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29 2009 - jul.-dez. - v. 20 - n. 2 - A LETRI A EM QUE DIFEREM OS VERSOS DE VIRGÍLIO E LUCANO Brunno V. G. Vieira* Universidade Estadual de São Paulo - Araraquara Grupo Linceu – Visões da Antiguidade Clássica R ESUMO ESUMO ESUMO ESUMO ESUMO Perscrutar o ritmo de um poeta pode fornecer uma visão das engrenagens poéticas geralmente encobertas pelo conteúdo sobre o qual os poemas ganham corpo. Com o intuito de estudar as particularidades da poesia do épico latino Lucano (séc. I d. C.), o artigo apresenta uma comparação entre presságios da Farsália (VII 151-67) e das Geórgicas , (I, 474-88) de Virgílio, procurando descrever as diferentes modulações e formalizações de seus conjuntos sintático-prosódicos. P ALAVRAS ALAVRAS ALAVRAS ALAVRAS ALAVRAS - CHAVE CHAVE CHAVE CHAVE CHAVE Lucano, Virgílio, estilo O estilo de Lucano mereceu comentários já dos autores antigos. Para Marcial, ele “cantava as guerras com truculenta grandiloquência” (fera tuba). 1 A palavra tuba, “trombeta de guerra”, mas por metonímia, “grandiloquência”, 2 é também usada para designar o estilo de Virgílio (tanta tuba), 3 diferencia-os, então, o adjetivo fera que tem uma sinonímia bastante ampla, significando desde o etimológico “selvagem” (do grego pher, “Centauro”) até, por extensão de sentido, “impetuoso” e “violento”. Na mesma linha, Estácio, ao tratar da Farsália, 4 usa o verbo detonare, “trovejar, rimbombar”: Pharsalica bella detonabis, “farás ribombar as guerras Farsálicas”. 5 Quintiliano, no cânone direcionado a futuros oradores do livro X da sua Institutio Oratória, 6 parece expressar, sobre o estilo de Lucano, uma leitura semelhante ao qualificá-lo como ardens et concitatus, “inflamado e impetuoso”, além de aludir ao conteúdo brilhante * [email protected] 1 MARTIALIS. Ep., X, 64, 4. A tradução dos textos em língua estrangeira, quando não citado o tradutor, são de minha autoria. 2 “Sonora e elevada poesia épica”, cf. LEWIS; SHORT. A Latin Dictionary, ad. loc. 3 MARTIALIS. Ep., VIII, 55, 4. 4 Bellum Ciuile é o nome encontrado nos manuscritos mais antigos e pelo menos desde Hosius (1892) vem expresso nas principais edições do texto. Farsália, contudo, é o nome ibérico da obra desde a tradução espanhola de Jáuregui (século XVII), passando por Filinto Elísio e Bocage, até ser assim referida por Machado de Assis. Esta a razão de minha preferência por Farsália, nas citações pontuais à obra servi-me do título De bello ciuili adotado pela edição que utilizei cf. LUCANI. De bello ciuili libri decem. 5 STATIUS. Sil., II, 7, 66. 6 QUINTILIANUS. Inst. or., X, 90.

Aletria - Em Que Diferem Os Vv. de Vir. e Luc

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Artigo acadêmico

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    EM QUE DIFEREM OS VERSOS DE VIRGLIO E LUCANO

    Brunno V. G. Vieira*Universidade Estadual de So Paulo - Araraquara

    Grupo Linceu Vises da Antiguidade Clssica

    RRRRR E S U M OE S U M OE S U M OE S U M OE S U M OPerscrutar o ritmo de um poeta pode fornecer uma viso dasengrenagens poticas geralmente encobertas pelo contedosobre o qual os poemas ganham corpo. Com o intuito de estudaras particularidades da poesia do pico latino Lucano (sc. Id. C.), o artigo apresenta uma comparao entre pressgios daFarslia (VII 151-67) e das Gergicas, (I, 474-88) de Virglio,procurando descrever as diferentes modulaes e formalizaesde seus conjuntos sinttico-prosdicos.

    PPPPP A L A V R A SA L A V R A SA L A V R A SA L A V R A SA L A V R A S ----- C H A V EC H A V EC H A V EC H A V EC H A V ELucano, Virglio, estilo

    O estilo de Lucano mereceu comentrios j dos autores antigos. Para Marcial,ele cantava as guerras com truculenta grandiloquncia (fera tuba).1 A palavra tuba,trombeta de guerra, mas por metonmia, grandiloquncia,2 tambm usada paradesignar o estilo de Virglio (tanta tuba),3 diferencia-os, ento, o adjetivo fera que temuma sinonmia bastante ampla, significando desde o etimolgico selvagem (do grego pher,Centauro) at, por extenso de sentido, impetuoso e violento. Na mesma linha,Estcio, ao tratar da Farslia,4 usa o verbo detonare, trovejar, rimbombar: Pharsalicabella detonabis, fars ribombar as guerras Farslicas.5

    Quintiliano, no cnone direcionado a futuros oradores do livro X da sua InstitutioOratria,6 parece expressar, sobre o estilo de Lucano, uma leitura semelhante ao qualific-locomo ardens et concitatus, inflamado e impetuoso, alm de aludir ao contedo brilhante

    * [email protected] MARTIALIS. Ep., X, 64, 4. A traduo dos textos em lngua estrangeira, quando no citado otradutor, so de minha autoria.2 Sonora e elevada poesia pica, cf. LEWIS; SHORT. A Latin Dictionary, ad. loc.3 MARTIALIS. Ep., VIII, 55, 4.4 Bellum Ciuile o nome encontrado nos manuscritos mais antigos e pelo menos desde Hosius (1892) vemexpresso nas principais edies do texto. Farslia, contudo, o nome ibrico da obra desde a traduoespanhola de Juregui (sculo XVII), passando por Filinto Elsio e Bocage, at ser assim referida porMachado de Assis. Esta a razo de minha preferncia por Farslia, nas citaes pontuais obra servi-medo ttulo De bello ciuili adotado pela edio que utilizei cf. LUCANI. De bello ciuili libri decem.5 STATIUS. Sil., II, 7, 66.6 QUINTILIANUS. Inst. or., X, 90.

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    de seus pensamentos (sententiis clarissimus, extremamente brilhante na expresso dospensamentos).7 O autor da Institutio Oratoria manifesta, ainda no mesmo trecho, aproximidade entre o estilo de Lucano e a oratria, uma vez que ele deveria ser imitadomais pelos oradores que pelos poetas (magis oratoribus quam poetis imitandus). Recentemente,Delarue8 considerou positiva essa crtica, na medida em que denotaria aproximaesentre o estilo de Lucano e o sublime:

    O sublime o ponto mais alto e a excelncia, por assim dizer, do discurso e que, pornenhuma outra razo seno essa, primaram e cercaram de eternidade a sua glria osmaiores poetas e escritores. No a persuaso, mas o arrebatamento, que com os lancesgeniais conduzem os ouvintes.9

    Ainda assim, comparando o tratamento dado a Lucano e a Virglio, fica claro asupremacia que o rtor atribui ao estilo do segundo: todos os outros segui-lo-o delonge.10 O mantuano incomparvel: o quanto somos vencidos por sua [de Vir.]excelncia, talvez seja compensado por sua imitao.11

    Falando de modo geral do estilo lucaniano, essas crticas apreendem na Farsliaum certo tom sobressaltado que a distingue do estilo virgiliano e a singulariza enquantodiscurso potico. Mas juzos bastante severos tambm tiveram vez. Fronto (sculo IId. C.), rtor de origem africana, que professava um aticismo moderado de tom arcaizante,12

    criticou duramente o novo estilo de Lucano e Sneca. Aquele ardor lucaniano queQuintiliano convocava aos oradores imitar, objeto de duras crticas:

    Nem ignoro que esse homem13 abundante na expresso dos pensamentos e redundante.Na verdade, como diz Labrio, vejo que suas frases galopantes nunca chegam excitadamarcha dos quadrpedes, nunca combatem, nunca anseiam o esplendor, mais do queverbalizaes ele produz verborragias, ou melhor, verborrias.14

    7 Ao usar a perfrase expresso dos pensamentos busquei dar nfase ao sentido retrico do termosententia: um pensamento expresso em palavras, cf. LEWIS; SHORT. A Latin Dictionary.8 DELARUE. La guerre civile de Lucain: une pope plus que pathtique, p. 212.9 LONGINO. Do sublime, p. 71, em traduo de Jaime Bruna.10 (...) ceteri omnes longe sequentur. QUINTILIANO. Inst. Or., X, 87.11 (...) et quantum eminentibus uincimur, fortasse aequalitate pensamus. QUINTILIANO. Inst. Or., X, 86.Aequitas na acepo de imitao, embora inusual, pareceu-nos mais conveniente que a perfrasepela equivalncia ao estilo dele.12 FRONTO. Epistula de oratoribus, 19: nam volgo dicitur, quod potius sit, antiquius esse, pois como se dizentre o povo, tudo que mais antigo melhor. Sobre o classicismo de Fronto cf. ALBRECHT. Historiade la literatura romana: desde Andrnico hasta Boecio, p. 1306.13 Embora a expresso hominem retome anaforicamente Aneu Sneca, citado no pargrafo anterior,Fronto, mais frente, ao falar especificamente do exrdio de Lucano, d mostras de que ele esttratando de modo abrangente do estilo dos Aneus: Unum exempli causa poetae prohoemium commemorabo,poetae eiusdem temporis eiusdemque nominis: fuit aeque Annaeus, Como exemplo, vou lembrar-me de umparticular promio de um poeta da mesma poca e de mesmo nome: foi igualmente um Aneu.14 FRONTO. Epistula de oratoribus, 2: Neque ignoro copiosum sententiis et redundantem hominem esse;verum sententias eius tolutares video nusquam quadripedo concito cursu tenere, nusquam pugnare, nusquamiestatem studere, ut Laberius ait, dictabolaria, immo dicteria, potius eum quam dicta confingere.

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    Na sequncia dessa mesma carta, Fronto repreende o uso da nfase amplificadorados primeiros versos de Lucano, censurando o carter imoderado e incontido (nullus finisnec modus)15 de sua poesia. Depois, assumindo que seu modelo de excelncia Homero,16

    chama a ateno monotonia tanto dos poetas, quanto dos oradores Aneus: eles, comocostumam fazer os citaredos, cantam uma nica vogal com muitos e variados acentos.17

    Relevado o tom sectrio dessa leitura, Fronto, com seu nullus finis nec modus, depreendeum dos principais expedientes estilsticos de Lucano, que Albrecht chamaria de segredode seu estilo, qual seja, a produo de uma torrente ininterrupta de conscinciapotica.18 Desse modo de concatenar o pensamento nasce o inconfundvel ritmolucaniano imposto por uma imoderada progresso de frases, imagens e sentidos. comose a necessidade de sempre sobrecarregar o efeito dos eventos narrados resultasse numandamento sinttico de perder o flego.19

    Como o poema um construto discursivo em que predomina a funo potica,que se define pelo isomorfismo, isto , pela homologao entre plano de contedo e deexpresso, de se notar que essas consideraes sobre a expresso de pensamentos esobre a concatenao da narrativa da poesia lucaniana tm ressonncias no ritmo dosversos. Assim, talvez a comparao de Fronto entre poetas e citaredos no seja v, poiscomo Octvio Paz adverte sobre a frase potica: diferena do que ocorre com a prosa,a unidade da frase, o que a constitui como tal e produz linguagem, no o sentido oudireo significativa, mas sim o ritmo.20

    Se, ainda com Paz, pode-se entender que cada ritmo uma atitude, um sentidoe uma imagem do mundo, distinta e particular,21 perscrutar os segredos do ritmo lucanianopode nos fornecer uma imagem aproximada de sua oficina potica. Mas, para abordar essenvel da expresso, ser inevitvel comparar Lucano e seu grande predecessor Virglio.Procurei, ento, nesses dois poetas, passagens que tratassem de um tema semelhantepara tentar detectar as diferentes modulaes e formalizaes de seus textos. O resultadodessa busca so as duas descries de pressgios, cada uma delas com cerca de 15 hexmetros.O tpos da enumerao de prodgios visa ao terror do receptor do discurso. Procura-setextualizar o sobrenatural (contra naturam)22 dos portentos, indicadores de futuras mazelas.

    15 FRONTO. Epistula de oratoribus, 7.16 non enim Homeri prohoemiorum par artificium est, no h uma arte de promios que seja preo deHomero, FRONTO. Epistula da oratoribus, 6.17 FRONTO. Epistula de oratoribus, 9: ut quae citharoedi solent: unam aliquam vocalem litteram ()multis et variis accentibus cantare.18 ALBRECHT. Historia de la literatura romana: desde Andrnico hasta Boecio, p. 850.19 Segundo Fantham: Ao narrar ou descrever, o poeta sobrepe uma diferente espcie de sntese:construes participiais na orao apresentando trs ou quatro idias ligadas a um nico verbo, assim,freqentemente a relao lgica de tempo, de causalidade, de concesso ou de inteno deve seradivinhada pelo ouvinte, na medida em que ele segue a insistncia do poeta, num andamento de quaseperder o flego (Cf. FANTHAM. Introduction, p. 34).20 PAZ. El arco y la lira, p. 51.21 PAZ. El arco y la lira, p. 61.22 SERVIUS. In Geor., I, 478.

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    Virglio trata do prodgios que se seguiram morte de Csar:

    armorum sonitum toto Germania caeloaudiit, insolitis tremuerunt motibus Alpes. 475uox quoque per lucos uulgo exaudita silentisingens, et simulacra modis pallentia mirisuisa sub obscurum noctis, pecudesque locutaeinfandum!; sistunt amnes terraeque dehiscunt,et maestum inlacrimat templis ebur aeraque sudant. 480proluit insano contorquens uertice siluasfluuiorum rex Eridanus camposque per omniscum stabulis armenta tulit. nec tempore eodemtristibus aut extis fibrae apparere minacesaut puteis manare cruor cessauit, et altae 485per noctem resonare lupis ululantibus urbes.non alias caelo ceciderunt plura serenofulgura nec diri totiens arsere cometae.23

    Lucano fala dos prenncios da batalha de Farslia:

    non tamen abstinuit uenturos prodere casusper uarias Fortuna notas. nam, Thessala ruracum peterent, totus uenientibus obstitit aether 153aduersasque faces inmensoque igne columnas 155et trabibus mixtis auidos typhonas aquarumdetulit atque oculos ingesto fulgure clausit;excussit cristas galeis capulosque solutisperfudit gladiis ereptaque pila liquauit,aetherioque nocens fumauit sulpure ferrum; 160uixque reuolsa solo maiori pondere pressum 162signiferi mersere caput rorantia fletuusque ad Thessaliam Romana et publica signa.admotus superis discussa fugit ab ara 165taurus et Emathios praeceps se iecit in agros,nullaque funestis inuenta est uictima sacris.24

    23 VIRGILIUS. Georgica, I, 474-88, Pelos cus da Germnia, ouviu-se o som/ de guerra, e os Alpesslidos tremeram./ Dentro do bosque o povo ouviu tambm (475)/ um grito; espectros plidos e exticos/na escurido da noite foram vistos./ O gado anda a falar, fato assombroso!,/ a terra se abre, os rios seucurso param,/ triste chora o marfim dentro dos templos,/ transpira o bronze. O rei dos rios, o Erdano,(480)/ vertendo a cabeceira insanamente,/ encheu as selvas e, atravs dos campos,/ rebanhos e currais,tudo arrastou./ Durante aquele tempo no cessou/ de aparecer nas vsceras mazelas/ nem de manar dospoos negro sangue, (485)/ de em plena urbe noite uivarem lobos./ Nunca no cu fulgiram toinmeros/ raios, tantos cometas agourentos.24 LUCANI. De bello ciuili..., VII, 151-67, No se furtou a Sorte de, por sinais vrios,/ desvelar o futuro.Pois, quando ao Tesslio/ cho passavam, ops-se aos pelotes o cu (153)/ e adversas luzes, e de fogoimensos postes, (155)/ e tufes sorvedores dgua entre fagulhas/ atirou, e com tal fulgor ele os cegou,/ edestruiu as plumas do elmo, e derreteu / os gldios na bainha, e os pilos liqefez,/ e ao ferro atroz com o arsulfrico ofuscou. (160)/ O cabisbaixo porta-estandarte, arrastando-se (162)/ curvado pelo peso maiordas insgnias/ pblicas e Romanas e a gotejar lgrimas / a custo carregou-as at a Tesslia./ Movidopelos deuses, de um desfeito altar, (165)/ fugiu infrene um touro e correu rumo a Emtia,/ e a sacrilgiosno se achou vtima alguma.

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    Por mais que seja temerrio falar do ritmo desses dois poetas a partir de to exguonmero de versos, no contraste com as estatsticas globais citadas por Fantham,25 tentareiaqui estabelecer algumas conjecturas.26

    Comparando os hexmetros dos dois poetas, muito se fala de uma perda de variedademtrica ocorrida em Lucano.27 H que se relativizar esse argumento tendo em vista osversos em anlise, das 18 variantes possveis de combinaes entre dtilos (D) e espondeus(S) nos quatro primeiros ps dos hexmetros,28 Virglio serve-se de 10 esquemas em 15versos, enquanto a proporo 9/15 em Lucano.29

    Tabela 1: Variantes rtmicas de Virglio e Lucano

    Virglio Lucano

    474 SDSS DDSS 151475 DDDS DSDS 152476 DSSS DSDD 153477 SDDS SDSS 155478 DSSD DSDS 156479 SSSS DDSS 157480 SDSD SSDD 158481 DSSS SDSD 159482 SSDS DDSS 160483 DSDS DSSD 162484 DSSS DSDS 163485 DSDS SDSS = 164486 SDDD SDSS = 165487 DSDS = DDSS 166488 DSDS = DSSS 167

    Legenda: os nmeros esquerda e direita referem-se aos versos em que as sequncias rtmicas ocorrem;negrito: sequncia de trs ou mais dtilos; sublinhado: alternncia entre dtilos e espondeus;entre aspas: sequncia de trs ou mais espondeus; = mesma sequncia; itlico: sequncia mais usada.

    25 FANTHAM. Introduction, p. 34 et seq.26 Rubio lembra que nosso ouvido moderno no est infelizmente nas mesmas condies [dos antigos].No sentimos a quantidade e s indiretamente graas aos nossos estudos [pela via erudita da Mtrica],podemos deduzir o valor quantitativo de determinados elementos fnicos. () Para ns s as estatsticasrevelam o que devia soar-lhes bem, regular ou mal. Cf. RUBIO. Introduccin a la sintaxis estructural dellatn, p. 214. oportuno dizer que o texto das Gergicas, embora pertencente ao gnero didtico, aparececomo fonte de Lucano, e sua formalizao e grandiloquncia hexamtrica no devem nada ao tompico, motivos que justificam sua colocao.27 FANTHAM. Introduction, p. 43; e BRAMBLE. Lucano, p. 594.28 O hexmetro um verso de seis ps mtricos. Uma vez que o quinto p um dtilo fixo ( ( ( ) e o sextoe ltimo p consiste de uma longa e uma slaba neutra ( x) (PRADO. Canto e encanto..., p. 185 et seq.), asmodulaes rtmicas so dependentes das variaes entre ps dtilos ( ( ( ) e espondeus ( ) nos quatroprimeiros ps.29 Como Housman, o editor do texto de Lucano que utilizamos, cf. LUCANI. De bello ciuile..., ad loc.,considerainterpolados os versos VII 154 e 161, ou por no serem versos de Lucano ou por, sendo eles legtimos, nopertencerem a esse trecho, decidi no transcrev-los e exclu-los dos cmputos. A quem interessar possaeis os versos e suas respectivas tradues: 154 [inque oculis hominum fregerunt fulmina nubes], e as nuvens emseus olhos atiravam raios; 161 [nec non innumero cooperta examine signa], s insginias cobriram enxamesno poucos.

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    Como se pode verificar, esses dados, sob o ponto de vista numrico, no denotamclaramente um distanciamento estilstico entre Lucano e Virglio, j que as sequnciasmais usadas ao longo da Farslia (DSSS, DDSS, DSDS e SDSS) constituem 52% dos seushexmetros em oposio a 47% dos hexmetros virgilianos,30 ainda que se possa vislumbraruma perda de variedade no fechamento do hexmetro lucaniano.31 O uso de uma palavradatlica para cobrir o quinto p fixo um procedimento mtrico bastante utilizado porLucano, facilidade que evitada por Virglio. Na passagem em questo, esse procedimento usado quatro vezes por Virglio (nos versos 475, 480, 481 e 483) e oito vezes por Lucano(151, 152, 153, 157, 160, 162, 164 e 167). No entanto, a grande distino entre esses poetasse consolida no arranjo e na disposio dos metros em relao ao microcosmo de cadaverso e do macrocosmo do andamento narrativo, em que se enfatize a articulao entreplano de contedo e plano de expresso ao longo do eixo de relaes sintagmticas. oque procurarei analisar a seguir.

    De fato, baseado s nos dados acima apresentados parece certo exagero Brambleafirmar que Lucano abandona a versatilidade do hexmetro virgiliano, optando porum ritmo que prosaico e no musical.32 Ao considerar meramente esses padres rtmicosdos quatro primeiros ps, embora haja disparidades, elas no so to significativas aponto de atribuir prosasmo a Lucano. A proximidade dos procedimentos, alis, faz pensarat que ponto essa ligeira perda de variedade mtrico-prosdica no seja intencional,j que em passagens de clara imitao virgiliana o episdio da luta entre Hrcules eAnteu33 um bom exemplo , Lucano consegue um andamento melfluo. Assim, acus-lode prosasmo em termos mtricos me parece pouco sustentvel, embora se possacomprovar uma tendncia prosaica no nvel do lxico. Interpretar como prosa a diferentemodulao rtmica e prosdica da obra lucaniana em relao a Virglio equivale adesprezar todo investimento formal ao qual o prprio Lucano parece se referir quandofala em cuidado de meu trabalho,34 referindo-se metalinguisticamente ao seu poema.

    Nesse sentido, o que h em Lucano uma distinta variedade rtmica que indiciaa particularidade de seu estilo em relao aos seus predecessores, pois,

    a unidade da frase, que em prosa se d pelo sentido ou pela significao, no poema alcanada graas ao ritmo. A frase rtmica nos leva assim ao exame de seu sentido. ()Cada ritmo uma atitude, um sentido e uma imagem do mundo distinta e particular.35

    30 FANTHAM. Introduction, p. 45.31 Fantham nota que Lucano geralmente coincide em final de palavra a tesis do 4. p. Segundo ela, osfinais ( ( | x (e. g. foedera rerum) e ( | ( x (e. g. rector Olympi) so formas que somam mais dametade dos fim de versos, cf. FANTHAM. Introduction, p. 45.32 BRAMBLE. Lucano, p. 594 et seq. De fato, enquanto estou fazendo aqui uma comparao em termosrtmicos e prosdicos, Bramble apresenta essa afirmao a partir de uma anlise lexical de Lucano, emque conclui estar ele menos preocupado em embelezar sua linguagem que por apresent-la de modoseco. Em vista disso menciona a preferncia por palavras realistas e prosaicas em oposio ao lxicopotico virgiliano: sua tendncia prosaica se v de novo no predomnio de terra sobre tellus, caelumsobre polus, uentus sobre aura, aqua sobre lympha ou latex, cf. BRAMBLE. Lucano, p. 594.33 LUCANUS. De bello ciuili..., IV, 589-665.34 (...) nostri... cura laboris, cf. LUCANI. De bello ciuili..., VII, 209.35 PAZ. El arco y la lyra, p. 66-67.

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    Nos pressgios, os dois poetas servem-se de figuras de pensamento prprias danarrao, com a finalidade de amplificao (amplificatio) dos prodgios. Deixando delado as figuras de palavras, de que tratarei a seu tempo, possvel verificar a recorrncia,no desenrolar do pensamento, de figuras por aposio (figurae per adiectionem), tal comoa euidentia, e de figuras por supresso (figurae per detractionem), tal como a percursio. Aeuidentia, evidncia, a traduo latina da enargeia, tambm chamada por Ccero declareza convincente (inlustratio), essa figura faz parecer que se est mostrando umevento, mais que o reportando, e o efeito resultar no de outro modo, como seestivssemos no meio dos prprios eventos.36 J a percursio, percurso, a traduodo epitrokhasmos, que tambm para Ccero a acumulao de muitos pensamentos emum breve tempo, na traduo de Courbaud, trata-se da aluso rpida, marcada pelabrevidade distintamente concisa (breuitas distincte concisa). Como exemplo de evidncia,Lausberg refere-se Aen. I, 423-9, na descrio da construo de Cartago:37

    instant ardentes Tyrii: pars ducere murosmolirique arcem et manibus subuoluere saxa,pars optare locum tecto et concludere sulco;iura magistratusque legunt sanctumque senatum.hic portus alii effodiunt; hic alta theatrisfundamenta locant alii, immanisque columnasrupibus excidunt, scaenis decora apta futuris.38

    Como modelo de percurso, Lausberg39 lembra um trecho da Rhetorica ad Herennium,IV, 68:

    No caminho apanhou Lemnos; depois deixou uma guarnio em Tasos, em seguida destruiua cidade bitnia de Cio, e ento, voltando ao Helesponto, apoderou-se imediatamente deAbido.40

    Tais figuras de pensamento so potencializadas atravs da concatenao de figurasde palavras (figurae elocutionis), mormente as figuras por ordenao (figurae per ordinem),que, conjuminadas aos andamentos mtricos, fornecem enumerao dos prodgios umaespcie de ritmo no plano sinttico. Tentarei oferecer uma anlise comparativa dospressgios levando em conta o uso dessas figuras e sua progresso no desenrolar dascombinaes mtricas que apresento mais acima. Alm do repertrio metalingustico

    36 Cf. QUINTILIANUS. Inst. Or., VI, 32: Cicerone inlustratio et euidentia nominatur, quae non tam dicereuidetur quam ostendere, et adfectus non aliter quam si rebus ipsis intersimus sequentur.37 LAUSBERG. Elementos de retrica literria, p. 218.38 Na traduo de Thamos: Aplicam-se ardorosamente os trios:/ uns, a erguer fortalezas, rolam pedras,/outros, a escolher onde as casas fiquem,/ assinalam com sulcos o terreno;/ tratam dos magistrados e dasleis,/ definem um senado venervel./ Ali escavam portos; mais alm/ lanam as amplas bases de umteatro/ e altas colunas cortam da pedreira,/ de encenaes futuras nobre ornato. THAMOS. As armase o varo..., p. 296.39 LAUSBERG. Elementos de retrica literria, p. 243.40 Lemnum praeteriens cepit, inde Thasi praesidium reliquit, post urbem Viminacium sustulit, inde pulsus inHellespontum statim potitur Abydi. Todas as tradues da Rhetorica ad Herenium aqui citadas so de A.P. Faria e A. Seabra, cf. CCERO. Retrica a Hernio.

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    da Retrica Antiga, utilizarei tambm as espcies de poesia teorizadas por Ezra Poundnum esforo de dilogo com um tratamento moderno dos acidentes poticos.

    O virtuosismo de Lucano no trato com a sintaxe leva Bramble a dizer, em termospoundianos, que o modo de expresso escolhido pelo poeta seria a logopeia41 um veculomais adequado para as abstraes e dificuldades de seu tema que a musicalidade deVirglio.42 O crtico parece opor um carter melopeico43 da arte virgiliana poesia logopeicade Lucano. Bramble foi, sem dvida, mais feliz nessa interpretao, ainda que todos ospoetas latinos sejam exmios praticantes dessa espcie de poesia logopeica, que consisteno relevo conferido projeo semntica no domnio da sintaxe. Em comparao aorefinadssimo e anagramtico melos de Virglio, sem sombra de dvidas o modo logopeicose destaca em Lucano.44

    Nos excertos dos pressgios, os dois autores usam largamente as assonncias emvogais posteriores tais como -o (/ -o #- e -u (-/-u #-, o que talvez atribusse atribui um tomlgubre locuo do texto latino. Mas ningum melhor nessa representao melopicaque Virglio. Como se pode notar nas seguintes construes:45

    V.1. Visa sVb obscVrVm nocti #s, pecVdesque locVtae (478), verifica-se a assonncia do /u/ no momento noturno e fantasmagrico dos pressgios, em que pese a arquiteturafnica do a no comeo e fim de verso, e do i # central na cesura heptemmera;

    V. 2. A alternncia voclica no sintagma insOliTIs trEmVErVnt mOTIbus (475), emque os pares sonoros o (-ti #/o #-ti ( do determinante e determinado, so disjuntos pelainterposio do eu/eu de tremuerunt;

    V. 3. i #nfa #ndu #m!; si #stu #nt a #mne #s te #rra #eque ( de (i #scu *nt, no qual a ideia de infandum,assombroso recebe a homologia mtrica num verso predominantemente espondaico,com assonncias em /i/ e /u/, na aliterao em nasais /n/ e /m/;

    V. 4. per noctem resonare lu (pis u (lu (lantibu (s u #rbes, em que o /u/ do onomatopaico ulularerecebe o reforo de lVpis, do morfema de ablativo ibVs e da primeira vogal de Vrbes,encenando o uivo dos lobos a cortar a noite.

    41 Segundo Pound, logopeia uma espcie de poesia constituda pela dana do intelecto entre palavras,isto , pelo emprego das palavras no apenas por seu significado direto, mas levando em conta, de maneiraespecial, os hbitos de uso, do contexto que esperamos encontrar com a palavra, seus concomitanteshabituais, suas aceitaes conhecidas e os jogos de ironia. Cf. POUND. A arte da poesia: ensaiosescolhidos, p. 37-38.42 BRAMBLE. Introduction, p. 594.43 Melopeia a espcie de poesia na qual as palavras esto carregadas, acima e alm de seu significadocomum, de alguma qualidade musical que dirige o propsito ou tendncia desse significado. POUND.A arte da poesia: emsaios escolhidos, p. 37.44 Tenho conscincia do risco de anacronismo que estou correndo ao tentar aproximar a metalinguagemantiga e moderna, mas a prpria sugesto de Bramble acabou por chamar ateno eficcia do tratamentopoundiano para o entendimento de um dos nveis de distino entre Virglio e Lucano.45 Para facilitar posteriores retomadas dos exemplos, optei por oferecer uma sequncia numrica scitaes, servindo-nos da inicial do poeta: V., para Virglio e L. para Lucano; assim V.1 significa primeiroexemplo de Virglio; L. 8 oitavo exemplo de Lucano, etc.46 CCERO. Rhet. Her., IV, 26: Membrum orationis appellatur res breuiter absoluta sine totius sententiaedemonstratione, quae denuo alio membro orationis excipitur. Chama-se membro do discurso um segmentobreve e completo que no expe toda a sentena. Essa ter continuidade em outro membro.

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    Alm dessa isomorfia entre som e contedo, perceptvel no texto de Virglio aexistncia de certa marcao rtmica pelo uso de paralelismos sintticos e prosdicos,numa luminosa combinao entre melopeia e logopeia:

    V.5. atente-se para a relao paronomsica (audiit-exaudita) entre os pares: Germaniacoelo/audiit (474-5) -Vox...exaudita.../ingens (476-7). Essa paranomsia s enfatiza o empregoda evidncia na coordenao dos dez membros46 seguintes, nos versos 474-80, que tm umaespcie de fronteira47 rtmica com o verso 479, predominantemente espondaico. Algumasfiguras de palavra emparelham alguns desses versos: os dois primeiros versos tem topnimos(Germania/Alpes) como sujeitos numa espcie de geminada prosopopia; segue o uso de trsverbos na forma passiva48 em exaudita/uisa/locutae o que oferece uma espcie de paralelismomorfolgico; a figura de paridade (conpar)49 aparece na repetio de membros no final dosversos 479-80, numa seqncia sinttica sujeito-verbo com igual nmero de palavras:terraeque dehiscunt;/aeraque sudant, reforado pelo quase homoeteleuco50 de terraeque/aeraque;

    V. 6. nos versos 481 e 482, a anstrofe (inuersio)51 juntamente com o hiprbato (transiectio)entre verbo e sujeito na meno s cheias do rio Erdano (PROLUIT insano contorquensuortice siluas/fluuiorum rex ERIDANUS), que encena sintaticamente a cheia do rio;

    V. 7 a percurso tem lugar na sequncia nos versos 484-6 com os membros formadospor conjuno (coniunctio)52 numa construo INFINITIVO X(suj.) cessauit Y(abl. compl.do inf.) algo (suj.) no cessou de ACONTECER em/com alguma coisa (compl. do inf.) notem-se a nos trs membros a repetio do infinitivo objetivo e a omisso do verbo principalnon cessauit no primeiro e no terceiro deles: nec tempore eodem/tristibus aut extis fibrae apparereminaces/ 485. aut puteis manare cruor CESSAVIT, et altae/per noctem resonare lupis ululantibusurbes (483-6). Vale ressaltarque a obtusidade da anstrofe tratada em V. 6 e da percursonesta compensada pela regularidade do esquema mtrico entre os versos 481-485;53

    V. 8 Similar efeito de paralelismo mtrico ocorre nos versos 487-8 que fecham o excertocom duas sequncias contnuas DSDS.

    47 Pensamos que o verso espondaico delimita at ritmicamente o emprego da evidncia.48 Locutae um verbo depoente.49 CCERO. Rhet. Her., IV, 27: Conpar appellatur, quod habet in se membra orationis, de quibus antediximus, quae constent ex pari fere numero syllabarum. Na paridade, os membros do discurso, dos quaisfalei acima, possuem um nmero aproximadamente igual de slabas.50 Homeoteleuto a igualdade snica dos fins das ltimas palavras. LAUSBERG. Elementos de retricaliterria, p. 214.51 Rubio apresenta dois modos de alterao da ordem nas palavras em latim: a transiectio (hiprbato),quando h o distanciamento de duas palavras correlacionadas e inuersio (anstrofe), quando h umamudana (inverso) de posio dos membros correlacionados. Como essas definies implicam as regrasgerais da ordem das palavras em latim, Rubio acaba por apresentar essas regras nestes termos: 1. O sintagmapredicativo: normalmente, o sujeito encabea a orao e o predicado a fecha; 2. sintagma determinativo:todo elemento determinante precede normalmente o determinado. A lei nica para todas as variantesdo sintagma determinativo: advrbio-verbo; adjetivo-substantivo; e substantivo em dependncia de umverbo ou de outro substantivo. 3. as preposies precedem o substantivo que regem; as conjunesprecedem aos termos que enlaam. RUBIO. Introduccin a la syntaxis estructural del latn, p.199-200.52 CCERO. Rhet. Her., IV, 38: Coniunctio est, cum interpositione verbi et superiores partes orationisconprehenduntur et inferiores, hoc modo: Formae dignitas aut morbo deflorescit aut vetustate. Na conjunoos membros anteriores e os subsequentes so ligados pela mediao de um verbo.53 Convm destacar a disposio emparelhada das sequncias rtmicas: v. 481. DSSS / (SSDS)/ DSDS/ DSSS / 485 DSDS.

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    O poeta Manoel de Barros sentenciou uma vez que estilo um modelo anormal deexpresso54 e, sem dvida, a comparao entre o modo de expresso lucaniano e do seupredecessor revela o emprego de uma outra matriz expressiva. Assim, esse cintilanteentrecruzamento entre melopeia e logopeia que confere aos pressgios de Virglio umanotvel eurritmia entre conjuntos sinttico-prosdicos parece, em certa medida, ser rejeitadopor Lucano nos seus pressgios. Evidentemente, como prprio da poesia,55 ele se serve deuma motivada escolha do plano sonoro, com regular emprego de aliteraes e assonncias,muito embora a dinmica desses expedientes objetive mais uma exasperao no nvel prosdicodo que uma harmoniosa eufonia. Exemplos da exasperada melopeia lucaniana so:

    L.1. no verso 153, o impedimento provocado pelo cu ressaltado por forte aliteraodo fonema dental /t/ (cum peTerenT, ToTus uenienTibus obsTiTiT aeTher);

    L.2. o verso 155, AduErsAsquE fAcEs//ImEnsOquE_IgnE cOlVmnAs, encena a variedadesonora da tempestade atravs de um interessante jogo assonntico com as vogais /a/ e /e/e tambm com a aliterao em nasais /m/ e /n/;

    L.3. nos versos 157-159, a ao do cu em chamas se reflete no uso de reiteradasaliteraes em velares /k/ e /g/, alm de predominncia das vogais /o/ e /u/: detulit atKueoKulos inGesto fulGure Klausit; /eKSKussit Kristas Galeis KapulosKue solutis/perfudit GladiisereptaKue pila liKuauit.

    Esses construtos melopeicos, porm, no esto conjuminados com uma harmoniosaprogresso sinttica tal como em Virglio , de modo que a projeo sintagmtica dosefeitos celestes acontece pelo abuso das figurae per transmutationem, figuras de alteraoda ordem e pelo emprego sistemtico da percurso em detrimento da evidncia.

    Esse modo de expresso que se verifica em Lucano tem relaes com o estilo vigentena sua poca. Um testemunho metaliterrio de Sneca, seu contemporneo, parece nodeixar dvidas sobre as caractersticas do costume do sculo. Ao ser questionado porLuclio sobre os defeitos do estilo escorreito (effundi uerba) do filsofo Paprio Fabiano, Sneca,que nas cartas usava de estilo similar, repreende a leitura de seu discpulo nestes termos:

    As palavras foram escolhidas por ele, no tomadas a esmo, nem colocadas e invertidascontra sua prpria natureza como o costume deste sculo. () Agora acrescentes o fatode que no h uma lei estabelecida sobre a composio: alguns querem que ela sejapreparada a partir do horrvel, alguns de tal modo se alegram com a aspereza que desfazemde propsito o que o acaso desenrola agradavelmente e interrompem bruscamente o ritmodas clusulas a fim de no responderem ao que o leitor espera. L Ccero: a composiodele una, pausada, ela dobra o p [mtrico] e agradvel sem desonra. Mas, por outrolado, a de Asnio Polio embaraada e saltitante, e onde menos tu esperas elptica.56

    54 BARROS. Livro sobre nada, p. 69.55 CICERO. Or., 68: nonnullorum uoluntate uocibus magis quam rebus inseruiunt, os poetas, segundo a vontadede no poucos, sujeitam-se aos sons das palavras, mais que aos assuntos. Com a traduo de uox pelalocuo sonoridade das palavras, pretende-se expressar a nuance fontica do termo uox em oposioa uerbum. Cf. uox, aquilo que enunciado pela voz. LEWIS; SHORT. A Latin Dictionary, ad loc.56 SENECA. Ep. ad Luc., 100, 5.7: Electa uerba sunt, non captata, nec huius saeculi more contra naturamsuam posita et inuersa, (). Adice nunc quod de compositione non constat: quidam illam uolunt esse exhorrido comptam, quidam usque eo aspera gaudent ut etiam quae mollius casus explicuit ex industria dissipent etclausulas abrumpant ne ad expectatum respondeant. Lege Ciceronem: compositio eius una est, pedem curuatlenta et sine infamia mollis. At contra Pollionis Asinii salebrosa et exiliens et ubi minime expectes relictura.

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    Ouso transferir essa considerao de Sneca sobre a prosa de sua poca para a poesiade Lucano, respaldados pela crtica de Fronto (nullus finis nec modus).57 Se na prosa ficapatente a quebra rtmica das clusulas ou seja, aqueles finais metrificados de perodosde que Ccero tratou no De oratore e no Orator , em busca de uma expresso embaraadae saltitante (salebrosa et exiliens) e elptica (relictura), isso tambm ocorre com o planosinttico-prosdico da poesia lucaniana:

    L.4. A enumerao dos prodgios aberta com uma sobreposio de duas percursesentre os versos 156-60. A primeira sequncia de percurso se faz por adjuno (adjunctio)58

    e tem como centro o verbo detulit, atirou. Depois da afirmao de que o cu inteiro,totus...aether, impediu a passagem da tropa, segue-se a enumerao dos fenmenosatirados pelo cu num desdobramento em trs membros, dois deles no primeiro verso daseqncia, o 156, aduersasque faces e imensoque igne columnas, e um terceiro no verso 157,et trabibus mixtis auidos typhonas aquarum. Demarca o fim dessa preliminar percurso overbo que surge no verso 158 em marcado enjambement. Apresentados os fenmenos,concatena-se uma segunda srie de percurso (158-60) que enumerar a ao dessesprodgios no armamento da tropa. So cinco sequncias de frases com a elipse do sujeitoaether que oferecem uma breve e abrupta narratio, ou seja, trata-se de uma forma elementarde percurso que recebe variaes quanto posio dos verbos no incio e no fim desintagma (adiunctio, adjuno, cf.: atque oculos ingesto fulgure clausit;/ excussit cristasgaleis, 157-8; ereptaque pila liquauit, 159), e no meio dos sintagmas (coniunctio, conjuno,cf.: capulosque solutis perfudit gladiis, 159; aetherioque nocens fumauit sulpure ferrum,160). No plano logopico, essas sries de percurses so marcadas pelo fechamento lapidarda seqncia com aetherioque nocens fumauit sulpure ferrum, um verso dourado (goldenline) modo como os crticos de lngua inglesa chamam hiprbatos encadeados (B A VB A). Tais so os artifcios sinttico-prosdicos utilizados para compor a concatenao das9 expanses de sentido ligadas ao sujeito aether, cu.

    Nos dois poetas h uma repetio de esquemas rtmicos em versos consecutivos.Mas Lucano no faz corresponder essa duplicidade de ritmo unidade sinttica entreas sentenas: os versos 164-5, de sequncia SDSS, so respectivamente a ltima e a primeirafrase de perodos distintos. J em Virglio, o par DSDS que fecha o excerto (487-8) correspondea um paralelismo sinttico de duas frases negativas coordenadas sobre um enjambement.

    Em contrapartida, Lucano centra seu andamento narrativo nos hiprbatos por disjuno(transiectio, separao de termos sintticos unidos) e inverso (peruersio, subversoda ordem normal do discurso), preterindo os paralelismos nos esquemas rtmicos:

    L. 5. o tpico central da passagem, ou seja, as agresses cometidas pelo aether, consitudopor uma considervel disjuno entre o sujeito aether (153) e suas expanses verbais detulite clausit (157), excussit (158), perfudit e liquauit (159), fumauit (160). Prova do carter irregulardessa disposio sinttica o fato do escoliasta das Adnotationes se ver forado a externara ligao entre o primeiro dos objetos diretos aduersaque faces (155) ao verbo detulit, diz ele:aduersasque f. id est detulit, funestas luzes, isto , atirou [funestas luzes]. Os verbos de aosubentendem certa personificao do cu. Assim, a obscuridade se d sobre o aspectosinttico, mas tambm semntico j que se muda um sentido prprio por um alegrico.

    57 FRONTO. Epistula de oratoribus, 7.58 CCERO. Rhet. Her., IV, 38: Adiunctio est, cum verbum, quo res conprehenditur, non interponimus, sed autprimum aut postremum conlocamus. Na adjuno o verbo que une os membros no posto no meio, masno incio ou no final.

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    Apesar de a poesia ser um tipo de expresso em que, pela prpria exigncia do metro,o arranjo das palavras tende a apresentar maiores licenas,59 o testemunho de certa obscuridadepelo excesso de inverses e disjunes lembra-nos que essa liberdade no era total:

    Muito de obscuridade h na concatenao ou na seqncia discursiva, e de vrias maneiras.Por isso que a frase no deve ser to longa de modo que a ateno no possa persegui-la,nem to lenta pela disjuno que o fim dela seja adiado ilimitadamente. Pior que tudoisso referido at agora, a mistura das palavras como neste verso:

    Abrolhos sob o mar que talos aras/nomeiam60

    Mesmo havendo em Virglio essa diluio da recta uia, que, como o prprioQuintiliano lembra, prpria da poesia, parece-me que, na passagem lucaniana emanlise, o rompimento da ordem se instaura como elemento estilstico principal, conformej notara Fantham muitos dos efeitos de Lucano so alcanados atravs do hiprbato.61

    Alm da ordem antinatural pelas inverses, o efeito de quebra de ritmo e de expectativatambm est presente. Conforme se nota na mixtura uerborum, tambm conhecida porsnquise, que tem lugar nos versos 162 e 164:

    uixque reuolsa solo maiori pondere pressumsigniferi mersere caput rorantia fletuusque ad Thessaliam Romana et publica signa

    L.6. A colocao semanticamente inusitada de signa como sujeito do verbo mersere,cujo sentido primeiro mergulhar, devia gerar mesmo a um falante latino algumaperplexidade, considerando o forte hiprbato do perodo. Depois do que ocorrera comaether (cf. L.4 e L.5), tem-se novamente um elemento inanimado, aqui morfologicamentemarcado pelo gnero neutro, usado alegoricamente. Se se isolar o verso 163, constata-se, primeira vista, uma ambigidade, j que signiferi, porta-estandarte, est em condies,quanto ordem, morfologia e semntica, de desempenhar papel de sujeito do verbomersere. Mas o determinante reuolsa, do verso anterior, continua esperando o seudeteminado, do mesmo modo que rorantia ainda no verso 163. O olhar do leitor (ou oouvido da audincia), ento, levado ao verso seguinte, buscando a chave para aquelesneutros plurais e ainda encontra Romana e publica, at deparar-se com o esperado signa.No entanto, esse achado ainda no resolve o problema, pois h que se reformular a sintaxede signiferi e de mersere, aquele como genitivo de caput, este, adaptando-se o sentido demergulhar para baixar, inclinar para baixo, como verbo ligado a reuolsa solo... rorantia

    59 QUINTILIANUS. Inst. Or., X, 28-29: genus ostentationi comparatum, () patrocinio quoque aliquoiuuari quod alligata ad certam pedum necessitatem non semper uti propriis possit, sed depulsa recta uianecessario ad eloquendi quaedam deuerticula confugiat, nec mutare quedam modo uerba sed extendere, corripere,conuertere, diuidere cogatur. Esse gnero concebido para a ostentao da prpria lngua auxiliadotambm por um certo favorecimento, pois a poesia, amarrada pela necessidade dos ps mtricos, nemsempre pode usar as palavras no seu sentido prprio, mas, expulsa do caminho reto, por necessidade, elafoge por torneios discursivos, sendo forada no s a mudar algumas palavras, mas a estend-las,abrevi-las, desorden-las e dividi-las.60 QUINTILIANUS. Inst. Or., VIII, 14: Plus tamen est obscuritatis in contextu et continuatione sermonis,et plures modi. Quare nec sit tam longus ut eum prosequi non possit intentio, nec transiectione tam tardus utultra modum finis eius differatur. Quibus adhuc peior est mixtura uerborum, qualis in illo uersu: saxa uocantItali mediis quae in fluctibus aras [Vir., Aen., I, 109]. Tomo a laboriosa traduo de Odorico Mendes aoverso virgilino. VIRGLIO. Eneida brasileira, p. 27.61 FANTHAM. Introduction, p. 37.

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    fletu62 ...Romana et publica signa. A complexidade desse perodo deixa perplexo at mesmoo escoliasta que hesita sobre qual seria o sentido e a ordem correta da passagem:

    Publica signa falta uenerunt. Ele, ento, diz que as esttuas dos deuses choraram[Phar., I, 556] e a construo ocorreu como a de Virglio que diz triste chora omarfim dentro dos templos,/transpira o bronze [Gergicas, I, 480]. Contudo, podesimplesmente no faltar nada aqui, sendo a ordem: nec non innumero coopertaexamine signa uixque reuulsa solo maiori pondere pressum signiferi mersere caput. Esegue a repetio: signa Romana et publica roranti fletu usque ad Thessaliam.63

    O escoliasta chega a conjeturar uma interpretao em que houvesse um verbouenire elptico, mas, ao ler melhor, afirma que talvez e essa modalizao do verbopotest no faltasse nada. Note-se que diante da dificuldade de explicar o fato de asinsgnias chorarem, o escoliasta recorre imagem das esttuas dos deuses vertendo lgrimas,o que fornece uma certa chave alusiva com os pressgios de Virglio tratado aqui.

    Assim, em Lucano, o sobrenatural dos pressgios impe um desarranjo na ordemda frase e, principalmente, no andamento rtmico da narrativa, o que resulta num fiologopico contorcido e disrtmico. A meu ver, tal disritmia, ou melhor, esse ritmo outro,rompe os critrios do ordo lucidus, ordem clara, que Horcio preceitua poesia, segundoos seus padres estticos, a que hoje chamamos clssicos. Note-se, no fragmentohoraciano abaixo transcrito, que o plano de expresso, ritmado por um harmonioso jogode membros (isocolos), perfomatiza de modo exmio (egregie) a ideia de ordo lucidus edo virtuoso engendramento da construo (callida...iunctura).

    Tome o escritor um tema igual s suas forase estude, por um tempo, o que podem seus ombros,o que se negam a levar. Quem escolherassunto condizente quilo que capaz,nem ordem clara (lucidus ordo), nem fluncia (facundia) vai faltar-lhe.Da ordem a virtude e, se no minto, o charmeser dizer agora o que pra j ser dito,adiar e omitir o demais pra depois,que o autor do carme em germe ame isto, exclua aquilo.Tambm sutil e cauto em semear palavras,algo exmio dir, se palavra comumem arranjo engenhoso ficar como nova. 64

    62 Talvez, toda essa ordenao anmala venha a performatizar a inclinao da cabea do porta-estandarte.Assinale-se que, alm de toda essa disjuno, h inverso da posio de predicado e verbo em reuolsasolo (162); mersere caput e rorantia fletu (163)63 ENDT. Adnotationes super Lucanum, p. 256: PUBLICA SIGNA deest uenerunt. Dicit autem deorumsimulacra fleuisse, sic factum ut Virgilius ait maestum inlacrimat templis ebur aeraque sudant. Potest autemet hic nihil deesse, ut sit ordo: nec non [et] innumero cooperta examine signa uixque reuulsa solo maioripondere pressum signiferi mersere caput. Et sequitur repetitio: signa Romana et publica rorantia fletu usque adThessaliam. Convm notar que o verso 161, que, com Housman, avaliamos como esprio, consideradogenuno pelo escoliasta, por isso ele menciona a repetitio repetio da palavra signa na mesma sedes metricaee em versos quase contguos. Oportuno dizer que mesmo com a considerao do 161, ainda assim, otexto mantm sua obscuridade.64 HORATIUS. Ars poetica, 38-48: sumite materiam uestris, qui scribitis, aequam / uiribus et uersate diu,quid ferre recusent, / quid ualeant umeri. cui lecta potenter erit res, / nec facundia deseret hunc nec lucidusordo. / ordinis haec uirtus erit et uenus, aut ego fallor, / ut iam nunc dicat iam nunc debentia dici, / pleraque

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    Prado chama a ateno para uma possvel acepo duplamente sinttica e rtmicada expresso horaciana: muito provvel que se possa entender o lucidus ordo como umaespcie de metfora para designar o ritmo bem orquestrado dos poemas.65 Sua interpretaodessa passagem, atenta para o carter indissocivel entre progresso sinttica, escolhavocabular e metrificao: o ordenamento ter, ento, os atributos de fora (uirtus) e graa(uenus), conseguidos pelo arranjo meticuloso dos elementos, distribudos de acordo comas exigncias do ritmo.66 Assim sendo, a simtrica ordenao do fio narrativo e suasimplicaes mtricas e melopicas conforme procurei demonstrar pela anlise de Virglio(cf. supra V.5, V. 7, V. 8) , e so rejeitadas na passagem de Lucano. No lugar delas soutilizadas figuras de pensamento e de palavra instauradoras de truncamento no nvelsemntico e da desordem no nvel da frase.

    Como j havia notado Sulpitius Verulanus em sua comparao entre Lucano e Virglioao mencionar o fato de este ltimo ser clarior, mais claro,67 pode-se dizer que, naquele,ganha espao a obscuridade (obscurum) em oposio clareza (dilucidum) deste. Ccero bemdistingue essas formas de expresso no captulo 19 de seu De Partitione oratoria:

    Obtm-se clareza usando as palavras dispostas em sentido prprio e em perodos concludos,em oraes ou intercaladas, ou com sintagmas menores. A obscuridade obtida poralongamento ou conciso da orao, pela ambigidade ou pelo desvio e modificao dosentido prprio das palavras.68

    Embora o Arpinate esteja falando da prosa oratria, talvez seja possvel, mutatismutandis, entrever nos perodos concludos (circumscriptione conclusa) e nas oraes ouintercaladas, ou em sintagmas menores (aut intermissione aut concisione uerborum), a clarezaque provm do paralelismo dos membros sinttico-prosdicos que se pode verificar emVirglio. Em contrapartida, a contractio provinda do uso da percurso e da mixtura uerborum,bem como a mudana do sentido prprio das palavras (immutatio uerborum), expedientescentrais nos pressgios lucanianos, manifestam sua eleio do obscurum.

    differat et praesens in tempus omittat,/ hoc amet, hoc spernat promissi carminis auctor. / in uerbis etiam tenuiscautusque serendis / dixeris egregie, notum si callida uerbum / reddiderit iunctura nouum. Embora estejamosusando a edio de Klingner no adotamos a conjetura do fillogo alemo, que antepe o verso 46 ao45, pois, como afirma Fernandes, a alterao proposta, ainda que seja lgica, carece de apoio dosmanuscritos, e este fato parece-nos extremamente relevante. Cf. HORCIO. Arte potica, p. 59.65PRADO. Canto e encanto..., p. 92-3. Essa ideia rtmica de lucidus ordo foi interpretada por Prado luzdas ideias de Benveniste para quem rithmos a ordem no movimento, todo o processo do arranjoharmonioso das atitudes corporais combinado com um metro. Ainda, PRADO. Canto e encanto..., p. 89,grifo meu). Embora aceitando, como a hermenutica horaciana o faz; cf. a opinio de Fernandes emHORCIO. Arte potica, p. 56, que ordo em Horcio esteja se referindo dispositio, ou seja, ao ordenamentodos assuntos (res) em um determinado discurso, Prado engenhosamente, a partir de uma aberturapermitida pelo original horaciano, redimensiona por raciocnio metonmico essa disposio dosassuntos no discurso para o ordenamento das palavras nos versos dos poemas.66 PRADO. Canto e encanto..., p. 92.67 LUCANI. Pharsalia cum uarietate lectionum, p. XX: Illum [Lucanum] grandi tuba uti et horrisona dixeris:hunc [Virgilium] fere pari, sed clariori. Dizer-se-ia que Lucano serviu-se de uma tuba grandiosa ehorrssona; Virglio tem um estilo quase igual, porm, mais claro.68 CICERO. Part. Or., 19: Dilucidum fit usitatis uerbis propriis, dispositis aut circumscriptione conclusa autintermissione aut concisione uerborum. Obscurum autem aut longitudine aut contractione orationis autambiguitate aut inflexione atque immutatione uerborum. A interpretao e traduo deste excerto contoucom a contribuio de Joo Angelo Oliva Neto.

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    O prprio Ccero ope as figuras que servem para evidenciar (ad inlustrandum) quelasem que, pelo recurso da breuitas, se entende mais do que se diz (plus ad intellegendum quamdixeris):

    Pois tambm muito comovem a delonga (commoratio) em um nico assunto, a explanaoclara (inlustris explanatio) e a subjeo (subjectio, apresentao detalhada) dos assuntos,como se ocorressem quase na sua frente. Essas figuras tem muito valor na exposio de umassunto tanto para evidenciar (ad inlustrandum) aquilo que se expe quanto paraamplific-lo, de modo que, para os ouvintes daquilo que engrandecemos, o discursopoder ser to eficiente, quanto parece s-lo. A isso geralmente so contrrias a percurso(percursio), a nfase (significatio) quando se entende mais do que se disse , a brevidade(breuitas) distintamente concisa e a atenuao.69

    Ora, a enumerao dos prodgios de Virglio serve evidncia, enquanto as deLucano brevidade principalmente atravs da percurso o que denota o confronto,se no de duas vertentes poticas, pelo menos de dois modos de expresso. Naturalmente,nos 7386 versos de sua Farslia, Lucano se serve de variados recursos retricos, inclusiveda evidncia, mas inevitvel entrever desde o exrdio do poema to criticado porFronto um modo de expresso que se opunha ao princpio ciceroniano do dilucidum.

    Como procurei demonstrar, o distanciamento do estilo de Lucano em relao aoseu ilustre predecessor bastante enftico. Se Virglio mais claro, como j tinhapercebido Sulpitius Verulanus, comentador renascentista da Farslia, essa nuancedetermina uma diferena substantiva no nvel sinttico-prosdico. Fica patente queLucano prope um diferente caminho potico pelo seu particular desarranjo rtmico naconcatenao dos sintagmas e imagens. Sobressai-se nele uma singular dana dointelecto entre as palavras, o que o leva a alcanar um trabalho logopeico singularentre os poetas latinos no qual o obscurum surge como pedra de toque.

    AAAAA B S T R A C TB S T R A C TB S T R A C TB S T R A C TB S T R A C TThe rhythmical analysis of a poet may provide a powerful viewof his poetic gears often hidden by the content on which poemstake shape. With the purpose of studying Lucans poeticfeatures, this article presents a comparison between bothLucanean and Virgilian omens, trying to describe the differentmodulations and shaping of their syntactic-prosodic patterns.The excerpts under analysis are Pharsalia (VII, 151-67) andVirgils Georgica (I, 474-88).

    KKKKK E Y W O R D SE Y W O R D SE Y W O R D SE Y W O R D SE Y W O R D SLucan, Virgil, Poetic Style

    69 CICERO. De or., III, 202: nam et commoratio una in re permultum mouet et inlustris explanatio rerumque,quasi gerantur, sub aspectum paene subiectio; quae et in exponenda re plurimum ualent et ad inlustrandum id,quod exponitur, et ad amplificandum; ut eis, qui audient, illud, quod augebimus, quantum efficere oratiopoterit, tantum esse uideatur; et huic contraria saepe percursio est et plus ad intellegendum, quam dixeris,significatio et distincte concisa breuitas.

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