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5/22/2018 AlainRobbe-Grillet-OCime-slidepdf.com http://slidepdf.com/reader/full/alain-robbe-grillet-o-ciume-561c14ad218b9 1/70 Alain Robbe-Grillet O Ciúme ROBBE-GRILLET, Alain. O Ciúme. Título Original: La Jalousie (1957) Tradução de Waltensir Dutra. Rio, Nova Fronteira, 1986  O AUTOR E SUA OBRA  Romancista e cineasta francês, Alain Robbe-Grillet é um dos principais represen tantes do "Nouveau Roman". Sua obra é notável principalmente pelo cuidado com que são eliminadas da narrativa as indicações que poderiam conduzir o romance a um r ultado psicológico muito evidente. Robbe-Grillet, aparentemente, contenta-se em justapor descrições objetivas que traçam, pouco a pouco, diante do leitor, quadro concisos. As fisionomias e os gestos que animam esses quadros parecem igualmente observados pelo autor de maneira fria, sem que lhes dê um significado mais amplo. Assim, aparentemente, todo o romance forma um único jogo de cenas. Graças a essa técnica, o escritor pretende sugerir a solidão metafísica de suas personagens. Os ac tecimentos e os caracteres só pouco a pouco são revelados e quase sempre de forma incompleta.  "O mundo não é nem significativo nem absurdo. Ele é, simplesmente." Este é o po ado sobre o qual Robbe-Grillet baseia sua concepção de romance. E, pois, ao aspecto das realidades externas que ele se atêm. Certos críticos chegaram a afirm ar que os romances de Robbe-Grillet nada mais são do que meras ilustrações de suas teorias.  De qualquer forma, ninguém nega sua perfeita maestria. O mérito não parece pequ o, sobretudo se se pensar no que sugere a atmosfera desses romances: a de um universo impenetrável, cuja angústia o escritor sabe dominar com uma atitude de fria  lucidez. Em longo artigo para o "Dictionnaire de Littérature Contemporaine", Grillet afirma que o "Nouveau Roman" não é uma teoria, mas sim uma busca: "... Longe  de ditar regras, teorias, leis, para os outros ou para nós mesmos, nosso moviment o é uma luta contra formas demasiadamente rígidas que marcavam o romance".  Natural de Brest, Normandia, onde nasceu a 18 de agosto de 1922, Robbe-Gril let foi criado e educado em Paris. Tendo recebido, em 1945, o equivalente ao dou torado em agronomia, transferiu-se para lugares exóticos do Marrocos, Guiné e Martinica, on de trabalhou como engenheiro agrônomo, especializando-se no desenvolvimento de frutas tropicais. Depois de dez anos, abandonou a atividade científica e foi traba lhar como editor de livros numa importante editora francesa.  Já em seus primeiros romances: "Les gommes" (1953), "Le voyeur" (1955) e "La

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    Alain Robbe-Grillet

    O Cime

    ROBBE-GRILLET, Alain. O Cime.Ttulo Original: La Jalousie (1957)Traduo de Waltensir Dutra. Rio, Nova Fronteira, 1986

    O AUTOR E SUA OBRA

    Romancista e cineasta francs, Alain Robbe-Grillet um dos principais representantes do "Nouveau Roman". Sua obra notvel principalmente pelo cuidado comque so eliminadas da narrativa as indicaes que poderiam conduzir o romance a um rultado psicolgico muito evidente. Robbe-Grillet, aparentemente, contenta-seem justapor descries objetivas que traam, pouco a pouco, diante do leitor, quadroconcisos. As fisionomias e os gestos que animam esses quadros parecem igualmenteobservados pelo autor de maneira fria, sem que lhes d um significado mais amplo.Assim, aparentemente, todo o romance forma um nico jogo de cenas. Graas a essatcnica, o escritor pretende sugerir a solido metafsica de suas personagens. Os actecimentos e os caracteres s pouco a pouco so revelados e quase sempre deforma incompleta.

    "O mundo no nem significativo nem absurdo. Ele , simplesmente." Este o po

    ado sobre o qual Robbe-Grillet baseia sua concepo de romance. E, pois,ao aspecto das realidades externas que ele se atm. Certos crticos chegaram a afirmar que os romances de Robbe-Grillet nada mais so do que meras ilustraes desuas teorias.

    De qualquer forma, ningum nega sua perfeita maestria. O mrito no parece pequo, sobretudo se se pensar no que sugere a atmosfera desses romances: a de umuniverso impenetrvel, cuja angstia o escritor sabe dominar com uma atitude de frialucidez. Em longo artigo para o "Dictionnaire de Littrature Contemporaine",Grillet afirma que o "Nouveau Roman" no uma teoria, mas sim uma busca: "... Longede ditar regras, teorias, leis, para os outros ou para ns mesmos, nosso movimento uma luta contra formas demasiadamente rgidas que marcavam o romance".

    Natural de Brest, Normandia, onde nasceu a 18 de agosto de 1922, Robbe-Grillet foi criado e educado em Paris. Tendo recebido, em 1945, o equivalente ao doutoradoem agronomia, transferiu-se para lugares exticos do Marrocos, Guin e Martinica, onde trabalhou como engenheiro agrnomo, especializando-se no desenvolvimento defrutas tropicais. Depois de dez anos, abandonou a atividade cientfica e foi trabalhar como editor de livros numa importante editora francesa.

    J em seus primeiros romances: "Les gommes" (1953), "Le voyeur" (1955) e "La

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    jalousie" (1957), Robbe-Grillet apresenta suas personagens unicamente por movimentose palavras, sem explicaes nem incurses na vida interior. Assim, a forma no tem ma funo de exprimir uma realidade conhecida, mas serve, acima de tudo, paradescobrir novas realidades. A nfase dada descrio dos objetos define esses primelivros. As descries de Robbe-Grillet assemelham-se aos espaos e aos objetosda pintura moderna.

    Depois de publicar "Dans les labyrinthe" (1959) e "Instantannes" (1962), Robbe-Grillet passa a desenvolver nos romances seguintes uma nova linguagem, na qual

    h uma proliferao de nomes e pronomes utilizados para abalar todos os conceitos actos de realismo e verossimilhana. Em "La maison de rendez-vous" (1965), compeuma pardia dos romances policiais "exticos", cuja ao se passa em Hong Kong.

    A metafsica passa a um segundo plano, enquanto se reforam as virtudes formaisentre o "Nouveau Roman" e a literatura de entretenimento. Em "L'den et aprs"(1971), Robbe-Grillet d incio a uma trilogia, que tem seqncia com "Glissements pessifs du plaisir" (1974) e "Le jeu avec le feu" (1975), na qual comparaseu trabalho msica atonal de Schnberg. Finalmente, em um dos seus ltimos romancublicados, "Project pour une rvolution New York", tambm de 1975, constrium tema no qual a cor vermelha significa fogo, violao e morte.

    Em certa medida, a tcnica literria de Robbe-Grillet tem relao com suas at

    ades cinematogrficas. Ele foi o roteirista de "O ano passado em Marienbad"(1961), filme dirigido por Alain Resnais que marcou poca no cinema francs. Depoisdisso, escreveu e dirigiu "L'immortelle" (1963), "Trans-Europe-Express" (1966),"L'den et aprs" (1971), "Glissements progressifs du plaisir" (1974) e "Le jeu avecle feu" (1975).

    Nota do revisor: A palavra francesa "jalouise", que o tradutor optou utilizar a palavra "gelosia" na verso em portugus, tem importncia fundamental na narriva,tanto que d o ttulo obra no original e define uma estrutura interna ou externa. Dfinio tradicional: s.f. Rtula de fasquias de madeira com que se tapa o vode uma janela; rtula, janela de rtula.. Mas tambm pode ser traduzida como persianassim como a imagem utilizada pelo ilustrador da capa da edio francesa,reproduzida na primeira pgina desta edio digital.

    Foi adicionada ao final do livro a planta da casa onde se desenvolve a histria (extrada da edio em ingls) que tambm ajuda a compreender melhor as descr

    feitas pelas personagens.

    Agora a sombra da coluna - a coluna que sustenta o ngulo sudoeste do telhado- divide em duas partes iguais o ngulo correspondente da varanda. Essa varanda uma larga galeria coberta, que cerca trs lados da casa. Como sua largura igual nparte central e nas partes laterais, o trao da sombra projetada pela colunachega exatamente quina da casa; mas detm-se ali, pois apenas as lajes da varandaso alcanadas pelo sol, ainda demasiado alto no cu. As paredes, de madeira,

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    da casa - isto , a fachada e a empena ocidental - ainda esto protegidas de seus raios pelo telhado (telhado comum casa propriamente dita e varanda). Assim,neste instante, a sombra da beirada do telhado coincide exatamente com a linha,em ngulo reto, que formam a varanda e as duas faces verticais da quina da casa.

    Agora, A... entrou no quarto, pela porta interna que d para o corredor central. Ela no olha pela janela escancarada, por onde, da porta, veria este cantoda varanda. Voltou-se agora para a porta a fim de fech-la. Continua usando o vestido claro, de gola reta, muito justo, que vestia no almoo.

    Christiane, mais uma vez, lembrou-lhe que as roupas menos apertadas permite

    m suportar melhor o calor. Mas A... limitou-se a sorrir: o calor no a incomodava,conheceu climas muito mais quentes na frica, por exemplo - e sempre se deu bem. Alis, tambm no tem medo do frio. Sente-se bem em qualquer lugar. Seus cabelosnegros deslocam-se num movimento ondulante, sobre os ombros e as costas, quandoela volta a cabea.

    O grosso corrimo da balaustrada quase no tem mais pintura na parte superior.O cinzento da madeira aparece, estriado de pequenas fendas longitudinais. Dooutro lado do corrimo, a dois bons metros abaixo do nvel da varanda, comea o jard.

    Mas o olhar que, vindo do fundo do quarto, passa por cima da balaustrada s v

    ai encontrar a terra, muito mais longe, do lado oposto do pequeno vale, entre asbananeiras da plantao. No se v o cho entre seus penachos espessos de grandes foerdes. No obstante, como o cultivo desse setor bastante recente, aindase pode acompanhar distintamente a interseo regular das fileiras de mudas. Isso acontece tambm em quase toda a parte visvel da concesso, pois as reas maisantigas - nas quais a desordem passou agora a predominar - ficam situadas mais ao alto, do lado de l da encosta, ou seja, do outro lado da casa.

    do outro lado, tambm, que passa a estrada, ligeiramente mais baixa do que aborda da plataforma. Essa estrada, a nica que d acesso concesso, marca olimite norte desta. Depois dela, uma estrada carrovel leva aos barraces e, ainda mis abaixo, casa, em frente qual um vasto espao livre, de inclinao muito

    reduzida, permite a manobra dos veculos.

    A casa est construda no mesmo nvel dessa esplanada, da qual no separada phum alpendre ou galeria. Em seus trs outros lados, pelo contrrio, cercadapela varanda.

    A inclinao do terreno, mais acentuada a partir da esplanada, faz com que a parte central da varanda (que fica na fachada sul) seja pelo menos dois metrosmais alta que o jardim.

    volta de todo o jardim, at os limites da plantao, estende-se a massa verde bananeiras.

    Tanto direita como esquerda sua excessiva proximidade, juntamente com a falta de elevao relativa do observador colocado na varanda, impede que se distingabem o armamento das rvores; ao passo que, no fundo do vale, a disposio em fileiraordenadas se impe primeira vista. Em certas reas de replantio muito recente- aquelas em que a terra avermelhada mal comea a ceder lugar folhagem - at mesil seguir a linha regular das quatro direes entrecruzadas, segundo asquais se alinham os troncos ainda novos.

    Esse exerccio no muito mais difcil, apesar do crescimento mais avanado, nque ocupam a encosta fronteira: , com efeito, o lugar que se apresenta

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    mais comodamente vista, aquele que oferece menos problemas de vigilncia (embora ocaminho para chegar at l seja longo), aquele que se olha naturalmente, sempensar, por uma ou outra das duas janelas, abertas, do quarto.

    Com as costas apoiadas na porta interna que acaba de fechar, A..., sem pensar, olha a madeira com a pintura gasta da balaustrada, mais perto dela o peitorildescascado da janela, e depois, ainda mais perto, a madeira lavada do soalho.

    Ela d alguns passos no quarto e aproxima-se da pesada cmoda, cuja gaveta superior abre. Mexe nos papis, na parte direita da gaveta, inclina-se e, para ver

    melhor o fundo, puxa-a um pouco mais em sua direo. Depois de procurar novamente, ela se ergue e fica imvel, com os cotovelos junto do corpo, os antebraos dobradose escondidos pelo busto - segurando sem dvida uma folha de papel nas mos.

    Volta-se agora para a luz, para continuar a leitura sem cansar os olhos. Seu perfil inclinado no se move. A folha azul bem claro, no formato comum dos papide carta, e conserva marcas bem visveis de ter sido dobrada em quatro.

    Em seguida, segurando a carta na mo, A... fecha a gaveta, caminha para a pequena mesa de trabalho (colocada junto segunda janela, contra a parede que separao quarto do corredor) e senta-se logo diante da pasta com material de escrita, de onde tira uma folha de papel azul-claro - idntica primeira, mas virgem. Retira

    a tampa da caneta e, depois de um breve olhar para o lado direito (olhar que nemmesmo alcanou o meio do vo da janela, situado mais atrs), inclina a cabea sobrea pasta, para comear a escrever.

    Os cabelos negros e brilhantes imobilizam-se, no centro das costas, que o estreito fecho metlico do vestido deixa ver um pouco mais abaixo.

    Agora a sombra da coluna - a coluna que sustenta o ngulo sudoeste do telhado- alonga-se, sobre as lajes, obliquamente parte central da varanda, diante dafachada, onde foram colocadas cadeiras para a noite. A extremidade do trao de sombra j quase alcana a porta de entrada, que marca o meio da varanda. Contra aempena oeste da casa, o sol ilumina a madeira a uma altura de aproximadamente ummetro e meio. Pela terceira janela, que d para este lado, ele entraria portanto

    ligeiramente no quarto, se o sistema de gelosias no tivesse sido baixado.

    No outro extremo desse lado ocidental da varanda abre-se a copa. Ouve-se, pela sua porta entreaberta, a voz de A..., depois a do cozinheiro negro, loquaz ecantante, depois de novo a voz clara, medida, que d ordens para a refeio da noite

    O sol desapareceu atrs do contraforte rochoso que marca o fim da parte maisavanada do planalto.

    Sentada, de frente para o vale, numa das cadeiras de fabricao local, A... l romance tomado de emprstimo na vspera, de que j falaram ao meio-dia. Elacontinua a leitura, sem desviar os olhos, at que a luz se torne insuficiente. Ento

    levanta o rosto, fecha o livro - que coloca ao alcance da mo sobre a mesa baixa- e fica a olhar fixamente sua frente, para a balaustrada vazada e as bananeirasda outra encosta, logo invisveis na escurido. Ela parece ouvir o rudo, quevem de todos os lados, dos milhares de grilos da baixada.

    Mas um rudo contnuo, sem variaes, atordoante, onde no h nada a ouvir.

    Franck est de novo presente para o jantar, sorridente, falante, afvel. Christiane no o acompanhou desta vez: ficou em casa com a criana, que tinha um poucode febre. No raro, atualmente, que seu marido venha assim sem ela: por causa da c

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    riana, por causa tambm dos problemas prprios de Christiane, cuja sade seadapta mal a este clima mido e quente, por causa finalmente de aborrecimentos domsticos provocados pelo excesso de criados, mal dirigidos.

    Esta noite, porm, A... parecia esper-la. Pelo menos, havia mandado colocar quatro pratos. D ordem de tirar imediatamente aquele que no deve servir.

    Na varanda, Franck deixa-se cair numa das cadeiras baixas e solta uma exclamao - que se tornaria costumeira - sobre o seu conforto. So cadeiras muito simplede madeira e tiras de couro, executadas segundo as indicaes de A... por um arteso

    o lugar. Ela se inclina para Franck, estendendo-lhe o copo.Embora j esteja agora completamente escuro, ela pediu que no se trouxessem os

    lampies, que - como diz - atraem os mosquitos. Os copos esto cheios, quaseat a borda, de uma mistura de conhaque e gua gasosa, na qual flutua um pequeno cubo de gelo. Para no correr o risco de derramar o contedo com um movimento emfalso, na total obscuridade, ela aproximou-se o mximo possvel da cadeira onde Franck est sentado, segurando com cuidado na mo direita o copo que lhe destinacom a outra mo, apia-se no brao da cadeira e se inclina para ele, a tal ponto que uas cabeas esto uma contra a outra. Ele murmura algumas palavras: um agradecimento,sem dvida.

    Ela se ergue com um movimento ondulante, apanha o terceiro copo - cujo contedo no tem medo de derramar, pois est menos cheio - e vai sentar-se ao lado deFranck, enquanto este continua a histria do caminho enguiado que comeou a contar de a sua chegada.

    Foi ela mesma quem disps as cadeiras, esta noite, quando mandou traz-las paraa varanda. A que indicou a Franck, e a sua, esto lado a lado, contra a parededa casa - as costas contra essa parede, evidentemente - sob a janela do escritrio. Ela tem assim a cadeira de Franck sua esquerda, e direita - mas um poucomais frente - a mesinha onde esto as garrafas. As duas outras cadeiras esto colodas do outro lado dessa mesinha, ainda mais para a direita, de maneira a nointerceptar a vista que as duas primeiras tm sobre a balaustrada da varanda. Pelamesma razo, a "vista", essas duas ltimas cadeiras no esto voltadas para o

    resto do grupo: foram colocadas de vis, orientadas obliquamente para a balaustrada vazada e a vertente do vale. Essa disposio obriga as pessoas que nelas estosentadas a acentuadas rotaes da cabea para a esquerda, se quiserem ver A... - sobtudo quem estiver na quarta cadeira, a mais distante.

    A terceira, que uma cadeira dobrvel, de lona estendida em tubos metlicos, opa uma posio claramente recuada, entre a quarta cadeira e a mesa. Mas foiesta, menos confortvel, que ficou vazia.

    A voz de Franck continua a contar os problemas do dia em sua fazenda. A...parece interessar-se. Estimula-o de tempos em tempos com algumas palavras que mostramsua ateno. Num momento de silncio, ouve-se o rudo de um copo colocado sobre a me

    a.

    Do outro lado da balaustrada, na direo da vertente do vale, h apenas o rudo grilos e a escurido sem estrelas da noite.

    Na sala de refeies brilham dois lampies a querosene. Um est colocado na beido comprido aparador, prximo de sua extremidade esquerda; o outro, sobrea prpria mesa, no lugar vazio do quarto conviva.

    A mesa quadrada, pois o sistema de tbuas suplementares (intil para to pouc

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    essoas) no foi usado. Os trs pratos ocupam trs dos lados, e o lampio,o quarto. A... est em seu lugar habitual; Franck est sentado sua direita - portao, de frente para o aparador.

    No aparador, esquerda do segundo lampio (isto , do lado da porta, aberta, dcopa), esto empilhados os pratos limpos que serviro durante a refeio. direita do lampio e atrs deste - contra a parede - um cntaro de cermica nativa mo meio do mvel. Mais direita desenha-se, na pintura cinza da parede,a sombra ampliada e imprecisa de uma cabea de homem - a de Franck. No tem palet ngravata, e o colarinho de sua camisa est desabotoado; mas uma camisa brancaimpecvel, de tecido fino de boa qualidade, cujos punhos duplos esto presos por abo

    toaduras de marfim, removveis.A... usa o mesmo vestido do almoo. Franck quase brigou com a mulher por caus

    a dele, quando Christiane criticou a sua forma "quente demais para este pas".A... limitou-se a sorrir: "Alis, no me parece que o clima daqui seja assim to insortvel", disse ela encerrando o assunto. "Se voc visse o calor que fazia,dez meses por ano, em Kanda!" A conversa girou, ento, durante algum tempo, sobrea frica.

    O copeiro entrou pela porta da copa, segurando com as duas mos a sopeira cheia. Nem bem ele a coloca sobre a mesa, A... lhe pede que afaste o lampio do lugardo quarto conviva, cuja luz demasiado forte - diz ela - lhe fere os olhos. O cop

    eiro segura o lampio pela asa e o leva para o outro lado da sala, para o mvel queA... lhe indica com a mo esquerda estendida.

    A mesa fica portanto mergulhada na penumbra. Sua principal fonte de luz passou a ser o lampio colocado sobre o aparador, pois o outro - na direo oposta -est agora muito mais distante.

    Na parede, do lado da copa, a cabea de Franck desapareceu. Sua camisa brancaj no brilha mais, como ainda h pouco, sob a iluminao direta. Apenas sua mangadireita alcanada pelos raios, em trs quartos, por trs: o ombro e o brao esto mpor uma linha clara e o mesmo acontece, mais alto, com a orelha e opescoo. O rosto est quase colocado contra a luz.

    - No lhe parece que ficou melhor? - pergunta A... voltando-se para ele.

    - Mais ntimo, sem dvida - responde Franck.

    Ele toma a sopa com rapidez. Embora no faa nenhum gesto excessivo, embora segure a colher de maneira conveniente e engula o lquido sem fazer barulho, pareceutilizar, para essa modesta tarefa, uma energia e um entusiasmo desmesurados. Seria difcil precisar onde, exatamente, ele se esquece de alguma regra essencial,em que ponto particular carece de discrio.

    Embora evite qualquer falta ostensiva, ainda assim seu comportamento no passa despercebido. E, por oposio, leva a constatar que A..., pelo contrrio, terminoua sopa sem dar a impresso de ter se mexido - mas tambm sem chamar ateno com uma

    ilidade anormal. preciso olhar para seu prato vazio, mas sujo, para nosconvencermos de que no deixou de servir-se.

    A memria consegue, alis, reconstituir alguns movimentos de sua mo direita e dseus lbios, algumas idas e vindas da colher entre o prato e a boca, que podemser considerados como significativos.

    Para maior certeza ainda, basta perguntar-lhe se no lhe parece que o cozinheiro salga demais a sopa.

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    - No - responde ela. - preciso comer sal para no transpirar.

    O que, se pensarmos bem, no prova de maneira absoluta que a sopa de hoje tenha lhe parecido boa.

    Agora o copeiro leva os pratos. Torna-se impossvel, assim, observar de novoos vestgios que sujavam o prato de A... - ou a ausncia de vestgios, se ela notivesse se servido.

    A conversa voltou histria do caminho quebrado: Franck no comprar mais, noo, material militar usado. As ltimas aquisies causaram-lhe aborrecimentos

    demais; quando tiver de substituir um de seus veculos, ser por um novo.Mas ele est errado em querer confiar caminhes modernos aos motoristas negros,

    que os destruiro com a mesma rapidez, ou ainda mais depressa.

    - De qualquer modo - disse Franck -, se o motor novo, o motorista no ter de exer nele.

    Ele devia, porm, saber que o contrrio: o motor novo ser um brinquedo ainda s atraente, e o excesso de velocidade em estradas precrias, e as acrobaciasao volante...

    Confiado nos seus trs anos de experincia, Franck acha que h motoristas srio

    esmo entre os negros. A... tem a mesma opinio, naturalmente.Ela absteve-se de falar durante a conversa sobre a resistncia comparada das

    mquinas, mas a questo dos motoristas provoca, de sua parte, uma interveno bastanlonga, e categrica.

    possvel, alis, que ela tenha razo. Nesse caso, Franck deveria ter razo tam

    Os dois falam agora do romance que A... est lendo, cuja ao se passa na fricherona no tolera o clima tropical (como Christiane). O calor parece mesmoprovocar nela verdadeiras crises: - Esse tipo de coisa mental, principalmente -diz Franck.

    Faz em seguida uma aluso, pouco clara para quem no tenha sequer folheado o livro, ao comportamento do marido. Sua frase termina com "saber prend-la" ou "saberaprend-la", sem que seja possvel determinar com certeza de que se trata, ou de quem. Franck olha para A..., que olha para Franck. Ela lhe dirige um sorriso rpido,logo absorvido pela penumbra. Compreendeu, pois conhece a histria.

    No, seus traos no se alteraram. Sua imobilidade no assim to recente: os aram paralisados desde as suas ltimas palavras. O sorriso fugidiodevia ser apenas um reflexo do lampio, ou a sombra de uma mariposa.

    De resto, ela no estava mais voltada para Franck, naquele momento. Acabava de retornar posio normal e olhava diretamente para a frente, em direo parede

    nua, onde uma mancha escura marca o lugar da lacraia esmagada na semana passada,no incio do ms, no ms anterior talvez, ou em data mais remota.

    O rosto de Frank, quase contraluz, no revela a menor expresso.

    O copeiro entra para tirar os pratos. A... pede-lhe, como de costume, que sirva o caf na varanda.

    Ali, a escurido total. Ningum fala mais. O rudo dos grilos cessou. Ouvem-senas, aqui e ali, o grito rpido de algum carnvoro noturno, o zumbido sbito

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    de algum escaravelho, o choque de uma pequena xcara de porcelana que colocada sobre a mesa baixa.

    Franck e A... esto sentados nas mesmas cadeiras, encostadas parede de madeira da casa. ainda a cadeira de estrutura mecnica que continua desocupada. Aposio da quarta cadeira ainda menos justificada, agora, no havendo mais vista po vale. (Mesmo antes do jantar, durante o breve crepsculo, os espaos muitoestreitos da balaustrada no permitiam que se visse realmente a paisagem; e o olhar, por sobre o corrimo, alcanava apenas o cu.) A madeira da balaustrada lisaao tato, quando os dedos seguem o sentido dos veios e das pequenas fendas longitudinais. Uma zona escamosa vem em seguida; depois, de novo uma superfcie lisa,

    mas sem linhas de orientao agora, e ocasionalmente pontilhada de asperezas ligeiras da pintura.

    Durante o dia, a oposio de duas cores cinzentas - a da madeira nua e, um pouco mais clara, a da pintura que resta - desenha figuras complicadas, de contornosangulosos, quase dentes de serra. Na parte superior do corrimo, h apenas ilhas esparsas, ressaltadas, formadas pelos ltimos restos da pintura. Sobre os balastres,pelo contrrio, so as regies descascadas, muito menores e geralmente situadas a mealtura, que constituem as manchas, em depresso, onde os dedos reconhecemas fendas verticais da madeira. No limite das placas, novas escamas de tinta deixam-se levantar facilmente; basta enfiar a unha sob a borda que se desloca e forar,

    dobrando a falange. A resistncia mal se sente.Do outro lado, o olhar, que se habitua escurido, distingue agora uma forma m

    ais clara destacando-se contra a parede da casa: a camisa branca de Franck. Seusdois antebraos repousam totalmente nos braos da poltrona. O busto est inclinado pa trs, contra o encosto.

    A... cantarola uma msica de dana, cujas palavras permanecem ininteligveis. MFranck talvez as compreenda, se j forem do seu conhecimento, por t-las ouvidovrias vezes, talvez com ela. Talvez seja um de seus discos prediletos.

    Os braos de A..., um pouco menos ntidos que os de seu vizinho por causa do to

    m - apesar disso, claro - do tecido, repousam igualmente nos braos da cadeira.

    As quatro mos esto alinhadas, imveis. O espao entre a mo esquerda de A... direita de Franck de dez centmetros, aproximadamente. O grito nomuito alto de um carnvoro noturno, agudo e rpido, ressoa de novo, l no fundo do ve, a uma distncia incalculvel.

    - Acho que vou embora - diz Franck.

    - Nada disso - responde A... imediatamente. - cedo ainda. to agradvel ficqui, assim!

    Se Franck tinha vontade de ir-se, dispunha de um bom pretexto: sua mulher e

    seu filho, que esto sozinhos em casa. Mas fala apenas da hora matinal em que temde levantar-se no dia seguinte, sem qualquer aluso a Christiane. O mesmo grito agudo e breve, que se aproximou, parece agora vir do jardim, bem perto da base davaranda, do lado leste.

    Como um eco, um grito idntico lhe sucede, vindo da direo oposta. Outros respdem, mais alto, l na estrada; e mais outros ainda, nos baixios.

    Por vezes, a nota um pouco mais grave, ou mais prolongada. H provavelmente d

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    iferentes tipos de animais. No obstante, todos esse gritos se parecem; no quetenham um carter comum, fcil de precisar; trata-se antes de uma falta comum de carer: eles no parecem ser gritos de medo, ou de dor, ou ameaadores, ou entode amor. So como gritos mecnicos, emitidos sem razo perceptvel, nada exprimindo, inalando apenas a existncia, a posio e os deslocamentos respectivos decada animal, cujo trajeto pela noite vo marcando.

    - Apesar disso - diz Franck -, acho que vou mesmo.

    A... no diz nada. No se mexeram, nem um, nem outro. Esto sentados lado a ladreclinados no encosto da cadeira, com os braos estendidos sobre os descansos

    laterais. As quatro mos, numa posio parecida, mesma altura, esto alinhadas parente parede da casa.

    Agora a sombra da coluna sudoeste - no ngulo da varanda, do lado do quarto -projeta-se sobre a terra do jardim. O sol ainda baixo no cu, na direo do leste,atravessa o vale quase que horizontalmente. As fileiras das bananeiras, oblquas em relao ao eixo do vale, ficam bem distintas, de todos os lados, sob essa ilumina

    Desde o fundo at o limite superior das rvores mais altas, do lado oposto queem que se encontra a casa, a contagem das plantas bastante fcil; em frenteda casa, sobretudo, graas ao pouco tempo de cultivo dessa rea.

    A depresso est limpa, aqui, na maior parte de sua largura: no resta, no mome

    o, seno uma borda de mata de uns trinta metros, na beirada do plat, que seune ao flanco do vale por uma pequena elevao sem crista nem fenda rochosa.

    O trao de separao entre a zona inculta e o bananal no perfeitamente reto.inha quebrada, de ngulos que alternadamente avanam e recuam, cada pontapertencendo a uma parcela diferente, de idade diferente, mas de orientao quase sempre idntica.

    Bem em frente da casa, um grupo de bananeiras marca o ponto mais elevado atingido pela plantao nesse setor. A faixa que termina aqui um retngulo. O solj no visvel, ou quase no , entre os penachos de folhas. No obstante, o alinhecvel das bananeiras mostra que sua plantao recente e que nenhumcacho foi ainda colhido.

    A partir do grupo de plantas, o lado da vertente desse pedao desce, fazendoum leve desvio (para a esquerda) em relao inclinao mais acentuada. H trintae duas bananeiras na fileira, at o limite inferior da faixa de terra.

    No prolongamento desta, para baixo, com a mesma disposio das linhas, uma outra faixa ocupa todo o espao compreendido entre a primeira e o pequeno riachoque corre no fundo. Compreende apenas vinte e trs plantas verticalmente. a vegetamais avanada, apenas, que a distingue da precedente: a altura um pouco menordos troncos, o entrelaamento das folhas e os numerosos cachos bem-formados. Alis,alguns cachos j foram cortados. Mas o lugar vazio do p cortado to facilmentevisvel quanto o seria a prpria bananeira, com seu penacho de grandes folhas, verde-claro, de onde sai a grossa haste vergada pelas frutas.

    Alm disso, em vez de ser retangular como a de cima, essa faixa tem a forma de um trapzio, pois a margem que constitui a borda inferior no perpendicularaos seus dois lados - a jusante e a montante -, paralelos entre si. O lado direito (isto , a jusante) tem apenas treze bananeiras, em lugar de vinte e trs.

    A borda inferior, finalmente, no retilnea, como no o o riacho: uma barrico acentuada faz estreitar a faixa no meio de sua largura. A fileira mdia,que deveria ter dezoito plantas se fosse um trapzio verdadeiro, comporta assim apenas dezesseis.

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    Na segunda fileira, partindo da extrema esquerda, haveria vinte e duas bana

    neiras (graas disposio em fileiras alternadas) no caso de uma faixa retangular.Teria tambm vinte e dois ps para uma faixa exatamente trapezoidal, sendo a reduoco perceptvel a uma distncia to curta da base. E na verdade h ali vintee duas plantas.

    Mas a terceira fileira tem apenas, tambm ela, vinte e duas bananeiras, em lugar das vinte e trs que comportaria novamente o retngulo. Nenhuma diferena suplemtar introduzida, a esse nvel, pela curva da borda. O mesmo acontece com a quarta, que

    compreende vinte e um ps, ou seja, um a menos que uma linha de ordem par doretngulo fictcio.

    A curvatura do rio entra por sua vez em jogo a partir da quinta fileira: esta, com efeito, tambm tem apenas vinte e uma bananeiras, quando teria vinte e duasse fosse um trapzio verdadeiro, e vinte e trs, no caso de um retngulo (linha de oem mpar).

    Esses nmeros so tericos, pois algumas bananeiras j foram cortadas rente ao com o amadurecimento do cacho. So na realidade dezenove penachos de folhase dois espaos vazios que constituem a quarta fileira; e, para a quinta, vinte penachos e um espao - ou seja, de baixo para cima: oito penachos de folhas, um espao

    vazio, doze penachos de folhas.Sem nos ocuparmos da ordem em que se encontram as bananeiras realmente visve

    is e as bananeiras cortadas, a sexta linha d os nmeros seguintes: vinte e dois,vinte e um, vinte, dezenove - que representam, respectivamente, o retngulo, o trapzio autntico, o trapzio de beirada curva, os mesmos, por fim, depois da deduodos ps abatidos para a colheita.

    Temos, para as fileiras seguintes: vinte e trs, vinte e um, vinte e um, vinte e um. Vinte e dois, vinte e um, vinte, vinte. Vinte e trs, vinte e um, vinte,dezenove, etc.

    Na ponte de troncos que atravessa o riacho no limite ascendente dessa faixa

    , h um homem agachado. um nativo, vestido com uma cala azul e uma camiseta semcor, que lhe descobre os ombros. Est inclinado sobre a superfcie lquida, como se ocurasse ver alguma coisa no fundo, o que no possvel, pois a gua, apesarde sua pouca profundidade, nunca suficientemente transparente.

    Naquela vertente do vale uma nica faixa estende-se desde o riacho at o jardim. Apesar do ngulo bastante disfarado sob o qual se evidencia a inclinao,as bananeiras ainda so fceis de contar, do alto da varanda. Elas so com efeito muo novas nessa rea, replantadas recentemente. No s a regularidade perfeita,como tambm os caules no tm mais de cinqenta centmetros de altura, e as copas fopelas quais terminam esto bem separadas umas das outras. Finalmente,a inclinao das linhas, em relao ao eixo do vale (cerca de quarenta e cinco grausavorece tambm a enumerao.

    Uma fileira oblqua comea na ponte de troncos, direita, e chega at o canto eerdo do jardim. Compreende trinta e seis bananeiras em seu comprimento. Adisposio em linhas alternadas permite v-las com se estivessem alinhadas em trs os direes: a princpio, a perpendicular primeira direo mencionada, depoisduas outras perpendiculares entre elas igualmente, e formando com as duas primeiras ngulos de quarenta e cinco graus. Estas duas ltimas so portanto, respectivamee,paralela e perpendicular ao eixo do vale - e orla inferior do jardim.

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    O jardim, no momento, no passa de um quadrado de terra nua, recentemente lavrado, de onde surgem apenas algumas laranjeiras novas, pouco menos altas do queum homem, plantadas a pedido de A...

    A casa no ocupa toda a largura do jardim.

    Assim ela fica isolada, de todos os lados, da massa verde das bananeiras.

    Sobre a terra nua, em frente empena oeste, projeta-se a sombra torta da casa. A sombra do telhado ligada sombra da varanda pela sombra oblqua da colunado canto. A balaustrada forma ali uma faixa rendilhada, enquanto a distncia real

    entre os balastres pouco menor que a espessura mdia desses mesmos balastres.Eles so feitos de madeira torneada, com uma barriga no meio e duas salincias

    acessrias, mais estreitas, perto de cada uma das extremidades. A pintura, quedesapareceu quase completamente na parte superior do corrimo, comea tambm a escam-se nas partes mais cheias dos balastres; apresentam, em sua maioria, umagrande zona de madeira nua a meia altura, na parte arredondada da salincia, do lado da varanda. Entre a pintura cinzenta que subsiste, desbotada pela idade, e amadeira que se tornou cinza pela ao da umidade, surgem pequenas superfcies de um mrrom avermelhado - a cor natural da madeira - nos lugares onde esta ficou mostra em razo da queda recente de novas escamas. Toda a balaustrada deve ser repintada de amarelo-vivo: assim decidiu A...

    As janelas de seu quarto ainda esto fechadas. Apenas o sistema de gelosias,que substitui os vidros, foi aberto ao mximo, dando assim ao interior uma claridadesuficiente. A... est de p contra a janela da direita e olha por uma das frestas, para a varanda.

    O homem continua imvel, inclinado sobre a gua barrenta, sobre a ponte de tbucobertas de terra.

    Ele no se moveu sequer uma linha: agachado, a cabea abaixada, os antebraos aiados nas coxas, as duas mos pendentes entre os joelhos separados.

    frente dele, nas faixas de terra que margeiam o pequeno curso de gua em suaoutra margem, numerosos cachos parecem maduros para o corte. Vrios ps j foramcolhidos, nesse setor. Seus lugares vazios destacam-se com nitidez perfeita, nasucesso dos alinhamentos geomtricos. Mas, olhando melhor, possvel perceber obroto j crescido que substituir a bananeira cortada, a alguns decmetros do velho ule, comeando assim a perturbar a regularidade ideal das fileiras alternadas.

    O rudo de um caminho que sobe a estrada, sobre aquela vertente do vale, faz-se ouvir do outro lado da casa.

    A silhueta de A..., recortada em faixas horizontais pela gelosia, atrs da janela de seu quarto, agora desapareceu.

    Tendo chegado parte plana da estrada, logo abaixo de rebordo rochoso que interrompe o plat, o caminho muda de marcha e continua com um ronco menos surdo.Em seguida, seu rudo decresce progressivamente, medida que se distancia para leste, atravs do mato queimado, entrecortado de rvores de folhagem dura, em direo concesso seguinte, a de Franck.

    A janela do quarto - a que fica mais perto do corredor - abre-se em duas metades. O busto de A... enquadrado pela janela. Ela diz "bom dia" com um tom alegrede algum que dormiu bem e acordou de bom humor; ou pelo menos de algum que prefere

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    no mostrar suas preocupaes - se as tiver - e ostenta, por princpio, sempreo mesmo sorriso; o mesmo sorriso onde se lem, com a mesma facilidade, tanto a zombaria quanto a confiana, ou a ausncia total de sentimentos.

    Alm disso, ela no acordou agora. evidente que j tomou a sua ducha. Continustida com seu roupo matinal, mas seus lbios esto pintados, de um vermelhoidntico ao natural, apenas um pouco mais firme, e sua cabeleira cuidadosamente tingida brilha luz clara da janela, quando, ao voltar a cabea, ela sacode as mechasondeantes, pesadas, cuja massa negra recai sobre a seda branca dos ombros.

    Ela se dirige para a grande cmoda, contra a parede do fundo. Entreabre a gaveta superior, para apanhar um objeto de pequenas propores, e volta-se para aluz. Na ponte de troncos o nativo agachado desapareceu. No se v ningum por perto. enhuma turma tem trabalho naquele setor, no momento.

    A... est sentada mesa, pequena escrivaninha colocada junto parede da dir, a do corredor. Ela se inclina para a frente sobre algum trabalho minuciosoe prolongado: cerzir uma meia muito fina, lustrar as unhas, desenhar a lpis alguma coisa muito pequena. Mas A... no desenha nunca; para cerzir uma meia, teriase colocado mais perto da luz; se tivesse necessidade de uma mesa para fazer asunhas, no teria escolhido essa mesa.

    Apesar da imobilidade aparente da cabea e dos ombros, vibraes abruptas agitam

    lhe a massa negra dos cabelos. Por vezes ela ergue o busto e parece recuarpara melhor julgar seu trabalho.

    Com um gesto lento, leva para trs uma mecha, mais curta, que se soltou do penteado muito ondulante, e que a atrapalha. A mo demora-se ajeitando as ondulaes,sobre as quais os dedos afilados se desdobram, um aps o outro, com rapidez, mas sem brusquido, comunicando o movimento de um para o outro de maneira contnua,como se fossem arrastados pelo mesmo mecanismo.

    Novamente inclinada, ela retoma agora o trabalho interrompido. A cabeleirabrilhante tem reflexos ruivos, na concavidade das ondas. Leves tremores, logo amortecidos,a percorrem de um ombro ao outro, sem que seja possvel ver mover-se, com a menor

    pulsao, o resto do corpo.

    Na varanda, de costas para as janelas do escritrio, Franck estava sentado emseu lugar habitual, numa das cadeiras de fabricao local. Apenas essas trs foramcolocadas esta manh. Esto dispostas como de costume. As duas primeiras lado a ladosob a janela, a terceira um pouco afastada, do outro lado da mesa baixa.

    A... foi pessoalmente buscar as bebidas, a gua gaseificada e o conhaque. Coloca sobre a mesa uma bandeja cheia, com as duas garrafas e os trs copos grandes.Tendo destampado o conhaque, volta-se para Franck e o olha, enquanto comea a servi-lo. Mas Franck, em vez de observar o nvel da bebida, que sobe, olha um poucomais para o alto, para o rosto de A... Ela prendeu o cabelo num coque baixo, cujas mexas hbeis parecem estar a ponto de desmanchar; alguns grampos escondidos dev

    em,porm, segur-lo com mais firmeza do que parece.

    A voz de Franck solta uma exclamao: "Ah! Chega! demais!" ou ento: "Pare! s!" ou "Passou da medida", etc. Ele fica com a mo direita no ar, alturaa cabea, com os dedos ligeiramente separados. A... comea a rir.

    - Voc devia ter dito antes!

    - Mas eu no estava vendo - protesta Franck.

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    - Ora - responde ela -, no devia estar olhando para o outro lado.

    Olham-se, sem nada acrescentar. Franck acentua o sorriso que lhe enruga oscantos dos olhos. Entreabre a boca, como se fosse dizer alguma coisa. Mas nada diz.Os traos de A..., meio de perfil, no deixam perceber nada.

    Depois de alguns minutos - ou talvez segundos - continuam ambos na mesma posio. O rosto de Franck, bem como todo o seu corpo, parecem imobilizados. Ele estvestido com um short e uma camisa caqui de mangas curtas, cujas tiras de pano no

    s ombros e os bolsos abotoados tm um ar vagamente militar, com as meias curtas dealgodo rugoso, ele cala sapatos-tnis pintados de uma grossa camada de branco, que e quebra nos lugares onde a lona se dobra sobre o peito do p.

    A... serve a gua mineral nos trs copos, alinhados sobre a mesa baixa. Ela distribui os dois primeiros, depois, segurando o terceiro na mo, senta-se na poltronavazia, ao lado de Franck. Este j comeou a beber.

    - Est bastante gelado? - pergunta A... As garrafas estavam na geladeira.

    Franck concorda com um gesto de cabea e bebe um novo trago.

    - Pode-se colocar gelo, se voc quiser - diz A...

    E, sem esperar uma resposta, chama o copeiro.

    Faz-se um silncio, durante o qual o copeiro deveria surgir na varanda, no canto da casa. Mas ningum aparece.

    Franck olha para A... como se ela devesse chamar uma segunda vez, ou levantar-se, ou tomar qualquer deciso. Ela esboa uma expresso de aborrecimento, em dire balaustrada.

    - Ele no ouve - diz ela. - Seria melhor um de ns mesmos ir.

    Nem ela nem Franck se levantam do lugar. No rosto de A..., voltado de perfil para o canto da varanda, no h mais nem sorriso, nem espera, nem sinal de encorajamento.Franck contempla as bolhas de gs coladas ao seu copo, que segura frente dos olhos, a uma distncia muito pequena.

    Um gole basta para mostrar que essa bebida no est bastante fresca. Franck no espondeu claramente ainda, embora j tenha bebido duas vezes. De resto, apenasuma garrafa estava na geladeira: a de gua mineral, cujo vidro esverdeado est manchado de um vapor ligeiro, onde a mo de dedos afilados deixou sua marca.

    O conhaque fica sempre no aparador. A..., que todos os dias traz o balde de

    gelo junto com os copos, no o fez hoje.

    - Ora - diz Franck -, no vale a pena. Para ir copa, o mais simples atravesr a casa.

    Transposta a porta, uma sensao de frescor acompanha a semi-obscuridade. dirta, a porta do escritrio est entreaberta.

    Os sapatos de sola de borracha no fazem nenhum rudo nas lajes do corredor. Aporta gira sem ranger sobre as dobradias. O cho do escritrio tambm de lajes

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    quadradas. As trs janelas esto fechadas e suas gelosias foram apenas entreabertas,para evitar que o calor do meio-dia penetrasse no aposento.

    Duas janelas do para a parte central da varanda. A primeira, a da direita, deixa ver pela fresta mais baixa, entre as duas ltimas lminas de madeira de inclinavarivel, a cabeleira negra - pelo menos, o alto da cabeleira.

    A... est imvel, sentada bem ereta no fundo da poltrona. Ela olha para o vale, frente deles. Ela se cala. Franck, invisvel esquerda, cala-se tambm, ouento fala em voz muito baixa.

    Enquanto o escritrio - como os quartos e o banheiro - do para os lados do corredor, este termina na sala de refeies, da qual no est separado por nenhumaporta. A mesa est posta para trs pessoas. A... acaba, sem dvida, de mandar acresctar um prato para Franck, pois no devia esperar nenhum convidado para o jantar.

    Os trs pratos esto dispostos como de costume, cada qual no meio de um dos lados da mesa quadrada. O quarto lado, onde no h prato, o que fica a cerca dedois metros da parede nua, onde a pintura clara tem ainda a marca da lacraia esmagada.

    Na copa, o copeiro j est extraindo os cubos de gelo de suas frmas.

    Um balde cheio de gua, colocado no cho, serviu-lhe para aquecer a pequena cub

    a metlica. Ele levanta a cabea e d um grande sorriso.Ele deve ter tido apenas o tempo necessrio de ir receber as ordens de A...,

    na varanda, e voltar at aqui (pelo lado de fora) com os objetos necessrios.

    - A senhora disse para levar o gelo - anuncia ele no tom cantante dos negros, que destaca certas slabas acentuando-as de maneira exagerada, por vezes no meiodas palavras.

    A uma pergunta pouco precisa sobre o momento em que recebeu a ordem, ele respondeu: "Agora", o que no constitui uma indicao satisfatria. Ela pode ter lhepedido isso quando foi buscar a bandeja, simplesmente.

    S o copeiro pode confirmar isso. Mas ele no v, na interrogao malfeita, sennsinuao para que se apresse mais.

    - Eu j levo - diz ele, para que se tenha pacincia.

    Ele fala de maneira bastante correta, mas nem sempre consegue entender o que se quer dele. A..., porm, consegue fazer-se entender sem nenhuma dificuldade.

    Vista da porta da copa, a parede da sala de refeies parece sem manchas. Nenhum rumor de conversa chega da varanda, no outro extremo do corredor.

    esquerda, a porta do escritrio agora ficou escancarada. Mas a inclinao dem

    do acentuada das lminas, nas janelas, no permite que se veja da porta oexterior.

    a uma distncia de menos de um metro apenas que surgem, nos intervalos sucessivos, em faixas paralelas separadas pelas faixas mais largas de madeira cinzenta,os elementos de uma paisagem descontnua: os balastres de madeira torneada, a cadeira vazia, a mesa baixa onde um copo cheio est ao lado da bandeja com as duasgarrafas, e por fim o alto da cabeleira negra, que se inclina nesse momento paraa direita, onde entra em cena, por cima da mesa, um antebrao nu, de cor moreno-e

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    scura,terminando numa mo mais clara, que segura o balde de gelo. A voz de A... agradeceao copeiro. A mo escura desaparece. O balde de metal brilhante, que logo se cobrede vapor, fica sobre a bandeja ao lado das duas garrafas.

    O coque de A..., visto de to perto, e por trs, parece muito complicado. muidifcil acompanhar, em seu entrelaamento, as diferentes mechas: vrias soluespodem ser imaginadas para um lugar, e para outros, nenhuma.

    Em vez de servir o gelo, ela continua a olhar para o vale. Da terra do jard

    im, fragmentada em faixas verticais pela balaustrada, depois em faixas horizontaispelas gelosias, restam apenas pequenos quadrados que representam uma parte insignificante da superfcie total - talvez um tero do tero.

    O coque de A... no menos intrigante quando visto de perfil. Ela continua sentada esquerda de Franck. ( sempre assim: direita de Franck na varanda parao caf ou o aperitivo, sua esquerda durante as refeies na sala.) Ela est ainda costas voltadas para as janelas, mas agora dessas janelas que vem aluz. Trata-se aqui de janelas normais, dotadas de vidros: dando para o norte, elas nunca recebem o sol.

    As janelas esto fechadas. Nenhum rudo penetra o interior quando uma silhueta

    passa, l fora, frente a uma delas, acompanhando a casa a partir da cozinha edirigindo-se para o lado dos barraces. Era, cortado altura das coxas, um negro deshort, camiseta, um velho chapu mole, de passo rpido e ondulante, descaloprovavelmente. Seu chapu de feltro, sem formas, desbotado, fica na memria e deveria servir para reconhec-lo logo entre os trabalhadores da fazenda. No obstante,isso no acontece.

    A segunda janela est situada mais distante, em relao mesa; ela obriga a um imento do busto para trs. Mas ningum se delineia nessa janela, seja porqueo homem de chapu j a tenha ultrapassado, com seu passo silencioso, seja porque eleparou ou mudou de repente de rumo. Seu desaparecimento no surpreende, fazendoao contrrio duvidar de sua primeira apario.

    - Esse tipo de coisa , principalmente, mental - diz Franck.

    O romance africano constitui, de novo, o assunto da conversa.

    - Fala-se de clima, mas isso no significa nada.

    - As crises de impaludismo...

    - H o quinino.

    - E a cabea tambm, que zumbe o dia inteiro. chegado o momento de interessare pela sade de Christiane.

    Franck responde com um gesto de mo: uma subida seguida de uma queda mais lenta, que se perde no vazio, enquanto os dedos se fecham sobre um pedao de po colocadojunto do prato. Ao mesmo tempo, o lbio inferior estendeu-se e o queixo indicou rapidamente a direo de A..., que deve ter feito uma pergunta idntica, pouco antes.

    O copeiro entra pela porta da copa, trazendo nas duas mos um grande prato fundo.

    A... no fez os comentrios que o movimento de Franck deveria ter provocado. Re

  • 5/22/2018 Alain Robbe-Grillet - O Ci me

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    sta um recurso: pedir notcias da criana. O mesmo gesto - ou quase - reproduz-se,terminando novamente com o mutismo de A...

    - Sempre a mesma coisa - diz Franck.

    Em sentido inverso, atrs das janelas, passa de novo o chapu de feltro. A marcha ondulante, viva e descontrada ao mesmo tempo, no mudou. Mas a orientaocontrria do rosto dissimula-o totalmente.

    Alm do vidro grosseiro, perfeitamente limpo, h apenas o ptio pedregoso, e, emseguida, subindo em direo estrada e beirada do plat, a massa verde das

    bananeiras. Em sua folhagem sem matizes os defeitos do vidro desenham crculos mveis.

    Est como que esverdeada a prpria luz que ilumina a sala de refeies, os cabenegros de voltas improvveis, a toalha sobre a mesa e a parede nua onde umamancha escura, bem em frente do rosto de A..., ressalta sobre a pintura clara, lisa e montona.

    Para ver o detalhe dessa mancha com clareza, a fim de distinguir-lhe a origem, preciso aproximar-se muito de perto da parede e voltar-se para a porta da copa.A imagem da lacraia esmagada desenha-se ento, no integral, mas composta de fragmentos bastante precisos para no deixar qualquer dvida. Vrias partes do corpo,

    ou dos apndices, deixaram ali seus contornos, sem borres, e ficaram reproduzidos com uma fidelidade de um desenho anatmico: uma das antenas, duas mandbulas curvas,a cabea e o primeiro anel, a metade do segundo, trs patas de grandes propores. Vseguida, restos mais imprecisos: pedaos de patas e a forma parcial deum corpo dobrado em ponto de interrogao.

    nesta hora que a iluminao da sala de refeies mais favorvel. Do outro la quadrada onde o prato ainda no foi colocado, uma das janelas, cujosvidros no tm qualquer vestgio de poeira, est aberta para o ptio, que se reflete das folhas.

    Entre as duas folhas da janela, bem como atravs da janela da direita que estsemi-aberta, v-se, dividida em duas pela barra vertical, a parte esquerda do

    ptio onde a caminhonete coberta de lona est estacionada com o cap voltado para o tor norte do bananal. H sob a coberta uma caixa de madeira branca, nova, marcadade grandes letras negras, ao contrrio, pintadas com moldes.

    Na folha esquerda da janela, a paisagem refletida mais brilhante, embora mais escura. Mas deformada pelos defeitos do vidro, as manchas de verde circularesou em forma de crescente, da cor das bananeiras, passeiam pelo meio do ptio na frente dos barraces.

    Cercada por um desses anis mveis de folhagem, o grande sed azul continua, apar disso, bem reconhecvel, bem como o vestido de A..., de p junto do carro.

    Ela est inclinada sobre a porta. Se o vidro estiver abaixado - o que provve- A... pode ter introduzido o rosto na abertura por cima dos assentos. Elacorre o risco de desmanchar o penteado contra as beiradas da janela e de ver seus cabelos se espalharem por cima do motorista, que continuou sentado ao volante.

    Este est novamente aqui para o jantar, afvel e sorridente. Ele se deixa cairnuma das cadeiras de tiras de couro, sem que ningum a tivesse indicado, e pronunciasua exclamao habitual sobre o seu conforto: - Como a gente se sente bem aqui!

  • 5/22/2018 Alain Robbe-Grillet - O Ci me

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    Sua camisa branca uma mancha mais clara na noite, contra a parede da casa.

    Para no correr o risco de derrubar o contedo com um movimento em falso, na obscuridade total, A... aproximou-se o mximo possvel da cadeira onde Franck estsentado, segurando com precauo na mo direita o copo que lhe destina. Apia-se comutra mo no brao da cadeira e inclina-se para ele, to perto que suas cabeasficam uma contra a outra. Ele murmura algumas palavras: sem dvida um agradecimento. Mas as palavras perdem-se no barulho ensurdecedor dos grilos, que vem de todosos lados.

    mesa, onde a disposio dos lampies foi modificada de modo a iluminar menos tamente os convivas, a conversao recomea, sobre assuntos familiares, comas mesmas frases.

    O caminho de Franck enguiou no meio da subida, entre o quilmetro - ponto em qe a estrada deixa a plancie - e a primeira aldeia. Foi uma viatura da polciaque, passando por ali, parou na fazenda para avisar Franck. Quando este chegou ao local, duas horas depois, no encontrou seu caminho no ponto indicado, mas muitomais abaixo, pois o motorista havia tentado fazer pegar o motor em marcha r, como risco de chocar-se contra uma rvore, numa das curvas.

    Esperar qualquer resultado, operando dessa maneira, , alis, absurdo. Foi prec

    iso desmontar todo o carburador, mais uma vez. Franck, felizmente, havia levadoalguma coisa para comer, pois s voltou s trs e meia. Resolveu substituir o caminhmais depressa possvel, e nunca mais - diz ele - compraria material militarusado: - A gente pensa fazer economia, mas isso custa, no final das contas, muito mais.

    Sua inteno adquirir agora um veculo novo. Ele ir pessoalmente ao porto na ira oportunidade conversar com os concessionrios das principais marcas,para conhecer exatamente os preos, as vantagens diversas, os prazos de entrega, etc.

    Se ele tivesse um pouco mais de experincia, saberia que no se entregam mquinmodernas a motoristas negros, que as destroem com a mesma rapidez, ou mais

    ainda.

    - Quando pensa ir? - pergunta A...

    - No sei...

    Eles se olham, voltados um para o outro, por cima do prato que Franck segura com uma mo apenas, vinte centmetros acima do nvel da mesa.

    - Talvez na prxima semana.

    - Eu tambm preciso ir cidade - diz A...

    - Preciso fazer umas compras.

    - Ento eu levo voc. Partindo bem cedo, podemos estar de volta noite.

    Ele assenta o prato, sua esquerda, e prepara-se para servir-se. A... voltao olhar por cima do centro da mesa.

    - Uma lacraia! - diz ela com voz contida, no silncio que se seguiu.

    Franck ergue os olhos. Orientando-se em seguida pela direo indicada pelo olha

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    r - imvel - de sua vizinha, ele volta a cabea para o outro lado, para a suadireita.

    Na pintura clara da parede, em frente de A..., havia um escutgero de proporemdias (com o comprimento de cerca de um dedo), bem visvel, apesar da iluminaoescassa. No momento, ele no se desloca, mas a orientao de seu corpo indica um camho que corta a parede em diagonal: vinda do plinto, do lado do corredor, edirigindo-se para o ngulo do teto. fcil identificar o animal graas ao grande deolvimento das patas, principalmente na parte posterior. Observando-o commais ateno, distingue-se, no outro extremo, o movimento oscilante das antenas.

    A... no se mexeu desde a sua descoberta: muito ereta na cadeira, com as mos abertas pousadas sobre a toalha, de cada lado do seu prato.

    Os olhos, arregalados, fixos na parede. A boca no se fechou de todo, e talvez trema imperceptivelmente.

    No raro encontrar assim diferentes tipos de lacraias durante a noite, nessacasa de madeira j antiga. E essa espcie no das maiores, e est longe deser a mais venenosa. A... procura controlar-se, mas no consegue deixar de olh-la,nem sorrir do gracejo feito a propsito de sua averso pelos escutgeros.

    Franck, que nada disse, torna a olhar para A... Depois, levanta-se de sua cadeira, sem barulho, segurando o guardanapo. Enrola-o numa bola e se aproxima da

    parede.

    A... parece respirar um pouco mais depressa; ou, ento, uma iluso. Sua mo erda fecha-se aos poucos sobre a faca. As finas antenas aceleram a sua oscilaoalternada.

    De repente, o animal curva o corpo e comea a descer diagonalmente na direo dsoalho, com toda a rapidez de suas longas patas, ao mesmo tempo que o guardanapofeito bola cai sobre ele, com rapidez ainda maior.

    A mo de dedos afilados crispou-se sobre o cabo da faca; os traos do rosto, po

    rm, no perderam nada de sua rigidez. Franck afasta o guardanapo da parede e,com o p, acaba de esmagar alguma coisa sobre o cho, contra o rodap.

    Um metro mais acima, aproximadamente, a pintura fica marcada de uma forma escura, um pequeno arco que se torce em ponto de interrogao, apagando-se um poucode um lado, cercada aqui e ali de sinais mais claros, e da qual A... no afastou ainda o olhar.

    Desfeito totalmente o penteado, a escova desce com um rudo leve que lembra osopro e a crepitao. Mal chegada embaixo, muito rapidamente, ela sobe em direo cabea, onde golpeia com toda a sua superfcie os cabelos, antes de deslizar de novsobre a massa negra, cor de osso oval, cujo cabo, bastante curto, desaparecequase totalmente na mo que o segura com firmeza.

    Uma metade da cabeleira pende para trs, a outra mo traz para a frente do ombro a outra metade. Deste lado (o lado direito) a cabea se inclina, de modo amelhor oferecer os cabelos escova. Cada vez que esta cai, no alto, por trs da nuca, a cabea inclina-se mais ainda e se ergue em seguida com esforo, enquantoa mo direita - que segura a escova se afasta no sentido inverso. A mo esquerda - que segura os cabelos sem apert-los, entre o punho, a palma e os dedos - deixa-lhepor um instante passagem livre e se fecha, reunindo de novo as mechas, com um gesto seguro, completo, mecnico, enquanto a escova continua seu percurso at a ponta.

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    O rudo, que varia progressivamente de um extremo a outro, ento apenas uma crepiteca e pouco forte, cujos ltimos estalos se produzem depois que a escova,deixando os cabelos mais longos, j vai tornar a subir fazendo a etapa ascendentedo ciclo, descrevendo no ar uma curva rpida que a leva acima do pescoo, ali ondeos cabelos ficam achatados na parte de trs da cabea e revelam a brancura de uma risca que os divide.

    esquerda dessa risca, a outra metade da cabeleira negra pende livremente ata cintura, em ondulaes suaves.

    Mais esquerda ainda, o rosto deixa ver apenas um perfil perdido. Mas, alm dele, a superfcie do espelho, que devolve a imagem do rosto inteiro, de frente,e o olhar - intil sem dvida para a fiscalizao da escovao - voltado para a fren natural.

    Assim os olhos de A... deveriam encontrar a janela escancarada que d para aempena oeste, frente qual ela se penteia diante da mesinha preparada para essefim, munida em particular de um espelho vertical que reflete o olhar para trs, nadireo da terceira janela do quarto, a parte central da varanda e a vertentedo vale.

    A segunda janela, que d para o sul, como esta ltima, est apenas mais prxima gulo sudoeste da casa; tambm ela est totalmente aberta. Mostra o lado

    da penteadeira, o pedao do espelho, o perfil esquerdo do rosto e os cabelos despenteados que caem livremente sobre o ombro, o brao esquerdo que se dobra para alcanara metade direita da cabeleira.

    Como a nuca se inclina em diagonal para esse lado, o rosto encontra-se ligeiramente voltado para a janela. Sobre a placa de mrmore de raros veios cinza estoalinhados os potes e os frascos, de alturas e formas diversas. Mais adiante descansam um grande pente de tartaruga e uma segunda escova, esta de madeira, de cabomais longo, que apresenta uma superfcie eriada de plos negros.

    A... deve ter acabado de lavar os cabelos, pois sem isso no se ocuparia, no

    meio do dia, em pente-lo. Interrompeu seus movimentos, tendo talvez terminadoeste lado.

    No obstante, sem mudar a posio dos braos, nem mexer o busto, que ela voltepente o rosto para o peitoril situado sua esquerda, para olhar a varanda,a balaustrada vazada e a vertente oposta do vale.

    A sombra retorcida da coluna que sustenta o ngulo do telhado projeta-se naslajes da varanda em direo primeira janela, a da empena; mas est longe de alcanpois o sol ainda permanece muito alto. A empena da casa est toda sombra do telhado; quanto ao segmento oeste da varanda, ao longo dessa empena, uma faixa ensolarada,de um metro de comprimento, mal se intercala entre a sombra do telhado e a sombr

    a da balaustrada, no interrompida neste momento por nenhum corte.

    diante dessa janela, no interior do quarto, que foi colocada a penteadeirade mogno envernizado e mrmore branco, das quais h sempre um exemplar nessas habitade estilo colonial.

    A parte traseira do espelho uma placa de madeira mais grosseira, avermelhada igualmente, mas sem brilho, de forma oval, que tem uma inscrio a giz da qualtrs quartas partes esto apagadas. direita, o rosto de A..., que ela inclina agor

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    para a esquerda a fim de escovar a outra metade da cabeleira, mostra um olhoque se volta para a frente, como natural, para a janela escancarada e a massa verde das bananeiras.

    No final dessa ala oeste da varanda abre-se a porta externa da copa, que d acesso em seguida sala de refeies, onde o frescor se conserva durante toda atarde. Na parede nua, entre a porta da copa e o corredor, a mancha formada pelosrestos da lacraia mal se v, sob a incidncia horizontal da luz. A mesa foi postapara trs pessoas; trs pratos ocupam trs dos lados da mesa quadrada: o lado do apador, o lado das janelas e o lado voltado para o centro da longa sala, cujaoutra metade forma uma espcie de salo, depois da linha do meio, determinada pela a

    bertura do corredor e a porta que d para o ptio, graas qual seria fcildirigir-se aos barraces onde o capataz nativo tem seu escritrio.

    Mas da mesa, para se ver o salo - ou, por uma janela, o lado dos barraces - seria necessrio ocupar o lugar de Franck: as costas voltadas para o aparador.

    Esse lugar est vazio, no momento. A cadeira, no entanto, est colocada no ponto certo, o prato e os talheres esto em seus lugares tambm; mas no h nadaentre a beirada da mesa e o espaldar da cadeira, que tem mostra seu revestimentode palha grossa ordenada em cruz; e o prato est limpo, brilhante, cercado detodas as facas e garfos, como no incio da refeio.

    A..., que finalmente resolveu mandar servir o almoo sem esperar mais o hspede

    , j que ele no chega, sentou-se rgida e muda em seu lugar, diante das janelas.Essa posio contra a luz, cuja falta de comodidade parece evidente, foi escolhida por ela mesma de maneira definitiva. Ela come com uma economia de gestos extrema,sem voltar a cabea para a esquerda ou a direita, franzindo um pouco as plpebras como se procurasse descobrir alguma mancha na parede nua sua frente, onde a pinturaimaculada no oferece, porm, a menor distrao ao olhar.

    Depois de servir os hors-d'oeuvre e abstendo-se de mudar o prato intil do conviva ausente, o copeiro retorna de novo pela porta aberta da copa, trazendo nasmos um grande prato fundo. A... nem mesmo se volta para lanar-lhe seu olhar de don

    a-de-casa. sua direita, sem nada dizer, o copeiro coloca o prato sobre a toalhabranca. Contm um pur amarelado, provavelmente de inhame, do qual se eleva uma levelinha de vapor, que de sbito se curva, espalha-se, evapora sem deixar trao,para reaparecer logo depois, longa, fina e vertical, por sobre a mesa.

    No meio desta j est um outro prato intacto, no qual, sobre um fundo de molhomarrom-escuro, esto enfileiradas, uma ao lado da outra, trs aves assadas, depequeno formato.

    O copeiro retirou-se, silencioso como de costume. A..., de repente, decidedeixar a parede nua e examina sucessivamente os dois pratos, sua direita e suafrente. Depois de apanhar a colher adequada, ela se serve, com gestos medidos eprecisos: a menor das trs aves, depois um pouco de pur. Em seguida, toma o prato

    que est sua direita e o coloca esquerda; a colher grande ficou l dentro.

    Ela comea, em seu prato, um meticuloso exerccio de cortar. Apesar da pequenezdo objeto, como se se tratasse de uma demonstrao de anatomia, ela separa osmembros, corta o corpo nos pontos de articulao, separa a carne dos ossos com a ponta da faca, segurando os pedaos com o garfo, sem apoiar de uma s vez, sem mesmoter o ar de quem realiza um trabalho difcil ou pouco habitual. verdade que essasaves so freqentes no cardpio.

    Ao terminar, ela levanta a cabea e fica imvel de novo, enquanto o copeiro ret

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    ira os pratos com os pequenos ossos marrons, depois os dois pratos, dos quaisum contm ainda a terceira ave assada, a que era destinada a Franck.

    O prato deste permanece em seu estado primitivo at o fim da refeio. Sem dvile ficou retido, como no raro, por algum incidente ocorrido em sua fazenda,pois no teria perdido este almoo por uma indisposio eventual da mulher ou do fil

    Embora seja pouco provvel que o convidado venha agora, talvez A... espere ainda o rudo de um veculo descendo a ladeira depois da estrada principal. Mas pelasjanelas da sala de refeies, das quais pelo menos uma est semi-aberta, no chega nm ronco de motor, nem qualquer outro barulho, a essa hora do dia em que todo

    o trabalho se interrompe e em que os animais se calam, com o calor.A janela do canto tem as duas folhas abertas em parte, porm. A da direita es

    t apenas entreaberta, de tal modo que oculta ainda sensivelmente a metade do voda janela. A da esquerda, ao contrrio, est empurrada para trs at a parede, mas nalmente: quase no se distancia, na realidade, da perpendicular ao planodo caixilho. A janela apresenta, assim, trs partes da mesma altura que so de largura aproximada: no meio da abertura, e de cada lado, uma parte envidraada, compreendendotrs vidraas. Numa, como nas outras, esto enquadrados os fragmentos da mesma paisam: o ptio pedregoso e a massa verde das bananeiras.

    Os vidros esto perfeitamente limpos e, no da direita, a disposio das linhas

    vemente modificada pelos defeitos, que do apenas certos matizes movedioss superfcies demasiado uniformes. Mas no vidro da esquerda, mais escuro embora mais brilhante, a imagem refletida francamente deformada, manchas verdes circularesou em forma de crescente, da cor das bananeiras, passeiam no meio do ptio, na frente dos barraces.

    O grande sed azul de Franck, que acaba de estacionar ali, est tambm envolvidpor um desses anis mveis de folhagem, bem como, agora, o vestido branco deA..., a primeira a descer do carro.

    Ela se inclina para a porta fechada. Se o vidro foi abaixado - o que provvel- A... pode ter introduzido o rosto na abertura por cima dos assentos. Corre

    o risco de, ao se erguer, desmanchar o penteado contra as beiradas do teto do carro e de ver seus cabelos, que poderiam desmanchar-se ainda mais facilmente porteremsido lavados h pouco, derramarem-se sobre o motorista, que ficou ao volante.

    Mas ela se afasta inclume do carro azul, cujo motor que continua ligado enche agora o ptio com um ronco mais intenso e, depois de um ltimo olhar para trs,se dirige sozinha, com seu passo firme, para a porta central da casa, que abre diretamente para a sala grande.

    Em frente a essa porta comea o corredor, sem qualquer separao do salo-sala efeies. De cada lado desse corredor sucedem-se portas laterais; a ltima esquerda, a do escritrio, no est totalmente fechada. A folha da porta gira sem

    er nas dobradias bem lubrificadas; ela retoma em seguida sua posio inicial,com a mesma discrio.

    No outro extremo da casa, a porta de entrada, manejada com menos cautela, abriu-se e depois se fechou; em seguida o rudo leve, mas claro, dos saltos altossobre o ladrilho atravessa a pea principal e se aproxima pelo corredor.

    Os passos detm-se porta do escritrio, mas a outra, que lhe fronteira, dcesso ao quarto, que aberta e depois fechada.

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    Posicionadas de maneira simtrica em relao s do quarto, as trs janelas do eo esto, nessa hora, com as suas gelosias fechadas em mais da metade.O escritrio est assim mergulhado numa luz difusa que tira todo o relevo das coisas. As linhas so, porm, bem ntidas, mas a sucesso de planos no d mais nenhumaimpresso de profundidade, de modo que as mos se estendem instintivamente para a frente do corpo, para reconhecer as distncias com maior segurana.

    Felizmente, o aposento no est muito cheio: arquivos e prateleiras contra as paredes, algumas cadeiras e por fim a macia mesa de gavetas que ocupa toda aregio compreendida entre as duas janelas que do para o sul, das quais uma - a da direita, a mais prxima do corredor - permite observar, pelas frestas oblquas

    entre as lminas de madeira, um corte da mesa e das cadeiras, na varanda, em riscas luminosas paralelas.

    Num canto da escrivaninha h uma pequena moldura incrustada de ncar, com uma fotografia tirada por um ambulante quando das primeiras frias na Europa, apsa estada na frica.

    Frente fachada de um grande caf de estilo moderno, A... est sentada numa caira complicada, metlica, cujos descansos de braos e o espaldar, de espiraisem arco, parecem menos confortveis que espetaculares. Mas A..., em seu jeito de se sentar nessa cadeira, mostra como de hbito muita naturalidade, evidentementesem o menor relaxamento.

    Ela voltou-se um pouco para sorrir para o fotgrafo, como se o autorizasse atirar esse instantneo. Seu brao nu, ao mesmo tempo, no modificou o gesto quefazia para descansar o copo na mesa, ao lado dela.

    Mas no foi com a finalidade de colocar gelo, pois ela no toca o balde de metal brilhante, que logo se cobre de vapor.

    Imvel, ela olha para o vale, frente deles. Ela se cala. Franck, invisvel erda, tambm se cala. possvel que ela tenha ouvido um rudo anormal, ssuas costas, e que se prepare para algum movimento sem premeditao perceptvel, quehe permita olhar por acaso em direo gelosia.

    A janela que d para o leste, do outro lado da mesa do escritrio, no uma sim

    s janela, com a abertura correspondente, no quarto, mas uma porta que permitesair diretamente na varanda sem passar pelo corredor.

    Essa parte da varanda batida pelo sol da manh, o nico do qual ningum procuroteger-se. No ar quase fresco que se segue ao amanhecer, o canto dos pssarossubstitui o dos grilos noturnos, e a ele se assemelha, embora mais desigual, embelezado de tempos em tempos por outros sons um pouco mais musicais.

    Quanto aos pssaros, no se mostram mais do que os grilos, ficando escondidos sob os penachos de grandes folhas verdes, volta de toda a casa.

    Na rea de terra nua que separa a casa das bananeiras, e onde se erguem a intervalos iguais as laranjeiras novas - hastes magras enfeitadas de uma folhagem

    esparsa de cor escura -, o cho cintila com numerosas teias carregadas de orvalho,que aranhas minsculas teceram entre os torres, depois do trabalho.

    direita, essa ponta de varanda chega extremidade do salo. Mas sempre ao ivre, frente fachada do sul - de onde se domina todo o vale que servidoo caf matinal. Na mesa baixa, junto da nica poltrona trazida pelo copeiro, j estspostas a cafeteira e a xcara. A... ainda no se levantou, a essa hora.As janelas de seu quarto ainda esto fechadas.

    Bem no fundo do vale, sobre a ponte de troncos que atravessa o riacho, h um

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    homem ajoelhado, voltado para a vertente. um nativo, vestido com uma cala azule uma camiseta, sem cor, que lhe deixa os ombros a descoberto. Est inclinado paraa superfcie lquida, com se procurasse ver alguma coisa na gua barrenta.

    frente dele, na outra margem, estende-se uma faixa de terra em forma de trapzio, recurvada do lado da gua, onde todas as bananeiras foram colhidas em datamais ou menos recente. fcil contar os cepos, os troncos abatidos para o corte deixando lugar a um curto toco terminado por uma cicatriz em forma de disco, brancaou amarelada, dependendo de seu estado de frescor. Sua contagem por fileira d, daesquerda para a direita: vinte e trs, vinte e dois, vinte e dois, vinte e um,

    vinte e um, vinte e um, vinte, vinte, etc.Bem ao lado de cada disco branco, mas em direes variadas, nasceu o broto subs

    titutivo. Dependendo da precocidade do primeiro cacho, essa nova bananeira temagora entre cinqenta centmetros e um metro de altura.

    A... acaba de trazer os copos, as duas garrafas e o balde de gelo. Ela comeaa servir: o conhaque nos trs copos, depois a gua mineral, por fim trs cubosde gelo transparente que encerram em seu corao um feixe de agulhas prateadas.

    - Partimos bem cedo - diz Franck.

    - A que horas?

    - s seis, se voc quiser.

    - Oh!

    - Ficou assustada?

    - No. - Ela ri, em seguida, depois de um silncio: - Pelo contrrio, muito dtido.

    Bebem em pequenos goles.

    - Se tudo correr bem - diz Franck -, poderemos estar na cidade l pelas dez h

    oras e ter ainda bastante tempo antes do almoo.

    - Sem dvida, tambm prefiro assim - diz A...

    Eles bebem em pequenos goles.

    Em seguida falam de outra coisa. Terminaram agora, tanto um como a outra, aleitura desse livro que os ocupa h algum tempo; seus comentrios podem portantofazer-se sobre o conjunto do livro: isto , ao mesmo tempo sobre o fim e sobre antigos episdios (assuntos de conversas passadas) que esse final esclarece de umngulo novo, ou aos quais acrescenta uma significao complementar.

    Nunca fizeram sobre o livro o menor juzo de valor, falando pelo contrrio dos

    lugares, dos acontecimentos, das personagens, como se se tratasse de coisas reais:um lugar de que se recordassem (situado, alis, na frica), pessoas que teriam conhecido, ou cuja histria lhes tivesse sido contada. As conversas, entre eles, seabstiveram sempre de discutir a verossimilhana, a coerncia, ou qualquer qualidadeda narrativa. Em compensao, com freqncia censuram aos prprios heris certosatos, ou certos traos de carter, como o fariam em relao a amigos comuns.

    Por vezes, deploram tambm os acasos da intriga, dizendo que "isso no aconteceria", e constrem ento um outro desenvolvimeno provvel, a partir de uma hiptese

  • 5/22/2018 Alain Robbe-Grillet - O Ci me

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    nova, "se isso no tivesse acontecido". Outras bifurcaes possveis surgem, em meio sse caminho, e que levam todas a fins diferentes. As variantes so muitonumerosas; as variantes das variantes, ainda mais. Parecem mesmo multiplic-las vontade, trocando sorrisos, entusiasmando-se com a brincadeira, sem dvida um poucoembriagados com essa proliferao...

    - Mas, por infelicidade, ele voltou mais cedo justamente naquele dia, o queningum podia prever.

    Franck varre assim, de um s golpe, as fices que construram juntos. De nada nta fazer suposies contrrias, pois as coisas so como so: no se modifica

    nada da realidade.Bebem em pequenos goles. Nos trs copos, os pedaos de gelo agora desapareceram

    completamente. Franck examina o que resta do lquido dourado, no fundo do seu.Inclina-o para um lado, depois para o outro, divertindo-se em soltar as pequenasbolhas coladas ao vidro do copo.

    - No obstante - diz ele -, tudo comeou bem. - Volta-se para A... para tom-laor testemunha: - Partimos hora prevista e viajamos sem incidentes. Mal eramdez horas quando chegamos cidade.

    Franck parou. A... fala, como para estimullo a continuar: - E voc no tinha nado nada de anormal, no foi, durante toda a viagem?

    - Nada, absolutamente nada. De certa forma, teria sido melhor que o defeitoaparecesse logo de sada, antes do almoo. No durante a viagem, mas na cidade,antes do almoo. Isso me teria criado problemas para algumas de minhas compras, umpouco distantes do centro, mas pelo menos eu teria tido tempo de procurar umaoficina para fazer o conserto na parte da tarde.

    - Pois afinal no era nada srio - explicita A..., com um ar interrogativo.

    - No, absolutamente.

    Franck olha o copo. Ao final de um silncio bastante prolongado, e embora ningum lhe tenha perguntado qualquer coisa desta vez, ele continua suas explicaes:

    - No momento de comearmos a viagem de volta, depois do jantar, o motor no quis mais pegar. Era muito tarde, evidentemente, para tentar qualquer coisa: todas asoficinas estavam fechadas. No nos restava seno esperar o dia seguinte.

    As frases se sucedem, cada qual em seu lugar, encadeando-se de maneira lgica. O relato medido, uniforme, assemelha-se cada vez mais ao de depoimentos na justia,ou de um recitativo.

    - Mesmo assim - diz A... -, voc pensou a princpio que poderia consertar sozinho. De qualquer modo, voc tentou. Mas voc no grande coisa como mecnico,no mesmo?

    Ela sorri ao pronunciar estas ltimas palavras. Eles se olham. Ele sorri, porsua vez. Depois, lentamente, o sorriso se transforma numa espcie de esgar. Ela,em compensao, conserva seu ar de serenidade divertida.

    No obstante, Franck est habituado a fazer consertos improvisados, pois seu caminho est sempre enguiando...

    - Sim - diz ele -, comeo a conhecer aquele motor. Mas o carro no me causa problemas com muita freqncia.

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    Na verdade, no deve ter havido nunca outro incidente com o grande sed azul, que quase novo.

    - Sempre tem de haver uma primeira vez - diz Franck.

    Depois, aps uma pausa: - Foi falta de sorte, justamente nesse dia...

    Um pequeno gesto da mo direita - uma subida seguida de uma descida mais lenta - acaba terminando no seu ponto de partida, sobre a tira de couro que constituio brao da poltrona. Franck tem um ar cansado; o sorriso no reapareceu desde o esga

    r de ainda h pouco. Seu corpo parece ter desabado no fundo da cadeira.- Falta de sorte, talvez, mas no um drama - recomea A... com um tom despreo

    pado, que contrasta com o de seu companheiro. - Se tivssemos algum meio deavisar, o atraso no teria nenhuma importncia. Mas com essas fazendas perdidas no meio do mato, o que se poderia fazer? De qualquer modo, foi melhor do que enguiarem plena estrada, no meio da noite!

    E foi melhor, tambm, do que um acidente. Trata-se apenas de um acaso sem conseqncias, uma aventura sem gravidade, um dos inconvenientes menores da vida nascolnias.

    - Acho que j vou - diz Franck. Detivera-se apenas de passagem, para deixar A

    ... No quer atrasar-se ainda mais. Christiane deve estar preocupada com o quepode ter acontecido e Franck tem muita pressa em tranqiliz-la. Ele levanta-se da cadeira, com um sbito vigor, e coloca sobre a mesa baixa o copo que esvazioude um gole.

    - Adeus - diz A..., sem deixar sua poltrona -, e muito obrigada.

    Franck esboa um movimento com o brao, sinal convencional de protesto. A... insiste: - Claro que sim! H dois dias que eu estou lhe dando trabalho.

    - Pelo contrrio, estou desolado de lhe haver imposto uma noite naquele hotelhorrvel.

    D dois passos, pra antes de tomar o corredor que atravessa a casa, e volta-seum pouco: - E perdoe-me por ser um mecnico to incompetente.

    O mesmo sorriso forado, embora mais rpido, passa-lhe pelos lbios. Ele desapace no interior da casa.

    Seus passos ressoam nos ladrilhos do corredor. Ele usava hoje sapatos de sola de couro, com seu terno branco, amarrotado pela viagem.

    Quando a porta de entrada, do outro lado da casa, se abriu e depois se fechou, A... por sua vez se levanta e deixa a varanda, pela mesma sada. Mas entra imediatamenteno quarto, cuja porta fecha com o trinco atrs de si, fazendo bater a lingeta. No p

    io, frente da fachada norte, o barulho de um motor que posto em movimento seguido logo pelo rudo, semelhante a um lamento agudo, de uma partida demasiado rida. Franck no disse que tipo de conserto foi preciso fazer no carro.

    A... fecha as janelas do quarto que ficaram escancaradas toda a manh, baixauma aps outra as gelosias. Vai mudar de roupa; e tomar uma ducha, sem dvida,depois da longa viagem que acaba de fazer.

    O banheiro se comunica diretamente com o quarto. Uma segunda porta d para ocorredor; o trinco passado pelo lado de dentro, com um gesto decidido que faz

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    bater a lingeta.

    A pea seguinte, sempre do mesmo lado do corredor, um quarto, muito menor, que contm uma cama de solteiro. Dois metros adiante, o corredor termina na salade refeies.

    A mesa est posta para uma nica pessoa. Ser necessrio acrescentar o prato de .

    Na parede nua, a marca da lacraia esmagada ainda perfeitamente visvel. Nadadeve ter sido feito para apagar a mancha, com medo de estragar a bela pintura

    fosca, provavelmente no-lavvel.A mesa est posta para trs pessoas segundo a disposio habitual... Franck e A

    sentados em seus lugares, falam da viagem cidade que tm a inteno defazer juntos, na semana seguinte, ela para diversas compras, ele para informar-se sobre o novo caminho que pretende comprar.

    J marcaram a hora da partida, bem como a da volta, calcularam a durao aproximda dos trajetos, o tempo de que disporo para seus negcios, levando-se emconta o almoo e o jantar. No especificaram se tomaro essas refeies separadamentse voltaro a encontrar-se para faz-las juntos. Mas a questo praticamentedesnecessria, pois um nico restaurante oferece refeies decentes aos clientes de agem. natural portanto que eles voltem a encontrar-se, sobretudo noite,

    pois devem retomar a estrada logo depois. natural igualmente que A... queira aproveitar-se da ocasio para ir cidade,

    ue prefira essa soluo ao caminho carregado de bananas, quase impraticvelpara um percurso to longo, que prefira, alm disso, a companhia de Franck de um morista nativo qualquer, por maiores que sejam as qualidades de mecnico porela atribudas a este ltimo. Quanto s outras circunstncias que lhe permitem fazer ercurso em condies aceitveis, so incontestavelmente pouco freqentes,excepcionais mesmo, ou inexistentes, a menos que razes srias justifiquem uma exigia categrica de sua parte, o que perturba sempre, mais ou menos, o bom andamentoda fazenda.

    Ela nada pediu desta vez, nem indicou a natureza exata das compras que prov

    ocavam seu deslocamento. No havia nenhuma razo especial a mencionar, desde quesurgia a possibilidade de um carro amigo que a pegaria em casa e a traria de volta na mesma noite. O mais surpreendente, pensando bem, que uma ocasio semelhantej no se tivesse apresentado antes, algum dia.

    Franck come sem falar h alguns minutos. A..., cujo prato est vazio, com o gfo e a faca colocados em cima, lado a lado, que retoma a conversao, pedindonotcias de Christiane, a quem o cansao (devido ao calor, acredita ela) impediu vrs vezes de vir com o marido, nestes ltimos tempos.

    - Sempre a mesma coisa - responde Franck.

    - Sugeri que fosse at o porto conosco, para refrescar as idias. Mas ela no qu

    s, por causa da criana.

    - Sem falar - observa A... - que faz certamente mais calor no litoral.

    - mais pesado, sim - concorda Franck. Cinco ou seis frases so trocadas ento obre as doses respectivas de quinino necessrias l embaixo e aqui. Depois,Franck volta aos efeitos prejudiciais que o quinino produz na herona do romance africano que esto lendo. A conversa levada assim s peripcias centrais da histriem questo.

  • 5/22/2018 Alain Robbe-Grillet - O Ci me

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    Do outro lado da janela fechada, no ptio empoeirado onde o calamento desigualdeixa aflorar zonas de seixos, a caminhonete tem a sua frente voltada para acasa. Excetuando isso, ela estaciona exatamente no lugar determinado: isto , elaenquadrou-se nos vidros inferior e mdio da folha direita da janela, contra o montanteinterno, com a pequena madeira da vidraa cortando horizontalmente sua silhueta emduas massas de importncia igual.

    Pela porta da copa, A... entra na sala de refeies, dirigindo-se para a mesa servida. Deu a volta pela varanda, a fim de falar de passagem com o cozinheiro,cuja voz cantante e loquaz soou apenas um instante atrs.

    A... trocou totalmente de roupa depois de ter tomado a sua ducha. Vestiu ovestido claro, muito justo, que Christiane acha que no convm ao clima tropical.Vai sentar-se em seu lugar, de costas para a janela, diante de um prato intacto,que o copeiro colocou para ela. Desdobra o guardanapo sobre o colo e comea a servir-se,levantando com a mo esquerda a tampa da travessa ainda quente, j atacada durante sua permanncia no banheiro, mas que ficou no centro da mesa.

    Ela diz: - A viagem me deu fome.

    Pergunta em seguida sobre os acontecimentos eventualmente ocorridos na fazenda durante sua ausncia. A frmula que emprega (o que h "de novo") pronunciada

    com um tom ligeiro, cuja animao no simula qualquer ateno particular. Alm do quda de novo.

    A... porm parece ter uma inusitada vontade de falar. Ela tem a impresso - diz- de que deveriam ter acontecido muitas coisas durante esse lapso de tempo,que, de sua parte, foi muito movimentado.

    Tambm na fazenda esse tempo foi bem empregado; mas no se tratou seno da seqprevisvel dos trabalhos em curso, que so sempre idnticos, com poucavariao.

    Ela mesma, interrogada sobre as notcias que traz, limita-se a quatro ou cinco informaes j conhecidas: a pista continua em reparos numa dezena de quilmetros

    depois da primeira aldeia, o Cap Saint-Jean estava atracado no cais esperando sua carga, os trabalhos do novo posto quase no progrediram desde mais de trs meses,o servio municipal de estradas deixa sempre a desejar, etc...

    Torna a servir-se. Seria melhor colocar a caminhonete no barraco, sombra, pois ningum deve utiliz-la no incio da tarde. O vidro grosseiro da vidraa cortaa carroceria pela base, atrs da roda dianteira, com um recorte arredondado. Bem abaixo, isolado da massa principal por uma zona de terra pedregosa, um meio discode metal pintado refratado a mais de cinqenta centmetros de sua localizao realpea estranha pode, alm disso, ser deslocada vontade, mudar de formaao mesmo tempo que de dimenses: ela aumenta da direita para a esquerda, reduz-seno sentido inverso, torna-se crescente na parte baixa, transforma-se num crculo

    completo quando ganha altura, ou ento ganha uma franja (mas uma posio de durapequena, quase instantnea) com duas aurolas concntricas. Finalmente,com desvios bem maiores, ela se funde na superfcie matriz, ou desaparece, com umacontrao brusca.

    A... quer tentar ainda algumas palavras. Mas no descreve o quarto onde passou a noite, assunto pouco interessante, diz ela, voltando a cabea: todo mundo conheceesse hotel, seu desconforto e seus mosquiteiros remendados.

  • 5/22/2018 Alain Robbe-Grillet - O Ci me

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    nesse momento que ela v o escutgero na parede nua sua frente. com uma voztida, como para no assustar o animal, diz: - Uma lacraia!

    Franck levanta os olhos. Orientando-se em seguida pela direo indicada pelos olhos - que se tornaram fixos - de sua companheira, ele volta a cabea para ooutro lado.

    O animalzinho est imvel no meio da parede, bem visvel sobre a pintura clara, pesar da iluminao escassa. Franck, que nada disse, olha novamente para A...Depois levanta-se, sem rudo. A... est to imvel quanto o escutgero, enquanto ele roxima da parede, com o guardanapo enrolado na mo como uma bola.

    A mo de dedos afilados crispou-se sobre a toalha branca.

    Franck afasta o guardanapo da parede e, com o p, acaba de esmagar alguma coisa sobre o ladrilho, contra o rodap. E volta a sentar-se em seu lugar, direitado lampio que brilha s suas costas, no aparador.

    Quando passou na frente do lampio, sua sombra varreu a superfcie da mesa, quepor um instante cobriu totalmente. O copeiro faz ento sua entrada, pela portaaberta, e comea a tirar a mesa em silncio. A... pede-lhe, como de costume, que sirva o caf na varanda.

    Ela e Franck, sentados em suas poltronas, continuam a falar, sem seqncia, do

    dia que melhor conviria para a pequena viagem cidade, que projetaram desdea vspera.

    O assunto esgota-se logo. Seu interesse no diminui, mas no encontram mais nenhum elemento novo para aliment-lo. As frases tornam-se mais curtas e limitam-sea repetir, em sua maioria, fragmentos das frases pronunciadas durante estes doisltimos dias, ou anteriormente.

    Depois dos ltimos monosslabos, separados por silncios cada vez mais longos e ue acabam por no ser mais inteligveis, eles se deixam dominar totalmentepela noite.

    Formas vagas, indicadas apenas pela obscuridade menos densa de um vestido o

    u de uma camisa claros, esto sentados lado a lado, com o busto inclinado para trscontra o encosto da cadeira, os braos estendidos nos descansos, em torno dos quais fazem, de tempos em tempos, deslocamentos incertos, de pouca extenso, apenasesboados, e logo voltam ao ponto de partida, ou so ento talvez imaginrios.

    Os grilos calaram-se, tambm eles.

    Ouvem-se apenas, aqui e ali, o grito breve de algum carnvoro noturno, o zumbido sbito de um escaravelho, o choque de uma pequena xcara de porcelana que colocada na mesa baixa.

    Agora, a voz do segundo motorista que chega at esta parte central da varanda, vinda do lado dos barraces; ela canta uma msica nativa, de palavras incompreens

    is,ou mesmo sem palavras.

    Os barraces ficam do outro lado da casa, direita do grande ptio. A voz deveportanto, contornar, sob o telhado que cobre a varanda, todo o ngulo ocupadopelo escritrio, o que a enfraquece de maneira notvel, embora uma parte do som possa atravessar a prpria pea passando pelas gelosias (sobre a fachada sul e aempena leste).

    Mas uma voz que soa bem. Ela cheia e forte, embora num registro bastante ba

  • 5/22/2018 Alain Robbe-Grillet - O Ci me

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    ixo. Alm disso, canta de maneira fcil, passando com flexibilidade de uma notaa outra, depois calando-se de repente.

    Em virtude do carter peculiar desse gnero de melodias, difcil determinar scanto foi interrompido por uma razo fortuita - relacionada, por exemplo,com o trabalho manual que o cantor deve executar ao mesmo tempo - ou ento se a cano tinha ali o seu fim natural.

    Da mesma forma, quando ele reco