AGOSTINHO E A JUSTIÇA

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DISSERTAÇÃO DE MESTRADO

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARAN SETOR DE CICNCIAS HUMANAS LETRAS E ARTES

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIA MESTRADO REA DE CONCENTRAO: HISTRIA DA FILOSOFIA MODERNA E

    CONTEMPORNEA

    DISSERTAO DE MESTRADO

    ARTICULAO ENTRE JUSTIA DIVINA, NATURAL E CIVIL EM AGOSTINHO

    WANDERLY ALVES DE SOUSA

    CURITIBA

    2008

  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARAN SETOR DE CICNCIAS HUMANAS LETRAS E ARTES

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIA MESTRADO REA DE CONCENTRAO: HISTRIA DA FILOSOFIA MODERNA E

    CONTEMPORNEA

    Wanderly Alves de Sousa

    ARTICULAO ENTRE JUSTIA DIVINA, NATURAL E CIVIL EM AGOSTINHO

    Dissertao apresentada como requisito parcial obteno do grau de Mestre do Curso de Mestrado em Filosofia do Setor de Cincias Humanas Letras e Artes da Universidade Federal do Paran.

    Orientador (a): Prof. Dr. Isabel Limongi

    Co-orientador: Prof. Dr Alfredo Carlos Storck

    CURITIBA

    2008

  • Ordo est parium dispariumque rerum sua cuique loca tribuens dispositio Agostinho, Cidade de Deus, livro XIX captulo XIII

  • AGRADECIMENTOS

    Gostaria de agradecer Capes pelo incentivo financeiro

    para desenvolver esta pesquisa. A minha excelente orientadora,

    Isabel Limongi, pela pacincia com que leu e releu os

    captulos dessa dissertao, incentivando-me ao exerccio da

    arte de se limitar a um ponto especfico e explor-lo

    exaustivamente com vistas a compreender o pensamento poltico

    de Agostinho, claro que se esta dissertao no cumpriu a

    contento o proposto foi devido s limitaes do autor. Ao

    PROCAD pela oportunidade de participar nos eventos da ps-

    graduao realizados no Rio de Janeiro no ano de 2007 e 2008,

    e por viabilizar minha permanncia na URGS por trs meses,

    freqentando ao curso de direito e justia na Idade Mdia ministrado pelo prof. Dr. Alfredo Storck. Agradeo

    especialmente ao professor Alfredo Storck (URGS) pela leitura

    dos primeiros captulos deste trabalho, propondo modificaes

    e correes no texto e por vislumbrar o tema do terceiro

    captulo. Aos professores da banca de qualificao, agradeo

    ao professor Paulo Viera Neto (nosso querido Paulinho) pelo

    incentivo, pelas suas preciosas observaes acerca dos

    desafios que o pensamento poltico de Agostinho prope. Ao

    professor Lucio pelas valiosas observaes acerca de pontos

    especficos na dissertao que mereceriam revises. Agradeo

    aos meus amigos marinho e Marisa pelas leituras iniciais dos

    textos de Agostinho e pela fora que me deram para elaborar um

    projeto de dissertao nesse autor. Agradeo a Aurea pela disposio que sempre me atendeu.

    A minha Camila esposa amada - pela longa pacincia e

  • compreenso, pela fora dada nos momentos difceis da vida

    acadmica, por ter suportado a minha ausncia durante os

    longos trs meses que passei no Rio Grande do Sul. Finalmente,

    agradeo famlia que prxima a mim ou distante sempre

    torceram pelo meu sucesso.

  • RESUMO

    O trabalho pretende apresentar que no dilogo com Ccero

    acerca da noo de justia, Agostinho pensou a poltica a partir da moral e, por conta disso, introduz no mbito do

    pensamento poltico transformaes significativas em relao

    ao fim da sociedade poltica.

    Palavras-chave: justia, lei e ordem.

    ABSTRACT

    Le texte montre que le dialogue avec Cicron sur le concept de

    la justice, Augustin pense la politique partir de la morale et, pour cela, y compris au sein de l'introduction de la

    pense politique des changements importants par rapport

    l'ordre de la socit politique.

    Mots-cls: justice, loi et ordre.

  • SUMRIO

    INTRODUO.........................................................................................................................8

    CAPTULO I: NOO DE JUSTIA DO PONTO DE VISTA DA F ..................................... 11

    1.1 A FUNO DA JUSTIA ...............................................................................................11

    1.2 A JUSTIA ENQUANTO ORDEM DO AMOR ...............................................................24

    1.3 O STATUS DA VIRTUDE CVICA.....................................................................................32

    1.4 A JUSTIA DA F COMO REGRA PARA AGIR............................................................42

    CAPTULO II: LEI, JUSTIA DIVINA E ILUMINAO...........................................................46

    2.1 ORDEM UNIVERSAL .......................................................................................................46

    2.2 LEI UNIVERSAL: LEX AETERNA....................................................................................48

    2.3 LEI NATURAL ...................................................................................................................52

    2.4 A LUZ DIVINA COMO CONDIO PARA O CONHECIMENTO DA LEI NATURAL..............................................................................................................................................57

    2.4.1 A alma racional humana receptora da iluminao divina ...............................61

    2.4.2 Presena do Mestre interior..................................................................................63

    2.4.3 verdades eternas e o intelecto humano .......................................................68

    2.5 JUSTIA COMO VERDADE INTERIOR ..........................................................................75

    CAPTULO III: JUSTIA: FUNDAMENTO DA LEI CIVIL E DA PAZ........................................81

    3.1 O EXERCCIO DA VIRTUDE EM BUSCA PAZ ................................................................81

    3.2 A NATUREZA SOCIAL DO HOMEM ..............................................................................88

    3.3 A LEI CIVIL: ORDENADORA DA SOCIEDADE POLTICA...........................................103

    3.3.1 O plano legal difere do plano moral ...................................................................104

    3.3.2 legalidade envolve moralidade...........................................................................111

    CONCLUSO .....................................................................................................................118

    REFERNCIA........................................................................................................................122

  • INTRODUO

    Agostinho, no ano 413 da era crist, escreve o livro II

    da Cidade de Deus e, entre outros temas, trata da corrupo

    dos costumes no interior da repblica romana. Desenvolve,

    nessa ocasio, a tese segundo a qual a grandeza da repblica

    romana (civitas terrena) estava diretamente vinculada vida

    moral de cada homem que a representava. No captulo XXI, do

    mesmo livro, nosso autor explicitamente concorda com Ccero

    que a virtude denominada justia (iustitia) no s necessria para combater os vcios morais, como tambm para

    conservar a estrutura da civitas. Pois na ausncia dessa

    virtude no h concrdia e sem concrdia no h civitas.

    Esta funda-se e define-se pela concrdia. E concrdia o mais

    suave e estreito vnculo de consistncia em toda repblica 1,

    necessria para alcanar a paz2 e a felicidade que so bens da

    cidade terrena.

    Agostinho v na idia de justia, assim como Ccero, a condio para conservar a concrdia no interior da vida

    social, por conseguinte, os bons costumes polticos e o bem-

    estar da vida moral. No obstante, nosso autor evoca uma noo

    de justia que, ao contrapor-se noo de justia da tradio grego-romana, leva-o seguinte afirmao: a repblica

    romana jamais foi repblica porque jamais conheceu a verdadeira justia (vera iustitia). Assim qualificada, essa justia s existe na repblica de que Cristo fundador e

    1 AGOSTINHO, Cidade de Deus, livro II, cap. XXI, p. 129. 2 A paz, nosso tema do terceiro captulo, no outra coisa seno a ordenada concrdia dos homens entre si. AGOSTINHO, Cidade de Deus, livro XIX, cap. XIII, p. 169.

  • 9

    governador 3, repblica que no deste mundo. Portanto,

    depreende-se disso que Agostinho pensa no conceito fundamental

    da civitas terrena a partir do conceito fundamental da

    civitas Dei, compreendendo que a justia da civitas terrena subordina-se justia da civitas Dei. Nessa relao de subordinao deriva a funo prpria da justia da civitas terrena, qual seja instrumento de purificao moral.

    No primeiro captulo dessa dissertao expor-se- como

    a justia distributiva natural perde importncia diante da justia prpria da civitas Dei, tornado-se apenas aparente. Com esse intuito, buscar-se- caracterizar o pensamento de

    Agostinho a respeito da justia a partir do dilogo travado com Ccero. Sabe-se que Ccero compreende a justia como a relao entre os homens de uma mesma sociedade poltica, nesse

    sentido a justia configura-se como a virtude, por excelncia, do ordenamento jurdico-poltico. Mas para Agostinho, antes de ser dessa ordem, a justia caracteriza-se como ordem do amor. Neste sentido, afirmar-se- que a noo de justia, em Agostinho, compreendida como instrumento de purificao

    moral. Indica-se aqui essa compreenso de justia foi possvel para Agostinho porque ele empreendeu o que pode ser comumente

    denominado de introspeco. Com efeito, a introspeco pode

    ser caracterizada como certo movimento da alma racional a

    partir do qual se pode compreender a ordem universal e derivar

    dela uma ordem prpria sociedade poltica. Com base nesse

    procedimento de Agostinho, afirma-se que a justia a virtude que ordena primeiramente o interior da alma racional e, por

    3 AGOSTINHO, Cidade de Deus, livro II, cap. XXI, p. 132.

  • 10

    conta disso, possibilita determinar qual seja o ordenamento justo conforme a lei eterna.

    Em funo disso, buscar-se- no segundo captulo,

    compreender a noo de ordem segundo Agostinho. Para o autor

    dA Cidade de Deus a ordem a disposio harmoniosa dos seres

    iguais e desiguais no lugar que lhes convm consoante a sua

    natureza. Ele entende que a ordem universal fundamenta-se na

    lei eterna que probe perturbar a ordem desejada por Deus. Compreende-se que essa lei anterior criao e nela a ordem

    universal tem o seu fundamento. Dessa ordem universal segue-se

    necessariamente a paz natural. Isso nos conduzir a vislumbrar

    que a ordem universal e paz guardam uma dupla relao: se h

    ordem segue-se a paz; se h a paz ela s pode ser oriunda da

    tranqilidade da ordem.

    Por conseguinte, no terceiro captulo, buscar-se-

    expor, de acordo com Agostinho, como a sociedade poltica

    (civitas terrena) est ordenada no interior dessa ordem

    universal. Ora, se a lei eterna estabelece a ordem de todas as

    coisas criadas, por qual meio a sociedade poltica ser

    ordenada? Dado que se trata agora da ordem da conduta humana,

    busca-se compreender como possvel ordenar uma sociedade

    cujo desejo concupiscente impe-se constantemente como ameaa a ordem? Bem antes, qual o instrumento necessrio para

    reconduzir os homens ordem? Ver-se- que para Agostinho o

    instrumento necessrio para ordenar a ao humana ser a

    instituio da sociedade civil, bem como a elaborao da lei

    civil a partir da lei natural. Disto afirmar-se- que a lei

    civil refletir no interior da sociedade dos homens a ordem de

    acordo com a lei natural.

  • 11

    CAPTULO I: NOO DE JUSTIA DO PONTO DE VISTA DA F

    Interessa-nos expor, nesse captulo, como a justia distributiva natural, tal como aparece em Ccero, perde

    importncia diante da justia prpria da civitas Dei, tornado-se apenas aparente.

    1.1 A FUNO DA JUSTIA

    Segundo Ccero, a repblica 4 est fundada sobre o

    direito (ius) 5. Ora, o que de direito justo. Logo, justo atribuir a cada qual aquilo que lhe por direito no interior

    da repblica. Mas se pelo vocbulo justia devemos entender a virtude pela qual se atribui a cada qual o que

    seu por direito, ento, pergunta Agostinho, que justia essa que no rende ao verdadeiro Deus aquilo que lhe devido? 6. bvio que colocado nestes termos est privado da justia aquele que se afasta de Deus.

    4 Repblica coisa do povo, considerando tal, no todos os homens de qualquer modo congregados, mas a reunio que tem seu fundamento no consentimento jurdico ( iuris consensus ) e na utilidade comum (communio utilitatis). CCERO. Da Repblica. liv I cap. XXV, p. 34 (grifo meu). 5 Diz Ccero no captulo XXXII Da Repblica: sendo a lei o lao de toda sociedade civil, e proclamando seu princpio a comum igualdade (o direito), pergunta-se: sobre que base assenta uma associao de cidados cujos direitos no so os mesmos para todos? Se no se admite a igualdade da fortuna; se a igualdade da inteligncia um mito, a igualdade dos direitos parece ao menos obrigatria entre os membros de uma mesma repblica. Que , pois, o Estado, seno uma sociedade para o direito?.... Ibid., p. 156. 6 AGOSTINHO, CD Liv XIX cap. XXI , 181.

  • 12

    Ao questionar o valor da justia tal como entendida pela tradio, no se pode deixar de afirmar que, para

    Agostinho, tal justia s pode ser falsa, viciada de ponta a ponta, uma desordem, um desregramento. Pois a razo no tem

    mais ttulo para se impor coragem e aos instintos sensuais,

    se, em primeiro lugar, a prpria razo no obedecer a Deus,

    assim como um soldado no deve mais obedecer a seu general se

    o general no obedecer ao chefe de Estado. Toda a hierarquia

    desmorona por falta de fundamento. Portanto, toda ordem

    jurdica pag est privada de justia. 7 Essa crtica dirigida instituio mundana inicia-se

    no livro II captulo XXI D A Cidade de Deus, tendo como pano

    de fundo a argumentao apologtica de Agostinho 8 contra a

    afirmao pag de que o cristianismo havia provocado o fim da

    virtude civil (ius civile), ocasionando a runa de Roma.

    Argumenta nosso filsofo que a runa da repblica foi

    conseqncia da perverso dos costumes dos antigos romanos e

    do culto s suas divindades, que se revelaram impotentes para

    prestar auxlio ao povo e refre-los dos encantos dos

    vcios.

    Eis a dois temas que correm paralelos no interior do

    livro I ao X dA Cidade de Deus. Um revela claramente a

    crtica de Agostinho impotncia espiritual do paganismo e

    evidencia que para os antigos romanos o destino poltico do

    Estado estava nas mos dos deuses, por isso a concepo de

    7 VILLEY, A formao do pensamento jurdico moderno. Traduo: Claudia Berliner. Ed.:Martins fontes So Paulo 2005, p. 88. 8 Sabemos que no calor do embate apologtico Agostinho busca demonstrar que repblica romana jamais foi repblica porque jamais conheceu a verdadeira justia (vera iustitia).

  • 13

    Estado era uma concepo estritamente religiosa 9. Outro

    responde categoricamente a objeo levantada pelos adversrios: runas, homicdios, pilhagem, desolao,

    incndio, horrores cometidos em Roma em 24 de Agosto de 410,

    na verdade, foram o desfecho de uma longa decadncia moral. Se

    Roma sofreu tais calamidades, isso deve-se corrupo dos

    costumes; porque bem antes que a cidade se tornasse em runa

    de madeira e pedras, a beleza moral dos romanos j havia desmoronado, posto que seus coraes ardiam em paixes mais

    funestas que as chamas que devoravam a cidade.10 Logo, a runa

    de Roma foi antes de tudo moral.

    No livro XIX, da mesma obra, escrito no ano de 426,

    Agostinho retoma, no captulo XXI, o debate iniciado no ano

    413 com Ccero e relaciona a civitas Dei com a res publica

    romana. Mas no contexto desse livro, o autor trata os temas

    apresentados do ponto de vista especulativo. Basta lembrar que

    nesse livro, especificamente no captulo XXIV, Agostinho

    abandona a definio ciceroniana segunda a qual O povo,

    (...) uma sociedade fundada sobre direitos reconhecidos e

    sobre a comunidade de interesses 11 e formula outra definio

    mais acessvel e mais adaptvel de povo, qual (...) povo o

    conjunto de seres racionais associados pela concorde comunidade de objetos amados... 12.

    9 RAMOS, Francisco M. T. in: A Idia de Estado na Doutrina tico-Poltica de Santo Agostinho, p. 127. 10 AGOSTINHO, CD, liv. II Cap II, p. 105.

    11 AGOSTINHO, Cidade de Deus. Editora das Amricas S.A. - Edameris. Livro

    XIX captulo. XXIV, p. 198 (grifo meu). Doravante: CD, liv cap e p. 12AGOSTINHO, ibid., p. 189. ... populus est coetus multitudinis rationalis rerum quas diligit concordi communione sociatus.

  • 14

    Essa reformulao da definio de povo permite

    pensar que mesmo ali onde no haja direito (ius) reconhecido por todos, haja, contudo, um povo, uma cidade dos homens. Pois nessa definio de Agostinho h uma

    variante essencial que, como bem observa Cotta 13,

    consiste na substituio do iuris consensus por diligit

    concordi. Com isto, Agostinho remove o iuris consensus

    entendido como regra de justia e coloca o amor como o vnculo que prende os homens em torno de objetos amados.

    Conseqentemente, o amor enquanto tal o fundamento da

    concrdia que possibilita um congregado de homens associarem-

    se e formar um povo. Basta, pois, to-somente considerar

    duas exigncias fundamentais pelas quais a multido dispersa

    possa ser considerada como um povo. A primeira, que sejam seres racionais, uma vez que a razo pode reconhecer seja por iluminao divina seja por operaes lgicas certa ordem nos objetos que se deve amar. A segunda exigncia, por conseguinte, o diligit concordi, o elemento constitutivo na formao do

    povo e sem a qual no h res pblica.

    Essa postura de Agostinho em relao ao conceito

    ciceroniano de povo revela que nosso autor tem ainda em foco o

    problema da justia. Forando um pouco mais o argumento iniciado no livro II, ele insere no debate esta questo:

    13 COTTA, Sergio, INTRODUZIONE POLITICA, p. CXLV in: La Citta Di Dio.

    Testo Latino DellEdizione Maurina Confrontato con Il Corpus Chistianorum. Introduzione: A. Trap, R. Russell, S. Cotta. Traduzione Domenico Gentili

  • 15

    ... ser que quem tira a propriedade de quem a comprou e a d a quem no tem direito a ela injusto e justo quem se furta ao Deus dominador e criador e serve os espritos malignos? 14.

    Depreende-se disso que Agostinho, sob a influncia de

    Ccero, compreende que a justia concerne harmonia social15, isto , a justa repartio dos bens entre os cidados 16.

    De modo que, se os romanos foram qualificados como

    injustos foi porque na sua conduta no reconheceram as regras do direito (ius). Regras que so derivadas do modo como as

    coisas esto distribudas na e pela Natureza; as regras

    que so, portanto, derivadas da disposio natural das coisas. 17

    14 AGOSTINHO, CD, liv. XIX cap. XXI, p. 181.

    15 Ccero fala de uma justia fundamentalmente como uma relao entre

    homens. Neste sentido especfico, a noo justia ciceroniana usada no mbito jurdico-poltico. Esse autor nega, tendo em vista isso, o qualificativo de justo a algum que d uma propriedade a quem no tem direito. Tal ao se constitui um iniura para quem sofre o dano e para toda comunidade, posto que tal ao ponha em risco a fundao da res publica. Por sua vez, Agostinho usa a noo de justia como a reta relao entre Deus e os homens, movendo-se no plano da relao dos homens com Deus. Como considera nosso autor, trata-se do homem que no obedece justia porque comete um ato contra Deus negando-o que lhe devido. 16 Conforme Villey, Aristteles influenciou de maneira determinante a

    construo da cincia jurdica romana, a tal ponto que no exagero dizer que Ccero um aristotlico. V-se essa influncia na elaborao e definio da finalidade da arte jurdica empreendida por Ccero que, devido ao seu esprito ecltico, no dispensou as obras de Aristteles. Este analisou o vocbulo justia no que diz respeito to-somente s relaes sociais. Para Aristteles, a justia devolve ou distribui a cada um o que lhe corresponde, no interior de um grupo social, a plis. Ora, Ccero, no De Oratore, segue os passos de Aristteles e recorre ao argumento dialtico para distinguir e definir os sentidos precisos de termos gerais da linguagem comum. Nessa obra, segundo Villey, Ccero procura definir o direito mediante a definio mesma de sua finalidade, de seu tlos: sit ergo in jure civili finis hic: legitimae atque usitatae in rebus causisque civium aequabilitatis conservatio (o estabelecimento de uma justa proporo na distribuio de bens e no julgamento dos litgios entre os cidados). Dessa anlise etimolgica Ccero vai apreender o conceito de direito. A idia de justa proporo, derivada da tica de Aristteles, remeter idia de jus. VILLEY in: Le Droit et les droits de lhomme e A formao do pensamento jurdico moderno. 17 Informa-nos Villey que a fonte do direito, de acordo com a descrio

    feita pelos autores romanos (...) no a lei, mas a natureza... o direito clssico , acima de tudo, obra da doutrina que busca o justo segundo a

  • 16

    Mas alm da injustia que se refere s regras do direito, Agostinho pe em evidncia outro tipo de injustia: a ausncia de equilbrio e harmonia interna no individuo, de

    modo que quando a desordem se instala no interior da alma

    racional, na mesma proporo deixa de existir ordem social 18.

    Estamos certos que Agostinho, no rastro de Ccero,

    afirma a existncia da res publica s ali onde h direito

    consentido. Mas nosso autor complementa essa afirmao dizendo

    que s h direito consentido onde h verdadeira justia. Com isso, Agostinho busca demonstrar o que ele compreende pelo

    termo vera iustitia. Em outras palavras, Agostinho busca

    compreender o que a verdadeira justia, pois onde no h verdadeira justia no pode existir verdadeiro direito. Eis a afirmao:

    natureza.... VILLEY, op. Cit., p. 72. No h dvidas de que h regras do direito civil que encontram seu fundamento no Direito Natural. entretanto, a afirmao de Villey, tal como aparece aqui, parece desconsiderar que h certas regras do direito civil que no esto diretamente fundadas no Direito Natural e sim na vontade de quem governa. 18 Para Plato a justia, tal como aparece na Repblica, aquela virtude

    que atribui cada um sua parte. Segundo ele, essa virtude deve ser encontrada e exercida tanto no indivduo quanto na Cidade. O equilbrio de cada parte da alma que no homem constitui a justia interior deve refletir tambm na Cidade. Cada classe deve ser posta em seu devido lugar a fim de exercer seu ofcio de modo adequado e conforme sua natureza peculiar: os artesos subordinados aos guerreiros, e estes aos filsofos. Ora, as duas concepes de justia em Plato so inseparveis: uma como virtude interior, e outra como uma idia ontolgica. A funo da lei, de acordo com Plato, tanto na Repblica como no tratado das leis a virtude. De modo que a lei no visa apenas a guerra, o poder militar, os contratos e a prosperidade de cada membro, mas visa tambm a piedade, os bons costumes e a educao. Esta noo larga e ambiciosa que Plato desenvolve no plano do direito de uma imensa importncia para histria, afirma Michel Villey. Tal noo de direito (ius) no distingue a vida social exterior da vida moral privada, a piedade, a virtude, as intenes interiores. A vida moral privada deve refletir na sociedade. Da a afirmao de que a cidade constituda de homens e no de metais e pedras (VILLEY, Op. Cit., captulo II, p. 21- 35.). Essa idia em certa medida est presente em Agostinho como podemos ver; evidentemente levando em considerao as devidas diferenas. Para ele: a vida moral do homem reflete na vida social: o indivduo no se separa da cidade: ... cada homem to constitutivo de cidade ou reino, por mais dilatado e extenso que seja, como a letra o do discurso (AGOSTINHO, CD, liv IV cap. III, p. 204.).

  • 17

    O que se faz com direito se faz justamente, impossvel que se faa com direito o que se faz injustamente. 19

    Logo, a justia (iustitia) o fundamento do direito (ius).

    Dado que a justia seja o fundamento do direito, entendemos que para Agostinho tanto a ao de quem tira a

    propriedade a quem a comprou e d a quem no tem o direito,

    quanto a ao de quem se ope ao Deus dominador e criador

    so tomadas concomitantemente como aes injustas. Entretanto, o que est em questo quando se deixa entrever que

    ambas as aes so injustas? Ora, ao considerar as duas aes como injustas, devemos

    ter em mente que Agostinho tem em vista a intencionalidade do

    homem medida que age 20, por conseqncia, ele tem em vista o

    interior do homem. Eis o lugar em que ocorrem os atos de

    injustia. Foi a partir do interior que os romanos foram injustos. Pois quanto mais se entregavam s prticas imorais, tanto mais ignoraram as regras do direito.

    Como interpreta Agostinho, a justia realiza-se na interioridade e no na exterioridade, de tal maneira que se

    no homem individualmente considerado no h justia alguma, que justia pode haver em associao de homens composta de indivduos semelhantes? 21. Para o autor, no pode haver

    verdadeira virtude sem verdadeira justia, nem pode haver

    19 AGOSTINHO, CD, liv. XIX, cap. XXI, p. 181.

    20 A tica agostiniana pe em evidncia o que comumente chamado de

    intencionalidade. Para Agostinho, o verdadeiro mal do homem no exterior, mas aquele intimum ac suum: a peccatium... mala voluntas velut hostis interior (Ep. 138, 2,11,14). Esse mal somente a graa de Cristo pode san-lo. 21 AGOSTINHO, CD livro XIX Cap. XXI, p. 182.

  • 18

    verdadeira justia se no se vive da f 22. Conseqentemente, a verdadeira justia aquela que nasce da f. Mas contrariamente tradio patrstica, que reconhecia o direito

    do Estado e por isso mesmo no estava preocupada com ele e

    sim com a justia crist, Agostinho critica a instituio terrena, a res publica romana que, estando fundada no culto

    aos falsos deuses, no pode ser digna desse nome porque no

    conheceu a justia originada da f. digno de nota que a justia originria da f conserva

    a idia de dar a cada qual o que lhe devido. Mas estejamos atentos para a modificao empreendida por Agostinho. Enquanto

    Ccero entende que a f o fundamento da justia, na medida em que o vocbulo f (fides) no expressa outra coisa seno a

    constncia em palavras e acordos no interior da sociedade

    humana 23; em Agostinho, a f a via atravs da qual a alma

    racional, na relao com Deus, d a Ele o que devido. Ora, o

    que devido a Deus no outra coisa seno o amor.

    Sabemos que em Agostinho, a justia tem a funo de ordenar a alma racional. Ou seja, ela estabelece no homem certa ordem em virtude da qual o corpo submete-se alma, e a

    alma a Deus. No que resulta, dessa hierarquia, ordem justa 24.

    22 AGOSTINHO, Contra Juliano. Livro quarto, 3, 17. Disponvel em:

    Acesso em: 25 out. 2005. 23 Eis o que diz: o fundamento da justia a f, ou seja, a verdade e a

    constncia em palavras e acordos. E continua dizendo, ... ousemos imitar os esticos, que dedicadamente investigaram a origem das palavras, e acreditemos na f (fides), assim chamada porque faz (fiat)o que foi dito.Ccero no Dos Deveres livro I, 23, p. 14. 24 Agostinho afirma, no captulo IV do Livro XIX, que no homem h ordem

    justa e procedente da natureza, ordem segundo a qual a alma est submetida a Deus, a carne alma e a alma e a carne a Deus. No captulo XXIV do Livro XIX, volta a dizer que a cidade dos mpios [uma referncia explicita aos grandes e pequenos imprios terrenos], refratria s ordens de Deus, que probe sacrificar a outros deuses afora Ele, e, por isso, incapaz de fazer a alma prevalecer sobre o corpo e a razo sobre os vcios, desconhece

  • 19

    Por conseguinte, a justia se entende em conexo com a idia de ordem, em particular com a ordem do amor (ordo amoris).

    precisamente nesse sentido que Agostinho ir definir a virtude como ordem do amor:

    O amor, que faz com que a gente ame bem o que deve amar, deve ser amado tambm com ordem; assim, existir em ns a virtude, que traz consigo o viver bem. Por isso, parece-me (diz Agostinho) ser a seguinte a definio mais acertada e curta de virtude: a virtude a ordem do amor. 25

    Nas cartas, ele ainda afirma: ... virtude a

    caridade, com a qual se ama aquilo que deve ser amado (Ep.

    167, 4, 15). Ora, o que deve ser amado Deus (Ep. 137, 5,

    17); ... Deus por Si mesmo, ns e o prximo por causa dEle

    (Ep. 130,7,17).

    Amando a Deus, o homem ama a si mesmo e ao prximo de

    modo ordenado. Mas qual a razo desse processo de

    verticalizao imposto por Agostinho?

    Facilmente se poderia responder que a razo est no

    pecado. No entanto, devemos dizer que o pecado no a razo

    pela qual se faz necessria a justia. Pelo contrrio, o pecado, compreendido como dficit moral, apenas torna

    embaraosa a resposta questo do que seja a justia. Para Agostinho, a alma racional humana encontra-se

    debilitada, sendo incapaz de ver claramente tanto a ordem

    natural quanto s regras da justia. Por esse motivo, o autor, em diversas passagens de seus escritos, afirma

    necessidade de que a alma racional tem de recorrer graa

    a verdadeira justia. AGOSTINHO, CD liv. XIX, cap. IV, p. 153; ibid, p. 190. 25 AGOSTINHO, CD, liv. XV, cap. XXII, p. 330.

  • 20

    divina, mediada pela f, para auxiliar a razo na compreenso

    do que seja a justia, bem como suas regras. Tal processo compreende, sempre, a manifestao e posse da justia no interior do homem. Entretanto, possuir a justia implica na adeso da vontade da alma racional ordem natural e,

    consequentemente, aos postulados da lei eterna. Essa re-

    ordenao da alma racional segundo a ordem natural requerida

    por Deus s possvel para o homem, por conseguinte, com a

    ajuda da graa divina. Tendo em vista que a natureza do homem est viciada, a

    f, enquanto uma das virtudes denominada teologais, leva-o a

    crer que pode ver Deus e, consequentemente procur-Lo. A f

    purifica os olhos, tornando possvel contemplar a Deus. Da

    f segue-se a esperana; esperana de ficar saudvel, condio

    necessria viso. Por fim, resta caridade quilo que

    deseja encontrar. Portanto, f, esperana e caridade, so as virtudes teologais necessrias, tal qual aparecem nos

    Solilquios, para a viso de Deus, dado que tornam os olhos

    aptos a tal viso intelectual.

    De modo geral, no interior dos Solilquios, Agostinho

    define a virtude relacionando-a com a razo (ratio), isto ,

    com a razo correta e perfeita. Segundo o autor da obra

    Solilquios, o olhar da alma a razo. O olhar correto e

    perfeito, ao qual se segue o ato de ver, se chama virtude. E a

    virtude no outra coisa seno a razo correta e perfeita.

    Mas o mesmo olhar no pode voltar os olhos, mesmo j sos, para luz inteligvel, se no houver essas trs virtudes

    envolvidas: a f pela qual, voltando o olhar ao objeto e vendo-o, se torne feliz; a esperana pela qual, se olha bem,

  • 21

    pressupe que o ver; e o amor pelo qual deseja ver e ter prazer nisso. O olhar segue a prpria viso de Deus que o

    fim do olhar, no porque j deixe de existir, mas porque j no h nada a aspirar. Esta verdadeiramente a perfeita

    virtude, a razo atingindo o seu fim 26.

    Compreende-se com isso que Agostinho busca estabelecer

    as condies atravs das quais a ao virtuosa possvel

    neste mundo. A f, a esperana e a caridade so as virtudes

    que auxiliam a alma racional a contemplar Deus, sumo bem que

    deve ser amado e procurado acima da razo e da natureza.

    Mas na contemplao de Deus, Agostinho admitir que:

    Nossa prpria justia, embora verdadeira, quando referimos ao supremo Deus, tal nesta vida, que antes consiste na remisso dos pecados que na perfeio das virtudes 27.

    Como devemos entender e buscar conciliar a afirmao de

    que a justia do homem verdadeira com a afirmao de que ela seja visivelmente aparente quando se refere justia divina? Precisamente, qual o sentido dessa ambigidade do conceito

    de justia? O advrbio circunstancial quando deixa entrever a

    possibilidade de reportar-se justia divina; entretanto nos casos em que isso ocorre, a justia humana perde seu qualificativo de perfeio das virtudes, tal qual como

    Aristteles e Ccero a conceberam 28, e passa a funcionar como

    26 AGOSTINHO, Soliloquia, liv. I cap. VI, p. 31. (os grifos so meus).

    27 ... nostra iustitia, quamvis vera sit propter verum boni finem, ad quem

    refertur, tamen tanta est in hac vita, ut potius remissione peccatorum constet quam perfectione virtutum. AGOSTINHO, CD, lv XIX Cap. XXVII, p. 192. 28 Aristteles e Ccero, cada um a sua maneira, concebem a justia como o

    esplendor da virtude, considerando-a, obviamente, no seio da sociedade humana. Na tica a Nicmaco, no V captulo, Aristteles diz que justia

  • 22

    instrumento de purificao moral 29. Eis ento outro aspecto

    da justia, tal como Agostinho a compreende: a justia como padro moral estabelecido pela filosofia - deve ser

    compreendida no interior do processo de purificao moral pela

    graa mediante a f em Deus 30.

    Isso deixa entrever que o termo justia comporta uma ambivalncia. Designa, por um lado, a distribuio dos bens

    terrenos, estabelecendo a ordem na cidade terrena 31. Nesse

    uma virtude completa, no em absoluto e sim em relao ao outro. CCERO, ao discorrer a respeito do dever cvico, ensina-nos que a primeira fonte do dever a aprendizagem do verdadeiro, isto a busca da verdade, em seguida ele declara que a segunda fonte do dever o princpio segundo o qual a sociedade dos homens e a comunidade da vida se agrupam. Tal princpio, segundo Ccero, divide-se em duas partes, colocamos em evidncia aqui primeira, qual seja a justia. Da justia afirma-se que ela o esplendor da virtude. Ccero. DOS DEVERES, So Paulo: Martins Fontes, 1999. Livro I, VII, 20. 29 No livro XIX, Agostinho argumenta contra a vaidade dos filsofos dizendo

    que as virtudes, analisadas nos primeiro captulos do livro XIX, fazem continua guerra contra os vcios. No contra os exteriores, mas contra os interiores, no contra os alheios, mas contra os prprios e pessoais. Por isso, a cada vcio que existe no interior do homem, diz Agostinho, se ope determinada virtude. Da entendermos que a Virtude, para Agostinho, instrumento de purificao moral. 30 Segundo Novaes, a idia de que a alma deve ser purificada, ainda que

    tenha ntida ressonncia da tradio platnica e neoplatnica, solidria de um elemento novo: o homem no pode ser considerado apenas segundo a sua natureza. A finitude humana no to-somente expresso de sua natureza, natureza distanciada do absoluto; a finitude comporta tambm a misria, isto , a condio humana segundo a qual a mesma natureza no est mais ntegra, manchada agora pelo pecado original. Em razo desta condio, o papel da filosofia no simplesmente de conduzir a ascese de uma natureza finita at o infinito, a verdade, o bem supremo. Trata-se de fazer com que os homens reconheam sua condio finita e miservel, na qual a natureza no est mais intacta. A ascese significa a restaurao, o processo de cura e recuperao da integridade da natureza. NOVAES, Moacyr. Nota sobre o problema da universalidade em Agostinho, do ponto de vista da relao entre f e razo. Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Srie 3, v.7, n. 2, p. 31-54, jul.- dez. 1997, p. 35. 31 Agostinho herdeiro da cultura latina no abandona totalmente a filosofia

    clssica com suas idias a respeito do direito romano sobre a justia. Para nosso autor, como j sabemos, a justia o hbito da alma ou a virtude pela qual uma pessoa d a cada um o que lhe devido (ver De civ Dei 19, 4, 21; Lib. Arb. 1,27.). Entretanto, Agostinho acentua sua compreenso das idias que expem o Novo Testamento e a literatura patrstica acerca da justia, identificando a virtude como o amor que devido a Deus e ao prximo. De modo que a idia filosfica clssica de justia, que se concebe em termo de justia distributiva natural, se transforma em termos cristos, expressando-se como dar a Deus e ao prximo o amor que se lhes deve, em virtude do mandamento do amor.

  • 23

    sentido, a justia seria o princpio de distribuio dos bens terrenos e das funes de cada cidado no regnum terreno,

    com a finalidade de conduzir a alma racional ao fim supremo de

    sua vocao, que para Agostinho seria a entrada do homem no

    reino dos cus. Por outro lado, a justia designa a virtude enquanto instrumento de purificao moral.

    obvio para qualquer leitor que Agostinho cede lugar a funo dessa virtude concebendo-a como instrumento de

    combate aos males morais e no mais como perfeio das

    virtudes, ficando num plano secundrio, mas inteiramente

    dependente da outra funo, a justia distributiva natural que distribui a cada qual o que lhe devido na civitas terrena.

    Tendo em vista a funo da justia como instrumento de purificao moral, nosso autor afirma que somente na submisso

    a Deus cada homem ser verdadeiramente justo. Conseqentemente compreende-se que apenas a graa de Deus em sua suficincia

    torna possvel a justia no interior da sociedade humana. Sendo assim, a justia do povo ser determinada a

    partir de cada homem que, na sua relao com Deus, torna-se

    justo. Assim, ao contrrio do que Ccero faz crer, no o populus que justo. Pelo contrrio, segundo Agostinho:

    Como um s justo vive da f, assim tambm o conjunto e o povo justo vivero dessa f que age pela caridade, que leva o homem amar Deus como deve e o prximo como a si mesmo. 32.

    32 AGOSTINHO, CD liv. XIX, cap. XXIII, p. 189. Texto em latim: ut, quem ad

    modum iustus uns, ita coetus poplusque iustorum vivat ex fide, quae operatur per dilectionem, qua homo diligit Deum, sicut diligendus est Deus, et proximum sicut semetipsum.... De Civitate Dei, XIX, xxiii, p. 162. Agostinho, La Cite de Dieu livres XIX-XXII. Bibliotheque Augustinienne, texte de la 4 edition de B. Donbart er A.Kalb. Introduction et notes par G.Bardy. Traduction Francaise de G. Combs. Descle de Brouwer, 1960.

  • 24

    Como quer o autor da Civitate Dei, a verdadeira

    justia faz cumprir o seguinte imperativo divino: amar a Deus e o prximo como a si mesmo 33. Tal amor a caritas. Logo crer

    em Deus e agir mediante caridade caracteriza a verdadeira

    justia.

    1.2 A JUSTIA ENQUANTO ORDEM DO AMOR

    a partir desse enquadramento conceitual que Agostinho julga que a Repblica romana jamais foi res publica, porque jamais creu em Deus e o amou como o bem (boni finem) que deve ser amado e, por conta disso, desconheceu a verdadeira justia 34. Neste contexto, a justia, entendida como ordem do amor, harmoniza o aspecto volitivo do amor com a ordem criada da

    natureza. Como tal, a justia a virtude que vai ordenando uma srie de relaes retas que vo ascendendo em valor de

    maneira proporcional ordem querida por Deus. Define-se assim

    a justia como amor dirigido a Deus e que desse modo bem governa aquelas coisas que esto sujeitas aos homens.

    Devemos estar atentos para a seguinte tese: a concepo

    de caritas, em Agostinho, envolve a noo de justia. Alis, pode-se afirmar que sem a caritas no h justia. Tendo em vista que para Agostinho: o comeo da vivncia da caridade

    o incio da vida na justia; o progresso na caridade leva ao progresso na justia. A grandeza da justia mede-se pela grandeza da caridade; a justia perfeita sinal da caridade perfeita. 35

    33 AGOSTINHO, id., p. 189.

    34 AGOSTINHO, ibid., p. 132.

    35 AGOSTINHO, A graa I: A natureza e a graa, cap. LXX, 2 edio ed.

    Paulus 1999, p. 196.

  • 25

    Mas considerando que a terminologia de Agostinho

    flutuante, como nos alerta Gilson, devemos estar atentos para

    o sentido geral do vocbulo caritas. Nosso Autor emprega-o

    na relao de uma pessoa com outra pessoa em oposio ao amor

    s coisas 36. Pois as coisas so amadas tendo em vista deleite

    de si mesmo, mas as pessoas devem ser amadas por elas mesmas.

    Com efeito, aps a converso ao dogma cristo, o

    conceito de virtude em Agostinho sofre modificaes

    importantes. Como vimos pelo que foi dito anteriormente,

    Agostinho concebe a virtude como amor ordenado. Russell37

    comenta que a noo de virtude como amor ordenado aparece na

    Doutrina Crist nos seguintes termos: o homem justo aquele que possui um amor ordenado. Conceito que definido, na

    Cidade de Deus, tanto pelo contedo, quanto pela sua

    brevidade como: virtude a ordem do amor pela qual o homem

    ama o bem que se deve amar 38. Agostinho julga desse modo que a virtude s verdadeira quando ela se inclina ao fim em que

    reside o bem do homem 39. Ainda segundo Russell, Agostinho

    invoca a autoridade do texto bblico em favor de sua

    definio. Depois de definir a virtude como amor ordenado, o

    autor do De civitate Dei acrescenta imediatamente: eis

    porque no Cntico dos cnticos a esposa de Cristo, a cidade de

    Deus, canta: ordena a caridade em mim 40.

    Na carta 155, Agostinho coloca em evidncia a relao

    36 GILSON, op. cit., p. 178.

    37 RUSSELL, Robert. Introduzione Filosofia, Parte Terza: La Filosofia di

    SantAgostino Nella Cita di Dio, p. CXXXVIII in: santAgostino La Citta Di Dio I (Libri I-X). Texto Latino delledizione Maurina Confrontato con Il Corpus Chistianorum. Introduzione: A. Trap, R. Russell, S. Cotta. Traduzione: Domenico Gentili. Citta Nuova Editrice. 38 AGOSTINHO, De civ. Dei, livro XV captulo XXII, p. 330.

    39 AGOSTINHO, Cidade de Deus, livro II cap. XII, p. 274.

    40 AGOSTINHO, id.

  • 26

    entre a virtude e o amor. Demonstra que as quatro virtudes

    cardeais no so outra coisa seno tantas modalidades do mesmo

    amor:

    Nesta vida, a virtude no outra coisa seno amar o que se deve amar; eleger o que se deve amar prudncia; no se separar dele fortaleza; apesar de outras coisas que concorrem para isso, temperana; apesar da soberba, justia 41.

    De acordo com esta passagem da carta 155 escrita em 414

    a Macednio, Agostinho estabelece como condio fundamental

    para virtude nesta vida amar o que se deve amar. Mas o que o

    homem deve amar? Alis, levando em considerao a ordem dos

    seres e dos bens possveis a serem amados, qual bem o homem

    deve eleger para amar? Qual a caracterstica desse bem?

    Agostinho no negligncia a dificuldade que a alma

    racional humana tem para eleger (eligere) tal bem, posto que

    ela encontra-se entre os bens temporais e os bens eternos. Mas

    a despeito disso, para Agostinho eleger tal bem :

    i) prudncia;

    ii) manter-se junto a ele, fortaleza; iii) apesar de outros bens, temperana;

    iv) apesar da soberba, justia.

    A soberba aparece como trao caracterstico da condio

    humana, de uma natureza decada que, apesar disso, ela no

    um obstculo para uma vida virtuosa. Pelo contrrio, a soberba

    indica uma falsa expectativa de que o homem basta a si mesmo.

    A grande mudana que Agostinho faz em relao aos seus

    41 AGOSTINHO, Obras de San Agustn em edicion bilnge Tomo XI, Cartas

    (Complemento de tomo VIII), p. 377. Texto em latim: Quanquam et in hae vita virtus non est, nisi diligere quod diligendum est: id eligere, prudentia est; nullis inde averti molestiis, fortitudo est; nullis illecebris, temperantia est; nulla superbia, iustitia est..

  • 27

    prprios escritos, e antiga tradio, afirmar que a

    virtude o perfeito amor a Deus (summum amo Dei): como a

    virtude nos conduz vida feliz, Agostinho ousa afirmar que a

    virtude no absolutamente nada mais que o soberano amor a

    Deus.

    A tradio afirmava que a virtude quadripartida,

    igualmente Agostinho compreender que ela seja os diferentes movimentos de um mesmo amor. Assim, as famosas quatro virtudes

    ele no hesita em definir como se segue:

    ... a temperana o amor que d integralmente aquilo que ama; a fora o amor que tolera tudo facilmente por amor; a justia o amor que serve exclusivamente aquilo que ama e exerce o domnio em todo resto; a prudncia o amor que separa com sagacidade aquilo que lhe til, daquilo que lhe nocivo. 42.

    Mas ao referir-se ao amor perfeito, isto a caritas,

    ele passa a definir a virtude assim:

    Mas aquele amor (uma aluso a caritas) no o amor a um objeto qualquer, mas amor a Deus, quer dizer, ao soberano bem, sabedoria divina e soberana harmonia.

    Nesse amor perfeito, nos diz Agostinho:

    ... a temperana o amor que se conserva ntegro e incorruptvel para Deus, a fora o amor suportando facilmente tudo por Deus; a justia o amor que no serve mais que a Deus, e por isso comanda bem as coisas que devem ser submissas ao homem; a prudncia o amor que discerne bem aquilo que ajuda caminhar para Deus.... 43.

    A doutrina agostiniana sobre a virtude, como bem

    42 AGOSTINHO, De Mor, I, XV, 25 apud Gilson in: Introduction A ltude de

    Saint Augustin, 1987, p.177. 43 AGOSTINHO, id.

  • 28

    observa Russell44, busca defender a superioridade moral da

    religio crist contra a aparente virtude atribuda aos

    romanos de seu tempo. Devemos ter em mente que a posio

    irredutvel de Agostinho contra a noo de virtude dos

    romanos, assunto presente no livro V dA Cidade de Deus,

    deriva do exame da natureza da virtude.

    Os antigos romanos fundavam a moral na virtude. Basta

    dar uma passada de olhos no que diz Ccero no Do sumo bem e

    do sumo mal (2005). Nesta obra, Ccero afirma que virtude o

    honestum e vice-versa; esta determinao lhe basta: ...

    entendo por honesto o que de natureza tal, que, parte de

    toda e qualquer utilidade, sem nenhum prmio nem interesse,

    merea por si mesmo ser louvado 45. Ccero claramente

    distingue o honestum do utile. Este compreendido como

    algo desejvel, no por si, mas tendo em vista outra coisa. Aquele louvado por si mesmo.

    Agostinho compreende que as virtudes devem ser buscadas

    no por si mesmas e sim tendo em vista o fim ltimo. Nesse

    sentido, elas devem ser buscadas porque conduzem o homem a

    Deus. Nosso autor compreende que as virtudes devem ser usadas

    a fim de que a alma racional humana possa fruir de Deus. A

    noo de virtude derivada dessa relao da alma racional com

    Deus permite esta afirmao: Deus o princpio e o fim de

    toda ao do homem.

    A influncia do assim chamado platonismo notria no

    pensamento de Agostinho. O autor dA Cidade de Deus, reconhece

    nessa tradio uma vaga e flutuante idia de Deus. Afirma

    44 RUSSELL, op.Cit., p. CXXIX.

    45 CCERO, Do sumo bem e do sumo mal, liv. II, cap. XIV p. 53. (o grifo

    meu). (Os grifos so meus).

  • 29

    que o platonismo compreendeu que h um Ser que a causa

    primeira de todas as naturezas que existem; a luz da

    inteligncia; e o princpio da ao moral. um fato digno de nota que a tradio platnica no deixou de estabelecer, ao

    contemplarem a ordem da natureza, uma diviso tripartida:

    fsica (filosofia natural), lgica e tica (filosofia

    moral). 46 Tendo o Ser como centro para onde convergem todas

    as coisas. Segundo esse modo de compreenso, esse Ser no s

    princpio de todas as coisas, como tambm o fim do bem de

    tudo, em particular da alma racional. Por um lado, temos a

    uma concepo de unidade absoluta que Agostinho lanar mo.

    Por outro temos uma circularidade, que pode ser caracterizada

    pelo princpio-fim, proposta pelo platonismo e vista por

    Agostinho, em termos no de determinismo, mas de liberdade da

    alma racional garantida pelo Ser absoluto que Deus.

    Para Agostinho, o real valor da virtude encontra-se na

    relao do ser finito com o Ser absoluto, que Deus, de

    modo que a noo de fim moral transformada completamente. O

    autor concebe a idia de Deus no apenas como princpio

    regulador das aes, como tambm o fim para o qual tende

    todas as aes das almas racionais. Compreende-se com isso que

    qualquer virtude que no se referir ao Sumo Bem, ser

    considerada um vcio.

    Esse procedimento de Agostinho transforma a noo de

    fim da ao moral, de modo que no se pode deixar de afirmar

    que a virtude quando se refere a si mesma e posta como fim

    prprio no passa de vaidade e soberba. O autor entende que

    imprio da virtude sobre a alma s verdadeiro e justo na

    46 AGOSTINHO, CD. lv. VIII, cap. V, p. 393.

  • 30

    sujeio47 a Deus. o prprio Agostinho que argumenta nesse sentido:

    Por mais louvvel que parea o imprio da alma sobre o corpo e da razo sobre as paixes, se a alma e a razo no rendem a Deus a homenagem de servido que Ele manda, tal imprio no verdadeiro e justo. Como que a alma que desconhece o verdadeiro Deus e, em lugar de estar-lhe sujeita, se prostitui aos mais infames demnios, que a violam, pode ser senhora do corpo e dos vcios? As virtudes que julga possuir, ao mandar o corpo e as paixes, para obter e conservar algo, se no as referem a Deus, no so virtudes, mas vcios. que, apesar de alguns pensarem que as virtudes so verdadeiras e honestas, quando referidas a si mesmas e postas como fim prprio, no passam de vaidade e soberba. Portanto, no so virtudes, mas vcios, e como tais devem ser consideradas. 48.

    Ao conceber a virtude desse modo, Agostinho critica

    expressamente epicuristas e esticos. Estes tomam a virtude

    como soberano bem do homem. Aqueles tomam a volpia do corpo

    (voluptatis corporalis). Segundo afirma-nos Ccero, em sua

    obra intitulada Do sumo bem e do sumo mal, os epicuristas

    tomam o prazer corporal como o fim de todas as aes,

    submetendo as virtudes ao prazer, de modo que para eles, as

    virtudes no so buscadas por si mesmas e sim tendo em vista o

    prazer. Este quadro, pintado por Ccero, chega a Agostinho e

    ele no deixar de concluir que as virtudes, com toda

    dignidade de sua glria, servem o prazer como mulherzinha

    mandona e desonesta. De fato, criticamente um estico diria

    que tal quadro insuportvel para os olhos de homens bons.

    Entretanto, Agostinho afirmar que no ser pintura de devido

    decoro se no admitir outra coisa, a saber: as virtudes servem

    glria humana quando esto submetidas ao orgulho e a vaidade

    47 Ora, pois, precisamente esta idia de sujeio que est presente na

    noo de justia. 48 AGOSTINHO, De civ. Dei, Liv. XIX cap. XXV, p. 190.

  • 31

    humana. A estes a solidez e a simplicidade das virtudes no

    servem a no ser que agradem aos homens e sirva glria oca. 49

    Contra essa noo de virtude que serve ao prazer

    corporal e ao louvor humano, isto , a virtude considerada em

    si mesma, Agostinho reivindica a natureza singular do que

    julga ser a verdadeira virtude (especificamente aqui a justia), identificada com o amor de Deus (caritas). 50.

    Na mesma linha de raciocnio Villey informa-nos que:

    A justia, para santo Agostinho, depois de convertido, nada menos que Deus, sinnimo de Deus. Est plane ille summus Deus vera justitia, vel ille verus Deus summa justitia quod vellet ipsa justitia est; a ordem de Deus sobre sua criao, pois Deus quis que todas as coisas estivessem perfeitamente ordenadas: (...) ut omnia sint ordinatissima (...). toda justia e todo direito residem na lei eterna de Deus: Lex vero aeterna est

    49 Eis as palavras de Agostinho: a volpia ordena Prudncia que lhe

    assegure, atravs de vigilante polcia, a tranqilidade e a paz do reino, Justia que distribua todas as graas possveis, a fim de conciliar amizades necessrias manuteno de seu bem-estar corporal e nenhum direito ferido, armando-se contra as leis, lhe ponha em perigo a segurana dos prazeres. Se a dor se apodera do corpo, sem todavia, precipit-lo na morte, dever da Fortaleza manter firme o pensamento do esprito em sua soberana, isto , Volpia, com o propsito de, pela recordao das delcias passadas, mitigar os espinhos da presente dor. A Temperana deve regular a quantidade dos alimentos e evitar todo excesso que, alterando a sade, perturbaria, de acordo com os epicuristas, a maior volpia do homem. Desse modo, as virtudes, com toda a dignidade de sua glria, servem o prazer como mulherzinha mandona e desonesta. Dizem nada haver de mais vergonhoso, de mais disforme e de menos suportvel pelos olhos dos bons que semelhante quadro. Mas tenho para mim que no ser pintura do devido decoro, se se finge outra, em que as virtudes sirvam glria humana. Mesmo quando essa glria no seja delicada mulher, doente de orgulho e tem muito de vaidade. Por isso, no lhe servem dignamente a solidez e a simplicidade das virtudes, querendo que nada proveja a Fortaleza e nada modere a Temperana, seno aquilo com que agrade aos homens e sirva glria oca. Nem se defendam dessa fealdade os que, desdenhando os juzos alheios como menosprezadores da glria, se julgam sbios e se comprazem em si mesmos, porque sua virtude, se que o , se submete de outro modo ao louvor humano. Agostinho, De Civ. Dei, Liv. V cap. XX, p. 289. 50 Seguidores de Pelgio, monge breto extremamente popular na poca (de

    Agostinho), desenvolve uma moral asctica que d grande importncia s virtudes humanas e corre o risco de apresentar o homem como capaz de se salvar exclusivamente por seus mritos naturais. Contra Pelgio, santo Agostinho empreende um longa e apaixonada luta: apresenta-se agora como o telogo da graa e o contendor da natureza (esse aspecto de sua obra foi, de todos, o mais clebre no sculo XVII, na poca do jansenismo). VILLEY, op. cit., p. 78.

  • 32

    ratio divina vel voluntas Dei; ordinem naturalem conservari jubens, perturbari vetans. 51.

    Portanto, aos olhos de Agostinho, a verdadeira vitria

    da razo sobre os vcios ser a do amor justia, a do amor a Deus, de modo que o cristo,

    com verdadeira piedade ama a Deus e cr e espera nele ainda mais solcito no que desagrada a (Deus) (que naquilo em que), se que nele existe algo, agrada no tanto (ao cristo) como verdade. E isso que pode dar-lhe complacncia no o atribui seno misericrdia daquele a quem teme desagradar, dando-lhe graas por essas coisas de que o curou e erguendo splicas pelas que lhe resta curar. 52

    1.3 O STATUS DA VIRTUDE CVICA

    Qual o status da virtude cvica aos olhos de

    Agostinho? A tradio filosfica com a qual Agostinho est em

    constante dilogo, como sabemos, havia definido a arte de

    viver bem e retamente com o nome genrico de virtude,

    subsumindo a esse termo quatro espcies: prudncia, fortaleza,

    temperana e justia 53. O homem considerado sbio era portador dessas quatro virtudes cardeais. De fato, tal a

    caracterstica da virtude que Ccero afirma que a virtude

    quer a glria como nico prmio... 54, de modo que a

    recompensa do varo no est na conquista do imprio ou do

    reino, que certamente so bens humanos, os quais podem ser

    subtrados ou pela ingratido do universo, ou pela inveja da

    51 VILLEY, ibid., p. 85.

    52 AGOSTINHO, id. (os grifos so meus).

    53 Para Plato, dikaiosunh (dikaiosyn= justia) bsica para a estrutura

    do Estado e da alma humana, sendo uma das quatro virtudes cardeais, juntamente com phronsis (prudncia), sphrosyn (temperana) e andreia (coragem, constncia). PLATO. A Repblica. 1 4, 4, 443c 54 CCERO, Liv. III, cap. XVIII, p. 92.

  • 33

    multido, ou pelos inimigos poderosos. Mas a Virtude consola-

    se na sua prpria beleza, em si mesma, isto , ela deve ser

    buscada por si prpria e no pelas recompensas que

    eventualmente pode proporcionar. Se no for assim, ser

    foroso dizer que h coisas melhores do que ela, como as

    honras, a sade, ou, ainda, o prazer corpreo.

    Agostinho julga que h algo de verdadeiro nisso, pois a virtude foi o caminho que os antigos romanos seguiram para se

    chegar glria, ao mando e s honras, no a enganadora

    ambio. Pois quanto mais exerciam as virtudes, tanto menos

    se entregavam aos prazeres, que enervavam o nimo, e s

    concupiscncias do corpo, ao aumento das riquezas e

    corrupo de costume 55. A virtude, afirma nosso autor, se

    revelou inata nos romanos, e isto indicam-no os templos dos

    deuses da Virtude. Entretanto, o que os romanos tomam por

    deuses no passa de dons de Deus. Como dons de Deus, toda e

    qualquer virtude no mundo no s depende dEle e de sua graa

    em sua eficincia, mas tambm em sua existncia e em seu

    valor, pois Deus seu princpio e seu fim.

    Sendo assim, se a prtica da virtude possibilitou a

    grandeza do Imprio romano, foi porque ele estava nas mos de

    Deus. De fato, no livro V dA Cidade de Deus, em que nosso

    autor fala a respeito de sua concepo de Providncia, ele

    afirma: o supremo Deus de nenhum modo quis que ficassem

    alheios s leis de sua providncia os reinos dos homens, seus

    senhorios e servido. 56 Foi, pois, a Providncia Divina, no o

    acaso dos epicuristas ou o destino dos esticos, que

    55 AGOSTINHO, ibid., p. 274.

    56 AGOSTINHO, CD, LIV V, cap. XI, p. 270-271.

  • 34

    atribua a Roma sua glria terrestre como recompensa temporal.

    Portanto, foi Deus que dotou os romanos de amor pela

    liberdade, glria e as virtudes que lhe permitiu ter.

    Os antigos romanos velavam a ptria e pela glria dela

    procuravam a sua prpria glria, com esse amor ptrio eles

    no hesitaram em antepor prpria vida a salvao da ptria,

    aplastrando com esse nico vcio, com a paixo pelo louvor, a

    cobia do dinheiro e muitos outros vcios 57. O amor pela

    glria terrestre e louvor humano um vcio, uma peste 58,

    mas porque refreia as mais torpes libidos considerado por

    Agostinho algo em si mesmo virtuoso 59. O amor gloria til

    repblica, pois inspirados nele os romanos expandiram o

    imprio. Por conseguinte, Deus outorgou aos romanos a terrena

    e presente glria de imprio por causa de suas virtudes: pois

    os romanos, pela coisa comum, isto , pela repblica...

    desprezaram seus interesses privados, resistiram avareza e

    deram com liberdade a vida pela ptria 60.

    Pelo caminho da virtude eles gozaram ... de glrias

    nos livros e nas histrias em quase todo o mundo. Afirma

    ainda Agostinho, eles j no tm por que queixar-se da justia do Deus verdadeiro e supremo (visto que j) receberam seu galardo 61.

    Tal o exemplo de virtude que:

    No somente com o propsito de dar semelhante galardo a tais homens se dilatou o Imprio romano, para glria humana, mas tambm com o de que os cidados da eterna cidade, enquanto peregrinos no mundo, observem com sobriedade e diligncia os referidos exemplos e vejam

    57 AGOSTINHO, ibid., p. 276-277.

    58 AGOSTINHO, ibid., p. 277

    59 AGOSTINHO, id.

    60 AGOSTINHO, ibid., p. 279.

    61 AGOSTINHO, ibid., 280.

  • 35

    quanta dileo se deve ptria soberana por amor vida eterna, se pela glria humana seus cidados tanto amam a terrena. 62.

    De modo que se conclui que o amor pela ptria, posto

    frente do amor de si, em si mesmo virtuoso e justo. Tanto assim que este amor deve servir de exemplo ao cristo 63

    medida que essa virtude imagem, ainda que apagada, da

    virtude que faz os homens dignos da cidade de Deus:

    To dilatado e duradouro por esse Imprio, afamado e glorioso pelas virtudes de homens to insignes, se deu a seu intento o galardo que buscam e a ns nos propuseram exemplos de admonio necessria. Isso com o propsito de que se no tivermos pelo gloriosssima Cidade de Deus as virtudes de que so imagem, embora apagada, as que os romanos tiveram pela glria, da cidade terrena, nos acicate o pudor, e, se as tivermos no nos ensoberbeamos (...) quanto gloria humana do tempo presente, julgava-se suficientemente digna a vida dos romanos.64

    Evidentemente a Roma que Agostinho admira aquela que

    o poeta Virglio e o historiador Salstio elogiam antes de sua

    degenerao moral. aquela que admirada por colocar o amor a ptria acima do amor de si no que inibe a torpe libido. a Roma que o verso de nio reconhece a razo de sua existncia:

    Se Roma existe, por seus homens e seus hbitos 65. a mesma que Ccero lamenta, no livro V de sua obra Da

    Repblica, e demonstra que ela no s perecera, mas tambm

    no h sinal algum dela:

    ... depois de ter recebido a Repblica (romana) como uma pintura insigne, em que o tempo comeara a apagar as cores,

    62 AGOSTINHO, id.,

    63 LIMONGI, Maria Isabel. Sociedade e Moralidade: a ordem da concupiscncia

    e a grandeza do homem em Pascal (2005). 64 AGOSTINHO, ibid., 286.

    65 CCERO, Moribus antiquis res stat Romana virisque in: Da Repblica, V, I,

    p. 101.

  • 36

    no s no cuidou de restaur-la, dando novo brilho s antigas cores, como nem mesmo se ocupou em conservar pelo menos o desenho e os ltimos contornos. Que resta daqueles costumes antigos, dos quais se disse terem sido a glria romana? O p do esquecimento que os cobre impede, no j que sejam seguido, mas conhecidos. Que direi dos homens? Sua penria arruinou os costumes; esse um mal cuja explicao foge ao alcance da nossa inteligncia, mas pelo qual somos responsveis como por um crime capital. Nossos vcios, e no outra causa, fizeram que, conservando o nome de Repblica, a tenhamos j perdido por completo 66.

    Agostinho no deixou de reconhecer certo senso natural

    de eqidade entre os antigos romanos: o honesto e o justo reinavam na conscincia como na lei. 67 Segundo Agostinho, h

    lampejos do senso natural de eqidade na alma racional humana, posto que o sentimento moral esteja arraigado no homem, de modo que nenhuma depravao poderia extingui-lo 68.

    Devido a este sentimento moral a repblica romana

    cresceu com rapidez incrvel, tornou-se excelente e formosa.

    Sendo suplantado apenas quando patrcios punham todo o

    esforo em sujeitar o povo, quando o povo se rebelava contra a servido e de parte a parte os chefes no eram inspirados pela

    razo e eqidade, mas possudos pela paixo de vencer 69. Este

    apetite de domnio, Agostinho nos afirma, de todas as paixes

    do gnero humano, o que mais embriaga a alma racional.

    Depois de vencer o mais poderoso inimigo (Cartago), os romanos

    entregaram-se aos vcios e mergulharam a vontade na corrupo.

    Os modernos romanos esqueceram que Roma no seu fundamento fora

    engrandecida pela virtude dos ancestrais, homens insignes,

    que mantinham os costumes antigos e as instituies dos

    66 CCERO, ibid., V, I, 2. (Os grifos so meus).

    67 AGOSTINHO, CD, liv. II, cap. XVII, p. 122.

    68 AGOSTINHO, ibid., p. 107.

    69 AGOSTINHO, ibid., p. 123.

  • 37

    antepassados 70.

    Atesta Agostinho, os velhos e primitivos romanos,

    segundo nos ensina e lembra a Histria... estavam vidos de

    louvor, eram desprendidos do dinheiro e queriam glria imensa

    e riquezas honestas 71. Os antigos romanos amaram a repblica

    com ardentssimo amor, por ela quiseram viver e no vacilaram

    a ponto de morrer por amor ptria, eis a nica ambio

    deles: morrer valentemente ou viver livre 72. O amor ptria

    era a virtude que engrandeceu o imprio romano. E a cobia da

    glria constituiu o freio de todas as demais cupidezes. Estes

    homens virtuosos, porque servir parecia-lhes desonroso, e

    senhorear e mandar, glorioso, quiseram a todo custo primeiro

    que sua ptria fosse livre, e depois, senhora 73. Eis o louvor

    de Agostinho aos velhos romanos: Expulso o rei Tarqunio, a

    cidade obtida a liberdade e inflamada por apaixonado amor

    gloria, cresceu com rapidez assombrosa 74. E continua, essa

    avidez de louvor e desejo de glria operou neles (nos antigos romanos) todas (as) faanhas louvveis e gloriosas 75.

    Podemos afirmar, sem sobras de dvidas, que o propsito

    da reflexo de Agostinho sobre Roma no outro seno mostrar

    que se Deus desejou a grandeza temporal obtida pelas virtudes puramente cvicas foi justamente para que no houvesse equvocos sobre o fim prprio das virtudes dos cidados da

    cidade de Deus. Se o mundo pode prosperar sem as virtudes

    crists, foi porque elas no tm em vista ganhar o mundo.

    70 AGOSTINH, ibid., p. 131.

    71 AGOSLTINHO, CD, liv V cap.XII, p. 271.

    72 AGOSTINHO, ibid., p. 272.

    73 AGOSTINHO, id.

    74 AGOSTINHO, id.

    75 AGOSTINHO, ibid., p. 272.

  • 38

    Assim ao mostrar por meio da opulncia e da glria do Imprio

    romano todo o que pode produzir as virtudes cvicas, inclusive

    sem a verdadeira religio, Deus dava a entender que a religio

    crist faz dos homens cidados de outra cidade em que a

    verdade reina, a caridade a lei, a durao a eternidade.

    A suficincia em sua ordem das virtudes polticas atesta a

    especificidade sobrenatural das virtudes crists em sua

    essncia e em seu fim. 76

    H, pois, um vestgio de certa ordem social do ponto de

    vista da histria de Roma. Por isso mesmo, justo que Roma enquanto organizao mundana, estabelecida por homens que se

    mundanizaram e criaram, a partir de seu amor pelas coisas

    terrenas, um mundo comum na terra 77, receba seu galardo

    neste mundo. Pois eles souberam pelo caminho da virtude amar

    aquilo que deve ser amado, a ptria terrena. Por amor a ela

    eles desprezaram seus prprios interesses.

    Compreende-se, com isso, o sentido prprio da definio

    de povo agostiniana:

    O povo o conjunto de seres racionais associados pela concorde comunidade de objetos amados e continua Agostinho, preciso, para saber o que cada povo, examinar os objetos de seu amor. No obstante, seja qual for, seu amor, se no o conjunto de animais desprovidos de razo, mas de seres racionais, ligados pela concorde comunho de objetos amados, pode, sem absurdo algum chamar-se povo. Certo que ser tanto melhor quanto mais nobres os interesses que os ligam e tanto pior quanto menos nobres. De acordo com isso, o povo romano povo e seu governo, repblica. A histria d testemunho do que esse povo amou em sua origem e nas pocas seguintes, de como se foram infiltrando as mais sangrentas sedies, as guerras civis, e de como se rompeu e se corrompeu a concrdia, que de certo modo

    76 GILSON, E. Las Metamorfosis de la ciudad de Dios. Biblioteca del

    pensamento actual. Ediciones Rialp, S. A. Madrid Mxico, 1963, p. 51. 77 LIMONGI, M.I. (texto no publicado).

  • 39

    a sade do povo. (...) Por isso, no diramos que no povo ou que seu governo no repblica, enquanto subsista o conjunto de seres racionais unidos pela comunho concorde de objetos amados. O que se diz de tal povo e de tal repblica torna-se extensivo ao povo de Atenas ou de outras regies da Grcia, ao do Egito, ao da primeira Babilnia dos assrios 78.

    Sabemos que para Agostinho, a condio fundamental para

    virtude nesta vida no outra seno amar o que deve ser

    amado. Agora para saber o grau de nobreza de um povo,

    preciso examinar os objetos de seu amor. Sendo assim, qual foi o objeto do amor do povo romano?

    i) A civitas terrena. Eles a amaram de tal

    maneira que se pode dizer que amaram o bem

    comum em detrimento ao interesse prprio,

    subjugando a torpe libido.

    ii) Amaram a liberdade e, por causa dela, buscaram a

    glria terrena, que considerada uma virtude porque

    signo do domnio da razo sobre os vcios.

    Conseqentemente, os romanos so considerados

    virtuosos, de acordo com Agostinho. Dado que eles sejam seres racionais, nosso autor julga que eles souberam usar a reta razo a fim de escolher - entre os bens temporais o que

    devia ser amado. digno de nota que, para Ccero e Agostinho, a sociabilidade do homem natural, mas tal sociedade no deve

    viver de qualquer modo.

    78 AGOSTINHO, CD, Liv. XIX, cap. XXIV, p. 189.

  • 40

    De acordo com Ccero, preciso viver segundo a reta

    razo. E viver segundo a reta razo viver virtuosamente.

    Mas isto no basta, como quer Ccero, preciso tambm

    estabelecer leis que obriguem a todos a cultivar a vida

    virtuosa. A lei , pois, o lao de toda sociedade civil e,

    por isso mesmo, os romanos podem ser considerados como um povo

    e no uma multido de homens de qualquer maneira congregados.

    Ccero argumenta que, ao amarem a civitas terrena, o

    interesse prprio cedeu lugar ao interesse comum no momento em

    que o objeto de interesse satisfaz a busca de cada um individualmente considerado. Neste sentido, a idia de um bem

    comum a todos determina as aes particulares porque satisfaz

    o interesse prprio. Ccero, no entanto, no descarta o

    interesse prprio como um dos elementos que compe a formao

    da civitas. Ele apenas pe em relevo que o amor ptrio a

    fora motriz que supera a busca da satisfao do interesse

    prprio em vista do interesse comum. Aos olhos de Agostinho, o

    problema consiste em que a civitas terrena um bem relativo e instvel,

    de modo que um nico vcio capaz de dissolver harmonia to necessria

    sua existncia, causando-lhe a runa.

    Nosso autor ir traduzir o interesse prprio como amor

    de si que s pode ser suplantado pelo amor a Deus. Ora,

    sabemos que o amor prprio funda a cidade terrena e o amor a

    Deus a cidade celestial. Aquela um bem instvel porque

    passvel de romper e corromper a concrdia. A cidade

    celestial, pelo contrrio, estvel, eterna e absoluta porque

    fundada no amor a Deus. Em Agostinho, o amor constitui-se o

    elemento essencial que define o que seja um povo e fundamenta uma cidade, correspondendo perfeitamente a ordem natural de

  • 41

    sua doutrina da ordem da caritas. Diz-nos o autor: dois amores

    fundaram, pois, duas cidades, a saber: o amor prprio a cidade

    terrena; o amor a Deus a celestial. 79 Sendo assim, o amor o

    centro a partir do qual se funda a concrdia, que a

    caracterstica essencial do povo.

    Tendo como pano de fundo a exigncia de Ccero de que a

    justia a pedra fundamental sem a qual no existe res publica, Agostinho com sua definio de populus torna tal

    conceito extensivo. Segundo a definio de Agostinho, para que

    um povo se constitua como tal no necessrio que reconhea

    em Cristo seu princpio de unidade; pelo contrrio,

    necessrio e suficiente que amem um bem comum. Mas tal

    afirmao no pode parar neste ponto, pois para Agostinho isto

    no basta para ser um povo justo, apenas no amor a Deus qualquer povo que seja pode ser intitulado justo. evidente que a ambigidade do conceito de amor em Agostinho suscita

    esse paradoxo, como bem observa Russell: a no-poltica da

    cidade de Deus no afeta a res publica em sua autenticidade.

    Pois a poltica tem sua consistncia prpria, uma estrutura

    prpria cujo elemento fundamental o amor a um bem terreno comum. Nesta perspectiva a estrutura poltica resulta dependente da

    estrutura ontolgica do homem, mas independente da f religiosa. Assim,

    se o amor poltico (politik philia) classicamente, diramos, greco-

    romano, a dualidade do amor que gera o paradoxo na anlise de Agostinho a

    respeito da res publica origina-se da reflexo iluminada pela f.

    79 AGOSTINNO, CD, liv. XIV, cap. XXVIII, p. 286.

  • 42

    1.4 A JUSTIA DA F COMO REGRA PARA AGIR

    Sob a luz da revelao, Agostinho entende que o

    vocbulo justia o conceito chave na economia da salvao, como se pode compreender a partir do comentrio do

    Arquillire, em sua obra Laugustinisme politique, essai sur

    la formation des thories politiques au Moyen Age (1934). Com

    efeito, a justia originria da f designa no s a regra do crer e do agir, mas tambm torna o homem justo diante de Deus, caracterizando-se, por conseguinte, como certo movimento no

    interior do corao do homem de tal maneira que excede em

    muito a justia proveniente da lei. Sem esta justia, jamais o homem poder entrar no reino dos cus 80 (regnum caelorum). Com

    base na literatura crist, Agostinho compreende, portanto, que

    a justia a condio necessria para entrar no reino dos cus, isto , na civitas Dei.

    Nesse sentido essa justia a comunicao do esprito da nova lei, qual seja amar a Deus e ao prximo como a si mesmo. Isso caracteriza o regnum de Cristo. Por

    conseguinte, tal justia se traduz cada vez mais como expresso da vida divina, espiritual e eterna pelo qual o

    homem se torna filho e herdeiro de Deus, e no apenas como a

    justia que distribui a cada qual o que lhe de direito no interior da civitas terrena.

    Para Agostinho, ainda conforme Arquillire, a vida

    terrena torna-se eterna medida que se liga Verbo feito

    carne. Tal afirmao tem como foco a prpria vida do Cristo.

    80 dico enim vobis quia nisi abundaverit iustitia vestra plus quam

    scribarum et Pharisaeorum non intrabitis in regnum caelorum.

  • 43

    Eis o argumento do comentador: Se Deus concede ao homem a vida

    eterna, a causa no outra seno o prprio Cristo. Foi por

    ele e para ele que se concedeu ao homem a vida divina,

    espiritual e eterna que se manifesta plenamente aos homens os

    quais a tem recebido. Agostinho insiste em afirmar que o Verbo

    feito carne a luz que ilumina todo homem que vem a este

    mundo, de modo que Cristo o autor e consumador da justia do homem. Para Cristo tende todo destino da humanidade.

    Essa rica concepo religiosa de justia se caracteriza por um dinamismo prprio. Ela ratifica o sentido moral da

    purificao da alma racional; livra os homens das mltiplas

    observaes ineficazes; interioriza e aprofunda a vida

    religiosa, de modo que homem moralmente forado a reconhecer

    sua condio decada. Ela um ato de f na mensagem do

    Evangelho, atravs do qual no se conhecem mais inimigos, pois

    todos so chamados pertencerem ao regnum caelorum.

    Como justia oriunda da f, ela tem a pretenso de ser universal, ou pelo menos poderia ser caracterizada como tal:

    todos so chamados a beneficiar-se da justificao operada por Cristo. Por conseguinte, a idia de justia oferecida pela obra redentora de Cristo e desenvolvida no Novo Testamento por

    Paulo, contrape-se justia que vem pela lei dada por Moiss.

    Arquillire interpreta Agostinho luz dos textos de S.

    Paulo. Na literatura Paulnia notria a declarao da

    universalidade de uma sociedade humana contra o particularismo

    apregoado pelos judeus no Antigo Testamento: no h mais gentil nem judeu; nem circunciso nem incircunciso; nem brbaro nem cita; nem escravo nem homens livres; mas Cristo tudo em

  • 44

    todos 81. No que diz respeito ao julgamento de Deus, no h, portanto, acepo de pessoas. Nesse enquadramento conceitual,

    justos no so aqueles que ouvem a lei, mas aqueles que observam os preceitos da lei, esses so tomados como justos 82. Observar a lei, ao contrrio do que se pode imaginar, no um

    privilgio de uma nao particular ou de um povo particular,

    como o povo judeu. S. Paulo reconheceu isso ao deixar entrever a possibilidade dos gentios observarem as prescries da lei

    escrita em seus coraes: justos no so aqueles que escutam a lei, mas os que a praticam. So suas estas palavras:

    Quando, pois, os gentios, que no tm lei, procedem por natureza em conformidade com a lei para si mesmo, estes mostram a norma da lei gravada nos seus coraes, testemunhando-lhes tambm a conscincia, e os seus pensamentos mutuamente acusando-se ou defendendo-se 83.

    Esse o n que deve ser desatado para compreenso do

    conceito de justia em Agostinho. Arquillire no deixa de afirmar que, embora a lei natural coincida com os preceitos

    do Declogo, ela insuficiente para conduzir o homem

    justia. Mas a despeito do carter deficiente da lei natural, tal como argumenta comentador, ela no perdeu seu

    carter normativo. Ao que parece, a questo saber se o homem

    capaz de derivar da lei natural a normatividade necessria

    para ao no mundo.

    81 ubi non est gentilis et Iudaeus circumcisio et praeputium

    barbarus et Scytha servus et liber sed omnia et in omnibus Christus. 82 non enim auditores legis iusti sunt apud Deum sed factores

    legis iustificabuntur. 83 cum enim gentes quae legem non habent naturaliter quae legis sunt faciunt

    eiusmodi legem non habentes ipsi sibi sunt lex qui ostendunt opus legis scriptum in cordibus suis testimonium reddente illis conscientia ipsorum et inter se invicem cogitationum accusantium aut etiam defendentium.

  • 45

    Ora, de um lado sabemos que a justia nascida da f no outra seno a justia divina, apenas ela pode vivificar a lei natural inscrita no corao do homem. Em outros termos,

    apenas quem criou a lei natural pode com propriedade reabit-

    la novamente. Do outro, compreendendo isso, Agostinho concebe

    outra definio de povo tendo como base a racionalidade e o

    amor, de modo que no se pode negar que qualquer povo possa

    receber o ttulo de povo, posto que subsista o conjunto de seres racionais unidos pela comunho concorde de objetos amados.

    O problema que ainda permanece saber: estaramos

    certos em afirmar que fora do mbito da caritas, isto , do

    amor a Deus no haveria justia? Dado que haja espao para justia tal como concebe Ccero, como se articula a justia divina e natural? Qual o conceito chave a partir do qual

    possvel estabelecer essa articulao? Devemos, no prximo

    captulo da dissertao, expor esse conceito em Agostinho.

  • 46

    CAPTULO II: LEI, JUSTIA DIVINA E ILUMINAO

    Neste captulo apresenta-se a lei como critrio

    articulador entre justia Divina e natural. Na seqncia expe-se a teoria da iluminao como condio para o

    conhecimento de ambas as justias.

    2.1 ORDEM UNIVERSAL

    Para Agostinho todo ser realiza em seu prprio lugar

    de acordo com a disposio que lhe convm o fim e a finalidade

    para qual foi criado. Sendo assim, todo ser existente est

    ordenado tendo em vista a harmonia do universo. Da disposio

    ordenada de cada ser seja consigo mesmo, seja com outro distinto origina-se a paz ordenada. A este respeito afirma-nos

    Agostinho:

    ... a paz do corpo a disposio harmoniosa de suas partes 84; a da alma irracional, o ordenado repouso dos apetites 85. A da alma racional a ordenada harmonia entre o conhecimento e a ao, a paz do corpo e da alma, a vida bem ordenada e a sade do animal. A paz entre o homem mortal e Deus a obedincia ordenada pela f sob a lei eterna. A paz dos homens entre si, sua ordenada concrdia. A paz da casa a ordenada concrdia entre os que mandam e os que obedecem nela; a paz da cidade, a ordenada concrdia entre governantes e governados. A paz da cidade celeste a ordenadssima e concordssima unio para gozar de Deus e, ao mesmo tempo, em Deus. A paz de todas de todas as coisas, a tranqilidade da ordem. 86.

    84 Traduo levemente corrida a partir da traduo francesa.

    85 Ibid.,

    86 AGOSTINHO, CD, liv XIX, cap. XIII, p. 169. (Os grifos so nossos). Texto

    em latim: Pax itaque corporis est ordinata temperatura partium, pax animae inrationalis ordinata requies appetitionum, pax animae rationalis ordinata cognitionis actionisque consensio, pax corporis et animae ordinata vita et salus animantis, pax hominis mortalis et Dei ordinata in fide sub aeterna lege oboedientia, pax hominum ordinata concordia, pax domus ordinata imperandi atque oboediendi concordia cohabitantium, pax civitatis ordinata imperandi atque oboediendi concordia civium, pax caelestis civitatis

  • 47

    Nesta passagem, que ser fundamental para o nosso

    terceiro captulo da dissertao, o termo fundamental a partir

    do qual todos os outros so articulados o termo ordem, que

    a condio necessria para que haja a paz. So evidentes os movimentos ascensionais estabelecidos pelo autor que indicam

    dois domnios de ordens, a saber, a ordem natural e a ordem da

    ao humana. Por enquanto, detemo-nos na exposio da ordem

    natural.

    Agostinho compreende que a lei eterna estabelece

    anteriormente a toda criao uma ordem natural que se expressa

    na lei natural, de modo que no se pode negar que h uma

    hierarquia cosmolgica e ontolgica87 na qual cada ser criado

    assume o lugar e a funo que propriamente convm em vista da

    sua intrnseca finalidade e da finalidade universal. 88 Neste

    ordinatissima et concordissima societas fruendi Deo et invicem in Deo, pax omnium rerum tranquillitas ordinis. Ordo est parium dispariumque reum sua cuique loca tribuens dispositio. Agostinho, La Cite de Dieu livres XIX-XXII. Bibliotheque Augustinienne, texte de la 4 edition de B. Donbart er A.Kalb. Introduction et notes par G.Bardy. Traduction Francaise de G. Combs. Descle de Brouwer, 1960, p. 109 - 110. 87 A argumentao agostiniana, como compreendemos, passa da exterioridade

    das coisas interioridade do esprito humano; depois da verdade que est presente no esprito ao Princpio de toda a verdade que justamente Deus. Para Agostinho ningum, dotado de racionalidade, pode furtar-se constatao de que Deus existe, uma vez a prpria Providncia evidenciou-Se de tal modo que no possvel ignor-Lo. Assim, Agostinho parte da perfeio do mundo Perfeio do Artfice. Nosso autor entende que as caractersticas da perfeio do mundo remontam quele que o criou, de modo que ao seguir a hierarquia dos seres e das coisas criados, a razo depara-se com algo que lhe superior, algo de absoluto, eterno e imutvel. Agostinho percorre, por conseguinte, degraus do ser medida que vai submetendo a vida como um todo anlise do menos para o mais importante; do inferior para o superior, do mutvel para o imutvel, de modo que ele estabelece em toda sua argumentao um escalonamento em cujo topo encontra-se Deus, Sumo Ser. De certa forma, como facilmente se pode concluir, Agostinho lana mo do neoplatonismo como instrumento para realizar seu projeto filosfico-teolgico. 88 Giorgianni entende que o conceito de um princpio racional que seja a

    causa eficiente de tudo e o conceito de ordem universal so, nos dizeres dele, correlativos. Pensando nessa correlao, o comentador afirma que uma concepo teleolgica do mundo requer que haja um princpio regulativo, de modo que as coisas criadas no se apresentam como elementos fragmentados e privados de conexo entre si sem ter harmonia; mas como parte organizada harmonicamente com o todo. Entretanto essa uma posio que no fcil de

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    captulo veremos que, como compreende Agostinho, a ordem

    inscrita no universo indica que h uma lei eterna que comanda

    todos os seres criados.

    2.2 LEI UNIVERSAL: lex aeterna

    A formulao completa dessa doutrina chegar ao

    conhecimento de Agostinho pelo neoplatonismo, especificamente

    por Plotino. Mas antes de Plotino, Ccero apresenta uma noo

    de lei universal que rege tudo:

    (existe por certo uma verdadeira lei), a razo reta, conforme natureza, gravada em todos os coraes, imutvel, eterna, cuja voz ensina e prescreve o bem, afasta do mal que probe e, ora com seus mandados, ora com suas proibies, jamais se dirige inutilmente aos bons, nem fica impotente ante os maus. Essa lei no pode ser contestada, nem derrogada em parte, nem anulada 89; no podemos ser isentos de seu cumprimento pelo povo nem pelo senado; no h que procurar para ela comentador ou intrprete; no uma lei em Roma e outra em Atenas, uma (agora) e outra depois, mas uma, sempiterna e imutvel, entre todos os povos e em todos os tempos; uno ser sempre o seu imperador e mestre, que Deus (que inventa, interpreta e prope), no podendo o homem desconhec-la sem renegar-se a si mesmo, sem despojar-se de sua (natureza humana) sem atrair sobre si a mais cruel expiao... 90.

    resolver, pois no parece ser evidente para uma tradio aristotlica, por exemplo, que uma concepo teleolgica requeira um princpio regulativo. Limito-me a dizer que esse um debate que foge ao escopo dessa dissertao. 89 O vocbulo latino empregado aqui o vocbulo faz que indica um direito

    divino que no pode ser violado. 90 Ccero, Da Repblca, Os Pensadores Abril Cultural 1 edio jun/1973,

    Livro III, p. 178. Texto levemente corrido. Texto em Latim: ... Est quidem uera lex recta ratio, naturae congruens, diffusa in omnis, constans, sempiterna, quae uocet ad officium iubendo, uetando a fraude deterreat, quae tamen neque probos frustra iubet aut uetat, nec inprobos iubendo aut uetando mouet. Huic legi nec obrogari faz est, neque derogari aliquid ex hac licet, neque tota abrogari potest, nec uero aut per senatum aut per populum solui hac lege possumus, neque est quaerendus explantor aut interpres. Sextus Aelius, nec erit alia lex Romae, alia Athenis, alia nunc, alia posthac, sed et omnes gentes et omni tempore una lex et sempiterna et

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    O pensamento pr-cristo possui, segundo compreende

    Giorgianni, uma juridicidade universal cuja norma o homem participa em grau elevado 91. No seria exagero dizer que o

    pensamento de Agostinho estava impregnado da literatura de

    Ccero e Plotino que expressava essa doutrina. Entretanto,

    enquanto a cultura greco-latina concebe a lei imanente ao

    universo, a literatura crist apresentar outro conceito de

    lei fundado no que transcendente ao universo criado. De modo

    que se em Ccero e em Plotino afirma-se uma lei imanente ao

    universo eterno e incorruptvel em que a conexo causal e

    determinante das coisas o fim da providncia, na literatura

    crist apresenta-se um Deus criador e ordenador do mundo. 92.

    Ao contrrio da cultura greco-latina, Agostinho, tendo

    como base a literatura judaico-crist, concebe a lei eterna dependente de Deus. Para nosso autor, a lei eterna a razo e

    vontade de Deus na medida em que a vontade de Deus a lei de

    Deus; e sendo a lei do universo , por conseguinte, o governo

    divino sob sua criao, de modo que Deus no apenas desejou como tambm ordenou a criao. Nesse sentido, ordem a

    expresso da razo divina no mundo criado.

    Deus no s deu ser as coisas, como tambm deu o

    princpio de ordenao segundo o qual cada um dos seres

    criados deve regular a prpria atividade para no deixarem de

    inmutabilis continebit unusque erit communis quase magister et imperator omnium deus: ille legis huius inuentor, disceptator, lator; cui qui non parebit, ipse se fugiet ac naturam hominis aspernatus hoc ipso luet mximas poenas, etiamsi cetera supplicia quae putantur effugerit. (Lact., inst. 6,8, 6-9). 91 Giorgianni, Il Conceito Del Diritto e Dello Stato in S. Agostino. CEDAM

    casa Editrice Dott. Antonio Milani PADOVA, 1951, p. 58. 92 GIORGIANNI, ibid., p. 58-59.

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    ser (alioquin nihil esset omnino) 93. Dessa maneira, ela

    apresenta-se como a lei pela qual justo que tudo esteja em perfeita ordem: lex aeterna est ea qua iustum est ut omnia

    sint ordinatissima; sendo assim, injusto o que est fora da ordem: porque no se pode falar de ordem justa, sequer simplesmente de ordem, onde as coisas melhores esto

    subordinadas s menos boas 94.

    Na concepo de Agostinho, a lei eterna ordena observar

    a ordem natural, isto , a justa disposio das partes iguais e desiguais, e probe sua alterao: lex vero aeterna est

    ratio divina vel vo