera a sua insensibilidade. Isso pode ser umadefesa,mastambémpodenãooser.

–MinhapobreLucy,comolamentoisto. – E Bryan – continuou a jovem -, embora pareça extraordinário,

mostrou desejar viver aqui. Diz que ele e Alexander levariam aqui umaboavidaeestácheiodeplanos.

– Está sempre com planos, não está? – Sim. Todos eles parecemmaravilhosos, mas tenho a impressão de que nunca resultarão. Querodizer,pornãoserempráticos.A ideiapareceboa...masnãocreioqueelechegueaconsiderarasdificuldadesqueterádevencer.

– São ideias feitas no ar, não é isso? – Sim, sob mais do que umaspeto, todas elas são ideiasno ar.Talvezumpilotode guerra realmentebomnuncaconsigaregressarporcompletoàterra...

–Compreendo,sim,compreendo...Depois,comumsúbitoolhardesoslaioparaLucy,perguntou:–Mas

nãoéapenasisso,poisnão,minhafilha?Hámaisalgumacoisa. – Sim,hámais algumacoisa.Umacoisadeque sóhádoisdiasme

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apercebi:Bryanpodiaterviajadonessetrem.–Nodasquatroetrintaetrês,dePaddington?–Sim.Emmaachou

que teria de fazer um relato dos seus movimentos no dia vinte deDezembroe,porconseguinte,procurourecordá-loscuidadosamente.

De manhã, esteve numa reunião; à tarde, foi fazer compras elançhounorestauranteGreenShamrock.

Depois,disseela,foiesperarBryanàestação.Foiesperá-lonotremquepartiudePaddingtonàsquatroecinquenta,maselepodiaterchegadonotremanteriore ingidotervindonaquele.Contou-me,emconversa,queoseucarrotinhatidoumaavariaeomandaraparaagaragemequeporessarazãoviajarade trem...emboradetestasse fazê-lo.Pareceu-lhemuitonatural... mas preferia que não tivesse vindo de trem. Bem sei que issonadaprova.Sãotudosuspeitas,suspeitashorríveis.Nadasabemosetalveznuncaosaibamos.

–Certamentequeacabaremosporsabê-lo–assegurouMissMarplevivamente. – A polícia está a fazer o possível... e, o que é ainda maisimportante,ElspethMcGillicuddynãotardaráachegar!

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XXVI

– Elspeth, compreendeste bem o que pretendo que faças? –Perfeitamente – assegurouMrs.McGillicuddy –mas não posso deixar dedizer-te,Jane,quemeparecemuitoestranho.

–Nãotemnadadeestranho–contrariouMissMarple. – Pois eu acho que sim. Chegar a uma casa e pedir, quase

imediatamente,parair...hum...láacima.–Estáum tempomuito frio– feznotarMissMarple–e,no imde

contas, podias ter comido alguma coisa que não te assentasse bem noestômagoe...precisaresdeirláemcima.Sãocoisasqueacontecem.

Recordo-me da pobre Louisa Felby que foi uma vez visitar-me e,duranteameiahoraquedurouavisita,pediu-mecincovezesparairláemcima.

–Se,aomenos,mequisessesdizerqualéatuaideia.–EprecisamenteissooqueeunãoquerofazerdisseMissMarple. – Es muito irritante, Jane. Em primeiro lugar, obrigas-me a

regressaraInglaterra,antesdeserpreciso...–Desculpa,masnãopodiafazeroutracoisa.Deummomentoparao

outro,podeseralguémassassinado.Bemseiqueestãotodosprevenidoseque a polícia tomou todas as precauções possíveis, mas há sempre apossibilidade de o assassino chegar para eles todos, em inteligência. Porconseguinte, Elspeth, era teu dever regressares. Seja como for, tanto tucomoeufomosensinadasacumprironossodever,nãoéverdade?–Claroquesim;nosnossostempos,nãohaviarelaxamentos.

– Por conseguinte, estamos entendidas – concluiu Miss Marple eacrescentou:–Otáxiacabadechegar.

–Quemserá? –perguntouEmma, espreitandopela janela. –CreioqueéatiadeLucy.

–Quemaçada–queixou-seCedric.¦Estavaestendidonumacadeira

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derepousoalerumCountryLife.–Diz-lhequenãoestásemcasa. – Queres que seja eu a dizer-lhe ou que encarregue Lucy de o

fazer?–Nãometinhalembradodisso–admitiuCedric. Nesse momento, Mrs. Hart abriu a porta e Miss Marple entrou,

muitoroliça,envoltanumaquantidadedexaileselencos,eseguidadeumafiguraaltaeforte.

–Espero–disse“'IissMarple,estendendoamãoaEmma-,quenãosejamos intrusas. Mas, sabe, volto para casa depois de amanhã, e nãoqueria deixar de vir despedir-me de todos e agradecer-lhes a bondadecom que têm tratado Lucy. Ah, já me esquecia. Dá-me licenca que lheapresenteMrs.McGillicuddyqueveiofazer-mecompanhia?–Muitoprazer– disse Mrs. IVIcGillicuddy, olhando com muita atenção para Emma edesviandodepoisoolharparaCedric,quesepuseradepé.

Lucyentrounessemomento.–TiaJane,nãosabiaque...–Vimdespedir-medeMissCrackenthorpe,que temsido tãogentil

paracomvocê,minhafilha–declarouMissMarple,virando-separaLucy.–Lucyéquetemsidogentilparanós–disseEmma.–Éverdade–con irmouCedric.–Temsidoumamouradetrabalho

atratardosdoentes,acozinhardietas,aandarsemparançaescadaabaixoeescadaacima...

–Custou-metantosaberqueestavamdoentes.Esperoqueestejaagoracompletamentebem,MissCrackenthorpe.–Oh,sim.Agorajámesintoperfeitamentebem–afiancouEmma. – Lucy disse-me que a senhora tinha estado mui to mal. Há

alimentos que são muito perigosos, não é verdade? Re iro-me aoscogumelos.

–AcausadanossadoencapermaneceaindabastanteMriosa.–Nãoacreditenisso–atalhouCedric.–Apostoque jáouviuoque

sedizporaí,Miss...hum...–Marple–acudiuesta.–Comodigo,comcertezajáouviuosboatosquecorremporaí.Não

hánadacomooarsênico,paracriaragitaçãonavizinhança.–Cedric– interveioEmma-,bemsabesoqueo inspetorCraddock

disse.–Ora, todaagenteosabe.Assenhorastambém,nãoéverdade?–

perguntou,dirigindo-seaMissMarpleeaMrs.McGillicuddy.–Euchegueidoestrangeiroanteontem–declarouaúltima.

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–Ah,nessecaso,nãoestáapardoescândaloexplicouCedric.–Foiarsêniconocurry.ApostoqueatiadeLucyjáosabia.

–Bem,apenasouviqualquercoisa... – confessouMissMarple -, foiapenas uma insinuação, mas claro está que não queria incomodá-la demodoalgum,MissCrackenthorpe.

–Nãodevefazercasodoquemeuirmãodiz.Gosta de assustar as pessoas – explicou Emma, lancando ao irmão

umsorrisoafetuoso. A porta abriu-se eMr. Crackenthorpe entrou batendo iradamente

comabengalanochão:–Ondeestáochá?–perguntou.–Porquenãoestápronto?Ei,garota!–dirigiu-seaLucy:Porquenãotrouxeaindaochá?

–Jáestápronto,MrCrackenthorpe.Voujábusaqui-lo.Estavaapôramesa.

Lucy voltou a sair da sala eMr. Crackenthorpe foi apresentado aMissMarpleeaMrs.McGillicuddy.

– Gosto das refeições a horas certas – justi icou-se Mr.Crackenthorpe.–Pontualidadeeeconomiasãoomeulema.

– Ambas são muito necessárias – concordou Miss Marple –, emespecialüostemposdehoje,emqueosimpostossãotãoelevados.

–Impostos!–resmungouMr.Crackenthorpe.–Nãomefaledessesladrões. Um homem pobre... é o que sou. E isto vai piorar. Espera, meurapaz,continuou,dirigindo-seaCedric–,quequandoreceberesestacasaos socialistas hãode extorquirmil por centodela e levar os rendimentostodos.

Lucy voltou com a bandeja de chá, seguida de Bryan Eastley, quetransportava outra com sanduíches, pão com manteiga e um bolo comcobertura.

– Que é isto? Que é isto? – admirou-se Mr. Crackenthorpe,inspecionando a bandeja. – Bolo coberto?Hoje temos festa?Ninguémmetinhaprevenido.

UmleverubortingiuorostodeEmma.–ODr.Quimpervemtomarchá,pai.Fazaniversáriohojee...–Fazaniversário?Eparaqueprecisade festa?As festassãopara

as crianças. Eu nunca conto os anos que faço e não permito que oscelebrem.

– Saimuitomais barato – comentou Cedric. Poupa o dinheiro dasvelasdobolo.

–Cala-te–rugiuMr.Crackenthorpe.MissMarpleapertavaamãodeBryanEastley.

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– Lucy tem me falado do senhor. Lembra uma pessoa muitoconhecidadeSaintMaryMead.Éaaldeiaondevivohámuitosanos.RonnieWells, ilhode advogado.Quando começoua trabalhar comopai, parecianáo se adaptar. Partiu para a África Oriental e iniciou uma carreira embarcosdecarganaregiãodosLagos.Mas,coitado,aquilofoiumfracassoeperdeu todo o capital! Foi uma grande infelicidade. Espero que não sejaparenteseu.Asemelhançaétãogrande!

– Não, não acho que tenha parentes chamados Wells – declarouBryan.

– Estava noivo de uma moça muito simpática – prosseguiu MissMarple. – Muito sensata, também. Procurava dissuadi-lo, mas ele nãoqueriaouvi-la.Fezmal.Sabe,asmulherestêmmuitosensoquandosetratade assuntos de dinheiro. Não de altas inanças, claro. Nenhuma mulherpode esperar compreender isso, como dizia meu querido pai. Quepanoramamaravilhososedesfrutadestajanela,acrescentou,olhandoparafora.

Emmajuntou-seaela.–Que terrenoenorme!Achomuitopitorescaavistadogadoentre

asárvores.Umapessoaseesquecedequeestánomeiodeumacidade.–Creioquesomosumanacronismo–admitiuEmma.–Seasjanelas

estivessemabertas,poderíamosouviroruídodistantedotráfego. – Oh, certamente, hoje em dia há barulho em toda parte. Até em

SaintMaryMead. Ficamos agoramuito perto de um campo de aviação e,sabe, o barulho que esses aviões a jato fazem é de fato assustador! Nooutrodia,doisvidrosdaminhaestufasepartiram.Parecequeessesaviõesultrapassam a barreira do som embora eu não saiba o que isso queiradizer.

–Émuitosimples–disseBryan,aproximando-secomamabilidade.– É assim... Miss Marple deixou cair a bolsa e Bryan apanhou-adelicadamente. No mesmo instante, Mrs. McGillicuddy aproximou-se deEmma, e murmurou-lhe ao ouvido em voz angustiada: – Posso ir lá emcima?

–Certamente–respondeuEmma.–Euaacompanho–ofereceu-seLucy.LucyeMrs.McGillicuddysaíramjuntasdasala. – Sobre a barreira do som... – disse Bryan, retomando o io da

conversa–éassim...Oh,alivemQuimper. O médico chegou em seu carro. Entrou, esfregando as mãos e

aparentandosentirfrio.

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–Vainevar–profetizou.–Verãoquenãomeengano.Viva,Emma,comoestá?Valha-meDeus,queéisto?

– Fizemosumbolode aniversário – explicou. – Lembrade ter ditoquehojefaziaaniversário?

–Masnãoesperava isto –disseQuimper. Sabe, já lá se vãomuitosanos...ora,deixever...sim,jálásevãounsdezesseisanosqueninguémselembradomeudia.–Pareciamuitocomovido.

–ConheceMissMarple?–perguntouEmma.–Conhece,sim–disseela.–Jáotinhaencontradoe,umdiadestes,

emqueeuestavamuitogripada,mevisitouefoimuitosimpático.–Agorasente-sebem,nãoéverdade?–perguntouomédico.MissMarpleafiançou-lhequesesentiaemesplêndidasaúde. – Ultimamente não tem vindo me ver, Quimper – queixou-se Mr.

Crackenthorpe.–Seprecisassedeseuscuidados,játeriamorrido.–Nãopareceque,porora,estejamorrendo,disseoDr.Quimper. – Nem tenciono fazê-lo – redarguiu Mr. Crackenthorpe. – Vamos

tomarchá.Porqueesperamos?–Oh,façaofavor–instouMissMarple.–Nãoesperempelaminha

amiga.Ficariaaflitíssimaseofizessem.Sentaram-seecomeçaramalanchar.MissMarpleaceitouumafatia

depãocommanteigaedepoispegouumsanduíche.–Sãode?...–hesitou.–Depeixe–informouEmma.–Ajudeiafazer.Mr.Crackenthorpesoltouumagargalhadaedisse:–Pastadepeixe

envenenada.Éoqueé...Sequiseremcomer,issoécomvocês.–Oh,pai,porfavor!–Nesta casa temos de ter cuidado com o que comemos – explicou

Mr. Crackenthorpe a Miss Marple. – Dois dos meus ilhos foramassassinados comomoscas. Quem é o culpado? Não sei, mas gostaria desabr.

– Não se assuste – interveio Cedric, estendendo uma vez mais opratoaMissMarple.–Umpoucodearsênicoatéfazbemàpele.

–Comeuma,meurapaz–incitouMr.Crackenthorpe. – Quer que eu seja o provador o icial? – perguntou Cedric. – Pois

aquivai.Pegouumsanduícheemeteuinteironaboca.Miss Marple soltou uma gargalhadinha e tirou um sanduíche.

Mordeu um bocadinho e elogiou: – São muito corajosos por fazerembrincadeira comuma coisa destas. Sim, acho de fato que é precisomuita

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coragem.Admirotantoacoragem!Soltouumaarfadaepareceusufocar.–Tenhoumaespinha–articulou–nagarganta.

Quimper levantou-se lentamente. Aproximou-se de Miss Marple,levou-aparaa janelaemandou-aabriraboca.Depois tirouumestojodobolsodocasacoeretirouumfórcepspequenino.Comdestrezapro issionalexaminouagargantadaidosasenhora.Nessemomento,aportaseabriueMrs.McGillicuddyentrou, seguidadeLucy.Aprimeirasoltouumgrito,aoobservar a cena à sua frente: Miss Marple inclinada para trás e o Dr.Quimpersegurando-lheagarganta.

–Maséele!–gritouMrs.McGillicuddy.–Eohomemdotrem... Com incrível rapidez,MissMarple soltou-sedasmãosdomédicoe

aproximou-sedaamiga.–Calculavaqueoreconheceria,Elspeth!Não,nãodiganada.–Miss

Marple virou-se triunfantemente para oDr. Quimper. –Não sabia, não é,doutor,queumapessoaoviuestrangularaquelamulhernotrem?Foiestaminha amiga, Mrs. McGillicuddy. Ela o viu. Compreendeu? Viu com seusprópriosolhos.Viajavanumtremquecorriaparaleloaoseu.

– Que diabo está dizendo? – perguntou o Dr. Quimper,aproximando-serapidamentedeMrs.McGillicuddy.

Porém, denovo com incrível rapidez,MissMarple colocou-se entreosdois.

– Sim – repetiu Miss Marple. – Ela o viu e o reconheceu e estápronta a jurá-lo em tribunal. Creio, prosseguiu Miss Marple – queraramenteumcrimeépresenciadoporterceiros.Emgeral,háumaprovacircunstancial,mas,nestecaso,ascondiçõeserammuitoinvulgares.Houvedefatoumatestemunhaoculardocrime.

–Suavelhademoníaca!–gritouoDr.Quimper.Precipitou-se para Miss Marple, mas, desta vez, foi Cedric que o

agarroupelosombros. – Então o senhor é o assassino? – proferiu Cedric, obrigando-o a

voltar-se.–Nuncagosteidosenhoresempreoacheiumpatife,masnuncasuspeiteidequefosseassassino!

BryanEastleyveiorapidamenteemsocorrodeCedric.OsinspetoresCraddockeBaconentraramnasala.

–Dr.Quimper–disseoúltimo–,devopreveni-lodeque... – Quero lá saber das suas prevenções – berrou o Dr. Quimper. –

Achaquealguémacreditaránapalavradeduasvelhastontas?Inventaramtoda essa história do trem!MissMarple declarou: – ElspethMcGillicuddyparticipouimediatamenteoassassinatoàpolícia,nodiavintededezembro,

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efezumadescriçãodohomem. O Dr. Quimper encolheu os ombros e perguntou: – Mas por que

haveria eu de querer assassinar uma mulher completamentedesconhecida?

–Nãoeraumadesconhecida–contrariouoinspetorCraddock.–Erasuamulher.

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XXVII

–Comovê,talcomoeususpeitara,tudofoimuitosimples–declarouMiss Marple. – Parece que há muitos homens que matam as própriasmulheres.

Mrs. McGillicuddy olhou para Miss Marple e para o inspetorCraddock.

– Gostaria que me pusessem um pouco mais a par do queaconteceu.

– Quimper entreviu a possibilidade de se casar com umamulherrica:EmmaCrackenthorpe–explicouMissMarple.–Masnãopodiafazê-loporjásercasado.Estavaseparadodamulherhámuitosanos,maselanãoqueria conceder-lhe o divórcio. Isso condizia muito bem com o que oinspetor Craddock me contara dessa moça que dizia chamar-se AnnaStravinski.Ela contoua amigasqueera casada comum inglês e, segundoasamigas,eraumacatólicadevota.Dr.Quimpernãopodiasearriscaraumcaso de bigamia casando com Emma e, por conseguinte, desapiedada efriamenteplanejouoassassinatodamulher.

A ideiadematá-la ede, emseguida,botaro corpono sarcófago foide fato brilhante. Era seu intuito relacionar esse corpo à famíliaCrackenthorpe.Antesdisso, escreveraumacartaaEmma ingindoserdeMartine,arespeitodaqualEdmundescreveraàirmã,dizendoseramoçade quem estava noivo. Emma contara tudo isso ao Dr. Quimper. Depois,quando se apresentou o momento oportuno, ele encorajou-a a falar àpolícia.Queriaqueamortafosseidenti icadacomoMartine.Achoquedeveter sabido que a polícia procedia a um inquérito em Paris, acerca deStravinski e, por conseguinte, arranjou aquele postal enviado da Jamaica,dando-acomoremetente.

“Foi fácil para ele encontrar a mulher em Londres, dizer quedesejavaumareconciliaçãoeapresentá-laàfamília.Nãofalaremosdoquea seguir aconteceu, porque é muito desagradável. Quimper era, sem

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dúvida alguma, um homem ávido. Quando se lembrou dos impostos e dequantoteriadepagarsobreosrendimentos,começoupensandoqueseriaagradável possuir mais capital. Talvez já tivesse pensado nisso antes dedecidirmataramulher.Sejacomofor,paraprepararoterreno,começouaespalhar boatos de que alguém tentava envenenar Mr Crackenthorpe edepois acabou por ministrar arsênico a toda a família. Não em doseelevada,claro,poisnãoqueriaqueovelhoCrackenthorpemorresse.

–Masaindanãocompreendocomoconseguiufazerisso–declarouCraddock.–Elenãoestavaláquandoprepararamocurry.

–Masnessaalturaocurrynãotinhaarsênico,notouMissMarple.–Sóoministroumais tarde,quando levouo curryparaanálise.Eprovávelque já tivesse lançado algum no jarro do refresco. Depois foimuito fácil,como médico, envenenar Alfred Crackenthorpe e também enviar oscomprimidos a Harold, tendo se salvaguardado dizendo a ele que nãoprecisava tomar mais. Todo seu procedimento foi audacioso, cruel eegoísta,elamento,narealidade,quetenhamabolidoapenacapital,porqueacho que, se há alguém que devesse ser enforcado, esse alguém é o Dr.Quimper.Ocorreu-me – continuouMissMarple – que, ainda que vejamosuma pessoa de costas, essa visão é característica. Pensei que, se ElspethvisseoDr.Quimperexatamentenamesmaposiçãoemqueviraohomemdo trem, isto é, de costas para ela e inclinado sobre umamulher a quemsegurasse pelo pescoço, decerto o reconheceria ou soltaria umaexclamação.FoiporessarazãoquetraceimeuplanocomaajudadeLucy.

–Devodizerqueessa cename impressionouvivamente– admitiuMrs. McGillicuddy. – Disse “É ele” sem poder me conter. E, no entanto,nuncaviseurostoe...

– Tive um medo terrível de que acrescentasses isso, Elspeth –confessouMissMarple.

–Éclaroquediriaquenãoviorostodele.–Issoteriasidofatal,porque,vocêsabe,eleachouquerealmenteo

tivessesvisto.Querdizer,elenãopodiasaberquenãotinhas.–Nessecaso,foibomterficadocalada–concluiuMrs.McGillicuddv.–Eunãoteriapermitidoquedissessesumapalavramais.Craddocksoltouumagargalhada. – Estas duas senhoras são maravilhosas. E depois, Miss Marple?

Qual é o feliz desfecho? O que aconteceu, por exemplo, a EmmaCrackenthorpe?

– Esquecerá o Dr. Quimper – profetizouMissMarple. – E, se o paimorrer em breve... não me parece que seja tão robusto como diz... é

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possível que ela faça um cruzeiro ou ande pelo estrangeiro, comoGeraldineWebb,eaconteçaqualquercoisaromântica.EsperoquesejaumhomemmelhorqueoDr.Quimper.

–ELucyEyelesbarrow?Tambémhaverárepicardesinos?–Talvez–respondeuMissMarple.–Nãomeadmiraria.–Qualdelesescolheu?–perguntouDermotCraddock.–Nãosabe?–Não,nãosei.Easenhora?–Achoquesim–respondeuMissMarple,piscandooolho.

FIM