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Texto introdutório à lírica do famoso benguelense, seguido de crítica e análise do poema «Mulemba». O primeiro publicado na reedição de Meu Amor da Rua Onze (Luanda: nossomos, 2014) e o segundo na revista Mulemba (RJ: UFRJ,2009).
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7/21/2019 Aires Almeida Santos: introdução e mulemba
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Introdução à poesia de
Aires de Almeida Santos(Chinguar, 13.4.1922 – Benguela, 3-9-1992)
Aires de Almeida Santos nasceu no Chinguar (Bié), faleceu em Benguela e deu nome a uma das artérias
mais importantes desta cidade. Ainda criança foi viver para a capital das acácias e das casuarinas, onde
fez os estudos primários. Morou também no Huambo, onde realizou estudos secundários e começou a
publicar. Foi preso por ideias subversivas logo em 1941, mais tarde remetido para Luanda pela polícia
colonial e arrolado no ‘processo dos 50’. Saiu da prisão pouco tempo antes da independência, passando
a viver com residência fixa em Luanda. Trabalhou ainda em Benguela como contabilista, no antigo
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Grémio das Pescas. Trabalhou e viveu alguns anos no Lubango depois da independência. Cofundador da
União dos Escritores Angolanos, foi Prémio Nacional de Literatura em 1989.
Desde muito cedo, continuadamente apesar do escasso número desobreviventes, seguiu o apelo da escrita literária, principalmente lírica esubjetiva. Segundo o próprio: “eu comecei a escrever muito novo, por
volta dos meus 14, 15 anos. Os primeiros ensaios literários, entre aspas,evidentemente, foram num jornal do Huambo, quando eu aindafrequentava o Colégio Alexandre Herculano. Depois, o gosto ficou sempre.O primeiro original que eu preparei deste livro [Meu amor da rua onze ]continha na altura cerca de cinquenta poemas. Circunstâncias diversasfizeram com que desaparecessem vários desses meus poemas... E, como
diz o David Mestre, deu muito trabalho ir apanhar um aqui, outro acolá,outro além... A minha filha chamou a si esse trabalho e ela tem estado afazer um trabalho de recolha com uns amigos.” (Laban, 1991, pp. 81, 82).
As dificuldades prendem-se também com a dispersão editorial: colaborou
em diversos jornais e revistas de Angola como O Intransigente (Benguela),O Planalto (Huambo), O Lobito , entre outros. Figurou também em várias
antologias lusófonas e não só, bem como em muitas páginas de poesiaem rede, nem todas confiáveis.
Dentro da profunda ligação e solidariedade com o nosso ambienteliterário e político, Aires de Almeida Santos é um nome com lugar muitopróprio no panorama da poesia nacionalista angolana. Pese embora a
deambulação biográfica e o facto de as características técnicas dascomposições se assemelharem às dos poemas de Viriato da Cruz, o
espaço das referências e o tipo da vivências representadas impossibilitamo mero enquadramento da sua lírica num grupo que se cristaliza
principalmente numa revista de Luanda, com a qual se identificava masem que nem sequer chegou a participar (Soares, 2001, p. 195). A sua
obra, curta mas decisiva, está profundamente marcada pela vivência naBenguela crioula, cujos tentáculos boémios se estendiam à vila daCatumbela e à cidade do Lobito. Mário António reconhecera já esteaspeto: “Ayres de Almeida Santos, radicado em Benguela, é um poeta que
se confunde, nas suas qualidades e nas suas limitações, com a cidademestiça que lhe serve de fundo aos seus poemas. A primeira notícia que
tive a seu respeito foi através de «Coimbra em África»: Victor Mattos e Sá,na sua já mencionada conferência, considera-o o poeta mais africano do
seu conhecimento; o autor do livro, o Dr. Almeida Santos, que o ouviudizer os seus poemas, refere-se-lhe dizendo «o poeta de quem tenho o
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nome mas não o talento» - e todos sabemos que o ilustre advogado é
pessoa talentosa.” (Oliveira, 1989, p. 176).
Dessa boa boémia crioula e da correspondente escritura é exemplo o maisfamoso dos seus poemas, até hoje continuado na semiosfera urbana deAngola: «Meu amor da rua onze», que dá título à única recolha de versos
que dele nos ficou (Santos, Meu amor da rua onze, 1989). Não só exemplodisso, mas ainda mais de um dos dois tipos mais praticados pelo poeta.
Este primeiro tipo, a que se pode agregar o «Poema para minha filha»,
escrito na “Cadeia Comarcã de Luanda 14/01/1966 ”, caracteriza-se poruma linguagem muito subjetiva, uma fala delicada e inflamável, sensível,atenciosa em extremo. É a face elegante e romântica dessa boémia
inspirada. Nela predomina um «eu» masculino que se dirige a um «tu»feminino com extrema dedicação. Fala-nos de sentimentos, afetos edesejos que relacionam as duas pessoas e sempre reportando a
enunciação do discurso a si próprio. São, portanto, poemas fortementesubjetivos e expressivos.
Outros seus poemas parecem modelar-se pelas alegorias, pelasmetonímias e pela representação de um quadro exemplar, quase nuncareportado a si próprio. Há familiaridade, por aí, com os poemas de Viriato
da Cruz, igualmente muito populares e musicados, inseridos numapesquisa poética da identidade local, constituindo cada qual um quadro
específico, fundador, geralmente com uma pequena narrativa inclusa,funcionando por metonímia para descrever toda a situação da cidade e,
por extensão, do país. A cidade é que muda, como disse e com ela mudaligeiramente o léxico (o vocabulário), alguma expressão popular. Ao ler-
se cada um dos poemas desse segundo tipo deve-se, portanto, colocar omomento histórico-político vivido numa coluna e a estória ou o quadrosugeridos em outra, comparando-se depois as duas ‘realidades’. É uma
leitura tabular. Pode ser usada para lermos «A mulemba secou» (fazendoequivaler a mulemba a tudo quanto é-foi vital, típico e se estiolou com oavanço de uma economia depredadora, voraz, capitalista e colonizante).Pode ser usada para ler a “estória que o vento trouxe”, que é muito maisdo que uma estória de amor entre marido e mulher, faz o retrato da
situação social dos pescadores de um dos musseques de Benguela – terraonde essa palavra está presente no Casseque , justamente um grandebairro de pescadores também, ainda que não só.
Em ambos os tipos de poemas, o que não se consegue, ou não se pode,
escrever é assinalado por reticências e outras figuras de suspensão (quedeixam a leitura em suspenso, que deixam o leitor com a suspeita de
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haver algo mais para ouvir ou ler, enfim, para pensar e sentir, que o autor
se recusa, no entanto, a tornar explícito). Essas figuras passam para asmãos do leitor a função criativa de continuar o poema preenchendo o
respetivo não-dito, que não é sempre de caráter político-partidário. Na
verdade, várias vezes o não-dito é relativo a episódios e implícitos locais,a exemplo do que sucede nos pequenos aglomerados, onde o não-dito éconsabido.
Isso reforça o desfrute empenhado, a adesão do leitor ao texto, que ainda
é despertada ou animada por um jogo de rimas casuais (ou seja: semnenhuma regra que preveja a sua ocorrência). Trata-se de um recurso
poético muito característico do meio do século XX e que vemos, porexemplo, em Portugal em vários poetas do grupo da Távola redonda , comoDavid Mourão-Ferreira. Ele caracteriza também a lírica de Alda Lara,
outra grande referência da poesia em Benguela, cujo irmão seguirá aspisadas boémias e poéticas de Aires de Almeida Santos.
O leitor, acompanhando as frases coloquiais repartidas entre versos,
entre segmentos rítmicos, é de quando em quando apanhado de surpresae religado a uma parte anterior da frase, do período, ou simplesmente doassunto, pela coincidência de sons que faz a rima atuar como um sinomarcando o tempo, um tempo circular. Não havendo regra, o efeito desurpresa não se desfaz, porque só a previsibilidade adormece o ouvido e
a ausência de regra bloqueia a previsibilidade.
A inquietação estética fica registada por esse uso aleatório das
sonoridades (seguindo um rigoroso ouvido interno e uma palpávelcoloquialidade), pela deslocação gráfica dos versos (ou das estrofes) napágina, destacando assim alguns conteúdos e dando uma imagem visualda progressão do discurso do autor. Este último é um recurso para o qual
o modernismo e o concretismo chamaram a nossa atenção e que se foitornando comum desde as primeiras décadas do século XX. Ele
desenvolve linhas de leitura paralelas à da coloquialidade e compensa
dessa forma o excesso discursivo que a poesia do período apresentageralmente.
Através desses recursos poéticos (ou artísticos, se preferirmos), avisualização de uma ‘realidade’ muito chã, concreta, particular, ganha
universalidade na medida em que nos permite apropriarmo-nos dela maisfacilmente, quer pela transparência da linguagem, quer pela colonizaçãodos implícitos, que promovemos misturando-os com a nossa intimidade,as nossas lembranças pessoais, poéticas e políticas, a nossa
sensibilidade musical, a nossa ondulante afetividade, enfim a nossaidentidade na zona de intersecção com a do autor.
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Graças ao poder de comunicação garantido assim, a poesia lírica de Aires
de Almeida Santos correu dispersa o mundo inteiro, em antologiasnacionalistas e internacionalistas, sendo reunida muito mais tarde por
David Mestre para a UEA e cantada, entre outros, pela Banda Maravilha,
com partitura musical de Pedro Rodrigues, um cabo-verdiano luandense,neto de um grande poeta cabo-verdiano e ele próprio um dos maiorescompositores populares de sempre, de Cabo Verde e de Angola.
Posto isto, pretendo em seguida mostrar, com intuito pedagógico, um doscaminhos de leitura suscitados pelo poema «A mulemba secou», de Airesde Almeida Santos. Assim cumprimos o mecanismo de feed-back que
sustenta a disseminação da leitura num circuito comunicativo
devidamente codificado e suficientemente aberto.
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AS RETICÊNCIAS DO CAMALUNDO
Perguntas reticentes
A função do estudioso da literatura não consiste em revelar às massas
ignorantes a verdadeira, única e escondida mensagem do texto. Já hámuito tempo que não constitui novidade nenhuma dizê-lo. No entanto,
muita da ruína da crítica e da teoria se provocou contestando issomesmo, porém, confundindo esse tipo de análise com o essencial do
trabalho feito. Por equívoco, passou-se ao lado do que havia a fazer (e quealguns fizeram, como por exemplo os primeiros estruturalistas – os de
Praga), não se atacando o problema de raiz, ou seja, a confusão entre o
ensaio crítico, o teórico e a interpretação mais ou menos filosofante oumoralizante (ou desmoralizante). O que procuro, na esteira de outros, ébem melhor explicar como funciona um texto de forma a provocar, a título
de efeito, várias mensagens que o leitor constrói, várias interpretações,como também os efeitos mais propriamente estéticos. E ensinar ainda oslimites e os suportes para tal construção recetiva. Dada a temática donúmero inaugural de Mulemba (para onde inicialmente escrevemos) e em
homenagem, simultânea, à revista, à árvore, à simbologia da árvore, pegoneste exemplo bem conhecido de Aires de Almeida Santos:
A mulemba secou.
No barro da rua,
Pisadas
Por toda a gente,
Ficaram as folhas
Secas, amareladas
A estalar sob os pés de quem passava.
Depois o vento as levou...
Como as folhas da mulemba
Foram-se os sonhos gaiatos
Dos miúdos do meu bairro.
(De dia,
Espalhavam visgo nos ramos
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E apanhavam catuituis,
Viúvas, siripipis
Que o Chiquito da Mulemba
Ia vender no Palácio
Numa gaiola de bimba.
De noite,
Faziam roda, sentados,
A ouvir,
De olhos esbugalhados
A velha Jaja a contar
Histórias de arrepiar
Do feiticeiro Catimba.)
Mas a mulemba secou
E com ela,
Secou também a alegria
Da miudagem do bairro:
O Macuto da Ximinha
Que cantava todo o dia
Já não canta.
O Zé Camilo, coitado,
Passa o dia deitado
A pensar em muitas coisas.
E o velhote Camalundo,
Quando passa por ali,
Já ninguém o arrelia,
Já mais ninguém lhe assobia,
Já faz a vida em sossego.
Como o meu bairro mudou,
Como o meu bairro está triste Porque a mulemba secou...
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Só o velho Camalundo
Sorri ao passar por lá!...
Em primeiro lugar é preciso percebermos a organização do poema, lendo-o naquele nível em que se basta a si próprio, porque ele próprio nos dá
os elementos sobre os quais construímos a receção. Na verdade, apesarda marca de oralidade nos seus poemas que se nota no jogo de implícitos
locais, aos quais o leitor não tem já acesso, o que recebemos é um textoescrito, que circula dentro de um livro. Por esse motivo ele constitui a
sua própria autonomia e, no lugar dos implícitos locais, iremos colocandoos nossos explícitos para completá-lo. O poema é uma alegoria, figuramuito importante na lírica do autor, como atrás disse. Aqui, a alegoria
faz a conotação da mulemba com o bairro: conforme secou a árvore,entristeceu o bairro. Repare-se que o próprio autor diz: “Como o meubairro está triste / Porque a mulemba secou”.
Se o velho Camalundo, agora, sorri ao passar por lá é porque ele era
incomodado antigamente, quando a mulemba e a miudagem do bairroestavam bem vivos. Ora, secando a mulemba, os miúdos crescendo eafastando-se, ele passa já sossegado.
Para perceber a produção interna de significado do poema não
precisamos, portanto, de mais nada, nem sequer de saber que os outrospoemas do autor são geralmente alegorias. Há, porém, no próprio texto,indícios de que algo fica por dizer, pois ele termina com reticências a
seguir à segunda menção ao velho. Se é claro para nós porque ele sorriao passar por lá, que sentido fazem as reticências? As reticências avisam-nos de que algo ficou por dizer. O que ficou por dizer para além do texto?Para um contemporâneo benguelense, talvez uma pequena estória local.
Mas, para o leitor comum de hoje, por exemplo nas universidadesbrasileiras?
Pelas reticências o poema começa claramente a propor-nos uma
adivinha, um enigma e, portanto, a sustentar a sua disseminação criativa(o que não significa desorientada, nem arbitrária).
Pensando nisso o leitor pode reparar ainda mais no poema e ver que eleé bipolar, em torno de duas referências à sombra da mulemba: uma, ados miúdos, depois graúdos, com seus sonhos; outra, a dos temores:iconizados primeiro pelas estórias da “velha Jaja” (contadas à sombra da
mulemba), estórias cujo protagonista é o “feiticeiro Catimba” (que
realmente existiu em Benguela); e depois passa-se para outro “velho”,Camalundo. A ligar os dois há pouco mais que a velhice – e todos sabemos
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o que significa a velhice naquele tempo e lugar. Um velho é uma árvore
muito grande, cheia de frutos que nós precisamos de colher e à sombrada qual repousamos, refletimos, ou conversamos. O resto é diferente: ela
conta estórias de arrepiar, à noite, sob a mulemba; ele é ‘arreliado’ pelos
miúdos quando passa junto à mulemba (supõe-se que durante o dia). Omedo que à noite ganham é vingado e afastado à luz do sol pelasprovocações a Camalundo, que se torna assim, nessa leitura, catártica
figura para os miúdos. Aparentemente o velho não é conotado comfeitiçarias, esse é o Catimba. O velho é conotado com reticências e asreticências não dizem nada do que sugerem…
Para cumprirmos a indicação dada pelas reticências – nós, os leitores –
costumamos intertextualizar com base em suspeitas, associações rápidasde imagens e numa racionalidade minimamente consensual. Assimcobrimos o vazio em que as reticências nos deixam com as suas
suspeitas, fazendo uma espécie de feed-back , de retorno, através demetáforas de aproximação sustentadas em textos recordados. É o casode quando procuramos contextualizar imediatamente, pesquisando ossignificados de mulemba por exemplo, integrado no mais amplo campo
semântico da palavra árvore. A árvore é um eixo do mundo que liga céue terra, espíritos sem corpo e corpos com espírito, para além de simbolizar
a maternidade e a feminilidade. Esta segunda parte está explicitamenterepresentada no poema pela conotação entre ela secar e partirem os
miúdos do bairro. A outra é mais subtil.
A mulemba, como sabem já todos os interessados na literatura angolana,é uma árvore grande, frondosa. À sombra dela se reúnem as pessoas para
conversar, transmitir e receber informações, passar ensinamentos, etc.Assume particular significado, e mais forte, a conotação da mulemba(como toda a árvore sagrada) com a ligação aos espíritos falecidos,antepassados, recebidos algum dia por Kalungangombe, o pastor e juiz
das almas e das vidas (de ‘kalunga’ – deus, mar, morte, que por sua vezvem de ‘lunga’, inteligência, sabedoria; somado a ‘ongombe’ – boi, porextensão rebanho).
A mulemba, simbolizando a relação axial entre os dois mundos,reinveste-nos na leitura do poema com um dado novo, que nos faz relê-lo mais ou menos desta forma, que se tornou consensual: dado o que
representa a árvore, ao secar a mulemba isso é concerteza má notícia,porque deixa de haver ligação entre os dois mundos. Assim, a vida acaba-
se no bairro por ter acabado na árvore que nos ligava ao mundo paraleloque nos rege, ou nos condiciona. Os meninos, hoje crescidos, riem-se do
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medo que lhes causavam as estórias do feiticeiro Catimba, mas não
sabem porque secou a mulemba.
Parece-me uma leitura possível. Mas, nesse caso, o que fazer do velhoCamalundo e suas sorridentes reticências? Sorri porque é egoísta
somente, porque as crianças o não ‘arreliam’ já? Porque é meio tolo? Teráexistido mesmo um velho Camalundo, que se ria dessas coisas por ser
tolo? Ou sorri porque eles não sabem a causa e o sentido de a mulembater secado? Ou sorri por causa desse mesmo sentido?
Estas inquietações nos levam a desenvolver a aventura da pesquisa, quevai diversificá-la conforme os leitores.
Nós, por exemplo, continuando a intertextualizar pegamos num outropoema de outro benguelense, este já de nascença: Ernesto Lara, Filho.
Na famosa carta lírica escrita a Miau a partir da “Europa”, ele reconhece:
Tudo isso te devo
companheiro dos bancos de escola
isso
e o aprender a subir
aos tamarineiros
a caçar bituítes com fisga
aprender a cantar num kombaritòkué
o varrer das cinzas
do velho Camalundo.
Tudo isso perpassa
me enche de sofrimento.
(«Infância perdida»)
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Que nos diz o “varrer das cinzas / do velho Camalundo”? No mínimo que
ele existiu. Para o leitor informado acerca da poesia benguelense, opoema ganha então mais um significado plausível. Apenas mais um de
entre muitos. Sim, porque mesmo assim não fechámos a leitura, nem
fecharemos, visto que buscamos explicá-la e não dar-lhe um sentidoúnico. Será, por exemplo, que a mulemba secou por alguma maldição,que o velho Camalundo conhecia, ou mesmo rogou? Nada nos diz que
sim mas, dada a simbologia da árvore aqui, ela secar é sempre umamaldição.
Se continuarmos a intertextualizar, Camalundo é o nome de uma
pequena povoação e de um pequeno rio que ficam a norte de Malange,segundo mapas que qualquer aluno pode pesquisar em rede. Não sei sedessa região terá vindo o motivo de carnaval focado poeticamente por
Antero Abreu numa recordação de infância:
O ídolo do eu-menino era Kamalundu, Kamalundu o Rei, magnificentemente vestido de cetins e purpurinas que volteava volteava com sua enorme luva sua enorme e majestosa luva agitada no ar.
Fonte especificada inválida.
Este Kamalundu, porém, sendo uma hipótese muito enriquecedora dotexto, não nos explica o sentido geral do poema, que parece mais resultarda gozação dos miúdos relativamente a uma figura local, a citada porLara Filho.
Malundo, por sua vez, para além de um apelido comum em países demaioria bantu, é o nome de uma povoação populosa no Uíje (Malundu
Kassumba), de outra no Moxico, de outra em Cabinda e ainda de outraem Moçambique. Lundo é o nome de uma ilha na Tanzânia, que fica naregião de Malundo. Será que o velho se chamava assim por vir deCamalundo, ou de outro Lundo? Será que, vindo de lá, conhecia melhoras tradições? Não sabemos, portanto esse caminho de leitura não é
produtivo: é reticente…
Não sabendo, a nossa recuperação de sentido (o sentido cuja existência
a pontuação deixou no ar) continua pela peregrinação bibliográfica. Poraí nos lembramos de que, para o leitor irrequieto, esse nome pode jogar
com um título de Óscar Ribas: Ilundo: espíritos e ritos angolanos . O livroteve edição original em 1958, uma segunda em 1975, mas é ainda fácilde encontrar em Angola a edição de 1989 da UEA (Luanda). Não tendoacesso ao livro, o leitor pode fazer uma pesquisa na Internet e encontrar,
por exemplo, esta definição:
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O Ilundo é o candomblé de Angola na sua forma original que se
vem mantendo através dos tempos. A "MANHA-IA-UMBANDA"
(Mãe de Santo) deita "Dicosso" (bebida do santo) numa filha de
santo para a purificar . (MAUC, 1979)
Ilundo é o plural da palavra de raiz lundu (sing. kilundu ), que significagenericamente ‘espírito’. O calundu é, portanto, o espírito, um espírito.
Para os leitores que tenham possibilidade de consultar a obra, ÓscarRibas cita um provérbio: “o calundu foi pessoa, a pessoa será calundu” (RIBAS, 1989, 32). No mesmo capítulo, um pouco mais à frente (erepetindo o provérbio), ele define: “Calundus são espíritos de elevada
hierarquia e evolução. Representam almas de pessoas que viveram emépoca remota, numa distância de séculos”. Eles também se transmitem
“por herança, principalmente pelo lado materno”, formando “uma famíliaespiritual em relação ao seu paciente” (RIBAS, 1989, 34).
Há, no velho Camalundo, um sorriso que não deixa a imagem de umvelho malvado, embora… Isso talvez não seja casual, pois, “ao contrário
do canzumbi, que é perverso, vingativamente perseguindo commolestações várias, o calundu é complacente”. O povo aconselha: “diz: ómeu calundu!, não digas: ó meu canzumbi” (RIBAS, 1989, 35).
Estas ligações dão-nos outra orientação possível para a leitura do quesimboliza ali, a partir do nome, o velho Camalundo, caso possamospensar que nele se acumulam dois prefixos (o que não seria inédito nahistória das línguas, incluindo a portuguesa): ca e ma .
Uma estória huambina
Sabemos também que Aires de Almeida Santos nasceu no Chinguar, Biée que Ernesto Lara Filho esteve muito ligado ao Huambo (então Nova
Lisboa) e à Chianga, onde estudou e trabalhou na escola agrícola. Airesde Almeida Santos, segundo a biografia publicada na UEA, veio miúdopara Benguela, onde fez o ensino primário, tendo o secundário (ou médio)sido no Huambo. E porque falo nisso? Por estarem mais perto de
Camalundo? Não. Porque na cidade de Nova Lisboa houve uma pragarogada por um velho colono que se prende justamente com umamulemba. Vamos ler.
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Quem nos conta a história é Sebastião Coelho, famoso jornalista
huambino que nasceu em 1931 e morreu em 2002. Conta-a num textodatado de 2000, «A Mulemba da maldição».
Um velho branco, Albano Canto dos Santos, provavelmente pioneiro da
instalação dos portugueses nas terras do Wambo, casou-se com a filhado soba local. Esperava encontrar muitos diamantes e que um dia o seu
filho se tornasse também soba. Plantou uma mulemba para o dia em queele o fosse, pois à sua sombra reina o sábio soba. A mulemba cresceu,
tornou-se frondosa e, portanto, tudo indicava que a sua esperança iriarealizar-se. Os amigos, porém, combinados, puseram uns vidros no rio
onde ele mandara escavar um buraco (junto à fonte) à procura dosdiamantes. Convencido de que os tinha encontrado, foi confirmar tudocom o farmacêutico, que, fazendo parte da tramóia, lhe disse que eram
mesmo diamantes os que ele encontrara. O velho colono convocou umagrande festa, com refeição e tudo, para comemorar com os amigos. Nofinal da refeição alguém lhe contou a verdade. Condoído isolou-se, ficoudoido, subia aos ramos da mulemba contemplando a mina e um diaenforcou-se. Deixou uma carta e vale a pena transcrever esta parte do
testemunho de Sebastião Coelho:
“Na carta, delirante e profética, que escreveu e que teria sido
encontrada junto ao tronco da árvore, pedia para ser enterrado ali,
ao lado da mulemba, pois, se assim não acontecesse, a sua alma,
inquieta, voltaria para vingar-se: ... e quero o meu corpo a
alimentar as raízes da árvore que eu plantei, quero que os meus
sumos penetrem nesta terra e se juntem, lá embaixo, com as
riquezas que não encontrei, mas que existem.
Com elas sonhei transformar este país rico e de gente pobre, num
rico país para toda a gente. Sonhei ver o meu filho mulato Pedro
Evango, feito soba do Huambo, sentado à sombra deste pau
sagrado, criar uma nação próspera e feliz, mistura de várias raças.
Fui atraiçoado pela pior traição, a traição dos amigos e da
confiança. Se me atraiçoarem de novo, saibam que esta mulemba
vai secar e quando a mulemba secar, o Huambo vai desaparecer,
destruído pelos seus próprios filhos. E as riquezas do solo não
serão para ninguém... tudo será ruína e desolação!”
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Infelizmente Sebastião Coelho não regressou ao Huambo para ver se a
mulemba secou. Pela minha parte, não sei onde ela ficava. Lembrou-seele, na falta disso, da destruição que a cidade sofreu com a guerra civil,
sobretudo no início de 1993, na famosa batalha dos 55 dias e depois, na
recuperação da cidade pelas forças governamentais. Mas osacontecimentos que nos narra deram-se num tempo recuado o suficientepara a lenda de Albano Canto dos Santos circular pela cidade. O próprio
Sebastião Coelho a ouvira na sua meninice. Da meninice do Huambo aestória podia espalhar-se para mais cidades, nada inédito em Angola. Oleitor informado pode agora intertextualizar com a mulemba do bairroonde Aires de Almeida Santos foi miúdo, provavelmente em Benguela,
antes de ir estudar para o Huambo. À luz da praga do velho Albano,podemos explorar a hipótese de leitura que torna o acontecimento (amulemba secar) uma maldição.
E o velho Camalundo? De que sorri ele ainda? Bom, agora sorri de nós,que também estamos a secar e temos de fechar o texto.
BibliografiaCoelho, S. (5 de 4 de 2005). A mulemba da maldição. Obtido em 27 de 6
de 2009, de As mukandas do kota Kandimba:
http://mukanda.blogspot.com/2005/04/mulemba-da-maldio.html
Laban, M. (1991). Angola. Encontro com Escritores. Porto: Fundação Eng.º
António de Almeida.
Oliveira, M. A. (1989). Reler África. Coimbra: IA-UC.Ribas, Ó. (1989). Ilundu: espíritos e ritos angolanos. Luanda: UEA.
Santos, A. d. (1987). Meu amor da rua Onze. (D. Mestre, Ed.) Luanda:UEA.
Soares, F. (2001). Notícia da literatura angolana. Lisboa: IN-CM.
Sousa, A. N. (28 de 3 de 1979). Catálogo. Albano Neves e Sousa 28 deMarço de 1979 . Fortaleza, Ceará: MAUC. Obtido em 27 de 6 de
2009, de http://www.mauc.ufc.br/expo/1979/01/index1.htm
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Datações:
1.º texto: Macau, 1-3-2014 (escrito para a Introdução àedição de Meu amor da rua Onze [Luanda: nossomos , 2014).
2.º texto: Benguela, Junho de 2009 (escrito para a revistaMulemba (n.º 1. Rio de Janeiro: Outubro de 2009).