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Rev. de Letras - N 0 . 22 - Vol. 1/2 - jan/dez. 2000 94 Resumo O discurso politicamente correto, conceito surgido na década de oitenta, nos EUA, é atualmente muito difun- dido no Brasil. Discute-se aqui o politicamente correto como base para uma reflexão sobre metáforas e neologismos re- lacionados com doenças, especialmente a AIDS. Desenvol- vendo-se em seguida uma análise do glossário, “AIDS, leia antes de escrever”, editado pelo Ministério da Saúde, con- siderado uma tentativa de oferecer uma terminologia que julga adequada (politicamente correta) para elaboração de textos jornalísticos sobre a AIDS e outras doenças se- xualmente transmissíveis. Conclui-se que o discurso politi- camente correto tem servido a esforços pela superação de preconceitos lingüístico-sociais, mas ao mesmo tempo pode contribuir para ocorrência de equívocos, quando entendi- do e praticado de forma sectária e fora do contexto histó- rico-social. Palavras chave: Discurso politicamente correto; metáforas; neologismo e AIDS. Résumé Le discours politiquement correct, un concept apparu aux années 80, aux Ëtats Unis, est actuellement très diffusé au Brésil. On discute le politiquement correct comme base pour une réflexion sur les métaphores et les néologismes concernant les maladies, spécialement le SIDA. On développe ensuite une analyse du glossaire, “SIDA, lisez avant d’écrire” édité par le Ministère de la Santé, considéré comme une tentative d’offrir une terminologie que l’on julgue adéquate (politiquement correcte) à l’élaboration de textes journa- listiques sur le SIDA et d’autres maladies sexuellement transmissibles. On arrive à la conclusion que le discours politiquement correct aide à surmonter les préjugés linguistique-so ciaux, mais,il peut à la fois contribuer à l’occurence d’équivoques, lorsgu’il est compris et pratiqué d’une manière sectaire et mis hors du contexte historique-social. Mots-clé: Discours politiquement correct; métaphores néologisme; èt SIDA. 1 INTRODUÇÃO O “discurso-comportamento politicamente correto” é considerado uma atitude lingüístico-social de respeito às diferenças sociais e culturais mas pode também servir de argumento para atitudes autoritárias. Termos que em al- gum momento são plenamente aceitos, ao longo da histó- ria podem-se tornar proibidos, objeto de restrições e até de repressão. Neste trabalho, pretende-se refletir sobre o politi- camente correto, envolvendo a sua contribuição para as lu- tas sociais e os problemas que certas atitudes extremistas podem provocar. Dividimos o texto em quatro partes, sendo a primeira sobre o conceito de politicamente correto, a segunda re- fere-se a aspectos da linguagem e doenças e as duas últi- mas partes são uma rápida aplicação, através da análise de alguns termos relacionados com a AIDS. O objetivo é propor uma discussão do conceito de discurso politicamente correto relacionado a um tema atual e polêmico, AIDS. O interesse pelo tema deriva da vivência do autor no ensino de jornalismo e em consultorias e pro- jetos interdisciplinares de comunicação e saúde pública. A AIDS E OUTRAS FALAS: UMA REFLEXÃO SOBRE METÁFORAS E NEOLOGISMOS RELACIONADOS COM DOENÇAS Nonato Lima 1 1 Professor do Departamento de Comunicação Social da UFC, aluno do Programa de Pós-Graduação em Lingüística (Mestrado) da UFC, espe- cialista em Teorias da Comunicação e da Imagem.

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  • Rev. de Letras - N0. 22 - Vol. 1/2 - jan/dez. 20009 4

    ResumoO discurso politicamente correto, conceito surgido

    na dcada de oitenta, nos EUA, atualmente muito difun-dido no Brasil. Discute-se aqui o politicamente correto comobase para uma reflexo sobre metforas e neologismos re-lacionados com doenas, especialmente a AIDS. Desenvol-vendo-se em seguida uma anlise do glossrio, AIDS, leiaantes de escrever, editado pelo Ministrio da Sade, con-siderado uma tentativa de oferecer uma terminologia quejulga adequada (politicamente correta) para elaboraode textos jornalsticos sobre a AIDS e outras doenas se-xualmente transmissveis. Conclui-se que o discurso politi-camente correto tem servido a esforos pela superao depreconceitos lingstico-sociais, mas ao mesmo tempo podecontribuir para ocorrncia de equvocos, quando entendi-do e praticado de forma sectria e fora do contexto hist-rico-social.

    Palavras chave: Discurso politicamente correto; metforas;neologismo e AIDS.

    RsumLe discours politiquement correct, un concept apparu

    aux annes 80, aux tats Unis, est actuellement trs diffusau Brsil. On discute le politiquement correct comme basepour une rflexion sur les mtaphores et les nologismesconcernant les maladies, spcialement le SIDA.On dveloppe ensuite une analyse du glossaire, SIDA, lisezavant dcriredit par le Ministre de la Sant, considr comme unetentative doffrir une terminologie que lon julgue adquate(politiquement correcte) llaboration de textes journa-listiques sur le SIDA et dautres maladies sexuellementtransmissibles. On arrive la conclusion que le discours

    politiquement correct aide surmonter les prjugslinguistique-so ciaux, mais,il peut la fois contribuer loccurence dquivoques, lorsguil est compris etpratiqu dune manire sectaire et mis hors du contextehistorique-social.

    Mots-cl: Discours politiquement correct; mtaphoresnologisme; t SIDA.

    1 INTRODUO

    O discurso-comportamento politicamente correto considerado uma atitude lingstico-social de respeito sdiferenas sociais e culturais mas pode tambm servir deargumento para atitudes autoritrias. Termos que em al-gum momento so plenamente aceitos, ao longo da hist-ria podem-se tornar proibidos, objeto de restries e atde represso.

    Neste trabalho, pretende-se refletir sobre o politi-camente correto, envolvendo a sua contribuio para as lu-tas sociais e os problemas que certas atitudes extremistaspodem provocar.

    Dividimos o texto em quatro partes, sendo a primeirasobre o conceito de politicamente correto, a segunda re-fere-se a aspectos da linguagem e doenas e as duas lti-mas partes so uma rpida aplicao, atravs da anlise dealguns termos relacionados com a AIDS.

    O objetivo propor uma discusso do conceito dediscurso politicamente correto relacionado a um tema atuale polmico, AIDS. O interesse pelo tema deriva da vivnciado autor no ensino de jornalismo e em consultorias e pro-jetos interdisciplinares de comunicao e sade pblica.

    A AIDS E OUTRAS FALAS: UMA REFLEXOSOBRE METFORAS E NEOLOGISMOS

    RELACIONADOS COM DOENAS

    Nonato Lima1

    1 Professor do Departamento de Comunicao Social da UFC, aluno do Programa de Ps-Graduao em Lingstica (Mestrado) da UFC, espe-cialista em Teorias da Comunicao e da Imagem.

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    2 O POLITICAMENTE CORRETO

    A partir dos anos 80, nos Estados Unidos, surge es-pecialmente entre grupos que sofriam algum tipo de discri-minao, o movimento discursivo que ganhou o nome depoliticamente correto. Sua prtica e sua tica centram-sefundamentalmente na definio de comportamentoslingsticos que evitem qualquer tipo de discriminao.

    Como a palavra a expresso material de prticasdiscriminatrias, o movimento funciona como um guia so-bre a maneira correta de falar, uma espcie de conjunto denormas que devem ser cumpridas, sob risco de alguma cen-sura ou punio.

    No h uma interpretao nica para o politicamen-te correto, como observa BORGES:

    a) reao poltica (ecolgica) para proteger o di-reito daqueles que historicamente vm sendo discrimi-nados por segmentos de mais poder; b) modismo tpi-co dos anos 80/90; c) prtica censria que pe emevidncia comportamentos socialmente reprovveis; d)tica que se constitui a partir da insistncia quanto reformulao da linguagem, coibindo certas expres-ses de nomeao como discriminatrias e proscreven-do piadas sexistas ou tnicas, etc.( BORGES, 1996).

    O que seria ento o discurso politicamente correto?

    O discurso (comportamento, a linguagem) politica-mente correto configura-se como uma estratgia paradenunciar situaes em que indivduos, ou grupos,ou segmentos, ou classes so objeto de desvaloriza-o, de estigmatizao ou de discriminao por par-te de outros grupos, ou segmentos .(BORGES, 1996).

    O autor argumenta ainda que a tica e a militncia dopoliticamente correto agem censurando a linguagem consi-derada incorreta e perseguem o desejo de estabelecer umcomportamento lingstico que prime pelo uso de enunci-ados e/ou de palavras limpas, neutras, higinicas,asspticas. (BORGES, 1996).

    Os procedimentos adotados variam bastante, mas osmais comuns so a substituio de termos marcados portermos neutros , sugerindo um sentido imanente s pala-vras, algo que j no se pode admitir, pelo menos sob a ti-ca enunciativo-discursiva. Nessa busca do termo adequado,da expresso politicamente correta, so muitos os rumosoferecidos pela linguagem: neologismos, eufemismos, pa-rfrases descritivas etc. mas, no se pode obscurecer o fatode que qualquer dessas possibilidades oferecidas pelalngua no deve ser considerada isoladamente:

    Somente na histria social possvel encontrar aexplicao do que as palavras significa(ra)m em cada

    um de seus momentos e situaes de uso (complexode formaes discursivas, imaginrias, ideolgicas) ,relativas s diversas posies enunciativas (papissociais, filiaes polticas etc.) que os sujeitosacupa(ra)m..(BORGES, 1996).

    Inevitvel considerar que as mudanas adotadaspelos que seguem os preceitos do politicamente correto po-dem dar resultados positivos, podem representar conquistasimportantes numa perspectiva das relaes sociais e at sobo ponto de vista lingstico, mas no so substancialmenteeficazes se no so acompanhadas de mudanas efetivas nasociedade, visto que os discursos nada mais so do que asociedade falando de si mesma (MILHOMEM, 1993). Esseponto de vista expresso tambm em SADER (1993) numartigo sobre polticas pblicas para o problema do menor,termo que ele prefere, mesmo com a substituio constitu-cional e legal do termo por criana e adolescente, peloCongresso Nacional Constituinte de 1988. A justificativapara essa deciso parece tambm uma crtica ao politica-mente correto:

    Pela estigmatizao que a palavra menor sofre,se decidiu, oficialmente a partir da aprovao do Es-tatuto da Criana e do Adolescente, na ltima Cons-tituinte2, proscrever a palavra menor, utilizandosempre criana e adolescente. Mantivemos aquipropositadamente a expresso menor porque elaaponta para uma das dimenses do problema - aestigmatizao- e, por outro lado, porque a diferenci-ao operada pela prpria dinmica social, o quefica escondido por criana e adolescente , como seno houvesse no capitalismo brasileiro, uma diferen-a fundamental entre as crianas e adolescentes dasclasses populares e os outros. (SADER, 1993).

    O problema da mudana do discurso deveria, as-sim, ter relao com transformao da realidade social, parano significar apenas tentativa de imposio de sentido oude controle da polissemia, visto que no se pode esquecerque os valores construdos socialmente podem resistir aolongo da histria, mesmo diante de mudanas discursivasdeterminadas.

    BORGES (1996) adverte que em nome do politica-mente correto, corre-se o risco de por em uso expresses outermos absurdos, muitas vezes mais problemticos do que afraseologia considerada politicamente incorreta. Dos vriosexemplos dados pelo autor cita-se apenas alguns:

    (1) Prostituta prestadora de servios sexuais;(2) Baixo indivduo verticalmente prejudicado;(3) Gordo indivduo horizontalmente avantajado.

    (BORGES, 1996).

    2 Assemblia Nacional Constituinte ocorreu em 1988.

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    A crtica que ele faz a tais casos que o preconcei-to no foi extinto a partir dessas mudanas discursivas. Cha-mar uma pessoa baixa de verticalmente prejudicada ape-nas uma forma eufmica de avaliar a pessoa negativamenteem funo da sua altura julgada como inferior, podendo atconotar uma ironia. Considerar algum horizontalmenteavantajada, seria avali-la como gorda, mantendo social-mente o que o discurso politicamente correto tenta ocultar.Como ser, na realidade social, o tratamento dado a umaprestadora de servios sexuais? Ser diferente do momentoanterior em que a mesma pessoa era chamada prostituta?E mesmo havendo alguma mudana social ou econmicacomo uma perspectiva profissional da prostituio, osprprios movimentos sociais podem manter antigas deno-minaes e com novas prticas sociais. o caso daAPROCE, Associao das Prostitutas do Cear, que adota apalavra prostituta em seu nome, mas toda a sua prticasocial direciona-se para obteno de melhoria da qualidadede vida das mulheres, inclusive, apontando alternativas pro-fissionais e de renda fora da prostituio.

    No se pode negar os muitos mritos do politicamen-te correto, especialmente proporcionando a pessoas e seg-mentos sociais, o direito a fazer valer a sua condio depessoa. Mas o politicamente correto define-se a partir deuma posio que histrica/enunciativa/ideolgica, e por issomesmo pode o prprio comportamento politicamente corre-to incorrer em atitudes incorretas, caso proponha-se a sernico, verdadeiro, impositivo, sectrio, intransigente, deten-tor do sentido, j que comprometeria o direito expresso.

    3 A DOENA E A LINGUAGEM

    No livro Aids e suas metforas, SONTAG faz umareleitura da doena como metfora, argumenta que im-possvel pensar sem metforas e ao mesmo tempo defende anecessidade de tirar de circulao algumas delas(SONTAG, 1989) no que se evidencia uma posio polticaem relao ao problema AIDS/linguagem, inscrevendo-se,portanto, no mbito do politicamente correto.

    Antes de chegar s vrias metforas da AIDS, lembraque, nos primrdios da medicina ocidental, os gregos j pen-savam a doena e o corpo metaforicamente, assimilando in-clusive outras formas de conhecimento fora da medicina,como a arte, mas inspirando-se nos conceitos militaresque se construiu o conceito de doena, definindo-a comoum invasor do corpo, inimigo que teria de ser eliminado,constituindo-se assim a metfora militar, norteadora docampo da medicina. Essa viso muito geral seria maisespecificada, no incio do que chama pensamento mdicomoderno, segundo o qual o invasor do corpo no seria maisa doena e sim os microorganismos causadores da doena:

    A doena encarada como invaso de organis-mos aliengenas aos quais o organismo reage comsuas prprias operaes militares, tais como amobilizao de defesas imunolgicas, e a medi-cina passa a ser agressiva como na linguagemda maioria das quimioterapias.(SONTAG,1989).

    A histria da medicina do nosso sculo rica emguerras contra doenas comopor exemplo guerra smoscas, uma campanha contra a tuberculose na Itlia docomeo do sculo. No caso brasileiro, uma campanha queerradicou a varola, na dcada de 60, usava um instrumentochamado pistola para vacinar e coincidncia ou no, ti-nha como vacinadores soldados do exrcito. Uma guerraperfeita e vitoriosa...

    Um exemplo da histria do Cear de 1862, exprimeclaramente o discurso militarizado da doena. Conformerelata NOGUEIRA, uma epidemia de clera atacou mui-tas localidades da ento Provncia do Cear, matando cercade 13.000 pessoas. Na vila da Telha, hoje municpio deIguatu, a invaso epidmica matou mais gente na zonarural onde no havia recurso algum para combater o mal(NOGUEIRA, 1962).

    Um outro historiador, R. Batista Arago referindo-se ao mesmo fato diz que a Vila da Telha padeceu dura-mente dessa enfermidade, no apenas em termos de pnico,mas a sofrer baixas em expressivos quantitativos. Refe-re-se assim a atitude do vigrio e de seu coadjutor diante dainvaso: Abandonaram os indigitados colricos, quan-do estes necessitavam de apoio e procuraram homiziar-seonde presumivelmente os maus ventos africanos no osmolestariam. (ARAGO, 1997).

    Este exemplo evidencia o uso da metfora militar: adoena era um invasor, um mal, um inimigo a sercombatido e os doentes abandonados no territrio in-vadido como soldados fora de combate. Os religiosos fu-giram do combate, homiziaram-se. Por ltimo, a estig-matizao tambm presente atravs da expresso mausventos africanos, que tambm uma considerao da do-ena como o invasor estrangeiro, portanto, inimigo comquem os padres teriam evitado um confronto, por noquererem expor seus arsenais imunolgicos.

    A metfora militar relacionada doena tem conse-qncias sociais muito graves:

    As metforas militares contribuem para estig-matizao de certas doenas e, por extenso, daqueles queesto doentes (SONTAG, 1989). A em nome do bomcombate ao inimigo (a doena) , combate-se tambm comas armas do preconceito, o doente. Neste caso tambm seinclui a AIDS porque essas metforas Provocam umamobilizao excessiva, uma representao exagerada e douma contribuio de peso para o processo de excomunhoe estigmatizam o doente. (SONTAG, 1989)

    Desde os primeiros casos de AIDS, nos EstadosUnidos, no incio dos anos 80, a excomunho e a

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    estigmatizao j se prenunciavam e se pronunciavamcom muita fora por diversas razes, mas principalmentepela associao imediata com homossexualismo, posterior-mente com uso de drogas ilegais injetveis, mais adiantepelo fato de acometer populaes do terceiro mundo comohaitianos e africanos, neste ltimo caso, entrando o com-ponente racista. (BLOUIN, 1987).

    Como os homossexuais, inicialmente, eram os maisatingidos pela AIDS, a doena chegou a ser chamada depeste gay. Outros segmentos sociais tambm viriam a seinfectar: os hemoflicos, usurios de drogas, etc. dando ori-gem ao conceito de grupos de risco, que seriam os nicosa serem ameaados pela doena e que tambm represen-tariam uma ameaa aos demais integrantes da espciehumana naturalmente imunes. Esse equvoco durou algunsanos, at que ficou claro que todo ser humano estaria igual-mente em risco de se infectar, visto que se confirmaram ou-tras possibilidades de transmisso do vrus HIV.

    Esvaiu-se, desse modo, o frgil sentido de grupo derisco, pois as pesquisas chegaram concluso de que a in-feco pelo vrus no era um castigo a pessoas ou gruposespecficos. Entrou em cena ento o comportamento derisco um conceito do tamanho da humanidade, pois a cin-cia j havia detectado a infeco por HIV atravs de trans-fuses de sangue, uso compartilhado de agulhas/seringas ,relaes sexuais sem proteo e por me portadora dovrus, durante a gravidez, no parto ou no aleitamento.

    Antes dessa nova revelao das pesquisas mdico-cientficas, o mundo testemunhou a censura, condenao,excluso de segmentos sociais tidos como potenciais por-tadores e transmissores do vrus da AIDS: homossexuais,usurios de drogas, hemoflicos, estrangeiros, africanos, mo-radores de pases do terceiro mundo e at a figura do desco-nhecido. Perda de espao na famlia e na sociedade, desem-prego, recusa de atendimento em hospitais foram alguns dosmuitos problemas enfrentados por aqueles que estavam como HIV/AIDS ou eram suspeitos por pertenceram a algumgrupo de risco.

    Nos Estados Unidos, um candidato a prefeito deHouston incluiu em seu plano de governo eliminar os pede-rastas para banir a AIDS, enquanto no Texas ohomossexualismo foi tornado ilegal. Estrangeiros e gru-pos de risco na Frana enfrentaram um projeto do nativistae racista extremado Le Pen que considerava a AIDS umperigo estrangeiro e recomendava o exame de HIV em todoo pas, com a imposio de quarentena a todos os porta-dores do vrus. (SONTAG, 1989).

    No Brasil, um encarte publicado pela Revista Fa-mlia Crist de nmero 326 chegou a sugerir evitar relaci-onamento sexual com pessoas suspeitas ou que fazem partedos grupos de risco.

    A idia de grupos de risco, j superada no campoda cincia, acabou sendo indiretamente retomada recente-mente pela Conferncia Nacional dos Bispos do Brasil,

    CNBB, que publicou um documento manifestando suacrena na imunidade da fidelidade conjugal, apesar deum crescimento alarmante do nmero de mulheres infectadaspor maridos e namorados tidos como fiis at o dia doteste laboratorial. E isso numa situao em que esto emjogo tambm outros valores culturais, alm dos religiosos. importante registrar que h outras posies dentro da pr-pria Igreja Catlica que no entendem o problema numaperspectiva mais ampla e so favorveis adoo de me-didas preventivas e contrapem-se a atitudes preconceituosasou dogmticas em relao a AIDS.

    A AIDS uma doena que leva pessoas a seremconsideradas doentes antes de adoecerem, que produz umasrie aparentemente inumervel de doenas-sintoma; paraa qual s h paliativos; e que leva muitos a uma espcie demorte social que precede a morte fsica... (SONTAG,1989)um terreno frtil de metforas mdicas, polticas, religiosasetc. e de discriminao e estigmatizao, constituindo-se,tambm numa questo aberta a uma discusso sob a pers-pectiva do discurso-comportamento politicamente correto.

    4 OS NOMES E AS FALAS DA PESTE

    Os meios de comunicao, atravs dos noticirios,foram os responsveis pela disseminao de muitos termosrelacionados com a AIDS a partir das primeiras evidnciasoferecidas pela medicina e de referncias culturais dos maisdiversos matizes. Tem sido assim com as novidades que vi-ram notcia e com o prprio processo neolgico em muitoscasos, como ressalta Ieda Maria Alves: Todos criam mas acomunicao de massa cria e difunde mais. a que sebanaliza a linguagem tcnica (ALVES, 1990).

    As novidades da medicina tambm chegam lingua-gem, pela via neolgica. Neste trabalho, adota-se generica-mente a neologia, em vez da neonmia, porque no se pre-tende uma discusso sobre a constituio dos termos sob atica da terminologia cientfica, mas uma abordagem sobreo uso social de termos ou expresses. Os neologismos sur-gem a partir de mecanismos prprios da lngua (autctones)ou itens lexicais de outros sistemas lingsticos (ALVES,1990). Uma unidade lxica passa a ter carter neolgico medida em que interpretada pelo receptor e, portanto pos-sibilita a comunicao. O neologismo pode ser fonolgico,criao de lxico com significante novo, indito;onomatopaico, a partir de sons j existentes; sinttico quecombina elementos j existentes no sistema lingstico por-tugus. (ALVES, 1990).

    A composio por sigla ou acronmica, neologismosinttico, resulta da lei da economia discursiva, que consis-te em reduzir o sintagma para tornar mais simples e eficaz acomunicao (ALVES, 1990).

    Lingisticamente a AIDS nasce como um neologismoacronmico a partir da expresso em ingls Acquired Immune

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    Deficiency Syndrome. Da soma da primeira letra de cadapalavra da referida expresso, resultou a sigla que se trans-formou num neologismo em ingls: AIDS. O termo AIDSveio para o portugus como emprstimo, com a traduoseguindo a estrutura do portugus: Sndrome da Imu-nodeficincia Humana Adquirida.

    Em princpio, o novo termo seria SIDA, como ocor-re no espanhol, no francs e mesmo no portugus falado emoutros pases que no o Brasil. No se conhece uma posiodefinitiva sobre as razes que levaram o Brasil a adotar asigla conforme a estrutura do ingls, divergindo dos demaispases da Amrica Latina e do Caribe. Mas certamente agrande influncia da lngua inglesa no portugus brasileiroatual e dos Estados Unidos na vida scio-cultural e econ-mica do Brasil no so fatores desprezveis.

    Como ressalta ALVES, Contemporaneamente, sobretudo da lngua inglesa que o portugus tem recebidoemprstimos, particularmente abundantes nos domniostcnico e cientfico(ALVES, 1990). Uma outra contribuiopara tal deciso pode estar relacionada com o poder dosprprios organismos internacionais nas suas relaes com oBrasil. A Organizao das Naes Unidas fez sua opo pelasigla em ingls. O prprio Banco Mundial, uma espcie desuperego da economia brasileira mantm dois contratos deemprstimos com o Brasil para preveno AIDS, que re-ceberam a designao simplificada de AIDS I e AIDS II,conforme publicao do Ministrio da Sade do Brasil. Ovrus causador da AIDS, Human Immuno Deficiency Virus,ficou em portugus, espanhol e francs: Vrus daImunodeficincia Humana, VIH, mas no Brasil chama-seHIV, fato lingstico coerente com a adoo anterior dotermo AIDS.

    No entanto, AIDS no parece ser mais um termo queremeta obrigatoriamente sua origem/explicao (Sndromeda Imunodeficincia Humana em portugus ou em ingls),mas uma palavra pronunciada e entendida por todos quantosfalam o portugus no Brasil, tendo pois autonomia signi-ficante e podendo passar por processos derivacionais. J onome do vrus, HIV (ingls) ou VIH (francs, espanhol eportugus, exceto no Brasil) no um exemplo de formaode palavra, visto que sua organizao no segue os pa-dres silbicos da articulao de palavras do portugus( MONTEIRO, 1986), pronunciando-se H.I.V ou V.I.H., sen-do geralmente traduzido por vrus da AIDS, principal-mente nos noticirios.

    Em torno da prpria descoberta cientfica do vrushouve uma disputa internacional entre a Frana, cujos estu-dos conclusivos datam de 1983 e EUA que descobriu o v-rus em 1984. A descoberta seria francesa, mas predominoua fora dos Estados Unidos que se presenteou com umpioneirismo que no tinha, mas garantiu reserva de mercadopara os produtos que surgiriam a partir do isolamento dovrus HIV.

    Os detalhes extralingsticos aqui destacados re-afirmam o carter inevitavelmente ideolgico do signo,e, portanto, a relatividade do discurso politicamente cor-reto. Afinal, a prpria constituio do lxico obedece acondicionamentos econmicos, culturais e histricos(VILELA, 1995).

    5 UM GLOSSRIO POLITICAMENTECORRETO?

    A cada caso de AIDS revelado, a cada passo da me-dicina e da pesquisa cientfica, novas expresses e sentidosdiferentes foram se construindo conforme a realidade sociale histrico-cultural dos enunciadores:

    Uma doena estranha; sentena de morte; peste gay;mau do terceiro mundo; doena dos negros; mau afri-cano; mau dos haitianos; castigo divino; punio pelaperverso sexual; conseqncia da promiscuidade se-xual; doena dos viciados em drogas; mau de estran-geiros; ameaa do terceiro mundo; doena de desco-nhecidos...

    Sem a pretenso de exaustividade, buscou-se aqui,com esse rol de falas sobre a AIDS vistas e ouvidas em in-meras situaes enunciativas, demonstrar que a AIDS, emduas dcadas, no somente atingiu todas as camadas sociais,no mundo inteiro, como foi sendo enunciada de formas di-ferentes, dependendo de fatores sociais, polticos, econ-micos, religiosos, morais, ticos, comerciais, geogrficos,cientficos etc.

    A partir das inmeras formas de enunciao da AIDS possvel perceber como a sociedade em movimento inces-sante, faz a histria, paralelamente construindo e reconstru-indo a linguagem. medida em que vai construindo ou des-truindo objetos na realidade social o homem realiza tam-bm atos de nomeao, apropriando-se de mecanismoslingustico-discursivos, portanto tambm culturais, histricose sociais.

    A discusso que se faz aqui no pretende fixar-se naanlise de palavras isoladas da realidade histrica em que socriadas e usadas, mas t-las dentro de referncias discursivas, visto que O discurso produto humano-social, portantosujeito s variaes do humor, do gosto, do saber, do desejo,do poder, do ser em sociedade e em individualidade, comtodas as suas variantes(MILHOMEM, 1993).

    E como diz BACCEGA: Afinal, um signo s signi-fica no jogo dos discursos, os quais s significam nas inter-relaes que se estabelecem. (BACCEGA, 1993).

    nesse jogo discursivo que se deve entender qual-quer esforo contrrio a certas metforas relacionadas coma AIDS, ou por outra, esse o caminho que pode levar aoentendimento do politicamente correto, certamente que nocomo modelo de patrulhamento lingustico-comportamental,

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    mas como uma forma de associar ao poltico-socialconcreta a ao lingustica e conseqentemente a interaopela linguagem.

    Para SONTAG, os sentimentos de culpa e de vergo-nha e os preconceitos alimentados a partir da AIDS justifica-riam a importncia de busca de novos sentidos para a doena,no somente afastando as metforas, desagradveis,preconceituosas, discriminadoras mas desmascarando-as, cri-ticando-as, atacando-as, desgastando-as. (SONTAG, 1989).

    Dentre as muitas tentativas de mudana de compor-tamento social e lingstico em relao AIDS, no Brasil,escolheu-se para este trabalho a publicao do Ministrioda Sade: AIDS, leia antes de escrever. Por se tratar de umguia destinado a profissionais de comunicao, que expli-citou um objetivo: atender (...)A necessidade de tornar cla-ros alguns termos ou conceitos cujos significados ainda sopouco conhecidos, para assim contribuir com esse esforode bem informar.

    O glossrio rene 163 termos, no fala exclusiva-mente de AIDS, mas de temas afins: as DST (Doenas Se-xualmente Transmissveis) orientao sexual, sadereprodutiva, mtodos preventivos e contraceptivos dentreoutros assuntos considerados relevantes para quem desen-volve atividades de comunicao voltadas para prevenode doenas sexualmente transmissveis. A anlise que aquise faz restringe-se aos termos que se referem diretamente AIDS, includos no manual.

    Embora na apresentao o Ministrio diga que notem a pretenso de ensinar aos profissionais de comunica-o como abordar a questo da AIDS, mas prestar es-clarecimentos tcnicos sobre esse grave problema sanit-rio, inegvel que um guia tem de fato uma funo peda-ggico-normativa. O manual, cujo ttulo constri-se impe-rativamente: (...) Leia antes de escrever , deixa clara suaexpectativa:

    Ser til queles que fazem da informao a mat-ria-prima de seu trabalho e que, atravs de termosadequados, os profissionais de comunicao possamseguir colaborando junto com o governo, as organi-zaes no-governamentais e a iniciativa privada, naluta e parceria sria e solidria qual todos somoschamados para diminuir o preconceito e tornar a vidados portadores cada vez mais saudvel.(AIDS, leiaantes de escrever ).

    Certamente o guia d mostras de preocupao com odiscurso-comportamento politicamente correto 3, quando serefere a tornar claros termos e conceitos e a definio deconceitos adequados para contribuir com o esforo debem informar. O politicamente correto no reina absolutona linguagem, mas um dado da realidade lingstica e po-

    tencialmente pode presentificar-se nos discursos sociais paraser afirmado, para ser negado ou para alimentar alguma es-tratgia discursiva.

    O glossrio estrutura-se como uma lista de termosseguidos de suas respectivas definies que podem ser re-presentadas simbolicamente por X Y = Definio. Ri-gorosamente algumas definies fazem a opo por um sen-tido, excluindo outros, e isso certamente tem um carter ini-cialmente impositivo, mas nas prticas lingsticas, no jogoda linguagem, uma definio pode no ser a ltima palavra.Um guia tem carter normativo, mas isso algo muito dife-rente de se comear uma caa aos infratores tendo o guiacomo instrumento punitivo.

    Um outro aspecto importante a posio em que secoloca o Ministrio da Sade, necessariamente tomando apalavra na condio de autoridade, com o poder de escolheros termos adequados e defin-los para contribuir parao bem informar. E, como se sabe, ao tomar a palavra cadasujeito assume uma posio/formao discursiva que so-cial, poltica, histrica e ideolgica, desenvolvendo-se umjogo em que a ningum cabe a posse do sentido , emboracada interlocutor busque realizar objetivos na interao como outro, e, at mesmo sonhe com a imposio de uma lin-guagem politicamente correta.

    6 O TERMO PROSCRITO

    A discriminao, o preconceito, a excluso que apa-recem na linguagem so apenas a parte visvel, materializvellingsticamente de uma cultura, de relaes sociais, de con-flitos ideolgicos, de escolhas polticas ocorridas ao longoda histria de uma sociedade.

    Quem adepto do politicamente correto, militantede tendncia extremista, pode buscar na linguagem os mei-os para o patrulhamento lingstico-comportamental. Aesnessa direo ocorrem hoje freqentemente, nos EstadosUnidos, bero do politicamente correto, e tambm noBrasil. Segmentos sociais constrem ou adotam determina-dos nomes em substituio a termos estigmatizantes, pejo-rativos etc. E vo luta numa espcie de mercadodiscursivo estabelecendo concorrncia para tirar de circu-lao os termos marcados, indesejveis, humilhantes. O con-fronto muitas vezes extrapola o campo do discurso que jno mesmo socialmente isolado - chegando a delegaciasde polcia e tribunais.

    Claro que toda e qualquer forma de preconceito deveser condenada em benefcio da prpria dignidade humana,inclusive atitudes preconceituosas que se manifestam pela lin-guagem, mas sem que se ponha risco no direito a expresso.

    3 Ao longo deste trabalho estamos utilizando discurso-comportamento politicamente correto, conforme BORGES (1996).

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    Os discursos sobre a AIDS so uma demonstraode como o que aparece na linguagem no algo que se res-trinja a ela, ou por outra, que o sentido no est depositadonas palavras ou que estas possam ser tomadas como entida-des isoladas da histria.

    Quando algum atribuiu AIDS o nome de pestegay mobilizou subsdios culturais de uma sociedade quediscrimina e at reprime e criminaliza a orientao sexualfora dos padres ditos tradicionais e deve ter levado em contaum fato aparente naquele momento: a AIDS s atingia ho-mossexuais masculinos.

    As mudanas em relao ao aparecimento do HIV-AIDS foram se concretizando, com novos casos emhemoflicos que recebiam doao de sangue, heterossexuaise usurios de drogas, nascendo da a idia e o termo gru-pos de risco, onde entrariam em seguida os negros, os es-trangeiros, os africanos... todos segmentos vtimas de al-gum tipo de discriminao.

    A cincia, especialmente o campo da medicina, teveque enfrentar o desafio de investigar o microorganismo cau-sador em profundidade e ao mesmo tempo perseguir meiosde preveno e cura. No demorou muito e descobriu-seque a AIDS no escolhe suas vtimas, qualquer um pode serinfectado pelo HIV, no por conta de sua condio racial,econmica, social, religiosa, sexual etc. mas dependendode atitudes individuais e coletivas de preveno e de medi-das mais abrangentes como controle de qualidade nos ban-cos de sangue e polticas governamentais de educao.

    Da em diante, a medicina j no seria a mesma, aviso coletiva do problema da AIDS j no caberia nos li-mites da estigmatizao e a linguagem tambm no teriamotivos para cristalizar-se em conceitos e preconceitos so-cial e historicamente produzidos e no apenas lings-ticamente como uma noo equivocada do politicamentecorreto poderia sugerir. E isso talvez no deva ser expli-cado somente pelo ngulo do politicamente correto.

    Nos primeiros anos de existncia da AIDS, um adje-tivo era usado genericamente para denominar pessoas quevivem com HIV-AIDS: AIDTICO. Na imprensa e em tra-balhos cientficos essa denominao encontrada sem apa-rente pejoratividade. A prpria SONTAG, insuspeita pelasua tentativa de combate a metforas indesejveis, usa otermo AIDTICO no seu livro A AIDS e sua metforas. OGuia do Ministrio da Sade inclui a palavra AIDTICO edefine como Expresso usada para identificar os doentescom aids, mas acrescenta a seguinte observao que im-plicitamente sugere a proscrio: As ONG AIDS no Brasile a CN-DST/AIDS combatem e discordam deste termo, pelocarter pejorativo e discriminatrio que passou a associar-se a ele.

    Ao afirmar que o politicamente correto no era sufi-ciente para explicar a tentativa de proscrio do termo AI-DTICO, tinha-se por referncia situaes anteriores, comoa dos hansenianos, nome que substituiu o adjetivo leproso,

    referente a quem tem lepra. Neste caso, j antigo, a doenamudou oficialmente de nome para HANSENASE, numareferncia ao mdico noruegus Gerhard Armauer Hansen,responsvel pela descrio da doena em 1874. O nomeanterior, lepra, era relacionado ao mycobacterium leprae,causador da doena. O derivado LEPROSO, alm do sen-tido de pessoa que tem lepra recebeu outras conotaescomo: morftico, garro, lazarento, lazarado, hanseniano epor extenso nogento, asqueroso, repugnante, conforme re-gistra o Novo Dicionrio Aurlio da Lngua Portuguesa.Os doentes de hansenase eram excludos do convvio coma populao sadia e tinham que viver em leprosrios, co-lnias construdas em lugares distantes das cidades. umahistria bastante conhecida, cujo desfecho foi a opo pelostermos hanseniano e hansenase, para banir das prticas lin-gsticas termos inaceitveis e que atentavam contra a dig-nidade humana, como lepra e leproso.

    No entanto, o preconceito est longe de ter desapa-recido da sociedade. Numa cidade do Cear, em 1999, umcidado que teve hansenase havia anos e por isso perderaas impresses digitais, procurou o setor do Instituto de Iden-tificao, numa prefeitura municipal , e acabou recebendouma carteira de identidade com a frase: Portador dehansenase, uma justificativa do funcionrio para a ausn-cia das impresses digitais. Deu escndalo na mdia e astradicionais declaraes de autoridades empenhadas em coi-bir o abuso, mas foi uma confirmao de que rebatizar oproblema no o bastante, embora possa colaborar paramudanas. A proscrio de um nome estigmatizante alivia,para usar um termo comum na rea da medicina, mas so-mente uma parte realizada de um desejo maior de mudanasocial mais ampla.

    Seria pouco provvel que a AIDS surgisse sem queas instituies mdicas e a imprensa, com base em regrasprprias da lngua criassem substantivos e adjetivos refe-renciados nessa nova realidade. A AIDS de sigla passou asubstantivo e AIDTICO um adjetivo derivado, significandopessoa com HIV/AIDS. O adjetivo caracteriza, especi-fica ou qualifica, enquanto o substantivo designa, sendo omtodo mais simples de efetuar uma designao, tomar umapalavra caracterizadora (adjetivo) e us-la como designadora(substantivo). (BASLIO, 1995).

    Essa regra aplicada ao caso do adjetivo AIDTICOtem conseqncias que o usurio da lngua intuitivamentepercebe para justificar a rejeio ao termo. Dizer que umapessoa vive com HIV/AIDS reconhecer a um dado emrelao a vida da pessoa, cham-la de AIDTICA, numafrase do tipo: X AIDTICO uma caracterizao. Masdizer O AIDTICO Y transformar o termo em subs-tantivo, portanto, designar, dando prioridade ao fato de es-tar a pessoa X com HIV/AIDS, secundarizando a condiode pessoa com todos os seus demais predicados. E admi-tindo o termo AIDTICO, adjetivo, fica aberta a possibili-dade de um substantivo AIDTICO, pela regra agora resu-

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    midamente citada. E o termo h muito tempo deixou de tero sentido de pessoa portadora do HIV/AIDS, admitindo-seque isso possa ter acontecido realmente. A pejoratividadefoi historicamente se associando ao termo .

    Nos anos 80, uma pessoa que perdesse peso de for-ma radical por qualquer motivo, no raro, era chamada deaidtica. Quantos no foram os boatos reproduzidos pelaimprensa em geral ou especializada em fofocas? O ex-pre-sidente da Repblica, Fernando Collor de Mello, que numdado momento sofreu uma grande perda de peso, teve quefazer uma pausa numa entrevista coletiva em rede nacionalde TV para dizer que no estava com AIDS, respondendo auma pergunta de uma reprter sobre um boato que circulavapelo pas, segundo o qual , o Presidente estaria com AIDS.E mesmo quando a palavra AIDTICO parecia no terganho a conotao pejorativa de forma to explcita, o lderconservador francs Jean Marie le Pen deu essa conotaoao a atacar seus adversrios chamando-os de SIDATIQUES(SONTAG, 1989). Se o seu discurso estivesse orientado paraconotaes positivas, certamente o lder francs no atri-buiria o termo a adversrios.

    O guia do Ministrio da Sade, mesmo tendo regis-trado o termo AIDTICO como uma possibilidade, no usaem nenhuma outra situao, preferindo expresses descriti-vas como: CRIANAS VTIMAS DE AIDS ou palavrascomo SOROPOSTIVO, SORONEGATIVO e PORTADOR.

    Tal atitude pode ser relacionada ao politicamentecorreto, especialmente com a constatao da presena daexpresso: TRABALHADORES(AS) DO SEXO, em vezde prostituto(a), ou USURIO DE DROGAS INJE-TVEIS em vez de viciados em drogas pesadas que leva-ria a uma avaliao muito mais negativa de quem usa droga.O primeiro caso tpico do uso politicamente correto quetenta o combate ao androcentrismo da lngua, para evi-tar problemas com as brasileiras e com os brasileiros comotratamento adotado pelo Presidente da Repblica, JosSarney que abria seus discursos sempre se dirigindo s brasileiras e brasileiros.

    Em relao AIDS, muitos grupos atuam no com-bate ao preconceito, inclusive lingstico, mas que no apa-rentam atribuir ao politicamente correto uma fora trans-formadora extraordinria. Pelo contrrio, tais grupos assu-mem o conflito no campo da linguagem mas paralelamenteagem em diversas outras frentes de luta contra a AIDS e ospreconceitos.

    assim com a Rede Nacional de Pessoas Vivendocom HIV/AIDS, RNP+/Brasil criada em 1995, por 10 pes-soas soropositivas:

    Precisamos ter visibilidade para agirmos como agen-tes transformadores e formadores de opinio, a fim

    de cessarmos com a discriminao que ainda existeem todo o pas e no mundo. No basta estarmos beminformados. preciso interiorizarmos as questes daAIDS e fazer uso de nossos direitos (BOLETIM3+PLUS, Ano I no. 1)

    Detalhando mais seus objetivos a RNP+/Brasil diz queA RNP+ quer deixar para a humanidade uma histria delutas, solidariedade, vontade poltica, conquistas e vitrias,sabedoria e muito amor (BOLETIM 3+Plus, Ano I, no. 1).

    De fato, os portadores do HIV/AIDS aliam ao dis-curso uma srie de prticas coerentes com os propsitos aquicitados: eles pressionam autoridades de sade por assistn-cia e medicamentos, fazem trabalhos educativos e queremgarantia de direitos como emprego e renda, com criao dealternativas de trabalho. Mas ainda que no sejam chama-dos de AIDTICOS como antes, o fato de ser SORO-POSITIVO reacende igualmente a discriminao e portasse fecham, inclusive no mercado de trabalho, como revelouo jornalista Francisco Pedrosa, da Rede Nacional de Pesso-as Vivendo com HIV/AIDS, em Fortaleza. 4

    7 CONCLUSO

    O discurso politicamente correto tem mritos a se-rem reconhecidos se considerarmos que atravs da lingua-gem muitas formas de discriminao presentes na socieda-de so atualizadas, com conseqncias s vezes muito gra-ves para pessoas e/ou grupos sociais.

    Mas no pode ser considerado uma soluo defini-tiva para a realidade social em si, visto que a experinciahumana demonstra que a mudana de nome no tem umarelao direta com uma mudana de atitude ou com a aboli-o de valores considerados ofensivos.

    A AIDS, assim como outras doenas, em outros tem-pos, foram fontes de inmeros neologismos, muitos delesconsiderados ao longo da histria to ofensivos que foramoficialmente extintos. Tais mudanas no campo da lingua-gem podem, de fato, aliviar um pouco a situao estigma-tizante de que so vtimas milhes de pessoas, mas preci-sam ser acompanhadas de mudanas nas relaes sociais,onde esto implicados aspectos polticos, econmicos, reli-giosos, ticos, culturais e ideolgicos.

    Os que militam em algum movimento de combate adiscriminao precisam estar cientes de que junto com aspreocupaes lingsticas devem-se colocar as lutas por umasociedade efetivamente livre de injustias e preconceitos,capaz de fazer valer o respeito s diferenas.

    Vale ressaltar ainda que o surgimento, uso e desusode palavras no so controlveis por meios autoritrios. no jogo da linguagem que a linguagem se dinamiza, se cons-

    4 Entrevista ao autor em maio de 2000 em Fortaleza.

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    tri e se reconstri, sendo portanto toda e qualquer pala-vra parte de um processo amplo: a histria social em per-manente movimento. E nesse movimento que o homemconstri objetos, se constri a si mesmo e partilha a cons-truo dos sentidos.

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