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O Deus encarnado: somente uma metáfora? Alberto Fernando Roldán * John Hick é um famoso teólogo anglicano e filósofo da religião formado em Edimburgo e Oxford. Em 1977 ele alcançou notoriedade com a publicação de uma obra de ensaios entitulada The Myth of God Incarnate, da qual ele foi o editor. Nesse livro, se faziam sérios questionamentos ao dogma do cristianismo histórico: a encarnação de Deus em Jesus Cristo. No mesmo ano que apareceu essa obra, o teólogo evangélico Michael Green -a quem eu teve o privilegio de conhecer pessoalmente no ano de 1979- publicou um livro em resposta crítica a esses novos postulados cristológicos, com o título The Truth of God Incarnate. Com exceção do livro Filosofia da religião publicado em português em 1970, não se conhecia em Português outra obra de Hick. Mas no ano passado, a editora católica Vozes, publicou o primeiro livro deste autor sobre seu tema favorito. Trata- se de: A metáfora do Deus encarnado. Este trabalho que foi publicado na Inglaterra em 1993 e agora é oferecido aos leitores do Brasil. Sua leitura não necessita ser demasiada profunda e analítica para permitirmos entender porque teólogos como Green reagiram tão rapidamente as reinterpretações cristológicas de Hick. 1. Resumo dos pressupostos, hipóteses e idéias principais de Hick Depois de fazer uma resenha de suas obras e das réplicas as mesmas Hick, seguindo um estudo de Sarah Coakley, distingue seis sentidos da teologia encarnacional. 1) Aquela que afirma o envolvimento de Deus na vida humana. Quando, por exemplo, dizemos que Deus está presente junto a nós. 2) Uma teologia cristã pode ser encarnacional no sentido de declarar não só que Deus está sempre envolvido na vida humana, mas também na * O autor é argentino, doutor em teologia, professor de teologia sistemática e ética, em seminários de Londrina, Paraná, Brasil. É autor de vários livros em espanhol e português. Sua ultima obra em nosso idioma é: Do terror à esperança. Paradigmas para uma escatologia integral , pela Editora Descoberta. 1

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O Deus encarnado: somente uma metáfora?

Alberto Fernando Roldán*

John Hick é um famoso teólogo anglicano e filósofo da religião formado em Edimburgo e Oxford. Em 1977 ele alcançou notoriedade com a publicação de uma obra de ensaios entitulada The Myth of God Incarnate, da qual ele foi o editor. Nesse livro, se faziam sérios questionamentos ao dogma do cristianismo histórico: a encarnação de Deus em Jesus Cristo. No mesmo ano que apareceu essa obra, o teólogo evangélico Michael Green -a quem eu teve o privilegio de conhecer pessoalmente no ano de 1979- publicou um livro em resposta crítica a esses novos postulados cristológicos, com o título The Truth of God Incarnate. Com exceção do livro Filosofia da religião publicado em português em 1970, não se conhecia em Português outra obra de Hick. Mas no ano passado, a editora católica Vozes, publicou o primeiro livro deste autor sobre seu tema favorito. Trata-se de: A metáfora do Deus encarnado. Este trabalho que foi publicado na Inglaterra em 1993 e agora é oferecido aos leitores do Brasil. Sua leitura não necessita ser demasiada profunda e analítica para permitirmos entender porque teólogos como Green reagiram tão rapidamente as reinterpretações cristológicas de Hick.

1. Resumo dos pressupostos, hipóteses e idéias principais de Hick Depois de fazer uma resenha de suas obras e das réplicas as mesmas Hick, seguindo um estudo de Sarah Coakley, distingue seis sentidos da teologia encarnacional. 1) Aquela que afirma o envolvimento de Deus na vida humana. Quando, por exemplo, dizemos que Deus está presente junto a nós. 2) Uma teologia cristã pode ser encarnacional no sentido de declarar não só que Deus está sempre envolvido na vida humana, mas também na vida de Jesus. 3) Focaliza explicitamente na questão da preexistência de Cristo. Nesta concepção, diz Hick, ele começa a divergir. 4) Crença numa total interação do divino e do humano em Cristo. Tampouco Hick está de acordo com esta interpretação. 5) Jesus foi a única encarnação divina no sentido anterior. Cristo se encontra numa categoria distinta de todas as outras formas de revelação. Também esta perspectiva é rejeitada pelo autor. 6) O sentido eclesiasticamente definido no Concilio de Calcedônia, que aponta a uma linguagem metafísica de substância, que se expressa nos termos physis, hypostasis e ousia. Também Hick pretende descartar este último sentido. Chama a nossa atenção o fato que no capítulo 2 o autor refere-se a "vida, morte e ressurreição de Jesus." Talvez porque se dá conta da importância que tem esses fatos e, sobretudo, a ressurreição de Jesus, afirmação considerada fundamental e decisiva por parte do cristianismo histórico. Hick convida a "tentar retornar imaginativamente, acompanhando as trajetórias da tradição, até a figura terrena de Jesus" (p. 29). Reconhece que sua imagem sobre Jesus "situa-se na tradição da interpretação 'liberal' estabelecida por Schleiermacher, Strauss, Harnack e outros" (p. 32). É um dado importante que o autor oferece e que permite entender muitas das afirmações e, conseqüentemente negações de Hick sobre a cristologia cristã. Quando chega ao ponto nevrálgico que é a ressurreição de * O autor é argentino, doutor em teologia, professor de teologia sistemática e ética, em seminários de Londrina, Paraná, Brasil. É autor de vários livros em espanhol e português. Sua ultima obra em nosso idioma é: Do terror à esperança. Paradigmas para uma escatologia integral, pela Editora Descoberta.

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Jesus, Hick argumenta "recriando" a partir de sua imaginação o que poderia haver acontecido. Diz: "Parece conjetura razoável supor que o evento original da ressurreição possa ser resumido no seguinte..." (p. 40). Então continua descrevendo o que para ele poderia haver acontecido. Diz que pelo menos Pedro e talvez os outros doze, e talvez algumas das mulheres "tiveram uma experiência essencialmente similar à de Paulo, uma experiência de uma luz sobrenatural à sua volta e dentro da qual estavam conscientes da presença glorificada de Jesus" (Ibíd). Então, relaciona o que aconteceu com Jesus com os pacientes clinicamente mortos e que depois são reanimados por meios sofisticados. Conclui que "é bem possível que as 'aparições' originais da ressurreição tenham sido versões deste mesmo tipo de experiência, relatada após a reanimação" (Ibíd). Em outras palavras a ressurreição de Jesus foi, para Hick, uma espécie de "reanimação". Como ele é consciente de que os testemunhos dos evangelhos são muitos e insistem na ressurreição de Jesus no sentido de sua vitória sobre a morte, então ele apela para a hipótese de que todas essas histórias são "acréscimos posteriores" (Ibíd). Reconhece também que o que aconteceu nos dias e semanas após da morte de Jesus "quer em termos de defrontações espirituais ou de milagres físicos, jamais pode ser plenamente comprovado do ponto de vista histórico" (p. 41). No capitulo 3, que intitula "de Jesus a Cristo", Hick manifesta que Jesus nunca reivindicou para si mesmo a divindade. E que para isso, seria necessário que o Logos fora preexistente e que se encarna num ser humano. Por tanto, diz que "é extremadamente improvável que o Jesus histórico tenha concebido a si próprio de maneira semelhante a esta" (p. 43). Cita vários teólogos que apoiar seu pressuposto, entre outros: C. F. D. Moule, James Dunn e David Brown. Este último reconhece que uma vez que abandonamos o retrato tradicional refletido no Evangelho de João, já não podemos alegar que Jesus teve consciência de sua divindade. Cita finalmente a Rudolf Bultmann e sua conhecida escola de desmitização do Novo Testamento e sua reinterpretação do evangelho numa perspectiva existencialista. Depois dedica um parágrafo a criticar expressões comuns de crentes que falam de que "Jesus está comigo" e outras próprias de cristãos que acreditam em Jesus ressuscitado. Hick considera que essas experiências divinas pessoais, do ponto de vista naturalista "devem ser vistas como alucinações" (p. 58). O capítulo 4 está dedicado a mostrar como a Igreja foi afirmando a divindade de Jesus. Nessa seção, Hick relaciona a divindade de Jesus com a divindade de Homero, Augusto, César, e ainda Antíoco Epífanes ("Deus manifestado"). Logo, citando as passagens cristológicas de Filipenses 2.5-11 e Gálatas 4.4, reconhece que ali Paulo estaria mais próximo à idéia da preexistência de Cristo e a encarnação divina. Mas opina que "a questão demostrou ser altamente discutível; e na verdade pertence ao tipo de questões objetivamente sem solução na exegese do Novo Testamento, e provavelmente continuarão a alimentar pontos de vista conflitantes" (p. 65). O capítulo 5 é um dos mais complicados, porque nele Hick trata o famoso tema das duas naturezas de Jesus Cristo e pergunta se não serão então duas mentes. Faz um resumo de algumas tentativas para explicar essa questão mas volta a sublinhar a necessidade de acreditar nos relatos sinóticos porque, diz, são mais confiáveis que o quarto evangelho. Conclui dizendo que ao final de contas, a fórmula de Calcedônia somente afirmava a

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divindade e a humanidade de Jesus. As tentativas dos teólogos de explicar os detalhes de maneira inteligível significa a não consideração da linguagem do mistério (p. 86).

Tanto o capítulo 6 como o 7, são dedicados ao tema da kenosis, ou seja, o auto-esvaziamento divino que Hick questiona abertamente. Citando teólogos que pertencem a sua corrente de pensamento, ele diz: "a cristologia quenótica não é uma verdade revelada, e sim, como Davies corretamente a denomina, uma teoria" (p. 99). Para ele, esse auto-esvaziamento do Filho de Deus é somente uma metáfora que não devemos interpretar como referencia a algo metafísico ou que "possuiria verdade objetiva e universal" (p. 100).

O capítulo 8 tem conteúdos surpreendentes. Porque a tese central desse capítulo é que a doutrina da divindade de Jesus Cristo teve conseqüências nefastas para a história da humanidade. Entre os males que foram conseqüência da idéia da divindade de Jesus Cristo, Hick menciona o anti-semitismo, a exploração colonial do Terceiro Mundo, o patriarcalismo ocidental, o complexo cristão de superioridade em relação às pessoas de outras religiões. Ele se cuida de aclarar que esses fatos não foram causados diretamente pelo dogma da encarnação mas "foram defendidos por meio de um apelo à idéia da divindade de Jesus." (p. 112). Volta a criticar ao quarto evangelho por seus conteúdos anti-semitas, citando como ilustrações os textos de 8.37 , 44 e 47. Não menos surpreendente é o capítulo 9, onde Hick imagina a possibilidade de "encarnações múltiplas" por parte de Deus. Cita ali a Tomás de Aquino na parte III de sua Summa Teológica, onde o teólogo escolástico não nega a possibilidade de outras encarnações do Verbo eterno. Isso oferece material a Hick para dizer que a próxima questão seria perguntar se homens como Moisés, Gautama, Confúcio, Zoroastro, Sócrates, Maomé e Nanak "não poderiam de fato ter sido encarnações divinas" (p. 133). O autor não aclara se nesses casos seriam encarnações metafóricas ou reais. Finalmente, Hick chega ao coração de toda sua argumentação no capítulo 10: "A encarnação divina como metáfora". Explica o que já se sabe no sentido de que metáfora é uma linguagem não literal ou figurativa. Oferece vários exemplos tais como "cortina de fumo", "a fúria dos ventos", "cordeiro de Deus", etc. Chegando a questão de Jesus Cristo, diz que a linguagem cristã "que exalta Jesus como Senhor, Salvador, Filho de Deus e Deus parece ter sido geralmente devocional, ou extática, ou litúrgica (ou as três), e não um exercício de formulação teológica precisa." (p. 139). Admite que quando entramos numa linguagem mais formal da teologia, ali se observa a influência do quarto evangelho de João que, precisamente, diz que "e o Verbo se fez carne" (1.14), "sarx exeneto, latinizado como incarnatus. Assim, o lar original da 'encarnação' foi a linguagem oficial da Igreja." (Ibíd). Ilustra sua tese de que a metáfora da encarnação é uma metáfora familiar, com os exemplos de Joana d'Arc, George Washington e Winston Churchil, que "encarnaram" o espírito da França, o espírito da Independência Americana e da determinação britânica, respectivamente. (p. 143). Numa definição central, diz que "O mito do Deus encarnado é a narrativa do Filho divino preexistente que desce à vida humana, morre para compensar os pecados do mundo - revelando com isso a natureza divina - e retorna à vida eterna da Trindade." (p. 145). A maneira de reinterpretação desse "mito", acrescenta sua perspectiva: "Em Jesus, vemos um homem que viveu com um grau surpreendente de consciência de Deus e de resposta à presença de Deus."! (Ibíd). E, redefinindo o que chama de "heresia", diz: "Na verdade, a heresia básica sempre foi a de tratar a metáfora religiosa como

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metafísica literal" (Ibíd). Os capítulos finais, que por falta de espaço não analisamos aqui, tratam de: uma negação da reconciliação pelo sangue de Jesus tal como tem sido interpretada pelo cristianismo histórico, a salvação como uma transformação humana, um processo de libertação em escala mundial, a verdade cristã e outras verdades e, finalmente, se pergunta o que tudo isso significa para as igrejas.

2. Uma analise dos pressupostos e idéias de HickAntes de começar com nossa leitura crítica da proposta reinterpretativa de Hick, devemos reconhecer sua competência em termos do conhecimento das fontes teológicas, uma linguagem atrativa para expor suas idéias e sua perspicácia para advertir as inter-relações entre as afirmações da cristologia histórica. Por exemplo, ele é consciente de que se negamos a divindade plena de Jesus Cristo, então inevitavelmente também negamos a impecabilidade dele, o valor único da sua obra da cruz para a salvação da humanidade, sua ressurreição de entre os mortos e a doutrina da Trindade. De todo isso é consciente Hick, portanto, encara uma demolição de todas essas afirmações cristãs, embora seu foco de crítica seja a divindade de Jesus Cristo. Também é importante admitir que o uso da metáfora é freqüente na linguagem bíblica e teológica. Mas trata-se de ver se a metáfora, como linguagem figurada ou simbólica, aplica-se também a divindade de Jesus Cristo. Agora, encaremos nossa crítica a seu trabalho.

Em primeiro lugar, devemos dizer que tanto os pressupostos hermenêuticos como as idéias de John Hick não são novas. Como ele mesmo reconhece, são herdeiras do liberalismo teológico do século XIX com teólogos como Schleiermacher, Ritschl, Strauss, Harnack e Troeltsch. Como bem demostra Carl Braaten, Hick de alguma maneira reproduz as idéias de Troeltsch, e seu questionamento ao caráter absoluto e final do cristianismo. Mas, comparando as duas apresentações, diz Braaten: "A versão de Hick da 'revolução copernicana' carece da plenitude e complexidade da visão de Troeltsch". As idéias de Hick representam talvez somente um novo modelo do liberalismo que derivou num relativismo com relação a fé cristã histórica, terminando com quase toda fundamentação histórica. E, como diz Emil Brunner, "Uma época que perdeu sua fé num absoluto perdeu tudo. Ela deve perecer; ela não tem vitalidade para sair da crise; seu fim pode apenas ser - o fim". Em segundo lugar, Hick pretende "desmitizar" o cristianismo, propondo em nome da ciência reinterpretar o dogma cristológico central que afirma que Deus se encarnou em Jesus Cristo. Para isso, cita um verdadeiro mestre dessa corrente, o exegeta alemão Rudolf Bultmann a quem cita em várias oportunidades (veja pp. 52, 146, 214). Alem de que o próprio Bultmann tem sido criticado amplamente por teólogos competentes e importantes como Karl Barth, Oscar Cullmann, Jürgen Moltmann e Wolfhart Pannenberg, entre outros, é oportuno observar o pretendido caráter científico dos fundamentos de Hick para sua proposta. Tal caráter de "ciência" não parece harmonizar com sua linguagem. Observe-se: "parece conjetura razoável supor" (p. 40), "é extremadamente improvável" (p. 43), "é igualmente verossímil, de fato provavelmente mais verossímil" (p. 65), "de modo provisório, considero que seu pensamento está mais o menos na altura de um terço do caminho histórico" (p. 65). Essa fragilidade de sua posição aparece refletida mais dramaticamente quando faz uma "reconstrução" de ressurreição de Jesus dizendo: "Parece conjetura razoável supor que o evento original da ressurreição possa ser resumido no

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seguinte..." (p. 40). Ali, Hick mostra toda sua capacidade imaginativa, fértil e narrativa, mais própria de um novelista do que de um teólogo. Porque Hick relaciona essa experiência de Pedro, talvez dos outros doze e talvez de algumas mulheres, com a experiência da luz sobrenatural que teve Saulo de Tarso caminho a Damasco. Alem de ser necessária muita imaginação para relacionar esses eventos - e Hick tem muito disso! - cabe perguntar porque então se ele é tão incrédulo da autenticidade histórica da ressurreição porque devemos acreditar que foi histórico o que aconteceu a Saulo caminho a Damasco? Acaso, seguindo as coordenadas hermenêuticas de Hick, poderíamos dizer que nem Saulo existiu, nem essa experiência nunca aconteceu, e tanto "Saulo" como "Damasco" e a "luz" são simples metáforas da linguagem. Alem disso, relacionar a ressurreição de Jesus com "pacientes 'clinicamente mortos'" como ele diz, é demasiadas linguagem e imaginação, demasiadas voltas para negar o fato da ressurreição de Jesus Cristo. Muito mais fácil e honesto, nos parece seria ele simplesmente indicar: "não creio na ressurreição" antes de procurar relaciona-la com a "respiração artificial" de uma pessoa clinicamente morta. Relacionado ao mesmo tema, o próprio Hick, depois desse "conto teológico" ou "romance criativo da ressurreição" agrega: "Uma vez acolhida esta hipótese, as seguintes histórias são, todas elas, acréscimos posteriores feitos à medida que a narrativa se desenvolveu décadas afora..." (p. 40). Outra vez sua "ciência" se baseia em "hipótese" que devemos acolher para depois também acreditar que os relatos dos evangelhos foram simples acréscimos posteriores. É onde alguns dos argumentos ou fundamentos de Hick entram em colisão. Porque ele insiste que os evangelhos sinóticos são mais confiáveis e críveis que o quarto evangelho de João (p. 77). Mas precisamente são os sinóticos que abundam em relatos da ressurreição, igual ao evangelho de João que, pelo que lemos de Hick trata-se, para ele, de "um evangelho incômodo". Em terceiro lugar, existe uma latente contradição na argumentação de Hick. Por um lado, ele pretende demonstrar racional e cientificamente o erro de acreditar numa encarnação real de Deus em Jesus Cristo. Mas por outro lado, ele mesmo reconhece que isso é impossível. Isso parece estar insinuado quando ele critica aos teólogos que tentam explicar "o mistério" do Deus encarnado (p. 86). Mais claramente quando ele afirma que o que aconteceu depois da morte de Jesus em termos de milagres físicos, "jamais pode ser plenamente comprovado do ponto de vista histórico." (p. 41). Aplicando o mesmo axioma poderíamos dizer que tampouco pode ser comprovado historicamente o contrário. Em todo caso, estamos sempre frente ao desafio da fé. O mesmo problema aparece quando Hick pergunta, em tom negativo: "Como poderíamos estabelecer, com base em razões históricas, que Jesus foi perfeitamente impecável..." (p. 150). Uma vez mais se trata de um único fator em jogo: a fé. Em quarto lugar, é necessário questionar a aproximação de Hick a certos temas que tem a ver com Jesus Cristo e a experiência dos crentes com ele - entre os quais parece não estar o próprio Hick, chama nossa atenção que ele não respeita aos que na verdade tem fé viva e comprometida com Jesus Cristo. Hick faz chacotas dos evangélicos que dizem: "Jesus está comigo", "guiando minhas decisões", "ele anda comigo, fala comigo e me diz que sou seu", etc. Hick "explica" estas afirmações apelando à psicologia pela qual "uma pessoa querida já morta (em geral recentemente) encontra-se presente de modo invisível, confortando, guiando ou desafiando alguém em alguma situação do presente" (p. 57). Esta falta de respeito para com os cristãos que amam e adoram a Jesus, Filho de Deus, parece uma

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constante nas elaborações de Hick. Em outra obra Hick diz: "Que Jesus é meu Senhor e Salvador é linguagem semelhante a um amante, para quem sua Elena é a mais doce moça no mundo". Do mesmo teor e vinculação do que ele chama de "metáfora da encarnação de Deus" em Jesus Cristo, com as "encarnações divinas" em Socrates, Zoroastro, Buda, Confúcio, Gautama, Maomé, César, Joana D' Arc, George Washington, Winston Churchil e Antíoco Epífanes. Finalmente, e referindo-nos a sua proposta de re-interpretar a encarnação como metáfora, é necessário dizer que, alem da criatividade de sua argumentação, os testemunhos do Novo Testamento - incluindo os evangelhos sinóticos, as epístolas de Paulo, o evangelho de João - tão molesto para o senhor Hick- e o próprio Apocalipse, são coerentes em mostrar muitos testemunhos e afirmações da divindade de Jesus Cristo, direta ou indiretamente. Somente para oferecer alguns textos chaves: Mateus. 1.23; 8.29; 16.16; 22.41-45; 28.18-20; Marcos 1.1; 2.7-12; Lucas 1.35; 5.8; João 1.1-18; 5.18; 20.24-28; Romanos 1.4; Filipenses 2.5-11; Apocalipse 1.17, 18, etc. etc. Claro que, a partir da exposição de Hick, herdeira de toda uma longa escola liberal e bultmanniana, cada um desses textos e outros mais, deve ser submetidos a uma critica radical para que não molestem ou incomodem a posição adotada por Hick. O mais intolerável, talvez seja quando Hick interpreta Jesus em termos pura e simplesmente humanos, definindo: "Em Jesus, vemos um homem que viveu com um grau surpreendente de consciência de Deus e de resposta à presença de Deus" (p. 145). Na mesma pagina se atreve a dizer: "Na verdade, a heresia básica sempre foi a de tratar a metáfora religiosa como metafísica literal." Advertimos que Hick acredita na existência de heresias. Só que tem a coragem de considerar que a heresia está em todos aqueles que, como os apóstolos, os pais da Igreja, os crentes de vinte séculos, os teólogos como Tertuliano, Origenes, Agostinho de Hipona, Hugo de São Victor, Tomás de Aquino, Karl Barth, Emil Brunner, Karl Rahner, Jürgen Moltmann, Wolfhart Pannenberg, Leonardo Boff, e tantos mais, acreditavam e acreditam plenamente na divindade de Jesus Cristo. Porque para todos eles, o Logos de Deus, que estava com Deus e era Deus, "se fez carne e habitou entre nós, cheio de graça e de verdade" (João 1.1 e 14), não de uma maneira metafórica, mas histórica, até a ponto de padecer e morrer, não metaforicamente mas real e fisicamente na cruz e depois ressuscitar vitorioso de entre os mortos, em verdade e não simplesmente de uma maneira metafórica. Como em algum momento insinua Hick e talvez numa das poucas de suas colocações nas quais podemos coincidir, falar da encarnação de Deus em Jesus Cristo é falar do mistério. Um mistério que como tal, não pode ser nem demostrado racionalmente, nem cientificamente. Trata-se pura e simplesmente de um postulado de fé. Em 1928 Emil Brunner ofereceu palestras no Seminário Reformado de Lancaster, Estados Unidos. É interessante lembrar como respondeu duas questões referidas a Jesus Cristo. A primeira foi: "Como você pode provar que Jesus é o Filho de Deus, a Palavra encarnada?". E respondeu Brunner: "Aqui você tem a questão do espectador, par excellence. Deixe-me em seu lugar fazer esta pergunta: 'Uma revelação que é possível de prova seria ainda uma revelação?'". A outra pergunta foi: "A afirmação da divindade de Jesus Cristo contradiz os resultados da pesquisa histórico-crítica". Resposta: "A questão então não deve ser decidida pela história. É uma questão de fé. [...] O Cristo real não é visível para o olho do historiador. Ver a revelação de Deus em Cristo é um privilegio gracioso da fé, do crente e não do historiador; ou metafisicamente falando, o órgão com o qual Cristo é aprendido não é o olho científico do historiador mas o olho espiritual do crente".

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É indubitável que John Hick é um teólogo muito imaginativo e criativo. Tanto que a partir de pressupostos que como tais são subjetivos e hipotéticos, termina por mudar totalmente o cristianismo histórico que se mantém ou cai com a afirmação de que o Verbo se fez carne e habitou entre nós. Hick termina por converter o Evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus, ressuscitado de entre os mortos, em outro evangelho. Já sabemos a que conduz um caminho tão resvaladiço como esse.

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