Alain Caillé Político-Religioso

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Artigo de Caillé traduzido para o português sobre o "político-religioso".

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    O POLTICO-RELIGIOSO:

    Dezessete (e mais uma) teses embrionrias escritas em um esprito de tpica sociolgica

    Alain Caill 1

    TESE NO 1.

    Distingamos o religioso e a religio. O religioso est para a religio assim como

    o poltico est para a poltica.

    TESE NO 2.

    O religioso e o poltico constituem, em conjunto, o momento instituinte pelo

    qual as sociedades se relacionam consigo mesmas e se produzem enquanto tais,

    na sua singularidade e na sua contingncia, traando uma fronteira entre o fora

    e o dentro, entre os inimigos e os amigos, entre os praticantes e os no-

    praticantes ou entre os descrentes e os crentes. Faces opostas de uma mesma

    medalha, eles se diferenciam pelo fato de que o momento estritamente poltico

    refere-se ao e violncia , ao passo que o religioso age por meio de

    smbolos. Ou antes, de meta-smbolos (ou grandes smbolos).

    TESE NO 3.

    Chamemos este momento instituinte de o poltico-religioso.

    TESE NO 4.

    Na interseo do religioso e do poltico, encontram-se, de uma parte, os rituais

    (do lado da prtica), e, de outro, as grandes narrativas (do lado do simbolismo).

    TESE NO 5.

    A poltica tem por objeto a conquista e a gesto do poder central e geral no seio

    de uma sociedade. A religio visa o controle do crer, do ritual e do saber geral

    1 Traduo do artigo, publicado originalmente em francs, em: CAILL, A. Le politico-religieux: dix-sept (plus une) thses embryonnaires crites dans un esprit de topique sociologique. Revue du MAUSS, 1/2002, no 19, p.304-308. Disponvel em: www.cairn.info/revue-du-mauss-2002-1-page-304.htm. Traduo de Andr R. P. Magnelli, professor substituto do IFCS-UFRJ, professor assistente da FSB-RJ e doutorando em sociologia no IESP-UERJ, no qual pesquisador do ncleo SOCIOFILO.

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    no seio de uma sociedade. O poltico-religioso concerne capacidade de instituir

    a sociedade enquanto tal, nos seus limites, em relao com uma exterioridade e

    uma alteridade os inimigos, seu passado, seu futuro, o que ela poderia ou

    teria podido ser. Ele confere a uma sociedade sua identidade em relao com

    uma alteridade determinada e com uma alteridade indeterminada.

    TESE NO 6.

    Enquanto momento instituinte de uma sociedade, o poltico-religioso se

    distingue do conjunto das ordens institudas da ao social: a economia, a

    poltica, a religio, a arte, etc.

    TESE NO 7.

    No seio de cada uma destas ordens institudas, os homens comunicam entre si e

    com seu mundo com a ajuda de signos e de smbolos. Os signos pretendem

    designar as coisas tais como elas so. Eles se referem a objetos do mundo,

    percebidos na sua singularidade e sua descontinuidade. Eles se organizam nos

    discursos. Os smbolos so signos de signos, alianas entre signos que se

    referem aliana entre os homens e que determinam as condies de emprego

    dos signos ao decidir a respeito do que faz sentido. Eles concernem s relaes

    entre os signos. Eles se organizam nas narrativas. Os meta-smbolos

    determinam as condies de emprego dos smbolos.

    Eles [os meta-smbolos] concernem s relaes entre as relaes. Eles so os

    smbolos instituintes. Eles se organizam em grandes narrativas. Chamemo-los,

    portanto, de grandes smbolos. O religioso se vincula origem dos grandes

    smbolos ou aos smbolos da origem , que marcam a unidade singular de

    uma sociedade, presente ou por vir.

    TESE NO 8.

    Da mesma forma que a poltica gera a dominao legtima ao estruturar o

    momento instituinte do poltico, da mesma forma a religio visa ao monoplio

    do crer, da ao ritual e do saber legtimos ao estruturar o momento instituinte

    do religioso.

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    TESE NO 9.

    preciso ainda acrescentar que a questo do monoplio do crer e do saber,

    assim como aquela do monoplio do poder, somente surge quando vrias

    crenas ou vrios poderes pretendem legitimidade e entram em concorrncia.

    Tal no o caso na sociedade primeira. Se bem que, propriamente falando,

    somente existe a religio e a poltica sob a forma das grandes religies e das

    grandes polities.

    TESE NO 10.

    O poltico-religioso se desdobra sobre trs dimenses. Horizontal e espacial, na

    qual ele traa a fronteira entre o aqui, o l e o alhures (os prximos, os amigos-

    aliados e os estrangeiros-inimigos). Vertical e temporal, na qual ele traa a

    fronteira entre o presente, o passado e o futuro, entre os ascendentes e os

    descendentes, os ancestrais mortos e as geraes por vir. Diagonal, em que ele

    traa a fronteira do aqui-embaixo com, de um lado, o alm suprassensvel e

    supratemporal e, de outra parte, com o aqum da natureza.

    TESE NO 11.

    O dom representa o meio especfico do instituinte. Ele tambm

    tridimensional: [1] dom aos inimigos que se pretende converter em aliados, [2]

    dom intergeracional e [3] dom aos representantes do aqum da natureza ou do

    alm da sobrenatureza. ele que opera a passagem da desconfiana

    confiana, da hostilidade paz, do para si ao para outrem, do isolamento e do

    abandono aliana, da morte vida, da regra, da coero ou da lei liberdade,

    ao e criao.

    TESE NO 12.

    Da mesma forma que os dons so simblicos, isto , da mesma forma que eles

    tornam manifesta uma inteno de paz e de vida, e, portanto, eles devem se

    (dar a) ver, da mesma forma os smbolos servem para a encenao [mise em

    scne] e a comemorao de dons. As sociedades (ou, mais modesta e mais

    geralmente, as relaes sociais) somente existem na medida em que elas se do

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    a ver (a escutar, tambm, e mais tarde, a ler). Os smbolos e as narrativas (mas

    tambm as representaes, os rituais) asseguram sua encenao. A religio visa

    ao monoplio das representaes mais gerais do aparecer (Selbstdarstellung) da

    sociedade enquanto tal, o momento da escolha da sociedade por si mesma.

    TESE NO 13.

    A filosofia raciocina por signos sobre o simbolismo e o meta-simbolismo (o

    religioso). Os mitos ou os contos raciocinam por smbolos, a religio por

    grandes smbolos.

    TESE NO 14.

    Modo de engendramento dos smbolos e das narrativas que fazem sentido,

    cdigo dos cdigos, o religioso tem, evidentemente, relao com as

    mentalidades, a cultura ou a civilizao. Mas essas no so, enquanto

    tais, religiosas. Distingamos, portanto, quatro esferas:

    O significativo, mundo dos signos e da denotao (a cultura tcnica e

    material);

    O simbolismo, mundo dos smbolos, das relaes significativas entre os

    signos e da conotao (a cultura cultural);

    O simblico, mundo do engendramento dos smbolos (relaes de relaes) e

    do sentido (a pistm, as mentalidades);

    O religioso, momento da relao dos smbolos com sua alteridade e com o

    simblico enquanto tal.

    Uma civilizao uma pluralidade de culturas diversas e opostas, unificadas

    por sua referncia a um mesmo religioso englobante e geral.

    TESE NO 15.

    A questo da transcendncia inseparvel daquela da alteridade (e, portanto,

    da identidade). A transcendncia est no seio da identidade, o que a excede e

    a constitui. Ao mesmo tempo seu suplemento e sua disseminao.

    A alteridade-transcendncia a alteridade-transcendncia (1) da natureza e do

    cosmos, (2) do outro-inimigo-estrangeiro, (3) das geraes passadas e futuras,

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    (4) da sobrenatureza espiritual (o simblico enquanto tal). O religioso se

    constitui na sua relao com esta qudrupla transcendncia.

    TESE NO 16.

    A alteridade transcendncia sempre sexuada-generada [sexue-genre].

    TESE NO 17.

    A religio pe a questo da relao dos sujeitos animalidade/espiritualidade,

    amizade/inimizade consigo ou com os outros, origem e ao destino. Mais

    geralmente, o meta-simbolismo pe a questo da origem da lei e do sentido da

    morte, da origem da vida e dos possveis para a liberdade, da harmonia e do

    conflito entre os seres.

    TESE(S) SOBRE O GIRARDISMO ANTROPOLGICO.

    O girardismo antropolgico repousa sobre a identificao do religioso e do

    sacrificial. Ao qual se pode fazer a objeo de que:

    O poltico-religioso tem necessariamente a ver e a fazer com a questo da

    violncia e da inimizade, mas ele no implica necessariamente uma soluo

    sacrificial da inimizade;

    Toda sociedade deve se representar a si mesma, se exteriorizar e cristalizar

    sua imagem naquela de certos personagens eminentes fazendo-se

    sobressair [faisant saillie], mas estas no so necessariamente vtimas

    emissrias virtuais. Ou ainda: a lgica simblica da reciprocidade basta

    frequentemente para explicar o retorno da violncia contra aqueles que

    ocupam uma posio de poder;

    Sim, as sociedades caem frequentemente num regime sacrificial de

    assassnio de uma vtima emissria, mas (1) no preciso confundir o

    sacrifcio dos inimigos e o sacrifcio de si ou de seus amigos, o auto-

    sacrifcio, e (2) o sacrifcio deve ser analisado como uma deformao e uma

    exacerbao do dom e da guerra, no como sua verdade intrnseca e

    primeira.

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    Eu redigi o essencial destas linhas por ocasio de uma jornada de discusso

    organizada pelo GODE (Grupo de Estudo e de Observao da Democracia), em

    Paris X Nanterre, em 8 de maro de 2002, sobre o tema: O que a religio?. Esta

    sesso retomava o ttulo do livro de Shmuel Trigano2 e girava parcialmente em torno de

    suas anlises. Redigidas s pressas, estas teses eram (e permanecem) destinadas

    principalmente a alimentar a discusso, tendo em vista um trabalho de clarificao

    conceitual, do qual parece, de forma cada vez mais evidente, que no poderemos mais

    eternamente nos esquivar. Eu pensei em mant-las em suspenso por um certo tempo

    para deix-las amadurecer, para faz-las sofrer o fogo da crtica dos especialistas e de

    meus amigos (por vezes reunidos numa mesma pessoa) e para enriquec-las com

    exemplos concretos que fazem extrema falta aqui. A recepo do artigo de Marcel

    Gauchet3, que levanta as mesmas questes, me suscitou a vontade de public-las sem

    mais delongas, independente das lacunas gritantes, que seja ao menos para iniciar uma

    discusso com ele e para convidar outros a se juntar a ela.

    Antes de iniciar, por boas razes, esta discusso, preciso dizer uma palavra a

    respeito de onde elas vm, de que elas se nutriram e reconhecer assim as minhas dvidas.

    Certos vero nestas teses o prolongamento lgico ou a retomada de ideias expostas e

    desenvolvidas no La dmission des clercs. Les Sciences sociales et loubli du

    politique (La Dcouverte, 1993)4 sobre o conceito do poltico ou na

    Anthropologie du don. Le tiers paradigme (Desclede Brouwer, 2000)5 sobre

    o lao do poltico, do simbolismo e do dom.

    Mas justo e necessrio precisar que, se a reflexo sobre o dom e o simbolismo

    seguiu uma trajetria prpria, as teses aqui apresentadas sobre o poltico-religioso se

    inscrevem em referncia e em discusso com as reflexes j antigas de Claude Lefort,

    rapidamente retransmitidas, endossadas e desenvolvidas por aquelas de Marcel Gauchet.

    2 TRIGANO, Shmuel. Quest-ce que la religion?. Paris: Flammarion, 2001. 3 Alain Caill se refere a um artigo de Marcel Gauchet publicado no mesmo nmero da Revista MAUSS: GAUCHET, M. Les tches de la philosophie politique. Revue du MAUSS, 1/2002, no 19, p.275-303. Disponvel em: http://www.cairn.info/revue-du-mauss-2002-1-page-275.htm. Posteriormente ele foi republicado em: GAUCHET, M. La condition politique. Paris: Gallimard, 2005, p.505-557. 4 Traduo para o portugus em: CAILL, A. A demisso dos intelectuais: as cincias sociais e o esquecimento do poltico. Lisboa: Instituto Piaget, 1993 5 Traduo para o portugus em: CAILL, A. Antropologia do dom: o terceiro paradigma. Petrpolis: Vozes, 2002.

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    Para dizer rapidamente, elas retomam a discusso propriamente conceitual

    retirando-a, em certa medida, do lugar onde tinham deixado Marcel Gauchet e Claude

    Lefort num artigo escrito em conjunto, Sur la dmocratie: le politique et

    linstitution du social, aparecido na revista Textures (1971, no2-3), e que

    permaneceu sem explcita conceptualizao sistemtica posterior. Tendo M. Gauchet

    reavivado aqui diretamente uma parte das questes que ele havia posto, eu tive vontade

    de me juntar por meu lado ao debate.

    Eu agradeo vivamente a Roberte Hamayon por ter dado uma primeira olhada

    benevolente nestas teses e por ter me incitado a introduzir uma primeira srie de

    modificaes que ela reconhecer facilmente.