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Código ISSN: 2358-0690 ANO 03 JULHO 15 Antônio José Alves Júnior | Antônio Carlos Diegues | Helena Lastres | José Eduardo Cassiolato | Marco Antonio Rocha REVISTA Série Especial AUSTERIDADE ECONÔMICA E QUESTÃO SOCIAL 22 Ajuste econômico, indústria e infraestrutura

Ajuste econômico, indústria e infraestrutura · Desindustrialização e Doença Brasileira 08 Antônio Carlos Diegues Dilemas da indústria brasileira: a necessidade 22 de se articular

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Código ISSN: 2358-0690

ANO 03 JULHO 15

Antônio José Alves Júnior | Antônio Carlos Diegues | Helena Lastres | José Eduardo Cassiolato | Marco Antonio Rocha

REVISTA

Série Especial AUSTERIDADE ECONÔMICA E QUESTÃO SOCIAL

22 Ajuste econômico, indústria e infraestrutura

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Revista eletrônica idealizada e produzida pela rede Plataforma Política Social que reúne cerca de 300 pesquisadores e profissionais de mais de uma centena de universidades, centros de pesquisa, órgãos do governo e entidades da sociedade civil e do movimento social.

plataformapoliticasocial.com

EDITOR Eduardo Fagnani

EDITOR ASSISTENTE Thomas Conti

JORNALISTA RESPONSÁVEL Davi Carvalho

REVISÃO Caia Fittipaldi

PROJETO GRÁFICO Renata Alcantara Design

CONSELHO EDITORIAL Ana Fonseca NEPP/UNICAMP

André Biancarelli Rede D - IE/UNICAMP

Erminia Maricato USP

Lena Lavinas UFRJ

Código ISSN: 2358-0690

APOIO

www.fes.org.br

revistapoliticasocialedesenvolvimento.com

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08Desindustrialização e Doença BrasileiraAntônio Carlos Diegues

22Dilemas da indústria brasileira: a necessidade de se articular o social e o produtivo

José E. Cassiolato e Helena Lastres

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Austeridade fiscal e expansão da infraestrutura: uma combinação impossívelAntônio José Alves Júnior

O ajuste e a realidade da política industrialMarco Antonio Rocha

Índice

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Nesta edição #22 da Revista Política Social e Desenvolvimento, seguimos no debate sobre a gestão macroeconômica ortodoxa e seus impactos na interdição da agenda do desenvolvimento.

Em “Desindustrialização e Doença Brasi-leira”, Antônio Carlos Diegues defende o argumento de que as transformações no padrão de organização e acumulação da indústria brasileira na primeira década dos anos 2000 reduziram substancial-mente sua capacidade de ser o catali-sador de um processo de crescimento. As origens desse padrão remontam às grandes transformações engendradas a partir do último quartel do século XX, marcadas pela dominância do paradigma da empresa em rede que viabilizou a frag-mentação global do processo produtivo, ancoradas em estratégias que exigiam a

Eduardo FagnaniProfessor do Instituto de Economia da Unicamp, pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e do Trabalho (Cesit/IE-Unicamp) e coordenador da rede Plataforma Política Social .www.plataformapoliticasocial.com

Apresentação

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concentração de capital em atividades também ligadas à esfera financeira. A reação defensiva da indústria brasileira engendrou transformações que deram origem a um novo padrão de organização e acumulação que está na origem do que o autor denomina “Doença Brasileira”, caracterizada “por um cenário em que se observam reconfigurações estruturais na indústria em direção à especialização regressiva e à desindustrialização, em paralelo ao surgimento de estratégias que garantem a acumulação do capital investido na esfera industrial”. Nessa reconfiguração, reduziu-se o conteúdo local em favor da importação de produtos finais e componentes. A consequente perda de elos das cadeias produtivas é o fator que tem conduzido ao processo de desindustrialização. Não obstante, mesmo nesse cenário, emergiram “estra-tégias que garantem a rentabilidade e a lucratividade do capital investido no setor industrial”. Diegues sustenta que a retomada da centralidade da indústria na estratégia de desenvolvimento brasileira, não se deve fundamentar em medidas circunscritas ao rebaixamento do salário real e nos eventuais impactos positivos de uma contração fiscal supostamente expansionista no investimento industrial.

Na mesma perspectiva, José Eduardo Cassiolato e Helena Lastres (“Dilemas da Indústria Brasileira: a necessidade de se articular o social e o produtivo”) argumentam que “apenas parcialmente” a apreciação cambial e o aumento dos preços das commodities explicam a perda de dina-mismo da indústria na última década. As razões de fundo estão associadas à

debilidade das respostas empreendidas para fazer frente às transformações ocor-ridas no final do século XX, marcadas pela revolução das novas tecnologias de informação, num contexto de aprofun-damento da financeirização da economia global e da reorganização das atividades produtivas por empresas transnacionais. Esse cenário foi agravado pela crise finan-ceira de 2008 e, mais recentemente, pelas mudanças na geopolítica associada aos desdobramentos da crise e introduzidas pela formação de alianças como a dos BRICS. Em decorrência desses fatores estruturais, os indicadores apontam para uma situação preocupante. Obser-va-se uma queda persistente da partici-pação do valor adicionado da indústria de transformação no PIB; redução da importância relativa das atividades de alta tecnologia; esvaziamento progressivo dos sistemas inovadores nas atividades de alta intensidade tecnológica; dete-rioração crescente na balança comercial de manufaturados; e desnacionalização da estrutura produtiva. Para os autores, os ajustes macroeconômicos em curso aprofundarão os problemas estruturais da indústria. Advogam a favor de formu-lar-se uma agenda de política industrial e tecnológica “capaz de fazer convergir os objetivos do desenvolvimento brasi-leiro em suas múltiplas dimensões, colo-cando a socioambiental no centro das prioridades”.

O artigo de Antônio José Alves Junior (“Austeridade fiscal e expansão da infraestrutura: uma combinação impos-sível”) ressalta a importância do inves-timento em infraestrutura como um dos

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caminhos para a retomada do cresci-mento econômico. Não obstante, o autor adverte que “quando o cerne da própria política de crescimento é a austeridade fiscal, a promoção da infraestrutura se torna um desafio muito árduo, senão impossível”. Na sua visão, o que se passa na Europa deveria ser tomado como um aviso para a política econômica brasi-leira em curso, dada a falácia segundo a qual a austeridade fiscal, ao aumentar a confiança, tornaria possível aos governos transferir o protagonismo na realização dos investimentos e do financiamento da infraestrutura para o setor privado. Analisando a experiência brasileira recente, Alves destaca o papel dos bancos públicos e dos diversos instrumentos adotados a partir de 2004 para fomentar os investimentos na infraestrutura, que resultaram em significativa expansão (crescimento anual de 11% entre 2003 e 2013). “O segredo da aceleração dos investimentos em infraestrutura não residiu nos superávits fiscais”, mas, ao contrário, foi fruto da “decisão política do governo federal de empregar recursos financeiros, seja como investidor, seja como financiador, com e sem parceria com o setor privado, o motor da retomada desses investimentos”. Todavia, este cenário foi alterado a partir de 2015: com a adoção da austeridade fiscal, passamos a seguir o fracassado modelo europeu que objetiva reconquistar a confiança empresarial. Com a restrição do papel dos bancos públicos rompeu-se com “o modelo bem-sucedido dos dez últimos anos”. Alves alerta que sobre a improvável ação dos agentes financeiros privados, nacio-nais e internacionais, no financiamento

da infraestrutura, ocupando os espaços deixados pelo BNDES. Conclui afirmando que “a solução das atuais dificuldades da economia brasileira não é trivial. Mas, tal como no caso europeu, a combinação entre austeridade fiscal e investimento em infraestrutura, para construir um novo ciclo de crescimento, não deverá ser mais do que uma esperança”.

Finalmente, em “O Ajuste e a Realidade da Política Industrial”, Marco Antônio Rocha, sublinha que apesar do ciclo de crescimento de 2004 a 2010 ter sido lide-rado pela indústria extrativa, “todos os setores (da indústria de transformação) apresentaram, de modo geral, índices elevados de rentabilidade”. Com o agra-vamento da crise e seus desdobramentos, nota-se um esforço defensivo das princi-pais corporações que passaram a adotar um ajuste cuja intensidade parece ter sido capaz de contrastar com a deterio-ração dos indicadores de rentabilidade. Diante de um cenário de menor ritmo de crescimento do mercado interno, redução da rentabilidade e aumento da pressão dos custos, diversos setores da indústria substituíram fornecedores nacionais por estrangeiros, ampliando o coeficiente de importações de forma significativa, acelerando os processos de ajuste às condições de concorrência internacional e a tendência persistente de câmbio valorizado. A partir desta análise, o autor esboça algumas linhas gerais de política industrial.

BOA LEITURA!

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Foto: Rudy And Peter Skitterians @pixalbay

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A reticência da retomada do investimento na economia brasileira e o aumento do déficit comercial nos últimos anos têm destacado a necessidade de se recuperar a competitividade da indústria local, a fim de se criarem os fundamentos de um novo ciclo de crescimento. Em um cenário de recuperação da competitividade industrial, os fundamentos deste novo ciclo pode-riam estar ancorados tanto na contenção do déficit comercial como no aumento do investimento com intuito de ampliar a

Desindustrialização e Doença Brasileira

Antônio Carlos Diegues Doutor em Economia pelo IE-Unicamp e professor adjunto III do Departamento de Economia da Universidade Federal de São Carlos

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capacidade produtiva, de modo a atender a demanda doméstica – a qual se tem deslo-cado gradativamente para o exterior.

Entretanto, apesar de inúmeros econo-mistas enfatizarem a centralidade da indústria para a recuperação do cresci-mento nacional e de haver um consenso acerca de sua baixa competitividade, defende-se a tese, neste artigo, de que as transformações em seu padrão de organi-zação e acumulação na primeira década dos anos 2000 reduziram substancialmente sua capacidade de ser o catalisador de um processo de crescimento associado à diver-sificação e a transformações estruturais

fundamentadas no incremento e na disse-minação da produtividade intersetorial nos moldes sugeridos por Kaldor (1966 e 1967) e de Hirschman (1958).1 Em outras palavras, observa-se que o padrão de orga-nização e acumulação da indústria local tem-se distanciado gradativamente do virtuoso binômio retenção de lucros & rein-vestimento em atividades correlatas, em busca da diversificação que caracterizou o desenvolvimento produtivo brasileiro ao longo do processo que se convencionou rotular como desenvolvimentista.

É exatamente a partir dos condicionantes deste cenário que se devem compreender as

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Foto: Bilderandi @Pixabay

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limitações estruturais de políticas econô-micas centralizadas na perspectiva de que a suposta credibilidade econômica derivada da contração fiscal impactaria positivamente a retomada dos inves-timentos em uma estrutura industrial c r e s c e n t e m e n t e d e s v i n c u l a d a d a dimensão produtiva.

As origens do padrão de organização e acumulação da indústria brasileira consolidado na primeira década dos anos 2000 remontam estruturalmente a grandes transformações engendradas a partir do último quartel do século XX. Na dimensão da firma, observou-se o esta-belecimento do paradigma da empresa em rede, o qual viabilizou a fragmentação global do processo produtivo, associado ao deslocamento de parcela significativa deste processo para a Ásia e ao conseguinte recrudescimento da competição global nas atividades manufatureiras. Paralelo a este fenômeno, como destaca Crotty (2002), criaram-se as bases materiais para a conso-lidação dos modelos de gestão baseados na lógica da maximização do valor acionário. Estes modelos, ao demandarem liquidez e desempenho de curto prazo das empresas industriais, fundamentaram-se em estra-tégias que exigiam a concentração cres-cente dessas em atividades estritamente não manufatureiras, dentre as quais se destacam aquelas da esfera financeira. Para tal, o autor mostra que foi necessária

“a mudança no comportamento e nas crenças dos agentes financeiros, os quais se deslocaram de uma aceitação implícita da interpretação Chandleriana que via as grandes firmas como uma combinação

integrada e coerente de ativos relativa-mente ilíquidos construída para assegurar o crescimento de longo prazo e a inovação, em direção a uma concepção financeira das firmas, na qual estas são vistas como um portfolio de subunidades líquidas que devem ser continuamente reestru-turadas a fim de que se consiga maximizar o valor acionário da empresa em todos os momentos” (tradução própria) (CROTTY, 2002, p. 17).

Outro grande condicionante sobre a qual se fundamenta a transformação do padrão de organização e acumulação da indús-tria brasileira é o esgotamento do padrão de industrialização por substituição de importações (ISI), vigente grosso modo até o final da década de 80. Esse esgotamento, por sua vez, deriva tanto da transição do paradigma tecnoeconômico chandleriano para o baseado na microeletrônica, como da crise do desenvolvimentismo. Tal crise, ao estar associada a um fenômeno inter-nacional de reação liberal, implicou um vasto conjunto de medidas que se mate-rializaram nas abruptas e intensas aber-turas comercial e financeira e culminaram em um cenário com fortes oscilações nos preços macroeconômicos, caracterizado desde então pela persistente apreciação do real, pela vigência de taxas de juros elevadas e pelo baixo investimento público (tanto na esfera empresarial quanto na infraestrutura e na dimensão social).

A partir deste cenário, tem-se observado um movimento de reação defensiva da indústria local, marcado pela interrupção da dinâmica característica do período de ISI, fundamentada na expansão do

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Foto: CC0 Public Domain @Pixabay

investimento direcionada à diversificação do parque produtivo doméstico.

Como forma de reação aos condicionantes mais amplos deste cenário entendido prin-cipalmente pela literatura de orientação desenvolvimentista como de especiali-zação regressiva (COUTINHO, 1997), defende-se a tese, neste artigo, de que a reação defensiva da indústria brasileira engendrou transformações que deram origem a um novo padrão de organização e acumulação vigente na primeira década de 2000. Esse padrão estaria fundamentado no seguinte tripé:

(i) reorganização das unidades produtivas locais, adequando-as aos novos condicio-nantes competitivos das redes globais de produção e viabilizando assim a integração essencialmente importadora nessas redes;

(ii) aumento do mercado interno, fomen-tado pela distribuição de renda, aumento da massa salarial, do emprego e do crédito; e

(iii) acoplamento do parque produtivo doméstico ao mercado internacional como grande ofertante de produtos intensivos em recursos naturais.

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Neste tripé, enquanto a consolidação da China como um dos principais centros cíclicos da economia global potencia-lizaria as estratégias de acumulação fundamentadas na integração importa-dora nas cadeias produtivas globais e no acoplamento a sua voraz demanda por commodities, as transformações econô-micas e sociais impressas no período Lula potencializariam as estratégias de acumulação orientadas ao fornecimento de bens salário. Ou seja, a partir das limitações impostas pela reação liberal à crise do desenvolvimentismo associadas à mudança do paradigma tecnoeconômico global, as empresas industriais brasileiras se readequaram de maneira a fundamentar seu dinamismo e acumulação a partir da associação, em diferentes graus segundo as especificidades setoriais, a cada uma das três bases do tripé anterior.

Como resultado destas transformações, a emergência deste novo padrão de organi-zação e acumulação da indústria local dá origem ao que se denomina neste artigo “Doença Brasileira”. Essa seria caracteri-zada por um cenário em que se observam reconfigurações estruturais na indústria em direção à especialização regressiva e à desindustrialização, paralelas ao surgimento de estratégias que garantem a acumulação do capital investido na esfera industrial. Tal acumulação, por sua vez, estaria associada à emergência de estra-tégias crescentemente desvinculadas do desempenho estritamente produ-tivo. Em outras palavras, observa-se na década de 2000 no Brasil a coexistência de um processo de desindustrialização, paralelo à manutenção e até à ampliação

da acumulação do capital investido na indústria local.

Esta denominação, por sua vez, é uma alusão à ‘Doença Holandesa’, entendida por inúmeros economistas como uma das causas centrais da desindustrialização brasileira. Sinteticamente, o fenômeno da Doença Holandesa explica a redução do papel da indústria no desenvolvimento econômico como resultado da apreciação das moedas locais decorrente de um desempenho exportador bastante pujante nos setores de commodities, aumentando a lucratividade e a atratividade relativa desses setores frente às atividades manu-fatureiras. Segundo Bresser-Pereira (2008)

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Como resultado destas transformações, a emergência

deste novo padrão de organização e acumulação

da indústria local dá origem ao que se denomina neste

artigo “Doença Brasileira”. Essa seria caracterizada por um

cenário em que se observam reconfigurações estruturais

na indústria em direção à especialização regressiva

e à desindustrialização, paralelas ao surgimento de estratégias que garantem a

acumulação do capital investido na esfera industrial.

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“A doença holandesa é um obstáculo do lado da demanda ao inviabilizar inves-timentos mesmo quando as empresas dominam a respectiva tecnologia (pois) haverá insuficiência crônica de oportu-nidade de investimentos lucrativos nos setores produtores de bens comercializá-veis cuja principal causa será a tendência à sobre-apreciação da taxa de câmbio que existe nos países em desenvolvimento” (BRESSER-PEREIRA, 2008, p. 1-2).”

Diferente desta interpretação, defende-se neste artigo que mais do que uma suposta redução da lucratividade no setor manufa-tureiro, o baixo dinamismo produtivo local

na década de 2000 é explicado por um novo padrão de organização e acumulação do setor industrial brasileiro. Como resultado deste cenário, depois de uma reação defen-siva inicial às medidas liberalizantes dos anos 90, a indústria brasileira conseguiu se adaptar e reconfigurar suas atividades produtivas, reduzindo gradativamente o conteúdo local adicionado a sua produção. Essa redução, por sua vez, foi acompa-nhada pelo crescimento da importação de produtos finais, partes, peças e compo-nentes a partir da integração importadora das cadeias produtivas globais. Deste modo, observou-se o surgimento de uma indústria doméstica com uma dinâmica competitiva

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Foto: Jürgen @Pixabay

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e de acumulação completamente distinta daquela vigente nos países asiáticos que conseguiram engendrar uma inserção externa virtuosa através da exportação de manufaturados.

Como reflexos da Doença Brasileira, na dimensão produtiva tem-se observado a continuidade de uma tendência desde a década de 1980 de persistente redução da participação da indústria no PIB e de sua contribuição para o crescimento (a qual se situou em patamares próximos a 35% nos anos 1980 e sistematicamente abaixo de 20% nos anos 2000). Adicionalmente, além do baixo dinamismo, destaca-se que quase 70% do crescimento do valor da transfor-mação industrial (VTI) entre 1996 e 2010 são explicados por apenas dois grupos de setores, os intensivos em recursos naturais e em escala.

Assim, quando se analisa a distribuição percentual do VTI segundo tipos de tecno-logia verifica-se que a indústria brasileira tem-se concentrado no segmento inten-sivo em recursos naturais, fenômeno este que se consolida na virada do século e se intensifica ainda mais a partir do final da década de 2000. Mais da metade (57%) deste movimento é explicada pelo cresci-mento do complexo petroleiro.2

Paralela a esta concentração do VTI nos setores intensivos em recursos naturais, observa-se uma queda na representativi-dade em setores com alto valor agregado e elevada capacidade de irradiar ganhos de produtividade para as demais cadeias produtivas, como setores característicos do

paradigma tecnoeconômico da eletrônica, os setores produtores de meios de produção (máquinas e equipamentos e indústria química), farmacêutica, além dos setores intensivos em mão de obra.

Essa concentração está acompanhada de um fenômeno quase que generalizado de perda de elos das cadeias produtivas, o qual se estende desde setores líderes do processo de acumulação no paradigma industrial chandleriano como metal-me-cânica, química, máquinas e equipamentos até ao setor de fabricação de aeronaves. Mensurada pela relação entre VTI/Valor Bruto da Produção (VBP), essa perda de elos é entendida como um dos principais indicadores para se identificar a tendência de desindustrialização. A exceção a este fenômeno são os setores intensivos em recursos naturais, para os quais a relação VTI/VBP tem aumentado, com especial destaque novamente para o complexo petroleiro.

Como resultado dessas evidências de desin-dustrialização e em aderência ao cenário de Doença Brasileira, na dimensão externa observa-se um movimento de incremento do coeficiente de penetração das importa-ções, paralelo a uma polarização do desem-penho do balanço comercial setorial. Ao mesmo tempo em que se nota a partir de meados dos anos 2000 uma melhora do saldo comercial para o grupo de setores intensivos em recursos naturais, verifica-se uma substancial deterioração do saldo dos demais grupos de setores, os quais se transformam em déficits significativos e crescentes a partir do final da década.

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Como reflexo do desadensamento das cadeias produtivas locais acompanhado do aumento do coeficiente de penetração, observa-se na década de 2000 uma redução quase generalizada da intensidade de capital por trabalhador. Mensurado pela razão entre ativo total e pessoal ocupado, a queda deste indicador é mais intensa em setores baseados em ciência e diferen-ciados (os quais também apresentam signi-ficativa redução no adensamento produtivo e aumento no coeficiente de penetração). Uma vez mais, a exceção a este fenômeno é o grupo de setores intensivos em recursos naturais, o qual foi responsável por 86% do crescimento do ativo industrial brasileiro entre 2000 e 20103 (Gráfico 1).

No entanto, apesar das evidências de desin-dustrialização apresentadas nos parágrafos anteriores sugerirem uma fragilidade da indústria local, de maneira oposta ao que se poderia imaginar a partir de uma extra-polação do argumento de trabalhos que defendem estar em curso um fenômeno

análogo à Doença Holandesa no Brasil, nota-se que a massa de lucros do setor industrial em valores reais quase dobrou entre 2000 e 2010 para empresas com 30 ou mais ocupados.

Não suficiente esse crescimento exponen-cial da massa de lucros, observa-se um descolamento entre a evolução do ativo, da receita e do lucro na esfera industrial (Gráfico 2). Tal descolamento, por sua vez, é mais intenso nos setores característicos da III Revolução Industrial, exatamente aqueles que viabilizaram a integração externa virtuosa de alguns países asiá-ticos nas cadeias globais de produção. Em síntese, como resultado deste fenômeno, verifica-se que para a indústria brasileira a média do indicador expresso pela divisão do lucro pela receita aumenta de 2% no período 1996-2002 para 9% entre 2003 e 2010. Ou seja, apesar do baixo dinamismo do investimento, observa-se que esta nova forma de organização da acumulação de capital da indústria brasileira tem-lhe

 

-­‐26%  

12%  

-­‐17%  -­‐13%  

-­‐22%  

-­‐3%  1  

Gráfico  1:  Efeito  Rentabilidade:  Taxas  de  Crescimento  da  Razão  A=vo  Total  /  PO,  2000  a  2010  

Baseada  em  Ciência   Intensiva  em  Recursos  Naturais   Intensiva  em  Trabalho  

Fonte:  elaboração  própria  a  parFr  de  PIA  –  IBGE  –  Vários  Anos.  Classificação  baseada  em  OECD  (1987)  a  parFr  de  PaviV  (1984).  Dados  deflacionados  segundo  IPA  -­‐FGV.  Empresas  com  30  ou  mais  pessoas  ocupadas  

Ver  notas  metodológicas.  em  Nota  de  Rodapé  3.  

GRÁFICO 1: EFEITO RENTABILIDADE: Taxas de Crescimento da Razão Ativo Total/ PO, de 2000 a 2010Fonte: elaboração própria a partir de PIA – IBGE – Vários Anos. Classificação baseada em OECD (1987) a partir de Pavitt (1984). Dados deflacionados segundo IPA -FGV. Empresas com 30 ou mais pessoas ocupadas

Ver notas metodológicas. em Nota de Rodapé 3.

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159%  

2%   9%  

449%  

6%  30%  

244%  

-­‐4%  9%  

475%  

24%   34%  

188%  

A/vo  Total   Receita  Total   Receita  Total  menos  Custo  Total  

Gráfico  2:  Efeito  Rentabilidade:  Taxas  de  Crescimento  A;vo  Total  e  Receita  Total  menos  Custo  Total,  segundo  ;pos  de  tecnologia,  de  2000  a  2010  

Baseada  em  Ciência   Intensiva  em  Recursos  Naturais   Intensiva  em  Trabalho  Intensiva  em  Escala   Diferenciada   TOTAL  

Fonte:  elaboração  própria  a  par/r  de  PIA  –  IBGE  –  Vários  Anos.  Classificação  baseada  em  OECD  (1987)  a  par/r  de  Pavi[  (1984).  Dados  deflacionados  segundo  IPA  -­‐FGV.  Empresas  com  30  ou  mais  pessoas  ocupadas  

Ver  notas  metodológicas.  em  Nota  de  Rodapé  3.  

GRÁFICO 2: EFEITO RENTABILIDADE: Taxas de Crescimento Ativo Total e Receita Total menos Custo Total, segundo tipos de tecnologia, de 2000 a 2010Fonte: elaboração própria a partir de PIA – IBGE – Vários Anos. Classificação baseada em OECD (1987) a partir de Pavitt (1984). Da-dos deflacionados segundo IPA -FGV. Empresas com 30 ou mais pessoas ocupadas. Ver notas metodológicas. em Nota de Rodapé 3.

permitido libertar-se, ainda que parcial-mente, das amarras da atividade produtiva.

Em coerência a este movimento, tanto a massa de lucros quanto os indicadores de lucratividade (lucro/receita total, e lucro/custo total) e rentabilidade (lucro/ativo total) exibem um comportamento dire-tamente proporcional aos movimentos de apreciação da moeda local ao longo da década de 2000. Tal movimento é aderente ao cenário de Doença Brasileira defendido por este artigo, devido ao surgimento de estratégias que garantem a rentabilidade e a lucratividade do capital investido no setor industrial, mesmo em um cenário de desindustrialização. Vale destacar ainda que essa melhora dos indicadores ocorre em todos os grupos de setores industriais, inclusive naqueles de maior complexi-dade tecnológica. Este fato, por sua vez,

se contrapõe (no período em questão) à percepção de Bresser-Pereira (2013) de que “em um cenário de vigência de não neutra-lização dos efeitos da doença holandesa, a taxa de lucro das empresas industriais nos setores comercializáveis será reduzida ou até mesmo se tornará negativa (depen-dendo a intensidade desta doença) (...)” (BRESSER-PEREIRA, 2013, p. 374).

Uma vez que essas estratégias estão funda-mentadas na crescente concentração das empresas industriais locais nas etapas de comercialização, distribuição, marke-ting e finanças, no aumento gradativo do caráter maquilador da atividade manu-fatureira local e na utilização crescente do endividamento externo como fonte de financiamento, a apreciação cambial contribui para a melhora da rentabilidade e da lucratividade industrial durante o

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movimento de aumento significativo do mercado consumidor doméstico nos anos 2000 (Gráfico 3). De maneira oposta, períodos caracterizados por abruptas depreciações da moeda local estão asso-ciados a uma deterioração da rentabili-dade e da lucratividade industrial, seja em virtude do aumento dos custos dos serviços financeiros da dívida, do maior preço das partes, peças, componentes e até produtos finais importados, e até mesmo do fato de essas depreciações estarem associadas a momentos de instabilidades econômicas e financeiras domésticas e internacionais.

É exatamente neste cenário de Doença Brasileira, onde se observa uma desvin-culação, ainda que parcial, da dinâmica de acumulação do desempenho estritamente

produtivo, que se devem compreender as causas do baixo dinamismo do investi-mento industrial mesmo em um contexto de mais de uma década de crescimento do consumo local. Segundo a tese defendida por este artigo, este baixo dinamismo é, na verdade, o sintoma de um padrão de organização e acumulação exitoso, vigente na primeira década dos anos 2000. Já segundo as interpretações do mainstream, o baixo dinamismo do investimento é explicado por duas principais linhas de argumentação.

A primeira delas defende a tese de que o aumento do salário real acima da produ-tividade teria reduzido a lucratividade e a rentabilidade da indústria. Este fato teria restringido a capacidade de investimento

 

 -­‐        

 40.000.000    

 80.000.000    

 120.000.000    

 160.000.000    

 200.000.000    

 240.000.000    

0,0%  

5,0%  

10,0%  

15,0%  

20,0%  

25,0%  

30,0%  

35,0%  

2000   2001   2002   2003   2004   2005   2006   2007   2008   2009   2010  

Gráfico  3:  Indústria  Brasileira,  indicadores  selecionados,  2000  a  2010  (em  %  e  R$  Mil  de  2010)    

Lucro  Total  -­‐  Eixo  da  Direita   Lucro  Total  /  VTI  

Lucro  Total  /  ACvo  Total   Lucro  Total  /  Receita  Total  

Lucro  Total  /  Custo  Total  

Fonte:  elaboração  própria  a  parCr  de  PIA  –  IBGE  –  Vários  Anos.  Classificação  baseada  em  OECD  (1987)  a  parCr  de  PaviZ  (1984).  Dados  deflacionados  segundo  IPA  -­‐FGV.  Empresas  com  30  ou  mais  pessoas  

ocupadas  

GRÁFICO 3: INDÚSTRIA BRASILEIRA, INDICADORES SELECIONADOS, 2000 A 2010 (EM % E R$ MIL DE 2010) Fonte: elaboração própria a partir de PIA – IBGE – Vários Anos. Classificação baseada em OECD (1987) a partir de Pavitt (1984). Dados deflacionados segundo IPA -FGV. Empresas com 30 ou mais pessoas ocupadas

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Foto: Geralt @Pixabay

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do setor e, assim, comprometido seu poten-cial de crescimento de longo prazo. Deste modo, o incremento da competitividade da indústria local e a conseguinte reto-mada do investimento teriam como um dos pré-requisitos a limitação do crescimento do salário real a patamares inferiores ao ritmo de expansão da produtividade.

No entanto, a despeito do que afirma essa linha de argumentação, não se tem verificado uma redução da lucratividade e da rentabilidade da indústria local no período entre 2000 e 2010. Não obstante, quando se observa o comportamento dos salários em relação aos custos e aos lucros industriais, também não é possível afirmar que o crescimento dos salários reais tem

reduzido per se o potencial de investimento da indústria nacional. Isso porque, ainda segundo a PIA/IBGE, para empresas com 30 ou mais pessoas ocupadas, a partici-pação dos gastos com pessoal (os quais incluem outros gastos além dos salários) nos custos industriais em 2010 encontra-va-se exatamente no mesmo patamar que em 2000 – 13,9%.

Adicionalmente, refutando o que sugerem algumas interpretações em destaque no debate econômico atual, entre 2000 e 2010 não se constatou um aumento da partici-pação dos gastos com pessoal em relação ao lucro das empresas industriais brasileiras. O que se verifica é que em 2010 os gastos com pessoal representavam cerca de 120%

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do lucro destas, enquanto que em 2000 e 2001 estes valores eram bastante supe-riores, de 273% e 318% respectivamente.

A segunda linha de interpretação mains-tream a respeito das causas do baixo dinamismo do investimento brasileiro sugere que este seria reflexo indireto de um cenário de crise fiscal do Estado. Neste cenário, ao incorrer em déficits fiscais nominais crescentes, o Estado por meio do aumento da incerteza associada à suposta redução de sua capacidade de solvência e do crowding out, desestimularia a reto-mada dos investimentos. Tal fato ocorreria porque, em um cenário de instabilidade, o horizonte de previsibilidade diminuiria e as expectativas acerca da rentabilidade futura seriam afetadas negativamente. Deste modo, apenas uma contração fiscal percebida como suficientemente robusta e crível pelos agentes econômicos poderia reverter o cenário de deterioração das expectativas e, assim, liberar o espírito empreendedor local a fim de se viabilizar a retomada dos investimentos industriais.

Não suficiente os mecanismos de trans-missão automática entre expectativas e decisões de investimento capitalistas serem questionáveis, a contração fiscal associada a um cenário de semiestagnação contribui negativamente para a susten-tação daquele que foi um dos pilares do tripé de acumulação do capital indus-trial no período 2000 a 2010: o aumento do mercado interno, fomentado pela distribuição de renda, pelo aumento da massa salarial, do emprego e do crédito. Adicionalmente, conforme se analisou ao longo de todo este trabalho, uma vez que

no cenário de Doença Brasileira a acumu-lação de capital da indústria brasileira tem permitido a esta se libertar ainda que parcialmente das amarras da atividade produtiva, uma eventual melhora das expectativas econômicas não necessa-riamente se traduziria no incremento do investimento produtivo.

Deste modo, este artigo sustenta que a retomada da centralidade da indústria na estratégia brasileira de desenvolvimento, em um cenário de acirramento da concor-rência global e de consolidação da China como a nova ‘Workshop of the World’, não se deve fundamentar em medidas que circunscrevam tal problema a medidas como a redução do ritmo de crescimento do salário real e os eventuais impactos posi-tivos de uma contração fiscal supostamente expansionista no investimento industrial.

De maneira mais ampla, tais medidas deve-riam compreender as transformações no padrão de organização e de acumulação da indústria local forjadas na primeira década dos anos 2000. Deveriam ainda se basear na compreensão de que parcela importante das deficiências da indústria brasileira têm como fundamentos estruturais elementos como o baixo nível de institucionalização das rotinas operacionais e inovativas, a baixa intensidade de capital por traba-lhador (a qual se reduziu para a maior parte dos setores entre 2000 e 2010, devido ao crescente viés maquilador assumido pela indústria local) e principalmente a baixa participação na estrutura produtiva doméstica de setores com elevada produ-tividade, característicos do paradigma da III Revolução Industrial.

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NOTAS

1 O movimento de acumulação de capital pelas empresas classificadas como pertencentes à Indústria é mensurado neste trabalho a partir do que se denomina massa de lucro. Esta, por sua vez, é definida como o somatório de Receita Total (menos) Custos e Despesas Totais para todas as empresas industriais com 30 ou mais pessoas ocupadas. Vale destacar que as receitas derivadas de operações não estritamente industriais – como receitas financeiras, variações monetárias ativas, resultados positivos de participações societárias e em cota de participação, entre outras – também foram contabilizadas. Os custos e despesas totais, por sua vez, incluem gastos de pessoal (salários e demais contribuições e encargos), matérias primas, estoques, custos diretos de produção e demais custos (incluída a depreciação).

2 Os impactos diretos e indiretos do crescimento exponencial do complexo petroleiro em uma ampla e diversificada cadeia de fornecimento de máquinas e equipamentos são mensurados de acordo com a classificação setorial das respectivas firmas que compõem esta cadeia. Assim, segundo a classificação nacional

das atividades econômicas, este impacto materializa-se em transformações (e.g. em níveis de adensamento, de dinamismo, etc.) em setores que não são classificados como pertencentes ao complexo petroleiro. Logo, as menções realizadas por este trabalho a este complexo referem-se apenas às atividades estritamente classificadas como diretamente relacionadas à extração (e de apoio à extração) de petróleo e gás natural, e à fabricação de coque, de produtos derivados do petróleo e de biocombustíveis.

3 Observações Metodológicas: Ao se analisar o comportamento dos ativos segundo os setores industriais, dentre as mais de 600 observações, foram identificadas oito que apresentaram oscilações que se materializaram em valores substancialmente distintos daqueles observados nos anos imediatamente posteriores e anteriores, bem como no restante da série. Esses valores implicavam oscilações extraordinárias em pontos outliers em séries de indicadores que apresentaram comportamento com grande grau de estabilidade no período entre 2000 e 2010 como ativo total dividido por receita total. Deste modo, a título de precaução, foram substituídos por valores que expressavam a média da intensidade de ativo total por receita total para os dois anos anteriores ou subsequentes para seus respectivos setores, fato este que tornou a magnitude destas observações bastante aderente às demais observações do período em questão.

Referências Bibliográficas

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BRESSER-PEREIRA, L. C. (2013). “The value of the exchange rate and the Dutch disease”. Revista de Economia Política, vol. 33, nº 3 (132), pp. 371-387, Julho-Setembro.

COUTINHO, L. C. (1997). “A especialização regressiva: Um balanço do desempenho industrial pós-estabilização”. In: Velloso, J.P.R. (Org.), Brasil: Desafios de um País em Transformação. José Olympio Editora. Rio de Janeiro.

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HIRSCHMAN, A. (1958). The Strategy of Economic Development. Yale University Press.

Deste modo, este artigo sustenta que a retomada da centralidade

da indústria na estratégia brasileira de desenvolvimento, em um cenário de acirramento

da concorrência global e de consolidação da China como

a nova ‘Workshop of the World’, não se deve fundamentar

em medidas que circunscrevam tal problema a medidas

como a redução do ritmo de crescimento do salário real e os eventuais impactos positivos

de uma contração fiscal supostamente expansionista no investimento industrial.

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Foto: CCO Public Domain @pixalbay

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Na última década, apesar da significativa expansão do mercado interno e do cres-cimento da economia, a indústria brasi-leira tem perdido dinamismo. Isto tem sido associado por alguns à apreciação cambial resultante da política macroe-conômica e ao aumento dos preços das commodities resultante do chamado “efeito China”. Argumenta-se neste texto que estes elementos apenas parcialmente explicam um fenômeno que já se mostrava evidente nos anos 1980 e 1990.

Dilemas da Indústria Brasileira:

a necessidade de se articular o social

e o produtivo1

José Eduardo Cassiolato Doutor em Economia pela Universidade de Sussex da Inglaterra, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro e presidente do comitê científico da Rede Globelics - Global Research Network on the Economics of Learning, Innovation and Competence Building Systems

Helena Lastres Ph.D. em ciência, tecnologia e industrialização, SPRU/University of Sussex, mestre em Engenharia da Produção, Coppe/UFRJ e economista FEA/UFRJ. Professora e pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação, PPCI/UFRJ (Convênio CNPq/IBICT-UFRJ/ECO).

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No final do século XX, a indústria brasi-leira se defrontou com a necessidade de enfrentar a transformação sociotécnica associada à Revolução das TICs. Ao mesmo tempo, a aceleração da financeirização da economia global (e brasileira) e a reorganização das atividades produtivas pelas empresas transnacionais – cada vez mais subordinadas à lógica das finanças – adicionam desafios à estrutura produtiva brasileira. A explosão do desenvolvimento chinês ao longo dos anos 2000 e a geração de saldos respeitáveis na balança comercial brasileira apenas adiaram o enfrentamento destes problemas.

A crise mundial atual iniciada em 2007-2008 e seus desdobramentos agravam esta situação e adicionam novas especifici-dades. O conjunto de políticas adotado pelo Brasil no enfrentamento da crise – com destaque para a atuação incisiva dos bancos oficiais – foi fundamental para garantir a sobrevivência financeira das principais empresas brasileiras. Porém, perdeu-se a oportunidade de aproveitar o momento para promover alterações no desenvolvi-mento produtivo nacional na direção de um paradigma produtivo menos intensivo na exploração de recursos naturais. Mais recentemente, as mudanças na geopolítica associada aos desdobramentos da crise e introduzidas pela formação de alianças como a dos BRICS trazem novos elementos e pressões externas que não podem ser ignorados ao se discutir os desafios atuais da indústria.

A partir de 2003, no Brasil, o sucesso das políticas de inclusão social, a melhoria na distribuição da renda e a dinamização do

mercado de trabalho transformaram posi-tivamente o país o que torna também muito mais complexo o debate sobre a estrutura produtiva. Por um lado, os indicadores e análises tradicionais apontam para uma situação preocupante. A participação do valor adicionado da indústria de transfor-mação no PIB que cresceu de 19,8% em 1947 a 35,9% em 1985, vem perdendo terreno, caindo para 18% em 2003 e 13,1% em 2013. Dentro do tecido industrial, ocorre também uma diminuição da importância relativa das atividades de alta tecnologia. O VTI do conjunto das tecnologias de informação e comunicação que representava aproxi-madamente 1,4% do PIB em 2000, cai para 0,97% em 2005 e 0,4% em 2011 (entre 2008 e 2010, nos Estados Unidos, o peso das TICs no PIB era de 9% e na União Europeia, oscilava entre 5% e 7%).

Observa-se também tanto o esvaziamento progressivo dos sistemas produtivos e inova-tivos brasileiros em geral e nas atividades de alta intensidade tecnológica em particular (aproximadamente 70% da demanda final brasileira era suprida por importações em 2008), quanto a deterioração crescente na balança comercial de manufaturados (as atividades de alta e média-alta tecnologia foram responsáveis, em 2013, por déficit superior a US$ 90 bilhões).

Desindustrialização e perda do tecido industrial são acompanhadas por uma

significativa desnacionalização da estrutura produtiva

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Desindustrialização e perda do tecido industrial são acompanhados por uma significativa desnacionalização da estru-tura produtiva. O estoque de capital estran-geiro na indústria brasileira aumentou de US$ 32 bilhões em 2000 para US$ 221,8 bilhões em 2011, representando 30% do PIB. Nas atividades de alta e média-alta tecnologias, o aumento foi de mais de 300%. Nos anos recentes, apesar do enorme estímulo fiscal às atividades produtivas maiormente dominadas por subsidiárias de ETNs observamos uma paralisação nos investimentos e explosão na remessa de lucros ao exterior. Dados do Banco Central indicam que as remessas que oscilavam em

torno de US$ US$ 5 bilhões ao ano entre 1995 e 2006, passam a gravitar em torno dos US$ 25 bilhões ao ano a partir de 2007.

Por outro lado, o território brasileiro e sua estrutura produtiva têm sido revolucio-nados pelo desenvolvimento de inúmeros arranjos produtivos locais (APLs). Impul-sionados pelos projetos de infraestrutura e dos programas sociais e de interiorização da educação, capacitação e formação técnica, APLs especializados em ativi-dades da agroindústria, bens de consumo não duráveis, economia da cultura, dentre outros, têm proliferado, aumentando a renda no território e permitindo inúmeros

D I L E M A S D A I N D Ú S T R I A B R A S I L E I R A : A N E C E S S I D A D E D E S E A R T I C U L A R O S O C I A L E O P R O D U T I V O

Foto: CC0 Public Domain @Pixabay

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processos virtuosos de transformação. Entretanto, tais processos por diversas razões colocam-se fora de alcance das lentes tradicionais de captação de fenô-menos produtivos e inovativos, e conse-quentemente de seus correspondentes indicadores. Assim a deterioração da estrutura produtiva brasileira é acompa-nhada por fenômenos de transformação produtiva que permanecem praticamente invisíveis.

Tais mudanças ocorrem paradoxalmente num período em que a política industrial é reintroduzida na agenda brasileira, com o mercado interno aumentando de forma significativa. Além da tendência a imitar, sem a necessária adequação, os modelos, agendas e instrumentos de política gerados em outros contextos, os objetivos e instrumentos da política industrial têm-se dissociado daqueles das políticas de desenvolvimento social. A política social foi capaz de incluir na economia e na sociedade milhões de brasileiros que se tornaram cidadãos e consumidores com demandas muito claras e intensivas em inovações. Demandas de melhores condições de vida e cidadania – alimentação, saúde, educação, habitação, transporte, saneamento, cultura, dentre outras – exigem capacitações produtivas e inovativas, assim como soluções e novas tecnologias específicas aos diferentes territórios.

Os ajustes macroeconômicos ora em implantação impactam negativamente a política produtiva e os dois conjuntos de sistemas produtivos acima apontados. Para que não se percam os ganhos obtidos na

última década e que se recupere a estru-tura produtiva, é necessário uma agenda de política industrial e tecnológica capaz de fazer convergir os objetivos do desen-volvimento brasileiro em suas múltiplas dimensões, colocando a socioambiental no centro das prioridades. Com isto, uma série de possibilidades para reforço de trajetórias benignas e autorreforçadoras de desenvolvimento podem ser vislumbradas.

Uma primeira grande oportunidade consiste em estimular o desenvolvimento de arranjos produtivos e inovativos locais relacionados à ampliação da qualidade e da provisão dos serviços públicos essen-ciais, como aqueles elencados pelo Plano Brasil Sem Miséria. Nesta perspectiva, a política de desenvolvimento industrial e tecnológico deveria ser maiormente orien-tada para a mobilização e o adensamento de capacitações, atividades e sistemas produtivos e inovativos centrados na provisão de alimentos, saúde, educação, habitação (com saneamento e acesso a água e energia), tratamento de resíduos sólidos, mobilidade, cultura, dentre outros serviços públicos.

Um segundo vetor de oportunidades

Os ajustes macroeconômicos ora em implantação impactam

negativamente a política produtiva e os dois conjuntos

de sistemas produtivos acima apontados.

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dessa maior integração e fortalecimento da política de desenvolvimento deriva de sua capacidade de mobilizar as vantagens oferecidas pelo vasto território brasileiro. Apesar das conquistas obtidas com a descentralização dos recursos, as polí-ticas industrial e de inovação ainda incor-poram uma visão ultrapassada do ponto de vista espacial. Por exemplo, ambas ainda colocam a questão regional apenas como um apêndice compensatório, e o enfoque setorial ainda é pensado de forma desterri-torializada. Uma política visando a mobi-lizar capacitações e sistemas produtivos e inovativos locais poderia beneficiar-se e contribuir para consolidar os avanços da implantação das novas estruturas de ensino, pesquisa e geração e difusão de conhecimentos no território nacional: os institutos federais, as universidades públicas regionais e os centros vocacio-nais tecnológicos.

O novo paradigma da sustentabilidade encontra no Brasil, talvez, o seu maior potencial de realização, dadas as nossas especificidades socioambientais e cultu-rais. Na implementação de uma nova polí-tica para o desenvolvimento, a seleção de áreas consideradas estratégicas e porta-doras de futuro deveria contemplar, em primeiro lugar, aquelas de maior impacto na nossa economia e sociedade: alimen-tação, saúde, educação, habitação, sanea-mento, mobilidade, etc. Além de estimular o surgimento e fortalecimento de novas atividades e atores produtivos, contri-buindo para inaugurar adequados espaços de desenvolvimento, tais propostas apre-sentam potencial para resolver algumas de suas mais graves distorções e mais prementes ameaças: as desigualdades sociais e territoriais, a desindustrialização e a escalada das importações.

NOTA

Este artigo representa as opiniões pessoais dos autores e não necessariamente dos organismos em que trabalham.Na implementação

de uma nova política para o desenvolvimento,

a seleção de áreas consideradas estratégicas e portadoras

de futuro deveria contemplar, em primeiro lugar, aquelas de maior impacto na nossa

economia e sociedade: alimentação, saúde, educação,

habitação, saneamento, mobilidade, etc

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Foto: CCO Public Domain @pixalbay

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Ao contrário do que diz o senso comum, o Brasil não é o único país carente de infraes-trutura. Desde a eclosão da crise, estudos de consultorias, governos e instituições multilaterais trazem diagnósticos para o baixo crescimento global e concordam que a carência de infraestrutura, na maioria dos países, é uma das principais causas..1 Consequentemente, o investimento em infraestrutura se apresenta como um dos caminhos da retomada. O arranque para o crescimento é no período de construção,

Austeridade fiscal e expansão

da infraestrutura: uma combinação

impossível

Antônio José Alves Júnior Professor do Departamento de Ciências Econômicas da UFRRJ

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com a criação de muitos empregos diretos e indiretos. E na medida em que os novos projetos entram em operação, os ganhos de competitividade para os usuários diretos da infraestrutura e para os demais benefi-ciados pelas externalidades convertem-se em novo ciclo de investimentos e de cres-ciment crescimento.

Em quase todos os países, o Estado é um dos agentes mais engajados nos financia-mentos e investimentos em infraestrutura. Mas quando o cerne da própria política de crescimento é a austeridade fiscal, a promoção da infraestrutura se torna um

desafio muito árduo, senão impossível. O que se passa na Europa deveria ser tomado como um aviso para a atual política econômica brasileira, que abraça a tese da promoção da infraestrutura a partir do ajuste fiscal.

Promoção da infraestrutura: o exemplo europeu

A política de austeridade europeia visa recuperar a confiança empresarial e induzir o crescimento a partir da obtenção de resultados fiscais e do controle da dívida pública. Contudo, ao menos no curto prazo, a maior parte dos governos não encontra espaço fiscal para realizar ou financiar os investimentos em infraestrutura, retar-dando o crescimento. A administração desse conflito se resume na crença segundo a qual a própria política de austeridade fiscal, ao aumentar a confiança, torne possível aos governos transferir o prota-gonismo na realização dos investimentos e do financiamento da infraestrutura para o setor privado. Ocorre que, diante da prorrogação da estagnação econômica e da consolidação da incerteza – em grande medida, um resultado das políticas de austeridade –, o setor privado não tem demonstrado o ímpeto esperado pelos projetos na Europa. O último levantamento disponível sobre a evolução de projetos de parceria público--privadas revela que o total de contratos

Em quase todos os países, o Estado é um dos agentes mais engajados nos financiamentos

e investimentos em infraestrutura. Mas quando o cerne da própria política

de crescimento é a austeridade fiscal, a promoção

da infraestrutura se torna um desafio muito árduo, senão

impossível. O que se passa na Europa deveria ser tomado

como um aviso para a atual política econômica brasileira, que abraça a tese da promoção

da infraestrutura a partir do ajuste fiscal.

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assinados no primeiro semestre de 2014 chegou à casa dos 9 bilhões de euros, valor equivalente ao do primeiro semestre de 2005 e ainda bem inferior aos 12 bilhões de euros do primeiro semestre de 2011.2De acordo com a Comunidade Econômica Europeia, a culpa pelos baixos investi-mentos não é da expectativa de retorno dos projetos, uma vez que há evidente necessi-dade dos equipamentos, uma simplificação oriunda da confusão entre necessidade e demanda efetiva. No entanto, indicam precisamente que, além do suspeito usual, a regulação inadequada, a estruturação dos financiamentos responde pela carência de investimentos privados.De fato, a despeito dos baixíssimos juros praticados, o sistema financeiro privado europeu não parece ter mais a mesma capa-cidade e/ou interesse no financiamento da infraestrutura. O virtual desapareci-mento da oferta de garantias financeiras, com a falência de algumas seguradoras monolines, dificulta a alocação de riscos da estruturação de projetos. Além disso, a “desalavancagem” bancária ainda em curso, a maior preferência pela liquidez dos investidores institucionais e a evolução da regulação financeira pós-crise, privi-legiando a redução da exposição de insti-tuições financeiras ao risco de insolvência – Basileia III (bancos) e Solvency II (seguradoras europeias) – se conjugam perversamente para escassear a oferta de financiamento de longo prazo. Diante dos desafios para acelerar os investimentos em infraestrutura, redu-zindo a participação do Estado em prol dos empreendedores, investidores e financiadores privados, a Europa tem

desenvolvido instrumentos mitigadores de risco. De um lado, esses instrumentos economizam recursos públicos, ao menos no presente, pois não implicam desem-bolsos imediatos. De outro, estimulam o financiamento privado, ao transferir riscos para o setor público. Assim, linhas de crédito contingentes, empréstimos juniores para fortalecer o rating de debên-tures de infraestrutura e garantias feitas sob encomenda têm resumido os esforços para alavancar o financiamento e o inves-timento privado. Até o momento, os resultados decep-cionam. A própria Comissão Europeia reconhece os fracassos das tentativas de retomada, afirmando ao Parlamento Europeu, que “a recuperação econômica, a criação de emprego, o crescimento de longo prazo e a competitividade estão, portanto, entravados” e que é, portanto, “urgente um Plano de Investimento para a Europa”.3 Curiosamente, o Plano é um pouco mais do mesmo: a criação de um Fundo Europeu para Investimentos Estra-tégicos para ampliar a oferta de garantias para a infraestrutura, sempre dentro do arcabouço da austeridade.

Investimento em infraestrutura no Brasil: a experiência recente

Depois de duas décadas de baixos inves-timentos em infraestrutura, a partir de

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2004 houve uma série de iniciativas para promovê-los. Dentre elas, destaca-se a Lei de Parcerias Público-Privadas (PPP) e o Novo Modelo do Setor Elétrico, em 2004; o Projeto Piloto de Investimentos (PPI), em 2005; o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) I, em 2007, e II, em 2011; e o Programa de Investimento em Logística (PIL), de 2013. Os investimentos em infraestrutura expandiram-se aceleradamente. Dados da Associação Brasileira das Indústrias de Base e Infraestrutura (ABDIB) revelam que, de 2003 até 2013, a taxa linear de crescimento anual dos investimentos em infraestrutura situou-se em torno de 11%.4 Estimativas preliminares a partir da consulta a várias edições do “Perspectivas do Investimento”,5 do BNDES, indicam que os investimentos em infraestrutura saíram de 1,6% do PIB, em 2003, até atingirem 2,5% do PIB, em 2013. O segredo da aceleração dos investi-mentos em infraestrutura não residiu nos

superávits fiscais. O motor da retomada desses investimentos foi a decisão política do governo federal de empregar recursos financeiros, seja como investidor, seja como financiador, com e sem parceria com o setor privado. Claro que parte do financiamento e do investimento público em infraestrutura obedeceu à lógica das políticas anticíclicas. Mas desde o início do governo Lula havia orientação para ampliar a infraestrutura. Dados do Ministério da Fazenda6 mostram que os investimentos públicos federais, que eram de 1,4% do PIB em 2003, cresceram praticamente todos os anos, chegando em 2014 à marca de 2,8% do PIB. Estados e municípios investiram mais, e um volume expressivo de projetos com parceiros privados foi levado adiante. Mas parte relevante desses investimentos só ocorreram a partir de financiamentos dos bancos públicos. Coube ao BNDES a maior fatia no financiamento da infraestrutura. Seus desembolsos para esse segmento foram ampliados, em termos reais, de R$ 14 bilhões em 2003, para R$ 51 bilhões em 2013, uma taxa de crescimento anual linearizada de 13,8%.

Infraestrutura e austeridade – aqui será diferente?

A redução do resultado primário do setor público, desde 2011, e os R$ 415 bilhões de aportes ao BNDES, de 2009 a 2014, foram

O segredo da aceleração dos investimentos

em infraestrutura não residiu nos superávits fiscais.

O motor da retomada desses investimentos foi a decisão política do governo federal

de empregar recursos financeiros, seja como investidor, seja como

financiador, com e sem parceria com o setor privado.

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apontados pela oposição a Dilma como os principais responsáveis por uma suposta crise fiscal que, por sua vez, seria a causa da queda do crescimento, da inflação e da reversão da balança comercial. Surpreen-dendo ao menos parte da audiência, a resposta do governo, desde o final de 2014, foi a enunciação, pelo Ministro Joaquim Levy, de uma correção na política econô-mica com a adoção da austeridade fiscal. Tal como no caso europeu, o objetivo é reconquistar a confiança empresarial a partir da obtenção de superávits primários de 1,2% do PIB em 2015, e de pelo menos 1,9% do PIB em 2016 e 2017. Além dessas metas, foram declarados encerrados os aportes para os bancos públicos.

A despeito desse anúncio, os investimentos em infraestrutura se mantiveram na pauta, preservando seu lugar na receita do cres-cimento. Para tanto, rompeu-se com o modelo bem-sucedido dos dez últimos anos, em favor da adoção da linha europeia, cortando-se os recursos públicos para a infraestrutura. De um lado, o contingen-ciamento de despesas para 2015 deverá atingir os projetos do PAC. De outro, o BNDES deverá mudar o seu papel no finan-ciamento da infraestrutura, deixando de ser o principal financiador, para se trans-formar em “estruturador”. Sua função será, idealmente, a de dar sua chancela aos bons projetos, atraindo investidores e financia-dores privados, sejam eles nacionais ou

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Foto: Geralt @Pixabay

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estrangeiros. Nos próximos dias, o governo brasileiro anunciará um pacote de projetos de infraes-trutura todo inspirado nas novas dire-trizes, colocando à prova o novo modelo. Ainda não se sabe qual o seu conteúdo,

mas dificilmente poderá ser ambicioso. O horizonte para investidores e financia-dores privados está muito prejudicado. Do lado internacional, a economia americana não firma sua recuperação, a Europa não consegue se mover, e a Ásia, ainda que bem das pernas, desacelera. Não é razoável, dessa forma, esperar uma retomada estável para as exportações de manufaturados e de commodities brasileiras, um fator que poderia inspirar novos projetos de infraes-trutura financiados pelos privados.7 No front financeiro, as políticas monetárias americana e europeia, mesmo mantendo as taxas de juros em zero, não têm sido capazes de mobilizar o financiamento de longo prazo em condições adequadas em seus próprios países, tamanha a reticência com projetos de longo prazo. Para piorar,

de acordo com a Fitch,8 não há por que esperar que agentes financeiros do exte-rior se interessem em financiar a infraes-trutura brasileira, haja vista os elevados custos de hedge cambial, além da incerteza sobre a demanda pelos serviços de mais infraestrutura.A Fitch também não acredita que será fácil atrair bancos privados brasileiros e investidores institucionais para o financia-mento da infraestrutura local, tomando o espaço que será deixado pelo BNDES. E não é apenas porque o sistema financeiro local não tenha uma história comprometida com o financiamento de longo prazo. Os juros brasileiros, ao contrário dos europeus, são muito elevados e voláteis. A taxa Selic, que dá o piso da estrutura de juros, acabou de ser fixada em 13,25% a.a., depois de subir 6 pontos percentuais em dois anos. Não é de admirar que o custo financeiro ajustado ao risco para projetos de infraestrutura, se estabeleça em patamar muito elevado. Apenas projetos que comportem tarifas muito elevadas para compensar os custos do hedge cambial do financiamento em moeda estrangeira, ou dos juros ajustados ao risco, em moeda local, terão chance de sair do papel. Além disso, haverá, ainda, um prêmio a ser cobrado para compensar as incertezas acerca da demanda pelos serviços de infraestrutura, seja por causa do nível instável da renda doméstica, seja por causa da incerteza acerca da demanda de commodities.Por construção, os investimentos em infraestrutura, em tempos de austeridade, serão bem menores do que seriam com o investimento público e com o financia-mento em condições mais favorecidas.

Não é razoável, dessa forma, esperar uma retomada

estável para as exportações de manufaturados e de

commodities brasileiras, um fator que poderia inspirar novos

projetos de infraestrutura financiados pelos privados.7

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Apenas poucos projetos poderão compensar os custos financeiros exigidos pelo setor privado. Os investimentos serão baixos, resultando, no curto prazo, em pequena mobilização de empregos. No longo prazo, o seu efeito não será mais do que uma contribuição modesta para o aumento da competitividade, seja pela escassez de equipamentos, seja pelo custo elevado dos serviços de infraestrutura. Cabe ainda uma especulação preocupante: muito provavelmente, a modicidade tari-fária e a universalização do acesso, que orientaram a lógica do investimento em infraestrutura, venham a ser substituídas pela licitação de projetos com outorga onerosa,9 encarecendo um pouco mais as tarifas. O foco na arrecadação, para o erário, e na melhoria da rentabilidade, para atrair investidores, ao lado de um rebaixamento no ideal da universalização do acesso, muda radicalmente a lógica do modelo de investimentos em infraestru-tura que, de 2003 a 2014, contribuiu com as bases materiais do modelo de desenvol-vimento inclusivo. A solução das atuais dificuldades da economia brasileira não é trivial. Mas, tal como no caso europeu, a combinação entre austeridade fiscal e investimento em infraestrutura, para construir um novo ciclo de crescimento, não deverá ser mais do que esperança, pois encerra uma contra-dição. A política de austeridade prejudica os investimentos públicos e privados em infraestrutura, não estimula o crescimento e pode ser um obstáculo para a continui-dade da distribuição de renda. Aí, a espe-rança é que, em vista da renovação dos apelos por mais austeridade, que virão na

esteira dos maus resultados econômicos, seja possível trilhar uma outra direção de política econômica, antes que as condições materiais e políticas para a retomada se tornem ainda mais escassas. NOTAS

1 Alguns exemplos do material recente produzido por consul-torias privadas são “Infrastructure 2013 – Global priorities, global insights”, da Ernst & Young e Urban Land Institute (2013); “Infrastructure productivity: how to save $1 trillion a year”, da McKinsey (2014)). Das instituições multilaterais, “Is it time for na infrastructure push? The macroeconomic effects of public investment”, no World Economic Outlook, FMI, Outubro de 2014 e o recente “Um plano de investimento para a Europa”, de novembro de 2014, comunicado da Comissão Europeia sobre a necessidade de acelerar os investimentos em infraestrutura na Europa.

2 Levantamento realizado pelo European PPP Expertise Centre, “Market Update Review of the European PPP Market First half of 2014”, disponível em http://www.eib.org/epec/resources/epec_market_update_2014_h1_en.pdf.

3 “Um plano de investimento para a Europa”, comunicado da Comissão Europeia, de novembro de 2014, disponível em http://www.europarl.europa.eu/meetdocs/2014_2019/documents/com/com_com(2014)0903_/com_com(2014)0903_pt.pdf

4 Relatório ABDIB, diversos números disponível em http://www.abdib.org.br/index/index.cfm?CFID=870415&CFTOKEN=52473669

5 As várias edições do Perspectiva de Investimento podem ser consultadas em http://www.bndes.gov.br/SiteBNDES/bndes/bndes_pt/Institucional/Publicacoes/Consulta_Expressa/Tipo/Perspectivas_do_Investimento/

6 Anuário Estatístico, disponível em https://www1.fazenda.gov.br/spe/novo_site/home/anuario_estatistico.html

7 Em 19 de maio, os chineses se comprometeram formalmente a investir/financiar cerca de R$ 53 bilhões de dólares no Brasil, boa parte em infraestrutura. É sintomático que essa declaração firme de interesse em investimentos, provavelmente a mais importante para o Brasil neste ano, reflita um acordo político e não o livre jogo das forças de mercado.

8 “Para Fitch, BNDES menor abre espaço para bancos”, Valor Econômico, 28.04.2015, p. C 14

9 Em 25.04.2015, reportagem de O Globo sobre uma reunião de ministros para definir novo pacote de concessões menciona a renovação das concessões de infraestrutura com cobrança de outorga, na contramão da lógica que governou a antecipação da renovação de contratos de energia elétrica e do leilão recente da concessão da Ponte Rio-Niterói. Conferir http://oglobo.globo.com/economia/reuniao-de-dilma-com-ministros-sobre-infraestrutura--termina-sem-anuncio-de-medidas-15973019

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Foto: hbieser @pixalbay

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Dada a irrefutável disposição do governo em levar adiante o ajuste fiscal, cifras como as anunciadas pelo Brasil Maior e Inova Brasil parecem lembranças de um passado remoto, mesmo que este não tenha ocor-rido. Atualmente, tais horizontes em termo de política industrial parecem quimeras diante da realidade do ajuste já em curso. Deste modo, restabelecer a realidade diante do horizonte de planejamento da política industrial parece um primeiro passo importante para que o ajuste fiscal não

O ajuste e a realidade da política industrial

Marco Antonio Rocha Professor Doutor do Instituto de Economia da Unicamp

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faça terra arrasada da indústria brasileira.O artigo propõe duas frentes de política industrial a partir da divisão das estraté-gias de ajuste e diversificação que foram seguidas pelas empresas líderes. A lógica é que, neste caso, a política industrial apro-veite o impulso dado pelas estratégias de ajuste e reforce algumas lógicas de reestru-turação, tirando o maior proveito delas em termos da possibilidade de ganhos para a sociedade como um todo. Para além disto, deve-se reconhecer que o ajuste de muitas grandes empresas nacionais seguiram a lógica do ajuste competitivo que as prin-cipais empresas seguiram mundialmente em muitos setores, que se caracteriza basi-camente por um processo de desverticali-zação nacional de suas linhas de produção. Em paralelo, deve-se pensar na estrutu-ração de algumas cadeias produtivas com imenso potencial no caso brasileiro.A seção seguinte procura recuperar breve-mente a trajetória geral de alguns indi-cadores importantes sobre as empresas nacionais, em paralelo com as estratégias de ajuste das grandes empresas, princi-palmente no pós-crise. A segunda seção propõe algumas alternativas pontuais de política industrial.

1. Trajetórias Empresariais no pós-crise

Quando comparado o quadro geral da indústria no período anterior à crise com

o período posterior, pelo menos três coisas parecem claras: a queda dos indicadores de rentabilidade, a redução do ritmo de crescimento das grandes empresas1 e o rápido crescimento do coeficiente de importação de alguns setores no período posterior a 2009. Nesse sentido, os indi-cadores após a crise deixam transparecer um cenário em que dado o menor ritmo de crescimento do mercado interno, com menor rentabilidade e aumento da pressão dos custos, diversos setores da indústria de transformação reagiram, substituindo fornecedores nacionais por estrangeiros e/ou reduzindo as linhas de produção.

A intensidade do ajuste parece contrastar com a rápida deterioração dos indicadores de rentabilidade no período posterior à crise. Apesar de o ciclo de crescimento de 2004 até a crise ter sido liderado pela indústria extrativa, todos os setores apre-sentaram, de modo geral, índices elevados de rentabilidade, com alguns setores sendo

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Apesar de o ciclo de crescimento de 2004

até a crise ter sido liderado pela indústria extrativa,

todos os setores apresentaram, de modo geral, índices

elevados de rentabilidade, com alguns setores sendo

bastante influenciados pelo comportamento

da taxa de câmbio.

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bastante influenciados pelo comporta-mento da taxa de câmbio.Outro contraste interessante é justamente a diferença do ritmo de crescimento patri-monial das grandes empresas no antes e depois da crise. Embora haja ocorrido alguns casos de desempenho negativo durante o período, a maioria das empresas analisadas atravessaram o período em situação sólida contabilmente. Apesar da estagnação da taxa de crescimento após 2011, as grandes empresas brasileiras passaram por pelo menos dois períodos de melhoria nos indicadores de endivi-damento, 2004 até a crise, e na recupe-ração após a crise até 2010. Possivelmente, o primeiro em razão do crescimento econômico do período, e o segundo por um esforço defensivo em razão do

cenário pós-crise.Ainda que seja indiscutível a deterio-ração das expectativas do empresariado no período posterior a 2002, a mudança dos índices de desempenho das empresas indica a alteração de um quadro de alta rentabilidade que marcou o período de crescimento anterior à crise. A queda geral desses indicadores, provavelmente, está mais relacionada às contradições de um modelo de crescimento baseado no mercado interno e na tendência de um câmbio valorizado, que aprofunda cada vez mais o processo de substituição de insumos nacionais por importados nas cadeias produtivas locais e reduz os efeitos de encadeamento.Entretanto há algumas mudanças quali-tativas importantes. Em paralelo houve

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GRÁFICO 1: RENTABILIDADE DO ATIVO (EBITDA/ATIVOS TOTAIS) 2004-2013Fonte: Orbis/Bureau Van Dijk.

 

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Média  Aparada   Bens  de  Consumo   Bens  Intermediários  e  de  Capital  Transporte  e  Autopeças   Industria  Extra@va   Serviços  

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o fortalecimento das empresas líderes acompanhando o processo de concentração setorial, com mudanças significativas em suas estratégias, áreas de negócios e formas de financiamento. Grosso modo, pode-se dizer que as grandes empresas a partir da crise aceleraram seus processos de ajuste às condições de concorrência internacional e a tendência persistente de câmbio valo-rizado durante todo o período.Essa trajetória de ajuste foi marcante em alguns setores, cujo aumento do coeficiente de importações foi significativo após a crise. Este foi particularmente o caso das cadeias produtivas de vestuário, material de transporte e máquinas e equipamentos. Nestes casos, chama atenção não só o volume da importação de bens interme-diários, como sua taxa de crescimento no pós-crise. Somam-se a estes setores, outros já tradicionalmente com elevados

coeficientes de importação.Chama a atenção também, o fato de boa parte destas cadeias possuírem elos impor-tantes dentro da indústria nacional, base de conhecimento já estabelecida, um mercado nacional de tamanho considerável e, em alguns casos, o setor público e empresas estatais como importantes demandantes. Em outros setores, sobretudo as cadeias produtivas de bens de consumo semidu-ráveis, o movimento das empresas líderes foi no sentido da especialização comer-cial, com a ampliação do investimento em ativos comerciais e no fortalecimento de marcas próprias, associado à redução da produção doméstica e ao aumento do conteúdo importado.Logo, a distinção das possibilidades de articulação da política industrial em relação às cadeias produtivas e o imedia-tismo que se coloca diante do cenário de

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2004   2005   2006   2007   2008   2009   2010   2011   2012   2013  

Média  Geral  (aparada)   Serviços   Industria  ExtraDva   Indústria  de  Transformação  

GRÁFICO 2: CRESCIMENTO REAL DO PATRIMÔNIO LÍQUIDO 2004-2013 (2004=100)Fonte: Orbis/Bureau Van Dijk.

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Tabela 1 – Coeficientes de Importações 2008-2013

Categoria 2008 2009 2010 2011 2012 2013

Indústria de transformação 18,3% 16,6% 20,4% 21,9% 22,3% 23,7%

Outros equipamentos de transporte 13,2% 12,9% 18,7% 20,1% 22,1% 39,5%

Máquinas e aparelhos e materiais elétricos 24,8% 26,9% 33,8% 36,8% 38,6% 41,6%

Artigos do vestuário 4,8% 5,5% 7,0% 10,2% 13,7% 15,7%

Tratores e máquinas p/ agricultura 35,9% 30,3% 35,3% 44,0% 51,3% 49,1%

Máquinas e equipamentos industriais e comerciais 42,8% 42,7% 47,2% 52,0% 54,5% 51,5% Fonte: Fiesp.

 

TABELA 1: COEFICIENTES DE IMPORTAÇÕES 2008-2013Fonte: Fiesp.

esvaziamento das cadeias produtivas no pós-crise pedem a definição de uma lista de ações que tenham efeito rápido, ainda que limitado.

2. Breves propostas sobre a política industrial

Com foco nas possibilidades que existem em relação aos setores em que a situação é mais delicada, pode-se propor algumas linhas gerais de política: • Ampliação das políticas de conteúdo local, com maior ênfase no apoio a capaci-tação dos fornecedores e sua inserção em atividades de maior conteúdo tecnológico. Uma parcela concentrada dos investi-mentos privados previstos está relacio-nada justamente a setores em que o setor público exerce uma importante fonte de demanda. O que requer um conjunto de políticas específicas para as cadeias produ-tivas em formação ou expansão no Brasil, particularmente indústria de defesa, óleo e gás, transportes ferroviários e energias renováveis. Além do reconhecimento do SUS como uma importante fonte de criação de reserva de mercado para a indústria nacional de equipamentos médicos e hospitalares;• Ampliação das políticas de apoio à exportação das grandes empresas dos setores de semiduráveis e internacionali-zação das marcas, em que os coeficientes de importação obtiveram o maior crescimento e dado o diferencial de custos de certos

Logo, a distinção das possibilidades de articulação

da política industrial em relação às cadeias

produtivas e o imediatismo que se coloca diante do cenário

de esvaziamento das cadeias produtivas no pós-crise pedem

a definição de uma lista de ações que tenham efeito rápido, ainda que limitado

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R E V I S TA P O L Í T I C A S O C I A L E D E S E N V O LV I M E N T O 2 2

A J U S T E E C O N Ô M I C O , I N D Ú S T R I A E I N F R A E S T R U T U R A

insumos estrangeiros dificilmente esta tendência será revertida. Isto permitiria ao menos compensar a internacionalização da cadeia de fornecedores ampliando a corrente de comércio destes setores.

NOTAS

Foram selecionadas as maiores 170 empresas de capital nacio-nal e estrangeiro e excluídas 20 empresas cujas séries de dados estavam incompletas, restando um painel de 150 grandes em-presas. Na composição dos indicadores, foi adotado o critério de excluir 10% dos dados com maior discrepância, devido à hetero-geneidade dos desempenhos.

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