86

Alberto Braga - Contos Da Aldeia

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Alberto Braga - Contos Da Aldeia
Page 2: Alberto Braga - Contos Da Aldeia

Alberto BragaContos da aldeia

Alberto Braga

Contos da aldeia

Livraria Civilização – Editora2

Page 3: Alberto Braga - Contos Da Aldeia

Alberto BragaContos da aldeia

A

minhas irmãs

3

Page 4: Alberto Braga - Contos Da Aldeia

Alberto BragaContos da aldeia

A guerraogo abaixo dos açudes ficava, numa banda do rio, a azenha de Eusébio moleiro

e, na margem oposta, um pouco mais abaixo, a azenha de tio Anselmo.Eram dois velhotes viúvos de bons sessenta anos e amigos desde criança. Pra

contradição do anexim popular esses dois moleiros se queriam como dois irmãos, a despeito de serem do mesmo ofício.

Parece que o rio, naquele sítio, era até mais pitoresco! Atrás das azenhas descia a enfesta1 duma cerrada devesa de carvalhos e sobreiros, com o atalho aberto ao meio, que era por onde seguiam os machos carregados com os taleigos2 da fornada. Mesmo à ourela3

havia alguns amieiros e choupos, que se debruçavam sobre o rio. A água caída nos açudes vinha costeando uma gândara,4 se escondia num canavial, e surgia, depois, mais límpida, às rodas do moinho, que as muralhavam5 e batiam constantemente.

No verão, quando a levada era minguada, os dois velhotes se visitavam amiúde, atravessando destemidamente as poldras mas, quando a chuva do outono principiava a tornar o rio caudaloso, se limitavam, então, a falar dum lado a outro. Era triste!, já tão velhotes! E depois dizia Eusébio

— Anselmo, fales mais alto, pois não te ouço.— O que é? — Perguntava o outro, inclinando o pavilhão da orelha.Eusébio fazia um porta-voz com as mãos e gritava:— Não te entendo.Quando chegavam a falar concordavam, sempre, que era o barulho das rodas do

moinho que não os deixava ouvir. Pois sim! Era o peso dos anos que os tinha quase surdos de todo. Pobres velhos!

Eusébio tinha um filho que era um rapagão, de vinte e dois anos, como um castelo! Ainda o dia vinha longe e já estava trabalhando, que era um regalo a gente ver.

— Lida como um mouro! — Diziam os conhecidos.E se havia esfolhada ou espadelada quem lá não faltava era ele.O pai, que noutro tempo tinha sido um folião, lhe dizia, na boca da noite:— Simão, se tens de ir a algures, partas, que cá ficarei pra aviar os fregueses.— Estava arranjado! — Respondia o moço rindo. — Já deste o que tinha a dar.

Agora comas e bebas e me deixes cá com a vida!Primeiro que tudo estava sua obrigação. O rapaz, assim que não tinha mais

freguês a aviar, fechava a ucha6 do moinho e partia, então, à brincadeira.E o velhote, quando alguém lhe contava as diabruras do filho, parece que até a alma

se lhe ria na menina dos olhos.Anselmo tinha uma filha. Se chamava Margarida e era formosa. Daquela formosura

campesina, sem artifício, jovial e expansiva. Em dotes do coração, que é a principal 1 S.f. Cume, cumeada, cimo, pico2 taleiga (saco; medida), teiga (taleiga), tega (teiga)3 margem4 charneca5 Muralhar, amuralhar: encerrar entre muros6 ucha (arca), Ucha (top. e n.)

4

Page 5: Alberto Braga - Contos Da Aldeia

Alberto BragaContos da aldeia

beleza!, nem as mais virtuosas a excediam.Desde pequenina foi Margarida criada com Simão. Se não ficasse mal estabelecer

agora paralelos já sabidos e repetidos, estava em dizer que os dois se queriam e estimavam como Paulo e Virgínia.7

Quando os quinze anos de Margarida, que era dois anos mais nova que Simão, vieram pôr termo aos brinquedos de infância, então principiou ele a olhá-la com aquele respeito com que se olha uma irmã mais velha.

Mas vá-se desde já sabendo que esse respeito não estorvava, antes acrisolava outro sentimento, que principiava a exercer e a avultar no generoso coração do rapaz.

Margarida, quando Simão lhe falava em sua tristeza e em seu amor, fingia contrariada, carregava o sobrolho e mudava de conversa. Dessas esquivanças repetidas se ateou o fogo da paixão na alma do moleiro.

— Margarida, — lhe dizia ele duma vez — se não quiseres casar comigo, hei de morrer solteiro.

— Não te falta mulher, Simão. — E se te vejo ser doutro, — protestava o rapaz com lágrima nos olhos — não sei

que fazer que me não matar.E Margarida era tão cruel que assim desprezasse seu amigo e companheiro de

infância?!Já veremos até onde vai a dedicação duma mulher.

** *

I s s o s e passava no tempo em que se guerreavam os partidos de dom Pedro e de dom Miguel.

Quando às aldeias chegavam notícias aterradoras, as mães estremeciam ao contemplar os filhos afadigados na lavoura.

— De mortos nem a conta se sabe! — Diziam os mensageiros —Vai por aí a fim do mundo!

— Jesus, Senhor! E então diz que é guerra de irmão contra irmão! Valha-nos Deus!

Duma vez, oito soldados e um furriel pararam à porta da azenha de Eusébio. Passado um instante a gente da aldeia chorava, com brados aflitivos, vendo Simão do moleiro atravessar no meio da escolta com os braços presos como um degredado! O velho, assim que lhe arrebataram o filho, ainda tentou o abraçar mas, coitadinho!, como já lhe custava andar, quando chegou à porta ia o rapaz subindo a encosta.

Aos gritos da vizinhança acudiu Margarida ao postigo da azenha. Perguntou o que tinha acontecido da outra banda e, quando lhe disseram que Simão tinha sido levado à guerra, a pobre rapariga soltou um grito agonizante e caiu desfalecida nos braços do pai.

A água tinha engrossado com as últimas chuvas, e os dois velhos, quando se avistavam de longe, desatavam a chorar, como duas criancinhas!7 Em 1787 Bernardin de St. Pierre publicou o romance Paulo e Virgínia. Ali, tanto quanto nos Estudos da natureza, traçou a visão russoniana do bom selvagem, o ser humano em seu estado natural é bom. A exposição à sociedade moderna é que o perverte. Desde então as mais de 500 edições de Paulo e Virgínia, em três dezenas de idiomas diferentes, têm carregado a visão de Bernardin de St. Pierre mundo afora.

5

Page 6: Alberto Braga - Contos Da Aldeia

Alberto BragaContos da aldeia

Decorridos oito dias a gente da aldeia acordou sobressaltada com o tiroteio, com o rufo das caixas e o som dos clarins. Se feria uma batalha a pequena distância.

Quando a tropa ali passou, todos viram Simão moleiro, que parecia outro! Ia magro, esfalfado, com os sapatos rotos, coberto de pó, a espingarda no ombro, a mochila nas costas e chorando! Ao passar rente das casas ia saudando os conhecidos e dizia às raparigas que pedissem a Deus por ele.

Saiu do povoado sem ter visto o pai nem Margarida. Levava o coração retalhado!Assim que a filha de Anselmo o soube quis logo ir aonde pudesse lhe falar. — Isso, Deus te livre! — Lhe disse do lado uma vizinha — Se lá ires lá ficarás! E,

de mais a mais, ter de falar com soldados! Credo! — Lá isso. — Atalhou a moça — Também Simão é soldado, tia Joaquina!No fim da tarde principiaram a chegar as ambulâncias dos mortos e feridos. Vinham

apinhados, uns com as cabeças ligadas, com as faces empastadas de sangue, outros com os braços ao peito, mutilados, outros com as pernas partidas, quase todos moribundos!

Nunca se tinha visto uma coisa assim! Aos gemidos dos feridos se reuniam os clamores da gente que se aglomerava pra os ver. Se destacavam algumas frases das ambulâncias

— Ai! minha pobre mãe! — Ai! Meus ricos filhos!E as mulheres, quando isso ouviam, cada vez choravam mais.Alguém, dentre o povo, ouviu gemer numa das carretas da ambulância: — Meu... pai! Marga... rida! Eu morro!E se viu que um dos feridos, que ia reclinado, deixou pender a cabeça sobre o peito,

e descair um braço fora do carro.Os artilheiros que levavam pela camba dos freios os cavalos insofridos8, se voltaram a

uma formosa rapariga que os interrogava aflita. O retinir das molas da carreta, rodando nas lajes irregulares duma vereda, não os deixou ouvir. Mas, de repente, a moça se aproximou mais dum carro, pegou no braço que bamboleava, estendido fora da ambulância, à mercê dos solavancos, reparou atentamente num anel que o morto levava, e principiou a gritar:

— Simão! Morreu! Morreu!E se debatia angustiada nos braços das amigas que a seguravam.Quando um vizinho entrou na azenha de Eusébio pra lhe dar a notícia da morte do

filho, encontrou o moleiro sentado na ilharga da cama, rezando com os olhos postos num crucifixo e um rosário entre os dedos.

— Rezes por sua alma! — Disse o vizinho, chorando.O velhote, que estava muito mais surdo, se ergueu e perguntou, espantado: — O que é? — E aplicou os quatro dedos da mão direita ao ouvido correspondente. — Morreu! — Lhe gritou o outro.Eusébio empalideceu subitamente, se aprumou, fitou os olhos no vizinho e, sem

pestanejar, se dirigiu apressadamente à cabeceira da cama e tirou de trás uma espingarda.

— Isso pra que é?, tio Eusébio. — Lhe perguntou o outro ao ouvido. — Os matarei! — Respondeu o moleiro, com voz convulsa — Os matarei!Mas quando ia, com a espingarda no ombro, a transpor a soleira da porta, cambaleou

8 inquietos

6

Page 7: Alberto Braga - Contos Da Aldeia

Alberto BragaContos da aldeia

e caiu fulminado até a outra banda...Na madrugada do dia seguinte um moço de lavoura chegou aflito a casa, esbofando,

dizendo que, pouco abaixo da azenha, vira um corpo de mulher levado na corrente do rio, fugindo, fugindo!...

** *

Ainda conheci, há muitos anos, o pai de Margarida.Foi numa formosa manhã de abril.O velho estava fora da azenha, sentado numa cadeira de entrevado, com os pés

estendidos a uma réstia de sol. Em volta dele chilreavam os passarinhos na ramaria frondente9 do arvoredo.

Me referia, ao certo, à morte de Simão e de seu amigo Eusébio e, depois, quando chegava ao lance de ter perdido a filha, voltava a cabeça ao rio e perguntava, baixo, de si a si:

— E Margarida?!...E ficava como mentecapto, com os olhos turvos contemplando a água do rio, que

derivava mansamente entre os salgueiros!

9 frondosa

7

Page 8: Alberto Braga - Contos Da Aldeia

Alberto BragaContos da aldeia

A volta das andorinhasicava no beiral de meu telhado o ninho das andorinhas. Quando o trolha10 vinha remediar

os estragos da invernia, (e então no Minho,11 quando o vento sopra do Gerez,12 ó! Pai do céu! Por mais bem construída que seja uma casa, as telhas vão todas ao ar, como se fosse um pobre telhado de levadia!13) eu tinha sempre o cuidado de lhe recomendar:

— Se ainda lá topares o ninho, mestre, o deixes ficar.Imagines quanto custaria aquilo a um trolha que guarda sempre contra um passarinho o

mesmo ódio que um velho lobo-do-mar conserva implacável contra um rato! Ter de remendar um telhado inteiro, façam idéia!, sem destruir um ninho fofo, pendurado num beiral!

Como eu habitava só, aquele ninho, ali era quase outro andar da casa, onde vinha passar o verão uma família minha conhecida. E eu tinha tanto zelo e canseira em o conservar no mesmo sítio, muito arranjado e pronto, como se fosse o caseiro daqueles alegres inquilinos!

As pessoas da cidade não dão valor a essas coisas e até riem delas mas nós, os que vivemos na aldeia, temos um grande afeto pelas andorinhas, melros, toutinegras, pintassilgos, rouxinóis. Enfim, toda a passarada.

Os pardais, esses então, é que não gostam, nada, dos figurões da cidade. E a gente do campo, que lhes conhece o fraco, assim que eles espreitam cobiçosos as searas, dentre os ramos folhudos dos carvalhos, dizem logo:

— Esperai, que já vos arranjarei.E espetam no meio do campo um pinheiro muito alto, lhe penduram uma véstia14 e põem

por cima, dum modo arrogante, um pouco ao lado, como se aquilo fosse um grande janota, um enorme chapéu alto! Ó! fica admirável!

Poucos pardais, por mais audaciosos que sejam, se atrevem com o figurão.E a gente, os vendo na tardinha, todos chilreando na copa frondente do arvoredo, até parece

que os ouve dizer: — Ainda lá está o espantalho? — E estará, compadre, e estará! — Se ainda se conservar até amanhã. — Acudiu o mais atrevido — Diabos me levem se

lhe não prego uma peça! — Sempre queríamos ver isso! — Desafiaram os outros. — Pois então...No dia seguinte, quando o sol radiante inundava todo o trigal, às onze horas da manhã,

estava tudo a postos, tudo silencioso, pra ver a partida.

10 Pedreiro ordinário

11 12 A serra de Gerez fica não longe da capital do Minho e faz parte do grande grupo de montanhas que limitam Portugal e Espanha pelo norte.13 Levadio: telhado formado de telhas soltas14 Casaco curto

8

Page 9: Alberto Braga - Contos Da Aldeia

Alberto BragaContos da aldeia

O arrojado observou atentamente, nos atalhos, que não fosse vir a rapaziada da escola, e voou rápido dentre um sobreiro, como se o tivesse desferido o arco duma seta. Foi pousar direto na copa do chapéu alto do espantalho, e se voltou, depois, aos amigos, chilreando com uma grande troça.

Em toda a devesa estalou então uma gargalhada frenética dos outros, que observavam, cheios de alegria, a imobilidade do janota!

Dali a meia hora, é sabido!, estava a sementeira desbastada!Numa bela manhã, em meado de março, quando abri a janela de meu quarto, ouvi pipilar em

cima. Debrucei no peitoril, olhei o beiral e lá vi a andorinha que tinha chegado na véspera, na boca da noite, enquanto eu andava fora.

— Bem! — Disse eu comigo — Já sei que tenho de fazer uma visita.Ao cabo de meia hora peguei meu bordão e me pus a caminho no meio duma bouça 15 que

desembocava na estrada.Eu ia visitar a senhora viscondessa, uma gentil viscondessa minha amiga que chegava

sempre quando chegavam as andorinhas e floresciam as amendoeiras.Ao atravessar o pátio lajeado que precedia o velho solar da fidalga estavam ainda os criados

vestidos com blusas de riscadinho azul, atarefados na limpeza da carruagem e dos cavalos. As janelas da casa estavam todas abertas. Se sentia que havia lá dentro uma criatura delicada, sequiosa dos perfumes balsâmicos dos pinheirais, do ar puro, da luz, como aquelas plantas aquáticas, as ninfas, que sobem do fundo escuro dos lagos à tona da água pra receber os raios quentes do sol do meio-dia!

Apenas entrei no pátio e se me deparou a senhora viscondessa. E era, mesmo, uma pintura a ver, como a vi então, com a cabeça lançada a trás, os braços muito erguidos, os seios aflantes,16

se aprumando, subindo, fincada no bico dos pés, pra lançar o painço à gaiola doirada dum canário, que estava pendurada, em cima, entre os cortinados da janela

Era lindo, lindo!Quem primeiro aparecia a cumprimentar a fidalga era o senhor abade. E, então, se conhecia

logo que havia novidade na terra, porque o viam sair da residência todo asseado, de chapéu alto, cabeção de renda, sua antiga sobrecasaca muito comprida a lhe bater no cano das botas, e apanhado na não direita, dum modo solene, o enorme lenço de seda-da-Índia com ramalhoças17

amarelas.Feitos os cumprimentos de estilo o senhor abade sacava da algibeira sua caixa de tartaruga e

a oferecia, respeitosamente, à viscondessa, como sinal de máxima etiqueta.E depois ia falando e cheirando alternadamente. — Pois minha senhora...E fungava pela venta esquerda uma pitada de simonte18, continuando: — Neste ano o inverno, minha senhora, correu mal! Í!, Jesus! Muito mal!Depois, no outro dia, vinha a senhora morgada19 do areal flanqueada de suas duas filhas.

15 Terra de pastagem16 Arfante17 ramalhoça (ramalho), ramalhosa (f. ramalhoso), Ramalhosa (top.). Ramalho: grande ramo, geralmente cortado da árvore.18 Fumo da primeira folha, ordinariamente usado pra cheirar19 Antigamente se chamava morgadia um bem inalienável, propriedade imóvel, anexa a um título de nobreza, e que passava, juntamente com o título, ao herdeiro do titular falecido. Essa sucessão tinha lugar de varão a varão por ordem de primogenitura. Essa instituição aristocrática assegurava, antes de tudo, a conservação do nome e da fortuna duma casa nobre. A morgadia revertia ao estado na terceira geração. No Brasil nunca houve morgadia. Na antiga legislação portuguesa era essa instituição reconhecida, tendo sido mais tarde

9

Page 10: Alberto Braga - Contos Da Aldeia

Alberto BragaContos da aldeia

Aquilo é que era luxo! Chapéus de pluma, vestidos de nobreza com três folhos, manteletes de moire antique.20 E, então, o bonito era a profusão de pulseiras, broches, brincos, tudo ouro antigo, ouro-de-lei, maciço mas muito feio!

As meninas não tiravam os olhos da viscondessa e, como ficavam uma junto da outra, se acotovelavam às vezes, e segredavam:

— Vês?, mana... — O que é? — Perguntava a mais velha entre dentes. — Agora já se não usa cuia! Ora, repares.A morgada falava do amanho das terras, do peso da derrama e, às vezes, pra variar, dizia: — Ora, não estar cá no Santo Amaro! Haveria de gostar. É uma festa como poucas! Faças

idéia, viscondessa: Há arraial três dias, fogo preso, missa cantada, sermão...Arregalando os olhos e meneando pausadamente a cabeça, exclamava:— Sermão! mas que sermão!...Quando chegava a vez de minha visita, já a senhora viscondessa sabia todas as grandes

novidades da terra. Era assim castigada minha preguiça!— Então já sabes... — principiava eu — o comendador Antunes, neste ano, se despica!— Á! Já me disseram. — Atalhava logo a viscondessa — É ele o juiz da festa.— É isso, minha senhora, é isso...Vêem? Sabia sempre tudo aquilo que eu tinha pra lhe dizer!Ora, sucedeu, que duma vez, indo lá passar a noite, encontrei a viscondessa sentada numa

voltaire,21 com a cabeça reclinada no espaldar, as pernas estendidas e os pés graciosos pousados no rebordo dum braseiro.

— Vossa excelência contradiz as tradições da primavera! — Principiei, me sentando a seu lado.

— Não contradigo, meu caro. — Respondeu ela, removendo com a pá o rescaldo esmorecido — A primavera é que está agora conspirando contra os poetas que lhe atribuem doçuras que não tem! Se o calendário não me desmentisse, estaria em jurar que o janeiro deste ano aumentou, pelo menos, mais sessenta dias!

— Mas não está tão frio que se não prescinda do fogão! — Não está calor que o dispense. — Pois não é das melhores coisas prà saúde! — Ora que idéia! — Opôs ela, rindo — Não me consta que o fogão tenha sido o assassino

de alguém, tirante nos velhos dramas, em que a heroína ludibriada pelo amante, procurava no ácido carbônico a solução do problema.

Suponham como fiquei radiante de júbilo! Até que se me deparava ensejo de contar à senhora viscondessa uma história que ela desconhecia!

— Pois, minha senhora, — principiei com desvanecida firmeza — Filipe III, da Espanha, foi vítima do calor dum fogão! E, se me permites, referirei como o caso se passou.

Aproximei minha cadeira do braseiro e expus meus pés ao calor do rescaldo pra contradizer com a postura o que afirmava com a palavra, e prossegui:

abolida.20 Moire [muar]: tecido de seda com chamalote. Moire antique, moire antigo.

21

10

Page 11: Alberto Braga - Contos Da Aldeia

Alberto BragaContos da aldeia

— Estava el-rei assistindo a um conselho ministerial. Como fazia muito frio, diante de Sua Majestade tinham colocado um braseiro enorme. Passado pouco tempo, principiou el-rei a transpirar, a transpirar cada vez mais e as faces a se tornarem muito vermelhas. O conde de Pobar, que viu no rosto de Sua Majestade a aflição que sentia, se dirigiu ao duque de Alba, gentil-homem, e lhe disse, baixo, que mandasse retirar o braseiro.

— É contra a etiqueta. — Respondeu serenamente o duque de Alba — Isso compete ao duque de Uzeda,

Filipe III voltava ao lado os olhos suplicantes mas não se atrevia a quebrar as regras da etiqueta atirando um pontapé ao braseiro e aos cortesãos que o cercavam.

Mandou chamar, a pressa, o duque de Uzeda mas, por fatalidade, o duque de Uzeda nesse dia não estava no palácio!

— E depois? — Perguntou, aflita, a senhora viscondessa, se afastando do braseiro. — Depois, — continuei, pausadamente, estirando mais as pernas — quando o duque de

Uzeda chegou ao palácio... — Hem? — Perguntou de súbito a fidalga, se pondo de pé. — El-rei estava morto! — Concluí com voz sinistra.Apenas proferi a frase e se abriu, de repente, a porta e entrou na sala o criado com a bandeja

de chá.A senhora viscondessa ordenou logo: — André, amanhã não acendas o braseiro.E eu, lhe oferecendo uma chávena, disse então baixinho:— Já vês que se devem apagar os fogões quando voltam as andorinhas!

11

Page 12: Alberto Braga - Contos Da Aldeia

Alberto BragaContos da aldeia

A sesta do avôá quatro dias vejo todas as tardes, quando chego à janela, meu vizinho passeando

diante da casa, amparado ao braço da netinha.O avô já é muito velho, com a face coberta de ruga, os olhos pequenos, as mãos

encarquilhadas, as pernas trêmulas e se dobrando nos joelhos. E a neta, que se chama Isaura e é linda como os amores, tem doze anos, o cabelo louro, como fios de ouro, e os olhos muito azuis como duas safiras.

Se chama Macário mas quando lhe falo dou a minha voz tom marcial e lhe digo alto ao ouvido:

— Como vai nosso bravo capitão? Como passa meu valente capitão?E então, na vizinhança, é mais conhecido como capitão Feroz, que foi a alcunha que lhe

ficou por ter sido um militar valente e corajoso como poucos!Quando os franceses vieram a Portugal. — Ai! — Me disse ele um dia, me referindo as

façanhas da guerra — Quem me caçara naquele tempo! Eu tinha, então, dezoito anos, pernas rijas, o olho fino!... Olhes, só duma vez me falhou a pontaria. Te contarei. No convento de Santa Clara, de Tomar, estava recolhida uma menina de quem eu gostava muito e com a qual depois me casei. Um oficial francês, lhe passando sob a grade, lhe disse um galanteio e lhe piscou o olho direito. Ora eu, que estava ao longe observando tudo, disse comigo:

— Esperes, que já te arranjo. E meti a espingarda na cara, fiz pontaria ao olho direito do francês e...

— E?E truz! Lhe meti a bala no olho esquerdo! Errei dessa vez!E ainda lhe fulguravam os olhos e o rosto se lhe iluminava, quando contava essas coisas.Depois prosseguiu:— Afinal, chegou minha vez de ser vencido! Eu, que nunca tremi na guerra, a primeira vez

que falei a minha santa, que Deus tenha, dei em tremer como vara verde! Mas aquilo sim! Era formosa duma vez! Vês minha filha? É a cara da mãe.

O capitão não se enganava. A filha, era realmente formosa mas duma formosura que é menos dos contornos do rosto do que da graça interior da alma.

Havia um ano que era viúva dum industrial trabalhador, honesto e inteligente. Ficara vivendo na companhia do pai e com dois filhos: Isaura e o mais pequenino, Abel, que tinha pouco mais dum ano e uma cabecinha loura de querubim.

Que santa vida a daquela família obscura!A viúva repartia com os três todo o generoso afeto de seu coração e até com o pai, que era

tão velhinho e quase carecia dos cuidados duma criança. Que os bons velhos, coitadinhos!, são fáceis de contentar! Lhes basta uma réstia de sol, uns carinhos da filha e umas histórias da neta!

Quando perguntei a Macário por que passeava depois do jantar, respondeu:— O sono é bom prà noite. Quando durmo depois do jantar tenho sonhos maus.E, beijando a cabeça de Isaura, acrescentou:— Quero antes passear com minha neta, que me conta histórias muito lindas.E continuaram os dois, o velho pelo braço de Isaura, arrastando vagarosamente os pés nas

lajes do passeio.

12

Page 13: Alberto Braga - Contos Da Aldeia

Alberto BragaContos da aldeia

** *

Depois do jantar o velho se arrastava até a poltrona que tinha ao canto da janela e, bem refestelado, com os pés estendidos, as mãos cruzadas sobre o ventre e a cabeça encostada no espaldar, dormia patriarcalmente a boa sonata da sesta.

Uma vez, em julho, e, às duas horas da tarde, fazia um calor insuportável. Até parece que a natureza também dormia a sesta! Lá fora, no quinteiro,22 as folhas das árvores pendiam desfalecidas. Se ouvia o murmúrio monótono da bica de água caindo, como uma lágrima, sobre uma pia de pedra, sob uma latada. As portas das janelas estavam entreabertas pra deixar entrar na sala uma fita de sol, que se estendia aos pés do velhinho, como uma esteira de luz.

No outro canto da sala a filha do capitão, sentada numa cadeirinha de pau, pespontava uma camisa de criança tão pequenina, que parecia uma camisa de boneca! Se ouviam até pequenos estalidos secos da agulha atravessando a goma do morim novo e em folha. Abel!... Era um regalo o ver sentado no chão, em camisa, com as pernas roliças a mostra, um ventre redondinho de abade feliz e os pezinhos cor-de-rosa!

Aos pés do avô, na réstia de sol, tremia a sombra dumas folhas do plátano do jardim. A criança engatinhou até lá. Como uma pequenina fera, se atirando de golpe sobre a presa, Abel se lançou rapidamente sobre a sombra trêmula das folhas. Mas que ludíbrio! Ficou triste, espantado, com os olhos muito abertos, contemplando a palma da mão vazia!

Ao lado estavam os grandes pés do avó, metidos nos dois grandes chinelos de tapete. Ó! eram duas colinas! E as pernas? As pernas pareciam dois enormes castelos roqueiros.23

No espírito belicoso da criança surgiu a idéia terrível de os assaltar. Fincou as mãozinhas nos chinelos do avô, se levantou valentemente nos pés, e upa! upa! arriba!

Nessa ocasião o velho sonhava.Tinha remoçado cinqüenta anos! Os franceses invadiam Portugal! Quando estava na tenda

de campanha, dormindo no dia seguinte ao duma batalha, viu entrar, inesperadamente, o exército de Bonaparte. As paredes de lona da tenda iam recuando, recuando, pra dar entrada às imensas hostes do inimigo. Os esquadrões insofridos da cavalaria corriam sobre ele. Em volta da tenda se levantou rapidamente, como nas mágicas do teatro!, uma bateria, com as bocas dos canhões apontados ao leito. Os piquetes de infantaria corriam a marche-marche, de baionetas caladas, pra o surpreenderem no sono. Ao fundo, no viso dum outeiro, Bonaparte, o terrível Bonaparte, com suas botas de escudeiro e seu chapéu de bicos posto de través, como um chapéu de estudante de Salamanca,24 assestava sobre ele o óculo de alcance, sorrindo alegremente da vitória!

Capitão Macário via tudo aquilo, ouvia o estrépito dos cavalos, o tropido25 da infantaria, as gargalhadas de Bonaparte, e se sentia preso ao leito, impotente, inerme, ansioso, sem poder gritar!... Façam idéia!

De repente todo aquele enorme exército se transformou num gigante que lhe prendeu brutalmente as pernas com dois grilhões de ferro!

O capitão se esforçou ainda a se levantar mas conseguiu, apenas, depois de muito custo,

22 Quinteiro: quem guarda uma quinta, caseiro. No contexto só pode ser quintal.23 Rochosos24 Salamanca é um município da Espanha, na província de Salamanca, comunidade autônoma de Castela e Leão, de área 38,92km2

25 Tropel

13

Page 14: Alberto Braga - Contos Da Aldeia

Alberto BragaContos da aldeia

soltar um brado aflitivo, com voz convulsa:— Às armas!E despertou, ouvindo as gargalhadas de... Bonaparte!O velho abriu desmesuradamente os olhos, os volveu espantado em torno de si e, quando

um instante depois, se sentiu completamente acordado, deu com o netinho, que lhe puxava as pernas pra subir ao colo!

A criancinha estava com os olhos levantados ao avô, sorrindo, muito alegre, porque julgou que tinha sido pra ela, como brincadeira, aquele grito sufocado:

— Às armas!

14

Page 15: Alberto Braga - Contos Da Aldeia

Alberto BragaContos da aldeia

O galo preto(a João de Deus)

avia, em Penajóia,26 terra que ninguém é capaz de ver no mapa geográfico de Portugal,

uma aula régia de primeiras letras.A aula era numa casa dum só andar, rente do chão. Ficava no meio duma clareira, e tinha ao

lado dois grandes sobreiros, que a abrigavam do sol, no estio, e que rangiam, no inverno, quando sopravam as rajadas do nordeste.

Os alunos entravam às oito horas da manhã, saíam no meio-dia pra jantar e voltavam depois às duas horas, pra sair às cinco da tarde. Alguns deles vinham de longe, meia légua, três quartos de légua de distância. Eram todos pequeninos e pobres. Saíam, ao romper da manhã, de suas casas, com o livro embaixo do braço e a lousa das contas pendente dum cordão lançado a tiracolo. No caminho os que vinham de mais longe iam se reunindo aos condiscípulos que encontravam, jogavam o botão, ou, se era tempo, trepavam aos castanheiros pra cruelmente roubar os ninhos dos melros e verdelhões.

O mestre, que tinha sido um valente cabo de milicianos, era um velhote rabujo,27 de pêlo nas orelhas e que pouco mais sabia que o que ensinava aos alunos.

Um dia lhe perguntei: — Me digas, senhor Joaquim: Que método adotas? — Que método?! — Exclamou ele, estranhando a pergunta — E depois, levantando as

sobrancelhas e com elas os óculos, me fitou desconfiado e respondeu com ar solene:— Adoto o método de Aquiles (de Axiles, foi como disse).Mas, a despeito de tudo isto, era um tirano, como o são quase todos os ignorantes.A aula, como já disse, ficava ao rés-do-chão. A luz entrava por duas frestas que ficavam

dois palmos acima da cabeça dum homem porque assim era preciso, explicava o mestre, pra que os rapazolas não se distraíssem, olhando a fora. No fundo da sala ficava uma mesa de pinho e uma cadeira, que era o lugar do mestre.

Depois se seguiam bancadas de pau colocadas como uma platéia, duas a duas, deixando ao meio um intervalo, por onde entravam os alunos e, quando todos tinham entrado, por onde passeava gravemente o professor com o livro numa das mãos e na outra um junco.

Os pequenos, assim que se aproximavam da aula, empalideciam.E antes de entrarem, quem ali passasse, os via muitas vezes, ainda a repetir a lição, trêmulos,

enfiados e com a mesma coragem de quem tem de subir a uma forca!O Gabriel era ainda um pequenino de sete anos. Morava ao pé do abade. E o abade, um

santo velhinho, era quem muitas vezes lhe ensinava a lição. Por isso, e como o pequeno era esperto — Ui! — Diziam os conhecidos — Gabriel? esperto como um alho! — Era Gabriel que quase sempre ensinava a lição aos outros.

— Como se lê esta palavra?, Gabriel. Digas. — Pedia-lhe duma vez João do moleiro.— Soletres.

26 Penajóia é uma freguesia do concelho de Lamego, situada na sua parte norte. Confina a norte com o Rio Douro, a nascente com as freguesias de Cambres e Samodães, a sul com a de Avões e Barrô (monte), a poente com a mesma freguesia de Barrô.27 Rabugento

15

Page 16: Alberto Braga - Contos Da Aldeia

Alberto BragaContos da aldeia

E principiou o outro:— P-h-i, pi.— Qual pi! Também eu cuidava! P-h-i, fi — Emendou Gabriel.— Fi?! — Exclamou João — Fi! Peta! Me enganas, Gabriel.— Não engano, João. Se lê fi, que foi como me ensinou senhor abade.Nisso chegou à porta da aula o mestre.Vinha se palitando e com a face e orelha direita mais vermelhas porque tinha dormido a

sesta.Chegou à porta e gritou:— Canzuada,28 saltes a dentro!E lá entram todos de chapeuzinho na mão, cheios de medo, como um rebanho de ovelhas

entrando ao matadouro.Assim que o mestre tirou o livro da gaveta, em seguida a palmatória e depois o lenço

escarlate de chita, se fez um silêncio lúgubre na sala.— Leias, João. — Principiou.João do moleiro foi lendo mas cada vez que ia se aproximando da terrível palavra ia lhe

faltando ânimo.Dizer que P-h-i diz fi: Que temeridade! Enfim, continuou irremediavelmente: — E como a ciência chama... chama...E ergueu suplicante os olhos ao verdugo.O mestre tossiu, pra se dar ao respeito, e bradou: — Leias a bai-xo, me-ni-no! — Acentuando as sílabas com um sorriso ameaçador. — Chamada... — Continuou o pequeno indeciso — chamada... — e terminou em tom mais

baixo, com a incerteza de quem não sabe o que diz — Filosofia. — Como!? — Bradou o mestre, lhe descarregando com o junco pelas orelhas. — Como!?O pequeno fechou os olhos, encolheu os ombros e emendou chorando: — Pi-lo-so-pi-a.O professor descarregou segunda juncada, e berrou: — Pilosópia, burro!, pilosópia! — Pilosópia. — Repetiu o pequeno.Apenas João do moleiro disse a palavra, se levantou Gabriel de seu lugar e declarou com a

voz serena e com as lágrimas saltando dos olhos: — Senhor mestre, quem ensinou a dizer assim ao João do moleiro fui eu.Ó! que escândalo, Santo Deus! O mestre se ergueu de golpe. Os discípulos tremiam como

vara verde. Os mais pequeninos até choravam! Pudera! O que iria acontecer! Nossa Senhora! O mestre correria tudo a bolaria, não há dúvida.

— O que é? — Gritou o mestre Joaquim com voz convulsa. — O que é?E ficou olhando Gabriel, inclinando com o indicador o pavilhão da orelha direita. — Fui eu quem ensinou assim. — Repetiu Gabriel, assustado. — Venhas a cá! — Chamou de afogadilho o mestre — Já àqui, seu atrevido. E bateu com a

palmatória na mesa. Gabriel pousou o livro no lugar e se aproximou. — Àqui já.O mestre lhe descarregou nas mãozinhas tenras meia dúzia de furiosas palmatoadas.29

Foi muito bem-feito! Apre! Ofender a sabedoria de teu mestre!

28 Canzoada: ajuntamento de cães, matilha29 Palmadas

16

Page 17: Alberto Braga - Contos Da Aldeia

Alberto BragaContos da aldeia

** *

Duma outra vez, na tarde, aconteceu passar o abade pela aula do mestre régio. Fora se ouvia uma gritaria que, sei lá!, parecia que o mundo ia acabar.

À porta da aula estavam três pobres mulheres, cada uma com um filhinho ao colo. — Ali vem o senhor abade. — Disse uma delas. — Lhe pediremos, mulheres. Aquilo foi

Nosso Senhor que trouxe àqui.Se abeiraram do abade e lhe imploraram que fosse pedir ao mestre que perdoasse, dessa vez,

os rapazinhos. — Então: O que aconteceu? — Perguntou o reitor. — Quem sabe?, senhor abade! Berregam30 que parece que os matam! — Se já até ouvi meu Manuel, que é tão fraquinho! — E meu João, senhor abade, que tão doentinho tem andado. — E meu José! Aquele que foi, neste ano, à primeira confissão, senhor Abade: Sabes?O abade se dirigiu à porta e bateu. — Quem é? — Perguntou de dentro a voz áspera do mestre. — Abras, mestre Joaquim. Faz favor?O abade entrou. Pros pequenos foi como se vissem a Providência. — Então o que te fizeram estes mariolas?, senhor Joaquim. — Perguntou o abade, olhando

em roda os alunos, — O que me fizeram? Me roubaram dois lápis! — Ó! Que grande pecado! — Exclamou o abade, arregalando os olhos. — E nenhum confessa — Explicou o mestre. E bradou, voltado aos pequenos — Nenhum

confessa, mas eu ra a i xo-os31, aqui, todos.O abade lhe pôs a mão no ombro e o serenou, dizendo — Pois se nenhum confessa, é o mesmo. Já saberemos quem foi. Esperes. Volto já.Saiu o abade, e, passados instantes, entrou na aula, precedido duma rapariga.Se aproximou da mesa e disse:— Ponhas tudo aqui em cima, Josefinha. Assim. Agora vás embora.A pequena pousou uma panela de folha e tirou sob o avental um galo preto. O abade meteu

o galo dentro da panela, a cobriu com o testo,32 e principiou assim: — Se fez um grande pecado! Roubaram um lápis! Quem rouba um lápis é muito capaz de

roubar tudo! Meus filhos, um de vós cometeu o crime e não o confessa por vergonha. Ora, por causa daquele que roubou os lápis padecerão todos os demais. Aí tem! Em vez de só fazer um pecado, que Nosso Senhor lhe perdoaria se o confessasse e se arrependesse, cometerá muitos: Faltar à verdade, que é tão feio, e depois deixar que os outros sofram injustamente.

Os pequeninos ouviam o abade com religiosa veneração.O abade prosseguiu: — Hão de vir todos, cada um por sua vez, pôr mão sobre esta panela. O galo preto há de

cantar logo que sinta sobre o testo a mão criminosa do que roubou o lápis. E ficará, assim, conhecido o ladrão. Senhor mestre Joaquim há de o castigar, e não o quero ver mais. Ora, torno a dizer: Se confessar estará perdoado.

30 Berregar (berrar), borregar (berregar), barregar (berregar)31 Não é erro de OCR. Está exatamente assim no texto original impresso: ra a i xo-os.32 Louça

17

Page 18: Alberto Braga - Contos Da Aldeia

Alberto BragaContos da aldeia

Na aula silêncio profundo. — Nenhum se acusa? — Disse o abade. — Venha o número 1.Foi o número 1 e pousou a mão sobre o texto. O galo não cantou.Foi o número 2, foi o, número 3 e chegou ao número 4.Antes de chegar a vez ao número 5, todos os olhares convergiram a um canto da aula, donde

partiam uns soluços aflitivos.— Quem chora aí? — Perguntou o abade. Se ergueu Eusébio da Entrevada. Era um

pequenino de oito anos, muito pobrezinho, com um palmito de cara que estava mesmo pedindo pão.

Era um cinco réis de gente33 o Eusébio.— É o da Empregada — Explicou o do Moleiro. — Andes cá, menino. — Chamou o abade — Por que choras?O pequeno se aproximou pra justificar sua lágrima e mostrou ao reitor os dois lápis

roubados. — Á! Foste tu?!, Eusébio.E Jesus! O pequeno chorava que era uma dó de coração! E nem podia responder. Apenas

acenava. — Então foste tu. E, olhes: Pra que os tiraste? — É que o senhor Mestre — balbuciou o criminoso — me disse que eu trouxesse um lápis

e eu não quis pedir o dinheiro a minha mãe, que está empregadinha na cama, e nem tem dinheiro pro caldo. E depois, com medo de que o senhor mestre me batesse...

— Pegaste um lápis. Foi assim? — Concluiu o pároco. — Foi, sim, senhor. — Mas tu tiraste dois!O pequeno desatou a chorar. — Pra que tiraste dois? — Insistia o padre.Eusébio explicou:— Era pra quando se acabasse um!...O mestre estava já de palmatória pronta.Eusébio estendeu, resignado, a mãozinha trêmula. — Basta! — Terminou o abade — Prometi que se perdoaria a quem confessasse. Pra outra

vez, querendo alguma coisa, me pedirás. Ouviste? Que não tenho tempo de saber o que te falta. Ora, vás a teu lugar e prometas não tornar a fazer outra.

Mestre Joaquim sentiu muito não aplicar o corretivo. — Deixes, senhor Joaquim. — Dizia o abade — É preciso muita misericórdia pra tratar as

crianças. Lembres do que dizia Jesus: Sinite parvulos venire ad me.34

O mestre, que não sabia latim, mas que diante do curso quis ocultar a ignorância, respondeu a sorrir com ares de quem percebia:

— Et cum spiritu tuo!35

33 É mesmo um cinco réis de gente, um desconjuntado, um lorpinha (Júlio Dinis, Uma família inglesa)34 Deixai vir a mim os pequeninos35 Ele está no meio de nós!

18

Page 19: Alberto Braga - Contos Da Aldeia

Alberto BragaContos da aldeia

Está no céu!m sargento de atiradores que desde a madrugada tinha percorrido oito léguas a pé, sem

descansar, entrou numa taberna que ficava na beira da estrada e perguntou se era ali que morava Maria la Courdaye.

O taberneiro se descobriu respeitosamente diante do soldado e, saindo à porta, estendeu o braço e indicou:

— É ali, do lado direito. Abras uma cancela e entres. — Obrigado! Boa noite. — O militar agradeceu e se dirigiu, apressadamente, até lá.No muro da estrada havia uma cancela de pau. Aberta a cancela, se atravessando por um

caminho assombreado dalgumas árvores frondentes36, se via, no fundo, o modesto casebre branco escondido entre a verde ramaria duns carvalhos.

Tinha ao lado uma leirita37 plantada de horta e, à sombra dum choupo, mais no fundo, uma pia de pedra, onde murmurava uma veia de água muito cristalina. Do esgalho duma árvore se prendia ao tronco doutra uma corda, estendidas na qual alvejavam, expostas á luz perpendicular do sol do meio-dia, umas roupinhas brancas, de criança. No cunhal da casa havia uma parreira, que subia encostada à parede, com as suas largas folhas dum verde acentuado dentre as quais pendiam os cachos escuros com os bagos cobertos de pó luzente e sutil das estradas. Da chaminé se desenrolava serenamente uma espiral branca, de fumo, que se expandia no ar. O casebre branco, dum só andar, aparecia encastoado no fundo escuro duma colina. E no cabeço do outeiro, a espessura imóvel e macia dum pinheiral fechava o horizonte, como um largo reposteiro de veludo verde.

Nessa casa vivia uma formosa mulher na companhia de dois filhos.Coitadinha da pobre! Ficara viúva aos vinte e cinco anos e com dois filhinhos que eram seu

encanto. O mais velho tinha sete anos e se chamava Miguel, que era o nome do pai. O mais pequenino contava apenas onze meses e tinha nascido pouco depois que o pai partira à terrível guerra da Criméia.

Duma vez, depois de cearem, a mãe, pra que Miguel não fizesse bulha e acordasse o menino, o chamou ao pé de si, abriu a carta geográfica, e lhe disse:

— Olhes, meu filho: Onde está teu querido papá?O pequenino abriu muito os olhos e respondeu sorrindo: — Na guerra! Pum! Pum! — Vejas onde está.Lhe pegando na mãozinha lhe fechou os três dedos mais pequenos, lhe estendeu o indicador,

e ofoi levando em todas as terras por onde o pai tinha seguido. O dedo da criança ia subindo montanhas, descendo vales, atravessando planícies, costeando litoral e cortando mar. O pequeno balbuciava todos os nomes que a mãe proferia. Quando chegou à Criméia parou. Ergueu sua cabecinha loura e levantou os olhos à luz do candeeiro, a ver se lhe fazia a mercê de o alumiar bem. Depois levou a mão ao abajur e o tirou ao lado.

— Deixes o candeeiro, meu filho. — Ora, ora. — Exclamou Miguel, fazendo biquinho.

36 Uma alameda37 Leirita, leirinha, pequena leira: pequena extensão de terra de lavoura

19

Page 20: Alberto Braga - Contos Da Aldeia

Alberto BragaContos da aldeia

— Deixes, meu filho. — Pedia a mãe. — Quero ver papá.Se debruçou outra vez sobre a carta, procurando com o olhar investigador um ponto

qualquer.A mãe, nesse instante, com o mais novinho adormecido nos braços, olhou o crucifixo que

tinha pendurado à cabeceira e principiou a rezar baixinho, com duas grossas lágrimas a lhe tremerem à flor das pálpebras.

— Está aqui o papá? — Perguntou Miguel. — Está, meu filho, está, — Na guerra? — Sim, meu rico amor, na guerra.Miguel ficou pasmo a olhar a Criméia, e exclamou: — Quero ir à guerra dar um beijo ao papá. — Ó! Meu filho! — O que é a guerra?, mamã. — Não sei, Miguel. Teu papá, quando vier, há de nos contar. Sim?No dia seguinte, logo depois da ceia, quando o menino já dormia no regaço da mãe, Miguel

pediu:— Quero ver outra vez o papá.E foi procurando, pouco a pouco, no mapa. Assim que apontou a Criméia, exclamou

radiante: — Á! Aqui está ele!No outro dia, logo na boca da noite, bateram apressadamente à porta. Quem seria? Jesus! A

mãe de Miguel até tremeu. Pegou a criancinha e foi ver quem era. Miguel, aquilo era já um homem direito! Ia ao lado da mãe, se segurando a uma das pregas do vestido.

— Há de ser o papá.Se abriu a porta. No fundo estrelado da noite sobressaiu a elevada corpulência dum soldado.

A claridade do luar lhe batia em cheio no rosto avincado38 da fadiga e queimado de sol, com grande bigode espesso. Os botões da fardeta39 reluziam.

— É aqui que mora a senhora Maria La Courdaye? — Perguntou, enxugando ao canhão40 o suor copioso que lhe escorria na testa.

— Sou eu. — Respondeu a mãe de Miguel. — És a mulher de Miguel La Courdaye? — É o papá...? — Disse do lado o pequenino, fitando o soldado com os seus grandes olhos

azuis. — Pois, senhora...O soldado olhou ao redor, perturbado, aflito, e continuou — Pois Miguel, o 26 dos

atiradores, meu querido e bravo camarada .. . — Hem? — Balbuciou a pobre mulher.O sargento apontou com o indicador ao céu e, se aproximando da porta, terminou: — Morreu!E deitou a correr na estrada fora, porque não tinha coragem de assistir aquele lance

angustioso. Não tinha ânimo, ele, que no calor da refrega, afrontara os maiores perigos!

38 Cheio de vinco39 Fardeta, fardinha40 S.m. Peça de artilharia; extremidade inferior da manga do vestuário quando sobreposta ou virada a fora; extremidade superior do cano da bota [...]

20

Page 21: Alberto Braga - Contos Da Aldeia

Alberto BragaContos da aldeia

Depois da ceia Miguel quis ainda ver seu papá. Abriu o mapa, e quando chegou à Criméia, disse:

— Ê! Aqui está ele! — Já não está, meu filho! — Lhe respondeu a mal, chorando.O pequenino a olhou e perguntou — Então? — Está no céu! — Está no. .. céu? Então procurarei o céu.E ficou muito tempo debruçado sobre o mapa, procurando onde ficaria o céu pra ver seu

papai, até que deixou pender sua loura cabecinha sobre o livro e adormeceu.

21

Page 22: Alberto Braga - Contos Da Aldeia

Alberto BragaContos da aldeia

O retrato dos pais mala-posta que seguia do Porto a Braga passava, às sete horas da manhã, defronte de

Isabelinha, aldeola obscura, que fica emboscada numa devesa cerrada de carvalheiras, entre Santiago da Cruz e a estrada de Barcelos.

Como era subida os cavalos iam a passo, de rédeas bambas, com cabeça pendente, sacudindo com a cauda os moscardos teimosos que lhes aferretoavam41 nos ilhais. Na imperial do tejadilho42 os passageiros cabeceavam com sono. O cocheiro, com o chapéu desabado caído ao sobrolho esquerdo por causa do sol e com as rédeas entaladas nos joelhos, petiscava lume na pederneira e acendia pachorrentamente no morrão43 um cigarro de Xabregas.44

— Ainda não enxergo o manco. — Disse o condutor, com os olhos fitos num atalho, que vinha sair à estrada.

— Toques a buzina!, homem. — Alvitrou, do lado, o cocheiro, com a voz rouca da aguardente — Toques a buzina, pois, se não aparecer, adeus! A culpa será deles.

O condutor limpou, com a palma da não, o bocal da corneta, que levava a tiracolo, o aplicou aos beiços, inchou as bochechas de ar, e soprou de rijo, tirando um som roufenho, prolongado, intermitente, que se ouvia de longe.

O manco, que estava encostado ao cunhal do muro, à sombra dum castanheiro, saiu ao meio da estrada.

Ao passar a mala-posta o condutor lhe atirou, do alto, uma saca de brim, surrada, suja e fechada com uma vareta de ferro, em cuja extremidade pendia um aloquete45 triangular. O manco estendeu os braços prà suspender no ar. Assim que a aparou a sopesou duas vezes, com os braços esticados, e observou

— Hoje pesa! — Hoje há paquete. — Explicou, sucintamente, o condutor.Como a estrada principiava a descer numa ladeira íngreme, volteou com força e pressa a

manivela do travão e disse ao manco: — Adeus.A mala-posta seguiu a trote largo no meio da estrada, a solavanco, levantando nuvem densa

de poeira, com grande ruído das rodas, frêmito das vidraças e o constante tilintar dos guizos das coleiras.

O manco atirou ao ombro a mala posta, fincou o braço côncavo da muleta no sovaco direito e desandou no atalho afora, coxeando, à casa de Bento do correio.

No fundo do atalho, em continuação ao muro tosco do campo, ficava uma estacada já velha, combalida, esverdengada46 das chuvas da invernia resguardando uma leira hortada47 de couve e cebolinho. Tinha dentro um casebre de telha-vã com porta e postigo sem vidraça. Se dirigiu à

41 Ferroavam, picavam42 A parte de cima do carro43 Ponta carbonizada da mecha ou do fio dos candeeiros ou lamparinas44 Xabregas (antigamente Enxobregas) é um local na fronteira entre as freguesias de Marvila e do Beato, em Lisboa. Ali se situa o mosteiro da madre de Deus ou mosteiro de Xabregas.45 Cadeado, ferrolho46 [Vocábulo não encontrado]. Provavelmente esverdeada (no contexto, por limo)47 Em forma de horta

22

Page 23: Alberto Braga - Contos Da Aldeia

Alberto BragaContos da aldeia

cancela da paliçada, correu o ferrolho perro na armela48 e gritou:— Ô! Ti'Ana! Ti'Ana!Se abriu a porta da casa, e apareceu no limiar uma velhinha trêmula, curvada a diante, com

uma roca enfiada na cinta, fiando estopa.O que é?, Manco. — Perguntou ela, se inclinando a fora, com a mão fincada na ombreira.— Correio! — Gritou o manco com um grande berro.A velha fez, com a mão, sinal de que esperasse. Pousou dentro a roca e o fuso e saiu à horta

ajeitando com os dedos as farripas brancas do cabelo, que espreitavam por baixo do lenço. O rapaz transpôs a cancela, foi ao encontro de tia Ana e lhe gritou com a boca muito aberta:

— Correio! Ouviste?A mulher o fitou com os olhos espantados, e perguntou :— O que é? Não ouço.O manco sorriu resignado colando, então, a boca ao ouvido de tia Ana e repetindo com

maior brado: — Correio! Correio! Ouviste agora? — Á! — Exclamou a velhinha, esfregando as mãos de júbilo radiante — Ouças, meu filho,

ouças: — É correio! — É correio. É. — Confirmou com um aceno afirmativo.E, lhe pondo a mão no ombro, disse adeus, até logo, correu de novo o ferrolho e tomou a

direita, no carreiro dum milharal, caminho do correio

** *

Não se imagina o que é a chegada do correio a uma aldeia qualquer do Minho! Cartas dos filhos ausentes!

Que ansiedade em ver realizadas as esperanças e...Deixemos essas considerações e relatemos os fatos. Daquela mesma porta, vinte anos antes,

saíra, uma vez, tia Ana, ainda forte, robusta e sadia, pra acompanhar ao Porto seu querido e único filho, que teimou em embarcar ao Brasil. O homem de tia Ana não se opôs.

— O deixes lá, mulher. — Lhe dizia — Se o rapaz tem inclinação, em Deus o ajudando, melhor amanhará a vida lá que cá. Sabe ler, escrever, contar, está mesmo a calhar.

— Ai! Meu rico filho! — Soluçava a pobre mãe, chorando, com o rosto escondido no avental.

— Não chores, mulher. Partir tinha de partir, mais hoje, mais amanhã. Quando o mandei ao mestre não foi pra ficar na lavoura. Assim como assim, tanto monta estar o rapaz numa loja no Porto como no Brasil. Dá na mesma.

Estas e outras razões do marido venceram a saudade da mãe.Foi preciso vender dois grilhões e um par de arrecadas.49 Venderam. Foi preciso vender,

também, uns novilhos, que se engordavam pra embarque. Venderam na feira de Vila-Nova. E apuradas sete e meia moedas, se impôs o rapaz ao Brasil, No Porto, tia Ana tomou passagem pro filho, à proa, na galera Constancia, da casa dos Penas. Lhe mercou uma caixa de pinho, nova, o vestiu com dois fatos baratos num algibebe50 da Ponte-Nova, lhe escolheu um par de

48 Peça onde entra o ferrolho49 S.f. Ornato, geralmente em forma de argola pràs orelhas; brinco50 Quem faz e vende roupa feita de fazendo ordinária

23

Page 24: Alberto Braga - Contos Da Aldeia

Alberto BragaContos da aldeia

chinela nas sapateiras das Carmelitas. Guardou e ajeitou tudo na arca e pôs a um canto, com a maior devoção, o registro do Bom Jesus do Monte.

Pobre mulher! Liquidou a parca economia, que representavam privação e sacrifício, se afadigou de trabalho, se ralou de saudade, chorou muito. E, quando viu de terra a galera Constância seguir lentamente rio abaixo, com as velas enfunadas a nordeste e a proa inclinada à barra, caiu de joelhos e de bruços no cais de Massarelos,51 com as mãos trêmulas atadas na cabeça, soluçando aflitivamente pelo filho de sua alma, que lhe acenava com o lenço, debruçado na amurada do navio, a chorar!

** *

Chegou a primeira carta a Isabelinha, decorridos três meses da partida do rapaz. Foi um alegrão que os pais tiveram! A carta era escrita em papel paquete, muito fino, pautado. E até como os portos do Brasil estavam suspeitos de febre amarela, vinha o papel todo golpeado. Foi lida a carta pelo Bento do correio, pelo boticário, pelo senhor cura, antes de ser delida pelo calor do seio da mãe, que a guardava junto do coração, como relíquia e, de cada vez que ela ouvia as palavras do filho, era um chorar copioso, que retalhava o coração. O brasileiro da Granja, que induzira o rapaz a embarcar, esse sorria e a consolava desse modo:

— Deixes, tia Ana! Ali é que um homem se faz gente. Está aqui um brasileiro como eu. Te garanto, tia Ana, que o rapaz, se tiver tento na bóia, hem?, arranja patacaria52 gorda e em pouco tempo atiça baixela em casa.

Nenhuma dessas consoladoras esperanças, nem até a de atiçar baixela em casa, leniam53 a saudade daquele coração atribulado de tia Ana.

— Ora! — Opunha ela com a voz nasal e soluçante de quem suspende as lágrimas pra falar — Um homem, tendo saúde e graça de Nosso Senhor, em toda a parte do mundo é Brasil! Riqueza é o Demônio.

— Não digas patacoadas, mulher. — Contestava o brasileiro azedo e carrancudo — Não digas patacoadas.

Depois, passados mais anos, à proporção que a saudade da aldeia se desvanecia no ânimo do rapaz, as cartas iam rareando.

De quatro em quatro meses escrevia à terra, dizendo que o trabalho lhe roubava o tempo de o fazer amiudadas vezes. Que não tivessem cuidado, que ia bem de saúde e que esperava ser feliz em poucos anos.

Tia Ana, quando não tinha carta no correio, ia de Isabelinha a Braga, a pé, entrava no Carmo, ajoelhava à beira da campa do milagroso Frei Joãosinho da Neiva e, com as mãos postas em súplica junto à boca, implorava com ansioso fervor a saúde e prosperidade do filho ausente. Ao passar pela caixa de esmola, à entrada da igreja, lançava algum dinheiro no gazofilácio.54 Pedia a Nossa Senhora da Conceição dos Congregados pelo filho de seu coração. Entrava em Santa Cruz, ajoelhava diante do altar do Senhor dos Passos e rezava uma estação e

51 Massarelos é uma freguesia portuguesa do concelho do Porto, com 1,94 km²52 Pataca: antiga moeda brasileira de prata que valia 320 réis; quantia em dinheiro equivalente a 320 réis. Juntar patacaria: fazer fortuna.53 Lenir: abrandar, mitigar, aliviar54 Gazofilácio (do grego gazophulakion): local reservado, nos templos, às oferendas e aos vasos sagrados; tesouro, cofre. Os textos bíblicos em português, tanto do Velho quando do Novo Testamento, trazem ora cofre das ofertas, ora arca do tesouro.

24

Page 25: Alberto Braga - Contos Da Aldeia

Alberto BragaContos da aldeia

um rosário com as faces de rojo.55 Subia a beijar os pés da sagrada imagem e, se benzendo três vezes com a corda de esparto56 puída e lustrosa, que cingia a túnica do Senhor, se retirava recuando, rezando a meia-voz, até sair do templo!

Seis meses antes do manco anunciar a tia Ana que tinha chegado o correio, recebeu ela uma carta do filho, lhe dando parte de que ia casar com menina rica, de nascimento, — dizia ele —prendada. Queria o retrato dos pais, e lhes enviava dez moedas prà despesa necessária.

Quando isso constou em Isabelinha houve geral regozijo. — Eu não te dizia?, tia Ana. — Lhe lembrava uma vizinha. — Se logo vi! Aquele teu

Joaquim nunca me enganou. Eu futurei57 aquilo! — Pois isso bastava uma pessoa olhar pra ele. — Acudiu outra, aleitando um filhinho

gordo, que tinha no regaço — Aquele olho dele, te lembras?, tia Josefa. — Pois não lembras? O rapaz era fino que nem um alho! Se aquele não se arranjasse 1á,

então — boa te vai! — não sei o que há de ser doutros que foram depois. Olhes, tia Ana, aquele filho da moleira, o zarolho: Aquilo é um morcão,58 que serve pra nada.

Tia Ana, sem atentar no confronto que lhe realçava as qualidades do filho, ria e chorava simultaneamente. E não se sabia dizer se aquelas lágrimas serenas iluminavam o sorriso, se o sorriso mais entristecia as lágrimas!

Dois dias depois da recepção da carta resolveram, ela e o marido, ir a Braga pra tirar o retrato. Se vestiram com a melhor roupa domingueira, que servia prà romaria do Espírito Santo, no Bom Jesus do Monte. Ela ia toda sécia,59 de saia escura de serguilha,60 com tornado e muitas pregas miúdas no cós, colete de chita amarela salpicada de florinhas verdes, camisa branca, de linho, com mangas enfunadas e abotoadas no pulso, meias finas e soquinhas61 de pano azul com ponteiras de verniz.

Atou na cabeça um lenço branco de cambraia, bordado, lançou aos ombros o capotilho novo de baeta escarlate debruado de fita larga de veludo preto com as pontas caídas à frente, até a cintura e tomou na mão enrugada e seca um lenço engomado, de franja, e entremeios de renda.

O marido enfiou a melhor calça de pano, avincada, com abertura em baixo a apolainarem o tamanco, colete de fustão amarelo com duas ordens de botões de vidro, niza62 azul de abas curtas, gola alta, botões amarelos, as mangas justas de canhão até a raiz dos dedos, e colarinho muito engomado e teso apontado ao lobo das orelhas.

Pôs na cabeça chapéu de feltro de copa afunilada, e sobraçou o guarda-sol de paninho escarlate com espigão de metal lustroso e um cabo de osso representando um punho, toscamente esculpido nos torneiros da Bainharia do Porto.63

Atravessaram assim o Arco da cidade em Braga e seguiram no meio da rua do Souto, um ao lado do outro, radiantes, buscando o retratista.

Adiante da galeria do paço episcopal se lhes deparou, pendurado na ombreira duma porta,

55 De rojo: no chão, se arrastando; humilhado56 Esparto: planta da família das gramíneas (Stipa tenacissima, Lin.), cujos caules são aproveitados no fabrico de cestas, esteiras, cordas, etc. (Do latim spartu).57 Futurar: prever58 Morcão: indolente; retraído; patife. Exemplo: Aquele tipo é um morcão59 Capricho, impulso repentino. No contexto, capricho, apuro, esmero.60 Serguilha ou seriguilha: pano grosso de lã sem pêlo61 Pantufas (chinelo de pano)62 Tipo de tecido originário de Niza (Nice), França63 A toponímia medieval da cidade do Porto garante a população ocupada não só no comércio mas também nos ofícios mecânicos: Rua da Bainharia (bainhas e espadas), rua dos Ferreiros (ferrarias), rua dos Francos (comerciantes franceses), rua dos Mercadores e rua das Congostas (entre muros).

25

Page 26: Alberto Braga - Contos Da Aldeia

Alberto BragaContos da aldeia

um quadro grande de caixilho dourado com muitas fotografias em exibição.Perguntaram, na loja de pano, o que havia ao lado, onde se tiravam os retratos e,

devidamente encaminhados, subiram ao segundo andar, onde ficava o ateliê.O fotógrafo os retratou em grupo, um junto ao outro, ambos de pé, o marido com a mão

direita espalmada assente sobre a espádua descaída da mulher.Ficaram com a cabeça muito levantada, os olhos arregalados e espantadiços, os beiços

franzidos, os membros hirtos e constrangidos, numa atitude lorpa, grotesca e ridícula!Logo que o manco partiu tia Ana lhe seguiu no encalço pra procurar carta do filho.No dia em que chegava a mala do Brasil iam as mulheres de Isabelinha pedir ao Tomé

boticário, que deixasse ir o filho ao correio pra lhes ler as cartas.Se não havia freguês aviando o pai o mandava, e o Andrezinho partia alegre porque gostava

da brincadeira.Era lindo ver aquele quadro!O rapaz se sentava no espigão dum muro baixo, à sombra dum sobreiro. Em volta dele

mulheres e homens apinhados, com a boca aberta, o escutavam em religioso silêncio.O filho do boticário ia lendo, uma por uma, muito vagarosamente, as cartas que lhe

entregavam.Não havia segredo pra alguém.Como o rapaz lia a alto e bom som ouviam todas as cartas uns dos outros, como se fossem

uma só família. E alguma notícia triste ou notícia alegre era igualmente sentida e comentada por todo o auditório.

Tia Ana, como já lhe custava andar, chegava no fim de todas.Lhe Cediam logo passagem. — Deixai, que tenho tempo. — Dizia com a carta do filho apertada na mão.Enfim chegou sua vez.O filho acusava a recepção dos retratos mas dizia que não tinha gostado. Tia Ana

entristeceu.A carta prosseguia no mesmo assunto e terminava assim:— Ide à casa de meu correspondente, os senhores Nogueira & Sá, da rua das Flores, e

perguntai sobre meu amigo e sócio Joaquim da Silva Ferreira, que vos dará a instrução precisa.André, depois de ler, explicava sempre: — Percebeste?, tia Ana. Quer que tu e teu homem ide a Porto, à rua das Flores, à casa dos

senhores (e recorria à carta), dos senhores... Nogueira & Sá, e lá procurem o senhor..., o senhor... (recorria de novo ao papel) Joaquim Ferreira da Silva, que, pelos modos, é o sócio de seu José. Percebeste?

— Percebi, percebi. — Pois é o que tendes a fazer. E adeusinho. Até outra vez.O rapaz restituiu a carta e, como não havia mais alguém ali, saltou do muro e voltou à

botica:

** *

Na loja de ferragem da firma comercial Nogueira & Sá estavam, havia cerca duma hora, tia Ana de Isabelinha e o marido esperando o sócio do filho, que os mandara esperar ali.

Era meio-dia quando o brasileiro entrou.

26

Page 27: Alberto Braga - Contos Da Aldeia

Alberto BragaContos da aldeia

O patrão Nogueira os apresentou ao recém-chegado. Tia Ana e o homem se levantaram humildes, com os braços caídos, conturbados de acanhamento.

— Então sois os pais de meu sócio, hem? — Saibas que sim. — Responderam ambos em coro. — Pois por muitos anos, e bons. — Lhes disse o brasileiro.Tirou da algibeira do colete branco um relógio de ouro, viu as horas e, se voltando a

Nogueira: — São horas. Tem lá cima tudo preparado, hem? — Está tudo pronto. — Respondeu o ferragista.Silva se voltou aos lavradores e lhes disse: — Subis com este senhor, que vos esperarei aqui. Não vos demoreis, hem?Tia Ana, seguida do homem, subiu a uma sala do primeiro andar. Sobre um canapé de

palhinha estava estendido um casaco preto, um par de calça, um par de bota e um chapéu alto, de seda. Ao lado havia um vestido de seda preta com folhos, um xale de cachemira, sapatos de duraque, um chapéu de veludo carmezim com flores amarelas e plumas brancas.

Entrou na sala uma criada velha das manas do Nogueira, tomou nos braços o vestido de seda, o chapéu, o xale e os sapatos e pediu a tia Ana que a seguisse ao gabinete próximo.

O caixeiro da loja ficou só com o lavrador. Lhe disse que mudasse o fato de aldeão que trajava e o substituísse por aquele que via ali.

— Mas... — Opôs timidamente o pobre do homem. — Te ajudarei, te ajudarei. Andes depressa.E, apressado, atabalhoadamente, lhe tirou a niza, o colete amarelo e as calças de saragoça.64

Quando o homem se sentou numa cadeira pra enfiar o cano das botas, caíam da testa bagas de suor copioso.

Estava aflito, quase apoplético, com o laço da gravata a lhe apertar a garganta, como a corda dum enforcado.

Aquele casaco lhe pesava nos ombros como uma armadura de aço de D. João II.Se abriu a porta do gabinete e apareceu tia Ana vestida de senhora. Ó! Os pés se lhes

estorciam nos sapatos, o chapéu lhe caía na nuca! A criada vinha atrás, a passo, como aia que segue uma rainha e, lançando um olhar e sorriso maliciosos ao caixeiro, dizia:

— Hem? Estão que nem dois fidalgos!Marido e mulher empalideceram e tremeram quando se viram naqueles trajes. Despertou-

lhes na consciência o sentimento do ridículo.Se entreolharam mudos, contrafeitos, e desceram ambos, com muito custo, amparados ao

corrimão, os degraus da escada até a loja.E a criada e o caixeiro, que os viam do patamar, abafavam com a mão na boca as

gargalhadas da troça. — Aí o diacho da velha, — exclamava a criada, rindo — que me parece mesmo um

entrudo!

** *

Entraram ambos na fotografia Fritz, da rua do Almada.

64 Saragoça (Zaragoza em castelhano e aragonês) é município e capital da comunidade autônoma de Aragão e da província de Saragoça. O município abrange área 1062,64km2.

27

Page 28: Alberto Braga - Contos Da Aldeia

Alberto BragaContos da aldeia

O sócio do filho explicou ao retratista como desejava o grupo.Passaram ao ateliê, muito desconfiados, se olhando de soslaio.O homem bufava, a suar constantemente.Foram colocados no foco, um ao pé do outro, com uma mesa de permeio, e atrás com um

reposteiro azul, que caía em amplas dobras sobre o tapete. Quando o fotógrafo assestou sobre eles a lente da máquina, retirou, de repente, a cabeça de sob o pano de veludo preto que o cobria, e observou espantado:

— Então estais chorando?!Enxugaram os olhos apressadamente e se colocaram na mesma posição.Na segunda tentativa, porém, as lágrimas e os soluços irromperam violentos e o homem de

tia Ana, se afastando da mesa, se dirigiu ao sócio do filho e lhe expôs, chorando.— Como assim?, meu senhor. Não tiramos o retrato. — E, enxugando as lágrimas ao

canhão do casaco, continuou: — Nada. Escrevas a meu José, e lhe digas que não senhor, que ... não pode ser!... Se ele não

quer mostrar à senhora o retrato que lhe mandamos, é o mesmo, que diga ... que já não tem pai, nem mãe!

Aqui foi um soluçar aflitivo e um abanar convulsivo de cabeça, que deixou estarrecido o brasileiro.

Tia Ana concordava com o marido: — Lhe Digas, meu senhor, que — nos dizia ela com voz trêmula — que... morremos, sim

que já morremos... ambos.

** *

Na tarde desse mesmo dia, quando os últimos raios do sol poente purpurizavam a cumeada das montanhas, e nos respaldos dos outeiros vinham descendo as sombras esfumadas do crepúsculo, voltavam ambos a Isabelinha.

Se sentavam repetidas vezes na orla do caminho, fingindo que a distância os fatigava! Permaneciam silenciosos durante alguns minutos, um ao lado do outro, com os olhos esmorecidos e roxos de chorar.

Mas o homem, quando via rebentar65 as lágrimas nos olhos da mulher, se fazia forte, continha a comoção, e lhe dizia baixo, a sorrir contrafeito, a acotovelando de esguelha:

Então, ó Ana! Ai! que já não tenho companheira pràs romarias!E era triste ver, então, aqueles dois velhos seguirem até sua aldeia, a pé, cabisbaixos,

suspirando de vez em quando, com o coração retalhado pela mais cruel decepção!

65 Rebentar: brotar

28

Page 29: Alberto Braga - Contos Da Aldeia

Alberto BragaContos da aldeia

O sermãora um dia de festa e de grande romaria.

Desde a madrugada eu estava debruçado no muro de meu quintal, à sombra duma acácia, onde trinava um rouxinol, pra ver passar os romeiros que se dirigiam, em bando, ao arraial.

Antes de chegar ao adro se passava por dois arcos de murta florida, dos quais pendiam bandeiras e galhardetes66 de cores garridas.

Às onze horas da manhã se ouvia o murmurinho surdo do ajuntamento no lugar da romaria. Na estrada já pouca gente passava e quem ainda vinha à festa caminhava devagar, fatigado, rente aos aros das quintas pra se abrigar do calor ardente e abafadiço de julho.

De repente, na curva que a estrada faz, junto ao pinheiral, apareceu a carruagem da senhora viscondessa, que era, nesse ano, a juíza da festa.

Os transeuntes paravam, encostados aos muros, e se voltavam a ela, com o chapéu na mão, como se abrissem passagem respeitosa a uma rainha. A carruagem descoberta era tirada por duas éguas inglesas que esbofavam com ruído, batendo as patas a compasso na areia fina e reluzente da estrada. O cocheiro vinha aprumado na almofada, com as pernas esticadas e, na mão direita, levantada, suspenso o pingalim.67 Dentro, reclinada no estofo escuro da carruagem, a senhora viscondessa sorria afável aos lados, agitando levemente a cabeça. Uma marquesinha cor de pérola a abrigava do sol. No lugar da frente ia o senhor abade, um abade ainda novo, muito escanhoado, vestido com batina lustrosa, cabeção de renda, barrete de cetim levemente inclinado na coroa da cabeça. Levava as mãos cruzadas sobre o ventre e os olhos fitos no vestido da viscondessa, um vestido verde-mar, com guarnição de renda, que se abria diante dele, como um leque.

Os romeiros, só continuavam o caminho depois da carruagem passar e, olhando entre si a um lado e a outro da estrada, sorriam gloriosos.

Quando a senhora viscondessa apeou à porta da igreja, estalou no ar uma girândola de foguetes e eu, que não tencionava assistir a festa, acendi um charuto e me dirigi vagarosamente ao lugar da igreja antes que principiasse o sermão.

** *

Estava a igreja armada com sanefas e cortinas de damasco escarlate, onde as luzes das tocheiras de prata do altar punham reflexos vermelhos.

Fora da tela gradeada do altar-mor se via o povo de pé, apinhado, com o olhar espantado e perdido na decoração ostentosa do templo. A pedra do altar-mor estava revestida com toalha franjada de renda. Um tapete largo, de variegadas cores, cobria o estrado do altar, descia os três degraus preso por varões de metal lustroso e se estendia na capela-mor até a grade. Três padres velhos, avergados68 sob o peso das capas de asperges com brocados de ouro, estavam sentados ao lado, com os pés unidos e estendidos à frente. Se sentia um cheiro forte a incenso e, no coro,

66 Galhardete: pequena bandeira, maior que a flâmula67 Chicote comprido e desligado, usado pelos cocheiros68 vergados

29

Page 30: Alberto Braga - Contos Da Aldeia

Alberto BragaContos da aldeia

soavam as últimas notas plangentes das rabecas acompanhadas a órgão e rabecão.A senhora viscondessa entrou, apressada, pela porta lateral, que dava à sacristia, e se

ajoelhou diante do altar com a cabeça muito levantada e os olhos pregados na imagem do Cristo crucificado em meio a luzes e ramos de flor. Depois de rezar com as mãos postas em súplica junto ao seio se persignou lentamente e se sentou.

Nesse instante houve um rumor vago entre os fiéis que enchiam o templo.O pregador aparecera no púlpito. Seu rosto oval duma palidez maviosa, fronte larga, barba

escanhoada e azulada no queixo, se destacava da alvura da sobrepeliz de cambraia bordada.Suas mãos estreitas e brancas saíam dentre as rendas aniladas das mangas, que lhe

chegavam até a raiz dos dedos.O abade olhou atentamente o auditório, e ajoelhou. Se ergueu depois, arrepanhou os canhões

da sobrepeliz, ajeitou a estola, expigarrou69 com tom solene e passou na flor dos lábios o lenço, que depôs cuidadosamente ao lado. Em seguida, fincando a palma das mãos no parapeito do púlpito, adiantou o busto à frente e principiou, com voz débil:

— Mulierem fortem quis inveniet?70 Provérbios. 31Era o sermão de Santa Isabel, rainha e mártir. O pregador historiou a vida da santa, desde o

tempo em que, menina e moça, em seus palácios de Aragão, seu principal divertimento era a oração e o exercício da caridade. Desposada por el-rei de Portugal, dom Deniz, em breve as leviandades amorosas do esposo lhe amarguraram o coração traído.

— Porque — exclamava o pregador, alçando o braço — quantas vezes o manto duma rainha esconde um coração atribulado!? No meio da ostentação dum palácio, cercada de toda magnificência real, filha e esposa de rei, como a grande rainha de Lacedemônia, quae Regis filia, Regis uxor, a princesa santa não tinha o sossego, o descanso, a alegria da mulher humilde dum mecânico!

Era rainha, Regis uxor, era poderosa, rica mas a principal riqueza era a de sua alma.O ouro copioso de seus cofres não tinha o grande valor do ouro de alto quilate de seu coração, ouro-de-lei,

puríssimo, sem liga, que se não gasta e consome com o uso, antes se acrisola e engrandece com o exercício de boa ação!

Algumas mulheres soluçavam, comovidas, e a senhora viscondessa, que o ouvia com atenção, fechava os olhos, em sinal de concordância, e acenava afirmativamente a cabeça.

Prosseguia o sermão. O pregador falava da santa, quando acudia pressurosa aos infelizes. Referiu o milagre da transformação dos pães em flores, sendo surpreendida pelo rei, quando ia esmolar aos pobrezinhos!

Depois, adiantando, paralelas, as mãos, como se quisesse atrair num braçado71 o auditório estupefato, dizia:

— Vede pra que serve o ouro! Não vos julgueis desgraçados se vos não assistem grandes riquezas! Não deixeis que a inveja se enrosque, como serpente ardilosa do Inferno, em vossos corações.

E, apontando o indicador ao céu, prosseguia com voz mais solene:— É aí que se vê a Previdência Divina! Concedeu o ouro aos ricos pra que o distribuíssem entre os pobres!

Pedir não é humilhação nem vergonha. Nos deu o exemplo Jesus, o Divino Mestre, que ensinou aos discípulos pedir com humildade!

— E que maior consolação — continuava o pregador — que socorrer com esmola aqueles que a fortuna fez menos abastados!? Apagar a fome, saciar a sede, vestir os nus, enxugar as lágrimas das viúvas, amparar a orfandade, dar arrimo à velhice!

E exclamava:— Ó! Santa caridade! Ó! flor sacrossanta do altar de Deus! A caridade ...

69 Vocábulo não encontrado. Provavelmente pigarreou70 Uma mulher forte quem encontrará?71 Num braçado, numa braçada, num abraço

30

Page 31: Alberto Braga - Contos Da Aldeia

Alberto BragaContos da aldeia

E, se retraindo no púlpito, arqueando os braços à frente, aproximando as mãos com a cabeça72 do indicador e polegar delicadamente unidas, recitava, com voz untuosa repassada de mimo:

Na noite a virgem modesta,A casta filha de Deus,Se furta aos hinos da festaE, envolta em cândidos véus,

Desce a escada suntuosa.Mãe dos maus, irmã dos bons,Lá vai levar carinhosaA toda parte seus dons.

Foi dum efeito surpreendente! O auditório sentia calafrio. Passava nele a corrente magnética do entusiasmo!

O pregador arrematou em tom familiar, com voz mais baixa, aconselhando os pobres a seguir o exemplo de Jesus, que andou pedindo no mundo e aos ricos a se amoldar pela Rainha Santa, que distribuiu entre os desgraçados a riqueza de seu palácio.

— Amém.

E saiu do púlpito açodado, vermelho, anelante, enxugando com o lenço o suor copioso escorrendo da testa.

** *

Nesse dia o senhor abade jantou com a condessa. Quando cheguei já tinham se levantado da mesa e estavam sentados no terraço, à sombra do toldo listrado.

Defronte da viscondessa, o abade, refestelado numa larga cadeira de vime, sorvia o café a pequeninos goles.

Cumprimentei o pregador pelo sermão. A senhora viscondessa, levantando entusiasticamente a cabeça, confirmou ao lado:

— Admirável! Admirável! Me digas, senhor Alberto. — Continuou ela, me batendo familiarmente no joelho — Não achas que o abade recitou a poesia com mais mimo e mais sentimento que Emília Adelaide em Dona Maria?73

— Á! — Exclamei, espantado do confronto — Sem dúvida!O escudeiro entrou com uma bandeja de prata pra receber as chávenas. Se aproximou da

Senhora viscondessa e lhe disse a meia-voz: — Está lá baixo uma pobre, que pede uma esmola a vossa excelência. — Que impertinência! — Exclamou ela, carregando o sobrolho com gesto de enfado —

Pois lhe dês uma esmola, Francisco.O senhor abade, que ia beber o último gole de café, ouvindo aquilo, suspendeu a xícara no ar

e acudiu de lado, com modo insinuante:— Isso! Os acostumes!, senhora viscondessa. — Dizia ele, meneando pausadamente a

cabeça — Os acostumes mal e verás que não te largam a porta!

72 A ponta73 Emília Adelaide, festejada atriz, representou a personagem dona Maria na opereta de costume em 3 atos Os noivos, de Artur Azevedo, representada em primeira vez, no Rio de Janeiro, no teatro Fênix Dramática, em 12 de outubro de 1880.

31

Page 32: Alberto Braga - Contos Da Aldeia

Alberto BragaContos da aldeia

Às cerejasateram as três badaladas do meio-dia na torre de Santa Eufêmia. Os rapazinhos que

freqüentavam a aula régia de José Sabino começaram a sair com as lousas pendentes no pescoço e os livros embaixo do braço. O mestre-escola esteve um instante à porta lhes recomendando com tom de voz ameaçador:

— Ora, olhai agora se ireis direto e quedos até casa, se não...E agitava na mão penugenta o junco punidor.Enquanto o olhar austero do mestre os alcançava iam bem, todos muito direitos, dois a dois,

de mãos-dadas como uma leva de degredados mas, apenas o caminho voltava74 à direita, e entre o mestre e os discípulos ficava uma sebe muito alta e espessa, que os abrigava, adeus! Corria tudo em debandada como abelhas que irrompem dum cortiço!

Eu, então, gostava imenso de ver a pequenada assim, correndo, saltando, rindo a gargalhada, escalando os muros, invadindo os campos como uma horda de vândalos terríveis. Só me custava ver, no tempo defeso, quando trepavam aos castanheiros, pra ir até lá encima roubar entre os ramos as ninhadas dos passarinhos.

Assim que chegava o mês do são João aquela enorme figueira do passal aparecia toda carregada. E os ramos que ficavam eminentes sobre o cunhal do muro até vergavam a fora, ao lado do atalho, com o peso dos figos!

Era um fartote75 pros pequenos!O mais destro marinhava nas fendas do muro, se escachava num galho mais consistente da

árvore e de lá ia atirando a baixo os figos maduros, os que podia pegar.E o bonito era ver o abade, o bom velho abade que desatava a rir muito satisfeito quando a

criada lhe referia, indignada, o assalto dos pequenos. — Coitadinhos! — Dizia ele — Ó! Ana! Quem me caçara76 no tempo em que eu fazia o

mesmo às macieiras do pároco de minha terra!Certa vez, quando os surpreendi na figueira do passal, me lembrei, com saudade, dum

assalto que dei, também, há um bom par de anos!, a uma cerejeira...Contarei a história:

** *

Já me penujava o buço e, como tinha a vida menos canseirosa77 e o sangue na guelra, dei a freqüentar teatro e ler romance! Foi minha perdição! Por um capricho da sorte quase todos os romances falavam de janotas que se perdiam de amor por atrizes. Certa vez se me deparou um diálogo entre Alexandre Dumas e outro escritor francês. Dizia assim:

— Parece incrível, Alexandre, que em Paris andem cinqüenta rapazes doidos de amor por atrizes.

74 Se inclinava75 S.m., enchimento de barriga, barrigada, fartadela76 Quem me dera o tempo quando eu fazia o mesmo; se alguém me visse quando eu fazia o mesmo...77 Cansativa

32

Page 33: Alberto Braga - Contos Da Aldeia

Alberto BragaContos da aldeia

— Parece incrível — Opôs o Papá Dumas, que era pecadoraço vezeiro neste particular —que haja cinqüenta que não estejam!

Vão lá nos dizer que tudo aquilo e ficção!A gente principia a ler romance e tem logo vontade de realizar na vida o que eles nos

referem. Todos queremos ser Antonys, Werthers, Camors, Armandos...Nos bastidores do teatro Baquet levantei o altar ao sacrifício do meu coração. Principiei a

entabular relação com os atores cômicos, que a gente se persuade estarem sempre rindo e que, via de regra, são os mais sorumbáticos aqui fora, depois com os tiranos e os galãs. Isso era indispensável a um noviço que, mais tarde, tivesse de cair apaixonado aos pés mimosos de qualquer atriz sentimental.

Eu, então, tinha gosto e jeito pro namoro. — Me diziam os amigos! E essa fama veio de me ouvirem improvisar um madrigal à mais gentil e talentosa atriz daquele tempo.

Estava eu à porta do camarim de Dias, que tem um filho chamado Josué. Como durante o espetáculo a atriz não tivesse correspondido à impertinência de meus olhares flechados por um binóculo, quando ela passou lhe voltei as costas e não a cumprimentei. Vejam que despeito!

Ela se aproximou do pequenino, o acariciou e lhe disse sorrindo: — Não voltarás a cara à gente, não?, Josué.E me fitou com ar insinuante. — Esse Josué — acudi, soprando uma espiral de fumo do charuto — se parece, agora, com

o Josué da Bíblia, — Por quê? — Perguntou Dias. — Faz parar o Sol!Esplêndido!Daí a diante uns sujeitos, que hoje são mais felizes e mais tolos que eu, vinham me pedir

frase pra improvisarem à passagem das requestadas.Chegou duma vez, em meado de abril, uma companhia de zarzuela.78

Às primeiras-damas não falava eu.— Qual! Essas eu via passar pelo braço duns figurões de bigode espesso e suíças grisalhas,

cabelo lustroso puxado às têmporas, com ar sério e grave de diplomata.Eu só conhecia as comparsas, as que faziam de soldado raso na Mariana, de ninfas no jovem

Telêmaco, de camponesas na Catalina, e que no Relâmpago dançavam o tango vestidas de encarnado, com o rosto farruscado79 a fingir preto!

Dentre elas havia uma, Consuelo, que era muito formosa, muito elegante e que eu preferia às outras. Ainda me parece que a vejo, quando ela passava no meio dos adoradores, saracoteando os quadris, o peito ancho,80 o tronco descaído a trás, na cintura, e a cabeça levantada e oscilante, como a cabeça esbelta dum cavalo andaluz. Tinha os olhos pretos, úmidos e azougados, que é como o povo diz duns olhos que têm a esclerótica levemente azulada, os lábios cor de cereja, um pescoço de garça, como o dos retratos de Marie Antoinette,81 e um pé tão pequenino, gracioso e arqueado que inspirava desejo de lhe dizer com nosso padre Manuel Bernardes:

— Me dês limpeza grande em meus lábios pra calçar teus pezinhos de mil ósculos santos!Às vezes tinha momentos duma tal melancolia, de tão profunda mágoa, que me deu vontade

de saber a causa. A encontrei numa noite de benefício, sozinha, cantando a meia-voz esta

78 manifestação folclórica de música cantada na Espanha79 Farrusco: (adjetivo) escuro, quase preto80 Ancho (hispanismo): largo81 Maria Antonieta

33

Page 34: Alberto Braga - Contos Da Aldeia

Alberto BragaContos da aldeia

seguidilha:

En un ameno bosque Num ameno bosqueMi niña duerme, Minha criança dorme,Cuidado, pajarillos, Cuidado, passarinhos,No se despierte. Não se desperte.Decid al viento Dizeis ao ventoQue mientras ella duerme, Que enquanto ela dorme,Que sople quedo. Que sobre baixinho

E ficou, depois, muito triste, encostada à porta do camarim, com os olhos fitos no bico de gás, que se abria trêmulo como o leque febril duma espanhola. Tanto indaguei e com tão sincera simpatia o motivo daquela tristeza, que cheguei a saber, um dia.

Coitadinha! Consuelo era filha de saltimbancos. A mãe, que já tinha morrido, dançava na corda bamba. O pai fazia malabarismo, prestidigitação, sabia ler a buena-dicha82 e era um tenor excelente em barracão de feira. Uma irmãzinha mais nova, Conchita, ó! Que linda!, dançava bolero e fandango no meio de praça pública, sobre um tapete esfarrapado, ao som dum tambor que o pai rufava pra atrair a multidão.

Consuelo, com as mãos fincadas nos quadris, a cabeça levantada e sorrindo, cantava malagueñas enquanto o pai agitava uma pandeireta83 biscaia com soalhas de latão!

Como era bonita não lhe faltavam galanteios e bravos.— Alza!84 O1é! Olé! — Gritavam os espectadores, batendo as palma. — Alza!, Consuelo.Logo depois que a mãe morreu principiou a ir à casa, enquanto o saltimbanco estava na

taberna, uma velha esquálida induzindo Consuelo a fugir ao pai e ir a uma companhia de zarzuela, que um empresário rico estava organizando. Tanto a velha pregou, e sempre com prenda, com ramos de violeta e Que guapa és! Caramba! Serás feliz! que a pobre rapariga, numa fria manhã de nevoeiro, se levantou da cama e foi, pé ante pé, beijar Conchita, que ainda dormia, e fugiu!

Vejam que desgraça!Afinal, de terra em terra, de desilusão em desilusão, sem um raio benéfico de esperança que

lhe fulgurasse na negrura da sorte, veio Consuelo parar em Portugal!— Hoje — me disse ela — não me contentaria o ouro nem as palmas, nada! Trocaria tudo

pra ver meu pai e minha Conchita!E a voz trêmula se lhe embargou na garganta sufocada pela lágrima!— Mas que canção é essa que te entristece? — Perguntei.Era uma canção popular, com que a mãe de Consuelo embalava Conchita nos braços,

quando era, ainda, muito pequenina:

En un ameno bosqueMi niña duerme.Cuidado, pajarillos.No se despierte.

Três dias antes da companhia partir a Sevilha eu e uns amigos oferecemos a Consuelo um jantar, no campo, embaixo duma ramada.

Eram os últimos dias de maio.Tínhamos partido na madrugada, enquanto as gotas de orvalho tremeluziam nas encostas

floridas, pra fugirmos ao calor intenso do meio-dia,

82 Boa-sorte83 Pequeno pandeiro84 Alzar (espanhol): subir

34

Page 35: Alberto Braga - Contos Da Aldeia

Alberto BragaContos da aldeia

A verdura tenra dos prados ondulava serenamente à mercê da viração fresca da manhã.Quando a estrada costeava o sopé duma colina saltávamos da carruagem e seguíamos, então,

a pé, cortando a eito nos atalhos, atravessando campos de milho e extensos trigais, abrigados pela sombra das carvalheiras, onde chilreavam pintassilgos e rouxinóis.

Às portas dos currais encontrávamos, ainda, as vacas saindo pausadamente ao pascigo.85 Na residência do senhor abade se via o muro do passal coberto de trepadeira e, embaixo do peitoril duma janela, numa gaiola de cana pendurada na parede, assobiava o melro.

Consuelo ia encantada!O ar fresco, puro e sadio do campo lhe abria apetites selvagens e contraditórios.Às vezes desejava ser como o boi manso, que vai pastando, tranqüilamente, num bosque, na

beira da água corredia. Outras, então, queria, antes, ser como a potra que se avistava ao longe, num extenso prado, correndo com a crina esparsa, saltando, sobre os giestais floridos

Ao passar nos silvados, Consuelo colhia as amoras maduras e as comia com sofreguidão.Ao cabo dum quarto de hora de caminhada Consuelo avistou, no fundo duma ladeira que

descia a um pomar, uma cerejeira carregada de fruto.— Cerejas! — Exclamou ela — Ai! Quero cereja!Descemos todos ao pomar e, então, eu, que era o mais aldeão, trepei na árvore, até os ramos

mais altos.Consuelo ficou embaixo pra aparar as cerejas. Os primeiros dois pés que lhe lancei, colocou

sobre o pavilhão dos ouvidos, como dois brincos. Ficavam como duas contas enormes de coral! Em seguida apanhou, na ponta dos dedos, a roda do vestido, a frente, e me disse que atirasse ali as cerejas que fosse colhendo.

— Lá vai!, Consuelo. — Gritava eu de cima. — Venham. — Dizia ela.E, fechando os olhos, retesava e repuxava o vestido pràs aparar ali.Consuelo já tinha uma boa regaçada quando, de repente, ouvimos, ao longe, uma voz

trêmula, que cantava assim

En un ameno bosqueMi niña duerme.Cuidado, pajarillos.No se despierte.

Consuelo foi deixando, pouco a pouco e quase insensivelmente, cair o vestido, cair as cerejas, cair os braços e ficou a me olhar, com a cabeça erguida, na imobilidade duma estátua.

Eu, nos últimos galhos da árvore, em ponto iminente, ainda pude alcançar a estrada.E vi, então, sair duma taberna que se abria, uma companhia de saltimbanco.Ia atrás um velho vestido de malha, com lentejoulas que reluziam ao sol. Levava, pela mão,

uma pequenina, com uma saia curta de cambraia, muito suja e remendada. O saltimbanco caminhava devagar, com a cabeça descaída ao peito, os olhos no chão, a cantarolar:

Cuidado, pajarillos.No se despierte...

Depois, quando desci os olhos a Consuelo, que permanecia embaixo, como estarrecida, vi, à flor das pálpebras, duas lágrimas enormes que tremiam como duas gotas de orvalho nas pétalas duma rosa!

85 Pasto, pastagem

35

Page 36: Alberto Braga - Contos Da Aldeia

Alberto BragaContos da aldeia

O jantar de Natalté a natureza se enfeita pra festejar também o Natal do Deus-Menino!

No meio-dia, quando o Sol parece estacionar no zênite, como um viajante que pára no viso duma montanha pra resfolegar da caminhada, estava o firmamento azul, duma limpidez cristalina, tépido o ar e, dentre as flores silvestres dos prados e das encostas, ascendia uma tênue vaporização como se a Terra fosse um enorme turíbulo a incensar ao céu!

As vacas descansavam nos currais, os rebanhos nos redis e, à sombra das arribanas,86 se viam os carros com os cabeçalhos caídos, os arados com as rabiças a terra e as cangas, os ancinhos, todo o utensílio de lavoura deposto a um canto como armas valentes do trabalho nas feriadas e alegres horas do descanso.

As moças iam colher arregaçadas de violeta e rosa pra inflorar o presepe. Nas cozinhas andava tudo numa roda-viva! Se tirava da arca a melhor toalha de linho, a melhor louça da copa e se punha na mesa que nem um palmito! Até o balaio do pão estava aberto e franco porque não havia de haver pobrezinho que fosse da porta sem a consoada!87

E o presepe? Aquilo se podia ver! Na frente, deitado sobre as palhas dum estábulo, se via o Menino, de barriga ao ar, nuzinho em pelote,88 a sorrir a Nossa Senhora, que o contemplava de joelho, com o radiante júbilo das mães. Doutra banda estava são José com a enxó e o martelo de carpinteiro postos ao lado. Mais atrás uma vaca malhada fitava no infante seus grandes olhos redondos e um jumento lanzudo, de orelha empinada, aproximava cobiçosamente o focinho, dilatando as ventas ao cheiro fresco da palha. Nos atalhos da encosta desciam, diante das bailadeiras, os pastores de Belém, um a soprar na gaita de fole, outro a rufar o tambor, outro a bater as castanholas. No cabeço do monte já apareciam os três reis magos, são Baltazar, são Belquior, que é o rei preto, e são Gaspar. Todos eles cobertos de capa de arminho, com a coroa reluzente, montados em cavalo baio e russo, ajaezado de ouro e pedraria. No cimo de tudo, entre nuvens, surgia uma pomba branca de cujo bico cor-de-rosa se espargiam raios de luz celestial que vinham aureolar o berço do deus-menino! Era uma coisa rica!

Em volta do presepe a pequenada cantava alegremente:

O Infante suavíssimoVinde, vinde já ao mundo..

E interrompiam o cântico pra correrem à porta a ouvirem as raparigas da vizinhança, que entoavam em coro:

Vimos dar as boas-festasÀ senhora morgadaE pedir que nos mande nossa consoada.

Pois não? Lá entra aquela tropa fandanga na cozinha pra ajudar a fazer os mexidos e a apurar as rabanadas com mel e vinho quente! Uma folia, que era mesmo um regalo ver!

Antes de se ir à mesa se contaram os convivas. Que não fosse se chegar ao número treze e

86 Cabana, choupana; abegoaria; curral87 S.f. Ligeira refeição que se pode tomar na noite em época de jejum; jantar ou ceia familiar em noite natalina; presente que se dá no Natal; festas. (de consoar).88 Em pêlo

36

Page 37: Alberto Braga - Contos Da Aldeia

Alberto BragaContos da aldeia

não houvesse mais alguém! Credo! O número treze é número aziago! Estando treze pessoas ao jantar, no prazo dum ano tem de morrer uma. E deixem lá falar quem fala e quem diz que são estórias! Até Alphonse Karr confessa que não gosta de jantar a mesa de treze pessoas!

— Também esse? — Perguntou, circunspectamente, a senhora morgada, sem ter o gosto do conhecer.

— Pudera, minha senhora! — Então, vás vendo! — Mas — atalhou o cético — dizes que não gostas de estar à mesa de treze pessoas,

quando o jantar chega só pra doze. — Á! — Exclamou a companhia — Olhes o demo do homem!Quando todos procuravam seu lugar respectivo, exclamou alguém: — E tio Simão? — Ai! Falta tio Simão!E cada um se desculpava com o próximo. — Esta gente traz a cabeça a juro. — Exclamou a senhora. — Já vistes? Ir jantar sem o velhinho! — Quem chega aos açudes chamar pelo Simão? — Irei. — Eu. — Eu também. Afinal, vai tudo.As raparigas se ergueram, todas duma vez, e deitaram a correr! Parecia, mesmo, uma

revoada de pombas mansas que ouvissem estourar, ali perto, um tiro de espingarda Fugiu tudo!

** *

Morava tio Simão na outra banda do rio. Tinha um casebre de telha-vã, com seu palminho de terra plantado de horta. Contava 75 anos mas rijos. Tão rijos, que o deixavam ainda atravessar as poldras todos os domingos, quando vinha jantar na casa da senhora morgada. Fora casado e tivera três filhos mas Deus chamou a si os três filhos e a mulher e o deixou sozinho neste mundo, vivendo da caridade de seus benfeitores.

Certa vez, quando estava sentado ao sol, que, como diz o outro, é a roupa dos pobres, viu se aproximar um cão amarelo, pequeno, feio, rabudo, com duas malhas na cabeça. Simão lhe atirou pão. Tanto foi dando de comer que o cãozinho se conservou junto a ele. Depois já ninguém o retirava dos pés de seu benfeitor.

Pra quem vive sem companhia, vejam lá que alegrão é encontrar junto a si um pequenino animal que nos vê com olhos cheios de desinteressado carinho! Ficou o cãozinho sendo o companheiro de tio Simão. Como viesse sem nome, que é como aparecem os enjeitados, tio Simão o batizou.

— Fiel! — Exclamou— Fiel, andes àqui!E se Fiel aproximava do velhinho com a obediência afetuosa dum filho amado. Aonde fosse

Simão ia Fiel.Assim que o sol lhe bateu no postigo, pois era no meio-dia que tinha lugar a visita, Simão

enfiou a melhor jaqueta que tinha, pegou o cajado a que se arrimava, chamou Fiel, deu volta a chave e se encaminhou à residência da morgada. Quando ia pousar o pé na primeira pedra viu Fiel, que ia na frente, resvalar na pedra escorregadia e cair ao rio!

37

Page 38: Alberto Braga - Contos Da Aldeia

Alberto BragaContos da aldeia

Simão recuou, cheio de susto, de aflição, com as mãos postas em súplica. O cão principiou a nadar até seu dono mas ia tão grossa a levada que o não deixava vencer a corrente. Depois de muito esforço conseguiu, afinal, abordar mas todo alagado, tremendo, ganindo, com o corpinho coberto de contusão que recebera do embate das pedras.

— Andes, Fiel. Andes, meu filho... — Dizia o pobre velho, chorando.Tomou o cãozinho nos braços, o achegou ao seio e desandou a casa. No caminho ia

dizendo: — É o mesmo! Farei o caldinho, que há de chegar pra nós ambos!

** *

As raparigas, que tinham saído da casa da senhora morgada, já iam perto do sinceiral89 do rio e, ainda, não tinham visto Simão. Desceram por uma vereda e, quando chegaram à margem, gritaram algumas

— Ô! Tio Simão! Ê! Tio Simão!Ninguém lhes respondeu. — O toparemos em casa. — Propôs a mais expedita.Arregaçaram as saias e, pé aqui, pé ali, atravessaram, cautelosamente, até a outra banda.Ao chegarem à casa de tio Simão aldrabaram a porta e a que bateu, não ouvindo o ladrido do

cão, exclamou às companheiras: — Quereis ver que tio Simão já foi? Fiel não dá sinal!Ao cabo dum instante, porém, apareceu o velhinho a lhes abrir a porta. E, Jesus! Que

gritaria! Falavam todas ao mesmo tempo e ninguém as entendia. — Aposto que estava se ajanotando!90 — Dizia uma. — Ora, já vistes? — Acudia outra. — Como irá ao meio das moças tio Simão se enfeitou

feito um altar-mor! — Hoje deita os rapazes todos a um canto! Olha, véstia nova, hem?!Enquanto diziam isso uma lhe ajeitava a gola da jaqueta, outra lhe laçava o lenço do

pescoço! ...Quando conseguiu que o ouvissem, o velhinho respondeu: — Dizeis à senhora morgada que hoje não irei até lá. — Como não?, tio Simão. Dia de Natal e não ir? Isso lá tem lugar?!...Então contou o que aconteceu.— Ora, adeus. Fiel o mais que tem é nada! É um mimalho. É o que ele é. Deixes que eu até

lá irei.Entraram todas pra ver o que Fiel tinha. O cão estava deitado na enxerga de Simão, abafado

com o cobertor da cama, tremendo.Uma das raparigas o tirou a fora, enxugou o pêlo com jeitoso carinho, o embrulhou no

avental e disse: — O levarei comigo. Coitadinho!Na lareira já cantava a panela, que estava sobre quatro achas acesas.Tio Simão, que assistia tudo aquilo com lágrimas nos olhos, disse: — Deus vos pague no céu, minhas filhas, os benefícios que fazeis a este pobre velho.

89 Salgueiral 90 Se arrumando como janota, se emperiquitando, se enfeitando

38

Page 39: Alberto Braga - Contos Da Aldeia

Alberto BragaContos da aldeia

Tornou a pegar o cajado, que tinha no canto, e foi com as raparigas. Como ia alegre, direito, valente no meio delas!

Os vizinhos lhe diziam: — Ó! Simão! Deram contigo as moças. Estás arranjado!E se fartava de rir como um perdido! Outros, quando viram Fiel no colo da moça,

perguntaram, com malícia: — Ô! Menina! Onde é o batizado?

** *

Ao cair da tarde o velhinho voltou até casa. Vinha vermelho, e caminhava depressa, aprumado, como um rapaz. Como até vinha a cantarolar pelo caminho:

Entro já na lapinhaPois me não posso conter,Porque a sua formosuraMe enche de gosto e prazer.

Um vizinho, que o viu passar, disse consigo: — Hoje Simão leva seu grânulo na asa!Na frente, Fiel ia seguindo na estrada, se voltando constantemente a trás, com medo de que

o dono fugisse e se deixasse ficar com as raparigas!E, então, Fiel ia tão alegre, tão bom, tão esquecido do banho, que até já ladrava às pernas

dos transeuntes! Era um tirano!

39

Page 40: Alberto Braga - Contos Da Aldeia

Alberto BragaContos da aldeia

Vinhos e aguardentesuando entrei ao cemitério lobriguei, no fundo, entre a rama dalguns ciprestes que

orlavam as ruas transversais, o coveiro levantando as últimas pazadas de terra duma vala.O homem cantarolava assim:

Menina, que está à janela,A lançar goivos à rua...

E, depois, agachado no cairel,91 media, com o cabo da enxada, a profundidade da cova, prosseguindo alegremente:

Se o coveiro aqui passa,Os porá na sepultura.

Meteu a pá da enxada na leiva de terra que lhe ficava ao lado, transpôs o cômoro92 doutras sepulturas e parou junto a um esquife pobre, de pau sem forro, com os símbolos da morte pintados de amarelo.

O arrastou com esforço à boca da vala, escancarou as tampas e, ao dar com o rosto do cadáver, exclamou de si a si:

— Ora esperes! Conheço essa rapariga!Entreabriu os lábios com a unha do dedo polegar, se concentrou um instante meditando com

os olhos fechados e, enfim, continuou compadecido: — Á! É a Rosita do tecelão!A medida que retirava, com jeitosa piedade, o cadáver do esquife, lamentava: — Pobre rapariga! Logo vi que não te delatavas93 atrás da filha!Depois, o resto foi rápido e breve.Baldeou o cadáver no fundo da cova, lançou encima a terra que levantara, recalcou bem,

com os pés juntos, os últimos torrões e se retirou até casa com a enxada no ombro.

** *

Aqui se lerá a história dessa mulher. Sua vida é a vida trivial de muitas desgraçadas.Quando tinha apenas dezoito anos Rosa chorou a primeira lágrima do coração retalhado

sobre o cadáver da mãe, que expirou em seus braços.Ficava sozinha no mundo, vivendo pobremente de seu trabalho honesto e incessante, sem

voz consoladora que a alentasse a arrostar toda adversidade que a sorte lhe depararia.O grande perigo estava na peregrina formosura do rosto e na inocência do coração, que é a

formosura da alma.Um dia, Benjamim tecelão, rapaz alegre e bem parecido, que há muito lhe arrentava94 à

porta, lhe disse que a amava. Pra justificar sua declaração propôs, com voz trêmula, sua mão de

91 Borda, extremidade, orla92 S.m. Outeiro, cabeço, cerro93 Aqui no sentido de revelar94 Cortejava, namorava

40

Page 41: Alberto Braga - Contos Da Aldeia

Alberto BragaContos da aldeia

esposo. Mentiu.Ao cabo de onze meses, durante os quais o tecelão ia inventando embargos à realização da

promessa, a pobre rapariga pariu uma filha. As primeiras alegrias da mãe deram trégua ao sofrimento do coração ludibriado. A filha se chamava Isabel, que era o nome da mãe de Rosa.

Depois, quando as lágrimas lhe rebentavam copiosas, Rosa tomava a criancinha nos braços e um sorriso dela era um grato refrigério pràs amarguras da vida.

O operário entendeu que a filha era um vínculo mais apertado que a estola dum sacerdote. Propôs vida em comum. Rosa acedeu de pronto, fiada em que o amor de pai, talvez, despertasse na consciência de Benjamim a idéia do casamento, que a reabilitasse.

O tecelão, vendo que o trabalho de Rosa bastava às despesas da casa, se deixou ficar uma semana sem ir à fábrica. Quando a ociosidade lhe era tediosa, ia procurar distração na taberna mais próxima. Voltou, de novo, ao trabalho mas seu produto o despendia consigo e com amigos, às mesas das tabernas e bancas do jogo, se esquecendo de Rosa e da filha. Aconteceu Rosa adoecer de muita fadiga e pedir algum dinheiro a Benjamim. Ele não teve coragem de negar mas lhe entregou dum modo tão áspero que ofendeu o coração da desventurada mãe.

Foi ali que principiou o calvário de Rosa!Benjamim entrava em casa, alta hora da noite, cambaleante e obsceno. Atirava quantos

insultos lhe lembravam ao rosto da rapariga. Rosa o amparava com brandura, sofria o escárnio com a mais santa resignação, o auxiliava a se deitar. Depois, quando Benjamim, com o cabelo em desalinho, o rosto descorado, ressonava, prostrado com o peso da embriaguez, ela se quedava o contemplando com as faces cobertas de lágrima.

O viço de sua formosura ia, pouco a pouco, desaparecendo. Já não tinha o mesmo brilho nos olhos, o mesmo cetim na cútis, a mesma ondulação nos contornos do rosto. A lágrima deixava um vestígio indelével de sua passagem e Rosa envelhecia e enfeava.

Benjamim, ao acordar do dia seguinte ao da embriaguez, se sentia enfastiado da presença daquela velha e saía de casa sem lhe dirigir uma palavra de gratidão e carinho!

Certa vez, tinha Isabel sete anos, o tecelão chegou a casa num estado lastimoso. Dois amigos e consócios de taberna o levaram, nos braços, até a porta. Benjamim subiu, a custo, os degraus íngremes da escada, abriu, de repelão, a porta da sala, e apareceu, hediondo, tremendo, com olhos injetados, lábios convulsos, cabelo empastado dum suor viscoso. Fez um esforço pra se aproximar de Rosa. Estendeu os braços pra se arrimar à parede, abriu as pernas pra conservar o equilíbrio e, ao arriscar, vacilante, o primeiro passo, caiu de bruços, com todo o peso do corpo, sobre o pavimento!

Isabel, que já dormia, acordou sobressaltada com o estrondo da queda e principiou a gritar de medo! Benjamim se ergueu de golpe, se dirigiu à enxerga em que dormia a filha e espancou brutalmente a pobre criança, que emudeceu de terror aos primeiros tratos. Acudiu Rosa, implorando, com altos brados, a Benjamim que perdoasse a filha mas o bêbedo respondia à súplica da mãe com pancadas e empuxões.95

No outro dia Isabel tinha o corpinho tão macerado que mal se podia remover da cama. Rosa a levantou carinhosamente nos braços, a agasalhou numas saias de baeta e, logo que o tecelão saiu de casa, foi com a filha ao hospital da Misericórdia. O facultativo, que observou a criança, viu, através das lágrimas da mãe, a causa daquelas contusões. A pequenina estava muito doente.

No terceiro dia a filhinha chamou, com voz débil, a mãe. Lhe pediu que se sentasse na enxerga, bem junto a ela, lhe encostou sua loura cabecinha no regaço e disse:

95 S.m. Safanão, sacudidela, empurrão, abanão

41

Page 42: Alberto Braga - Contos Da Aldeia

Alberto BragaContos da aldeia

— Pai é muito mau! E a mãe chora tanto! Se eu morrer pedirei a Nossa Senhora que leve o mar a junto de mim: Queres?

Rosa não respondia porque os soluços que estalavam no peito lhe embargavam a voz.Isabelinha, então, já com a vista turva e a boca entreaberta, lançou os braços ao pescoço da

mãe prà achegar mais a si, estremeceu na derradeira convulsão e ... expirou!Ao cabo dum mês, durante o qual o padecimento de Rosa foi horrível, o mesmo coveiro que

enterrou a filha abriu, ao lado, outra cova pra receber a mãe.

** *

O rosto daquela mulher, magro, lívido, macerado, tinha a impressão indelével da tortura que passara. Não havia nele as contorções da agonia dos delinqüentes, que morrem convulsionados pelo terror dum castigo eterno. O derradeiro alento lhe entreabriu nos lábios um sorriso de bem-aventurança!

É como ficam as criaturas santificadas pelo martírio e que esperam na morte a hora do resgate!

E quem diria, pobre criança!, que tinhas apenas vinte e cinco anos, que foste formosa e que te julgaste feliz no dia em que pousaste, em vez primeira, os lábios convulsos de alegria na face cor-de-rosa de tua filha!?

E saber que o martiriológio é, com certeza, o único elogio fúnebre de tantas desgraçadas como Rosa!

E Benjamim?Benjamim, aquele homem que seduziu impunemente uma mulher e que matou

impunemente a filha, prossegue, inflexível, na vida crapulosa, dominado pelo vício da embriaguez, em que perdeu, pouco a pouco, o vigor e a vida de toda faculdade, saúde, honra e a própria dignidade de ser humano!

42

Page 43: Alberto Braga - Contos Da Aldeia

Alberto BragaContos da aldeia

As arrecadas da caseiraeza a folhinha que 26 de fevereiro é dia de são Torquato, santo guerreiro, que recebeu,

na face esquerda, um golpe de alfanje maometano em guerra de cristandade mas a grande romaria sempre tinha lugar em meado de junho.

Fica a ermida situada em vasta esplanada, no alto duma colina.Logo ao romper a alvorada, nos atalhos da encosta, vinha subindo a turba-multa dos

romeiros foliões. Há cinco anos, como estava um dia de muito sol e de grande calor, era bonito ver o rancho dos lavradores que vinham, abrigados sob os enormes guarda-sóis de paninho escarlate. Aquilo é por luxo! Olhes quem! Eles, que andam todo santo dia de trabalho no meio do campo, sachando, lavrando, podando, expostos à torreira,96 têm lá medo de calor! Pois assim que chega um dia de festa, se fingem mimosos e abrem, então, seus guarda-sóis. Outros que são mais francos, nem abrem. Qual! Os metem embaixo do braço assim como quem abrange um molho de vareta de baleia com paninho encarnado, e partem alegres à romaria.

No lugar do arraial havia arcos de buxo com flor, flutuavam as bandeiras em topo de mastro, estalavam no ar os foguetes de três respostas e, de vez em quando, pra que a folia não arrefecesse o ânimo, rebentava um morteiro, que atroava por toda aquela serrania. Então se via uma revoada de passarinhos que fugiam a longe, espavoridos pelo estrondo!

Atrás da ermida ficava uma alameda e era dali que se gozava um panorama delicioso.Ainda me parece que estou vendo daqui os excelentes campos de milho já maduro, as searas

do trigo douradas de sol e, nalguns campos, como o trigo viera temporão e já houvera a sega, aparecia apenas a resteva.97 Dos ramos dos olmeiros pendiam as vides de enforcado,e, aquém e além, nalguma herdade de proprietário abastado, se destacavam da ramaria escura dos castanhais as folhas dum verde tenro e alegre das latadas. No fundo, córrego abaixo, seguia uma levada que ia mover ali perto as rodas duma azenha.

No arraial alvejavam as tendas de lona, onde se vendia o vinho verde e o sável98 frito. Era ali que estava a grande animação.

— Bebas um quartilho!,99 tio José. — Oferecia um freguês. — Pois venha de lá.E então a peixeira, com os braços arremangados100 e farruscados da fritura, servia um

coparrão de vinho espumante. — Vai outro? — Nada. — Acudia tio José, enxugando os beiços nas costas da mão — Nada. Quero beber

mas a modos. Se um homem bebe demais, como o outro diz: Acaba bebendo o juízo.Como havia missa cantada e sermão se ouvia, cá fora, a música do coro e o canto arrastado e

nasal dos padres. Os devotos entravam e saíam constantemente. Certa vez, à porta lateral da sacristia que deitava ao adro, apareceu o sacristão vestido de batina escarlate com sobrepeliz

96 Insolação, queimadura97 S.f. Restolho, estiva98 Sável: (espécies Alosa alosa e Alosa fallax ) São peixes de migração anual no estuário do rio Douro de março a junho.99 S.m. Quarta parte duma canada; porção correspondente a meio litro. (do espanhol cuartillo)100 De mangas arregaçadas

43

Page 44: Alberto Braga - Contos Da Aldeia

Alberto BragaContos da aldeia

franjada de renda, agitando o turíbulo de prata pra atear mais o fogo do incenso! Nada faltava!No meio daquele poviléu houve um movimento extraordinário. Os romeiros, que estavam,

ao longe, admirando os músicos do palanque, acudiram, também, pra ver o que se passava! Havia apertão, recuada, empuxão e gritaria. Se formaram, de repente, duas alas de povo pra abrir passagem respeitosa e, nisso, a berlinda da senhora morgada, que era a juíza da festa, apareceu, tirada por dois cavalos possantes, com criados de librê, chapéus de tope e agaloados, rodando vagarosamente em direção à porta da capela. Nesse momento solene subiu ao ar uma girândola triunfante!

** *

Quem nunca faltava à romaria de são Torquato era tia Custódia da Moita, que até lá ia, sempre, com o homem e o netinho. Ninguém havia naquele arredor mais estimado e benquisto. A simpatia que inspiravam vinha de serem muito amigos do próximo, tementes a Deus e, ao mesmo tempo, serem muito felizes.

Ora, fazei idéia do que sofreriam! Tinham tido uma única filha, bonita, moça, amiga dos pais. Mas como era muito a amorável e não pudesse ouvir chorar alguém que não acudisse logo a consolar, se deixou levar pelas lamúrias dum fidalgote de Braga e...

A inocência, a bem dizer, se não é de todo cega, trata o amor de lhe vendar os olhos!Quanto ao fidalgo, são baldas certas!, ao cabo dum mês de apaixonados amorios nunca mais

alguém lhe tornou a pôr a vista encima. A desgraçada rapariga não teve mão e si e confessou tudo à mãe. A velhinha chorava que era uma dor de coração ouvir.

— Andas doente? — Lhe perguntavam as vizinhas. — Não ando lá muito boa, não. — Vás ter com o cirurgião, tia Custódia. — A doença que tenho, filha, — opunha ela — é paixão de alma que não se cura na botica!Decorridos alguns meses a rapariga expirou, depois de ter deixado no colo da mãe uma

criança recém-nascida.Ora vejam! Desgraças que acontecem!Irá a três anos que o mês de dezembro foi pra este pobre país um mês de calamidade! Ainda

toda gente se recorda, com mágoa, aqueles dias e noites tempestuosos em que a chuva caía copiosa e torrencial, levantando os rios, alagando os campos e destruindo as sementeiras! Na manhã seguinte a uma dessas noites terríveis doía o coração a quem fosse às aldeias e visse tanto estrago do temporal. Riachos, que no verão parecem uma fita de água que serve apenas de bebedouro ao gado, tomaram tal proporção, era tão forte sua corrente que levavam a diante as rodas dos moinhos, os telheiros, as árvores, o gado, tudo! Era uma desolação completa! À porta dos currais ficavam os pastores toda a noite de guarda com receio de que as enxurrada lhes levassem os bois e os rebanhos. De dia se encontravam os lavradores à entrada dos campos, a contemplar, pesarosos, tamanha ruína. Alguns, com os braços cruzados, meneando tristemente a cabeça, exclamavam, abatidos pelo infortúnio:

— Ora! Aí está tanto trabalho perdido!Depois da chuva e trovoada vinham, então, as lufadas aspérrimas do norte. Parecia mesmo,

que era castigo! A ventania varejava impetuosamente nos ramos nus do arvoredo. E, se algum sobreiro mais valente, que se tinha arraigado mais à terra, tentava resistir, soprava, de rijo, um pé-de-vento, o arrancava, como se lhe metesse pela raiz uma pá de ferro e... o derrubava!

44

Page 45: Alberto Braga - Contos Da Aldeia

Alberto BragaContos da aldeia

Imaginar o que sucederia às árvores mais tenras!Tia Custódia da Moita trazia arrendada a quinta dum proprietário do Porto. Assim que

chegava o mês da colheita Custódia ou o marido se vestiam com o fato domingueiro e iam à cidade pagar a renda. E que não dilatassem muito tempo: Quando não, era logo uma carta do senhorio ameaçando de os pôr fora. Morava ele na Reboleira, uma casa de aparência ordinária, com uma escada muito íngreme, suja e pouco alumiada. Os caseiros o encontravam sempre passeando ao longo da sala, que deitava ao rio, com as mãos enfiadas nos bolsos dum casacão de saragoça já velho e remendado. Até Custódia dizia às vizinhas:

— Tão rico, senhor Torres, e andas feito um pobre pedinte!Torres era um celibatário egoísta, magro, esguio, nariz adunco, olhos pequeninos e vivos

como uma ave de rapina!Depois da invernia, a primeira vez que chegou o mês da renda é que era ver Torres!Entrou tia Custódia levando o netinho pela mão. Expôs ao senhorio sua desgraça, lhe

pedindo que, dessa vez, lhe perdoasse ou diminuísse a renda. — Adeus!, minhas encomendas. — Exclamava o avarento — De cantigas não como eu! Se

não quiseres, não falta quem me amanhe as terras.Pra encurtar razão a pobre mulherzinha sacou da algibeira um embrulho e o entregou ao

Torres. Eram dois pares de arrecadas e um grilhão de ouro. — Só o cordão, meu senhor, — dizia a caseira — tem quatro moedas!O Torres observou o ouro, o sopesou na mão e, o fechando numa gaveta, disse: — Pois bem! Quando me trouxer a renda levarás o penhor. Adeus! Até o verão.Depois que Custodia saiu um vizinho tendeiro dizia, contristado: — A pobre de Cristo ia até chorando. E o rapazinho, de ver chorar a avó, chorava também!

Aquele Torres, diabos o carreguem!, e assim... E mostrava a mão fechada, explicando: — Um unha-de-fome!

** *

No ano seguinte não apareceu, na roncaria de São Torquato, tia Custódia da Moita. Coitada! Como não queria confessar ao marido que tinha empenhado as arrecadas e o grilhão, se fingiu doente e não houve força humana que a tirasse de casa sem seu ouro.

Não que seu homem — pensava tia Custódia — se tal soubesse e, Jesus!, seria capaz de ir ao senhorio e fazer alguma desordem.

— Meu Joaquim? — acrescentava ela — Boa! Tem sessenta e cinco anos mas aquilo pra armar uma bulha parece um rapaz!...

** *

Post-scriptumAgora se veja o bom e o bonito!Há poucos meses os jornais do Porto prantearam a morte de senhor Torres, capitalista

abastado, filantropo e respeitado por todos os conhecidos.Esqueceu a confirmação das vítimas, a quem emprestava a 28%!Mas era boa pessoa e caritativa. Até deixou o retrato à ordem do Terço e 200 mil réis pra

45

Page 46: Alberto Braga - Contos Da Aldeia

Alberto BragaContos da aldeia

missas de doze vinténs por sua alma!...

46

Page 47: Alberto Braga - Contos Da Aldeia

Alberto BragaContos da aldeia

O anacreonte de Candemilo declinar do dia, na tortuosa vereda que ia dar à estrada, seguia vagarosamente tio

Ambrósio, que voltava do campo com a enxada no ombro. Como naquela hora silenciosa o caminho estava deserto se ouvia, de longe, o bater compassado e sonoro dos tamancos nas pedras da calçada.

Logo adiante do carvalhal, antes de chegar ao cruzeiro confinante ao adro, ficava a taberna. Iminente sobre a porta estava pendente o ramalho verde de loureiro, que a viração fresca da tarde agitava, o raspando pelo cunhal da ombreira. Das frinchas das portas mal cerradas saía à penumbra crepuscular exterior uma réstia de luz amarela, que se estendia na estrada até o talude saibroso que murava o caminho do outro lado.

Tio Ambrósio endireitou com a taberna, impeliu uma das portas, e entrou.Dentro, abancados em torno da mesa, já estavam os parceiros da bisca. A taberneira,

matrona de papeira, seio farto e braços arremangados, assistia a conversa, sentada num canto, com os cotovelos fincados no balcão. Junto dela dormia, pachorrentamente, um gato maltês zebrado, encolhido sobre as patas, como um novelo. À entrada de Ambrósio o gato ergueu, repentinamente, a cabeça e abriu os olhos espantados mas, depois, como a visita não lhe fosse estranha, foi deixando, pouco a pouco, descair a cabeça, fechou os olhos e permaneceu na mesma posição, ressonando.

Ao lado de cada freguês havia um copo de vinho e a luz da candeia, pendurada em cima, se refrangendo na superfície do vidro, projetava, em torno de cada copo, um círculo sanguíneo.

** *

Tio Ambrósio de Candemil levava a vida airada bebendo e cantando! Já tinha sessenta anos, cabelo branco que nem uma estriga corada, voz trêmula, nariz rubro e berrugoso mas que lhe saísse a desafio a cachopa mais palreira, que saltava logo:

Não sei que mal deu agoraNas uvas do parreiralMe faz cantar toda a noite.Como os melros do olival.

Depois, com a jaqueta lançada ao ombro, o chapéu derrubado à nuca, ainda Ambrósio cantava e foliava, como um rapagão de vinte anos.

Em idade tenra e menos canseirosa, arraial em que não aparecesse era como se faltasse o pregador em festa de romaria! Era esperado até o fim. Espreitava um daqui, outro dacolá e, quando, na azinhaga, aparecia o chapéu-de-sol de paninho escarlate era logo uma gritaria:

— Ali chega tio Ambrósio! — Olhes que tal ele vem!E o guarda-sol oscilava dum e doutro lado, roçando nos silvedos como a vela dum navio que

bordeja a toa, perdido o rumo!

*

47

Page 48: Alberto Braga - Contos Da Aldeia

Alberto BragaContos da aldeia

* *Tio Ambrósio entrou silencioso na taberna, acendeu um cigarro no pavio da candeia e se

encostou pra ver jogar. Um dos fregueses lhe falou em se sentar. — Hoje não. — Opôs peremptoriamente, — Só uma bisca, tio Ambrósio. — Já disse. — Insistia ele, chupando o cigarro. — Nada, pois bem sei como o jogo é. Uma

comparação: É como quando um homem trepa a uma cerejeira que, em tirando uma cereja, vem logo uma mão cheia delas.

Os outros, que já lhe sabiam a balda, se calavam. O silêncio o contrariava. Precisava que insistissem, pra assim desculpar a consciência. Ao cabo de dez minutos, atirava fora a ponta do cigarro e dizia:

— Como assim vá lá. Mas só três jogos. — E arrumou.Se espevitava o morrão da candeia, se cedia o lugar respectivo, e então é que era ver a

partida.O jogo corria silencioso até quase o fim mas, depois, tio Ambrósio, com as cartas abertas,

em leque, na mão esquerda, e com uma carta levantada na outra mão, olhava de soslaio o adversário da direita e principiava.

— Ora! Me ponhas aqui a bisca, ainda que te custe.E batia a carta sobre a mesa, de modo triunfante.O do lado jogava uma carta de trunfo. E tio Ambrósio a tremer, irritado, com o punho

cerrado suspenso sobre as cartas, suplicava ao jogador que tinha defronte: — Recortes, parceiro, recortes. — Recortes... — Repetia o outro entre dentes — Recortar o quê? Olhes.E jogava a bisca.Ambrósio, então, bebia dum trago meio copo de vinho e exclamava, desesperado — As cartas têm o Demo!No fim perdia o jogo e, como os adversários renovavam o vinho e ele enchia o copo que lhe

pertencia, perdia o juízo.Já havia muito tempo que lhe era difícil topar na terra um parceiro amigo prà sueca. — Adeus! — Lhe diziam eles, encolhendo os ombros — Quando pegas um baralho até

parece que te dá o trangulomângulo.101 Coisa assim!...O vício da jogatina lhe passou ao cabo desses repelões mas, por desgraça, foi procurando no

copo a distração que lhe faltava no baralho. Daí a diante se diga, em abono à verdade, tio Ambrósio só cantava e bebia.

Cantes que logo beberás, diz o rifão.Com tio Ambrósio, porém, mudava o caso de figura. Bebia primeiro, bebia depois, bebia no

fim e desatava a cantar feito um rouxinol.Ora, depois disso, em que tenho a glória de ser o Plutarco desse herói, vejam se andei mal, o

chamando Anacreonte de Candemil.A distância que vai de Ambrósio a Anacreonte se mede pela que vai do tamanco

trasmontano à sandália grega, das cepas tortas de Amarante aos vinhais racimosos de Chios, das faldas agrestes do Marão às formosas marinhas da Jônia, província das violetas.

*101 Tangolomango

48

Page 49: Alberto Braga - Contos Da Aldeia

Alberto BragaContos da aldeia

* *Nos primeiros dias de maio, antes das festas do Espírito Santo, o céu estava sereno e azul, as

árvores frondentes, e na ramaria dos bosques gorjeavam os melros, Havia flor nos prados, encostas, flores em toda a parte. A natureza se enfeitava como noiva graciosa que se prepara, alegre, pro festim do esponsal.

Pois, quando havia tanta luz, tanta vida, tanto amor, gorjeios nos ninhos e rosas nos silvados, era triste pensar que alguém estava a deixar a vida

Logo na madrugada o senhor abade atravessou da residência ao adro, antes da primeira missa do dia. O sino principiou a dar o sinal do Senhor fora.

E daí, durante alguns minutos, o Viático seguia num atalho ao canto plangente do Bendito, entoado em coro pelas mulheres que caminhavam atrás, acompanhando o Sagrado.

O pálio parou à porta da casa em que morava tio Ambrósio de Candemil.Dentro, sobre uma arca de castanho revestida com toalha de linho, estava um crucifixo

ladeado de duas tocheiras de chumbo. Num canto da sala o velho Ambrósio agonizava reclinado no espaldar do leito. Não tinha na face a alegria expansiva dos últimos dias, em que cantarolava na taberna. Estava pálido, os olhos amortecidos, as faces descarnadas, a boca enviesada de paralítico.

Foi confessado e sacramentado.O abade se abeirou lentamente do enfermo, com o cibório nas mãos. O preparou,

solenemente, pro trespasse.Quando lhe ungia os lábios com os santos óleos, murmurando as palavras do ritual: Per

istam unctionem indulgent tibi Dominus quid quid delinquisti per gustum,102 Ambrósio fincou os punhos na enxerga, se ergueu com esforço e ânsia, volveu os olhos em torno do leito, como quem desperta dum sonho e, se inclinando ao abade, lhe perguntou com voz débil e convulsa:

— É vinho?E descaiu lentamente a trás, com um sorriso de bem-aventurado a radiar a fronte, como um

justo que morre na esperança de encontrar na vida de além-túmulo as adegas bem providas de Amarante!

Talis vita, finis ita.103

102 Por esta unção o Senhor tenha piedade de quem pecou voluntariamente103 Tal vida, tal morte

49

Page 50: Alberto Braga - Contos Da Aldeia

Alberto BragaContos da aldeia

O abandono do moinho porta da azenha estava o macho intonso,104 preso pelo cabresto a uma argola da parede.

Enquanto o não carregavam voltava melancolicamente a cabeça ao lado, estendia o pescoço lanudo105 e ia tosando uma moita de silva que murava o atalho.

Dentre o ruído trêmulo da mó e o marulho da levada, caindo do cubo nas penas do rodízio, em baixo, se ouvia gritar lá dentro:

— Andes daí, que são horas. Te avies.Depois apareceu à porta o moleiro com o chapéu enfarinhado caído no ombro esquerdo,

segurando no ombro direito o taleigo106 da fornada. Vinha ainda gritando: — Te despaches, rapariga. Te mexas, filha.E atirou o fole a cima da besta.A moça veio depois, e a carregou com um fole do outro lado. Lhe atiraram em seguida a

cilha a cima e o moleiro, com o joelho fincado na barriga do macho, principiou a apertar a carga, torneando o arrocho com esforço.

— Pronto! Te ponhas já a caminho, que eu não me delato, Teresinha.Apenas se julgou fora do alcance da vista do pai, que se deixou ficar à porta, com uma perna

cruzada sobre a outra, o chapéu braguês107 derrubado aos olhos, a vendo subir a encosta, a rapariga saltou a cima do macho, se ajeitou no meio dos taleigos, e continuou no atalho acima, cantando:

Ao passar hoje no rioVi, na água, teu rostoCuidei que ias na levada...Ai! Coração! Que desgosto!

E ao ver teu rosto ali(O que são as coisas do mundo!)Cuidei logo que uma estrelaTivesse caído ao fundo.

O moleiro voltou a dentro, a prover a moega108 de grão. Enfiou, depois, a jaqueta de cotim109

axadrezado, calçou as sapatas ferradas, que tinha num canto, fechou por fora a porta da azenha, arrecadou a chave e abalou na peugada110 da filha.

Assim que chegou ao meio do atalho cortou à esquerda por uma quelha111 pedregosa, atravessou num carreiro, que costeava uma bouça e, fincando as mãos no muro tosco de rebo,112

saltou, num pulo, ao meio da estrada.

104 Adj. Hirsuto, não tosquiado (não tonsurado). (do latim intonsu)105 lanoso106 S.m. Taleiga pequena; saco pequeno e comprido

107 Braguês: natural de Braga, 183,2 km2 e 62 freguesias, é um dos 14 municípios do distrito de Braga. 108 S.f. Peça do moinho por onde cai o grão na calha109 S.m. Pano de linho ou de algodão110 Vestígio, rastro, pegada111 S.f. Calha112 S.m. Calhau, pedra tosca

50

Page 51: Alberto Braga - Contos Da Aldeia

Alberto BragaContos da aldeia

Corriam os primeiros dias de março.Como tinha descampado havia pouco tempo, os carrinhos estavam lamacentos, sulcados

pelas rodas dos carros e, nas terras baixas, se viam, ainda, a água da chuva empoçada e coberta de limo. O céu era dum azul cristalino, a atmosfera muito límpida e, no meio-dia, quando o sol caía de alto nos prados, até parece que as roxas pervincas, as flores amarelas do trevo e as margaridas retraíam as corolas ao peso abafadiço do calor! Nos ramos folhudos dos carvalhos e dos pessegueiros, que já floresciam, os melros assobiavam alegres e no fundo azul do firmamento se destacavam duas borboletas brancas que voavam entre os silvados, subindo, subindo sempre, tremendo, num raio de sol dourado! Ó! Era encantador!

O moleiro apenas escalou o muro tosco da bouça, parou um instante, colocando a mão sobre os olhos, como uma pala, pra ver se lobrigava a filha. A distância de trinta metros a estrada volteava à direita. Uma copada devesa de sobreiros, ao fundo, não o deixava enxergar além. Por isso foi continuando ali fora, apertando mais o passo, com os braços bamboleantes e esbofando de calor.

Dum lado e doutro, no campo, se fazia a lavoura. Duas juntas de bois castanhos, aguilhoados pelo lavrador, tiravam lentamente o arado que ia levantando e revolvendo a leiva. Aquém e além, no declive do monte, dentre a verdura tenra da enfesta, alvejavam as frontarias caladas dalguns casalejos, batidos do sol do meio-dia. Era um calor de rachar!

Dum atalho que ia dar à igreja surgiu o senhor abade montado em sua égua. Ó! uma boa égua de abade, gorda, pacífica e mansa que nem uma ovelha. Sua reverência vinha abrigado por um enorme guarda-sol de paninho azul e seu ventre redondo e farto oscilava pachorrentamente ao chouto113 pesado da cavalgadura.

— Ó! José moleiro! — Chamou com voz de papo. — Ê! homem! Tu vais à cata aos franceses?

O moleiro se descobriu respeitosamente e, enxugando o suor da testa na manga da véstia, respondeu:

— Irei ver se topo minha Teresa, que foi levar a fornada da outra banda,à casa da morgada.O abade, do alto da égua, continuou: — A vi ontem. E olhes que está fera e bonita. — Escorreitinha é ela. Graças a Deus. — Disse o José, seguindo ao lado o passo da

cavalgadura. — E é moça de tino. — Prosseguiu o padre circunspectamente — Mas tenhas cuidado nela.

Pois olhes o Demo, José. Quando arma escolhe sempre do melhor. Ouviste?Mais adiante, ao passarem por um quinchoso,114 em cujo muro estava debruçada uma

rapariga esguedelhada,115 com os braços pendentes a fora, perguntou a ela o abade: — Que é de teu pai?, ó, cachopa. — Está trabalhando nas obras do rio, senhor abade. — Respondeu corando. O abade

esporeou a égua, e disse a si: — Pra ele é bem melhor ganhar o pão ao pé da porta, lá isso não tem dúvida. — Pois quant'é! — Concordou o moleiro, acenando afirmativamente a cabeça.E continuaram, ambos, na estrada, até uma cangosta,116 aonde o abade se meteu, deixando

sozinho José moleiro.O caminho, agora, descia, até o rio, onde andavam as obras da ponte nova. Já de longe se

113 S.m. Espécie de trote miúdo e incômodo114 S.f. Teto de palha115 Descabelada116 Cangosta, congosta: s.f. Rua estreita e comprida; caminho entre muros; azinhaga

51

Page 52: Alberto Braga - Contos Da Aldeia

Alberto BragaContos da aldeia

avistavam os trabalhadores.Havia ali um grande movimento de gente. Entre o tronco nu dos salgueiros já se viam as

primeiras pedras do arco, subindo pelo simples de madeira, que se levantava duma à outra margem.

Uma fileira de mulheres e crianças passava constantemente da draga ao areal com cestos carregados na cabeça. Antes de chegar ao rio a estrada aparecia toda coberta de cascalho que reluzia à intensa luz do meio-dia.

Como a água tinha diminuído, uma barca com lingüetas levadiças na proa e na popa, que servia de transporte, como uma jangada, no inverno, estava na outra banda, presa por amarras aos troncos de dois amieiros. As pessoas que tinham de atravessar o rio iam nas alpondras117

desanegadas118 mas quando acontecia aparecer uma cavalgadura, então era preciso que os trabalhadores lançassem sobre as pedras duas pranchas largas que serviam de passadiço.

Quando a filha do moleiro chegou ao rio e ia metendo o macho na água, um dos homens, que ali estava, lhe gritou:

— Não metas o burro à água, rapariga. Te afogarás com ele. Esperes que até lá irei.A rapariga sofreou o macho e esperou. Ao se aproximar o homem com a prancha de pinho

levantada ao alto, o macho se espantou, empinou as orelhas, recuou de súbito e, num salto, se atirou e, consigo, a rapariga ao rio.

O trabalhador que viu aquilo principiou a gritar socorro. Acudiram os outros mas, quando chegaram, o macho tinha seguido ao meio, onde a corrente do rio era mais impetuosa e fazia redemoinho. A filha do moleiro caiu ao lado, estonteada do sobressalto e da sensação de frio e os homens que lhe gritaram de terra a viam seguir a cavalgadura com a mão presa na extremidade do cabresto.

Nesse momento um homem que corria, muito aflito, vereda abaixo, logo que chegou à margem atirou o chapéu à banda e se lançou, de repente, ao rio mas apenas a água lhe bateu pelo tronco, estremeceu todo, bracejou um instante e apareceu estirado à flor da água, boiando com as faces roxas da congestão.

** *

Quando ia ver as obras do rio, era esse meu divertimento, façam idéia como fiquei!Sobre uma escada de mão, trazida como uma padiola por quatro robustos trabalhadores do

rio, vinha estendido de costas o pobre José moleiro, com a boca entreaberta, os olhos vidrados e os lábios roxos.

Mais adiante, a dez passos, no meio da aglomeração curiosa de homens, de mulheres e de crianças, que comentavam e lamentavam o caso, descobri a desgraçada Teresinha, morta, deitada sobre a terra, com a saia de chita colada ao corpo pelo peso da água, deixando ver o contorno juvenil dos seus membros inteiriçados.

Ao lado, o macho, a escorrer, com a cabeça pendida e os grandes olhos fitos no chão, estava naquele doloroso abatimento, em que deve precisamente ficar um homem, depois de se lhe ter disparado a espingarda contra o peito dum amigo!

E até parece que, diante daquele quadro fúnebre, os salgueiros do rio, se debruçando melancólicos sobre a água, entoavam, balouçados pela aragem, um vago lamento de tristeza!

117 Alpondra: s.f. Pedra colocada nos lameiros pra dar passagem a pé enxuto; passadeira118 Anegado: Coberto de água, submerso. Desanegada: drenada

52

Page 53: Alberto Braga - Contos Da Aldeia

Alberto BragaContos da aldeia

** *

Ao passar, alta noite, no atalho da azenha, se ouvia lá dentro o ruído trêmulo da mó, o marulho triste da levada e, como fazia um luar de primavera, vi se destacar claramente no fundo azul do céu, agachada sobre o esgalho nodoso duma figueira, que ficava ao lado, em vez do alegre rouxinol, que ali cantava todas as noites, uma coruja muito grande, piando, piando...

53

Page 54: Alberto Braga - Contos Da Aldeia

Alberto BragaContos da aldeia

O sonho da noviçauando Gertrudes chegou à portaria acompanhada da tia e do primo, no relógio da torre

do convento bateram pausadamente cinco horas da tarde.O mosteiro de Santa Clara ficava situado no respaldo duma colina e emboscado numa

devesa de carvalho.Eram os primeiros dias de novembro. O céu, toldado de nuvens que corriam ao norte batidas

por um vento áspero, estava numa tristeza indefinível. Às vezes uma nuvem mais densa, pesada e cor de chumbo, escurecia o firmamento e uma chuva miudinha, como um borrifo, caía, então, obliquamente. Quando passava a chuva um pé-de-vento forte e rasteiro levantava, em redemoinho, as folhas amarelecidas do outono, que alastravam o chão.

A fábrica do convento era pobre, de frontaria119 humilde e as paredes escuras e deterioradas pelo decurso dos anos acentuavam o conspecto120 melancólico e lúgubre da clausura.

Num nicho fronteiro à porta da entrada aparecia a imagem de Santa Clara, vestida com o hábito de freira, os olhos extáticos levantados ao céu, suspendendo, com fervor ascético, nas mãos brancas, uma custódia dourada. Embaixo do hábito apareciam os pés da santa, quase nus, cruzados no peito121 pelos atilhos amarelos das alpargatas.

Diante do nicho uma lâmpada de ferro, pendente dum carretel, oscilava como um turíbulo e a luz tênue da lamparina bruxuleava a espaços, ainda esmorecida na claridade poente do dia.

Antes de entrar esteve Gertrudes com a cabeça descaída sobre o ombro da tia, a chorar; depois a cingiu enternecidamente no derradeiro abraço, soluçando.

— Adeus, minha tia, adeus!Se aproximou de Mateus, que assistia, ao lado, pálido e trêmulo, aquela separação, abriu os

braços pra o apertar, e lhe disse com voz débil, fitando nele os olhos rasos de lágrima: — Mateus! ...E transpôs, soluçante e oprimida, o limiar do convento.

** *

A comunidade viera receber à entrada, segundo a praxes conventual, a soluçante noviça. As freiras professas e as recolhidas estavam dispostas em duas filas, tendo à frente a madre-abadessa, já muito velha, arrimada a um báculo de prata lavrado.

Aquela sala de recepção era úmida, espaçosa, fria e soturna. Entrava a luz tênue coada pelas rexas122 oxidadas de duas frestas, que davam ao claustro. No fundo, sobre um altar e no meio de duas arras com palmas e flores artificiais, estava a imagem dum Cristo de metal amarelo, com os braços abertos cravados nos braços duma cruz de jacarandá. No peito nu e descarnado do Cristo se refletia, como uma chaga viva, a luz vermelha da lâmpada de latão suspensa do dossel.

A escrivã passou o braço com prospectiva ternura à cinta de Gertrudes, e a encaminhou a

119 Fachada120 S.m. Ato de ver, aspecto, vista, presença121 No peito do pé, obviamente122 Grades

54

Page 55: Alberto Braga - Contos Da Aldeia

Alberto BragaContos da aldeia

diante da abadessa, lhe dizendo a meia-voz: — Beijes a mão de nossa madre-abadessa, menina.Gertrudes baixou os lábios à mão trêmula da freira e recebeu numa postura humilde, com os

olhos fechados, o abraço receptivo. Em seguida a abraçou a escrivã e depois, de abraço em abraço, foi Gertrudes passando todas as freiras e senhoras recolhidas até a derradeira.

** *

Abria à cerca a janela estreita da cela de Gertrudes.Se avistava, ao longe, recortada no azul límpido do céu, a cumeada alvacenta e escalvada123

duma serra.Mais abaixo, entre a verdura da encosta, descia a estrada em largas curvas, como uma fita

que se vinha desenrolando e alargando no monte.No meio-dia, quando o sol caía perpendicular, a diligência subia vagarosamente, levantando

espessas nuvens de pó. Se viam os almocreves, que vinham à cidade, trazendo na arreata124 a recova125 dos machos.

Em madrugadas serenas se ouvia até o chiar longínquo dos carros de boi nos atalhos das aldeias, o tilintar monótono das campainhas dos machos e o estalido seco do chicote da mala-posta.

Um dia, logo que saiu do refeitório, enquanto as freiras se recolhiam às celas pra dormir a sonata da sesta, se dirigiu Gertrudes à cerca.

Era uma hora da tarde.Na horta as largas folhas das couve pendiam desmaiadas com o calor intenso da estiagem.

Na ramaria verde do pomar rumorejava uma viração agradável. Em torno da folhagem escura das laranjeiras, na vibração da luz, se agitava uma nuvem transparente de efêmeros.

Sob as latadas passeavam, de braço dado, algumas meninas recolhidas.Gertrudes seguiu sozinha, cosida com o muro, onde havia uma esteira de sombra. No fundo

da cerca, encostado ao tronco duma magnólia que projetava no saibro seco e faiscante da rua uma larga sombra, havia um banco de pedra.

Gertrudes se sentou, tirou do bolso do avental um livro brochado e o abriu cuidadosamente, retirando com as pontas dos dedos, dentre as folhas marcadas, um grande amor-perfeito já mirrado e desbotado.

Ao cabo dalguns minutos de concentrada leitura ouviu pipilar em cima.Na extremidade dum ramo, que balouçava de leve, chilreava um passarinho inclinado a

baixo, entreabrindo assustado, com frêmito, as asas. Gertrudes pousou o livro de banda, subiu ao banco e, se fincando na ponta dos pés, se aprumou pra espreitar.

Entalado num esgalho e meio oculto na folhagem havia um ninho fofo e tépido do qual surdiam126 duas cabecinhas penugentas. Pousada no rebordo do ninho estava uma toutinegra, ministrando o alimento aos filhos.

Gertrudes estava encantada! Até suspendia a respiração com receio de perturbar a tranqüilidade do ninho!

123 Escalvar: Tornar calvo, tornar estéril, tirar a vegetação124 S.f. Correia ou corda com a qual se conduzem as bestas; récua de cavalgadura; fileira125 Recova, recovagem s.f.: Ofício de recoveiro; transporte de mercadoria feito por recoveiro (almocreve)126 Surgiam, apareciam, despontavam

55

Page 56: Alberto Braga - Contos Da Aldeia

Alberto BragaContos da aldeia

** *

Na noite, com a cabeça deitada sobre a brancura virginal do travesseiro, a noviça suspirava e sorria, acalentada num sonho de criança!

Ora vejam!Estava de pé sobre o banco da cerca, espreitando o ninho da magnólia. Os passarinhos

implumes abriam sôfregos o bico pra receber da mãe o alimento.Gertrudes se identificava tanto com o que via que, em sonho, chegou a sentir o gozo inefável

da mãe que administra o sustento aos filhos. A cabeça penugenta dos pássaros do ninho, que graça!, já lhe pareciam duas cabecinhas louras de criança deitadas no mesmo berço!

E o pássaro que chilreava em cima, alcandorado127 no ramo superior, foi perdendo, pouco a pouco, a forma que tinha e, como vemos num quadro dissolvente, foi transformando a cabeça pequenina de ave numa cabeça de homem, com cabelo anelado, olhos pretos e vivos, bigode farto e um doce sorriso de pai ...

E entreviu, então, Gertrudes, através duma nuvem cor-de-rosa, em que seu espírito se embalava, a imagem clara do primo Mateus, que a contemplava, a sorrir!...

FIM

127 Adj. Posto na alcândora (poleiro de falcão, espécie de cabide); colocado a grande altura; alcantilado; afetado (o estilo)

56

Page 57: Alberto Braga - Contos Da Aldeia

Alberto BragaContos da aldeia

1940Composto e impresso na Tipografia e Encadernação A Portuense

Rua Conde de Vizela 80, PortoPortugal

57

Page 58: Alberto Braga - Contos Da Aldeia

Alberto BragaContos da aldeia

Índice

4 A guerra

8 A volta das andorinhas

12 A sesta do avô

15 O galo preto

19 Está no céu!

22 O retrato dos pais

29 O sermão

32 Às cerejas

36 O jantar de Natal

40 Vinhos e aguardentes

43 As arrecadas da caseira

46 O anacreonte de Candemil

49 O abandono do moinho

53 O sonho da noviça

58