24
O TRIUNFO DO CIÚME: O PODER SOBERANO, O ESTADO DE EXCEÇÃO E A VIDA NUA EM “DOM CASMURRO” Bairon Oswaldo Vélez Escallón Resumo: O romance “Dom Casmurro” é para Capitu o que o Texto Crítica é para o “Dom Casmurro”. Evidentemente, os primeiros leitores de “Dom Casmurro” não tinham atingido um horizonte de interpretação capaz de dar conta do possível engano, ou auto-engano, oculto nas palavras do narrador. Este é o caso de uma fé crítica sustentada em “verdades”, uma insistência que não se deve somente à reverência social ou cultural dos leitores, senão a um potencial de sentido que está na obra e que se corresponde com uma estrutura do pensamento ocidental -que Giorgio Agamben descreve na forma da relação entre o poder soberano, o estado de exceção e a vida nua. O trabalho dá conta dessa hipótese pelo menos em três níveis: um, argumental, que procura a estrutura soberana no enredo romanesco; outro, social, que estabelece uma ligação com a forma da sociedade do Segundo Reinado; e, um último, histórico, que procura a forma da relação paradigmática num evento central da história brasileira que coincide com um ponto argumental importante. Finalmente, assinala-se (só isso), na relação entre voz e linguagem, e entre linguagem e espetáculo, na direção de uma explicação para a tradição crítica despregada desde a obra. Palavras-chave: Machado de Assis; Biopolítica; Estado de exceção; Crítica machadiana; Sociedade do Segundo Reinado. Adán, sé ave, Eva es nada. JUAN JOSÉ ARREOLA Palindroma …Mi mente trabajada no puede más, siguiendo las curvas del palindroma de cristal. ¿Eres un cisne que se hunde el cuello en el pecho y se atraviesa para abrir el pico por la cola? Me emborracho mentalmente gota a gota con la clepsidra que llueve lentamente sus monosílabos de espacio y tiempo. Mojo la pluma en ese falso tintero y escribo sin mano una por una las definiciones inútiles: signo de interrogación estatuaria. Trompa gigante de Falopio. Corno de caza que me da el toque de atención al silencio, cuerno de la abundancia vacía, cornucopia rebosante de nada…Víscera dura que desdice la vida diciendo soy útero y falo, la boca que dice estas cosas: soy tu yo de narciso inclinado a su lirio, tu dentro y tu fuera abierto y cerrado, tu liberación y tu cárcel, no bajes los ojos, ¡Mírame! Pero ya no puedo mirar porque la cabeza se me fue a las entrañas.[…] Por ahora empuño la botella de Klein. La empuñas pero no la empinas. ¿Cómo puedo beber al revés? Tienes miedo en pie como falso suicida, jugando metafísico el peligroso juguete en tus manos, revólver de vidrio y vaso de veneno…Porque tienes miedo de beberte hasta el fondo, miedo de saber a qué sabe tu muerte, mientras te crece en la boca el sabor, la sal del dormido que reside en la tierra… JUAN JOSÉ ARREOLA “Botella de Klein” Palindroma

O TRIUNFO DO CIME triunfo do ciúme... · 2017. 5. 13. · O TRIUNFO DO CIÚME: O PODER SOBERANO, O ESTADO DE EXCEÇÃO E A VIDA NUA EM “DOM CASMURRO” Bairon Oswaldo Vélez Escallón

  • Upload
    others

  • View
    3

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: O TRIUNFO DO CIME triunfo do ciúme... · 2017. 5. 13. · O TRIUNFO DO CIÚME: O PODER SOBERANO, O ESTADO DE EXCEÇÃO E A VIDA NUA EM “DOM CASMURRO” Bairon Oswaldo Vélez Escallón

O TRIUNFO DO CIÚME: O PODER SOBERANO, O ESTADO DE EXCEÇÃO E A VIDA NUA EM “DOM CASMURRO”

Bairon Oswaldo Vélez Escallón

Resumo: O romance “Dom Casmurro” é para Capitu o que o Texto Crítica é para o “Dom Casmurro”. Evidentemente, os primeiros leitores de “Dom Casmurro” não tinham atingido um horizonte de interpretação capaz de dar conta do possível engano, ou auto-engano, oculto nas palavras do narrador. Este é o caso de uma fé crítica sustentada em “verdades”, uma insistência que não se deve somente à reverência social ou cultural dos leitores, senão a um potencial de sentido que está na obra e que se corresponde com uma estrutura do pensamento ocidental -que Giorgio Agamben descreve na forma da relação entre o poder soberano, o estado de exceção e a vida nua. O trabalho dá conta dessa hipótese pelo menos em três níveis: um, argumental, que procura a estrutura soberana no enredo romanesco; outro, social, que estabelece uma ligação com a forma da sociedade do Segundo Reinado; e, um último, histórico, que procura a forma da relação paradigmática num evento central da história brasileira que coincide com um ponto argumental importante. Finalmente, assinala-se (só isso), na relação entre voz e linguagem, e entre linguagem e espetáculo, na direção de uma explicação para a tradição crítica despregada desde a obra. Palavras-chave: Machado de Assis; Biopolítica; Estado de exceção; Crítica machadiana; Sociedade do Segundo Reinado.

Adán, sé ave, Eva es nada.

JUAN JOSÉ ARREOLA Palindroma

…Mi mente trabajada no puede más, siguiendo las curvas del palindroma de cristal. ¿Eres un cisne que se hunde el cuello en el pecho y se atraviesa para abrir el pico por la cola? Me emborracho mentalmente gota a gota con la clepsidra que llueve lentamente sus monosílabos de espacio y tiempo. Mojo la pluma en ese falso tintero y escribo sin mano una por una las definiciones inútiles: signo de interrogación estatuaria. Trompa gigante de Falopio. Corno de caza que me da el toque de atención al silencio, cuerno de la abundancia vacía, cornucopia rebosante de nada…Víscera dura que desdice la vida diciendo soy útero y falo, la boca que dice estas cosas: soy tu yo de narciso inclinado a su lirio, tu dentro y tu fuera abierto y cerrado, tu liberación y tu cárcel, no bajes los ojos, ¡Mírame! Pero ya no puedo mirar porque la cabeza se me fue a las entrañas.[…]

Por ahora empuño la botella de Klein. La empuñas pero no la empinas. ¿Cómo puedo beber al revés? Tienes miedo en pie como falso suicida, jugando metafísico el peligroso juguete en tus manos, revólver de vidrio y vaso de veneno…Porque tienes miedo de beberte hasta el fondo, miedo de saber a qué sabe tu muerte, mientras te crece en la boca el sabor, la sal del dormido que reside en la tierra…

JUAN JOSÉ ARREOLA “Botella de Klein”

Palindroma

Page 2: O TRIUNFO DO CIME triunfo do ciúme... · 2017. 5. 13. · O TRIUNFO DO CIÚME: O PODER SOBERANO, O ESTADO DE EXCEÇÃO E A VIDA NUA EM “DOM CASMURRO” Bairon Oswaldo Vélez Escallón

Mario de Andrade, num artigo de 1939, lê Machado de Assis como um

“representante dos interesses burgueses do Segundo Reinado” (1974, p. 91). Logo após

esta valoração, o escritor modernista passa a reconhecer a genial “figura do Mestre”,

apesar de todas aquelas coisas que ele não foi. Assim, Machado teria traído bastante a

realidade brasileira, sendo o “anti-mulato” arianizado, um “anti-proletário” que adotou a

tradição inglesa, via Sterne, abandonando a francesa: “caminho natural para nos

libertarmos da prisão Lusa”; também, “contra a própria vontade”, o Machado teria

escrito numa língua que já não era a portuguesa de Portugal, mas brasileira, fazendo

uma contribuição de acaso à cultura nacional, quase sempre de signo negativo. Andrade

termina não concedendo as batatas ao vencedor social Machado e, com tremor da pena

na mão, dando-lhe sua admiração, mas não seu amor (p. 103-108). Acredito que esta

leitura deve muito a uma interpretação corriqueira nos primeiros tempos da recepção do

romance machadiano e que no mesmo texto do Mario faz uma fugaz aparição:

Na obra de Machado de Assis as mulheres são piores que os homens, mais perversas. Não que os homens sejam bons, está claro, mas são mais animais, se posso me exprimir assim, mais espontâneos. As mulheres não: há em quase todas elas uma inteligência mais ativa, mais calculista; há uma dobrez, uma perversidade e uma perversão em disponibilidade, prontas sempre a entrar em ação. [...] As mulheres dominam a vida do homem, que sofre e se torna um destino nas mãos femininas.(p. 93). A referência a Dom Casmurro (1899) no trecho é mais que evidente quando

colocada lado a lado com a leitura de Alfredo Pujol, publicada em 1917:

É um livro cruel. Bento Santiago, alma cândida e boa, submissa e confiante, feita para o sacrifício e para a ternura, ama desde criança a sua deliciosa vizinha, Capitolina –Capitu, como lhe chamavam em família. Esta Capitu é uma das mais belas e fortes criações de Machado de Assis. Ela traz o engano e a perfídia nos olhos cheios de sedução e de graça. Dissimulada por índole, a insídia é nela , por assim dizer, instintiva e tal vez, inconsciente. Bento Santiago, que a mãe queria fosse padre, consegue escapar ao destino que lhe preparavam, forma-se em direito e casa com a companheira de infância. Capitu o engana com o seu melhor amigo, e Bento Santiago vem a saber que não é seu o filho que presumia do casal. A traição da mulher torna-o cético e quase mau. (SCHWARZ, 1997, p.10-11).

Lúcia Miguel Pereira, em seu estudo biográfico Machado de Assis (1936), já

lança uma sombra sobre a indubitabilidade da traição, mas para terminar acreditando e

até deixando intacta a probidade de Bento, nas seguintes palavras:

Capitu, se traiu o marido, foi culpada – ou obedeceu a impulsos e hereditariedades ingovernáveis? É a pergunta que resume o livro. [...] há a idéia central de saber se

2

Page 3: O TRIUNFO DO CIME triunfo do ciúme... · 2017. 5. 13. · O TRIUNFO DO CIÚME: O PODER SOBERANO, O ESTADO DE EXCEÇÃO E A VIDA NUA EM “DOM CASMURRO” Bairon Oswaldo Vélez Escallón

Capitu foi uma hipócrita, ou uma vítima de impulsos instintivos. [...] [O drama] começa a se insinuar desde o principio, nos meneios de Capitu [...] felina, ondulante, cheia de manhas e recursos, já se revelava, desde então, mulher até a ponta dos dedos. (1955, p.237-240).

Hoje, todas estas leituras parecem-nos ultrapassadas, a fortuna crítica em torno a

Dom Casmurro, amplamente caracterizada por Roberto Schwarz (Cfr. 1997; 1999), faz

tempo teria superado a confiança no narrador Bento Santiago. No entanto, eu quase que

poderia afirmar que esta tradição crítica tem deixado fortes marcas em toda a produção

posterior e que, ainda sem partilhar as limitações e preconceitos (sociais, sexuais) do

Casmurro, se pode nutrir de uma estrutura de pensamento, certa lógica, que está

representada no romance com o intuito de desativar o prestígio corriqueiro da superfície

textual, da arrogância que, entanto detentor de poder, é afinal todo escritor.

Evidentemente, os primeiros leitores de Dom Casmurro não tinham atingido um

horizonte de interpretação capaz de dar conta do possível engano, ou auto-engano,

oculto nas palavras do narrador. Segundo John Gledson, isto aconteceu dada a

consistência e a partilha desse narrador com as limitações da sociedade que descreve e

que chega até o ponto de convencer não somente como pessoa verossímil, personagem,

senão até como porta-voz da verdade (Cfr. 1986, p. 19). Schwarz vai ainda mais longe e

encontra a razão daquele convencimento no “prestígio social e poético” de “um dos

tipos de elite mais queridos da ideologia brasileira”(1997, p. 9).

Aceito a teoria? Não sei... duvido um pouco... Acreditaria se hoje ainda não

fosse a atitude comum, após cem anos da morte do autor e de uma transformação do

tipo de elite tão profunda que é quase irreconhecível no seu rosto atual (sem prestígio

cultural nenhum), se nas reedições –mesmo populares1- da obra não continuasse se

repetindo a eterna e boba pergunta de se Capitu traiu ou não traiu o Bento Santiago.

Este é o caso de uma fé sustentada em “verdades”, de uma insistência que, acho, não se

deve somente à reverência social dos leitores –brasileiros, homens, católicos?- senão a

um potencial de sentido que está na obra e que se corresponde com uma estrutura do

pensamento ocidental (no qual, obviamente, também entram os críticos literários) que

Giorgio Agamben descreve na forma da relação entre o poder soberano, o estado de 1 A pergunta paira na totalidade do prefacio “O mistério de Capitu”, assinado por Mario de Almeida Lima, incluído na edição utilizada para o pressente trabalho.

3

Page 4: O TRIUNFO DO CIME triunfo do ciúme... · 2017. 5. 13. · O TRIUNFO DO CIÚME: O PODER SOBERANO, O ESTADO DE EXCEÇÃO E A VIDA NUA EM “DOM CASMURRO” Bairon Oswaldo Vélez Escallón

exceção e a vida nua. Neste trabalho tentarei uma leitura que dê conta de tal

correspondência e que, por se remeter á esfera do pessoal e da propriedade, tenho

denominado “O triunfo do ciúme”, reconhecendo, na verdade, uma tradição crítica que

inclui aos autores acima mencionados e uma sustentação forte em alguns poucos dos

conceitos elaborados pelo filósofo italiano.

**

Agamben inicia seu Homo sacer I: o poder soberano e a vida nua (2002),

falando da originaria distinção grega entre zoé e bíos, dois termos que exprimiam “o que

nós queremos dizer com a palavra vida” (p. 9). Porém, estes termos têm para os gregos

sentidos bem específicos, que são: “zoé, [...]o simples fato de viver comum a todos os

seres vivos (animais, homens ou deuses) e bíos [...] a forma ou maneira de viver própria

de um indivíduo ou de um grupo” (p. 9). Segundo Foucault, o homem permanece na

cultura ocidental “o que era para Aristóteles: um animal vivente [zoé] e, além disso,

capaz de existência política [bíos]; o homem moderno é um animal em cuja vida política

está em questão a sua vida de ser vivente” (p.11). De fato, o evento político fundamental

seria a politização da vida natural, a inserção da zoé na pólis. O caráter biopolítico do

poder dito soberano define-se precisamente por esta inserção na própria territorialidade

onde a zoé se transforma em bíos, é incluída no domínio social pela sua exclusão

enquanto vida natural. Para que isto seja assim, é precisa uma prévia determinação do

dever-ser da zoé na pólis, é dizer, em tanto que bíos. Esta exclusão inclusiva (exceptio) é

a forma na qual o vivente é politizado, capturado-fora e não simplesmente excluído da

“cidade dos homens”.

Esta estrutura reflete-se na “passagem da voz à linguagem”. Aristóteles, na

Política, define o homem como o “vivente que possui a linguagem”. A voz, sinal de dor

e de prazer, pertence também aos outros viventes, mas a linguagem é a forma como o

homem tolhe a própria voz e manifesta o justo e o injusto, o conveniente e o

inconveniente, o bem e o mal, “e a comunidade destas coisas faz a habitação da cidade”

(p. 15). A linguagem existe porque se mantém com a voz do animal na relação de uma

inclusão exclusiva: “A política existe porque o homem é o vivente que, na linguagem,

4

Page 5: O TRIUNFO DO CIME triunfo do ciúme... · 2017. 5. 13. · O TRIUNFO DO CIÚME: O PODER SOBERANO, O ESTADO DE EXCEÇÃO E A VIDA NUA EM “DOM CASMURRO” Bairon Oswaldo Vélez Escallón

separa e opõe a si a própria vida nua e, ao mesmo tempo, se mantém em relação com ela

em uma exclusão inclusiva” (p. 16).

Animal vivente e, além disso, capaz de existência política, possuidor de voz e,

além disso, de linguagem; o homem aparece, assim, como um além disso que toma sua

forma de um dentro-fora ou de um fora - dentro. Agamben encontra o paradigma desta

forma no homo sacer: “uma obscura figura do direito romano arcaico, na qual a vida

humana é incluída no ordenamento unicamente sob a forma de sua exclusão (ou seja, de

sua absoluta matabilidade)” (p. 16). O ordenamento captura-fora a vida nua somente

como uma excepcionalidade matável á regra do dever-ser e seu espaço político, situado

na origem à margem da territorialidade própria do soberano, é o estado de exceção. A

vida nua é aquilo que é banido, abandonado fora da lei que pressupõe toda ordem2. Em

poucas palavras, e marcando um ponto importante na presente reflexão, o poder

soberano funda-se na exclusão inclusiva, na declaração de excepcional3 da vida nua, no

seu a-bandono -posta em questão, perante a vida política, pela ação da linguagem.

Ora, como já antes disse, Dom Casmurro corresponde-se com esta estrutura, dá

forma à relação poder soberano-estado de exceção-vida nua. Trata-se de uma narrativa

cuja vigência não se pode esgotar nem numa leitura em chave ficcional da história

brasileira do Século XIX (Cfr. Gledson, 1986, p. 16-17); nem no “modelo reduzido da

sociedade brasileira”, de Schwarz (Cfr. 1997, p. 19); nem num problema de “olhar”

autoral ou de foco narrativo, como é a proposta de Alfredo Bosi (Cfr., 1999). Agora,

depois do intuito de glosa da teoria agambeniana do poder soberano, tentarei aqui uma

breve caracterização do romance que dê conta da hipótese principal proposta, pelo

menos em três níveis (obviamente entretecidos no texto de Machado): um, argumental,

que procura a estrutura soberana no enredo romanesco; outro, social, que estabelece

2 “A relação de exceção é uma relação de bando. Aquele que foi banido não é, na verdade, simplesmente posto fora da lei e indiferente a esta, mas é abandonado por ela, ou seja, exposto e colocado em risco no limiar em que vida e direito, externo e interno, se confundem. [...] A relação originaria da lei com a vida não é a aplicação, mas o Abandono. A potencia insuperável do nómos, a sua originária “forca de lei” é que ele mantém a vida em seu bando abandonando-a”. (Agamben, 2002, p.36). 3 “A definição schmittiana da soberania (“soberano é aquele que decide sobre o estado de exceção”) tornou-se um lugar comum, antes mesmo que se compreendesse o que, nela, estava verdadeiramente em questão, ou seja, nada menos que o conceito-limite da doutrina do Estado e do direito, no qual esta (visto que todo conceito-limite é sempre limite entre dois conceitos) confina com a esfera da vida e se confunde com ela”. (Agamben, 2002, 19).

5

Page 6: O TRIUNFO DO CIME triunfo do ciúme... · 2017. 5. 13. · O TRIUNFO DO CIÚME: O PODER SOBERANO, O ESTADO DE EXCEÇÃO E A VIDA NUA EM “DOM CASMURRO” Bairon Oswaldo Vélez Escallón

uma ligação com a forma da sociedade do Segundo Reinado; e, um último, histórico,

que procura a forma da relação paradigmática num evento central da história brasileira

que coincide com um ponto argumental importante. Finalmente, assinalarei (só isso), na

relação entre voz e linguagem, e entre linguagem e espetáculo, na direção de uma

explicação para a tradição crítica despregada desde a obra. Quando falo de três níveis e

de um finalmente, aclaro, não pretendo nem a legalização do texto sob uma leitura

supostamente definitiva, nem estabeleço uma ordem precisa de desenvolvimento.

Se é verdade que o romance dá forma à relação paradigmática acima

mencionada, e se alguma vez vou entrar nele, teria que poder fazê-lo por qualquer uma

das aberturas que o texto oferece. Vou escolher o capítulo IX- “A ÓPERA”. Este é um

dos trechos do romance comummente considerados como digressivos e, curiosamente,

pouco estudados. Este capítulo é evidentemente “crucial”, é pista e sintoma, mas não

somente no sentido de dar um depoimento inesperado sobre o caráter caprichoso ou

volúvel de Bento Santiago, senão até da totalidade e lógica que regem no romance.

Trata-se da exposição da teoria de que “A vida é uma ópera”, e insere-se num ponto em

que o narrador, após descrever sua situação enquanto tal, declara que “é tempo” de

continuar com o andamento de sua história, constantemente interrompida na descrição

das personagens principais. É uma digressão, uma nova interrupção, um fora que, no

entanto, inclui-se no corpo do romance, é capturado fora da sua ordem cronológica e

argumental pela declaração que de sua excepcionalidade dá o Casmurro, soberano do

livro, que por arbítrio pessoal “aceit[a] a teoria” (Machado de Assis, 2007, p.30) como

aplicável a seu caso.

A teoria, conta ele, lhe foi exposta por um conviva de mesa, Marcolini, velho

tenor italiano que “aqui [no Rio] viveu e morreu”, e é um pequeno relato que explica a

origem do mundo: Deus era o mestre do conservatório do céu e Satanás um dos seus

alunos sobressalentes que, dado seu gênio essencialmente trágico, não tolerava a música

doce e mística dos outros anjos, aprendizes como ele, nem sua “precedência [...] na

distribuição dos prêmios” Assim, tramou uma rebelião que foi abafada oportunamente e

ele expulso do conservatório. Mas não partiu sozinho: levou consigo um libreto de

ópera, escrito e repudiado por Deus “porque tal gênero de recreio era impróprio para sua

6

Page 7: O TRIUNFO DO CIME triunfo do ciúme... · 2017. 5. 13. · O TRIUNFO DO CIÚME: O PODER SOBERANO, O ESTADO DE EXCEÇÃO E A VIDA NUA EM “DOM CASMURRO” Bairon Oswaldo Vélez Escallón

eternidade”. Já no inferno, o banido compôs uma música para o poema manuscrito e

logo levou-a ante o mestre para ser aceito de novo e para demonstrar que sua valia

sempre foi superior à dos outros. O libreto é aceito com hesitação, o Padre “cansado e

cheio de misericórdia, consentiu em que a ópera fosse executada, mas fora do céu

[sublinhado meu]”, e sem ensaios prévios. Para o concerto é criado “um teatro especial,

este planeta”, com uma companhia inteira e todas as partes, “primárias e comprimárias,

coros e bailarinos”. A ópera e o teatro durarão até que este for “demolido por utilidade

astronômica”. Finalmente, o poeta e o músico dividem os direitos de autor (p. 27-30).

Até aqui, quantos dentros e foras (ou dentros-fora) tem nesse relato? Eu diria

que está cheio de limiares de indistinção entre os dois estados, de banimentos que

baseiam ordenamentos. Vamos ver quantos: o tenor velho “sempre que uma companhia

nova chegava da Europa, ia ao empresário e expunha-lhe todas as injustiças da terra e

do céu; o empresário cometia mais uma, e ele saía a bradar contra a iniqüidade” (p.27).

O estado do enunciador da teoria é: estrangeiro fora de sua terra, cantor sem trabalho,

tenor sem mais voz. Correspondentemente, o Diabo é anjo expulso, que pega um

manuscrito jogado fora e compõe uma música para ópera –arte intermédia, nem

totalmente drama, nem totalmente música- que é rejeitada primeiro e depois executada

neste planeta, um lugar fora do céu e do inferno, um perfeito estado de exceção

declarado pelo soberano celestial. Também é claro que este estado de exceção é o que

permite a criação do direito4, neste caso na divisão da autoria da peça.

O “fora do céu” tem a ver com a situação narrativa. Corresponde-se com a

reprodução do lar original da família Santiago (a casa da infância na Rua de Mata-

Cavalos) no Engenho Novo5 e com a escrita do livro, ambas empreendidas por Bento6.

Sob este aspecto, aparece o romance como a territorialidade da exceção: “Ora, como

4 “Na sua forma arquetípica, o estado de exceção é, portanto, o principio de toda localização jurídica, posto que somente ele abre o espaço em que a fixação de um certo ordenamento e de um determinado território se torna pela primeira vez possível”. (Agamben, 2002, p. 27). 5 “Poder-se-ia, sem dúvida, estudar em Dom Casmurro a relação isomórfica entre casa e romance, na medida em que uma reconstrução se sucede à outra”. (Santiago, 1978, p. 32, nota de rodapé 2). 6 O nome da personagem relaciona-o com São Bento de Nursia (480?-547?), ‘patriarca dos monges ocidentais’, quem, proveniente de família nobre, retirou-se como eremita numa cova para escapar da libertinagem da Roma da época. Logo, em qualidade de abade no mosteiro de Vicovaro, foi traído e quase envenenado pelos monges, que não suportavam a austeridade e o rigor do diretor. Segundo a tradição católica, Deus revelou-lhe a traição, salvando-o da morte.

7

Page 8: O TRIUNFO DO CIME triunfo do ciúme... · 2017. 5. 13. · O TRIUNFO DO CIÚME: O PODER SOBERANO, O ESTADO DE EXCEÇÃO E A VIDA NUA EM “DOM CASMURRO” Bairon Oswaldo Vélez Escallón

tudo cansa, esta monotonia acabou por exaurir-me também. Quis variar, e lembrou-me

escrever um livro” (p.18). Nem a casa de Mata-Cavalos nem a da Praia da Glória: casa

do Engenho Novo, fora dos céus da meninice e da felicidade conjugal, o novo engenho

é simulacro de vida, escrita, espetáculo, uma pura exterioridade chateada, referida a uma

interioridade: “Deste modo, viverei o que vivi, e assentarei a mão para obra de maior

tomo” (p.18). Também é esta a escrita de um livro cujo projeto é claramente secundário

perante aqueles outros de maior tomo: “Jurisprudência, filosofia e política”, e até uma

“História dos Subúrbios” (p. 17).

Agamben, num ensaio em que estuda um romance de Elsa Morante como

paródia (parà-oiden: ao lado do canto), conta como na música grega “originalmente a

melodia tinha que corresponder ao ritmo da palavra”. Assim, paródia designaria uma

separação entre canto e palavra, “a ruptura do nexo ‘natural’ entre a música e a

linguagem, a dissolução do canto pela palavra”. Este rompimento liberta um “parà, um

espaço ao lado, em que se instala a prosa” literária e que leva em si, então, consigo, uma

sinal daquela originaria separação, produziria um ruído involuntário, um “canto

obscuro” que é “um lamento pela música perdida, pelo desaparecimento do lugar

natural do canto” (Agamben, 2007, p. 39). Fora do céu: não mais epopéia7: lugar da

ausência do canto, “a ópera” também tem a ver com o caráter do livro enquanto

romance. A teoria do tenor Marcolini aclara que a dupla autoria e a falta de ensaio

“resultaram em alguns desconcertos”:

Com efeito, há lugares em que o verso vá para a direita e a música para a esquerda. Não falta quem diga que nisso mesmo está a beleza da composição, fugindo á monotonia, e assim explicam o terceto do Éden, a ária de Abel, os coros da guilhotina e da escravidão.[...] Também há obscuridades; o maestro abusa das massas corais, encobrindo muitas vezes o sentido por um modo confuso. (p.28). No entanto, na divisão das autorias, sabemos pela teoria que “Deus recebe em

ouro, Satanás em papel”. Num mundo em que “casar é comprar título de

propriedade”(Santiago, 1978, p. 33), em que o enterro do vizinho serve para visitar a

namorada e luzir na sege familiar, em que se prometem orações ao céu como se de

7 “Nem digas que nos faltam Homeros, pela causa apontada em Camões; não senhor, faltam-nos, é certo, mas é porque os Príamos procuram a sombra e o silêncio. As lágrimas, se as têm, são enxugadas atrás da porta, para que as caras apareçam limpas e serenas, os discursos são antes de alegria que de melancolia, e tudo passa como se Aquiles não matasse Heitor”. (Machado de Assis, 2007,p. 202).

8

Page 9: O TRIUNFO DO CIME triunfo do ciúme... · 2017. 5. 13. · O TRIUNFO DO CIÚME: O PODER SOBERANO, O ESTADO DE EXCEÇÃO E A VIDA NUA EM “DOM CASMURRO” Bairon Oswaldo Vélez Escallón

penhores sobre empréstimos se tratasse, e até em que a morte da mãe ou a impostura de

um órfão pobre se entrevêem como formas aceitas para escapar ao seminário; num

mundo da utilidade, afinal, em que a totalidade das coisas e das relações tomam forma

de mercadoria, é lógico que Deus apareça como “dono de tudo”8(p. 57), que se

reconheça nele a imagem e semelhança do proprietário, escritor-narrador e chefe de

família. O seguinte trecho –tirado também da teoria do tenor italiano- é mais claro sob

essa consideração:

[Os amigos de Deus]... Juram que o libreto foi sacrificado, que a partitura corrompeu o sentido da letra, e, posto seja bonita em alguns lugares e trabalhada com arte em outros, é absolutamente diversa e até contrária ao drama. O grotesco, por exemplo, não está no texto do poeta... (p. 29).

Essa música diversa e contrária -canto involuntário, obscuro e incluso grotesco-

é oportunamente eliminada do texto do poeta casmurro (ou, pelo menos, a intenção

existe), como se verá a seguir. Mas, antes, é preciso voltar ao capítulo I do romance,

“DO TÍTULO”, onde há um indicio indiscutível do caráter pessoalista e privado da

narração, aquilo que faz com que o deus escritor receba em ouro e não em papel. É a

explicação “do título” do livro. Num tom ameno, conta-se como, uma noite qualquer, o

distinto cavalheiro que narra encontra no trem um rapaz que entra a fala-lhe “da lua e

dos ministros”. Chateado, o cavalheiro cochila quando o maçante começa com a

recitação de versos (de luares e de amores?). Perante este gesto o poeta do trem fica

“amuado”, e ofendido alcunha de Dom Casmurro ao pouco cortês ouvinte. O apelido

pega entre os amigos e vizinhos, que entram a chamá-lo por esse nome. E ele também o

adota:

...não achei melhor título para a minha narração; se não tiver outra daqui até o fim do livro, vai este mesmo. O meu poeta do trem ficará sabendo que não lhe guardo rancor. E com pequeno esforço, sendo o título seu, poderá cuidar que a obra é sua. Há livros que apenas terão isso dos seus autores, alguns nem tanto. [sublinhado meu] (p.15-16). Aqui o trecho - além de ironizar a possibilidade do rapaz escrever o livro ou

roubá-lo, ou de ser um indício do desfecho ciumento (Cfr. Schwarz, 1997, p.38)- verte

todo o conteúdo e o sentido da narração no seu autor. Com efeito, o livro tinge-se do

8 José Dias diz que a família Santiago “abaixo de Deus [é] tudo”(p.23). Quando Capitu intima Bentinho para procurar a ajuda do agregado, também diz: “...mostre que há de vir a ser dono da casa, mostre que quer e que pode”(p.46). Logo, quando José Dias é cooptado pelo futuro herdeiro, aclara: “...Deus é dono de tudo”. (p. 57).

9

Page 10: O TRIUNFO DO CIME triunfo do ciúme... · 2017. 5. 13. · O TRIUNFO DO CIÚME: O PODER SOBERANO, O ESTADO DE EXCEÇÃO E A VIDA NUA EM “DOM CASMURRO” Bairon Oswaldo Vélez Escallón

caráter pessoal, da índole individual, de quem tão bem ficou batizado com a alcunha e

que se deixará todo na sua narração para que ela tenha tudo de si, para que seja ele e só

ele quem usufrua o ouro dos sentidos possíveis (Cfr. Schwarz, 1990, p. 20). Outros

livros nada têm de quem os escreve, mas este terá tudo: daí o título, daí a oportuna

citação de Montaigne: “Eu confessarei tudo o que importar à minha história. Montaigne

escreveu de si: ce ne sont pas mes gestes que j’escris; c’est moi, c’est mon

essence”(p.127).

Precisamente, para “receber em ouro”, o advogado e ex-seminarista (Cfr.

Santiago, 1978) não duvida do poder da Letra, da Escritura (com maiúsculas inicias, no

duplo sentido de Bíblia e oficio de escrever) em tanto que ferramenta habilmente

utilizada por quem melhor a detém. Arbítrio pessoal e competência cultural, forca e

Escritura, aparecem lado a lado em toda a extensão do romance. Assim, por exemplo, na

passagem - que lembra àquela de Casa velha em que o cônego usa seu conhecimento

livresco para ganhar a vontade do jovem proprietário Félix9- dos capítulos XXXVI e

XXXVII, em que Bento, perante a lembrança da negativa da Capitu adolescente ao

beijo, lamenta que então ainda não conhecesse “nada da Escritura”, “para dar à língua

mística do Cântico um sentido direto e natural”:

Então obedeceria ao primeiro versículo: ‘Aplique ele os lábios, dando-me o ósculo da sua boca’. E, pelo que respeita aos braços, que tinha inertes, bastaria cumprir o versículo 6° do capítulo II: ‘A sua mão esquerda se pôs, já debaixo da minha cabeça, e a sua mão direita me abraçará depois’. (p.76).

Um pouco mais por diante, quando a moça ainda resiste e a tentativa transforma-

se em “idéia com mãos”, a cena toma cores menos românticas:

Quis puxar as [mãos] de Capitu, para obrigá-la vir atrás delas. [...] Não imitava ninguém; não vivia com rapazes, que me ensinassem anedotas de amor. Não conhecia a violação de Lucrecia. Dos romanos apenas sabia que falavam pela artinha do padre Pereira e eram patrícios de Pôncio Pilatos. [...] Não conhecendo a lição do Cântico, não me acudiu estender a mão esquerda por baixo da cabeça dela... (p. 77).

9 O cônego mostra para Félix um exemplar da Storia Fiorentina, de Varchi, que contem um capítulo censurado que traz “o relato do estupro do jovem bispo de Fano por Píer Luigi de Farnese, filho do Papa Paulo III [...] Classificar isso de estupro homossexual é obviamente levar a coisa longe demais [...], mas é preciso entendê-lo num sentido mais ou menos metafórico, ainda mais se considerarmos que Félix é descrito como ‘subjugado’. O ciúme da ‘criatura espiritual e neutra’, como ele [o padre] descreve a si próprio, violenta a vida de Félix tão seguramente quanto a de Lalau”. (Gledson, 1999, p.18).

10

Page 11: O TRIUNFO DO CIME triunfo do ciúme... · 2017. 5. 13. · O TRIUNFO DO CIÚME: O PODER SOBERANO, O ESTADO DE EXCEÇÃO E A VIDA NUA EM “DOM CASMURRO” Bairon Oswaldo Vélez Escallón

Vê-se como, embora seja legítimo ler nestes recursos intelectuais –no caso, a

citação erudita- uma “cobertura cultural da opressão de classe” (Schwarz, 1997, p.13),

também são uma demarcação pessoalista e interesseira dos sentidos. O uso textual é

prerrogativa de quem faz do romance seu quintal e as obscuridades, os ruídos, não têm

cabimento nenhum. Afinando um procedimento já prenunciado em Memórias póstumas

de Brás Cubas, Bento tira trechos da Escritura e da história da escritura e “limpa os

óculos” do leitor de sujeiras incômodas, legalizando quase sempre uma leitura “direta e

natural”, é dizer literal, condizente com seu interesse de momento. Levando em conta

como distorce e violenta os sentidos dos textos originais, não surpreende aquela

passagem, no capítulo XLIV, em que, menino, Santiago sente que a palavra

“mentiroso”, riscada na areia com uma taquara por Capitu, “[o] espi[a] do chão com

gesto escarninho, [...] até [lhe] pareceu que repercutia no ar” (p. 90).

Como “...nada se emenda bem nos livros confusos, mas tudo se pode meter nos

livros omissos”, o Casmurro vai se dedicar a preencher as “lacunas alheias” com suas

interpretações próprias, geralmente aplicando-as a seu caso de amor-próprio (p.111).

Nessa linha, não hesita em propor a reforma de começar as peças dramáticas pelo fim:

“Otelo mataria a si e a Desdêmona no primeiro ato, os três seguintes seriam dados à

ação lenta e decrescente do ciúme e [no final, o leitor] [...] ia para a cama com uma boa

impressão de ternura e de amor” (p.133). Da mesma forma, quando Capitu o salva do

seminário conquistando o coração da sogra, transforma-se “naturalmente [n]o anjo da

Escritura”, enquanto ele vira Isaac e Dona Glória, Abraão (p. 143); na possibilidade de

solicitar a alforria de suas obrigações sacerdotais diretamente no Vaticano, Bento dá

valimento à Escritura “com o poder de desligar dado aos apóstolos” (p. 162). Também

converte a voz das bruxas de Macbeth na de sua fada pessoal e o “Tu serás rei,

Macbeth” em “Tu serás feliz, Bentinho” (p. 169); ouve, desmentindo por pouco a teoria

do Marcolini, a voz dos anjos em cântico aos seus esponsais e a de Pedro, recitando

para ele, desde o céu, alguns versículos da primeira epístola: “As mulheres sejam

sujeitas aos seus maridos...”(p. 171).

Perante a suspeita de que Capitu não se sujeitou ao seu poder de marido e o traiu

com Escobar, o Casmurro dá a razão a Otelo: ‘se o moro matou Desdêmona por um

11

Page 12: O TRIUNFO DO CIME triunfo do ciúme... · 2017. 5. 13. · O TRIUNFO DO CIÚME: O PODER SOBERANO, O ESTADO DE EXCEÇÃO E A VIDA NUA EM “DOM CASMURRO” Bairon Oswaldo Vélez Escallón

lencinho, o que eu vou fazer agora que “os lenços perderam-se[?] ; hoje são precisos os

próprios lençóis; algumas vezes nem lençóis há, e valem só as camisas. [...] O último

ato demonstrou-me que não eu, mas Capitu devia morrer” (p. 213). A “cocaína moral

dos bons livros” devêm, então, em defesa do direito do proprietário sobre a vida dos

seus dependentes, agora matáveis, sujeitos numa relação íntima entre Escritura,

Escravidão e poder de morte10. É o que ocorre com Ezequiel, o “filho do homem”, que

morre nas imediações de Jerusalém, não como Bento quer quando paga a viagem com o

secreto desejo de enviá-lo à lepra, senão de febre tifóide. Quando os amigos do filho

enviam uma carta com seu epitáfio, tirado também da Escritura: “Tu eras perfeito nos

teus caminhos”, o ciumento complementa “...desde o dia de tua criação”, e pergunta-se:

“Quando seria o dia da criação de Ezequiel?” (p. 227).

É clara, então, a ligação que em Dom Casmurro une texto e territorialidade, uso

e feição pessoal. O narrador usa os textos alheios com vistas a seu dever-ser intratextual,

é dizer, ao seu funcionamento dentro da própria história, cerca-os segundo sua

necessidade contingente colocando-lhes um sentido quase como arame farpado. Outras

leituras, referidas já não ao dever-ser senão ao ser mesmo dos eventos narrados e dos

textos convocados, são simplesmente eliminadas:

Como somente a decisão soberana sobre o estado de exceção abre o espaço no qual podem ser traçados confins entre o interno e o externo, e determinadas normas podem ser atribuídas a determinados territórios, assim somente a língua como pura potência de significar, retirando-se de toda concreta instancia de discurso, divide o lingüístico do não lingüístico e permite a abertura de âmbitos de discurso significantes, nos quais a certos termos correspondem certos denotados. A linguagem é o soberano que, em permanente estado de exceção, declara que não existe um fora da linguagem, que ela está sempre além se si mesma. [...] A pretensão de soberania da linguagem consistirá então na tentativa de fazer coincidir o sentido com a denotação, de estabelecer entre estes uma zona de indistinção, na qual a língua se mantém em relação com seus denotata abandonando-os, retirando-se destes em uma pura langue (o “estado de exceção” lingüístico). (Agamben, 2002, p33).

Os textos incluem-se no romance entanto que deixem fora seus sentidos

importunos. É uma relação, de novo, de inclusão-exclusão em que a territorialidade do 10 Alfredo Bosi caracteriza o intervalo dos anos 1830-1850 como o período de maior atividade do tráfico negreiro no Brasil. Em 1826, havia se firmado um acordo com a Inglaterra que fazia este tráfico formalmente ilegal e em 1831, uma Lei Regencial que o proibia no interior do território. Estas leis, feitas e assinadas ‘para inglês ver’, em que “As autoridades, a pesar de eventuais declarações em contrario, faziam vista grossa à pirataria de carne humana...”(2006, p. 196), mostram às claras a relação entre escritura e escravidão. Também Cfr. Silviano Santiago (1978,p.45).

12

Page 13: O TRIUNFO DO CIME triunfo do ciúme... · 2017. 5. 13. · O TRIUNFO DO CIÚME: O PODER SOBERANO, O ESTADO DE EXCEÇÃO E A VIDA NUA EM “DOM CASMURRO” Bairon Oswaldo Vélez Escallón

texto se define por tudo aquilo que é banido dele, posto além do confim. O jogo com

diversas autorias obedece à mesma estrutura da exceção soberana e serve para a

justificação ideológica do narrador. Segundo Alfredo Bosi a ideologia “compõe

retoricamente (isto é, em registros de persuasão) certas motivações particulares e as dá

como necessidades gerais, princípios abstratos ou razões de força maior”; “fixa cada

signo e cada idéia em seu devido lugar, fechando, sempre que pode, o universo do

sentido”; e presume, sempre, um conhecimento prévio dos objetos que descreve (Cfr.

2006, p. 194-195; 1995, p. 279,282). Como se viu antes, Bento poderia deixar a autoria

deste, seu livro, em qualquer um, até no poeta do trem; logo, no trecho da teoria do

tenor italiano, fala de uma possível disputa em torno à autoria das passagens grotescas

na ópera cósmica, entre Deus, o Diabo e Shakespeare (quem “evidentemente, é um

plagiário”) (p.29). mas, o capítulo decisivo sobre este jogo de autorias é o LV- “UM

SONETO”, em que Santiago deixa o primeiro e o último (capicua) versos de um poema

seu inconcluso “ao primeiro desocupado que os quiser” porque “os sonetos existem

feitos, como as odes e os dramas, e as demais obras de arte, por uma razão de ordem

metafísica” (p.106). Não importaria, portanto, que fossem outros os autores do livro ou

do poema, os resultados e os sentidos dariam na mesma coisa, revelariam uma verdade

“natural” e superior: o homem foi traído:

O resto é saber se a Capitu da Praia da Glória já estava dentro da de Mata-Cavalos, ou se esta foi mudada naquela por efeito de um caso incidente. [...] Mas eu creio que não, e tu concordarás comigo; se te lembras bem da Capitu menina, hás de reconhecer que uma estava dentro da outra, como a fruta dentro da casca. (p.228).

A decisão soberana de Bento é peremptória: Capitu estava dentro de si mesma.

Capitu... Capicua? A moca começa o romance com vestido de chita, sapato remendado

e fitas enxovalhadas nos cabelos, vira mulher abastada e volta, pelo menos no juízo do

Casmurro, a sua condição original. Nunca deixou de ser o que era ou, melhor, foi

sempre uma exterioridade referida a uma interioridade culpada11 e calculista, é igual.

11 “A chave desta captura da vida no direito é não a sanção [...] mas a culpa (não no sentido técnico que este conceito tem no direito penal, mas naquele original que indica um estado, um estar -em-débito: in culpa esse), ou seja, precisamente, o ser incluído através de uma exclusão, o estar em relação com algo do qual se foi excluído ou que não se pode assumir integralmente. A culpa não se refere à transgressão, ou seja, à determinação do lícito e do ilícito, mas à pura vigência da lei, ao seu simples referir-se a alguma coisa. [...] Nesta impossibilidade de decidir se é a culpa que fundamenta a norma ou a norma que introduz a culpa, emerge claramente à luz a indistinção entre externo e interno, entre vida e direito que caracteriza a decisão soberana sobre a exceção”. (Agamben, 2002, p.34).

13

Page 14: O TRIUNFO DO CIME triunfo do ciúme... · 2017. 5. 13. · O TRIUNFO DO CIÚME: O PODER SOBERANO, O ESTADO DE EXCEÇÃO E A VIDA NUA EM “DOM CASMURRO” Bairon Oswaldo Vélez Escallón

Capicua: de atividade passiva no amor, ficha chave na vida de Bentinho, libertação-

cárcere-libertação, pobre-rica-pobre. Capicua: Daí o amor do Escobar pelos números

11, 22, 484, “admire a beleza” (p. 160); daí também o sonho de Bento, em que o Pádua,

pai de Capitu, chora porque o belo e “triste bilhete de loteria” número 4004 não teve a

“sorte grande” (p.118-119). A dona desse nome tão bonito, que junto com o do mocinho

rico até completaria as vogais, não vai tirar a sorte grande, para isso está a lógica

implacável de quem narra: não vai dizer, como o seu pai, “vejam como esta moca me

quer” como prêmio pelo “bilhete comprado de sociedade” (p.26), senão: ‘se ela enganou

o pai, se disse para ele que estávamos jogando o siso quando, na verdade, andávamos de

namoro, é obvio que também vai me enganar’. A dissimulação, que serve para a jovem

se fazer atraente para o futuro herdeiro e entrar no âmbito da propriedade, é, ao mesmo

tempo, indício de sua perfídia (Cfr. Santiago, 1978). Da mesma forma, e na expressão

máxima do poder soberano: ela, para estar dentro, tem desde sempre que se manter fora

em relação consigo mesma, a de Mata-Cavalos dentro da da Glória mas entanto que

excluída, e seu atrativo tanto a traz para o “céu” do matrimônio quanto serve para baní-

la dele.

Manter-se em relação íntima com sua condição original, essa é a obrigação da

mulher. Para isso está o pregão do pretinho vendedor de cocadas:

Chora, menina, chora, Chora porque não tem, Vintém,

que deixava na garotinha “uma impressão aborrecida” (p.45), talvez por picar-lhe na

pobreza. Bento, ainda na meninice, pede para ela jurar “não esquecer mais aquele

pregão” e Capitu jura “estendendo tragicamente o braço” (p.189). Ele, para não

esquecer, faz com que um professor de música lhe escreva a partitura e, logo, após o

matrimônio, relembra para a esposa o juramento, a letra e a toada. A Capitu de Mata-

Cavalos é imprescindível para ele: a sujeição da esposa a seu marido depende da

possibilidade dela voltar à condição de sapatinho rachado, à casa com cadeiras lascadas

e fendas no chão. De novo a demarcação do sentido, a inclusão só mantida em tanto que

relacionada com a exclusão é o fundamento de soberania. Para o Casmurro manter seu

poder deve permanecer latente a possibilidade do exílio como a fruta dentro da casca.

14

Page 15: O TRIUNFO DO CIME triunfo do ciúme... · 2017. 5. 13. · O TRIUNFO DO CIÚME: O PODER SOBERANO, O ESTADO DE EXCEÇÃO E A VIDA NUA EM “DOM CASMURRO” Bairon Oswaldo Vélez Escallón

Isto faz com que a vida de Capitu se mantenha dentro do ordenamento, sempre

sob sua virtual expulsão. A condição do agregado também se rege segundo esta lógica.

José Dias, por exemplo, quem vive de favor na casa de Dona Glória, sabe “opinar

obedecendo” (p.22). Assim, sua liberdade está inteiramente condicionada pelo seu

reconhecimento da ‘última palavra’ dos donos, está num limiar de indistinção entre

dependência e autonomia em que “o antagonismo se desfaz em fumaça e os

incompatíveis saem de mãos dadas” (Schwarz, 1981, p. 17). José Dias, faz parte ou não

faz parte da família patriarcal? A resposta é simples: está incluído, até o ponto de que

Bentinho chora por sua morte, mas sob condição de seu não pertencimento. A

desobediência do agregado suporia sua expulsão do círculo da proteção, e ele se

mantém com esse estado numa relação de atenção permanente. É a razão pela qual José

Dias tenta fazer evidente o privilegio chamando o Pádua de “Tartaruga”, mostrando sua

vantagem sobre o vizinho apenas aspirante ao favor. A compensação imaginária do

parasita nutre-se da consideração de seu próprio valor pessoal (Cfr. Carvalho de Franco,

1997). , aquilo que faz com que ele receba “mais rápido” o favor do que seu oponente

de ocasião. Sua afirmação (como a do Diabo) procura-se no detrimento do outro, seu ser

define-se no não ser do pai de Capitu: daí a alcunha e a ironia de sua vinculação, através

do mote “Ele fere e cura” (p.42) com o paradoxo de Zenón de Elea em que Aquiles -de

pés alados, “rápido e lépido nos movimentos”, “de passo vagaroso”(p. 21)-, por muito

que corra, não vai vencer jamais à tartaruga que, no caso, chega à “precedência nos

prêmios” do favor via matrimonio, aos saltinhos, “pela ação do empenho, da palavra, da

persuasão lenta e diuturna...”, da filha: um anjo!

Capitu, José Dias, a prima Justina, Pádua, o Manduca, (talvez o próprio

Marcolini), pertencem a um segmento amplo da sociedade do Segundo Reinado.

Encontram-se num ponto em que, tanto as ideologias –aparentemente opostas- do

Liberalismo e do Escravismo12, quanto as classes sociais extremas dos escravos e dos

12 “No processo de sua afirmação histórica, a civilização burguesa postulara a autonomia da pessoa, a universalidade da lei, a cultura desinteressada, a remuneração objetiva, a ética do trabalho, etc. –contra as prerrogativas do Ancien Régime. O favor, ponto por ponto, pratica a dependência da pessoa, a exceção à regra, a cultura interessada, remuneração e serviços pessoais. [...] De modo que o confronto entre estes princípios tão antagônicos resultava desigual: no campo dos argumentos prevaleciam com facilidade, ou melhor, adotávamos sofregamente os que a burguesia européia tinha elaborado contra arbítrio e

15

Page 16: O TRIUNFO DO CIME triunfo do ciúme... · 2017. 5. 13. · O TRIUNFO DO CIÚME: O PODER SOBERANO, O ESTADO DE EXCEÇÃO E A VIDA NUA EM “DOM CASMURRO” Bairon Oswaldo Vélez Escallón

proprietários, tendem a sintetizar-se. Desta forma, e também na passagem histórica do

sistema produtivo brasileiro do regime de trabalho servil para o assalariado, esta

multidão de homens brancos “formalmente” livres toma sua feição dos extremos entre

os que vive e constitui um limiar paradoxal em que os opostos se encontram: excluídos

do sistema produtivo, livres da escravidão mas sem posses, sua subsistência depende do

reconhecimento do senhor de escravos. Seja no campo, em que recebem chácaras

alheias para produzir seu próprio sustento e cumprem, como camaradas, ofícios de

segurança; seja na cidade, onde vivem como moleques de recados ou de companhia, no

quarto dos fundos do quintal do dono, os agregados obtém sua “qualidade humana” no

mesmo instante em que ela é deposta:

O mesmo complexo que encerrava o reconhecimento, pelo senhor, da humanidade de seus dependentes trazia inerente a negação dessa mesma humanidade. O mesmo homem que, no cotidiano, recebia um tratamento nivelador, cujo ajustamento social se processava mediante a ativação de seus predicados morais, era efetivamente compelido a comportamentos automáticos, de onde o critério, o arbítrio e o juízo estavam completamente excluídos. [...] Para aquele que se encontra submetido ao domínio pessoal, inexistem marcas objetivadas do sistema de constrições a que sua existência está confinada, seu mundo é formalmente livre. Não é possível a descoberta de que sua vontade está presa à do superior, pois o processo de sujeição tem lugar como se fosse natural e espontâneo. [...] A dominação pessoal transforma aquele que a sofre numa criatura domesticada... [Sublinhados meus] (Carvalho de Franco, 1997, p. 93-95).

Entre a ordem e a desordem, fora do céu da propriedade e do inferno da servidão

acorrentada, o agregado aparece assim como vida domesticada (bíos) numa forma

política que permite sua entrada na pólis da casa senhorial. O homem branco

formalmente livre é o capturar-fora que a ordem social brasileira precisa, durante toda a

segunda metade do Século XIX (Cfr. Gledson, 1986; Schwarz, 1990) para se

fundamentar, não através de uma instituição estatal, mas de um tecido de relações

tradicionais, pessoais, excepcionais, em que o reconhecimento arbitrário da

“humanidade” dá razão ao privilégio em todas suas faces.

escravidão; enquanto na prática, geralmente dos próprios debatedores, sustentado pelo latifúndio, o favor reafirmava sem descanso os sentimentos e as noções em que implica. O mesmo se passa no plano das instituições, por exemplo com burocracia e justiça, que embora regidas pelo clientelismo, proclamavam as formas e teorias do estado burguês moderno. Além dos naturais debates, este antagonismo produziu, portanto, uma coexistência estabilizada que interessa estudar. Aí a novidade: adotadas as idéias e razoes européias, elas podiam servir e muitas vezes serviram de justificação, nominalmente “objetiva” para o momento de arbítrio que é da natureza do favor”. (Schwarz, 1981, p.16-17). Também Cf. Scharz (1990).

16

Page 17: O TRIUNFO DO CIME triunfo do ciúme... · 2017. 5. 13. · O TRIUNFO DO CIÚME: O PODER SOBERANO, O ESTADO DE EXCEÇÃO E A VIDA NUA EM “DOM CASMURRO” Bairon Oswaldo Vélez Escallón

O muro que divide os quintais das casas Pádua e Santiago deixa ver quão tênue é

este reconhecimento e quanto depende da vontade pessoal do proprietário. O muro foi

aberto por Dona Glória, com uma porta “sem chave nem taramela” que se abre

“empurrando de um lado ou puxando de outro” e se fecha “ao peso de uma pedra

pendente de uma corda” (p. 34). Bento empurra para entrar, Capitu puxa: enquanto a

ação dele tem signo positivo, a dela é negativo-positiva, tem que fazer-se atraente para

ganhar a vontade do dono, puxando-a, seduzindo-a, como num movimento de ressaca. É

o arbítrio de Bento o que captura-fora a Capitu, abrange a exterioridade e declara a

excepcionalidade da moça, trazendo-a para o interior da classe dominante. Esse caráter

ativo está na base de seu poder e o agregado é capicua numa acepção de “individuo

sexualmente ativo e passivo”, quer dizer, tem atividade enquanto renuncia à sua

rusticidade ganhando atributos da classe dominante –rudimentos culturais como:

modais, alfabetização, “francês, doutrina e obras de agulha” (p.64). O homem

domestica-se para obter precedência, para ser capturado pela ordem patriarcal no fora

que é a pobreza. Desta forma, que José Dias seja “mãe e servo” e Capitu “mais mulher”

do que Bento homem não é raro.

Mas a coisa não para aí. O romance desvenda-se no seu ponto argumental

central: a morte de Escobar, o amigo com quem, pelo menos na interpretação do

Casmurro, Capitu traiu-o. A partir desse momento a totalidade da história fica sob o

signo da traição e do cálculo e desenvolve-se o desfecho, em que a esposa e o filho são

renegados e expulsos à morte em terras estrangeiras. Não é casualidade que o enterro do

Escobar aconteça em “marco de 1871” nem que Bento depois não possa esquecer “o

mês e o ano” (p.200). Trata-se do mês e do ano do gabinete Rio Branco, de que sairia a

Lei do Ventre Livre. Esta lei mostra às claras a relação entre os senhores e seus servos e

concretiza no corpo da mulher o espaço biopolítico que captura à vez vida e direito, que

faz com que a vida natural seja desde sempre capturada-fora: é a escravidão prenhada

do seu abandono futuro. Com efeito, o escravo alforriado de 1888 já desde esse

momento ficava à própria sorte, fora do sistema produtivo (agora suprido por mão de

obra assalariada, na sua maioria imigrante), vida nua abandonada nos extramuros da

cidade moderna. A parte dos senhores, entretanto, recebera o reconhecimento de sua

propriedade perdida em indenizações e resgates estatais pelas alforrias com orçamentos

17

Page 18: O TRIUNFO DO CIME triunfo do ciúme... · 2017. 5. 13. · O TRIUNFO DO CIÚME: O PODER SOBERANO, O ESTADO DE EXCEÇÃO E A VIDA NUA EM “DOM CASMURRO” Bairon Oswaldo Vélez Escallón

suficientes para sobreviver à transição ao trabalho livre (Cfr. Bosi, 2006): Deus, de

novo, recebe em ouro e a razão (ainda com um tanto de “altruísmo” de graça) fica com

quem sempre esteve.

Com Dom Casmurro, Machado não somente reproduz uma estrutura

fundamental da política ocidental, mas até mesmo mostra seus limites com o

pensamento13. A derrota de Bento Santiago, disfarçada de vitória, não é outra coisa

senão o esgotamento de seu próprio ser, sua diminuição no universo da utilidade e da

propriedade. “Falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo” (p.17), diz o narrador quando

explica seu fracasso no intuito de “atar as duas pontas da vida” pela sua reprodução no

romance e na casa do Engenho Novo. Com efeito, a conquista da autonomia que dão a

autoria e a posse, a soberania, reveste-se do afogamento da zoé na bíos, do menino

filhinho da mãe no dono abastado, do namorado feliz no páter-famílias ciumento, do

sentido múltiplo na denotação imposta. Daí as sucessivas transformações: de Bentinho

em Bento e em Dom Casmurro, da casa de Mata-Cavalos na da Glória e na do Engenho

Novo, da vida em peça acusatória. Esta impossibilidade de reatar o bíos na zoé, as duas

pontas da vida, é a impossibilidade do ser encontrar-se no seu puro mostrar-se, da perda

do ser especial na sua pura espectacularização, é dizer, na evidência do romance: o

triunfo do ciúme:

Pessoa significa originariamente máscara, ou seja, algo eminentemente especial. [...] A pessoa é a captura da espécie e a sua vinculação a uma substancia com o objetivo de tornar possível a sua identificação. [...] A transformação da espécie em princípio de identidade e de classificação é o pecado original da nossa cultura, o seu dispositivo mais implacável. Só personalizamos algo - referindo-o a uma identidade - se sacrificamos a sua especialidade. Especial é, assim, um ser –um rosto, um gesto, um evento- que, não se assemelhando a nenhum, se assemelha a todos os outros. O ser especial é delicioso, porque se oferece por excelência ao uso comum, mas não pode ser objeto de propriedade pessoal. Do pessoal, porém, não são possíveis nem uso nem gozo, mas unicamente propriedade e ciúme. [...] O ser especial comunica apenas a própria comunicabilidade. Mas esta acaba separada de si mesma e constituída em uma esfera autônoma. O especial transforma-se em espetáculo. O espetáculo é a separação do ser genérico, ou seja, a impossibilidade do amor e o triunfo do ciúme. (Agamben, 2007, p. 54).

13 “Se algo caracteriza, portanto, a democracia moderna em relação à clássica, é que ela se apresenta desde o inicio como uma reivindicação e uma liberação da zoé, que ela procura constantemente transformar a mesma vida nua em forma de vida e de encontrar, por assim dizer, o bíos da zoé. Daí, também, a sua específica aporia, que consiste em querer colocar em jogo a liberdade e a felicidade dos homens no próprio ponto –“a vida nua”- que indicava a sua submissão”. (Agamben, 2002, p.17)

18

Page 19: O TRIUNFO DO CIME triunfo do ciúme... · 2017. 5. 13. · O TRIUNFO DO CIÚME: O PODER SOBERANO, O ESTADO DE EXCEÇÃO E A VIDA NUA EM “DOM CASMURRO” Bairon Oswaldo Vélez Escallón

O fundamento primeiro da soberania é a distinção entre vida natural e vida

política voz e linguagem. “Os instantes do Diabo [inserem-se] nos minutos de Deus”

(p.197) e, para a aporia ser completa, tem que sentir-se por trás das palavras do

Casmurro, elegantes e atiladas, a voz da besta que reclama com unhas e dentes seu

exíguo ajuntamento. É a voz de “ressonância terrível” de que falou Roland Barthes, o

horror metafísico de uma linguagem que é, afinal, só o tolhimento do berro em palavra.

Daí a demolição “por utilidade astronômica” da casa original, perante o horror de

procurar a identidade do pensamento no seu lugar sem achá-la. Quando as pontas da

vida são inatáveis e o ser falta no seu lugar, sobrevêm a demolição e a fuga. Por trás do

pensamento e aquém do requinte do narrador volta, “repercute no ar”, o tom contido ao

seu originário sentido, que não é, como se vê, simples aversão por um ponto de vista

esclarecido:

Corri os olhos pelo ar, buscando algum pensamento que ali deixasse, e não achei nenhum. Ao contrario, a ramagem começou a sussurrar alguma coisa que não entendi logo, e parece que era a cantiga das manhãs novas. Ao pé dessa música sonora e jovial, ouvi também o grunhir dos porcos, espécie de troça concentrada e filosófica. Tudo me era estranho e adverso. Deixei que demolissem a casa, e, mais tarde, quando vim para o Engenho Novo, lembrou-me fazer esta reprodução... [sublinhado meu] (p. 224).

Preso na lógica até aqui descrita, o paradoxo da soberania, o narrador não pode

outra coisa senão a própria impotência e faz com ela um show. Acontece com ele o que

ocorre com o narrador do conto “Botella de Klein”, do mexicano Juan José Arreola, que

perante a forma que não é nem exterior nem interior, fica impossibilitado de olhar e

discernir, toma a feição do objeto “porque la cabeza se me fue a las entrañas”. Essa é a

forma assumida pelo romance machadiano, na indiscernibilidade entre externo e interno

o “puro ciúme, leitor das minhas entranhas” (p.117) apodera-se da totalidade e tinge até

os mais recônditos trechos, é a confusão entre o domínio do soberano e tudo o que é

banido por ele14. Isto se traduz em pura morte: “um direito que pretende decidir sobre a

vida toma corpo em uma vida que coincide com a morte” (Agamben, 2002, p.192). A

14 “Estado de natureza e estado de exceção são apenas duas faces de um único processo topológico no qual, como numa fita de Moebius ou em uma garrafa de Leyden, o que era pressuposto como externo (o estado de natureza) ressurge agora no interior (como estado de exceção), e o poder soberano é justamente esta impossibilidade de discernir interno e externo, natureza e exceção, pýisis e nómos”. (Agamben, 2002, p. 43). Leia-se nesta nota “garrafa de Klein”, onde diz “garrafa de Leyden”; é, parece-me, uma errata no original.

19

Page 20: O TRIUNFO DO CIME triunfo do ciúme... · 2017. 5. 13. · O TRIUNFO DO CIÚME: O PODER SOBERANO, O ESTADO DE EXCEÇÃO E A VIDA NUA EM “DOM CASMURRO” Bairon Oswaldo Vélez Escallón

morte é a consagração do poder soberano e a vida matável e insacrificável, de Capitu e

Ezequiel, o fundamento de seu estado atual enquanto autor e proprietário:

A vida é tão bela que a mesma idéia da morte precisa de vir primeiro a ela, antes de se ver cumprida [...] Eu a levava na retina, não que me encobrisse as coisas externas, mas via-as a través dela, com a cor mais pálida que de costume, e sem se demorarem nada [...] Quando me achei com a morte no bolso senti tamanha alegria como se acabasse de tirar a sorte grande, ou ainda maior, porque o prêmio da loteria gasta-se, e a morte não se gasta. (p. 212).

No capítulo CXI- “CONTADO DEPRESSA”, Bento conta uma anedota que

prefigura a eliminação: Três cães de rua barulhentos não deixam, com seus latidos,

dormir a Ezequiel, recém nascido, nem à mãe. Bento então, envenena três bolas de

carne e sai para procurar os cachorros. Quando os encontra, dois deles fogem e só um se

acerca dele, mexendo o rabo e ainda latindo. Então, quando o bicho vai ser envenenado,

deixa a bulha e se livra da morte. Três cães como outras três vidas nuas, matáveis no

clímax do ciúme, também com veneno, pela irrupção de certo “ruído” na casa senhorial.

O que não quer dizer que a morte tenha que ser levada a cabo, somente que ela é a

ferramenta primordial, que sempre está no bolso do soberano.

Mas, a reviravolta para tanta morte existe e está no livro. O silêncio de Capitu

quando é requerida por Bento para confirmar ou desmentir o adultério, como o do cão,

deixa pasmado ao ciumento, quem sente seus predicados desativados. Dom Casmurro é

um livro cheio de pessoas que calam: o poeta do trem fica “amuado” perante a grosseria

do Bento, o Marcolini é cantor sem voz, José Dias é remetido bruscamente ao silêncio

logo do enterro de Escobar, Capitu deixa o canto (p. 175) e logo se recusa a contestar as

dúvidas do marido. Todos eles preparam, clandestinamente (até para eles próprios), a

superação da relação soberana. Bento é compelido a preencher essas lacunas que o

silêncio deixa, fazendo um espetáculo com a própria brutalidade, um romance em que

procura a aprovação para o banimento exercido sobre a esposa e, involuntariamente,

denunciando-se a si mesmo. A relação de virtual estado de exceção é levada a efetivar-

se, mostrando ás claras seu conteúdo e sentido verdadeiros, traduz-se numa relação de

facto (Cfr. Schwarz, 1990, p. 23) com o leitor, que é obrigado à escolha entre

possibilidades pré-fabricadas: “traiu ou não traiu?, Foi por questões hereditárias ou por

algum acaso?”. Capitu não é “simplesmente Capitu” como diz Alfredo Bosi, nem

20

Page 21: O TRIUNFO DO CIME triunfo do ciúme... · 2017. 5. 13. · O TRIUNFO DO CIÚME: O PODER SOBERANO, O ESTADO DE EXCEÇÃO E A VIDA NUA EM “DOM CASMURRO” Bairon Oswaldo Vélez Escallón

corporiza à traição carnal ou de classe, isso é impossível de se saber. O que é claro é que

a linguagem que a descreve e julga tem uma dimensão muito menor do que ela, e que

sua condena à vista de um dever-ser deixa seu ser intacto, além do texto, num lugar

muito diferente às palavras do Casmurro.

***

Dia desses escutei de um conhecido professor universitário que, em palestra

pública, disse que agora, no centenário da morte do Machado de Assis, ia-se repetir de

novo a profusão de eventos, homenagens e debates sobre a obra desse escritor “branco”,

que nunca falou da escravidão nem dos problemas brasileiros importantes. A

comunidade acadêmica, então, voltaria “outra vez” ao culto por um dos representantes

principais da literatura reacionária e antiprogressista do Brasil. Quando escutei isso senti

reviver o ariano anti-mulato, anti-proletário e representante dos interesses burgueses do

Segundo Reinado, da versão de Mário de Andrade.

Outro dia, no ônibus, ouvi a conversa de duas meninas que se queixavam de

perguntas sobre o romance de Machado no vestibular:

- Odeio Dom Casmurro.- disse uma delas.

Silviano Santiago conclui, no seu ensaio “Retórica da verossimilhança”:

“Machado de Assis quis com Dom Casmurro desmascarar certos hábitos de raciocínio,

certos mecanismos de pensamento, certa benevolência retórica –hábitos, mecanismos e

benevolência que estão para sempre enraizados na cultura brasileira”. (1978, p. 47). Eu,

como se pode conferir nas páginas anteriores, concordaria com a conclusão de Silviano

se ele não a confinasse a uma lógica enraizada numa cultura nacional. Para mim é

evidente que a resposta crítica às valorações iniciais da obra está presa na lógica que o

próprio Dom Casmurro contesta. Perante o intelectual orgânico do Império que Mário

de Andrade coloca, por exemplo, a crítica literária posterior procuraria marcas que

permitiriam caracterizar o corpus machadiano como a mais alta interpretação social do

Brasil feita em termos de arte. Esta é uma marcha necessária e que merece séria

consideração: as personagens e conflitos desenvolvem-se em circunstâncias histórico-

21

Page 22: O TRIUNFO DO CIME triunfo do ciúme... · 2017. 5. 13. · O TRIUNFO DO CIÚME: O PODER SOBERANO, O ESTADO DE EXCEÇÃO E A VIDA NUA EM “DOM CASMURRO” Bairon Oswaldo Vélez Escallón

sociais específicas e isso faz com que, obviamente, exista aí uma série de sentidos com

os que a crítica deveria trabalhar.

Mas, tanto uma interpretação quanto a outra, direcionam a totalidade dos

romances, contos, poemas e crônicas no sentido de condizer, ou não, com um dever-ser

que se corresponda com a afiliação do intérprete. Já se procuraram sinais biográficos e

até das simpatias políticas do autor para explicar seus livros. “É isto e não isso” é o tom

que domina nessa tradição crítica, com o qual, parece, voltaremos sempre à dinâmica

costumeira “Traiu não traiu”, “não foi por isto, foi por aquilo”, embora já não como

uma unidade senão corporizada em contraditores e assuntos diferentes. Dessa forma, o

Machado que entra no texto interpretativo deve deixar fora seus sentidos incômodos,

para não atrapalhar o trabalho de quem o acomete.

O texto Dom Casmurro é para Capitu o que o Texto Crítica é para Dom

Casmurro: canônica nunca é a coisa, mas o observador. Assim, vai ficando na crítica,

agora território soberano, uma imagem que se transforma em lei, e daí à estatização e

obrigatoriedade da leitura escolar da obra, há só um passo. A identificação com o

estritamente próprio, ou uma legislação desses livros como suprema compreensão

literária de uma história social restrita, contribuem no mesmo sentido.

Espetacularizar a posse sobre um ser especial (o romance, no caso) é especular

demais. Só se pessoaliza algo se sacrifica-se a sua especialidade, vira objeto de culto.

Todo objeto sagrado deixa de falar e se afasta da comunidade, perdendo seu ser de uso

comum. A alternativa presente a esse aleixamento pode estar no intuito de permitir ao

texto machadiano a possibilidade do silêncio, uma convivência com ele que admita que

é absolutamente irreduzível ao particular e que ainda tem coisas para dizer.

Dessa forma, e sempre relembrando que o Machado ficcionista não se ilude com

respeito à instituição literatura, poderá se restituir ao amor que lhe é negado, hoje como

antes, em todos os lugares cercados por confins.

22

Page 23: O TRIUNFO DO CIME triunfo do ciúme... · 2017. 5. 13. · O TRIUNFO DO CIÚME: O PODER SOBERANO, O ESTADO DE EXCEÇÃO E A VIDA NUA EM “DOM CASMURRO” Bairon Oswaldo Vélez Escallón

Referências Bibliográficas

MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. Dom Casmurro. Porto Alegre: L&PM, 2007. AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002. __________________. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007. ANDRADE, Mario de. “Machado de Assis (1939)”. In: ________. Aspectos da literatura brasileira. São Paulo: Martins, 1974. p. 89 – 108. BOSI, Alfredo. “A escravidão entre dois liberalismos”. In: __________. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. p. 194-245. ____________. “Formações ideológicas na cultura brasileira”. In: Estud. av. , São Paulo, v. 9, n. 25, 1995 . p. 275-293. ____________. Machado de Assis: O enigma do olhar. São Paulo; Ática, 1999. FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens livres na ordem escravocrata. São Paulo: Fundação editora da UNESP, 1997. GLEDSON, John. “Casa Velha: um subsídio para melhor compreensão de Machado de Assis”. In: MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. Casa velha. Rio de Janeiro: Livraria Garnier,1999. p. 11-44. _______________. Machado de Assis: ficção e história. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986. PEREIRA, Lúcia Miguel. Machado de Assis (estudo crítico e biográfico). Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1955. SANTIAGO, Silviano. “Retórica da verossimilhança”. In: ___________. Uma literatura nos trópicos: ensaios sobre dependência cultural. São Paulo: Perspectiva, 1978. p. 29-48. SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas: forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro. São Paulo: Duas Cidades, 1981. __________________. “A novidade das Memórias póstumas de Brás Cubas”. In: SECHIN, A.C., ALMEIDA, J.M.G., MELO e SOUZA, R. (Org.) Machado de Assis, uma revisão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. p. 47-64. _________________. “A poesia envenenada de Dom Casmurro”. In: __________. Duas meninas. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p. 7-41.

23

Page 24: O TRIUNFO DO CIME triunfo do ciúme... · 2017. 5. 13. · O TRIUNFO DO CIÚME: O PODER SOBERANO, O ESTADO DE EXCEÇÃO E A VIDA NUA EM “DOM CASMURRO” Bairon Oswaldo Vélez Escallón

24

_________________.“Conversa dobre ‘Duas meninas’”. In: _________. Seqüências brasileiras. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. p. 227-238. __________________. Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis. São Paulo: Duas Cidades, 1990. WEBER, João Hernesto. Algum ‘desconforto crítico’. Texto inédito.