Agricultura Familiar Multifuncionalidade e to Territorial No Brasil

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Copyright by Ademir A. Cazella, Philippe Bonnal, Renato S. Maluf (orgs.) et alii, 2009 Direitos desta edio reservados MAUAD Editora Ltda. Rua Joaquim Silva, 98, 5 andar Lapa Rio de Janeiro RJ CEP: 20241-110 Tel.: (21) 3479.7422 Fax: (21) 3479.7400 www.mauad.com.br

Imagem da capa: Dolmar Cazella(Gravura sem ttulo)

Capa: Paula Cavalcanti Projeto Grco: Ncleo de Arte/Mauad Editora Reviso: Brbara Mauad

CIP-BRASIL. CATALOGAO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ. A224 Agricultura familiar : multifuncionalidade e desenvolvimento territorial no Brasil / Ademir A. Cazella, Philippe Bonnal e Renato S. Maluf organizadores. - Rio de Janeiro: Mauad X, 2009. Inclui bibliograa ISBN 978-85-7478-292-8 1. Agricultura familiar - Brasil. 2. Desenvolvimento rural - Brasil. I. Cazella, Ademir A. II. Bonnal, Philippe. III. Maluf, Renato S. 09-0658. CDD: 338.10981 CDU: 338.43(81)

SUMRIO

SOBRE OS AUTORES PREFCIO Jacques Remy APRESENTAO PARTE I TERRITRIOS, DESENVOLVIMENTO TERRITORIAL EMULTIFUNCIONALIDADE DA AGRICULTURA FAMILIAR

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Cap. 1 Olhares disciplinares sobre territrio e desenvolvimento territorial Ademir A. Cazella Philippe Bonnal Renato S. Maluf Cap. 2 Multifuncionalidade da agricultura familiar no Brasil e o enfoque da pesquisa Ademir A. Cazella Philippe Bonnal Renato S. Maluf Cap. 3 Polticas de desenvolvimento territorial e multifuncionalidade da agricultura familiar no Brasil Philippe Bonnal Renato S. Maluf PARTE II OS ESTUDOS DE CASO Bloco 1 Territrios de poltica pblica: institucionalidades convergentes e divergentes Cap. 4 Projetos coletivos de desenvolvimento territorial no entorno de Campina Grande (PB) o elo faltante da multifuncionalidade da agricultura familiar Marc Piraux Philippe Bonnal

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Cap. 5 Dilogos entre a multifuncionalidade da agricultura familiar e os projetos coletivos de educao do campo e da agroecologia no Norte do Esprito Santo 137 Joo Carlos Saldanha Ldia Antongiovanni Paulo Cesar Scarim Cap. 6 Dinmicas territoriais, projetos coletivos e as complexidades das reas de fronteira agrria: o caso da regio de Marab, Par 167 William Santos de Assis Fbio Halmenschlager Myriam Oliveira

Cap. 7 Multifuncionalidade da agricultura e diferenciao territorial no Sul uminense: uma perspectiva em termos de cesta de bens Georges Flexor Zina Caceres Benavides

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Bloco 2 Construes sociais de territrios: arranjos produtivos, projetos e poltica Cap. 8 Dinmicas territoriais e desenvolvimento rural em uma regio de agricultura familiar modernizada: o caso do Vale do Taquari, RS Leonardo Beroldt Osmar Tomaz de Souza Marcos Daniel S. de Aguiar Eduardo E. Filippi Cap. 9 Desenvolvimento territorial e multifuncionalidade da cafeicultura familiar no Sul de Minas Gerais Miguel Angelo da Silveira Paulo Eduardo Moruzzi Marques Cap. 10 Impasses do desenvolvimento territorial na serra catarinense: limitao agroecolgica em face da expanso do deserto verde Ademir A. Cazella Fbio Luiz Brigo Cap. 11 Limites e possibilidades da construo de territrios de desenvolvimento na regio serrana do Rio de Janeiro Maria Jos Carneiro Betty Nogueira Rocha Cap. 12 Multifuncionalidade da agricultura familiar e territrio: avanos e desaos para a conjuno de enfoques Ademir A. Cazella Philippe Bonnal Renato S. Maluf

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SOBRE OS AUTORES

ADEMIR ANTONIO CAZELLA Engenheiro agrnomo, mestre em Desenvolvimento Rural pelo CPDA/ UFRRJ e doutor em Ordenamento Territorial pela Universit Franois Rabelais de Tours (Frana). Professor do Programa de Ps-graduao em Agroecossistemas da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). BETTY NOGUEIRA ROCHA Economista, mestre e doutoranda do Curso de Ps-graduao de Cincias Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e bolsista da Faperj. EDUARDO E. FILIPPI Economista, doutor em Economia Poltica pela Universit de Versailles Saint-Quentin-en-Yvelines e professor no Departamento de Cincias Econmicas, no PPGE e PGDR da UFRGS. Pesquisador em Economia Ecolgica e em Desenvolvimento Territorial. FBIO LUIZ BRIGO Engenheiro agrnomo, mestre em Agroecossistemas e doutor em Sociologia Poltica pela UFSC. Consultor do Ministrio do Desenvolvimento Agrrio, do Ministrio da Integrao Nacional e dos sistemas cooperativos solidrios. FBIO HALMENSCHLAGER Licenciado em Cincias Agrrias, mestre em Agriculturas Familiares e Desenvolvimento Sustentvel (Neaf/UFPA), professor na Faculdade de Engenharia Florestal da Universidade Federal do Par, campus de Altamira, e pesquisador do Laboratrio Agroecolgico da Transamaznica (Laet).AGRICULTURA FAMILIAR

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GEORGES FLEXOR Economista e doutor em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade pelo CPDA/UFRRJ. Professor adjunto do Departamento de Histria e Economia do Instituto Multidisciplinar da UFRRJ e membro do Observatrio de Polticas Pblicas para a Agricultura (Oppa/UFRRJ). JOO CARLOS SALDANHA Doutorando CPDA/UFRRJ e professor do Depto. de Cincias Sociais da Ufes. LEONARDO BEROLDT Engenheiro agrnomo, mestre em Fitotecnia (UFRGS) e doutorando em Desenvolvimento Rural (PGDR/UFRGS). LDIA ANTONGIOVANNI Doutora em Geograa pela UFF e bolsista ps-doutorado pela Fapes. MARC PIRAUX Doutor em Agronomia e pesquisador do Cirad sobre desenvolvimento territorial e sustentvel. Professor visitante na UFCG/Ps-graduao em Cincias Sociais e assessor da Embrapa, ASA e SDT/MDA. MARCOS DANIEL SCHMIDT DE AGUIAR Gegrafo da Secretaria da Agricultura do Estado do Rio Grande do Sul. Mestre em Geograa (UFSC, 2006) e doutorando em Desenvolvimento Rural (PGDR/UFRGS). MARIA JOS CARNEIRO Antroploga, doutora em Antropologia, professora do CPDA/UFRRJ, bolsista do CNPq e bolsista do programa Cientista do Nosso Estado, Faperj, 2007-2008.

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SOBRE OS AUTORES

MIGUEL ANGELO DA SILVEIRA Doutor em Cincias da Comunicao (USP) e pesquisador da Embrapa Meio Ambiente na rea de desenvolvimento rural sustentvel. MYRIAM OLIVEIRA Agrnoma, mestre em Agriculturas Amaznicas, doutoranda do PGDR/ UFRGS, professora do Ncleo de Cincias Agrrias e Desenvolvimento Rural da Universidade Federal do Par (UFPA) e pesquisadora no Laboratrio Socioagronmico do Tocantins (Lasat). OSMAR TOMAZ DE SOUZA Economista e doutor em Desenvolvimento e Meio Ambiente (UFPR) com estgio de doutorado na Universit de Paris X - Nanterre. Professor/Pesquisador da Face e do Programa de Ps-graduao em Economia da PUCRS. PAULO CESAR SCARIM Doutor em Geograa pela UFF e professor no Departamento de Geograa da UFES. PAULO EDUARDO MORUZZI MARQUES Professor e pesquisador do Departamento de Economia, Administrao e Sociologia e do Programa de Ps-graduao Interunidades em Ecologia Aplicada, Esalq/USP. PHILIPPE BONNAL Economista, pesquisador do Cirad (Frana) e pesquisador convidado do CPDA-UFRRJ, onde integra o Observatrio de Polticas Pblicas para a Agricultura (Oppa/UFRRJ). RENATO S. MALUF Economista e doutor em Economia e professor do CPDA/UFRRJ, onde coordena o Centro de Referncia em Segurana Alimentar e Nutricional e integra o Observatrio de Polticas Pblicas para a Agricultura (Oppa/UFRRJ).AGRICULTURA FAMILIAR

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WILLIAM SANTOS DE ASSIS Doutor em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade (CPDA/UFRRJ), professor do Programa de Ps-graduao do Ncleo de Cincias Agrrias e Desenvolvimento Rural da Universidade Federal do Par (UFPa/Marab) e coordenador do Laboratrio Socioagronmico do Tocantins (Lasat). ZINA ANGELICA CACERES BENAVIDES Economista pela Universidade Nacional Mayor de San Marcos (Peru), doutora em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade (CPDA/UFRRJ) e pesquisadora em sistemas de produo tradicional e novos mercados de qualidade.

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SOBRE OS AUTORES

PREFCIO

L se vo dez anos desde que foi debatida, emendada, votada e depois promulgada, em 9 de julho de 1999, a Lei de Orientao Agrcola na Frana, sugerida pelo governo socialista de Lionel Jospin e seu ministro da agricultura, Louis Le Pinsec, e executada logo em seguida pelo seu sucessor, Jean Glavany. Em seu primeiro artigo, evocava a tripla funo da agricultura produtiva, social e ambiental sem que tenha sido mencionada a palavra multifuncionalidade, mas situando essa tripla funo dentro da perspectiva de uma contribuio ao desenvolvimento sustentvel. O Conselho Europeu, que ocorreu em maro de 1999, em Berlim, no hesitou, por sua vez, em empregar esse termo ao evocar uma agricultura multifuncional e sustentvel, porm igualmente competitiva. O instrumento de reconhecimento e de promoo dessa multifuncionalidade da agricultura foram os Contratos Territoriais de Estabelecimento (CTEs), criados pelo artigo 4 da lei de 1999. No mbito europeu, a considerao de tal multifuncionalidade da agricultura ocorreu por meio da elaborao do Regulamento sobre o Desenvolvimento Rural (RDR) que cada pas executou sob a forma de um Plano de Desenvolvimento Rural Nacional (PDRN). lcito pensar que a multifuncionalidade, no obstante os vivos debates que marcaram a discusso da lei no parlamento e as reticncias sobre a execuo dos CTEs, foi reconhecida a partir de ento como qualidade potencial ou iminente da agricultura. Os pesquisadores, ansiosos por adotar a noo ou o conceito , discutiam abordagens positivas ou normativas e os debates sobre o funciona ou no ou sobre a considerao de seus benefcios iam de vento em popa. Em contrapartida, surgiu a alternncia poltica de 2002 e, a partir do ms de agosto, os CTEs foram liquidados a pedido do presidente da Repblica, Jacques Chirac, apesar do pouco entusiasmo de seu ministro da agricultura, Herv Gaymard, e da forte desaprovao do sindicato majoritrio, ao menos nas regies de pecuria e de agricultura ainda familiar.

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Para compensar o efeito desastroso da supresso de uma ferramenta que comeava a custar caro (justamente por causa de seu crescente sucesso), foram concebidos os Contratos de Agricultura Sustentvel (CASs), que desapareceram rapidamente devido falta de nanciamento, sendo substitudos por Medidas Agroambientais, ditas Territorializadas (Maats), cuja aplicao se limita ainda devido falta de nanciamento s zonas sensveis mais ou menos protegidas. No intil rever as respectivas liaes dessas diversas medidas sucessivas. Os CTEs se inscreviam na lgica de uma iniciativa concebida e praticada no meio da dcada de 1990, a qual se restringia a promover uma concepo global da explorao e seu acompanhamento dentro da viso de uma agronomia esclarecida. Esses contratos propostos aos agricultores possuam o nome de Planos de Desenvolvimento Sustentvel (PDSs). Talvez por serem muito ambiciosos e certamente muito complexa sua execuo de uma maneira generalizada, eles foram abandonados, embora seus promotores pensem, sem dvida, com razo, tratar-se dos prottipos dos CTEs. J uma outra liao atribuda s primeiras Medidas Agroambientais (MAAs), surgidas na Frana entre os anos de 1991 e 1992, e mais tarde chamadas de Olaas (Operaes Locais Agroambientais), CASs e depois as MAAs territorializadas atuais. Os PDSs e os CTEs tomavam como ponto de partida o territrio do estabelecimento, considerado portador de potencialidades produtivas, alm de sociais e ambientais. Se, por um lado, eles tinham vocao agrcola e eram autocentrados sobre a explorao, os CTEs se esforavam em inserir na lgica do explorador preocupaes provenientes de outros domnios e, ao estabelecer um contrato com este, valorizar a multifuncionalidade da agricultura ao remuner-la. Os MAAs, CASs e Maats so medidas que no esto centradas no estabelecimento e na sua lgica de funcionamento. Certas parcelas so interessantes somente dentro de uma lgica ambiental, paisagista, de proteo de habitats (Natura 2000), de territrios denidos e traados em funo de consideraes naturalistas ou da proteo dos consumidores, particularmente a qualidade da gua. Esses objetivos no so menos legtimos e, alis, estiveram presentes nos CTEs, porm abordados sob uma perspectiva diferente. Assim, apesar do fato de que elas tenham sempre sido geradas pelos servios descentralizados do Ministrio da Agricultura (passou-se da escala do departamento para a da Regio), sob o nosso ponto de vista, as Medidas Agroambientais Territorializadas atuais dependem, desde ento, de uma lgica centrada na ecologia, e no mais na agricultura: o dispositivo permanece, mas o pensamento est em outro lugar.

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O centro de gravidade, a partir disso, deslocou-se do Ministrio da Agricultura (anteriormente portador da abordagem normativa da multifuncionalidade) para o Ministrio do Meio Ambiente e do Desenvolvimento Sustentvel, o que cou claro com o grande show do Grenelle do Meio Ambiente1, que ocorreu no segundo semestre de 2007. A tentativa de resposta do lado do Ministrio da Agricultura passou quase despercebida, apesar de seu ambicioso ttulo, As Bases da Agricultura. Ainda cedo para se fazer um balano da operao Grenelle, cujo sucesso miditico foi imenso, porm a inscrio legislativa permanece inacabada, assim como seus incertos resultados. Se as associaes de proteo de meio ambiente ocuparam um lugar de destaque durante as discusses, os deputados e os senadores, bastante descontentes de serem inicialmente ofuscados pelo debate pblico, permaneceram muito sensveis presso do sindicalismo agrcola majoritrio e das indstrias produtoras de insumos2. O Grenelle do Meio Ambiente marca o triunfo miditico da noo de desenvolvimento sustentvel na Frana e sua insero no somente no discurso poltico e nas formas institucionais (a comear pelo prprio ttulo do ministrio), mas tambm nas estratgias dos atores econmicos, sejam seus motivos altrustas ou guiados pelo interesse, ou uma combinao dos dois. Essa noo ganhou igualmente espao nas representaes e preocupaes e mesmo prticas dos cidados. No campo da agricultura, que aqui nos concerne, o termo desenvolvimento sustentvel conseguiu uma penetrao real, j que tal expresso se pode escutar tanto dos responsveis prossionais como de certos agricultores. algo verdadeiramente importante. Jamais a palavra multifuncionalidade, mesmo no momento de maior efervescncia criado pela instaurao dos CTEs, conheceu a menor notoriedade no campo prossional agrcola. Quais so as razes de tal sucesso da noo de multifuncionalidade entre os pesquisadores e uma parte dos agentes do Estado, e de seu naufrgio imediato entre os que trabalham na agricultura, como os dirigentes prossionais? Primeiramente, aos olhos dos responsveis prossionais, fcil compreender por que o desenvolvimento sustentvel apareceu rapidamente como palavra de ordem que pode agregar, e suscetvel de tornar aceitvel um slogan. A palavra desenvolvimento assume na agricultura francesa uma tonalidade particular, aquela doO termo Grenelle uma aluso aos acordos de Grenelle assinados durante as greves e conitos que paralisaram a Frana em maio de 1968. Ele utilizado para designar grandes discusses que interessam sociedade francesa e que devem resultar em um compromisso entre o governo, as associaes prossionais e/ou as Organizaes No-Governamentais (N.T.).1 2

A reduo, em dez anos, de 50% das doses de pesticidas constitui um dos objetivos ocialmente proclamados naquela ocasio.AGRICULTURA FAMILIAR

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desenvolvimento agrcola, momento exemplar da cogesto entre o Estado e a Prosso, durante o qual foram criados todos os tipos de instituies econmicas, tcnicas e polticas que constituem ainda o que se pode designar como o aparelho de enquadramento da agricultura. Alm disso, num momento em que esse aparelho pena para se manter, e a agricultura francesa, marcada pelas crises sanitrias e ambientais, v-se ameaada de ser confrontada mais diretamente com o mercado mundial, falar de desenvolvimento mesmo que sustentvel renova as esperanas. Desse modo, os agricultores das regies de grande cultivo no deixaram de reivindicar o termo sustentabilidade e de se apoiar na sua denio cannica para informar que, para eles, a sustentabilidade era, antes de mais nada, assegurar a perenidade de suas exploraes agrcolas e a transmisso de seu patrimnio s geraes futuras, ou seja, seus prprios lhos. Quanto ao sucesso da noo de multifuncionalidade no mundo da pesquisa e, em certa parte, da administrao, deve-se tambm explic-lo pela histria social da agricultura francesa e, particularmente, pelos debates que envolveram essa mesma etapa do desenvolvimento agrcola. Desde o incio da dcada de 1970, foi desenvolvida uma crtica no seio de diversas faces sindicais reagrupadas atualmente na Confederao Camponesa dos modelos de produo intensivos e especializados, considerados produtivistas e distantes de um verdadeiro Desenvolvimento para o Homem e pelo Homem (retomando os termos e as letras maisculas do discurso sobre o desenvolvimento agrcola, dominante na dcada anterior). Entretanto, essa crtica de uma agricultura levada pela lgica produtivista ocorreu, ao mesmo tempo, dentro de certos departamentos ou laboratrios de instituies de pesquisa, como o CNRS e o Inra. O Relatrio Poly, de 1979, por uma agricultura mais econmica e mais autnoma, veio lhe dar certa garantia ocial (Jacques Poly era, ento, o diretor-geral do Inra, antes de se tornar seu presidente), em detrimento da prosso agrcola, que se sentiu trada pelo Inra. A realizao, durante o inverno de 1982-1983, dos Estados Gerais do Desenvolvimento Agrcola (EGDA), a pedido da ministra da Agricultura, a socialista Edith Cresson, mobilizou um nmero considervel de pesquisadores, alm de ter suscitado o interesse de inmeros agricultores e conselheiros agrcolas. Os fruns se estenderam primeiramente ao mbito da pequena regio agrcola, apesar das vivas reservas do sindicalismo majoritrio. Esses Estados Gerais no resultaram em inexes concretas e imediatas da poltica agrcola, mas, durante esses anos, pesquisadores de diversas disciplinas realizaram, sob a orientao de Marcel Jollivet, uma srie de trabalhos dentro de uma proposta intitulada Diversicao dos modelos de produo (DMDR).

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Eles elaboraram um trabalho coletivo que, por suas anlises e propostas em prol da abertura da agricultura, mostrou-se precursor (Jollivet, 1998). Inmeros participantes dessa pesquisa pluridisciplinar (dos quais alguns j haviam contribudo ao EGDA) se lanaram mais tarde na aventura dos CTEs, alguns deles tendo contribudo, enquanto isso, para a inveno dos Planos de Desenvolvimento Sustentvel (PDSs) ou para a observao das primeiras medidas agroambientais, no incio dos anos 1980. Essas trajetrias prossionais se inscrevem nas correntes de pensamento comunidades epistmicas? que se reconheceram na noo de multifuncionalidade. No entanto, no basta pensar a multifuncionalidade: preciso inscrev-la em uma dinmica social para que ela se exprima e encontre um reconhecimento pblico. Se, no Brasil, a noo de multifuncionalidade contribui para a legitimao da agricultura familiar, a qual, por seu lado, assegura multifuncionalidade certa visibilidade, a agricultura francesa entrou, por sua vez, em uma era que podemos qualicar de ps-familiar. Certamente no sob o ponto de vista patrimonial (ainda que, cada vez mais, as exploraes agrcolas se instalem sob diversas formas sociais), mas do ponto de vista da coletividade do trabalho (h cada vez menos esposas sobre as terras j que elas trabalham no exterior e cada vez mais assalariados). No plano simblico, a explorao familiar tambm no mais, desde uma recente reunio do sindicato majoritrio, a forma de explorao promovida por esse sindicalismo (em prol da empresa) e concordncia concernente a uma cogesto recuperada (ou exumada) a recente lei de orientao agrcola, de janeiro de 2006, deixou tambm no esquecimento essa explorao familiar manejada durante tanto tempo como uma forma ideal e utilizada como instrumento de legitimao de toda a agricultura francesa aos olhos do pas, fortemente ligado ao campesinato. verdade que as regies de pecuria ou de policultura criao e agricultura de montanha, regies que se converteram sem hesitar aos CTEs desejam se beneciar dos nanciamentos elevados que promete a Europa no segundo pilar de sua poltica agrcola, o do desenvolvimento rural. Se parece efetivamente legtimo reequilibrar o sistema de ajuda, existe, entretanto, o risco de fortalecer a ideia de uma dualidade da agricultura francesa. A alguns caberia o espao produtivo, e a outros, a sua conservao. Dessa forma, ao pretender incitar a promoo da multifuncionalidade, terminar-se-ia por lhe dar um duro golpe talvez mortal , pois essa agricultura de conservao de espao, separada de sua funo produtiva, no seria mais multifuncional, e sim especializada em uma funo paisagista, enquanto o agribusiness se veria dispensado da multifuncionalidade em nome da eccia e dos custos de produo.AGRICULTURA FAMILIAR

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No entanto, o que temos visto, nesses ltimos anos, no um cenrio prximo a esse? Por um lado, a considerao explcita ou implcita dos benefcios das agriculturas menos intensivas e mais diversicadas, admitidas como naturalmente multifuncionais e que poderiam ter um desempenho ainda melhor por meio de medidas contratuais nanciadas pelo segundo pilar, o do desenvolvimento rural. Por outro, a promoo de uma agricultura sustentvel nas regies mais produtivas e mais atreladas ao mercado mundial, uma agricultura intensiva e, por vocao, exportadora, mas que tem se esforado em rever seus itinerrios tcnicos, em diminuir signicantemente seu apoio aos insumos e em respeitar os cdigos de boa conduta ambiental concebidos pela Unio Europeia (ecocondicionalidade). Os esforos da pesquisa parecem ir nesse mesmo sentido. Desse modo, no seio de instituies como o Inra, a retrao da multifuncionalidade tema de mobilizao entre os anos de 1998 e 2002 atrs da promoo do desenvolvimento sustentvel, realizada h muitos anos sem alarde, parece agora ser acompanhada de uma orientao mais explcita das pesquisas para as regies de grande cultivo. A noo de multifuncionalidade, na Frana, corre, portanto, vrios riscos. O primeiro seria que ela passe pura e simplesmente para o segundo plano, mesmo que ainda disponha de especialistas talentosos e continue na lembrana somente como o slogan de um breve momento da histria da agricultura. O segundo risco que ela se veja connada a um papel de instrumento de promoo turstica dentro do quadro de uma agricultura residual, ligada conservao da paisagem. O terceiro risco seria o esforo de superar a multifuncionalidade ao dilu-la no desenvolvimento sustentvel. Ora, a multifuncionalidade da agricultura pode se privar do desenvolvimento sustentvel, mesmo que dele participe, mas este somente pode tomar forma ou seja, ir alm do discurso e se inscrever nas prticas agrcolas caso a multifuncionalidade seja executada. Para que os polticos se conscientizem disso novamente, seria necessrio que eles fossem interpelados por um movimento social. Enquanto isso, o risco grande: a multifuncionalidade no solvel no desenvolvimento sustentvel, mas pode afogar-se nele. Jacques RemySocilogo, diretor de Pesquisa do Institut National de Recherche Agricole (Inra) Frana

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APRESENTAO

Este livro contm uma coletnea de artigos elaborados a partir dos resultados do projeto Pesquisa e aes de divulgao sobre o tema da multifuncionalidade da agricultura familiar e desenvolvimento territorial no Brasil, executado no perodo 2006-20081. O projeto foi desenvolvido por uma rede interinstitucional de pesquisadores constituda em 2000 e contou com apoio do Ncleo de Estudos de Agricultura e Desenvolvimento do Ministrio de Desenvolvimento Agrrio (Nead/MDA), e do Instituto Interamericano de Cooperao para a Agricultura (IICA). O referido projeto corresponde terceira etapa de pesquisa dessa rede, sendo necessria uma breve retrospectiva dos antecedentes da etapa atual para melhor compreend-la. A rede se constituiu tendo como referncia o enfoque da multifuncionalidade da agricultura ento em pleno orescimento em vrias partes do mundo, com destaque para a Europa Ocidental e, particularmente, a Frana. A perspectiva era desenvolver estudos e pesquisas visando apropriao e operacionalizao desse enfoque nas circunstncias prprias da agricultura familiar no Brasil. A composio multidisciplinar da rede de pesquisa representa uma caracterstica valorizada na conduo dos trs projetos por ela desenvolvidos, pois ela enriquece a abordagem de um objeto que demanda a diversidade de olhares. Isso representou importante exerccio de dilogo interdisciplinar em todos os trs projetos adiante apresentados, nos quais foi possvel chegar formulao comum das questes de pesquisa, base conceitual e procedimentos metodolgicos. Como se notar, a diversidade de olhares se manifesta na valorizao e no modo de anlise dos componentes da reproduo das famlias rurais e dos territrios estudados.

A rede composta de pesquisadores integrantes das seguintes instituies: UFRRJ-CPDA (coord.), UFSC/CCA, UFRGS/PGDR, Embrapa-CNPAM, USP/Esalq, Ufes, UFCG e UFPA (Brasil), Cirad e Inra (Frana). A rede est registrada na Plataforma Lattes do CNPq como grupo de pesquisa Multifuncionalidade da agricultura.1

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A apropriao e a operacionalizao do enfoque da multifuncionalidade da agricultura familiar no Brasil requerem dar conta de quatro planos de anlise relativos aos agricultores, aos territrios, sociedade em geral e s polticas pblicas. O desenvolvimento desses nveis de anlise se materializou em trs etapas de pesquisa. A primeira delas foi realizada com os agricultores familiares2, tendo as famlias rurais como unidade de observao em lugar da agricultura stricto sensu. As unidades familiares foram entendidas como unidades sociais que se reproduzem num territrio com determinadas caractersticas socioeconmicas, culturais e ambientais. A pesquisa buscou vericar a percepo das famlias entrevistadas acerca das circunstncias que afetam o desempenho das quatro funes indicativas da multifuncionalidade da agricultura, identicadas pela equipe aps uma primeira aproximao com as famlias rurais: a) reproduo socioeconmica das famlias rurais; b) promoo da segurana alimentar das famlias rurais e da sociedade; c) manuteno do tecido social e cultural; d) preservao dos recursos naturais e da paisagem rural. Entre outros resultados, a pesquisa conrmou que a reproduo das famlias rurais no guarda relao linear com a atividade agrcola por elas desenvolvida, na medida em que a renda auferida com essa atividade perde peso quanto mais elevado o nvel de renda familiar pesquisas com outros enfoques j haviam chegado a constataes anlogas. No obstante, concluiu-se tambm que a produo alimentar continua sendo componente central na reproduo das famlias rurais, inclusive por razes de sua segurana alimentar. Ressalve-se que o enfoque da pesquisa no permite dar conta da relevncia na disponibilidade de bens alimentares e dos demais signicados da produo de base familiar no Brasil, subentendidos na funo da segurana alimentar da sociedade. A propsito, h que se registrar tambm o fato de a amostra abranger, principalmente, comunidades com atividades agrcolas precrias. Ela revela, contudo, a grande heterogeneidade social que caracteriza a chamada agricultura familiar no Brasil, bem como a permanncia de restries no acesso terra e a recursos produtivos de modo geral. Fatores materiais e imateriais relacionados com identidade social e formas de sociabilidade das famlias rurais se somam aos anteriores, de modo que a agricultura continua sendo o principal fator de identidade e insero social dessasProjeto Estratgias de desenvolvimento rural, multifuncionalidade da agricultura e a agricultura familiar: identicao e avaliao de experincias em diferentes regies brasileiras. CNPq/COAGr, 2002/2003. Nessa etapa, os estudos de caso foram realizados nos estados do Rio de Janeiro, Santa Catarina, So Paulo, Paraba e Piau. Os principais resultados deste projeto podem ser consultados em Carneiro e Maluf (Orgs., 2003).2

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APRESENTAO

famlias. A atividade agrcola diversicada de base familiar cumpre, tambm, papel relevante na reproduo das comunidades rurais, apesar das expectativas pessimistas, quanto ao futuro dessa atividade, reveladas pelas famlias entrevistadas. Sendo assim, as diculdades de reproduo enfrentadas por esse tipo de agricultura terminam por comprometer a prpria existncia das comunidades rurais, com implicaes no que se refere manuteno do tecido social e cultural. Por ltimo, caram evidentes na pesquisa os conitos entre a preservao dos recursos naturais e as prticas agrcolas, incluindo o confronto entre prticas tradicionais e legislao ambiental. Vericou-se ser muito incipiente o reconhecimento do papel de preservao do patrimnio natural e, menos ainda, da paisagem rural. A segunda etapa de pesquisa deu incio incorporao dos planos do territrio e da sociedade em geral no desenvolvimento do enfoque da multifuncionalidade da agricultura familiar no Brasil pela rede de pesquisa3. Os territrios foram introduzidos desde a tica de observar as dinmicas ou processos econmicos e sociais que conferem (ou no) legitimao agricultura familiar multifuncional e que contribuem (ou criam obstculos) para uma maior expresso do carter multifuncional da agricultura. J a sociedade em geral foi considerada com base na percepo dos atores sociais sobre elementos contemplados pela noo de multifuncionalidade da agricultura. Nesses termos, a pesquisa teve como objetivo identicar a percepo e a atuao dos atores e redes sociais relevantes em mbito local e como elas se manifestam em termos de alianas e conitos nos espaos de concertao. O primeiro passo para incorporar a dimenso territorial consistiu em ampliar para a escala municipal o recorte espacial da pesquisa anterior focalizado nas comunidades rurais. Em consequncia, ganharam relevncia os Conselhos Municipais de Desenvolvimento Rural (CMDR) como espaos de concertao a serem observados. A heterogeneidade dos casos estudados resultou em percepes bastante diversas por parte dos atores sociais pesquisados, indo desde o reconhecimento da agricultura como base da economia local at avaliaes que lhe atribuam pequena importncia e, no limite, conferiam-lhe no mais que um papel de atividade de subsistncia das famlias rurais. Constatou-se a ambiguidade das avaliaes pessimistas em relao ao futuro da atividade agrcola levando formao de3

Projet Multifonctionnalit de lagriculture. Construction dune demarche danalyse au niveau local a partir dun dispositif comparatif en France et au Brsil. Dispositif Inra Cemagref Cirad (2002/4).AGRICULTURA FAMILIAR

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expectativas fora do setor para os lhos de agricultores acompanhadas de uma viso positiva das contribuies que poderiam ser dadas pela agricultura para o desenvolvimento local. recorrente, porm, o reconhecimento do papel da agricultura na promoo da segurana alimentar e no alvio do xodo rural. Como na etapa anterior de pesquisa, a questo ambiental surgiu como piv de conitos, quase sempre no explicitados, devidos ao uso de agrotxicos e ao desmatamento. Por ltimo, mas no menos importante, a pesquisa pde captar o jogo de alianas e oposies nas instncias formais de concertao no caso, os CMDRs num contexto de transio para um novo modelo de desenvolvimento rural. s pesquisas com os agricultores e nos mbitos dos territrios e da sociedade em geral, agregou-se um quarto plano de anlise correspondente s polticas pblicas, com a perspectiva de vericar o reconhecimento e legitimao da multifuncionalidade da agricultura por elas (polticas pblicas). Esse plano de anlise se articulou com os demais na abordagem dos programas de desenvolvimento territorial efetuada na terceira etapa de pesquisa apresentada a seguir. O projeto de pesquisa, cujos resultados constituem a base da presente publicao, teve quatro objetivos gerais, assim denidos: discutir os pressupostos que orientam o recorte territorial para a formulao e implementao de polticas pblicas, focalizando aquelas voltadas para a promoo da agricultura familiar; vericar a contribuio da agricultura familiar para o desenvolvimento territorial valendo-se do enfoque da multifuncionalidade da agricultura (MFA); investigar o processo de construo de territrios, identicando os atores sociais envolvidos, os interesses comuns e conitantes, e respectivos espaos de negociao; analisar, luz do enfoque da MFA, os principais programas pblicos de promoo da agricultura familiar e de desenvolvimento territorial na sua concepo e instrumentos de operacionalizao.

Esses objetivos demandaram, inicialmente, analisar a base conceitual do enfoque territorial e correlacion-la com o da multifuncionalidade da agricultura. Assim, essa etapa de pesquisa signicou ampliar o foco de estudo com a incorporao plena (conceitual e operacional) da dimenso territorial, alm de englobar questes correlatas de desenvolvimento e de polticas pblicas observadas no mbito das dinmicas territoriais e dos programas de desenvolvimento territorial. J quanto aos estudos de caso, eles foram realizados em oito territ-

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APRESENTAO

rios determinados que, em sua diversidade, tm, propositadamente, uma caracterstica comum, que a elevada presena da agricultura familiar. As referncias espaciais dos estudos foram as seguintes: a) regio de Marab (PA); b) Territrio da Borborema (PB); c) Territrio Norte do Esprito Santo; d) regio cafeeira do Sul de Minas Gerais; e) regio serrana de Nova Friburgo (RJ); f) regio litornea de Paraty (RJ); g) Territrio Planalto Serrano (SC); h) regio do Vale do Taquari (RS). Em quatro dessas zonas est sendo implementada a poltica de desenvolvimento territorial do Ministrio de Desenvolvimento Agrrio. Para a anlise dos programas de desenvolvimento territorial, foram consideradas as diretrizes gerais do Plano Plurianual 2004-2007, antecedendo a anlise dos programas escolhidos entre aqueles que esto voltados para a promoo da agricultura familiar, o ambiente e o meio rural: Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf); Programa de Desenvolvimento Sustentvel dos Territrios Rurais (PDSTR); Programa de Desenvolvimento Socioambiental da Produo Familiar Rural na Amaznia; Programa Agenda 21; Programa de Instalao de Consrcios Intermunicipais de Segurana Alimentar e Desenvolvimento Local; Programa Arranjos Produtivos Locais; Programa Gesto da Poltica de Desenvolvimento Regional e Ordenamento Territorial. Este livro est organizado em duas partes. A Parte I composta de trs captulos, sendo que os dois primeiros apresentam as bases conceituais da pesquisa e as principais referncias bibliogrcas que lhe do suporte, bem como o marco analtico que articula as noes e conceitos que conformam a abordagem da equipe e o mtodo da pesquisa com os correspondentes instrumentos utilizados. O terceiro captulo aborda os signicados da incorporao do enfoque territorial nos programas pblicos antes referidos, com vista a apontar os desaos de coordenao desses programas e para implementar instrumentos de desenvolvimento territorial que contemplem a multifuncionalidade agrcola. A Parte II engloba oito captulos escritos a partir dos relatrios da pesquisa de campo dos estudos de caso realizados pela equipe. Resguardadas as distintas nfases resultantes tanto da diversidade das situaes estudadas (em termos de localizao geogrca, perl socioeconmico e prticas agrcolas) quanto da referida formao multidisciplinar que caracteriza a rede de pesquisa, os captulos retomam a questo geral apresentada para todas as equipes regionais, qual seja: como as dinmicas territoriais e os projetos coletivos presentes em territrios determinados contemplam a agricultura familiar em suas mltiplas funes e heterogeneidade social?. Os oito captulos foram agrupados em dois blocos.

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O Bloco 1 rene os quatro estudos que abordam dinmicas territoriais ligadas a territrios da poltica pblica, mais especicamente, os territrios rurais promovidos pelo PDSTR. Os territrios da Borborema, PB, e do Norte do Esprito Santo foram caracterizados como territrios de poltica com institucionalidades convergentes, em contraste com as institucionalidades divergentes da regio de Marab, onde se localiza o territrio do Sudeste do Par. J o territrio Sul-Fluminense (Litornea de Paraty,RJ), em construo, caracteriza-se por uma ainda fraca institucionalidade. O Bloco 2 congrega quatro estudos, cujos enfoques ressaltam vrias dimenses envolvidas na construo social de territrios e nas estratgias de desenvolvimento territorial, para alm de um programa pblico especco. Em trs destes estudos, as dinmicas territoriais reetem, sobretudo, lgicas de arranjos produtivos ainda que com dinmicas dspares: um arranjo agroindustrial antigo e consolidado (Vale do Taquari,RS), um arranjo agrcola emergente (Sul de Minas Gerais) e um arranjo industrial excludente (planalto serrano, SC). O quarto estudo (serrana de Nova Friburgo, RJ) trata de dinmicas territoriais caracterizadas pela coexistncia de projetos com fraca insero institucional que, ademais, permitem abordar os limites impostos pela cultura poltica da patronagem. O captulo conclusivo nal tem o propsito de apresentar os avanos e desaos para a conjuno dos enfoques da multifuncionalidade da agricultura e do desenvolvimento territorial. Para tanto, busca estabelecer os principais elos entre o reconhecimento e a promoo dos mltiplos papis da agricultura familiar nas aes de desenvolvimento territorial, conforme eles se expressam nas dinmicas socioespaciais presentes nas reas estudadas, nas estratgias dos atores sociais e nas polticas pblicas. O captulo aborda tambm as principais questes transversais aos estudos de caso, organizadas em eixos de anlise denidos com base nos resultados das pesquisas de campo, bem como apresenta os principais desaos para a conjuno dos enfoques da multifuncionalidade da agricultura e desenvolvimento territorial. Os organizadores

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APRESENTAO

PARTE I

TERRITRIOS, DESENVOLVIMENTO TERRITORIAL E MULTIFUNCIONALIDADE DA AGRICULTURA FAMILIAR

Esta parte que abre a publicao composta por trs captulos contendo as bases conceituais e o marco analtico que conformam a abordagem construda pela equipe, o mtodo da pesquisa e os correspondentes instrumentos utilizados. O primeiro captulo est dedicado a uma breve reviso dos olhares disciplinares sobre territrio e desenvolvimento territorial, destacando a Geograa e a Economia. O segundo captulo apresenta a apropriao do enfoque da multifuncionalidade da agricultura pela equipe e sua associao com o de territrio, de modo a chegar ao marco analtico dos estudos de caso fundado nas categorias de dinmicas territoriais e projetos coletivos. O terceiro e ltimo captulo trata do plano das polticas pblicas e aborda os signicados da incorporao do enfoque territorial nos programas voltados agricultura familiar e ao meio rural, e os requisitos para que eles contemplem a multifuncionalidade da agricultura familiar.

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CAPTULO 1

OLHARES DISCIPLINARES SOBRE TERRITRIO E DESENVOLVIMENTO TERRITORIAL Ademir A. Cazella Philippe Bonnal Renato S. Maluf

No transcurso da ltima dcada, a noo de territrio assumiu importncia destacada nos discursos dos gestores de polticas pblicas de numerosos pases, inclusive o Brasil. No que diz respeito agricultura e ao meio rural, o territrio aparece cada vez mais como uma entrada programtica, inovadora e privilegiada para renovar a concepo do desenvolvimento rural. Mas, apesar da adoo generalizada do conceito, observa-se uma diculdade dos acadmicos, dos prossionais do setor e dos prprios gestores de polticas pblicas na denio rigorosa do conceito de territrio e, consequentemente, dos instrumentos de interveno pblica. Neste captulo, apresenta-se o resultado de um esforo coletivo realizado pela equipe de pesquisa, visando, inicialmente, a aprofundar a anlise do conceito de territrio e a precisar o seu contedo semntico no quadro das Cincias Sociais; mais especicamente, revisou-se a abordagem disciplinar do conceito sob os pontos de vista da Geograa e da Economia1. Em seguida a essa reviso, apresentam-se alguns elementos da reexo contempornea sobre desenvolvimento territorial. Cabe antecipar que o contedo do presente captulo se completa com a anlise das relaes entre territrio e a noo de multifuncionalidade da agricultura, seguida do mtodo proposto de identicao de territrios a partir do enfoque das dinmicas territoriais, constantes do Captulo 2.Essa reviso baseia-se nas contribuies de Paulo C. Scarim (Geograa), Georges Flexor e Eduardo E. Filippi (Economia).1

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No se teve a pretenso de realizar uma reviso bibliogrca exaustiva, nem mesmo no interior das disciplinas destacadas, seno que a reviso foi orientada para cumprir um dos quatro objetivos gerais da pesquisa, referente aos pressupostos que orientam o recorte territorial para a formulao e implementao de polticas pblicas voltadas promoo da agricultura familiar no Brasil. Esclarea-se, tambm, que o contedo a seguir constitui sistematizao das contribuies aportadas por vrios integrantes da equipe, elaborada pelos editores da presente coletnea.

Territrio: abordagens disciplinaresOs olhares dos gegrafos: espao, territorialidades e poder Para vrios gegrafos, o territrio considerado um conceito-mala pelo fato de carregar diversos sentidos. Sua integrao no campo da Geograa relativamente recente dcadas de 1970 e 1980 e foi concomitante com uma abertura desta cincia na direo de outras Cincias Sociais, particularmente da Antropologia (relaes entre o mundo material e o mundo simblico), da Sociologia (produo dos espaos urbano e rural), da Economia (efeito econmico da localizao da produo) e da Cincia Poltica (territorializao do poder e das polticas pblicas). Numa primeira aproximao, um territrio pode ser concebido como um pedao de espao cujos elementos constitutivos so organizados e estruturados pelas aes dos grupos sociais que o ocupam e o utilizam (Renard, 2002). Nessa perspectiva, o territrio , em primeiro lugar, uma unidade geogrca delimitada por uma fronteira, criando uma oposio entre o que est dentro com o que se encontra fora. Sendo assim, a questo de diversos gegrafos determinar em quais aspectos as caractersticas visveis de um territrio que constituem a paisagem reetem a viso dos atores que atuaram na sua denio. Outra preocupao entender a lgica da organizao geral dos territrios: mosaico, sobreposio, encaixamento, redes, etc. O territrio, contudo, precisa de condies particulares para se constituir. Mo (1998) identica quatro dinmicas particulares que atuam na origem dos territrios: i) o poder poltico (tecido administrativo)2; ii) as dinmicas socioeObserve-se que a relao entre territrio e poder est particularmente bem abordada pela geopoltica entendida como todas as rivalidades de poder e inuncia sobre um territrio quaisquer sejam suas formas mais ou menos violentas e as dimenses dos espaos em questo (Lacoste, 2001). No transcurso das ltimas duas dcadas, a geopoltica se converteu numa cincia quase autnoma.2

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conmicas ligadas ao sistema produtivo (como os distritos industriais, clusters, qualidade de produtos, etc.); iii) os comportamentos e aspectos identitrios e de pertencimento; iv) as dinmicas naturalistas (determinismos ligados s interaes natureza-sociedade). Gumuschian (2002) vai mais longe e dene a noo de territrio a partir de quatro entradas principais. Primeira: a natureza simblica e material do territrio segundo a qual o territrio tem dois componentes: as formas (organizao), de um lado, e o sentido dessas formas, de outro. Assim, o territrio uma realidade bifacial, sendo o produto de uma ecognese na qual so ativados em um sistema simblico e informacional recursos materiais. Segunda entrada: a natureza e formas de apropriao, o que implica considerar o territrio espao colonizado (por uma espcie vegetal, animal ou pelo ser humano) e utilizado (modalidades de apropriao). Terceira: as conguraes espaciais que se expressam na repartio, continuidade e descontinuidade dos territrios (mosaico, arquiplago, reticular, etc.). Quarta entrada: os processos de autorreferncia baseados na relao entre os caracteres objetivos (a materialidade), subjetivos (o percebido, a representao individual e/ou coletiva) e o convencional (identidade coletiva). O uso contemporneo do conceito de territrio remonta, segundo Moraes (2000), s cincias naturais modernas. Apesar da origem ancestral como gura administrativo-militar romana (territorium), sua retomada pela Geograa no nal do sculo XIX se d mediante o contedo estabelecido no processo de sistematizao dos estudos da natureza segundo o modelo cientco consagrado naquele sculo, empregado para designar a rea de domnio de uma espcie. esse contedo que foi assimilado e reconceituado por Friedrich Ratzel como controle poltico de um dado mbito espacial, o exerccio de uma soberania que impe uma territorialidade a certas parcelas delimitadas da superfcie terrestre. O territrio teria em sua gnese um movimento de expanso e conquista de espaos, o que o localiza tambm num lugar importante no universo de preocupaes da geograa poltica e da geopoltica. Com a despolitizao da reexo geogrca, subjacente hegemonia da geograa regional francesa, o conceito de territrio foi praticamente banido desse campo de investigao. Tal conceito deixado, durante boa parte do sculo XX, como ferramenta quase exclusiva das teorias geopolticas e jurdico-administrativas, em que tido como uma base emprico-factual com a qual se inicia a teorizao proposta. O resgate desse conceito pela Geograa ocorre no mbito da repolitizao do temrio da disciplina subjacente ao movimento de renovao do pensamento geogrco a partir dos anos 1960, com base numa orientao metodolgica marxista que prope uma reexo essencialmente econmica e poltica, e resulta numa concepo que qualica o territrio pelo seu uso social.AGRICULTURA FAMILIAR

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Outro resgate do conceito apontado por Moraes (2000) ocorreu em tempos mais recentes, advindo da reexo antropolgica que assimila o territrio a um espao de referncia cultural, portanto espao que se qualica pelo signicado a ele atribudo por um dado grupo ou segmento social. Nessa tica, o territrio inscreve-se no campo dos processos de identidade societria, na condio de referente de formas de conscincia do espao, e mesmo de autoconscincia grupal (grupos que se identicam pela relao com um dado espao). Para essa concepo antropolgica, diversas territorialidades se exercitam sobrepondo-se num mesmo espao, rompendo com a idia de exclusividade presente nas vises anteriores. Santos (1996) considera o espao geogrco conjuntos indissociveis de sistemas de objetos e sistemas de aes, denio que permite pensar uma multiplicidade de combinaes entre aes e materialidade. Essa conceituao de espao geogrco levou Santos (1994, 1996) a propor que a categoria de anlise seja a de territrio usado. Para esse autor, o espao geogrco a manifestao da acumulao desigual de tempos, a qual pode ser entendida atravs de uma periodizao das tcnicas (etapas de modernizaes). Tal periodizao deve ir alm do estudo da tcnica em si, buscando entender o processo poltico que elege esta ou aquela tcnica. O enfoque das tcnicas permite, ademais, enfrentar as diculdades que se apresentam ao tratar as relaes entre o espao e o tempo na Geograa.O territrio usado constitui-se como um todo complexo onde se tece uma trama de relaes complementares e conitantes. Da o vigor do conceito, convidado a pensar processualmente as relaes estabelecidas entre o lugar, a formao socioespacial e o mundo. (Santos, 2000, p. 3)

J uma interveno que atenda a maioria, obriga recuperar a totalidade, entendendo o territrio como abrigo, pois este multiplicidade:O territrio usado, visto como uma totalidade, campo privilegiado para a anlise, na medida em que, de um lado, nos revela a estrutura global da sociedade e, de outro lado, a prpria complexidade do seu uso. (Santos, 2000, p. 12)

A sistematizao feita por Haesbaert (2004) ressalta que o reaquecimento do debate sobre territrio emergiu de forma contraditria ao se preocupar em explicar a desterritorializao. Para o autor, porm, o que de fato ocorre so mltiplos processos de reterritorializao, de modo que o debate sobre desterritorializao

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acaba por rearmar o territrio. Apesar da diversidade, sustenta que territrio tem a ver com poder em qualquer acepo, tanto o poder no sentido de dominao (mais concreto) quanto no sentido de apropriao (mais simblico). Utilizando conceituao de Robert Sack, Haesbaert (2004a) considera que a territorialidade est intimamente ligada aos modos como as pessoas utilizam a terra, experimentam a vida e do signicado a ela. Ele prope noes que do suporte ao que chama de multiterritorialidade, como as de territrio-rede e territrio-zona. Embora exista, hoje, uma multiplicidade de territrios, Haesbaert (2004, 2004a) alerta que eles no devem ser confundidos com a multiterriorialidade. Para a manifestao da multiterritorialidade, preciso existncia de mltiplos territrios, porm a existncia de mltiplos territrios no leva, necessariamente, multiterritorialidade. A multiterritorialidade implica experimentar mltiplos territrios e/ou territorialidades ao mesmo tempo. Essa experincia de multiplicidade, em certo sentido, sempre existiu. No obstante, vericou-se uma mudana quantitativa (maior nmero de possibilidades) e, principalmente, uma mudana qualitativa no sentido de se poder, de forma indita, intervir e viver com uma enorme gama de diferentes territrios e/ou territorialidades. A articulao das multiterritorialidades contemporneas se d, principalmente, na forma de territrios-rede, que, por denio, so territrios mltiplos. Portanto, para Haesbaert, a noo de territrio manifesta, hoje, sentidos multiescalar e multidimensional que s podem ser apreendidos dentro da concepo de multiplicidade. Porto-Gonalves (2005) trilha o caminho da anlise dos territrios como existncia a partir das relaes sociais e de poder que os conformam, mas ressalta a necessidade de se identicarem os sujeitos e processos que os compem, isto , as territorialidades. Estas territorialidades, circunscritas em territrios denidos ou no, esto em tenso, que denomina tenses de territorialidades, as quais gestam uma nova geograa e novas cartograas. Estas tenses se do entre os mais diversos interesses sociais, sejam eles empresariais, comunitrios ou governamentais. Tambm se lida com escalas de poder quando se parte para a questo de territrio e planejamento. Quais so os limites da escala? Como pensar recortes espao-temporais? H problemas, ento, com relao s classicaes e s escolhas que fazemos. O que mostrar? O que importante? nesse sentido que Acselrad (2002) discute ao questionar os critrios da racionalidade presente nos ordenamentos territoriais, seu enquadramento espacial das incertezas e dos modelos possveis de organizao das atividades econmicas do espao, pois reduzem

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as prticas sociais a suas dimenses tcnico-produtivas e a uma normalizao tcnica do territrio, estabelecendo um discurso sobre o governo das coisas, que pretende justicar o governo dos homens e das prticas sociais no espao. Castro (1997) tambm discute a noo de escala quando debate as relaes entre os diferentes modos do fazer poltico e os contedos territoriais. Para a autora, a escala de observao dene o fenmeno. Portanto, a escala uma inteno e possvel decidir o que tornar visvel e o que tornar invisvel. Dessa forma, o forte vnculo entre territrio e poder implicaria incluir a anlise da cidadania, j que, como lembra Gomes (1997), a questo territorial fundamento da cidadania. H, portanto, um limite fsico de incluso e, consequentemente, de excluso. O territrio, para ele, a chave de acesso a prticas sociais. Gomes (1997) recorre tambm a Robert Sack para identicar quais seriam, a seu ver, os trs principais fatores da territorialidade humana: (i) classicao das coisas e das relaes por reas; (ii) comunicao; (iii) controle de uma determinada poro do espao. Essas estratgias vo muito alm da reproduo fsica do grupo. Para se compreender a vida social, preciso considerar que ela , em parte, tributria da compreenso da lgica territorial na qual est organizada. Os olhares dos economistas: da economia territorializada territorializao da economia Desde os pioneiros da economia do desenvolvimento (Myrdal, 1959; Hirschman, 1958), reconhece-se que as mudanas sociais e o crescimento econmico no so processos espacialmente homogneos. A industrializao ocorria a partir de centros regionais cujas atividades se organizavam em funo de grandes empresas e indstrias com diversos encadeamentos produtivos. No plano da geografia econmica, esses processos eram analisados como uma congurao centro-periferia, na qual o centro industrial expressaria o moderno, poderoso e transformador, enquanto a periferia rural e agrcola seria a marca do atraso e do conservadorismo. Essa congurao viria dar lugar a uma nova geograa global caracterizada por uma constelao de territrios mais ou menos articulados horizontal e verticalmente, diversamente organizados e estruturados por redes econmicas, sociais e polticas, e, muitas vezes, competindo entre si (Storper, 1997; Scott, 2003; Messner, 2003; Rallet, 2000). Uma transformao tal reete a perda da capacidade de os Estados coordenarem o comportamento dos agentes econmicos e suas decises, bem como ratica a importncia crescente da globalizao

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produtiva, nanceira e tecnolgica. A transformao em curso reveladora do declnio do espao nacional e de suas instituies como quadro de referncia absoluta dos diferentes atores. Como resultado dessas mudanas, a literatura sobre desenvolvimento regional conhece, desde a dcada de 1980, uma renovao importante. Se, at ento, a problemtica regional interessava, sobretudo, a gegrafos e economistas voltados ao estudo e anlise das consequncias espaciais do desenvolvimento industrial, o perodo de intensa reestruturao institucional e organizacional, que comea no nal da dcada de 1970, atraiu os olhares multidisciplinares, envolvendo economistas, socilogos, cientistas polticos e gegrafos. Podem ser distinguidos trs eixos dessa renovao da problemtica regional. Em primeiro lugar, cabe destacar os trabalhos seminais desenvolvidos por um grupo de cientistas sociais italianos empenhados em compreender e analisar o padro de desenvolvimento original das regies do Centro e Nordeste daquele pas, denominada Terceira Itlia por Bagnasco (1996). A particularidade desta literatura de combinar uma anlise organizacional com aspectos institucionais e culturais. Diferentemente do modelo da grande empresa hierarquicamente integrada, caracterstica do sistema de produo em massa predominante no Norte da Itlia, as regies do Centro e Nordeste apresentam uma organizao produtiva estruturada por aglomeraes de pequenas e mdias empresas que se especializam em diferentes fases do processo produtivo. O sucesso dos chamados distritos industriais, assim qualicados por Becattini (1987, 1991), valendo-se da formulao proposta por Marshall (1901), est associado s externalidades3 induzidas pela na diviso do trabalho e tambm ao contexto sociocultural que favorece aes coletivas fundamentais para a ecincia do sistema produtivo. Em particular, as regras e normas sociais que valorizam o trabalho, a mobilidade social e a troca de informaes permitiriam combinar concorrncia e cooperao entre os diversos agentes, ou seja, incentivos individuais e coletivos. O caso da Terceira Itlia se tornou paradigmtico quando Piore e Sabel (1984) passaram a interpretar este sistema produtivo como uma alternativa crise do sistema de produo em massa ou fordista. Para esses estudiosos norte-ameri-

As externalidades devem ser entendidas como as situaes onde as decises de consumo ou de produo de um agente afetam diretamente a satisfao (bem-estar) ou o lucro (benefcio) de outros agentes sem que o mercado avalie e faa pagar ou retribua o agente para esta interao (Picard, 1998). Elas podem ter efeitos positivos quando incrementam o bem-estar ou o lucro, ou negativos, no caso contrrio.3

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canos, a experincia italiana representaria um caso particular de uma tendncia mais geral na qual o modelo fordista estaria sendo, gradativamente, substitudo por uma organizao produtiva exvel e especializada, mais adaptada ao novo ambiente global, incerto e voltil. A colorao paradigmtica da experincia italiana foi reforada com o trabalho do cientista poltico norte-americano Putnam (1992). Procurando explicar o bom desempenho democrtico dessa regio, Putnam vai desenvolver uma abordagem neoinstitucional centrada no conceito de capital social. Como regras de reciprocidade e normas cvicas enraizadas na histria, o capital social explicaria por que os indivduos do Centro e do Nordeste da Itlia conseguem superar os problemas de ao coletiva, em particular o individualismo contraproducente e o familiarismo amoral to comum no Sul do pas. Em sntese, ao integrar ecincia econmica e desempenho democrtico, as diversas interpretaes desta peculiar experincia social, econmica e poltica convergem para uma representao da boa sociedade, eciente e justa, explicando seu poder de atrao nas esferas acadmicas e entre as redes de formuladores de polticas pblicas (policy networks). Um segundo eixo de renovao da problemtica regional veio da escola californiana de geograa econmica. Liderada por Scott, Storper e Walker, essa corrente tem como foco de anlise as relaes entre diviso do trabalho, custos de transaes e aglomerao econmica. Como ponto de partida, reconhece-se que a desintegrao vertical da produo, alm de garantir economias de especializao e minimizar o excesso de capacidade produtiva, capaz de reduzir possveis enclausuramentos (locked in) tecnolgicos4. Todavia, a desintegrao tende a aumentar os custos de transao porque, nesse tipo de organizao produtiva, as relaes interrmas se tornam mais frequentes, incertas e complexas. A organizao industrial, portanto, deve arbitrar entre custos de organizao internos rma e os custos de transao interrmas. Segundo a escola californiana, a proximidade geogrca que caracteriza as aglomeraes de pequenas e mdias empresas, representa um fator que minimiza os custos de transao. A concluso geral que, numa economia global cada vez mais relacionada com economias de escopo que privilegiam a exibilidade, os sistemas espaciais fordistas tendem a desaparecer para dar lugar a aglomeraes de empresas em busca de custos de transaes mnimos.

No modelo desenvolvido por Arthur (1989), este fenmeno diz respeito dinmica de alocao sob retornos crescentes em que tecnologias alternativas so aperfeioadas conforme sejam adotadas pelos agentes. Assim, a economia tende a se tornar enclausurada (locked-in) em trajetrias tecnolgicas no necessariamente ecientes e impossveis de predizer com base nas convencionais funes de oferta e demanda.4

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Um aspecto importante dessa corrente sua proposta de anlise geogrca da economia das formas de produo em redes, um objeto de estudo cada vez mais privilegiado pela sociologia econmica, economia das organizaes, geograa econmica e cincias administrativas, entre outras. Alm disso, como no depende de fatores institucionais e histricos, essa perspectiva proporciona ferramentas analticas mais gerais e operacionalizveis. Em particular, alm de explicar os processos de reestruturao nas velhas regies industriais europeias e norte-americanas, assim como a emergncia dos novos distritos do tipo Vale do Silcio e Route 128, ela proporciona um modelo organizacional normativo na forma de redes locais de pequenas e mdias empresas. O terceiro eixo de renovao est associado s abordagens que relacionam inovaes tecnolgicas e aspectos regionais. Segundo elas, uma das foras das aglomeraes produtivas desintegradas a de se beneciar dos conhecimentos e informaes distribudos entre diferentes atores envolvidos na produo de bens e servios (Rallet & Torre, 2000; Amin & Cohendet, 2003; Malmberg & Mask, 1997; Storper, 1997). Autores vinculados a essa abordagem reconhecem que a integrao vertical favorece a coordenao das diversas fases produtivas. Dessa forma, a proximidade organizacional tende a eliminar os problemas de coordenao relacionados a distncias geogrcas e culturais. No entanto, ao limitar o nmero de interaes entre as unidades envolvidas, corre-se o risco de perder valiosas informaes e conhecimentos. Os sistemas produtivos dependem, portanto, do desenvolvimento de competncias coletivas capazes de construir os recursos que lhes so estratgicos. A proximidade de centros de produo de conhecimento, por exemplo, proporciona a possibilidade de poder contar com um mercado do trabalho altamente qualicado e atualizado, e um ambiente que favorece a difuso de conhecimentos tcitos. A importncia da proximidade geogrca ser, desse modo, funo do tipo de atividade inovadora envolvida. No caso das atividades relacionadas a tecnologias padronizadas, as informaes e os conhecimentos podem ser codicados em padres (standards) e transmitidos atravs do espao sem grandes prejuzos. No entanto, se as atividades envolverem intensas interaes, por exemplo, entre produtores e clientes (Lundvall, 1991), e a tecnologia for complexa, a proximidade geogrca pode se revelar um fator que favorece a criao de recursos estratgicos. O contexto social e cultural e a possibilidade de frequentes relaes face a face facilitam, por exemplo, a coordenao dos diversos atores, a transmisso das informaes pertinentes e a difuso de conhecimentos tcitos. O programa de pesquisa sobre os meios inovadores refora a problemtica que relaciona o contexto regional e inovaes (Aydalot, 1986; Camagni, 1991;AGRICULTURA FAMILIAR

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Maillat, 1995). Constatando as transformaes das hierarquias espaciais ocorridas nas dcadas de 1970 e 1980, o grupo de pesquisa sobre meios inovadores (Groupe de Recherches Europen sur les Milieux Innovateurs - GREMI) se desenvolveu em torno de uma hiptese de trabalho que assim pode ser resumida: as empresas inovadoras no agem de forma isolada, mas interagem com outras rmas num ambiente coletivo que desenvolve uma percepo convergente das restries e oportunidades mercantis. Considera-se, em particular, que os comportamentos inovadores no so globais, mas sim que eles so o resultado de interaes localizadas entre um conjunto de atores que partilham competncias especcas e conhecimentos complementares. Trata-se, nesse sentido, de uma perspectiva que busca, a partir dos padres de interao e dos processos de aprendizagem coletiva, destacar o papel da proximidade geogrca nos comportamentos inovadores. No campo dos estudos rurais, essa discusso, em particular a trajetria italiana, adquiriu o estatuto de quase paradigma. Uma primeira razo para isso que tal trajetria pode ser interpretada como um processo de industrializao difusa, na qual os espaos rurais deixam, de forma gradual, de ser predominantemente agrcolas para evolurem em direo a um modelo de desenvolvimento regional, estruturado por uma rede urbana de pequenas e mdias cidades especializadas na produo de bens e servios especcos (Garofoli, 1997; Bagnasco, 1996). Os espaos rurais, nesse estilo de desenvolvimento, no se reduzem s atividades agrcolas (Marsden et al, 1993), mas so espaos sociais plurissetoriais estruturados por redes produtivas, familiares, prossionais, etc. Uma segunda razo para destacar essa experincia reside na possibilidade de extrair desse caso especco argumentos que justicam novas estratgias de desenvolvimento rural. Sendo a tradio de agricultura familiar um dos fatores da bem-sucedida trajetria italiana, estudiosos e formuladores de polticas encontram razes para legitimar a transformao das aes pblicas, e justicar mudanas na concepo dos instrumentos de promoo do desenvolvimento rural. Com efeito, o desenvolvimento rural se dissocia da busca de economia de escala decorrente do aumento da produtividade agrcola, e se aproxima de uma concepo que valoriza a construo de economias de escopo direcionadas para satisfazer uma demanda atenta qualidade dos bens e servios ofertados (Saraceno, 1994, 1998). At o presente, pode-se dizer que, no plano analtico, a problemtica territorial no meio rural tem procurado destacar o papel das redes formadas por ONGs, associaes comerciais, empresrios locais, agncias de desenvolvimento, produtores e suas organizaes, agroindstrias, etc. Dessa forma, proporciona visibilidade a novos atores e reala o arcabouo organizacional e cultural do espao

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em que se desenvolvem as interaes. Do ponto de vista normativo, por outro lado, o reconhecimento de uma multiplicidade de atores tende a valorizar os processos negociados e as alianas polticas capazes de mobilizar os recursos locais, ampliando as possibilidades de reproduo social e econmica dos habitantes dos espaos rurais. A problemtica territorial proporciona, dessa maneira, argumentos para justicar uma mudana do referencial que orienta as polticas pblicas. Em particular, proporciona elementos para legitimar aes que visam a animar fruns capazes de aglutinar as energias sociais locais, e no apenas iniciativas direcionadas para facilitar as condies produtivas do sistema agroalimentar como tm sido, tradicionalmente, as polticas de desenvolvimento rural. No contexto brasileiro, espera-se, entre outras coisas, que os espaos rurais onde predominam a agricultura familiar sejam capazes de induzir um estilo de desenvolvimento rural mais sustentvel, mais justo e gerador de novas oportunidades econmicas (Abramovay, 2003; Veiga, 2001). Registre-se, a propsito, a agregao na literatura contempornea sobre o territrio dos conceitos, premissas e promessas avanados pelo debate sobre o desenvolvimento sustentvel, em particular, sua aplicao ao planejamento territorial (Wced, 1987). Esse movimento contribuiu para a incorporao das dimenses identitria, material e organizacional dos territrios e, desse modo, reforou o requisito de uma abordagem pluridisciplinar. A no-obteno de algum grau de sustentabilidade resultaria na deteriorao qualitativa do territrio (Laganier et al, 2002). Veremos, no terceiro captulo desta coletnea, como as premissas do desenvolvimento sustentvel foram integradas no debate contemporneo sobre as polticas territoriais no Brasil. A plena compreenso dos termos desse debate requer a considerao do processo que resultou na mudana do papel do Estado como gestor e articulador exclusivo de polticas socioeconmicas e de desenvolvimento territorial, tema a ser tambm retomado no terceiro captulo. Para tanto, torna-se incontornvel agregar anlise as premissas do Consenso de Washington5 que, durante as duas ltimas dcadas, constituram a base programtica dos ajustes estruturais nacionais. O receiturio do Consenso proporcionou uma (nova) estratgia poltico-econmica de afrontamento das consequncias socioeconmicas negativas da chamada dcada perdida (anos 1980) sobre, de um lado, a eroso das nanas pblicas e, de outro, sobre a queda dos nveis de emprego e de renda (Williamson, 2004).5

O termo Consenso de Washington foi cunhado pelo economista John Williamson em 1989, quando da realizao de um seminrio sobre a necessidade de reformas econmicas na Amrica Latina.AGRICULTURA FAMILIAR

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Destaque-se, no programa do referido Consenso, um ponto que incide diretamente sobre as polticas territoriais, a saber, a incluso do tema sobre as instituies de regulao (Idem). Para promover o binmio crescimento/desenvolvimento, o receiturio do Consenso de Washington incentiva a criao de instncias pblicas regulatrias, porm no estatais. Esse enfoque encontrou guarida tambm no relatrio de 2002 do Banco Mundial, intitulado Instituies para os mercados (Banque Mondiale, 2002), no qual sugerido que o papel de um Estado moderno deve ser o de incentivar a criao de instituies6 que facilitem e regulem mercados (ecientes). Dado que o Consenso de Washington prega, em sua essncia, a diminuio da estrutura estatal, nada mais lgico do que incluir em seu contedo programtico o incentivo criao de uma rede de instituies presentes localmente. Em resumo, trata-se de delegar a gesto territorial aos agentes locais sociedade civil, representantes polticos e de ONG, empresariado, etc. , tendo como objetivo dinamizar o capital social7 territorial, ou seja, as interaes sociais, polticas e econmicas singulares a cada territrio. Ver-se-, no terceiro captulo dessa coletnea, como as premissas do Consenso de Washington e do desenvolvimento sustentvel foram integradas, de distintas formas, ao debate contemporneo sobre as polticas territoriais no Brasil.

Territrio e desenvolvimento territorial: da ao pblica localizada ao coletiva territorialParte deste tpico foi extrada da anlise realizada por Carrire e Cazella (2006). Os estudos acerca do espao geogrco e as reexes sobre o desenvolvimento ignoraram-se mutuamente at o incio dos anos 1970. Aps, mais ou menos, vinte e cinco anos de interesses separados, ganharam importncia as reexes que tentam associ-los. Assim, o espao-lugar de desenvolvimento, ou seja, o simples suporte6

[Instituies] so os constrangimentos idealizados pelos seres humanos que estruturam a interao poltica, econmica e social. Elas consistem tanto em constrangimentos informais (sanes, tabus, costumes, tradies e cdigos de conduta), quanto em regras formais (constituies, leis, direitos de propriedade). Atravs da histria, instituies tm sido idealizadas pelos seres humanos para criar ordem e reduzir incertezas nas trocas (North, 1991, p. 97). O capital social o conjunto de recursos atuais ou potenciais que esto ligados existncia de uma rede sustentvel de relaes mais ou menos institucionalizadas de inter-reconhecimento; ou, em outras palavras, ao pertencimento a um grupo, como conjunto de agentes que no so somente dotados de propriedades comuns, mas esto unidos por laos permanentes e teis (Bourdieu, 1980, p. 2).

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das atividades econmicas, substitudo pela idia do espao-territrio carregado de vida, de cultura e de potencial de desenvolvimento (Lacour, 1985). O espao-territrio se diferencia do espao-lugar pela sua construo a partir do dinamismo dos indivduos que nele vivem. A noo de territrio designa, aqui, o resultado da confrontao dos espaos individuais dos atores nas suas dimenses econmicas, socioculturais e ambientais. O territrio no se ope ao espao-lugar funcional, ele o complexica, constituindo uma varivel explicativa suplementar. Como sugere Pecqueur (1987, p. 9), o jogo dos atores adquire localmente uma dimenso espacial que provoca efeitos externos e pode permitir a criao de um meio favorvel para o desenvolvimento do potencial produtivo de certo local. Os estudos mais recentes sobre esse assunto indicam, por um lado, que a formao de um territrio resulta do encontro e da mobilizao dos atores que integram um dado espao geogrco e que procuram identicar e resolver problemas comuns. Por outro, demonstram que um territrio dado, cuja delimitao poltico-administrativa, pode abrigar vrios territrios construdos. A congurao organizacional das diversas instituies e o cruzamento do duplo jogo da concorrncia que se estabelece entre as empresas e entre os diferentes territrios so elementos constitutivos da noo de desenvolvimento territorial. Assim, o territrio pode ser visto como uma congurao mutvel, provisria e inacabada, e sua construo pressupe a existncia de uma relao de proximidade dos atores (Pecqueur, 1996). Em outras palavras, os territrios construdos apresentam trs caractersticas bsicas: a) eles so mltiplos, podendo se sobrepor, alm de impermanentes; b) na maioria das vezes, seus limites no so ntidos; c) eles buscam valorizar o potencial de recursos latentes, virtuais ou escondidos. Entende-se aqui por recursos os fatores a serem explorados, organizados ou revelados. Quando um processo de identicao e valorizao de recursos latentes se concretiza, eles se tornam ativos territoriais. Os recursos e ativos podem ser genricos e especcos. Os primeiros so totalmente transferveis e independentes da aptido do lugar e das pessoas, onde e por quem so produzidos. J os segundos so de difcil transferncia, pois resultam de um processo de negociao entre atores que dispem de diferentes percepes dos problemas e diferentes competncias funcionais (Pecqueur, 2004). O processo de especicao de ativos diferencia um territrio dos demais e se contrape ao regime de concorrncia baseada em produo padronizada. Segundo Pecqueur (2004, p. 4), a dinmica de desenvolvimento territorial visa revelar os recursos inditos e por isso que ela se constitui numa inovao.

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Novas conguraes e conhecimentos territoriais podem ser produzidos quando saberes heterogneos so articulados e combinados. A metamorfose de recursos em ativos especcos indissocivel da histria longa, da memria social acumulada e de um processo de aprendizagem coletiva e cognitiva (aquisio de conhecimento) caracterstica de um dado territrio. Esse processo de especicao consiste, portanto, na qualicao e diferenciao de recursos que os atores locais revelam no processo de resoluo de problemas comuns ou similares. O ponto mximo de maturao de um territrio construdo consiste na gerao de uma renda de qualidade territorial, capaz de superar a renda obtida atravs da venda de produtos e servios de qualidade superior. Nessa concepo, o prprio territrio o produto comercializado. Para tanto, os diferentes atores locais pblicos e privados precisam articular suas aes mercantis e no-mercantis, com o propsito de criar uma oferta heterognea e coerente de atributos territoriais. Os estudos dos territrios baseados na teoria das instituies oferecem uma interpretao que coloca em destaque as aes coletivas dos atores sociais (mercantis ou no). O territrio , ao mesmo tempo, uma criao coletiva e um recurso institucional. A pluralidade dos modos de funcionamento das instituies pode ser dividida em dois grupos. Por um lado, as instituies informais a exemplo dos costumes e das representaes coletivas da sociedade estruturam os modelos coletivos e normativos do pensamento e da ao social. Elas desempenham, ao mesmo tempo, papis informativos e cognitivos. Por outro lado, as instituies formaisdesempenham um duplo papel, estrutural e cognitivo, complementar ao papel das instituies informais; elas corrigem, de certo modo, a insucincia das instituies informais em organizar o sistema econmico, alm de terem uma existncia concreta e construda. (Abdelmalki et al., 1996, p. 182)

A criao coletiva e institucional do territrio est associada idia de que as transformaes das propriedades do territrio-dado podem gerar e maximizar o processo de valorizao de diversos recursos genricos e especcos desse espao. A densidade institucional de um espao explica a construo e as caractersticas de um territrio. Duas propriedades fundamentais do territrio se sobressaem nessa anlise: a) uma realidade em evoluo; b) o resultado simultneo dos jogos de poder e dos compromissos estveis estabelecidos entre os principais atores sociais.

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Assim, os aparatos institucionais implicados nas dinmicas de desenvolvimento no so os mesmos em todos os territrios. Eles variam consideravelmente, e alguns guram como exceo, o que torna impossvel imaginar um modelo genrico de desenvolvimento. Alm disso, a anlise institucional do territrio no dissimula as excluses socioeconmicas nem os conitos sociais. A reproduo das excluses sociais pode acontecer numa dinmica de criao coletiva de um territrio, se somente uma frao da sociedade local participa e se benecia diretamente. As iniciativas que procuram transformar um territrio-dado em territrio-construdo mediante a criao de vantagens diferenciadoras, no esto isentas do risco da elitizao ou da apropriao da renda de qualidade territorial por um nmero reduzido de atores geralmente, os mais bem posicionados na hierarquia social. Como visto, o territrio uma unidade ativa de desenvolvimento que dispe de recursos especcos e no transferveis de uma regio para outra. Trata-se de recursos materiais ou no, a exemplo de um saber-fazer original, em geral, ligado histria local. A consequncia disso que no se pode valorizar esse tipo de recurso noutro lugar. O territrio no , portanto, s uma realidade geogrca ou fsica, mas uma realidade humana, social, cultural e histrica. Isso signica que as mesmas condies tcnicas e nanceiras no geram os mesmos efeitos econmicos em termos de desenvolvimento em dois territrios diferentes. O territrio, como armam Courlet e Pecqueur (1993), o resultado de uma construo social. O que cria o territrio o sistema de atores locais. O desenvolvimento territorial passa, assim, por um inventrio dos recursos locais8 um inventrio realizado com imaginao, capaz de transformar aspectos negativos em novos projetos de desenvolvimento. Ou ainda, que valores simblicos passem a desempenhar um papel de recursos socioeconmicos. Nesse sentido, no se instala uma dinmica de desenvolvimento territorial sem a criao ou o reforo de redes e de formas de cooperao. As estruturas de intercmbio entre pesquisadores, associaes civis, empresas privadas e rgos pblicos so fundamentais para estimular a reexo de novos projetos. O desenvolvimento territorial pressupe, ainda, a negociao entre atores cujos interesses no so idnticos, mas que podem encontrar reas de convergncia em novos projetos, de tal forma que todos aproveitem a atmosfera propcia gerao de iniciativas inusitadas. Outro aspecto operacional tem a ver com medidas de planejamento dos pequenos centros urbanos, visando a reequilibrar as malhas urbanas e a permitirPara exemplos de projetos de desenvolvimento territorial centrados na valorizao de recursos territoriais especcos, ver Carrire e Cazella (2006).8

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uma difuso dos servios s empresas e populao. Esses servios so bsicos para se ter um ambiente propcio instalao de novas atividades e no podem, portanto, estar concentrados somente nos grandes polos urbanos. Em funo do nvel de descentralizao administrativa do pas, o apoio ao desenvolvimento de pequenos centros urbanos depende de planos estratgicos do Estado. O reforo do poder local passa pela descentralizao poltico-administrativa do Estado. As estruturas centralizadas no renem os meios nem as competncias para conhecer com profundidade as especicidades locais. O desenvolvimento territorial torna-se, assim, um processo tributrio da descentralizao poltico-administrativa do Estado, cujo sucesso uma varivel dependente da qualidade das iniciativas locais9. Disso decorre que esse estilo de desenvolvimento tributrio de um processo de educao e de formao, que procura requalicar o saber-fazer local, lanando mo de novas tecnologias. Isso impe incluir, nos projetos locais, programas de informao, de formao e de educao. Nos casos bem-sucedidos, trs categorias de atores, embora com interesses diferentes, adotam algumas modalidades de cooperao e estabelecem estratgias de desenvolvimento comuns: a) os atores pblicos dos diferentes escales de governo; b) atores privados ligados a empresas, bancos, agncias de seguros, caixas de poupana, etc.; c) os componentes da sociedade civil, tais como associaes culturais ou esportivas, sindicatos e estruturas de educao. Esses princpios gerais, porm, recobrem estratgias diferenciadas de desenvolvimento econmico devido existncia de uma diversidade de conguraes produtivas, sendo as mais conhecidas os casos dos distritos industriais, os arranjos produtivos locais, ou, ainda, os conglomerados (clusters) de empresas. Em todos os casos, os territrios resultam do agrupamento de empresas (ou unidades de produo) o qual d lugar a uma especializao da oferta e ao desenvolvimento de um saber-fazer especco. Contudo, a relao com o mercado pode ser profundamente diferente. No caso dos territrios, no sentido de Pecqueur, a estratgia baseada no desenvolvimento de ativos no transferveis (cf. supra). J no caso dos conglomerados de empresas, amplamente descritos por Porter (1999), no se trata tanto de evaso da concorrncia, como no caso anterior, mas, ao contrrio, trata-se de afront-la nas melhores condies possveis. Porter (Idem) considera que o desenvolvimento territorial dependente da capacidade concorrencial do territrio, a qual est associada qualidade dos fatores de produo (vantagens comparativas naturais), concentrao de empresas, impor9

Uma excelente anlise sobre esse tema realizada por Putnam (2000) com base na experincia italiana de descentralizao.

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tncia da rivalidade entre empresas criada pela proximidade e pela existncia de indstrias conexas ( montante e jusante da produo) nas reas de abastecimentos e servios. A densidade econmica e institucional, alm de valorizar os ativos especcos, permite minimizar os custos de transao, gerar economias de escopo e criar um processo cumulativo de desenvolvimento (Krugman, 1995; Hirschman, 1986). As teorias de Porter tiveram uma enorme repercusso na Amrica Latina no debate sobre desenvolvimento territorial em meio rural. Elas constituem um ingrediente importante da reexo sobre a nova ruralidade, amplamente difundida por agncias internacionais de cooperao, tais como o IICA (1998) e instituies nanceiras internacionais (BID, BM) (Echeveri & Ribeiro, 2002; Gmez Echenique, 2002; Schejtman y Berdegu, 2003; Dirven, 2006). No Brasil, essas teorias so referncias importantes para o Programa Arranjos Produtivos Locais (APL), desenvolvido pela Secretaria do Desenvolvimento da Produo (SDP), Ministrio do Desenvolvimento, Indstria e Comrcio Exterior. Ver-se-, em captulo posterior, que polticas territoriais esto tambm presentes nos Ministrios do Desenvolvimento Agrrio, do Meio Ambiente e da Integrao Nacional. O prprio Plano Plurianual 2004-2007 Orientao estratgica de governo previa que [a] rica diversidade regional ser empregada como um ativo na regionalizao do nosso desenvolvimento, de forma compatvel com o requisito fundamental da sustentabilidade ambiental (Mpog, 2004, p. 12). Como concluso geral do captulo, ressalta-se que o territrio, mais que um conceito-mala, um conceito polissmico, cujos sentidos dependem do olhar disciplinar de quem dele se vale, como tambm da problemtica poltica e social do contexto em questo. Considera-se que os diversos enfoques assinalados anteriormente se justicam do ponto de vista das polticas pblicas e da ao coletiva, e podem existir simultaneamente. Nada impede que os territrios resultantes de lgicas distintas (ao pblica, ao coletiva, regulao social) se sobreponham. Cada problemtica de interveno pode gerar o seu territrio.

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