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14 — Revista do TRF – 1ª Região — fevereiro/2002 — Artigos doutrinários A Globalização da paz solidária Antônio Souza Prudente* Nesta virada do Século, os programas de “estabilização econômica” e de “ajuste estrutu- ral” impostos pelo FMI e pelo Banco Mundial aos países em desenvolvimento, como condição para a renegociação da dívida externa, têm levado mi- lhões de pessoas ao empobrecimento e à extre- ma miséria, a exemplo do quadro falimentar de nossos irmãos argentinos, postos a receber em doses letais a extrema-unção diabólica do Fundo Monetário Internacional, qual “genocídio econômico” levado a cabo pela deliberada manipula- ção das forças de mercado. O Brasil está mergulhado, in- felizmente, nesse contexto histó- rico, tragicamente comandado pelo capitalismo colonialista, aé- tico e global, sem adversário es- tratégico, totalmente indiferente aos valores humanos e sociais. É lamentável ver-se um País como este, de dimensão continental, com imen- sas riquezas e belezas naturais, inteiramente ex- posto à cupidez alienígena e poluído de milhões de miseráveis de todas as idades, sem saúde, sem teto, sem terra, sem pão e educação e sem nada, com índices alarmantes e sempre mais crescen- tes de violências e criminalidades, ante a postu- ra discurseira e omissiva de nossos governan- tes, sem pronta solução. Ora, o Brasil não é “isso”, como já dizia o grande Rui, no início do século passado. “O Bra- sil, senhores, sois Vós. O Brasil é esta assem- bléia. O Brasil é este comício imenso de almas livres. Não são os comensais do Erário. Não são as ratazanas do Tesouro. Não são os mercadores do Parlamento. Não são as san- guessugas da riqueza pública. Não são os falsificadores de elei- ções. Não são os compradores de jornais. Não são os corrup- tores do sistema republicano. Não são os oligarcas estaduais. Não são os ministros da tarra- xa. Não são os presidentes de palha. Não são os publicistas de aluguel. Não são os estadistas de impostura. Não são os diplo- matas de marca estrangeira. São as células ativas da vida nacional. É a multidão que não adula, não teme, não corre, não recua, não deserta, não se vende. Não é a massa in- consciente, que oscila da servidão à desordem, mas a coesão orgânica das unidades pensantes, o oceano das consciências, a mole das vagas humanas, onde a Providência acumula reservas * Juiz do TRF – 1ª Região, Mestre em Direito Público, Doutorando em Direito pela UFPE e Professor Decano da Universidade Católica de Brasília. ...o sentimento patriótico não é incompatível com o fenômeno da globalização solidária, a única capaz de salvar a humanidade da tragédia apocalíptica, a que nos leva o egoísmo dos mercados financeiros internacionais... Revista do Tribunal Regional Federal 1ª Região, Brasília, v. 14, n. 2, p. 14-17, fev. 2002.

AGlobalização da paz solidária · Não são os falsificadores de elei- ... dos mercados financeiros ... la sublime, ensinando-os a se amarem uns aos outros:

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14 — Revista do TRF – 1ª Região — fevereiro/2002 — Artigos doutrinários

AGlobalização da paz solidária

Antônio Souza Prudente*

Nesta virada do Século, os programas de“estabilização econômica” e de “ajuste estrutu-ral” impostos pelo FMI e pelo Banco Mundial aospaíses em desenvolvimento, como condição paraa renegociação da dívida externa, têm levado mi-lhões de pessoas ao empobrecimento e à extre-ma miséria, a exemplo do quadro falimentar denossos irmãos argentinos, postos a receber emdoses letais a extrema-unção diabólica do FundoMonetário Internacional, qual“genocídio econômico” levado acabo pela deliberada manipula-ção das forças de mercado.

O Brasil está mergulhado, in-felizmente, nesse contexto histó-rico, tragicamente comandadopelo capitalismo colonialista, aé-tico e global, sem adversário es-tratégico, totalmente indiferenteaos valores humanos e sociais.

É lamentável ver-se um Paíscomo este, de dimensão continental, com imen-sas riquezas e belezas naturais, inteiramente ex-posto à cupidez alienígena e poluído de milhõesde miseráveis de todas as idades, sem saúde, semteto, sem terra, sem pão e educação e sem nada,com índices alarmantes e sempre mais crescen-tes de violências e criminalidades, ante a postu-

ra discurseira e omissiva de nossos governan-tes, sem pronta solução.

Ora, o Brasil não é “isso”, como já dizia ogrande Rui, no início do século passado. “O Bra-sil, senhores, sois Vós. O Brasil é esta assem-bléia. O Brasil é este comício imenso de almaslivres. Não são os comensais do Erário. Não sãoas ratazanas do Tesouro. Não são os mercadores

do Parlamento. Não são as san-guessugas da riqueza pública.Não são os falsificadores de elei-ções. Não são os compradoresde jornais. Não são os corrup-tores do sistema republicano.Não são os oligarcas estaduais.Não são os ministros da tarra-xa. Não são os presidentes depalha. Não são os publicistas dealuguel. Não são os estadistasde impostura. Não são os diplo-matas de marca estrangeira. São

as células ativas da vida nacional. É a multidãoque não adula, não teme, não corre, não recua,não deserta, não se vende. Não é a massa in-consciente, que oscila da servidão à desordem,mas a coesão orgânica das unidades pensantes,o oceano das consciências, a mole das vagashumanas, onde a Providência acumula reservas

* Juiz do TRF – 1ª Região, Mestre em Direito Público, Doutorando em Direito pela UFPE e Professor Decano da Universidade Católica de Brasília.

...o sentimento patrióticonão é incompatível com ofenômeno da globalizaçãosolidária, a única capazde salvar a humanidadeda tragédia apocalíptica,a que nos leva o egoísmodos mercados financeiros

internacionais...

Revista do Tribunal Regional Federal 1ª Região, Brasília, v. 14, n. 2, p. 14-17, fev. 2002.

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inesgotáveis de calor, de força e de luz para arenovação das nossas energias. É o povo, numdesses movimentos seus, em que se descobretoda a sua majestade.”1

Ante a experiência agressiva e fracassada daglobalização econômica, no processo históricoem que vivemos ou tentamos sobreviver, frenteàs manifestações terroristas de esquerda e dedireita, fundamentalistas ou não, em todo o pla-neta, nunca será demais relembrar o patriotismotão necessário aos dias de hoje, e, ainda, tão bemdefinido pela cultura universal do jurista baiano,nestas letras:

Não vos iludais com essas falsificaçõesabominandas. O sentimento que divide,inimiza, retalia, destrói, amaldiçoa, perse-gue, não será jamais o da pátria. A pátria éa família amplificada. E a família, divina-mente constituída, tem por elementos or-gânicos a honra, a disciplina, a fidelidade,a benquerença, o sacrifício. É uma harmo-nia instintiva de vontades, uma desestu-dada permuta de abnegações, um tecidovivente de almas entrelaçadas. Multiplicaia célula, e tendes o organismo. Multiplicaia família, e tereis a pátria. Sempre o mes-mo plasma, a mesma substância nervosa,a mesma circulação sangüínea. Os homensnão inventaram, antes adulteraram a fra-ternidade, de que Cristo lhes dera a fórmu-la sublime, ensinando-os a se amarem unsaos outros: Diliges proximum tuum sicutte ipsum.

Dilatai a fraternidade cristã, e chegareisdas afeições individuais às solidariedadescoletivas, da família à nação, da nação àhumanidade. Objetar-me-eis com a guer-

ra? Eu vos respondo com o arbitramento.O porvir é assaz vasto, para comportar essagrande esperança. Ainda entre as nações,independentes, soberanas, o dever dos de-veres está em respeitar nas outras os di-reitos da nossa. Aplicai-o agora dentro nasraias desta: é o mesmo resultado: benquei-ramo-nos uns aos outros, como nos que-remos a nós mesmos.2

Como se vê, o sentimento patriótico não éincompatível com o fenômeno da globalizaçãosolidária, a única capaz de salvar a humanidadeda tragédia apocalíptica, a que nos leva o egoís-mo dos mercados financeiros internacionais,como, assim, já o reconhece Klaus Schwab, Pre-sidente do Fórum Econômico Mundial, que seiniciara, em 31 de janeiro deste ano, em NovaYork, onde os 106 países participantes estão adiscutir, com a presença ativa de organizaçõesnão-governamentais de todo o mundo, sob o temaLiderança em Tempos Frágeis – Uma Visão para oFuturo Comum, questões relevantes à constru-ção da paz mundial, tais como, a restauração docrescimento sustentado, segurança e vulnerabi-lidade, redefinição dos desafios empresariais, re-dução da pobreza e a busca da igualdade, com-partilhando valores e respeitando as diferenças

1 Oliveira, Rui Caetano Barbosa de (Rui Barbosa) Campanhas Presidenciais - Vol. IV – Editora Iracema Ltda. – SP – p. 222.2 Oliveira, Rui Caetano Barbosa de (Rui Barbosa) Textos Escolhidos – Editora AGIR – Rio de Janeiro – 1962, p. 48.

... somente a instalação de umaordem jurídica justa poderá

conduzir o ser humano a cumprirsua vocação natural de construtor

da vida, no processo deglobalização da paz.

Revista do Tribunal Regional Federal 1ª Região, Brasília, v. 14, n. 2, p. 14-17, fev. 2002.

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e, ainda, a reavaliação da liderança e o conceitode governança, pois, na acertada observação deMauro Santayana, “ao se tornar virtualmente glo-bal, o mundo começou a tornar-se realmente glo-bal: se a riqueza não foi distribuída aos pobres, aviolência e a angústia provocada pelo medo co-meçaram a ser distribuídas aos ricos”3.

Em outro extremo continental, realiza-se,também, em Porto Alegre (RS), o III Fórum SocialMundial, em que se busca um outro mundo pos-sível, com a participação de, aproximadamente,50 (cinqüenta) mil pessoas e o apoio da Organi-zação das Nações Unidas (ONU), visando a dis-cutir temas fundamentais, como o desenvolvimen-to sustentável – alternativas para conciliar o cres-cimento econômico e o respeito ao meio ambi-ente; a participação popular – experiências comoo orçamento participativo que aumentou o poderda comunidade de participar ativamente das de-cisões dos governos municipais, estaduais e na-cionais; a economia solidária – novas formas dedistribuir renda e gerar emprego; direitos dasminorias – como assegurar a mulheres, negros,homossexuais, povos indígenas e a outras mi-norias direitos plenos; acesso à terra – como avan-çar a reforma agrária e garantir a sobrevivênciaeconômica dos pequenos agricultores, incluin-do-se o combate aos alimentos transgênicos (ge-neticamente modificados); a taxa Tobin – – – – – a apli-cação de uma espécie de CPMF (o popularmenteconhecido imposto do cheque) sobre toda a mo-vimentação financeira internacional, cuja receitaarrecadada seria destinada ao combate à pobre-za universal; o perdão da dívida – os países mais

pobres, especialmente da África e da AméricaLatina, teriam suas dívidas externas perdoadasem troca de investimentos maciços na elimina-ção da miséria planetária; o protocolo de Kyoto –a assinatura imediata do acordo que prevê a re-dução da emissão de gases causadores do efeitoestufa, posto que os Estados Unidos, maiores po-luidores da atmosfera, recusaram-se a ratificaresse protocolo; e o fim dos paraísos fiscais, comvistas a diminuir o sigilo bancário, em paísesconsiderados paraísos fiscais, para facilitar asinvestigações de crimes de corrupção e forma-ção de quadrilhas nacionais e internacionais.

A discussão desses temas importantes, emfóruns mundiais, visa à construção da paz uni-versal, pois todos os seres vivos precisamos depaz. E a paz, como adverte a encíclica papal Gau-dium et Spes, “ não é a mera ausência de guerra,nem se reduz ao simples equilíbrio de forças en-tre os adversários, nem é o resultado de opres-são violenta: antes é, adequada e propriamente,definida “obra da justiça” (Is 32, 7). É fruto daordem que o seu Fundador divino inseriu na so-ciedade humana. Deve ser realizada, em perfei-ção progressiva, pelos homens que têm sede dejustiça. Pois, embora o bem comum do gênerohumano seja moderado em seus princípios fun-damentais pela lei eterna, em suas exigênciasconcretas, fica sujeito a contínuas mudanças, nodecorrer dos tempos: a paz nunca é conquistadade uma vez para sempre; deve ser continuamen-te construída”4.

De ver-se, pois, que, somente a instalação

3 Santayana, Mauro “Dois Mundos” – Caderno Opinião – Correio Braziliense – Edição de 30 de janeiro de 2002, p . 5 – Brasília – DF.4 Kloppenburg, Frei Boa Ventura – O.F.M. “Compêndio do Vaticano II – constituições, decretos e declarações”, 3ª Ed. Vozes, RJ – 1968, p. 158.

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de uma ordem jurídica justa poderá conduzir oser humano a cumprir sua vocação natural deconstrutor da vida, no processo de globalizaçãoda Paz.

Nesse contexto, o Juiz do Terceiro Milêniotem papel relevante na edificação da paz, no meiosocial, e, por isso está autorizado pela consciên-cia da cidadania plena e pela ordem jurídica justaa decidir, com total independência, em juízo su-mário, com base na verossimilhança das alega-ções e probabilidades da vontade da lei, já nãomais aceitando a condição passiva de locutorimpotente e amordaçado pela norma legal, comoassim o quis Montesquieu, no passado, e assimo quer, no presente, os condutores da globaliza-ção econômica e do capitalismo financeiro, nomercado internacional.

Estamos vivendo, hoje, assim, na plenitudedo poder geral de cautela do juiz, que de há mui-to rompera as mordaças da doutrina liberal, paragarantir o retorno do cidadão, neste novo sécu-

lo, capaz de reedificar o mundo pela consciênciados homens, no exercício da comunhão de sen-timentos e da solidariedade, que se ilumina nainteligência criativa e serviente à aventura da vida,no processo de construção de uma democraciaplenamente participativa.

Ainda nesse último Encontro Mundial Ecu-mênico de oração pela paz, realizado em Assis(Itália), no dia 24 do mês corrente, o Papa JoãoPaulo II conclama os Jovens do Terceiro Milê-nio a serem sentinelas da paz, rumo ao futuroque amanhece, animados pelo espírito de Fran-cisco de Assis, que é o Espírito Santo, garanti-dor da paz duradoura e universal, pois, na vi-são ecumênica do Sumo Pontífice, a oração pelapaz não se traduz num ato de isolamento his-tórico entre os homens, mas no enfrentamen-to contínuo dos problemas, com a ajuda per-manente das forças do alto, das forças do bem,que nos revelam a presença constante de Deusentre nós.

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Revista do Tribunal Regional Federal 1ª Região, Brasília, v. 14, n. 2, p. 14-17, fev. 2002.