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Reportagem "Agora vale tudo" de Luísa Dal Mas, produzida para a cadeira de Produção em Revista da Famecos/PUCRS
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Agora Vale Tudo
Em 1983, Tim Maia e Sandra de Sá cantaram que valia tudo, menos
dançar homem com homem e mulher com mulher. Passados 32 anos, a
história é outra. As premissas tradicionais da dança de salão, em que o
homem conduz a mulher, dão lugar para um novo movimento que visa
quebrar os padrões heteronormativos. A dança de salão queer chega pela
primeira vez na cena Porto Alegre propondo a troca de papéis no momento
da dança, permitindo que todos dancem com todos e concedendo a liberdade
de condução para qualquer um.
O termo queer, gíria proveniente do inglês, significa estranho, esquisito
ou excêntrico. Ele surgiu como um termo pejorativo usado para designar
membros da comunidade LGBT, mas, atualmente, é adotado por pessoas
que não seguem as convenções tradicionais de gênero, em que o homem e a
mulher têm papéis pré-definidos e devem seguir um certo padrão de
comportamento, representa aqueles que se encontram fora do binário do
gênero.
No universo da dança de salão, a ideia do queer foi apresentada pela
primeira vez em 2005, pela professora e pesquisadora argentina Mariana
Docampo. Em um artigo publicado, ela ressalta que nesse contexto, a
palavra queer é utilizado como um termo guarda-chuva. Nessa proposta, a
orientação sexual do dançarino não é um fator determinante, pois a
apropriação do termo queer apenas representa aquilo que foge do padrão,
exaltando a diversidade. A ideia é representar a multiplicidade de papéis
dentro da dança, e não necessariamente a diversidade sexual.
Essa proposta foi inserida pela professora diretamente na prática do
tango, estilo que surgiu em Buenos Aires no início do século 19, sendo
considerado na época uma dança marginal, cultivada nos subúrbios e portos
pelas classes mais baixas. A conotação sexual e erótica da dança sempre
esteve presente, entretanto, ao contrário da imagem do homem viril e da
mulher seduzida que há hoje, o tango era originalmente dançado entre
homens, na maioria das vezes imigrantes que viviam próximo ao porto.
Mariana Docampo buscou resgatar a essência do ritmo, que não prevê
papeis definidos por gênero. No manifesto do grupo Tango Queer criado pela
professora, Docampo declara que ali “o normal é o diferente”.
A prática vem se popularizando e, desde 2006, acontece anualmente o
Festival Internacional de Tango Queer em Buenos Aires, em que professores,
músicos, bailarinos e alunos participam de workshops e bailes conhecidos
como milongas. Além da Argentina, já existem turmas em diversos países,
como Alemanha, Dinamarca, Estados Unidos e Inglaterra.
Acompanhando a expansão desse movimento, a professora Paola
Vasconcelos decidiu trazer o conceito queer para a capital gaúcha,
introduzindo a primeira turma de dança de salão queer da cidade. O grupo
trabalha não apenas o tango, mas também ritmos brasileiros como samba e
forró, além de salsa, merengue e bolero. “A ideia surgiu da minha crença de
que todo mundo pode dançar. Quando fiz meu trabalho de conclusão no
curso de Licenciatura em Dança da UFRGS, resolvi problematizar essa
noção de condução que é um estigma da dança de salão, em que o homem
conduz a mulher”, explica Paola.
Enquanto aprendem os passos e os estilos de cada ritmo, os alunos
são estimulados a realizar um diálogo através da dança, onde os papéis
possam ser trocados a qualquer momento. Essa dinâmica independe de
quem está dançando, sejam dois homens, duas mulheres, ou mesmo uma
mulher que lidera e um homem que a acompanha.
Diferente da formalidade encontrada em estúdios de dança
tradicionais, a aula de Paola é leve e descontraída. Jogos corporais criam
intimidade entre os alunos e deixam o corpo mais a vontade. A salsa é o
primeiro ritmo a ser trabalhado, para aquecer. As alunas Juliana Niehues e
Sandra Nogueira começam tímidas, mas a batida da música solta os corpos
e o gingado natural aparece, fazendo a dinâmica entre as duas mulheres
parecer até mais fluida do que entre os casais tradicionais.
A pergunta “quem propõe agora?” é recorrente durante a aula. Paola
precisou repensar e desconstruir o método de ensino usualmente aplicado
em estúdios de dança. “Sempre uso o termo proponente em vez de condutor.
Uma pessoa propõe algo, e a outra pessoa aceita ou não aquele movimento,
e a partir daí surge uma conversa”, explica.
Para a professora, a dança de salão queer é importante para quebrar
a noção de que o tradicional papel da mulher de ser conduzida é algo inferior
ou menos desafiador. “Vivemos em uma realidade tão acelerada que parar e
esperar que o outro faça uma proposta de movimento é mais difícil, tu te
tornas vulnerável. Tu disponibilizas teu corpo, que carrega toda tua história,
tua experiência corporal, para que outra pessoa te proponha algo”, conta, “A
ideia é prestar atenção no corpo do outro.”
Juliana já fazia aulas em outras escolas e acabou se interessando pela
proposta queer. “Achei legal a questão de não ter barreiras. Conduzir ainda é
um desafio pra mim, mas tem horas que dá vontade de levar a pessoa pela
dança”, compartilha. O primeiro momento de timidez e estranhamento ocorre
com todos os alunos, mas, com o estímulo da professora, as trocas de pares
fluem, e a descontração domina o espaço.
A longo prazo, Paola pretende cultivar a noção da dança de salão
queer na cidade, para que deixe de ser apenas uma oficina e transforme-se
em um movimento cultural. Todo mês são realizados dentro da escola os
Bailinhos Queer, eventos abertos ao público em que todos dançam com
todos, ao som de diversos ritmos. Os estudantes Francisco Rezende e Pedro
Andrade participaram da primeira edição do evento sem saber muito o que
esperar e se surpreenderam com a ideia. “Ela quebra essa predeterminação
da mulher no papel passivo, a iniciativa é genial”, exalta Francisco. No
quadro negro que fica na entrada da escola, Pedro escreve: “O queer é o
novo preto”.
No Brasil o movimento ainda é pequeno e através dessas atividades
Paola pretende disseminar a proposta queer entre a comunidade de dança
local. “Ainda existe um preconceito na fala dos professores de dança de
salão em relação aos papéis do homem e da mulher, talvez não porque a
pessoa pensa dessa maneira, mas porque esse discurso se repete e não é
questionado”, reflete. O questionamento e a quebra das regras predefinidas
são a base do movimento queer, colocando todos como iguais em relação à
dança.