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CAPÍTULO 1: “O Servo Miserável”
Era uma noite fria e chuvosa de lua cheia, primeiro de dezembro de 1890. Névoa negra
espessa, ambiente de trevas e escuridão em uma pacata, isolada e entediante cidade de se viver.
Sequer podia ser considerada uma cidade. Tudo era mato. Pode-se dizer que criaturas sombrias
espreitavam-se nos becos escuros ao aguardo de uma presa fácil e indefesa para trucidá-la e
alimentarem-se de sua carne, sangue e alma. Se tais seres não se manifestaram, foi graças ao lampião de
um jovem apressado que carregava um pequeno bebê, envolto em um pano gasto e amarelo, em seus
braços. Os passos corridos, que pisavam na terra molhada e poças d’água, ressoavam por aquele lugar conforme se aproximavam de uma humilde, impura e
velha casa em meio ao nada, escondida entre as árvores sombrias.
O jovem, de doze anos de idade, se chamava René. Ele não era, nada mais nem nada menos, que
um mero pobre, infeliz, miserável, lamentável, deplorável, infortunado, inútil, insignificante,
desprezível e tolo humano destinado a sofrer pelo
resto de sua pútrida vida. O bebê de gênero desconhecido, você pergunta? Ele não era tão
importante. Não é necessário saber sobre ele e de nada acrescenta à história.
O garoto se protegia da chuva apertada conforme resguardava o pequeno bebê em seus
braços, caminhando em passos corridos até a casa de madeira gasta. Bastaria um segundo de sua distração
perante as ilusões ao seu redor, formadas por sombras mescladas de plantas e árvores, para
perder-se no caminho. Dentre as formas escuras e abstratas que a visão e imaginação do pobre René
criava, por instantes, ele jurou ter visto a silhueta de um lobo ou cachorro peludo, de olhos cor-de-sangue.
Assustou-se no mesmo segundo. Porém, quando olhou novamente, o animal desconhecido de pelagem negra já não estava mais lá. Mesmo
confuso, René prosseguiu seu caminho. Só uma das janelas da casa emitia luz o suficiente para que ele
enxergasse onde estava indo. Parou diante da porta e bateu seis vezes, ritmicamente, quase como se
aquilo servisse para, quem quer que fosse a besta devoradora de sonhos que residisse lá dentro, que o
identificasse na hora. Uma mulher de meia-idade horrível, repugnante e de cheiro podre, tal como um
cadáver, atendeu às batidas e abriu a porta de madeira velha, provocando um ranger quase
ensurdecedor.
- Até que enfim. – Resmungou a criatura de cabelos pretos emaranhados. – Estava demorando muito. - Perdão, Mestra. – Disse o jovem covarde. – A
chuva estava apertando e... - Cale a boca. Não perguntei nada! - Perdão, Mestra... - Cadê o bebê?
O jovem explorado estendeu o frágil e miúdo
ser para ela. Mesmo para um bebê nascido há poucas semanas, era capaz dele ter pesadelos
desagradáveis com aquela mulher tão repudiável, pior que qualquer monstro já criado pela imaginação
de uma criança, enquanto dormia. Era uma sanguessuga de felicidades encarnada em um corpo
humano.
- Não quero segurar essa coisa suja! – Exclamou a mulher ranzinza. - Perdão, Mestra. - Tá esperando o quê? Entra logo!
O garoto adentrou à casa. A triste e cruel verdade sobre o bebê em seus braços é que os
generosos pais do mesmo já não estavam mais vivos para aconchegá-lo. O valente e azarado pai se foi ao ser devorado por um lobo enquanto caçava a janta
daquela noite. A pobre e amável mãe não suportou a morte brutal de seu único companheiro e se atirou de um penhasco da região. Sabendo dos trágicos
eventos, sua velha tia ordenou ao maltratado servo René que trouxesse a criança para sua casa... Apenas
para, num futuro próximo, fazê-la sua escrava, também. O pobre René tornou-se um após sua mãe,
uma gentil e miserável empregada, enfraquecer devido a uma doença incurável. Ficou tão enferma a
ponto de não conseguir mais se levantar da cama. Seu amado e único filho começou a substitui-la nos afazeres até ela, enfim, morrer. O garoto, então, foi “acolhido” pela tia monstruosa do pequenino bebê
dorminhoco.
Como eu sei disso? Eu estava lá, ora. Eu sei de muitas coisas. Coisas que corrompem a sanidade de
qualquer mero mortal e imortal. Coisas tristes, deploráveis, agoniantes e horríveis ao molho
sangrento de inocentes com um gosto amargo. Veneno faz parte da receita. Corrói sua essência e te
torna outra coisa não mais consistente e nem consciente. Todos têm um monstro dentro de si.
Alguns o libertam facilmente e, outros, não. Alguns o
alimentam com carne fresca e crua. Já outros, deixam-no passar fome até chegar a hora em que este monstro romperá a grade de sua jaula para
saciar-se com seu próprio dono. E, ainda, há aqueles que usam e abusam de sua fera interior, tornando-a parte de si. Prazer, este sou eu. O meu nome? Não é
necessário saber, apesar de me chamarem por “Diabo”. Não sou a entidade maligna que os
humanos tanto acreditam e temem, se é o que está pensando. Esta é, simplesmente, a minha alcunha.
Ah, e a tal entidade não existe... Mas eu, sim.
- Escuta, garoto, você e esse pedaço de aborto fizeram uma longa viagem até aqui. Vá descansar que amanhã quero que acorde bem cedo pra limpar a telha. Vai logo!
O jovem servo obedeceu sua velha mestra. Caso não seguisse suas ordens, ele seria, friamente,
punido com chicotadas em suas costas. Não era possível ver as cicatrizes graças à sua roupa que as
cobriam. Mas, com certeza, eram marcas que seriam levadas pelo resto de sua insignificante vida. Isso porque não citei os traumas psicológicos. A velha adorava passar o tempo torturando o corpo nu do pobre René desde que sua mãe fora embora para
nunca mais voltar. Enquanto amarrado nos pulsos e tornozelos por apertadas cordas, algumas torturas
consistiam em: Apertar sua língua com um alicate aquecido ao fogo, cravar agulhas por baixo de suas
unhas, enfiar fósforos acesos dentro de seu umbigo, perfurar seus mamilos com agulhas, puxando e empurrando por várias vezes seguidas e muitas outras formas pequenas, mas suficientes, para
agoniar o pobre René. E que dó dele caso gritasse, tentasse fugir ou reagir. Mais chicotadas o
aguardavam. Além disso, o miserável garoto não podia mais sequer ser referido como “garoto”. Numa noite de castigo e punição, seu membro genital fora, violentamente, destroçado por sua odiosa mestra ao bater-lhe com um martelo e cortá-lo fora com uma
faca de cozinha. Apenas digo que, perto das minhas, as torturas desta monstra desgraçada não passam de meras cócegas. Beber sangue com uma pitada de sal natural de lágrimas é uma delícia para meu paladar.
O escravizado René levou a criança até o lugar
destinado: Um escuro, sujo e apertado sótão. Aquilo era o quarto das crianças órfãs. Um colchão velho e
gasto estava caído ao chão para ser a cama “confortável, macia e quentinha”. O pobre René
pôde ver, por instantes, um besouro verde-musgo rastejar-se de um dos buracos para outro por entre
os cortes rasgados do tecido. Fez cara de nojo e reprovação, mas não tinha como e do que reclamar.
Ou isso, ou o chão duro e frio – que era quase a mesma coisa.
- Me perdoe, mas é aqui que vamos dormir. – Lamentou o explorado rapaz para o bebê em seu colo. – Não se preocupe. Sua tia... É assim mesmo. Logo, você irá se acostumar. Abraçado ao bebê e sem um cobertor, ele se deitou
ali no colchão gasto em meio à escuridão que cercava aquele pequeno sótão. Tentava manter o bebê
confortável em seus braços usando de seu próprio calor humano para aquecê-lo naquele ambiente frio, silencioso e vazio. O deplorável René ainda ficou, por
alguns poucos minutos, observando o teto de seu apertado e imundo “quarto”. Ele desejava o carinho e aconchego que só sua amada mãe tinha para lhe
dar. O garoto possuía feições lamentáveis, feições de quem já não suportava mais tamanho sofrimento e
estava suplicando que um milagre do além e do desconhecido o poupasse. Ele virou seus cansados
olhos negros para a criança deitada ao seu lado e riu. Como ela conseguia dormir tão profundo e
confortavelmente diante de todo aquele lar de dor e tristeza? Talvez, fosse o pano que a cobria ou, ainda, os braços sofridos cheios de cicatrizes e proteção que
o pobre René tinha para com sua única companhia, seu único amigo para desabafar, por mais que fosse apenas um bebê sem conhecimento da malícia que
havia ao seu redor. Sorte a dele que desconhecia dos infernos e tormentos que aconteciam no mundo em
que nasceu. Desconhecia o mal – puro, cru e nu,
como realmente é. Mesmo com todas as desgraças e tragédias, ele dormia tão bem... Parecia até que
estava morto. Respirava suavemente e não acordava. Seu singelo rosto de quem só sabia cochilar, cada vez mais, enfeitiçava o maltratado René até ele, também,
cair em sono profundo. O garoto dormiu com frio, fome, lástima e miséria.
Ele precisava de alguém que o defendesse e protegesse, certo?
Pois foi aí, então, que eu agi.
CAPÍTULO 2:
“O Alumiado Infeliz”
Pode-se dizer que o desolado René dormiu feito uma pedra por um bom tempo. Ele sonhou que
havia se tornado rei de um lugar encantado, próspero de paz e amor. Sua coroa de flores, com lindas e coloridas pétalas perfumadas, no entanto, era grande demais para sua cabeça de mero garoto
de doze anos. Todos do reino estavam felizes e cheios de esperanças em seus corações bondosos. De fato, um mundo perfeito, sem pecados e crimes. Um sonho e tanto para alguém como ele que, até então,
sobrevivia da pior forma possível.
Ele despertou e, logo, assustou-se. A pequena criança já não estava mais em seus braços. Ele olhou perdido para os lados, procurando por algum rastro. Sequer encontrava o pano que embalava o bebê. Se levantou e começou a investigar por entre os móveis
e tralhas empoeiradas que ocupavam parte do pequeno espaço daquele sótão tenebroso. Nada
encontrou. Embora o pobre René quisesse, mais que tudo, aproveitar seu único momento de sossego,
também estava ansioso e nervoso para encontrar a criança perdida. Caso sua mestra desse falta do frágil
bebê, o indefeso rapaz é quem pagaria com seu corpo por isso. Não encontrou a maldita criança em
lugar algum do sótão sujo. O desesperado René, então, pensou em procurá-la pelo resto da casa.
Porém, ao abrir a porta do sótão que daria para as escadas da sala de estar, nosso miserável René já não
estava mais naquela casa horrível, lar de dor e esperanças mortas. Estava em meu mundo...
Afiadas garras vermelhas brotadas da terra rochosa e negra de um lugar obscuro e enigmático onde a pouca iluminação provém de uma lua cheia,
também, avermelhada, como se estivesse imunda de sangue. Quase tudo neste lugar provém desta cor, é claro. Quando a morte faz parte do cotidiano, não há
surpresas escondidas. O pobre René, confuso, atravessou a porta para observar aquela paisagem de
desolação mais de perto. Um vento “acidental” assoprou na porta, fechando-a. Mal sabia o ingênuo René que, com isso, ele nunca mais poderia voltar
para aquela casa horrenda. O garoto a abriu novamente, na tentativa de quebrar tal regra e,
então, a porta tornou-se inútil. Estava de pé em meio à uma estreita trilha de areia naquele cenário nada
indicado para uma criança fraca e solitária, como ele, passear. Era tarde demais para voltar e o pobre
garoto só pensava em procurar pelo pequeno bebê. Talvez, ele estivesse por aqui. Quem sabe? Eu sei, mas não quero estragar surpresas. Gosto de dar
esperanças a corações maltratados para, depois, arrancá-las com fúria a ponto de, também, puxar suas artérias. Repetir esse processo chega a ser
hilário. Como um condenado ainda consegue acreditar que será poupado de seu destino
enclausurado e torturante? Faz parecer que gosta de sofrer. Por isso, repito todo o procedimento.
Um brilho repentino de luz cegou os olhos negros do desorientado René. Que força aquela luz
tinha! Parecia ser a esperança deste lugar amaldiçoado. Uma luz no fim do túnel que fez o
rapaz proteger sua visão.
- Quem está aí? Era um ser de corpo humano jovial, com uma
grande asa de penas brancas. Era o guardião de todos os desorientados desta terra. Muitos iguais a
ele já existiram e guiavam vários seres desnorteados aos seus devidos destinos. Eu desintegrei todos eles. Por quê? Não sei bem dizer de uma forma que você entenda ou aceite sem me julgar, mas foi divertido.
Foi só por isso. E, sendo o único da espécie para proteger e guiar, é claro que o solitário ser encheu-se
de amargura e rancor. Eu não quis matá-lo. Não foi por dó ou qualquer sentimento piedoso. Eu apenas
gostaria de ver o que aconteceria caso eu eliminasse toda a sua raça e o deixasse só, para cuidar de tudo, sem ter o apoio de mais ninguém. E ainda lhe deixei
um brinde: Arranquei-lhe uma das asas, puxando dos ossos e rasgando da carne e pele em suas costas. Foi fácil como puxar uma flor presa à terra pelas raízes, exceto por um detalhe, no mínimo, inspirador para
ter-me dado vontade de fazer isso: Flores não gritam e nem choram quando estão sofrendo, mas criaturas como ele, sim. Isso não é excitante para alguém que
está em um dia tedioso?
O ser luminoso avistou o perdido René e diminuiu o brilho da própria luz que seu corpo emitia para ir de encontro a ele. A pobre criatura alada não
estava nada contente com sua vida. Lágrimas luminosas não paravam de escorrer e pingar de seus olhos brancos. Ao chegarem no chão, como é típico
de sua espécie, as lágrimas se solidificavam e formavam pequenas pedras brilhantes. Sua vida
estava arruinada graças a mim. Valeu a pena – e uma asa inteira. Faria de novo, se pudesse. Obrigado e de
nada.
- Quem é você? – Perguntou René. - Me chamo Misrael. – E este mostrou sua asa,
enorme e acesa.
- Você é um anjo? - Não sei o que você pensa que sou, mas sou o único
daqui. Agora, venha. É perigoso juntar-se às sombras.
O triste e desalmado “anjo” segurou na mão do perdido garoto e o guiou por entre a escuridão.
Enquanto caminhava, o preocupado René ouviu sons baixos e estranhos. Havia algo ali, próximo deles,
bem atrás. Graças à luz de Misrael, o assustado René pôde ver uma cobra negra, de olhos vermelhos,
rastejar-se logo atrás de seus passos. No entanto, quando o garoto a notou, o animal logo afastou-se como quem não quisesse ser percebido. A luz do deplorável Misrael afastava energias negativas,
embora todo este lugar seja movido a isso. Tudo o que você encontrar aqui, por mais que se julgue
errado e até grotesco, é tão normal quanto viver de mentirinha em um mundo que se diz pacífico, mas que destrói a si mesmo com guerras movidas pelo ódio. Aqui, não é tão diferente assim, mas é tudo
explícito.
- Para onde está me levando? – Perguntou René. - Para o lugar de refúgio mais próximo daqui.
- Onde eu estou, afinal?
“Este é um lugar que não deve ser visitado. Um lugar onde, quem não morrer, irá enlouquecer.
Um lugar onde podem roubar sua alma e alimentarem-se dela, ainda presa a você. É como se
puxassem seu coração do peito, ainda pulsando, ainda batendo, ainda lhe mantendo vivo, e
mordessem cada pedaço enquanto você agoniza em dor sem poder fazer nada a não ser sofrer. Bem-
-vindo à Cemitária, o seu novo inferno”. Foram as palavras do triste ser alado que chorava pedras
luminosas. Nem é necessário dizer o quão chocado e agoniado o pobre e fraco René ficou no momento.
Sua pele gelou, seu coração palpitou, uma sensação nervosa e desconfortável lhe subiu pelo corpo, dos
pés à cabeça. Mesmo para quem já estava acostumado a ser torturado cruelmente, saber que poderia correr o risco de tornar-se entretenimento
de alguma outra abominação sádica, fez-lhe respirar forte e arregalar seus olhos de medo e aflição.
- Espera... Isso é um sonho ruim. – Disse o trêmulo René. – Não é? - Se for, eu gostaria de poder acordar. – Respondeu
o tristonho Misrael. – Mas não é. Nesse caso, eu gostaria de poder dormir para nunca mais acordar.
- Eu só estava procurando alguém... Você viu um
bebê por aí? – Certamente, esta será a pergunta que o garoto mais fará durante o conto inteiro. – Estava embalado em um pano amarelo... - Eu só posso ver aquilo que está ao alcance de
minha luz. Nada mais.
A criatura alada e desolada, conforme
desabafava seus tormentos, acompanhava o assustado René para a Grande Luminária, uma torre
cuja esfera em seu topo, quando acesa, clareava grande parte da região ao seu redor. Sua luz
alcançava, até mesmo, as regiões mais distantes. Literalmente, era capaz de transformar a escuridão
em luz. No entanto, naquele momento, estava apagada e a luz do lamentável Misrael era a única coisa acesa em meio às trevas. Guiando o pobre
René, o ser de uma só asa adentrou ao local e subiu as escadas até a torre, dentro da imensa esfera de
vidro. Ao centro, preso no ladrilho sujo e empoeirado, um pequeno e profundo
compartimento de ferro para guardar fontes de luz.
- Fique com um pouco de mim. Será muito útil. – Disse o deplorável Misrael.
- Um pouco de você? Como assim? - Lhe darei algumas lágrimas e dentes. - Por quê? - Para acender a Grande Luminária. Quero que você
pegue minhas lágrimas e as jogue dentro deste compartimento. A torre acenderá. Você pode ficar com algumas delas para se guiar na escuridão quando a torre se apagar. E os dentes são para o caso de precisar pagar por algo. Fique longe das garras e se proteja nesta torre por enquanto. Vai chover. - Eu não entendo... Do que está falando?
A criatura alada dirigiu-se ao compartimento preso no chão. Sem hesitar, bateu seu rosto
encharcado de lágrimas contra ele, usando toda a força que ainda tinha e aproveitando-se do duro
material que o compunha. Bateu de novo, e de novo, e de novo, e de novo, e de novo... O compartimento manchou-se de sangue azul. Batia sem parar e sem se importar com a dor. O agoniado René se afastou, recolhendo-se em um dos cantos do local conforme
gritava para Misrael parar com aquilo.
- O que pensa que está fazendo!? Pare! Está se machucando!
Mas Misrael não lhe deu ouvidos. Continuou atirando sua face contra o objeto de ferro. Alguns dentes caíram no chão, juntando-se às lágrimas da
criatura alada que se petrificavam durante a queda. Pedras luminosas e dentes se banhavam em sangue azul no piso, ao redor dos pés de Misrael que, cada vez mais, se atirava contra o compartimento. Mais
dentes caíram até ele, enfim, cessar. Seu rosto marcado, deformado e imundo de seu sangue fez o
aflito e trêmulo René gritar de pavor. E, mesmo naquele estado tão grave e doloroso, ele ainda
conseguia andar. Cambaleou em passos corridos para um dos lados da esfera até bater contra o vidro e, enfim, quebrá-lo, caindo para sua morte. A esfera
não se quebrou por inteira, apenas um pedaço.
Diante do olhar arregalado do aflito René, Misrael jogou-se e se recusou a voar. Caiu contra o
jardim de garras. A terra, sedenta por alimento, usou de suas mãos vermelhas para puxar a desolada
criatura, de forma bruta, para dentro, sugando-o, enterrando-o vivo enquanto o devorava, pouco a
pouco. Desta vez, era impossível Misrael gritar, por mais que sentisse seu corpo perder o brilho, a carne e a forma. Estava soterrado, sendo arrastado para
mais fundo, sem parar, desintegrando-se, destroçando-se e espalhando cada mínimo resto de
seu corpo pela terra negra. Esta é uma das atrocidades que há na natureza deste lugar. É isso
que acontece quando se pisa na terra proibida. Sons desagradáveis de terra movendo-se e carne
rasgando-se. E, como Misrael proferiu, eis que o céu começou a pingar. Não foi água, mas um estranho
líquido azul. O pobre René pôde vê-lo pingar sobre a esfera de vidro e escorrer para os lados, bem acima
de sua cabeça atordoada pelas coisas horríveis e truculentas que acabou de presenciar. O agoniado
garoto pôs-se a chorar.