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 39 REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 25: 39-45 NOV. 2005 RESUMO Rev. Sociol. Polít., Curitiba, 25, p. 39-45, nov. 2005 Carlos A. Gadea A CONTRIBUIÇÃO DE ALAIN TOURAINE PARA O DEBA TE SOBRE SUJEITO E DEMOCRACIA LATINO-AMERICANOS 1 Recebido em 15 de setembro de 2005 Aprovado em 30 de setembro de 2005 O presente trabalho analisa diversas contribuições teóricas e analíticas do sociólogo francês Alain T ouraine em relação às realidades políticas, sociais e culturais da América Latina. Partindo da idéia de que as  principais preocupações desse autor fazem referência à dinâmica da modernidade latino-americana, pro- cura-se compreender como esse tópico complementa-se com observações sobre a democracia e o sujeito social. O que interessa destacar é como, para Touraine, a modernidade latino-americana caracteriza-se a  partir de uma inevitável tensão: a que se estabelece entre "universo instrumental" e "universo simbólico", correlato de uma imagem dual que continuamente se faz presente, a racionalização e a subjetivação. A  partir disso, Touraine dedica-se a analisar a potencialid ade política e social subjacente às idéias de "sujeito" e "ator social". Por fim, interessa aqui destacar as contribuições que se pode perceber nas concre- tas análises de movimentos sociais que hoje participam da heterogênea cena latino-americana, a saber, o movimento neozapatista de Chiapas, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-terra e, em um sentido mais genérico, os movimentos urbanos, ecológicos, negros, jovens, de mulheres e de educação intercultural. PALAVRAS-CHAVE: Alain Touraine; modernidade latino-americana ; sujeito social ; movimentos sociais ; democracia. Ilse Scherer-Warren O sociólogo francês Alain Touraine deve ser dos poucos pensadores contemporâneos europeus que pensaram a democracia, a modernidade e os sujeitos sociais no contexto da América Latina. Acostumados a observar como europeus e norte- americanos não parecem muito preocupados em “pensar” esta região do planeta, pelo menos na área da pesquisa sobre movimentos sociais, o tra-  balho de T ouraine apresent a-se altamen te relevant e e bastante instigante. A sua extensa obra demons- trou inquietações não meramente teóricas ou de caráter analítico, mas também uma evidente pre- ocupação com as diferentes dinâmicas históricas e culturais das complexas sociedades latino-ame- ricanas nos seus diversos contextos históricos e geográficos. Pode-se considerar, sem dúvida, que houve e há muito a aprender-se sobre a América Latina, a partir do olhar e das reflexões analíticas desse sociólogo. Por isso, em uma tentativa de esclarecer os diversos aportes de Alain Touraine  para a Socio logia em geral e o debate político con- temporâneo em particular, parece-nos oportuno considerar a originalidade interpretativa do autor  para a análise da realidad e latino-americana e, c on- seqüentemente, para a compreensão da dinâmica dos sujeitos pessoais e coletivos no nosso pre- sente. Discutir a sua teoria poderia conduzir-nos a comparar a diversa gama de contribuições do autor com outros clássicos da Sociologia Políti- ca, combinar as suas reflexões com contemporâ- neos como Habermas ou Giddens ou talvez o con- trastar com as teorias criticas e com os seus even- tuais pontos de contato e discordâncias. Porém, o presente trabalho insere-se em uma discussão em que não se procura situar Touraine frente a  pensa dores e teóri cos soci ais conte mporâ neos  particularizados, mas sim “re-situá-lo” em rela- ção às contribuições teóricas e analíticas acerca da modernidade, da democracia, da política em geral e das mudanças culturais no heterogêneo contexto latino-americano. Primeiramente, deve-se considerar que a di- versidade de formas de como observar e analisar 1  Apresentado no XI Congresso Brasilei ro de Sociologia, realizado em setembro de 2003 na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Uma versão preliminar deste ar- tigo foi publicado em Gadea e Scherer-Warren (2005).

Alain Touraine

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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 25: 39-45 NOV. 2005

RESUMO

Rev. Sociol. Polít., Curitiba, 25, p. 39-45, nov. 2005

Carlos A. Gadea

A CONTRIBUIÇÃO DE ALAIN TOURAINE PARA ODEBATE SOBRE SUJEITO E DEMOCRACIA

LATINO-AMERICANOS1

Recebido em 15 de setembro de 2005Aprovado em 30 de setembro de 2005

O presente trabalho analisa diversas contribuições teóricas e analíticas do sociólogo francês Alain Touraine

em relação às realidades políticas, sociais e culturais da América Latina. Partindo da idéia de que as

 principais preocupações desse autor fazem referência à dinâmica da modernidade latino-americana, pro-

cura-se compreender como esse tópico complementa-se com observações sobre a democracia e o sujeito

social. O que interessa destacar é como, para Touraine, a modernidade latino-americana caracteriza-se a

 partir de uma inevitável tensão: a que se estabelece entre "universo instrumental" e "universo simbólico",correlato de uma imagem dual que continuamente se faz presente, a racionalização e a subjetivação. A

  partir disso, Touraine dedica-se a analisar a potencialidade política e social subjacente às idéias de

"sujeito" e "ator social". Por fim, interessa aqui destacar as contribuições que se pode perceber nas concre-

tas análises de movimentos sociais que hoje participam da heterogênea cena latino-americana, a saber, o

movimento neozapatista de Chiapas, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-terra e, em um sentido

mais genérico, os movimentos urbanos, ecológicos, negros, jovens, de mulheres e de educação intercultural.

PALAVRAS-CHAVE: Alain Touraine; modernidade latino-americana; sujeito social; movimentos sociais;democracia.

Ilse Scherer-Warren

O sociólogo francês Alain Touraine deve ser

dos poucos pensadores contemporâneos europeusque pensaram a democracia, a modernidade e ossujeitos sociais no contexto da América Latina.Acostumados a observar como europeus e norte-americanos não parecem muito preocupados em“pensar” esta região do planeta, pelo menos naárea da pesquisa sobre movimentos sociais, o tra-balho de Touraine apresenta-se altamente relevantee bastante instigante. A sua extensa obra demons-trou inquietações não meramente teóricas ou decaráter analítico, mas também uma evidente pre-ocupação com as diferentes dinâmicas históricas

e culturais das complexas sociedades latino-ame-ricanas nos seus diversos contextos históricos egeográficos. Pode-se considerar, sem dúvida, quehouve e há muito a aprender-se sobre a AméricaLatina, a partir do olhar e das reflexões analíticasdesse sociólogo. Por isso, em uma tentativa de

esclarecer os diversos aportes de Alain Touraine

para a Sociologia em geral e o debate político con-temporâneo em particular, parece-nos oportunoconsiderar a originalidade interpretativa do autorpara a análise da realidade latino-americana e, con-seqüentemente, para a compreensão da dinâmicados sujeitos pessoais e coletivos no nosso pre-sente. Discutir a sua teoria poderia conduzir-nosa comparar a diversa gama de contribuições doautor com outros clássicos da Sociologia Políti-ca, combinar as suas reflexões com contemporâ-neos como Habermas ou Giddens ou talvez o con-trastar com as teorias criticas e com os seus even-

tuais pontos de contato e discordâncias. Porém,o presente trabalho insere-se em uma discussãoem que não se procura situar Touraine frente apensadores e teóricos sociais contemporâneosparticularizados, mas sim “re-situá-lo” em rela-ção às contribuições teóricas e analíticas acercada modernidade, da democracia, da política emgeral e das mudanças culturais no heterogêneocontexto latino-americano.

Primeiramente, deve-se considerar que a di-versidade de formas de como observar e analisar

1 Apresentado no XI Congresso Brasileiro de Sociologia,realizado em setembro de 2003 na Universidade Estadualde Campinas (Unicamp). Uma versão preliminar deste ar-tigo foi publicado em Gadea e Scherer-Warren (2005).

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A CONTRIBUIÇÃO DE ALAIN TOURAINE

a modernidade latino-americana, sem dúvida pa-rece corresponder-se com a própria diversidadeou heterogeneidade sócio-cultural que a caracte-riza. Se isso parece óbvio, devemos reconheceros difíceis impasses modernizadores que atraves-saram as culturas latino-americanas, a difícil cons-tituição de suas instituições políticas, jurídicas eeconômicas, as “carências” muitas vezes marcadascomo simples dados de uma futura modernidadeque ainda está por chegar. Na complexa tarefapara apreender aqueles traços que possam serdefinitivos desse processo histórico, têm-se esta-belecido discussões que transitaram desde outor-gar certa centralidade à perceptível “dependênciaeconômica” e a uma defeituosa “modernizaçãopolítica” até chegar-se a uma preocupação acercadas dinâmicas de “integração social” sob a pre-missa da ampliação necessária dos processos dedemocratização política e social. O curioso temsido que essas discussões negligenciaram, de umaforma ou outra, o caráter particular e específicode uma modernidade em tensão contínua, que seevidencia em um projeto elitista de racionalização(entenda-se aqui também disciplinamento,homogeneização e uniformidade) com uma dimen-são sócio-cultural que manifesta o “dilaceramento”e a fragmentação próprios de intensos processosde subjetivação. Com isso, estabelece-se umaambigüidade que caracteriza, de maneira profun-da, a modernidade latino-americana.

Se aderirmos, primeiramente, aos postuladosde Foucault, a racionalização leva-nos ao fortale-cimento da lógica de integração social, do contro-le e, assim, de uma multiplicidade de lógicas depoder asfixiantes para o indivíduo. Não obstante,isso não representa o desaparecimento dos atoressociais, pois eles “están impacientes por afirmarsey lograr el reconocimiento de su libertad desujetos”, segundo afirma Alain Touraine (1997, p.307). A partir de diversas experiências políticas e

culturais da América Latina, Touraine confirma-nos que a suposta experiência: “de la pérdida deidentidad a la que nos resistimos dando tantaimportancia a la autoestima, el auto desarrollo [...],nos impulsa en primer lugar a tratar, no de supe-rar las contradicciones sociales, sino de aliviar elsufrimiento del individuo desgarrado, dado queéste no puede ya apelar a un dios creador, unanaturaleza autoorganizada o una sociedad racio-nal” (idem, p. 64).

Assim, Touraine assinala-nos uma modernidadelatino-americana que, a partir dos seus particula-res e diversos ritmos sócio-culturais, parece ca-racterizar-se por uma autêntica demanda desubjetivação, de afirmação e reconhecimento deaspectos culturais e de identidade pessoal e soci-al. Em definitivo, o autor contribui para constataruma grande característica dessa modernidade: suacontínua tensão entre um universo instrumental(sob os contornos racionalizadores da sociedade)e um universo simbólico (caracterizado pelas ex-periências de produção e afirmação dos sujeitossociais). Os movimentos sociais estariam, dessaforma, dirigidos a aliviar essa tensão, assim comodirigidos para si mesmos e para o que se poderiadenominar esforço de subjetivação: definido comoum sujeito com vontade de ser reconhecido comoator. Como forma de sintetizar o que Touraineparece propor, pode-se afirmar que ele situa-nosfrente a uma modernidade que não possui umaimagem única, senão duas: a racionalização e asubjetivação, dedicando-se a analisar apotencialidade política e social subjacente na idéiade sujeito e ator social.

Pode-se perceber que as principais contribui-ções analíticas do sociólogo Alain Touraine sobrea contemporaneidade na América Latina referem-se, fundamentalmente, a três tópicos: a

modernidade, a democracia e o sujeito social. Es-ses componentes têm sido tratados a partir de di-ferentes pontos de vista e temas concretos, du-rante toda a sua obra claramente dividida em trêsetapas: uma primeira, baseada, fundamentalmen-te, nos estudos empíricos realizados na AméricaLatina, que se concentra na análise do trabalho ena consciência política dos trabalhadores, etapamarcada por uma especificidade dos ritmos urba-nos da vida social. Uma segunda etapa caracteri-za-se por um estudo concreto dos movimentossociais dos anos 1960 e 1970, particularmente das

rebeliões na França de 1968 e dos golpes de Esta-do latino-americanos. Por último, uma terceiraetapa que em suas inquietações viaja desde a So-ciologia até a Filosofia a partir do estudo da pro-dução e do papel do sujeito dentro dos movimen-tos sociais.

Para compreender a dimensão dos estudos deTouraine no contexto latino-americano, lembran-do especialmente seus trabalhos Crítica da

modernidade (1994) e Poderemos viver juntos?

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  Iguais e diferentes (1997), tem-se que se fazerreferência àqueles debates que se situam em tor-no da questão do sujeito e da democracia. Assim,a dimensão que se relaciona com a particularmodernidade latino-americana funciona como telãode fundo para esses debates centralizadores nasanálises do dito autor. Isso significa que um diálo-go parece estabelecer-se entre democracia e su- jeito social, já que a ampliação de um é também aampliação do outro. A idéia de democracia, paraTouraine, não se materializa unicamente no con-  junto de garantias institucionais e formais, massim representa a luta dos sujeitos, na sua cultura esua liberdade, contra a lógica dominadora dos sis-temas sociais. Nessa concepção, resulta impor-tante que os sujeitos protejam sua memória e quepossam combinar o pensamento racional, a liber-dade pessoal e a identidade cultural. Dessa manei-ra, a democracia deve tratar de seguir dois cami-nhos: por um lado, criar espaços para a participa-ção cada vez mais perceptíveis e, por outro lado,garantir o respeito às diferenças individuais e aopluralismo.

Essas idéias parecem ser conseqüência de umdiagnóstico particular sobre as condições atuaisda América Latina, que se diferencia notoriamen-te daquelas condições “objetivas” para amobilização política e social típicas dos anos 1960

e 1970. Não aconteceu, segundo o próprioTouraine manifesta, uma ruptura revolucionáriasob aquelas condições, visto que hoje se conhe-cem atores sociais limitados mais do que forçasrevolucionárias globais. Esta necessária mudançada análise sugere que a formação de movimentossociais depende menos de situações e condições“objetivas” do que de elementos formadores deatores definidos ao mesmo tempo por um deter-minado conflito social e por uma vontade de par-ticipação social, assim como conseqüência dasrelações entre demandas e exigências sociais e o

sistema político. Assim, para Touraine, o sujeitosocial a analisar na América Latina é o movimentosocial, já que o conceito de classe social apresen-ta-se com escassa verificação empírica e de pou-ca utilidade para compreender as lutas atuais noespaço político e social. Segundo parece, o quese sugere é um marco de análise que navegue apartir da combinação entre movimento social e asquestões próprias da diversidade cultural, entremobilização e identidade pessoal e social.

A partir de tais postulados é possível, por exem-plo, observar o surgimento, as identidades e asestratégias do movimento neozapatista do Méxi-co, mais conhecido como Exército Zapatista deLibertação Nacional (EZLN), surgido publicamen-te nas montanhas do estado de Chiapas e da SelvaLacandona, no dia 1° de janeiro de 1994. Oneozapatismo parece confirmar, por um lado, aposição de Touraine acerca da perversa relaçãoque pode existir entre exercício da democracia elógicas institucionais de participação e decisãopolítica. Touraine afirma que quanto mais um par-tido político considera-se portador de um modelode sociedade (observe-se a história dos diferentesmodelos político-institucionais latino-americanos),mais se enfraquece a democracia e mais subordi-nados estão os cidadãos aos poderes dos dirigen-tes políticos. No caso do México, que se deparoucom o movimento neozapatista, o Partido Revo-lucionário Institucional (PRI) tinha-se assentadono imaginário e na prática social dos mexicanosao longo dos seus 70 anos no poder de um Estadoque concentrava, institucionalmente (assim comoem relações típicas de clientelismo político), to-dos os canais de demandas e reivindicaçõessurgidas da sociedade. Que aconteceu? A apari-ção de um sujeito social que, profundamente visí-vel para o México contemporâneo, persistente aolongo do tempo, fez de suas demandas por demo-cratização e afirmação da sua identidade indígenaa principal ferramenta de transformação política ecultural. O neozapatismo conseguiu transcendera lógica institucional e política do México moder-no, inaugurando uma nova etapa política que sevê acompanhada pela derrota nas últimas eleiçõesdo PRI e a subida no governo federal de um par-tido relativamente novo, o Partido Ação Nacional(PAN).

Mas uma faceta dos indígenas neozapatistaspermanece sem o devido reconhecimento. Trata-

se daquele aspecto que se refere à defesa de umaidentidade cultural lesionada historicamente: a iden-tidade indígena. O caráter étnico do movimento éindubitável e, assim, um novo terreno inaugura-se nos conflitos e nas lutas estabelecidas. Esseterreno é o cultural, o simbólico, o que se estabe-lece como conseqüência de uma pluralidade cul-tural ocultada e negada (vide GADEA, 1999).Dessa maneira, as referências à diversidade cul-tural e aos processos de subjetivação, que menci-

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A CONTRIBUIÇÃO DE ALAIN TOURAINE

ona Touraine, adquirem singular centralidade. ParaTouraine, o movimento neozapatista estaria defi-nido como uma formação político-social própriade momentos posteriores à União Soviética, sema influência do “castrismo revolucionário” e pró-prio do esgotamento das guerrilhas de esquerda.O movimento neozapatista tem expressado comtranscendência mundial a união sui generis da de-fesa de uma identidade particular com um pro-grama de democratização nacional, quer dizer, aaliança de uma luta cultural com um processodemocratizador, em que, ao combinar o fato de“viver juntos” com “nossas diferenças”, renova afigura moderna da democracia, ao reconhecer opluralismo e manter regras universais de Direito.

Chegamos assim a reconhecer um traço inte-

ressante nas contribuições de análises de Tourainepara as realidades latino-americanas: a idéia de quea racionalização, acompanhada e iluminada pelasaspirações universalistas e seu correlato de su-posta convivência social, deve combinar-se coma idéia da defesa do sujeito, entendida como um“desejo” que atravessa o político, o moral e o éti-co em indivíduos e culturas. Com isso, a tensãoparece irresolúvel, constitutiva da modernidadelatino-americana, segundo a qual as categorias quese manifestam nos movimentos sociais definem-se cada vez menos por uma atividade ou pelo lu-

gar que os sujeitos ocupam na estrutura de pro-dução e cada vez mais por uma origem ou perten-ça cultural. Segundo Touraine, a categoria “sujei-to” aparece, então, cada vez mais central edeterminante para a análise dos movimentos soci-ais atuais.

Será, pois, a respeito da sociedade contempo-rânea que o sujeito assume prioridade na análisesociológica de Touraine. O próprio autor define aexistência de três fases sucessivas em sua traje-tória intelectual, às quais atribui centralidade a umtipo de sujeito-ator privilegiado da ação em cada

momento histórico: 1. da industrialização e domovimento operário tendo a classe como atorcentral; 2. os movimentos sociais propriamenteditos (enquanto atores coletivos) no coração davida societária e na historicidade; 3. a compreen-são do sujeito e sua transformação em ator social.

Suas análises sobre a América Latina, e seusfocos de interesses, acompanharam a vitalidadedessa trajetória intelectual. Dessa forma, na pri-meira fase, bastante influenciado pelo debate mar-xista, pesquisou a formação de uma consciência

operária nos trabalhadores de carvão e de meta-lurgia no Chile e no operariado de São Paulo. Nolivro A sociedade pós-industrial, iniciou a transi-ção para conceber os movimentos sociais paraalém das lutas de classe.

Assim, no segundo período, Touraine desen-volveu sua obra-mestre sobre os movimentos so-ciais ( A produção da sociedade), dialogando ten-samente com a teoria sociológica em um sentidomais amplo, especialmente com as teorias da açãoe das instituições políticas, tendo como pano defundo o debate sobre a democracia. Face à tradi-ção sociológica, estabeleceu um espaço privilegi-ado de análise – o da historicidade – cuja dinâmi-ca associa-se à ação dos movimentos sociais, quenecessitam de contextos de relativa abertura de-

mocrática para desenvolverem-se. Em relação àAmérica Latina, refletiu sobre as relações entre asraízes institucionais autoritárias (caudilhismo,clientelismo, populismo, paternalismo) e os po-tenciais de lutas dos atores dominados (doscomunitarismos aos movimentos históricos), o quesintetiza em uma obra maior, denominada Pala-

vra e sangue (1989).

Será, portanto, no terceiro período, amplian-do o leque de suas reflexões, incorporando deba-tes contemporâneos da Filosofia Política e da Psi-canálise, que construiu uma teoria mais abrangente

sobre a liberdade do sujeito e o sujeito da ação,pessoal e coletiva. Mas, como bem diz Touraine,o sujeito não é o indivíduo (no sentido liberal dotermo), pois “ser sujeito” significa ter a vontadede ser ator, isto é, atuar e modificar seu meio so-cial mais do que ser determinado por ele. Portan-to, a liberdade do sujeito será construída em suarelação com o outro, na alteridade, mas não nasubjugação, não na integração sistêmica acrítica,mas na busca do reconhecimento, na sua univer-salidade e na sua particularidade. Por isso, os te-mas do multiculturalismo, do dilema entre igual-

dade e diferença e da educação intercultural tam-bém assumem relevância em seus debates, tendocomo lastro social a condição democrática, sob apremissa de que o sujeito possa tornar-se ator emseu destino pessoal e coletivo. Conforme afirma:“Uma sociedade democrática é uma sociedade quereconhece o outro, não na sua diferença, mascomo sujeito, quer dizer, de modo a unir o univer-sal e o particular [...], uma vez que o sujeito é aomesmo tempo universalista e comunitário e sersujeito é estabelecer um elo entre esses dois uni-

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versos, ensaiar viver o corpo e o espírito, emoçãoe razão” (TOURAINE, 1994b, p. 1-2).

É nessa direção que Touraine destaca acentralidade do feminismo2 e das minorias étni-

cas enquanto sujeitos de transformação dahistoricidade contemporânea. Os movimentos dereconhecimento das minorias indígenas do Méxi-co, da Guatemala, do Equador, da Bolívia e deoutros países latino-americanos, são considera-dos pelo autor como momentos democratizantes,os quais, ao reivindicar uma especificidade cultu-ral indígena, estão ampliando os sistemas demo-cráticos. A democracia não será, assim, só umconjunto de instituições, mas, antes de tudo, umaluta das minorias contra o poder e a ordemestabelecida: é a luta contra sua redução à condi-

ção de mero trabalhador, de integração acrítica aosistema.

Portanto, a democracia tem que ser pensadapara além de sua institucionalidade: tem que serpensada como uma das dimensões da constitui-ção do sujeito em ator social – sempre se levandoem conta o cenário histórico, isto é, examinandose vivemos a emergência de um novo tipo de so-ciedade, com a definição de novos problemas,novos conflitos, e, portanto, novos atores. Para aAmérica Latina, a partir de uma perspectivatouraineana, podem-se destacar elementos para a

análise dos movimentos dos sem-terra, dos mo-vimentos urbanos, do movimento negro, dos jo-vens, do ecologismo, do feminismo e dos movi-mentos por uma educação intercultural, além dosmovimentos indígenas, que são emblemáticos paraa América Latina e que já foram mencionados an-teriormente. Esses movimentos permitem-nospensar a partir da premissa de Touraine de que osujeito está presente em todos os lugares em quese revela a vontade de ser, ao mesmo tempo, me-mória e projeto, cultura e atividade (cf.TOURAINE, 1997, p. 303), e poderiam ser acres-

centados: racionalidade e subjetivação, ou univer-so instrumental e universo simbólico. Essas duasdimensões das ações coletivas podem ser apreen-didas nas diversas experiências dos movimentossociais na América Latina.

O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-terra (MST), no Brasil, na sua continuidade ao

projeto da Teologia da Libertação, combina aracionalidade da luta pela terra com a simbologiada memória de lutas camponesas históricas, dereconhecimento das diversidades regionais e cul-turais, com o ideário da solidariedade e com amística em suas expressões artísticas (cf. PIANA,2001; SCHERER-WARREN, 2002).

Em relação aos contextos urbanos, os movi-mentos societários combinam a luta contra a ex-clusão e a privação de identidade com aspiraçõesdemocráticas, transformando-se em movimentosocial quando articulam história de vida pessoal ecoletiva como, por exemplo, no Movimento dosSem-Teto. Entretanto, com apoio em Touraine,podemos compreender a intrincada ambigüidadedessas ações coletivas em relação à questão de-

mocrática, especialmente aquelas relacionadas aostemas da pobreza ou das carências nas cidades:“Não é o papel dos pobres como trabalhadores,como cidadãos ou como membros de uma co-munidade que dá a este tema a importância quetem; não é o que fazem, mas o que sofrem; não éo que possuem, mas aquilo de que são privados[...]. Sua miséria, a exclusão e a repressão queeles sofrem é que dão ao seu protesto um valorfundamental. Porque é quando os problemas davida privada e os da vida pública se unem da for-ma mais intensa para dar origem a um protesto

cujo objetivo é a defesa da vida” (TOURAINE,1989, p. 276).

É por isso que em movimentos como o dossem-teto, a presença das mães e das crianças evi-dencia a busca de um reconhecimento na esferapública, durante as negociações e na afirmaçãodos direitos fundamentais da pessoa humana. Seuinterlocutor será muito mais o Estado do que umacategoria social, o que, partindo-se de Touraine,poderia vir a explicar o seu radicalismo conserva-dor, que mistura os discursos mais extremos como clientelismo mais utilitário.

O movimento ecológico também pode ser ana-lisado a partir da multidimensionalidade analíticatouraineana. Uma aplicação desse enfoque foi re-alizada por Castells (1997), com a elaboração deuma tipologia dos movimentos ambientalistas (apartir da identidade dos sujeitos-atores, da defini-ção do adversário da luta e dos objetivos da ação– projeto-utopia). O autor conclui que, especial-mente na América Latina, grupos ecologistas es-tão articulando-se com grupos de direitos huma-nos, de mulheres, organizações não-governamen-

2 Sobre este ponto, vide maiores detalhes em entrevistaconcedida a Miriam Adelman (2004).

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A CONTRIBUIÇÃO DE ALAIN TOURAINE

tais, formando uma coalizão que não ignora a po-lítica institucional mas vai além dela. Dessa for-ma, conectam movimentos de base com mobili-zações simbólicas em nome de uma justiçaambiental, ou seja, Realpolitik e utopia, cepticismoe esperança (idem, p. 133); em outras palavras,razão instrumental e razão simbólica.

No campo dos movimentos identitários, o fe-minismo, os movimentos étnicos e os movimen-tos jovens assumem relevância na esfera pública,na contemporaneidade latino-americana. Para omovimento feminista, pode-se destacar sua capa-cidade de associar vida profissional (racionalidade)e vida afetiva (subjetivação), com o desejo e a lutapara ampliar a sua participação na esfera pública,ampliando a democracia3.

Quanto à etnicidade, para Touraine não há de-mocracia sem o reconhecimento da diversidadeentre as culturas e da dominação que existe entreelas. O sujeito deve combinar instrumentalidade eidentidade. Dessa forma, pode-se observar que,no Brasil, o movimento negro vem combinandolutas pela ação afirmativa, na esfera das políticassociais, com as lutas contra a discriminação raci-al e o reconhecimento de suas raízes históricas eespecificidades culturais.

Os movimentos jovens emergentes, tais como

o hip hop, por meio de práticas político-culturaisartísticas, constituem-se em sujeitos-atores deresistência no plano das desigualdades econômi-cas e das discriminações culturais. Nas palavrasde Weller (2002, p. 1), “ao mesmo tempo em queos jovens negros em São Paulo (grupos de rap)estão fortemente constituídos em torno de práti-cas culturais e de lazer, convertem-se por outrolado em redes de articulação das experiências co-tidianas, elaborando orientações coletivas de vidae formas de enfrentar as diferentes experiênciasde marginalização e discriminação”.

Esses movimentos acabam, muitas vezes, as-sociando um movimento cultural a um novo mo-

vimento societário (cf. TOURAINE, 1997, cap.III), isto é, associando um chamamento moral aum conflito diretamente social, que opõe um atora outro, a um adversário, que pode vir a ser defi-nido a partir de um tipo de orientação “classista”(cf. WELLER, 2002, p. 11-18).

Por fim, em relação às experiências de educa-ção intercultural, poderíamos perguntar comTouraine: como combinar a liberdade do sujeitopessoal com o reconhecimento das diferençasculturais e as garantias institucionais que prote-gem essas liberdades e essas diferenças? Para oautor, a Escola do Sujeito (TOURAINE, 1997, cap.VIII) deve visar a compreender o outro em suacultura, isto é, em seu esforço por ligar identidadee instrumentalidade, ou seja, racionalidade e

subjetivação. Denise Cogo, em pesquisa sobreespaços educacionais interculturais, segue essaorientação: “Busco compreender [...] as dinâmi-cas identitárias que colocam em relação alunos eprofessores a partir de suas múltiplas posiçõesidentitárias de classe, de etnia, de gênero, de ida-de, de origem, de imigração, de trabalho, do naci-onal, do regional etc. Posições que concorrem paraa constituição de complexos cenários demulticulturalidade nesses espaços, permitindo cul-minar com a reflexão sobre as possibilidades dacomunicação intercultural nos espaços educativos

pesquisados em termos de uma Escola do Sujeitocomo aquela concebida por  Alain Touraine paradefinir relações educativas que se movem pelodesejo de corrigir as desigualdades de situações eoportunidades, a formação e a reafirmação doSujeito pessoal e a importância atribuída à diver-sidade histórica e cultural dos Sujeitos educativos”(COGO, 2000, p. 18; grifos no original).

Podemos concluir que a Sociologia de Touraine– na constante busca explicativa das interfaces etensões entre modernização versus desmoderni-zação; universo instrumental versus universo sim-

bólico; racionalização versus subjetivação; domi-nação-subjugação dos indivíduos versus liberdadedo sujeito; enfim, totalitarismo versus democracia– apresenta-se como um referencial relevante paraanalisar-se os dilemas da modernidade e da de-mocratização em cenários latino-americanos con-temporâneos.

3 Sobre a difícil luta dos sujeitos feministas face à tradiçãoestatal autoritária brasileira, vide Alvarez (1990).

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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 25: 39-45 NOV. 2005

Carlos A. Gadea ([email protected]) é Doutor em Sociologia Política pela Universidade Federal deSanta Catarina (UFSC) e Professor do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Universida-de do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos).

Ilse Scherer Warren ([email protected]) é Doutora em Sociologia pela Universidade de Paris X

(Nanterre) e Professora do Programa de Pós-graduação em Sociologia Política da Universidade Federalde Santa Catarina (UFSC).

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