Alexandre Dumas - Memórias de um médico 1 - José Bálsamo 3

Embed Size (px)

Citation preview

  • 7/30/2019 Alexandre Dumas - Memrias de um mdico 1 - Jos Blsamo 3

    1/200

    http://groups-beta.google.com/group/digitalsource

  • 7/30/2019 Alexandre Dumas - Memrias de um mdico 1 - Jos Blsamo 3

    2/200

    Memrias de um mdico:Jos Blsamo

    Volume III

    Alexandre Dumas

  • 7/30/2019 Alexandre Dumas - Memrias de um mdico 1 - Jos Blsamo 3

    3/200

    I

    O REGRESSO DE SAINT-DENIS

    Gilberto, afastando-se de Filipe da maneira que contamos, tinha-se

    outra vez envolvido na multido.Desta vez, porm, no era com o corao palpitando-lhe deimpacincia e alegria que ele se precipitava naquela multido ruidosa,mas sim com a alma ulcerada por uma dor que a recepo afvel de Filipee a oferta obsequiosa dos seus servios no tinham podido mitigar.

    Andreia nem pela idia lhe passava que tivesse sido cruel para comGilberto. A bela e plcida donzela ignorava inteiramente que pudessehaver, entre ela e o filho da sua ama de leite, algum ponto de contactoquer na dor quer na alegria. Passava superior s esferas inferiores,lanando sobre elas a sua sombra ou a sua luz, segundo ela mesmaestava risonha ou triste. Desta vez a sombra do seu desdm tinha geladoGilberto; e como ela s tinha seguido o impulso da sua prpria natureza,ignorava absolutamente que havia sido desdenhosa.

    Gilberto, porm, como um atleta desarmado, tinham-no ferido nocorao, tanto o olhar de desprezo como as palavras soberbas de Andreia,e Gilberto no possua ainda filosofia suficiente para achar consolao aodesespero que dele se apoderara.

    Por isso, logo que se meteu por entre a multido, no se importoumais nem com os cavalos, nem com os homens a p. Reunindo todas assuas foras, e com risco de se perder ou de ser esmagado por algumacarruagem, precipitou-se, como o javali que vai ferido, por entre a

    multido e abriu caminho.Depois que atravessou as massas mais compactas de povo, omancebo respirou ento mais livremente, e lanando os olhos em roda desi, viu a verdura, a solido e a gua.

    Sem saber aonde se dirigia, tinha corrido at ao Sena, e achava-sequase em frente da ilha de Saint-Denis. Extenuado ento, no pela fadigado corpo, mas pelas agonias do esprito, deixou-se cair sobre a erva, eapertando a cabea entre as mos, comeou a soltar rugidos frenticos,como se a linguagem do leo exprimisse melhor a sua dor do que os gritose palavras do homem. No haviam porventura perecido de um s golpe,no s aquele esprito vago e indeciso, que at ali tinha deixado cair

    alguns raios furtivos sobre os seus desejos, desejos que ele mesmo se noatrevia a confessar a si prprio, mas tambm todas as suas esperanas? Aqualquer grau da escala social, que fora de gnio, de cincia ou deestudo chegasse, Gilberto, aos olhos de Andreia, ficaria sempre sendoGilberto, isto , uma coisa, ou um homem, segundo ela mesma o dissera,coisa de que seu pai tinha feito mal em se ocupar, e que nem valia a penade se olhar para ela.

    Por alguns momentos acreditou que vendo-o ela em Paris, sabendoque tinha vindo a p, conhecendo a resoluo que havia tomado de lutarcom a sua obscuridade at a suplantar, Andreia aplaudiria aquele seuesforo. E por fim, faltou ao generoso mancebo no s o macte animo,mas ainda de tanta fadiga e to grande resoluo; s tinha tirado emresultado a desdenhosa indiferena que Andreia sempre havia sentido por

  • 7/30/2019 Alexandre Dumas - Memrias de um mdico 1 - Jos Blsamo 3

    4/200

    Gilberto.E ainda mais do que essa indiferena, no ficara ela quase irritada

    quando soube que Gilberto tivera a audcia de olhar para o seu solfejo? SeGilberto lhe tivesse tocado, s lhe ficaria servindo para o mandar queimar.

    Nos coraes francos e sensveis, um engano, uma iluso, no so

    mais do que um golpe, sob o qual verga o amor para de novo se erguermais forte e perseverante. Manifestam a sua dor por queixas e lgrimas;tm a resignao do cordeiro quando imolado. Mas h mais: o amordestes mrtires medra com a prpria dor, que parece deveria pr-lhetermo; dizem a si mesmos que aquela sua resignao h-de ter umprmio, e essa recompensa o fim a que se dirigem, quer o caminho sejafcil, quer escabroso; se o caminho spero, chegam mais tarde, anica diferena, mas chegam sempre l.

    Outro tanto no acontece com os coraes secos, com ostemperamentos voluntrios, com as organizaes fortes. Estes coraesirritam-se com o verem correr o seu sangue, e cresce-lhes ento por talforma a energia, que mais parecem rancorosos que amantes. Nem porisso merecem censura; esto neles to prximos o amor e o dio que insensvel a passagem de um para o outro sentimento.

    Portanto, saberia Gilberto, quando assim se torcia, aniquilado pelador, saberia porventura se amava ou odiava Andreia? No, sofria, era s oque sentia. Contudo, como no era dotado de uma grande pacincia, saiudo abatimento em que se achava, decidido a tomar alguma soluoenrgica.

    - No me ama - pensou ele - verdade; mas eu tambm no podia,nem devia pensar que ela me pudesse amar. S o que tinha direito a

    exigir da sua parte era aquele interesse que inspiram os desgraados quetm a energia de lutar com a sorte. No compreendeu ela o que por seuirmo foi compreendido. Ele, disse-me: Quem sabe se algum dia virs aser um Colbert, um Vauban! Se eu me tornasse como algum deles, far-me-ia justia, dar-me-ia sua irm em recompensa da glria adquirida,como ma teria dado em troca da minha aristocracia nativa, se euhouvesse nascido seu igual. Ela, porm, oh! Estou bem certo disso...Colbert, Vauban, aos seus olhos ficariam sempre sendo Gilberto, porque oque ela despreza em mim, aquilo que nada pode dourar, nada podeapagar, nada pode encobrir... o meu baixo nascimento. Como se, nocaso de eu alcanar o meu fim, no houvesse subido mais para chegar

    junto dela, do que se tivesse nascido seu igual. Oh! Criatura louca einsensata! Oh! Mulher, mulher! Isto , imperfeio.

    Fiem-se naquele meigo olhar, naquele rosto majestoso, naquelesorriso inteligente, naquele modo de rainha: eis a a senhora de Taverney,isto , uma mulher digna pela sua beleza de governar o mundo...Enganam-se, uma provinciana presumida, vaidosa, cheia de seusprejuzos aristocrticos. Todos esses rapazes de cabea oca, de espritovo, que tiveram todos os recursos para poderem aprender tudo e quenada sabem, considera-os ela seus iguais; esses sim, so coisas, sohomens, que merecem a ateno... Gilberto, esse um co, ainda menosdo que um co: se bem me lembro, perguntou notcias de Mahon, porGilberto nem sequer teria perguntado! Ah! Ignora ela portanto que eu souto forte como eles; que, quando trajar vestes iguais s suas, parecerei

  • 7/30/2019 Alexandre Dumas - Memrias de um mdico 1 - Jos Blsamo 3

    5/200

    to formoso como eles parecem; ignora que tenho ainda mais do que eles,uma vontade inflexvel, e que se eu quiser...

    Um sorriso terrvel contraiu os lbios de Gilberto, que deixou a frasepor concluir.

    Depois pouco a pouco, e medida que se lhe franziam as

    sobrancelhas, deixou cair a cabea sobre o peito.Que se passaria ento naquela alma obscura? Sob que terrvel idiase curvaria aquela fronte, j plida pelas viglias, contrada pelospensamentos? Quem poder diz-lo?

    Pensaria, porventura, no barqueiro que ia descendo o rio na suabarca, e cantarolando a cano de Henrique IV? Pensaria na lavadeirabuliosa, que voltava de Saint-Denis depois de ter visto a festa, e que,afastando-se do caminho para passar longe dele, tomaria por um ladroaquele mancebo ocioso deitado na relva no meio das cordas carregadasde roupa? Quem sabe?

    Depois de meia hora de profunda meditao, Gilberto levantou-sefrio e resoluto; desceu at ao rio, bebeu um longo trago de gua, olhou emroda de si, e viu sua esquerda as ondas do povo, que voltava de Saint-Denis.

    Por entre aquela multido sobressaam as primeiras carruagens, quecaminhavam a passo impelidas pelas fileiras que seguiam pela estrada deSaint-Ouen.

    A delfina quis que a sua entrada fosse uma festa de famlia. Afamlia, portanto, aproveitou o privilgio: concorreu por tal forma aoespectculo real que se viu bom nmero de parisienses subir s almofadasdos lacaios, ou pendurar-se s correias dos coches sem que ningum os

    incomodasse por isso.Gilberto logo reconheceu a carruagem de Andreia. Filipe galopava,ou para melhor dizer, sopeava o cavalo portinhola da carruagem.

    - Bom - disse Gilberto; - necessrio que eu saiba para onde ela vai,e para isso, necessrio que a siga.

    E seguiu-a.A delfina devia ir jantar Muette, familiarmente, com o rei, o delfim,

    o conde de Provena, o conde de Artois; e, fora diz-lo, Lus XVesquecera as convenincias sociais ao ponto que vamos contar: em Saint-Denis, ao convidar a delfina, havia-lhe dado a lista dos convidados,apresentando-lhe ao mesmo tempo um lpis e pedindo-lhe que riscasse os

    nomes daqueles que lhe no agradassem.Chegando ao nome da senhora du Barry, que era o ltimo na lista, a

    delfina sentiu os lbios desmaiarem e tremerem-lhe; mas, contida pelasinstrues que recebera da imperatriz sua me, chamou em seu auxliotodas as suas foras, e, com um engraado sorriso, entregou a lista e olpis a el-rei, dizendo-lhe: Que bem feliz se julgava por ser toprontamente admitida na intimidade de toda a sua famlia.

    Gilberto ignorava tudo isso, e foi s na Muette que ele conheceu ascarruagens da senhora du Barry, e que viu Zamora, montado no seugrande cavalo branco. Felizmente, j havia pouca claridade, Gilbertoatirou consigo para onde o bosque era mais fechado, deitou-se no cho eesperou.

    El-rei fez cear sua nora com a sua amante, e mostrou-se de uma

  • 7/30/2019 Alexandre Dumas - Memrias de um mdico 1 - Jos Blsamo 3

    6/200

    jovialidade encantadora, sobretudo quando viu a senhora delfina receber asenhora du Barry melhor ainda do que o tinha feito em Compienha.

    O delfim, porm, carrancudo e preocupado, pretextou uma grandedor de cabea e retirou-se antes de se sentarem mesa.

    O banquete durou at s onze horas.

    Contudo a gente do seu squito, e foroso foi orgulhosa Andreiaconfessar ser desse nmero, ceou nos pavilhes, ao som da msica queel-rei lhe enviou. E, alm destes, como os pavilhes eram muito pequenos,cinqenta senhoras comeram em mesas colocadas sobre a relva, servidaspor cinqenta criados com a libr de el-rei.

    Gilberto, conservando-se escondido entre os arbustos, aonde comovimos ele se ocultara, no perdeu nada desta vista. Tirou da algibeira umpedao de po, que tinha comprado em Clichy-la-Garenne, ceou como osoutros, sem perder de vista todas as pessoas que se retiravam.

    Acabada a ceia, apareceu a delfina janela para se despedir dosseus convidados. El-rei estava ao seu lado; a senhora du Barry, comaquele tacto fino que os seus prprios inimigos admiravam, conservou-seno fundo do quarto de modo a no ser vista de fora.

    Ento foram passando cada um por sua vez junto da janela, paracortejarem el-rei e Sua Alteza Real.

    A senhora delfina conhecia j muitas pessoas das que a tinhamacompanhado. El-rei nomeava-lhe aqueles que ainda no conhecia. De vezem quando os seus lbios soltavam uma palavra graciosa, ou um dito atempo, que faziam a felicidade daqueles a quem eram dirigidos.

    Gilberto via de longe toda aquela baixeza, e dizia consigo:- Eu sou mais que toda essa gente, pois no faria o que eles fazem,

    nem a troco de todo o ouro que h no mundo.Chegou a vez do baro de Taverney e de sua filha.Gilberto, que estivera at ali deitado, levantou-se sobre um joelho.- Sr. Filipe - disse a delfina - dispenso-o a fim de poder acompanhar

    seu pai e sua irm a Paris.Gilberto ouviu aquelas palavras, que, no silncio da noite e pela

    imobilidade dos que escutavam e olhavam, lhe chegaram aos ouvidos.A senhora delfina prosseguiu:- Sr. Baro de Taverney, no posso agora t-lo por meu hspede,

    parta portanto para Paris com sua filha at que eu tenha estabelecido aminha casa em Versalhes; e a menina no se esquea de mim.

    O baro passou para diante com seu filho e sua filha.Depois dele seguiram-se muitos outros, a quem a senhora delfina

    dirigia frases idnticas; mas com esses pouco se importava Gilberto.Saiu de onde estava metido, e seguiu o baro no meio dos gritos

    confusos de centenares de lacaios que corriam atrs de seus amos, deoutros tantos cocheiros respondendo a essas vozes, e outras tantascarruagens soando no terreno como se fossem troves.

    Como o senhor de Taverney tinha uma carruagem do pao,esperava-o esta separada das outras. Meteu-se nela com Andreia e Filipe,e fechou-se depois sobre eles a portinhola.

    - rapaz - bradou Filipe ao lacaio que fechara a portinhola - vai naalmofada com o cocheiro.

    - Para qu? - perguntou o baro.

  • 7/30/2019 Alexandre Dumas - Memrias de um mdico 1 - Jos Blsamo 3

    7/200

    - Porque este pobre diabo tem andado a p desde pela manh edeve estar cansado - disse Filipe.

    O baro disse algumas palavras, que Gilberto no pde ouvir. Olacaio sentou-se na almofada do cocheiro.

    Gilberto chegou-se ento.

    Quando a carruagem ia partir, viram que tinha um dos tirantes solto.O cocheiro desceu da almofada, e ficou a carruagem ainda parada.- j tarde bastante - disse o baro.- Estou horrivelmente cansada - disse Andreia; - acharemos ao

    menos onde passar a noite?- Assim o espero - disse Filipe. - Mandei La Brie e Nicola

    directamente de Suessio a Paris. Dei-lhes uma carta para um dos meusamigos, encarregando-o de me reservar uma pequena casa aondemoravam o ano passado a irm e a me dele. No uma habitao deluxo, mas cmoda. No deseja aparecer, quer apenas esperar.

    - Ora adeus! - disse o baro - isso sempre h-de valer bemTaverney.

    - Infelizmente, sim, meu pai - disse Filipe sorrindomelancolicamente.

    - Terei l rvores? - perguntou Andreia.- Sim, e bem frondosas. Mas, provavelmente, pouco as poders

    gozar, porque apenas se tiver verificado o casamento, sers apresentada.- Vamos, estamos gozando de um belo sonho; Deus permita que no

    acordemos cedo. Filipe, disseste ao cocheiro onde nos devia levar?Gilberto escutou com ansiedade.- Sim, meu pai - disse Filipe.

    Gilberto, que tudo tinha ouvido, nutriu por alguns instantes aesperana de ouvir a morada.- No importa - disse ele - segui-los-ei. Daqui a Paris apenas uma

    lgua.O tirante estava j preso, o cocheiro tornou a subir para a almofada

    e a carruagem continuou no seu caminho.Mas, quando no h tumulto que os obrigue a irem devagar, os

    cavalos da casa do rei vo sempre muito depressa, to depressa quetrouxeram memria do pobre Gilberto a estrada de Chausse, odesmaio, e a fraqueza que teve.

    Gilberto fez um esforo, agarrou-se ao estribo da tbua, abandonado

    pelo lacaio fatigado, e saltando para essa tbua sentou-se.Mas quase ao mesmo tempo lembrou-se de que ia na traseira da

    carruagem de Andreia, isto , no lugar de um lacaio.- Pois bem! No! - murmurou o inflexvel mancebo - no se dir que

    no lutei at ao ltimo momento; as minhas pernas esto cansadas, masno o esto os meus braos.

    E agarrando com as mos ambas o estribo, em que pouco antesdescansava os ps, segurou-se suspenso em to difcil posio, por meiodo vigor dos seus pulsos, e apesar dos abalos deixou-se levar, preferindoto grande incmodo a capitular com a sua conscincia.

    - Hei-de saber a sua morada - murmurou ele - hei-de sab-la. maisuma noite que hei-de passar mal, mas amanh descansarei sobre a minhacadeira, copiando msica. Tenho ainda dinheiro, e portanto posso dormir

  • 7/30/2019 Alexandre Dumas - Memrias de um mdico 1 - Jos Blsamo 3

    8/200

    duas horas, se quiser.Depois lembrava-se que Paris era grande, e que talvez se perdesse,

    ele que no conhecia a cidade, quando deixasse o baro e seus filhos nacasa que Filipe lhes escolhera.

    Felizmente era perto da meia-noite e o dia comeava a despontar s

    trs horas e meia.Ia reflectindo nestas coisas todas quando atravessaram uma praa,no meio da qual Gilberto viu uma esttua eqestre.

    - Dir-se-a que a Praa das Vitrias - pensou ele alegrando-se eadmirando-se ao mesmo tempo.

    A carruagem voltou. Andreia deitou a cabea fora do postigo.Filipe disse:- a esttua do defunto rei. Estamos quase chegados.Caminharam por uma descida muito ngreme; Gilberto esteve a

    ponto de ser esmagado pelas rodas.- Estamos chegados - disse Filipe.Gilberto correu para o outro lado da rua, e escondeu-se por detrs

    de um marco de pedra.Filipe foi o primeiro que se apeou, puxou pela campainha, e

    voltando-se recebeu Andreia nos braos.O baro foi o ltimo a apear-se.- Ento! - disse ele - estes marotos vo-nos deixar passar a noite

    aqui?Neste momento ouviram-se as vozes de La Brie e de Nicola, e abriu-

    se uma porta.Os trs viajantes entraram para um ptio escuro cuja porta se

    fechou aps eles.A carruagem e os lacaios partiram; voltavam s cavalarias de el-rei.A casa, para a qual os trs viajantes acabavam de entrar, no

    oferecia coisa alguma de notvel; mas quando a carruagem passou, a luzdas lanternas alumiou a frente, e Gilberto pde ler: Palcio de

    Armenonville.Faltava-lhe saber o nome da rua.Dirigiu-se para a extremidade mais prxima, para o mesmo lado por

    onde havia desaparecido a carruagem, e com grande admirao, aochegar a esse ponto, viu a fonte onde j tinha ido beber.

    Andou dez passos numa rua paralela que deixava, e conheceu a

    loja do padeiro que lhe vendia o po.Duvidava ainda, e voltou at esquina. Ao claro de um candeeiro

    pde ler, sobre um fundo de pedra branca, as duas palavras que trs diasantes havia lido, quando vinha de herborizar com Rousseau nos bosquesde Meudon:

    - Rua Platrire!Assim ficava Andreia distante dele apenas cem passos menos

    afastada do que em Taverney.Ento dirigiu-se para a sua porta, esperando que o cordel por meio

    do qual levantava a aldraba interior no estivesse recolhido para dentro.Gilberto estava nos seus dias de felicidade. Havia de fora alguns fios

    de cordel, por meio dos quais ele puxou o resto; a porta abriu-se.O mancebo achou s apalpadelas a escada, subiu mansamente, sem

  • 7/30/2019 Alexandre Dumas - Memrias de um mdico 1 - Jos Blsamo 3

    9/200

    fazer rumor, e acabou por tocar com a ponta dos dedos no cadeado da suaporta, no qual Rousseau, por bondade, havia deixado a chave.

    Ao cabo de dez minutos, havia a fadiga vencido a preocupao, eGilberto adormecia impaciente por que chegasse o dia seguinte.

    II

    O PAVILHO

    Gilberto, tendo-se recolhido tarde, deitou-se apressadamente eadormeceu logo, esquecendo-se por isso de tapar a fresta com o pedaode pano que lhe servia para interceptar os raios do sol.

    s cinco horas da manh vieram esses raios acord-lo, e ele ergueu-se inquieto por haver dormido tanto.

    Gilberto, homem dos campos, sabia perfeitamente conhecer ashoras pela altura do sol, e pelo calor mais ou menos ardente dos seusraios. Foi ver as horas que eram.

    A palidez da luz, que apenas alumiava o cume das rvores,sossegou-o; em vez de se haver levantado tarde, havia-se erguido muitocedo.

    Gilberto lavou-se e vestiu-se ao p da fresta, pensando nosacontecimentos da vspera, e expondo com delcia a sua fronte ardente epesada fresca brisa da manh, lembrou-se que Andreia morava numarua prxima, junto do palcio de Armenonville, e procurou adivinhar emqual de todas essas casas ela morava.

    A vista das rvores que Gilberto dominava fez-lhe lembrar uma das

    palavras que na vspera ouvira menina de Taverney.Haver rvores? tinha perguntado Andreia a Filipe.- Por que no teria escolhido a casa com jardim que estava

    desabitada? - pensava Gilberto consigo.Esta reflexo levou-o naturalmente a olhar para a casa que via

    diante de si.Por uma estranha coincidncia com o seu pensamento, um rumor e

    um movimento desusado lhe atraram a ateno para aquele lado. Umadas janelas dessa casa, que parecia desde muito tempo abandonada,tremia sob os esforos de mo fraca ou mal jeitosa; o caixilho cedia emparte, mas, empenado pela umidade ou pela chuva, dificultava muito o

    poder abrir-se.Enfim, um abalo mais violento fez ranger a madeira, e as duas

    vidraas, fortemente impelidas, deixaram ver uma menina ainda vermelhapelo esforo que acabava de fazer, e sacudindo o p que nas mos lheficara.

    Gilberto soltou um grito de admirao e voltou-se para trs. Essamenina, que ainda mal acordada vinha tomar o fresco da manh, eraNicola.

    No havia a menor dvida. Na vspera havia Filipe anunciado a seupai e a sua irm que La Brie e Nicola lhes preparavam a habitao. Eraportanto essa a casa preparada. Essa casa da Rua Coq-Hron, para a qualhaviam entrado os viajantes, tinha os jardins contguos parte de trs daRua Platrire.

  • 7/30/2019 Alexandre Dumas - Memrias de um mdico 1 - Jos Blsamo 3

    10/200

    O movimento de Gilberto foi to acentuado que se Nicola, apesar deafastada como estava, no estivesse to entretida nessa ociosacontemplao, que uma felicidade no momento de acordar, teria visto onosso filsofo na ocasio em que ele se retirava da fresta.

    Mas Gilberto havia-se retirado com muita rapidez, porque decerto

    no lhe convinha ser descoberto por Nicola na fresta de um telhado; talvezque se estivesse habitando um primeiro andar e que por detrs dele, pelajanela aberta, se pudessem ver ricas tapearias e mveis sumptuosos, noteria Gilberto receado tanto mostrar-se; mas a mansarda do quinto andarclassificava-o muito desvantajosamente nas inferioridades sociais, paraque ele no tivesse grande empenho em se ocultar. Demais, neste mundoh sempre uma grande vantagem em ver sem ser visto.

    E depois, se Andreia sabia que ele estava ali, no seria isso bastantepara fazer com que ela mudasse de casa, ou pelo menos com que nuncapasseasse no jardim?

    Ah! O orgulho de Gilberto ainda aos seus prprios olhos oengrandecia. Que importava Gilberto a Andreia, e em que poderia Andreiadar um passo para se afastar ou aproximar de Gilberto? No era ela dessaraa de mulheres que saem de um banho diante de um lacaio ou de umaldeo, porque um aldeo ou um lacaio no so homens!

    Mas Nicola no era dessa raa, e era mister evitar ser visto porNicola.

    Era principalmente este o motivo por que Gilberto se havia retiradoto precipitadamente.

    Mas Gilberto no se podia ter retirado para ficar afastado da janela;aproximou-se portanto vagarosamente, e espreitou pelo canto da fresta.

    Uma segunda janela, no andar trreo, exactamente por baixo daprimeira, acabava de abrir-se, e apareceu nela uma pessoa vestida debranco: era Andreia com o seu roupo da manh e que procurava os seuspantufos, que acabavam de lhe fugir dos ps ainda adormecidos e que sehaviam sumido debaixo de uma cadeira.

    Em vo jurava Gilberto, cada vez que via Andreia, fortificar-se pormeio de dio contra ela em vez de se deixar levar pelo amor, o mesmoefeito era reproduzido pela mesma causa; viu-se obrigado a encostar-se parede; palpitava-lhe o corao como se lhe quisesse despedaar o peito,e essas palpitaes faziam-lhe ferver o sangue em todo o corpo.

    Entretanto, a pouco e pouco, as artrias do mancebo sossegaram, e

    ele pde reflectir. Tratava-se, como ns dissemos, de ver sem ser visto.Pegou num dos vestidos de Teresa, pregou-o com um alfinete numa cordaque atravessava a janela em toda a sua largura, e, ocultando-se com essacortina improvisada, pde ver Andreia, sem recear que ela o visse.

    Andreia imitou Nicola; estendeu os seus formosos braos brancos,que por essa aco abriram um pouco o penteador; depois inclinou-sesobre o parapeito da janela para mais vontade ver os jardins contguos.

    Ento o seu rosto exprimiu uma visvel satisfao; ela que to rarasvezes sorria aos homens, sorria lhananente s coisas. De todos os ladosestava cercada por frondosas rvores, de todos os lados a cercava o matizdos jardins.

    A casa de Gilberto atraiu as vistas de Andreia como todas as outrascasas que formavam cinta ao jardim. Do lugar onde estava Andreia, s se

  • 7/30/2019 Alexandre Dumas - Memrias de um mdico 1 - Jos Blsamo 3

    11/200

    podiam ver mansardas, assim como s das mansardas tambm, se podiaver a casa de Andreia. No olhou portanto para l. Que podia importar soberba donzela a raa que morava l em cima?

    Por conseqncia, depois do seu exame, ficou Andreia convencidaque estava invisvel, e que sobre os limites desse tranqilo retiro no

    aparecia rosto algum, curioso ou jovial, desses parisiensesescarnecedores, que as mulheres da provncia tanto temem.Este resultado foi imediato. Andreia, deixando a sua janela aberta de

    par em par, para que o ar matinal pudesse banhar at aos ltimosrecantos o seu quarto, caminhou para o lado da chamin, puxou pelocordo de uma campainha e comeou a vestir-se, ou melhor diremos, adespir-se na penumbra do quarto.

    Nicola chegou, abriu uma caixa de toucador do tempo da rainhaAna, pegou num pente de tartaruga e soltou os cabelos de Andreia.

    Em pouco tempo, desdobraram-se como um manto, sobre osombros de Andreia, as compridas tranas do seu cabelo.

    Gilberto soltou um suspiro. Custava-lhe a conhecer esses formososcabelos de Andreia, que a moda e a etiqueta acabavam de cobrir de ps;mas reconhecia Andreia, Andreia meio despida, cem vezes mais formosaassim do que vestida e enfeitada com os objectos mais ricos. Os olhos domancebo afrouxavam pela fixidade, os seus dedos ardiam em febre, e aboca franzida estava seca!

    Quis o acaso que fazendo-se pentear, Andreia erguesse a cabea, eque os seus olhos se fixassem na mansarda de Gilberto.

    - Sim, sim, olha bem - murmurou Gilberto; - podes olhar quandoquiseres, nada poders ver e eu vejo tudo.

    Gilberto enganava-se, Andreia via alguma coisa, era esse vestidoflutuando, enrolado na cabea do mancebo, e que lhe servia de turbante.Ela mostrava a Nicola, apontando com o dedo, esse singular objecto.Nicola interrompeu o trabalho complicado que tinha entre as mos,

    e, apontando a fresta com o pente, pareceu perguntar a sua ama se eraesse efectivamente o objecto que ela designava.

    Essa telegrafia, que Gilberto devorava e de que gozava loucamente,tinha, sem que ele soubesse, um terceiro espectador.

    Gilberto sentiu de repente uma pesada mo arrancar-lhe da fronte ovestido de Teresa, e caiu fulminado vendo junto de si Joo JacquesRousseau.

    - Que est a fazendo, senhor? - exclamou o filsofo com assobrancelhas franzidas, fazendo uma visagem pouco agradvel eexaminando escrupulosamente o vestido tomado de emprstimo a suamulher.

    Gilberto esforou-se por desviar da fresta a ateno de Rousseau.- Nada, Sr. Jacques Rousseau - respondeu ele nada absolutamente.- Nada! Ento por que razo se ocultava debaixo desse vestido?- O sol incomodava-me.- Esta janela est situada ao poente, e incomoda-o o sol no

    momento em que desponta? Tem os olhos muito delicados, mancebo!Gilberto balbuciou algumas palavras, mas conhecendo que se

    comprometia ainda mais, ocultou o rosto entre as mos.- Mente e tem medo - disse Rousseau; - portanto estava fazendo

  • 7/30/2019 Alexandre Dumas - Memrias de um mdico 1 - Jos Blsamo 3

    12/200

    alguma coisa m.E em seguida a essa terrvel lgica, que acabava de transtornar

    Gilberto, Rousseau foi para a janela.Por um sentimento em demasia natural, Gilberto, que havia

    instantes tremia e receava ser surpreendido naquela janela, correu para l

    apenas Rousseau se chegou a ela.- Ah! Ah! - disse este num tom que gelou o sangue nas veias deGilberto - a casa agora est habitada.

    Gilberto no disse palavra.- E por pessoas - prosseguiu o carrancudo filsofo - por pessoas que

    conhecem a minha casa, porque esto apontando para c.Gilberto, que conheceu haver-se aproximado demais, deu um passo

    para trs.Nem o movimento, nem a causa que o haviam produzido escaparam

    a Rousseau; conheceu que Gilberto receava ser visto.- No - disse ele agarrando o mancebo pelo brao; - no, meu

    amigo, h nisto tudo algum enredo; fique a, faa-me esse favor.E conduziu-o em frente da janela, descoberto, visvel de bem longe.- Oh! No, senhor, no, por piedade! - exclamou Gilberto torcendo-

    se para lhe escapar.Mas para escapar, o que fora fcil a um mancebo forte e gil como

    Gilberto, era preciso travar uma luta com Rousseau, uma luta com o seudeus; o respeito deteve-o.

    - Conhece aquelas mulheres - disse Rousseau - e elas conhecem-no?- No, no, senhor.- Ento se no as conhece e se lhes desconhecido, que motivo tem

    para no aparecer?- Sr. Rousseau, durante a sua vida deve ter tido segredos, no verdade? Pois ento, piedade por um segredo.

    - Ah! Traidor! - bradou Rousseau - sim, eu conheo os segredosdessa natureza; s criatura dos Grimm, dos Holbach. Ensinaram-te umpapel para captares a minha benevolncia, introduzistes-te em minhacasa para me entregares; oh! Que louco eu sou! Oh! Que estpido amanteda natureza, julgo socorrer um dos meus semelhantes, e trago comigo umespio.

    - Um espio! - exclamou Gilberto revoltado.- Vamos a saber: em que dia me queres vender, Judas? - perguntou

    Rousseau fazendo um manto com o vestido de Teresa que maquinalmenteguardara nas mos, e julgando-se numa atitude sublime, quandodesgraadamente s estava ridculo.

    - Senhor - disse Gilberto - calunia-me.- Caluniar-te, vil serpente - bradou Rousseau quando te surpreendo

    correspondendo por gestos e sinais com os meus inimigos, e a contar-lhestalvez, quem sabe, o assunto da minha ltima obra?

    - Senhor, se eu tivesse vindo para sua casa com o intento de oatraioar, contando o assunto do seu trabalho, ser-me-ia mais fcil copiaros manuscritos que tem no gabinete, do que contar, por meio de sinais, oassunto de que tratam.

    Era verdade, e Rousseau conheceu tanto que havia dito um dessescontra-sensos que lhe escapavam nas suas monomanias de terror, que se

  • 7/30/2019 Alexandre Dumas - Memrias de um mdico 1 - Jos Blsamo 3

    13/200

    enfadou.- Senhor - disse ele - sinto muito, mas a experincia tornou-me

    severo; a minha vida tem-se esgotado no meio das decepes; fuiatraioado por todos, renegado por todos, entregado, vendido, martirizadopor todos. Sou, e bem o sabe, um dos ilustres desgraados que os

    governos pem fora da lei e da sociedade. Em tal situao, permitido serdesconfiado. Ora, o senhor -me suspeito, e vai j sair da minha casa.Gilberto no esperava semelhante perorao.Ele, Gilberto, expulso!Fechou os punhos, e um raio que fez estremecer Rousseau lhe

    brilhou nos olhos.Mas esse raio pouco durou, e apagou-se sem estrondo.Gilberto havia reflectido, que partindo ia perder o doce prazer de ver

    Andreia a cada instante do dia, e perdia tambm a amizade de Rousseau:era ao mesmo tempo a desgraa e a vergonha.

    Caiu do alto do seu selvagem orgulho e de mos postas, disse:- Senhor, oua uma palavra, uma s.- No tenho piedade, nada me comove exclamou Rousseau; - os

    homens tornaram-me, por suas injustias, mais feroz que um tigre. Temcorrespondncia com os meus inimigos, v para eles que o no probo,mas saia de minha casa.

    - Senhor, aquelas duas raparigas no so suas inimigas: so amenina Andreia e sua aia Nicola.

    - Quem a menina Andreia? - perguntou Rousseau, a quem no eraestranho esse nome, que Gilberto havia j pronunciado duas ou trs vezesna sua presena quem a menina Andreia? Diga!

    - A menina Andreia, senhor, a filha do baro de Taverney; , oh!Perdoe-me por lhe dizer semelhantes coisas, mas o senhor obriga-me aisso, aquela que eu amo mais do que o senhor amou a menina Galley, aSr. Warrens, ou qualquer outra; aquela que eu segui a p, sem dinheiroe sem po, at cair no meio da estrada despedaado pela fadiga e pelador; aquela que eu fui ontem ver a Saint-Denis, atrs de quem corri atMuette, que de novo acompanhei, sem que me vissem, de Muette ruaparalela a esta sua; aquela que casualmente descobri naquela casa, estamanh, ao abrir a minha janela; finalmente, aquela por quem queria serTurenne, Richelieu ou Rousseau.

    Rousseau conhecia o corao humano e sabia-lhe o diapaso dos

    gritos; sabia que o melhor actor no podia ter a inflexo com que Gilbertofalava, e esse gesto febril com que acompanhava as suas palavras,entrecortadas pelas lgrimas.

    - Ento - disse ele - aquela menina a menina Andreia?- Sim, Sr. Rousseau.- Ento conhece-a?- Sou filho da sua ama de leite.- Nesse caso mentiu ainda agora, quando disse que no a conhecia,

    e se no um traidor, um mentiroso.- Senhor - disse Gilberto - despedaa-me o corao, e realmente

    menos mal me faria, matando-me aqui mesmo neste lugar.- Ora adeus! Isso fraseologia, estilo de Diderot e Marmontel; um

    mentiroso, senhor.

  • 7/30/2019 Alexandre Dumas - Memrias de um mdico 1 - Jos Blsamo 3

    14/200

    - Pois bem! Sim, sim - disse Gilberto - sou um mentiroso, senhor, emal de si, senhor, se no compreende uma tal mentira. Um mentiroso! Ummentiroso!... Ah! Eu parto... Adeus! Eu parto desesperado, e h-de pesar-lhe na conscincia o meu desespero.

    Rousseau passava a mo pela barba, olhando para esse mancebo

    que tanta analogia tinha consigo.- Isto h-de ser um grande homem ou um grande velhaco - pensouele; - mas tambm, se conspiram contra mim, por que hei-de deixarescapar de entre as mos o fio da conspirao?

    Gilberto havia dado quatro passos para o lado da porta, e com amo sobre a fechadura, esperava uma ltima palavra que o expulsasse detodo ou que o chamasse.

    - Basta sobre este assunto, meu filho - disse Rousseau. - Se estnamorado ao ponto que diz, ah! mal de si! Mas j tarde, perdeu o dia deontem, e hoje temos que copiar entre ambos trinta pginas de msica.Vamos ao trabalho, Gilberto, vamos!

    Gilberto pegou na mo do filsofo e beijou-a; tanto no teria eledecerto feito mo de um rei.

    Mas antes de sair e enquanto Gilberto, comovido, estava encostado porta, Rousseau aproximou-se pela ltima vez da janela, e olhou para asduas raparigas.

    Neste momento, Andreia acabava de deixar cair o seu penteador, erecebia o roupo da manh que lhe dava Nicola.

    Ela via essa cabea plida, esse corpo imvel, fez um movimentorpido para se esconder, e deu ordem a Nicola para fechar a janela.

    Nicola obedeceu.

    - Vamos - disse Rousseau - a minha cabea de velho assustou-a,este rosto novo no a assustava tanto ainda agora. Oh! Formosamocidade! - acrescentou ele suspirando:

    O quiventu primavera del eta!O primavere quiventu del anno!

    E pendurando no prego o vestido de Teresa, desceumelancolicamente a escada, seguindo os passos de Gilberto, por cujamocidade ele teria trocado, naquele momento, essa reputao, que estavaa par da de Voltaire, e com ela partilhava a admirao do mundo inteiro.

    IV

    A CASA DA RUA DE SAINT-CLAUDE

    A Rua de Saint-Claude, na qual o conde de Fnix ajustara a suaentrevista com o cardeal de Rohan, no era to diferente naquela pocado que actualmente, que se lhe no possam ainda hoje achar osvestgios das localidades que vamos tentar descrever.

    Confinava, como ainda confina, com a Rua de Saint-Louis, e passavapor essa mesma rua entre o convento das filhas do SantssimoSacramento e o palcio de Voysins, separado hoje no fim por uma igreja epor uma loja de mercearia.

  • 7/30/2019 Alexandre Dumas - Memrias de um mdico 1 - Jos Blsamo 3

    15/200

    Como hoje tambm, ia-se dali para o bulevar por uma ladeira muitongreme.

    Compunha-se ao todo de quinze casas e sete lanternas. Havia maisnesta rua dois becos.

    Um do lado esquerdo, que ficava encravado no palcio de Voysins; o

    outro do lado direito, encravava na cerca das filhas do SantssimoSacramento.Este ltimo beco, assombreado do lado direito pelas rvores da

    cerca, tinha do esquerdo a grande parede cinzenta de uma casa que seelevava na Rua de Saint-Claude.

    Essa parede, semelhante ao rosto de um ciclope, tinha apenas umolho, ou, se assim quiserem, uma janela, e ainda assim era uma janelacom grades, barras e trancas de ferro, que a tornavam horrivelmentenegra.

    Mesmo por baixo dessa janela, que nunca se abria, o que era fcil deconhecer pela quantidade de teias de aranha que da parte de fora aornavam; mesmo por baixo dessa janela, dizemos, havia uma porta comgrandes pregos, que indicava, no que se entrasse, mas que se podiaentrar desse lado para a casa.

    No havia habitaes nesse beco, em que se viam dois nicoshabitantes: um sapateiro, sentado numa tripea e metido numa caixa demadeira, e uma palmilhadeira metida num tonel, ambos abrigados com asombra das accias do convento, que, desde as nove horas da manh,refrescavam a terra seca.

    noite, a palmilhadeira ia para o seu domiclio, o sapateiroremendo fechava a sua caixa e ento ningum mais vigiava o beco a no

    ser a janela negra e triste de que j falmos.Alm da porta que j mencionmos, a casa que tentamos descrevero mais exactamente possvel tinha uma entrada principal na Rua Saint-Claude. Essa entrada, que era um porto, tinha esculturas de um relevoque faziam lembrar a arquitectura do tempo de Lus XIII, e era ornada comessa argola de cabea de grifo que o conde de Fnix havia indicado comosinal positivo ao cardeal de Rohan.

    Quanto s janelas, deitavam para o passeio que ficava do outrolado, e desde pela manh estavam abertas.

    Paris, nessa poca, e principalmente nesse bairro, no era muitoseguro. No admirava portanto ver as janelas com grades de ferro e os

    muros defendidos com pedaos de vidro e de ferro.Dizemos isto porque o primeiro andar da casa de que se trata

    parecia-se com uma fortaleza. Contra os inimigos, os ladres e osamantes, opunha varandas de ferro com mil pontas de lana aguadas; dolado do passeio era o edifcio defendido por um fosso profundo, e paraescalar essa fortaleza do lado da rua, teria sido preciso trazer escadas detrinta ps de altura. A muralha de que j falamos tinha trinta e dois ps dealtura, e escondia ou para melhor dizer enterrava o ptio da entrada.

    Esta casa, diante da qual todo o caminhante, admirado, inquieto ecurioso pararia hoje, no tinha contudo, em 1770, um aspecto muitoestranho. Pelo contrrio, estava em harmonia com o bairro, e se os bonshabitantes da Rua de Saint-Louis e os habitantes no inferiores da Rua deSaint-Claude fugiam dos contornos do palcio, no era pelo edifcio em si

  • 7/30/2019 Alexandre Dumas - Memrias de um mdico 1 - Jos Blsamo 3

    16/200

    mesmo, porque a sua reputao ainda estava intacta, mas sim por causada pouca freqncia da porta de Saint-Louis, que tinha m fama, e daponte das Couves, cujos dois arcos levantados sobre um escuro ribeiro,assemelhavam-se, para todo o parisiense um pouco ao facto dastradies, com as colunas invencveis de Cads.

    Efectivamente, o bulevar, por esse lado, conduzia em direitura Bastilha. No se lhe viam dez casas no espao de um quarto de lgua;tambm, no julgando a polcia necessrio mandar pr lampies nessenada, nesse vcuo, apenas transitado oito horas nos dias de Vero equatro nos de Inverno; quando a noite chegava, era o caos, com ladresno centro.

    Foi contudo por esse caminho, pelas nove horas da noite, quechegou uma carruagem, puxada com grande velocidade, trs quartos dehora, pouco mais ou menos, depois da visita de Saint-Denis.

    O braso do conde de Fnix vinha pintado nas portinholas dacarruagem.

    O conde, montado em Djrid, precedia a carruagem numa distnciade vinte passos.

    Na carruagem, que trazia as cortinas fechadas, vinha Lorenzaadormecida e deitada sobre almofadas.

    A porta abriu-se como por encanto, ao som do trote dos cavalos, e acarruagem, depois de se haver embrenhado nas profundidades da Rua deSaint-Claude, desapareceu no ptio da casa que acabmos de descrever.

    A porta tornou a fechar-se.No era decerto preciso tanto mistrio, ningum estava a presente

    para ver entrar o conde de Fnix, ou para o incomodar em qualquer coisa

    que fosse, ainda que ele trouxesse consigo na carruagem os tesourostodos do convento de Saint-Denis.Agora, mais algumas palavras sobre o interior desta casa, que de

    importncia fazermos conhecer aos nossos leitores, porque nossainteno conduzi-los mais vezes a ela.

    No ptio de que j falmos e cuja erva, por uma vegetao contnua,tentava desunir as pedras que o calavam, viam-se direita cavalarias, esquerda cocheiras, e no fundo um patim conduzindo para uma porta,para a qual se subia indiferentemente, de um lado ou de outro, por umadupla escada de doze degraus.

    Em baixo, o palcio, pelo menos o que era acessvel, compunha-se

    de uma imensa antecmara, de uma casa de jantar notvel por um grandeluxo de baixela de prata, e enfim de uma sala que parecia ter sidorecentemente mobilada, talvez de propsito para receber os seus novosinquilinos.

    Ao sair da sala e voltando para a antecmara, encontrava-se umagrande escada que ia ter ao primeiro andar, que se compunha de trsgrandes casas.

    Mas um hbil gemetra, medindo com a vista a circunferncia dopalcio e calculando o seu dimetro, poderia admirar-se de achar topoucas casas em to grande extenso.

    porque nesta primeira casa visvel existia uma outra oculta, cujosegredo s era conhecido da pessoa que a habitava.

    Efectivamente, na antecmara, ao lado de uma esttua do deus

  • 7/30/2019 Alexandre Dumas - Memrias de um mdico 1 - Jos Blsamo 3

    17/200

    Harpcrates que, com um dedo na boca, parecia recomendar silncio, deque ele o emblema, abria-se, quando se carregava sobre uma pequenamola, uma porta estreita e baixa, disfarada pelos ornamentos daarquitectura. Essa porta dava acesso a uma escada colocada numcorredor e da largura desse mesmo corredor, que, na altura do outro

    primeiro andar, pouco mais ou menos, conduzia a um pequeno quarto, noqual entrava a claridade por duas janelas de grades, as quais davam paraum ptio interior.

    Este ptio era, por assim dizer, a caixa que encerrava e ocultava atodas as vistas a segunda casa.

    O quarto a que ia dar aquela escada era evidentemente um quartode homem. Os tapetes, que se viam junto s camas, e em frente dascadeiras e canaps, eram dos mais ricos de frica e da ndia. Eram pelesde lees, de tigres e de panteras, com olhos brilhantes e com dentesameaadores. As paredes forradas de marroquim de Crdova, com oslavores mais esquisitos e simtricos, estavam cobertas de armas de toda aespcie, desde a espada de punho em cruz dos antigos cavaleiros at ocangiar do rabe, desde o arcabuz com embutidos de marfim do sculodcimo sexto, at espingarda adamascada de ouro do dcimo oitavosculo.

    Debalde se buscaria naquele quarto alguma outra entrada que nofosse a da escada; talvez a houvesse muitas outras, eram pormdesconhecidas, invisveis.

    Um criado alemo, de vinte e cinco a trinta anos, o nico ente quese via durante aqueles dias andar naquela casa espaosa, tornou a fechar chave a porta da rua, e abrindo depois a portinhola da carruagem,

    enquanto o impassvel cocheiro desatrelava os cavalos, tirou de dentrodela Lorenza adormecida e levou-a nos braos at antecmara; adeitou-a sobre uma mesa coberta com um pano vermelho, e depois,discretamente, cobriu-a at aos ps com o grande vu branco que aenvolvia.

    Feito isto, saiu para ir acender na lanterna da carruagem umaserpentina de sete velas, que trouxe depois para a antecmara.

    Mas, neste intervalo, pequeno como foi, Lorenza tinha desaparecido.Verdade que o conde de Fnix tinha entrado atrs do criado, por

    seu turno havia pegado em Lorenza nos braos e levara-a pela porta falsapara a sala de armas, depois de ter com cuidado fechado a porta atrs de

    si.Chegado ali, carregou com a ponta do p numa pequena mola que

    estava no canto da chamin de um fogo. No mesmo instante girou nosgonzos, sem fazer rudo algum, uma porta que no era outra coisa seno afrente da mesma chamin, e o conde, passando por ela, desapareceutornando a fechar com o p, do mesmo modo que a havia aberto, a portamisteriosa.

    Tendo transposto aquela porta, encontrou uma outra escada, e,depois de haver subido uns quinze degraus cobertos de veludo deUtreque, chegou a um segundo pavimento, forrado igualmente de cetimbordado de flores com as cores to vivas e to bem delineadas que sepoderiam tomar por flores naturais.

    Os trastes que o mobiliavam eram de madeira dourada; dois

  • 7/30/2019 Alexandre Dumas - Memrias de um mdico 1 - Jos Blsamo 3

    18/200

    grandes armrios lavrados e com embutidos de cobre, um cravo e umtoucador feitos de jacarand, uma cama com armao, e algumasporcelanas de Svres, tais eram os objectos que compunham a parteindispensvel da moblia; algumas cadeiras, poltronas e sofs, dispostoscom simetria, num espao de trinta ps quadrados, ornavam o resto

    daquele pavimento, que s se compunha de mais um quarto de toucador,e de outro quarto contguo ao da cama.Duas janelas, com cortinas pouco transparentes, davam claridade

    quele quarto; mas como quela hora j era noite, as cortinas nadatinham que esconder, porque nada se via.

    Nem no quarto de toucador, nem no outro gabinete pequeno haviaabertura alguma. Lmpadas em que ardia um leo odorfero, davam-lhesclaridade tanto de dia como de noite, e sendo iadas pelo tecto, no se viade quem eram as mos que as preparavam.

    Naqueles quartos no se ouvia o mais pequeno rudo, dir-se-ia queestavam situados a cem lguas do mundo.

    Brilhava contudo a o ouro por todos os cantos, ricas pinturasornavam as paredes, e compridos cristais de Bomia, com as facetasresplandecentes, brilhavam como raios ardentes quando o conde, poucosatisfeito com a luz vacilante que havia no quarto, fez sair lume daquelacaixa de prata que tanto tinha preocupado Gilberto, e acendeu as velascor-de-rosa de duas serpentinas que estavam sobre o fogo.

    Feito isto voltou para junto de Lorenza, e dobrando um joelho sobreumas almofadas que estavam defronte dela, disse:

    - Lorenza!A donzela, ouvindo essa voz, levantou-se firmando-se num cotovelo;

    conservava porm os olhos fechados e nada respondeu.- Lorenza - prosseguiu o conde - dorme o seu sono natural, ou osono magntico?

    - Durmo o sono magntico - respondeu Lorenza.- E se eu a interrogar, pode responder-me?- Creio que sim.- Muito bem!Houve ento um instante de silncio, findo o qual o conde de Fnix

    continuou:- Olhe para o quarto da senhora Lusa, que acabamos de deixar h

    trs quartos de hora, pouco mais ou menos.

    - Estou olhando.- V o que l se passa?- Vejo.- Ainda l est o cardeal de Rohan?- No o vejo.- O que faz a princesa?- Est rezando para se ir deitar.- Repare, no v Sua Eminncia nos claustros ou nos ptios do

    convento?- No o vejo.- Olhe para a porta do convento e veja se ainda ali est a sua

    carruagem.- J no est.

  • 7/30/2019 Alexandre Dumas - Memrias de um mdico 1 - Jos Blsamo 3

    19/200

    - Siga com a vista o caminho por onde viemos.- Estou-o seguindo.- V algumas carruagens nesse caminho?- Sim, muitas.- Conhece entre elas a do cardeal?

    - No.- Aproxime-se mais de Paris.- J me aproximei.- Mais ainda.- Sim.- Mais.- Ah! J o vejo.- Aonde?- Na barreira.- Est parado?- Parou agora mesmo. L se apeia o criado da tbua.- Fala com ele?- Vai falar-lhe.- Oia, Lorenza; do maior interesse que eu saiba o que o cardeal

    disse a esse homem.- No me ordenou a tempo que o escutasse. Mas, espere, espere! L

    vai o criado falar ao cocheiro.- O que lhe disse ele?- Rua de Saint-Claude, no Marais.- Muito bem, Lorenza, obrigado.O conde escreveu algumas palavras num pedao de papel, dobrou-o

    em torno de uma chapa de cobre, destinada certamente a dar-lhe peso,puxou o cordo de uma campainha e carregou num boto, acima do qualse viu uma abertura, que tornou a desaparecer logo que essa carta por elase sumiu.

    Era o modo pelo qual o conde se correspondia com Fritz, quandoestava encerrado nos quartos interiores.

    Voltando depois a Lorenza, disse-lhe:- Obrigado.- Est contente? - perguntou Lorenza.- Sim, querida Lorenza.- Pois ento d-me a minha recompensa.

    Blsamo sorriu-se e chegou os seus lbios aos de Lorenza, cujocorpo estremeceu todo com aquele voluptuoso contacto.

    - Oh! Jos! Jos! - murmurou ela de envolta com um suspiro quasedoloroso - Jos, quanto te amo!

    E a donzela estendia os braos para apertar Blsamo contra o seucorao.

    IV

    A DUPLA EXISTNCIA - O SONO

    Blsamo recuou precipitadamente, os braos de Lorenza sencontraram o espao e caram-lhe cruzados sobre o peito.

  • 7/30/2019 Alexandre Dumas - Memrias de um mdico 1 - Jos Blsamo 3

    20/200

    - Lorenza - disse ento Blsamo - queres conversar com o teuamigo?

    - Oh! Quero, sim - respondeu ela - mas fala-me mais vezes; gostotanto de ouvir a tua voz!

    - Lorenza, no me tens tu dito que serias bem feliz se pudesses viver

    comigo s, separada do mundo inteiro?- Oh! Por certo, isso seria a suprema felicidade.- Pois bem, satisfiz os teus desejos, Lorenza. Neste quarto ningum

    pode perseguir-nos, ningum pode alcanar-nos, estamos ss,absolutamente ss.

    - Oh! Ainda bem!- Diz-me se este quarto est a teu gosto?- Ento manda-me ver.- V!- Oh! Que lindo quarto! - disse ela.- Ento agrada-te? - perguntou o conde com doura.- Oh! Por certo; l esto as minhas flores favoritas, a minha

    baunilha, as rosas escarlates, os jasmins da China. Eu to agradeo, meuquerido Jos, mas que bondade a tua!

    - Fao o que posso para te agradar, Lorenza.- cem vezes mais do que eu mereo, o que por mim fazes.- Parece-te isso?- Sim.- Confessas portanto que foste muito m, no verdade?- Muito m! Ah! Sim, mas tu perdoas-me, no assim?- Perdoar-te-ei quando me tiveres explicado o mistrio estranho,

    contra o qual eu luto desde que te conheo.- Ouve-me, Blsamo. H em mim duas Lorenzas distintas, uma ama-te, a outra odeia-te, assim como h em mim duas existncias opostas:uma, durante a qual gozo todas as alegrias do Paraso; outra, durante aqual padeo os tormentos todos do Inferno.

    - E dessas duas existncias, uma delas o sono, a outra a viglia,no verdade?

    - .- E amas-me enquanto dormes, e aborreces-me quando ests

    acordada?- Sim.

    - E por qu?- No sei.- Deves sab-lo.- No.- Procura bem, consulta-te a ti mesma, sonda o teu corao.- Ah! Sim... J percebo agora.- Fala.- Quando Lorenza est acordada, ento a romana, a filha

    supersticiosa da Itlia: julga que a cincia um crime, e o amor umpecado. Ento o sbio Blsamo mete-lhe medo, assusta-a o formoso Jos.Disse-lhe o seu confessor que perderia a sua alma se te amasse, eportanto fugir de ti sempre sem descansar, at ao fim do mundo.

    - E quando Lorenza dorme?

  • 7/30/2019 Alexandre Dumas - Memrias de um mdico 1 - Jos Blsamo 3

    21/200

    - Oh! Ento diferente; j no romana, no supersticiosa, mulher. Ento l no corao e no esprito de Blsamo; v que esse coraoa ama, que esse gnio est imaginando coisas sublimes. Ento v que ela uma coisa bem insignificante comparada com ele. E desejaria viver emorrer junto dele, para que a posteridade pronunciasse em voz baixa o

    nome de Lorenza, ao passo que em voz alta proclamasse o de...Cagliostro!- Ser portanto com esse nome que eu me tornarei clebre?- Sim, sim, com esse nome.- Minha querida Lorenza! Gostars portanto deste teu novo quarto?- mais rico do que todos os que j me tens dado, mas no por

    isso que eu gosto dele.- Ento por que ?- Porque me prometeste vir habit-lo comigo.- Ah! Ento quando dormes sabes que te amo com ardor, com

    paixo?...A donzela encolheu os joelhos, que apertou entre os braos, e disse,

    com um triste sorriso nos lbios:- Sim, bem o vejo. Bem o vejo, e todavia acrescentou ela com um

    suspiro - h alguma coisa que tu amas mais do que Lorenza.- O que ? - perguntou Blsamo estremecendo.- Os teus projectos.- Diz antes a minha obra.- A tua ambio.- Diz antes a minha glria.- Oh! Meu Deus! Meu Deus!

    O corao da italiana estava oprimido, e lgrimas silenciosas lhecorriam pelas plpebras cerradas.- O que vs tu? - perguntou Blsamo admirado daqueles espantosos

    momentos de lucidez, que a ele prprio assombravam.- Ah! Vejo trevas, por entre as quais passam fantasmas; alguns tm

    nas mos cabeas coroadas, e tu, tu ests no meio de tudo aquilo, comoum general no centro de um exrcito. Parece que tens o poder de umDeus, mandas e tudo te obedece.

    - Pois bem - disse Blsamo com prazer - e no te torna issoorgulhosa por me possures?

    - Oh! Tu s demasiadamente bom para seres grande. E demais,

    procuro por mim, entre toda essa gente que te cerca e no me vejo. Oh!Eu j no estarei... Eu j no estarei... - murmurou ela tristemente.

    - E onde estars ento?- Terei morrido.Blsamo estremeceu.- Tu, morta, minha Lorenza! - bradou ele - No, no, havemos de

    viver juntos para nos amarmos.- Tu no me amas.- Oh! Sim, amo-te.- No me amas bastante, pelo menos, tanto quanto desejo - bradou

    ela agarrando com as mos ambas a cabea de Jos Blsamo, e aplicando-lhe ao mesmo tempo sobre a fronte a sua boca ardente, deu-lhe comdelrio inmeros beijos.

  • 7/30/2019 Alexandre Dumas - Memrias de um mdico 1 - Jos Blsamo 3

    22/200

    - Que motivo de queixa tens contra mim?- A tua frieza. V, l te afastas. Queima-te a minha boca, para assim

    fugires aos meus beijos? Oh! restitui-me a minha tranqilidade derapariga, o meu convento de Subaco, as noites solitrias da minha cela.Restitui-me os beijos que me mandavas nas asas da brisa misteriosa, e

    que no meu sono eu via caminharem para mim, como silfos de asas deouro e prpura, e que mergulhavam a minha alma em delcias.- Lorenza! Lorenza!- Oh! No fujas de mim, Blsamo, no fujas de mim, suplico-to; d-

    me a tua mo para a apertar nas minhas, os teus olhos para eu beijar; soutua esposa, no me negues o que te peo.

    - Sim, sim, minha querida Lorenza, sim, s a minha querida esposa.- E consentes que eu viva assim junto de ti, intil, desprezada,

    abandonada? Possuis uma flor casta e solitria, cujo perfume te atrai, e turepeles esse perfume! Ah! Bem o sinto, sou para ti indiferente!

    - Pelo contrrio, minha Lorenza, s tudo para mim, pois que s tuquem faz a minha fora, o meu poder, o meu gnio, porque sem ti eu denada seria capaz. Deixa portanto de me amar com essa febre insensataque perturba as noites das mulheres do teu pas. Ama-me como eu teamo.

    - Oh! No amor, no amor o que por mim sentes!- Tambm tudo quanto peo de ti; porque me ds tudo quanto

    desejo; porque essa posse da alma basta-me para ser feliz.- Feliz! - disse Lorenza com um modo de desprezo; - chamas a isso

    felicidade?- Sim, porque para mim, ser feliz, ser grande.

    Lorenza suspirou.- Oh! Se soubesses o que , minha Lorenza, poder ler no coraodos homens para os dominar com as suas prprias paixes!

    - Sim, para isso te sirvo, bem o sei.- No tudo ainda. Os teus olhos lem para mim no livro fechado do

    futuro. O que no pude aprender em vinte anos de trabalhos e misrias,tu, minha terna pomba, inocente e pura, quando queres, ensinas-mo. Osmeus passos, no meio dos quais os meus inimigos pem tantas barreiras,tu os esclareces; o meu esprito, de que dependem a minha vida, fortuna eliberdade, tu mo dilatas como o olho de lince que v nas trevas da noite.Os teus belos olhos, fechando-se luz do mundo, abrem-se de um modo

    sobrenatural, e vigiam por mim. s tu que me fazes livre, que me fazesrico, poderoso.

    - E tu, em troca, fazes-me desgraada! - bradou Lorenza louca deamor.

    E mais vida que nunca, agarrou Blsamo com os braos, queimpregnado pela chama elctrica, apenas resistiu suavemente.

    Fez contudo um esforo, e livrou-se do n vivo que o envolvia.- Lorenza! Lorenza! - disse ele - por piedade!- Sou tua esposa - bradou ela - e no tua filha! Ama-me como o

    marido ama sua mulher, e no como meu pai me amava!- Lorenza - disse Blsamo todo trmulo de desejos - no me peas,

    suplico-te, outro amor seno aquele que eu te posso dar.- Mas - bradou a rapariga erguendo com desespero os braos para o

  • 7/30/2019 Alexandre Dumas - Memrias de um mdico 1 - Jos Blsamo 3

    23/200

    cu - no amor, isso no amor!- Oh! Sim, amor... Mas amor santo e puro como se deve a uma

    virgem.Lorenza fez um movimento to rpido que lhe fez soltar as

    compridas tranas de cabelos pretos. O seu brao, ao mesmo tempo

    branco e nervoso, ergueu-se quase ameaador para o conde.- Oh! O que significa isso? - disse ela com uma voz forte edesesperada. - E por que me fizeste abandonar o meu pas, o meu nome,a minha famlia, tudo, at o meu Deus? Porque o Deus que adoras no seassemelha ao meu. Por que me atraste para ti? Por que tomaste sobremim esse imprio absoluto, que faz de mim tua escrava, que faz da minhavida tua vida, de meu sangue, teu sangue? Ouves-me? Por que fizesteisso, se no fim de tanto padecimento s me queres chamar a virgemLorenza?

    Blsamo suspirou tambm, oprimido pela dor imensa dessa mulher,cujo corao sangrava.

    - Ah! - disse ele - a tua culpa, ou antes a culpa de Deus; por quefez Deus de ti esse anjo de olhar infalvel, com o auxlio do qual eusubjugarei o universo? Por que ls tu em todos os coraes apesar dacapa material que os envolve, como se pode ler uma pgina coberta porum vidro? porque s um anjo de pureza, Lorenza! porque s odiamante sem mancha, porque nada faz sombra em teu esprito; porque Deus, vendo essa forma imaculada, pura e radiosa, como a da suasanta Me, digna-se deixar descer nela, quando o invoco, em nome doselementos que criou, o seu Santo Esprito, que geralmente paira acimadas criaturas vulgares e srdidas, por no achar nelas um lugar sem

    mancha em que possa descansar. Virgem, s vidente, minha Lorenza;mulher, no serias mais que matria.- E no preferes o meu amor? - exclamou Lorenza batendo com

    raiva em suas formosas mos, que se tornaram vermelhas; - e nopreferes o meu amor a todos os sonhos que persegues, e todas asquimeras que crias? E condenas-me castidade da religiosa, com astentaes do inevitvel ardor da tua presena? Ah! Jos, Jos, cometes umcrime, sou eu quem to digo.

    - No blasfemes, minha Lorenza - bradou Blsamo; - porque, comotu, tambm eu sofro muito. Olha, Lorenza, olha bem, l em meu corao,eu o quero, e diz ainda que te no amo.

    - Mas ento, por que resistes a ti mesmo?- Porque te quero levar comigo ao trono do mundo.- Oh! A tua ambio, Blsamo - murmurou a rapariga - a tua

    ambio poder nunca dar-te o que o meu amor te daria?Louco por sua vez, Blsamo deixou a sua cabea encostar-se ao

    peito de Lorenza.- Oh! Sim, sim - exclamou ela - sim, vejo enfim que me amas mais

    que a tua ambio, mais que o teu poder, mais que a tua esperana. Oh!Enfim, amas-me como te amo!

    Blsamo tentou dissipar a nuvem de embriaguez que lhe sufocava arazo. Mas foi intil o seu esforo.

    - Oh! J que tanto me amas - disse ele - compadece-te de mim.Lorenza j no ouvia, acabava de fazer com os braos uma dessas

  • 7/30/2019 Alexandre Dumas - Memrias de um mdico 1 - Jos Blsamo 3

    24/200

    invencveis cadeias, mais tenazes que os elos de ao, mais slidas que odiamante.

    - Amo-te como quiseres - disse ela - irm ou mulher, virgem ouesposa, mas d-me um beijo, um s.

    Blsamo estava subjugado, vencido, despedaado por tanto amor,

    sem fora para resistir mais tempo, e com os olhos ardentes, o peitoarquejante, a cabea inclinada, aproximou-se de Lorenza, toinvencivelmente atrado como o ferro pelo man.

    A sua boca ia unir-se de Lorenza!De repente voltou-lhe a razo.As suas mos sacudiram o ar carregado de embriagantes vapores.- Lorenza! - bradou ele - acorda, eu o ordeno!Imediatamente essa cadeia que ele no havia podido quebrar abriu-

    se, os braos que o apertavam estenderam-se, o sorriso ardente queentreabria os lbios secos de Lorenza apagou-se, lnguido como um restode vida num derradeiro suspiro; os seus olhos fechados abriram-se, assuas pupilas dilatadas cerraram-se; sacudiu os braos com esforo, fez ummovimento de fadiga e tornou a cair estendida, mas acordada, sobre osof.

    Blsamo, sentado a trs passos de distncia dela, soltou umprofundo suspiro.

    - Adeus, sonho - murmurou ele - adeus, felicidade.

    V

    A DUPLA EXISTNCIA - A VIGLIA

    Assim que o olhar de Lorenza adquiriu o seu poder, lanou em tornode si um golpe de vista.

    Depois de haver examinado cada coisa sem que nenhuma dessasmil bagatelas, que fazem a alegria das mulheres, houvesse desenrugado agravidade da sua fisionomia, a italiana fixou em Blsamo o seu olhar comum doloroso estremecimento.

    Blsamo estava sentado e atento distante dela alguns passos.- Ainda o senhor? - disse ela afastando-se.E em sua fisionomia pintaram-se todos os sinais do terror; os seus

    lbios empalideceram, o suor orvalhou-lhe a raiz dos cabelos.

    Blsamo nada respondeu.- Onde estou eu? - perguntou ela.- Sabe de onde vem, minha senhora, deve isso naturalmente

    conduzi-la a saber onde est.- Sim, tem razo para me dizer isso; efectivamente recordo-me

    agora. Sei que fui perseguida por si, e arrancada dos braos da realintermediria que eu havia escolhido entre Deus e mim.

    - Ento sabe igualmente que essa princesa, poderosa como , nopde defend-la?

    - Sim, o senhor venceu-a por meio de alguma violncia mgica! -bradou Lorenza de mos postas - oh! Meu Deus, meu Deus! Livrai-medeste demnio!

    - Em que v que eu sou um demnio, minha senhora? - disse

  • 7/30/2019 Alexandre Dumas - Memrias de um mdico 1 - Jos Blsamo 3

    25/200

    Blsamo encolhendo os ombros; - uma vez por todas, eu lho peo, deixede parte essa bagagem de pueris crenas trazidas de Roma, e toda essaquantidade de absurdas supersties que atrs de si arrastou ao sair doconvento.

    - Oh! O meu convento! Quem me restituir o meu convento?

    - Efectivamente - disse Blsamo - uma coisa bem recomendvelum convento!Lorenza correu para uma das janelas, abriu as cortinas, depois

    levantou a aldraba, e sua mo estendida parou sobre umas grossas barrasde ferro, disfaradas e escondidas com flores, que muito lhe faziam perderda sua significao sem lhe tirarem a eficcia.

    - Priso por priso - disse ela - gosto mais da que leva ao Cu que daoutra que conduz ao Inferno.

    E carregou furiosamente os seus punhos delicados sobre as grades.- Se fosse mais razovel, Lorenza, s acharia na sua janela flores

    sem grades de ferro.- No era eu razovel quando me fechava naquela outra priso

    ambulante com esse vampiro a quem chamava Althotas? No, e contudono me perdia de vista, todavia eu era sua prisioneira, todavia, quandome deixava, infiltrava em mim esse esprito de que estou possessa e noposso combater! Onde est ele, esse horrvel ancio que me faz morrer demedo? Por a nalgum canto, no verdade? Caluda... No faamos bulha,e ouviremos sair do centro da terra a sua voz de fantasma!

    - Tem uma imaginao de criana, minha senhora disse Blsamo -Althotas, meu preceptor, meu amigo, meu segundo pai, um ancioinofensivo, que nunca a viu, que nunca se aproximou de si, ou que, se se

    aproximou e a viu, nem mesmo ter reparado em si, entretido como estna procura da sua obra.- Sua obra! - murmurou Lorenza - que obra a dele, diga?- Procura o elixir da vida, o que h seis mil anos procuraram

    descobrir todos os espritos superiores.- E o senhor o que procura?- Eu? A perfeio humana.- Oh! Os demnios! Os demnios! - disse Lorenza erguendo as mos

    para o cu.- Bom - disse Blsamo levantando-se - l a torna a acometer o seu

    ataque.

    - O meu ataque?- Sim; h uma coisa que ignora, Lorenza, que a sua vida est

    separada em dois perodos iguais: durante um a senhora meiga,bondosa e razovel; durante o outro louca.

    - E com o vo pretexto dessa loucura que aqui me encarcera?- Ah! Assim preciso.- Oh! Seja cruel, brbaro, sem piedade; feche-me, mate-me, mas

    no se faa hipcrita, e no queira fingir que se compadece de mim,quando me est despedaando!

    - Vamos - disse Blsamo sem se enfadar e mesmo com um sorrisoagradvel - algum tormento muito horroroso, habitar uma casa elegantee cmoda?

    - Grades, grades de todos os lados; muitas barras de ferro; ar,

  • 7/30/2019 Alexandre Dumas - Memrias de um mdico 1 - Jos Blsamo 3

    26/200

    nenhum!- Essas grades esto a no interesse da sua prpria vida, Lorenza.- Oh! - exclamou ela - este demnio mata-me a fogo lento, e diz que

    pensa na minha vida, que se interessa muito por ela!Blsamo aproximou-se de Lorenza, e com um gesto amigvel quis

    pegar-lhe na mo; mas ela, recuando, como se uma serpente houvessepassado junto de si, bradou:- Oh! No me toque!- Odeia-me ento muito, Lorenza?- Pergunte ao padecente se odeia o seu carrasco.- Lorenza, Lorenza, no quero ser o seu carrasco, por isso lhe tiro

    uma pouca da sua liberdade. Se eu a deixasse andar sua vontade, sabeDeus o que faria nalguns dos seus momentos de loucura!

    - O que eu faria? Oh! Veja-me eu um dia livre, e ento ver!- Lorenza, trata bem mal o esposo que diante de Deus escolheu.- Eu escolhi-o? Nunca!- Contudo, a minha esposa.- Oh! Nisso que est a obra do Demnio.- Pobre insensata! - disse Blsamo olhando para ela com ternura.- Mas sou romana - murmurou Lorenza - e um dia, oh! um dia eu me

    vingarei!Blsamo abanou a cabea.- Diz isso para me assustar, no verdade, Lorenza? - perguntou ele

    sorrindo.- No, no, hei-de fazer o que digo.- Mulher crist, o que diz? - bradou Blsamo num tom de autoridade

    admirvel. - A sua religio, que a ensina a dar o bem pelo mal, no portanto seno hipocrisia, pois que diz seguir essa religio, e d em trocao mal pelo bem que recebe!

    Lorenza pareceu um instante dominada por essas palavras.- Oh! - disse ela - no uma vingana denunciar sociedade os seus

    inimigos, um dever.- Se me denuncia como um nigromante, como um feiticeiro, no a

    sociedade que nisto ofendo, Deus. Por que, ento, se ofensa a Deus, aDeus que pode, com um sinal da sua clera, fulminar-me, se no d Ele aotrabalho de me castigar, e deixa esses cuidados aos homens, fracos comoeu, e como eu susceptveis de erro?

    - Porque esquece, tolera - murmurou a romana espera que seemende.

    Blsamo sorriu.- E entretanto - disse ele - aconselha-a para atraioar o seu amigo, o

    seu benfeitor, o seu esposo!- Meu esposo! Ah! Graas a Deus, nunca senti a sua mo tocar na

    minha, sem que me subisse a cor ao rosto, ou sem que me sentisseestremecer.

    - E, bem o sabe, procurei sempre generosamente livr-la dessecontacto.

    - verdade, casto, e essa a nica compensao concedida sminhas desgraas. Oh! Se me tivesse sido preciso submeter-me ao seuamor!

  • 7/30/2019 Alexandre Dumas - Memrias de um mdico 1 - Jos Blsamo 3

    27/200

    - Oh! Mistrio! Mistrio impenetrvel! murmurou Blsamo, queparecia seguir o seu pensamento em lugar de responder ao de Lorenza.

    - Terminemos - disse Lorenza; - por que me rouba a minhaliberdade?

    - Por que, depois de voluntariamente ma haver dado, quer tornar a

    tirar-ma? Por que foge daquele que a protege? Por que vai pedir apoio auma estranha contra aquele que a ama? Por que ameaa a cada instanteaquele que nunca a ameaa de revelar segredos, que no so seus, ecujas conseqncias ignora?

    - Oh! - disse Lorenza sem responder interrogao - o prisioneiroque firmemente deseja a liberdade acaba sempre por alcan-la, e as suasbarras de ferro no me faro demorar aqui mais tempo do que o haviafeito a sua gaiola ambulante.

    - Felizmente para si, Lorenza, so slidas - disse Blsamo com umatranqilidade ameaadora.

    - Deus mandar em meu auxlio alguma tempestade como a daLorraine, algum raio que as quebrar.

    - Acredite no que lhe digo, rogue a Deus para que tal no acontea;acredite-me, no se fie nessas exaltaes romnticas, Lorenza, falo-lhecomo amigo, escute-me.

    Havia tanta raiva concentrada na voz de Blsamo, tanto fogosombrio lhe brilhava nos olhos, sua mo branca e musculosa enrugava-sepor uma forma to estranha a cada uma dessas palavras que elepronunciava lentamente e quase solenemente, que Lorenza, atordoada noponto mais forte da sua rebelio, escutou a despeito de si mesma.

    - Veja, minha filha - prosseguiu Blsamo sem que a sua voz

    houvesse perdido coisa alguma da sua ameaadora doura - procureifazer com que esta priso fosse habitvel at mesmo para uma rainha; ese a senhora fosse rainha, nada lhe havia de faltar aqui. Sossegueportanto essa louca exaltao. Viva aqui como teria vivido no convento.Acostume-se a ver-me; ame-me como a um amigo, um irmo. Tenhograndes desgostos, horrveis decepes, eu lhe confiarei tudo; muitasvezes um sorriso seu me consolar. Quanto mais bondosa, atenta, cheiade pacincia a encontrar mais adelgaarei as barras de ferro da sua cela;quem sabe? Dentro de um ano, ou de seis meses, estar talvez to livrecomo eu, e j no me querer privar da sua presena.

    - No, no - bradou Lorenza, que no podia compreender de que

    modo uma resoluo to terrvel se ligava com uma voz to doce - nadade promessas, nada de mentiras; o senhor levou-me por violncia;perteno a mim e s a mim; restitua-me portanto pelo menos a Deus, seme no quer restituir a mim mesma. Tolerei at aqui o seu despotismo,porque me lembrei que me havia arrebatado a uns salteadores que meiam desonrar, mas j essa obrigao que eu tinha para consigo vaienfraquecendo. Ainda mais alguns dias nesta priso que me revolta, e jlhe no serei obrigada, e depois, depois tome cuidado, talvez chegue acrer que tinha contratos misteriosos com esses salteadores.

    - Far-me- a honra de ver em mim um chefe de bandidos? -perguntou Blsamo ironicamente.

    - No sei, mas pelo menos, vi alguns sinais, ouvi palavras...- Viu sinais, ouviu palavras? - bradou Blsamo empalidecendo.

  • 7/30/2019 Alexandre Dumas - Memrias de um mdico 1 - Jos Blsamo 3

    28/200

    - Sim, sim - disse Lorenza - surpreendi esses sinais, ouvi essaspalavras.

    - Mas nunca as dir a pessoa alguma, no as repetir a quem querque seja, e guard-las- no mais ntimo do seu peito, para que l possammorrer.

    - Oh! No, pelo contrrio! - exclamou Lorenza, com aquela felicidadeque num momento de raiva se sente por achar finalmente o ladovulnervel do seu antagonista. Hei-de traz-las sempre na memria, hei-de repeti-las em voz baixa sempre que estiver s, e em voz alta em todasas ocasies que tiver; e at j as disse.

    - A quem? - perguntou Blsamo.- princesa.- Pois bem, Lorenza, oua bem isto que vou dizer-lhe - disse Blsamo

    cravando as unhas no corpo para apagar a efervescncia do seu sangue -se as disse, no as tornar a dizer; no as tornar a dizer porque eu hei-deter as portas bem fechadas, porque hei-de aguar os bicos destas grades,porque, se preciso for, hei-de levantar os muros deste ptio to altos comolevantaram os da torre de Babel.

    - Eu j lho disse, Blsamo, toda a priso tem sada - bradou Lorenza- principalmente quando o amor da liberdade reforado pelo dio aotirano.

    - Muito bem, saia quando lhe aprouver, Lorenza, mas lembre-sesempre disto: j no tem mais que duas vezes para poder sair; daprimeira, hei-de castig-la to cruelmente que lhe farei verter as lgrimastodas do seu corpo; da segunda, hei-de bater-lhe to desapiedadamenteque lhe farei verter o sangue todo das suas veias.

    - Meu Deus! Meu Deus! h-de assassinar-me! bradou a jovemmulher chegada ao paroxismo da raiva, arrancando os cabelos e torcendo-se sobre o tapete.

    Blsamo contemplou um instante Lorenza com um misto de clera epiedade. Por fim a piedade pareceu vencer, e disse:

    - Vamos, Lorenza, torne a si; um dia h-de chegar em que serlargamente recompensada de tudo quanto houver padecido ou houverjulgado padecer.

    - Encarcerada! Encarcerada! - bradou Lorenza sem ouvir Blsamo.- Pacincia.- Bater-me!

    - Pode evit-lo.- Doida! Doida!- Tornar a si.- Oh! Mande-me j para um hospital de doidos; feche-me realmente

    numa priso verdadeira!- No! Porque me preveniu a tempo do que faria contra mim.- Pois bem! - gritou Lorenza - antes a morte! Antes a morte

    imediatamente!E levantando-se com a ligeireza de um animal bravo correu

    desvairada para ir despedaar a cabea contra a parede.Mas bastou a Blsamo estender para ela a mo e pronunciar do

    fundo da sua vontade, muito mais ainda que dos lbios, uma nica palavrapara que ela se detivesse; Lorenza, que j ia em caminho, cambaleou e

  • 7/30/2019 Alexandre Dumas - Memrias de um mdico 1 - Jos Blsamo 3

    29/200

    caiu adormecida nos braos de Blsamo.O estranho homem que parecia ter submetido todo o lado material

    desta mulher, mas que em vo lutava contra o lado moral, ergueu Lorenzanos braos, dirigiu-se para o quarto de dormir, e dep-la sobre a cama;deu-lhe ento um beijo ardente, fechou as cortinas do leito, depois as das

    janelas, e saiu.Quanto a Lorenza, um sono doce e benfico envolveu-a como omanto de uma boa me cobre a criana fraca que padeceu muito, quechorou muito.

    VI

    A VISITA

    Lorenza no se havia enganado. Uma carruagem, entrando pelabarreira de Saint-Denis, havia atravessado em toda a sua extenso obairro do mesmo nome.

    Esta carruagem conduzia, como a vidente o havia dito, o Sr. Lus deRohan, Bispo de Estrasburgo, cuja impacincia o obrigava a vir procurar,antes do tempo determinado, o feiticeiro na sua caverna.

    O cocheiro, a quem o grande nmero de aventuras galantes do bomprelado acostumara a andar durante a escurido, e a no temer os perigosde certas ruas misteriosas, no hesitou um s momento, quando, depoisde ter seguido pelo bairro de Saint-Denis e atravessado o de Saint-Martin,ainda povoados e alumiados, se viu obrigado a entrar no caminho desertoe sombrio da Bastilha.

    A carruagem parou na esquina da Rua de Saint-Claude, e segundo aordem do amo, foi esconder-se no beco, debaixo das rvores, numadistncia de vinte passos.

    Ento o senhor de Rohan, em traje de passeio, apeou-se e veio batertrs argoladas na porta do palcio que facilmente havia conhecido pelossinais que tinha recebido do conde de Fnix.

    Fritz atravessou o ptio; a porta abriu-se.- No aqui que mora o Sr. Conde de Fnix? perguntou o prncipe.- Sim, senhor - respondeu Fritz.- Est em casa?- Sim, senhor.

    - Ento queira dizer-lhe que desejo falar-lhe.- Sua Eminncia o Sr. Cardeal de Rohan, no verdade, senhor?O prncipe ficou admirado. Olhou para si, em torno de si, para ver se

    no seu fato ou no seu modo alguma coisa podia ter trado a sua qualidade.Estava s, e vestido de secular.

    - Como sabe o meu nome? - perguntou ele.- O meu amo acaba de me dizer, neste momento, que esperava por

    Sua Eminncia.- Sim, mas que me esperava amanh ou depois de amanh?- No, senhor, disse que o esperava esta tarde.- Seu amo acaba de lhe dizer que me esperava esta tarde?- Sim, senhor.- Bem, v ento preveni-lo - disse o cardeal metendo uma pea de

  • 7/30/2019 Alexandre Dumas - Memrias de um mdico 1 - Jos Blsamo 3

    30/200

    dois luses na mo de Fritz.- Ento - disse Fritz - d-se Vossa Eminncia ao incmodo de me

    seguir.O cardeal fez um sinal de assentimento com a cabea.Fritz caminhou num passo apressado para a porta da antecmara,

    que era alumiada por doze velas de um candelabro de bronze dourado.O cardeal seguiu admirado e pensativo.- Meu amigo - disse ele, parando na porta da sala - aqui h por fora

    engano, e nesse caso no quereria incomodar o conde; impossvel queele espere por mim, pois que ignora que eu havia de vir.

    - Sua Eminncia o Cardeal Prncipe de Rohan, Bispo deEstrasburgo? - perguntou Fritz.

    - Sim, meu amigo.- Ento Vossa Eminncia por quem meu amo espera.E acendendo sucessivamente as velas dos outros dois candelabros,

    Fritz inclinou-se e saiu.Cinco minutos se passaram durante os quais o cardeal, entregue a

    uma singular comoo, olhou para a moblia cheia de elegncia dessa salae para os oito quadros de grande autor, pendurados nas paredes.

    A porta abriu-se e apareceu o conde de Fnix no limiar.- Boa noite, senhor - disse ele simplesmente.- Disseram-me que me aguardava! - exclamou o cardeal sem

    responder a esse cumprimento - que esperava por mim hoje mesmo? impossvel.

    - Peo perdo, mas j o esperava - respondeu o conde.- Talvez duvide da verdade das minhas palavras vendo o frio

    acolhimento que lhe fao, mas, apenas chegado h alguns dias, aindaagora estou instalado. Desculpe-me, portanto, Vossa Eminncia.- Esperava-me! Mas quem o preveniu da minha visita?- O senhor mesmo.- Como?- A sua carruagem no parou nas barreiras de Saint-Denis?- Sim.- No chamou pelo criado da tbua, que veio falar com Vossa

    Eminncia ao postigo da carruagem?- Sim.- No lhe disse estas palavras: Rua de Saint-Claude, no Marais, pelo

    bairro de Saint-Denis, palavras estas que o lacaio foi repetir ao cocheiro?- Sim. Mas ento viu-me, ouviu-me?- Vi-o, senhor, ouvi-o.- Ento estava l?- No, senhor, no estava l.- E onde estava?- Estava aqui.- Viu-me e ouviu-me daqui?- Sim, senhor.- Ora adeus!- Esquece que sou feiticeiro?- Ah! verdade, esquecia, senhor... Como deverei chamar-lhe? Sr.

    Baro Blsamo ou Sr. Conde de Fnix?

  • 7/30/2019 Alexandre Dumas - Memrias de um mdico 1 - Jos Blsamo 3

    31/200

    - Em minha casa, senhor, no tenho nome, chamo-me o MESTRE.- Sim, o ttulo hermtico. Ento, mestre, esperava por mim?- Sim, senhor.- E havia aquecido os fornos do seu laboratrio?- O meu laboratrio est sempre pronto, senhor.

    - E permitir-me- l entrar?- Terei a honra de l conduzir Vossa Eminncia.- Segui-lo-ei, mas com uma condio.- Qual ?- que h-de prometer-me de me no pr pessoalmente em

    contacto com o Diabo. Tenho muito medo de Lcifer.- Oh! Senhor!- Sim, ordinariamente para fazer de diabo pega-se, num grande

    maroto qualquer, soldado das guardas francesas, ou algum mestre deesgrima, que, para desempenhar ao natural o papel de Satans, vaibatendo na gente, dando piparotes e apagando previamente as luzes.

    - Senhor - disse Blsamo sorrindo - nunca os meus diabos esquecemque esto tratando com prncipes, e trazem sempre na memria o dito dosenhor de Cond, que prometeu a um deles que se no estivesse quieto,tanto lhe havia de bater no forro que se veria obrigado a sair dele, ou aportar-se com mais decncia.

    - Bem - disse o cardeal - isso encanta-me; vamos ao laboratrio.- Vossa Eminncia quer dar-se ao incmodo de me seguir?- Vamos.

    VII

    O OURO

    O cardeal e Blsamo meteram-se por uma pequena escada, queconduzia paralelamente da sala grande para as do primeiro andar: ali,debaixo de uma abbada, abriu Blsamo uma porta, e o cardeal viu umcorredor escuro pelo qual entrou resolutamente.

    Blsamo tornou a fechar a porta.Ao rumor que essa porta fez para se fechar, olhou o cardeal para

    trs com certa comoo.- Senhor, estamos chegados - disse Blsamo - s nos falta abrir

    aquela porta que est diante de ns; mas previno-o para que se no

    assuste, que ao abrir-se h-de produzir um som estranho, por ser de ferro.O cardeal, que havia estremecido com a bulha da primeira porta,

    estimou ser prevenido a tempo, porque o ranger metlico dos gonzos dafechadura, haveria feito vibrar desagradavelmente nervos menossusceptveis que os seus.

    Desceu trs degraus e entrou. Um grande gabinete, com ovigamento descoberto no tecto, uma lmpada com um transparente,muitos livros, muitos instrumentos de qumica e fsica, tal era o primeiroaspecto desta nova casa.

    Ao cabo de alguns segundos sentiu o cardeal que j no respiravaseno a custo.

    - O que isto? - perguntou ele; - morre-se aqui abafado, mestre;corre-me o suor pela fronte. Que bulha esta?

  • 7/30/2019 Alexandre Dumas - Memrias de um mdico 1 - Jos Blsamo 3

    32/200

    - Eis aqui a causa, senhor, como diz Shakespeare respondeuBlsamo puxando uma grande cortina de amianto e descobrindo assim umgrande fornilho de tijolo no centro do qual cintilavam dois orifcios, comoos olhos do leo nas trevas.

    Este fornilho estava no centro de uma segunda casa, do duplo

    tamanho da primeira, e que o prncipe no tinha visto, porque ficavaescondida com a cortina de amianto.- Oh! Oh! - disse o prncipe recuando - isto no deixa de ser

    assustador.- um fornilho, senhor.- Sim, no h dvida, mas citou Shakespeare, e eu citarei Molire:

    h fornos de muitas qualidades, e este tem uma aparncia perfeitamentediablica, e o cheiro no me agrada. O que est cozendo?

    - O que Vossa Eminncia me pediu.- Como?- Sem dvida, parece-me que Vossa Eminncia me fez a merc de

    aceitar uma amostra do meu trabalho. Eu s devia trabalhar amanh noite, porque s depois de amanh esperava por Vossa Eminncia; mastendo Vossa Eminncia mudado de teno, assim que o vi em caminhopara a Rua de Saint-Claude, vim acender o fornilho e fiz a misto, de queresulta estar j fervendo, e antes de dez minutos ter o ouro de quecarece. Permita-me que abra os ventiladores das janelas para estabeleceruma corrente de ar.

    - Como! Esses cadinhos que esto sobre o forno...- Daqui a dez minutos ho-de fornecer-lhe ouro to puro como o dos

    cequins de Veneza e dos florins de Toscana.

    - Vejamos, se contudo possvel ver.- Certamente; s o que devemos fazer tomar algumas precauesindispensveis.

    - Quais?- Ponha sobre o rosto esta mscara de amianto com olhos de vidro,

    sem o que, o fogo to ardente, que lhe poderia queimar a vista.- Sim! Cuidado, que no graa; tenho muito amor aos meus olhos,

    e no os daria pelos cem mil escudos que me promete.- o que eu pensava, senhor; os olhos de Vossa Eminncia so belos

    e bons.O cumprimento no desagradou de modo algum ao prncipe, que era

    muito cioso da sua formosura.- Ah! Ah! - disse ele pondo a mscara. - Vamos ento ver ouro?- Assim o espero, senhor.- No valor de cem mil escudos?- Sim, senhor; talvez exceda um pouco, porque fiz a misto

    abundante.- O senhor realmente um feiticeiro generoso disse o prncipe

    alegre, sentindo palpitar-lhe o corao.- Menos que Vossa Alteza, que se digna dizer-mo. Agora, senhor,

    tenha a bondade de se afastar um pouco, para eu abrir a chapa docadinho.

    Blsamo vestiu uma pequena tnica de amianto, agarrou com o seubrao vigoroso numa tenaz de ferro, e levantou uma tampa vermelha pelo

  • 7/30/2019 Alexandre Dumas - Memrias de um mdico 1 - Jos Blsamo 3

    33/200

    ardor do fogo, o que deixou ver quatro cadinhos de forma semelhante,contendo uns uma mistura da cor do vermelho, e os outros uma matriaj embranquecida, mas que conservava ainda um resto de transparnciapurpurina.

    - isso o ouro! - disse o prelado a meia voz, como se receasse

    perturbar por uma palavra pronunciada em voz demasiado alta o mistrioque diante dele se ia verificar.- Sim, senhor, estes quatro cadinhos esto por escala: uns que

    cozem em doze horas, outros em onze. A misto, isso um segredo queeu revelo a um amigo da cincia, no se vasa naquela matria seno nomomento da ebulio. Mas, como Vossa Eminncia o pode ver, a se vaitornando branco o primeiro cadinho; tempo de transvazar a matriachegada ao ponto necessrio. Queira afastar-se um pouco, senhor.

    O prncipe obedeceu com a mesma pontualidade de um soldado ordem do seu chefe. E Blsamo, largando a tenaz de ferro, j quente pelocontacto com os cadinhos, aproximou do fornilho uma espcie de bigornacom rodas, sobre a qual estavam presas entre barras de ferro oito formascilndricas.

    - O que isto, querido feiticeiro? - perguntou o prncipe.- Isto, senhor, a forma comum na qual vou vazar as suas barras de

    ouro.- Ah! Ah! - disse o prncipe, e dobrou de ateno.Blsamo estendeu no cho uma camada de estopa. Colocou-se

    entre a bigorna e o fornilho, abriu um grande livro, recitou, de varinha namo, uma encantao, depois pegando numa tenaz gigantesca, destinadaa agarrar o cadinho entre os braos tortos, disse:

    - O ouro h-de ser ptimo, senhor, e da primeira qualidade.- Como! - perguntou o prncipe - vai pegar nesse vaso de fogo?- Que pesa cinqenta arrteis, sim, senhor, oh! Poucos qumicos,

    declaro-lhe, tm a minha destreza e os meus msculos, no receie coisaalguma.

    - Mas se o cadinho rebentasse...- J me aconteceu isso uma vez, senhor; era em 1399, estava eu

    fazendo uma experincia com Nicolau Flamel, na sua casa da Rua dosEscrives, ao p da capela de Saint-Jacques-la-Boucherie. O pobre Flamelesteve a ponto de perder a vida, e eu perdi vinte e sete marcos de umasubstncia ainda mais preciosa que o ouro.

    - Que diacho me est dizendo, mestre?- A verdade.- Em 1399, j andava trabalhando na grande obra?- Sim, senhor.- Com Nicolau Flamel?- Com Nicolau Flamel; achamos juntos o segredo, cinqenta ou

    sessenta anos antes, quando trabalhvamos com Pedro o Bom, na cidadede Pola. Ele no tapou o cadinho com a necessria ligeireza, e eu perdi oolho direito por dez ou doze anos, que se me queimou pela evaporao.

    - Pedro o Bom?- O que comps a famosa obra de Margarita Pretiosa, obra que

    certamente conhece.- Sim, e que tem a data de 1330.

  • 7/30/2019 Alexandre Dumas - Memrias de um mdico 1 - Jos Blsamo 3

    34/200

    - isso exactamente, senhor.- E conheceu Pedro o Bom e Flamel?- Fui discpulo de um e mestre do outro.E enquanto o cardeal, aterrado, perguntava a si mesmo se no era o

    diabo em pessoa e no um dos seus delegados que estava ao p de si,

    Blsamo meteu no forno os compridos braos da sua tenaz.O aperto foi seguro e rpido. O alquimista agarrou bem o cadinho,levantou-o um pouco para certificar-se de que estava bem seguro; depois,com um esforo vigoroso, tirou uma formidvel marmita do centro do seuforno ardente: os braos da tenaz fizeram-se logo vermelhos; depois sobrea argila incandescente, viram-se correr sulcos brancos como relmpagosnuma nuvem sulfrea; depois as bordas do cadinho mudaram para umacor de vermelho-escuro, enquanto o fundo cnico aparecia ainda cor-de-rosa e prateado na penumbra do fornilho; depois, finalmente, o metallquido sobre cuja superfcie se formava uma capa roxa com pregasdouradas, sibilou pelo bico do cadinho, e correu em jorros chamejantes naforma negra, a cujo orifcio apareceu, furiosa e espumante, a toalha deouro, insultando com seus estremecimentos o metal vil que a continha.

    - Vamos ao segundo - disse Blsamo com a maior impassibilidade.E a segunda forma encheu-se com a mesma fora e destreza.O suor corria pela fronte do operador; o espectador benzia-se na

    sombra.Com efeito era um quadro selvagem de horrorosa majestade.

    Blsamo, em cujo rosto se projectavam os reflexos vermelhos da chamametlica, parecia-se com os condenados que Miguel ngelo e o Dantetorcem no fundo das suas caldeiras.

    Blsamo nem respirou entre as duas operaes, o tempo urgia.- H-de haver alguma quebra - disse ele depois de ter enchido asegunda forma; - deixei ferver a mistura um centsimo de minuto de mais.

    - Um centsimo de minuto! - bradou o cardeal no procurando maisocultar a sua estupefaco.

    - Em hermtica, um tempo enorme, senhor redargiu Blsamolhanamente; - mas entretanto, Eminncia, eis aqui dois cadinhos vazios eduas formas cheias, o que equivale a cem libras de ouro fino.

    E agarrando, com auxlio das suas poderosas tenazes, a primeiraforma, deitou-a dentro de gua, que ferveu e produziu vapores durantemuito tempo; depois abriu-a, e tirou de dentro um pedao de ouro.

    - Temos que esperar perto de uma hora por causa dos outros doiscadinhos - disse Blsamo; - se entretanto Vossa Eminncia quiser, podesentar-se ou ento respirar um pouco de ar fresco.

    - Ento isto ouro? - perguntou o cardeal sem responder sperguntas do operador.

    Blsamo sorriu. O cardeal olhava para o ouro.- E duvidaria, senhor?- A cincia tem-se enganado tantas vezes...- No me diz tudo quanto pensa, meu prncipe disse Blsamo. -

    Julga que o engano e que o engano conscientemente. Senhor, eu seria umente bem insignificante a meus prprios olhos, se assim procedesse,porque as minhas ambies no iriam alm das paredes do meu gabinete,que o veriam sair maravilhado para ir perder a sua admirao na loja do

  • 7/30/2019 Alexandre Dumas - Memrias de um mdico 1 - Jos Blsamo 3

    35/200

    primeiro batedor de ouro que encontrasse. Vamos, vamos, meu prncipe,faa-me mais honra, e acredite que se o quisesse enganar, seria maishabilmente e com um fim mais elevado. Demais, Vossa Eminncia sabecomo se experimenta o ouro?

    - Sem dvida, com a pedra.

    - Vossa Eminncia no pode deixar de ter feito essa experincia,ainda que no fosse seno com as onas espanholas, que aparecem muitono jogo, e que so de ouro mais fino que se possa achar, mas entre asquais h muitas que so falsas.

    - Na realidade j me tem acontecido isso.- Pois ento, senhor, aqui est uma pedra e cido.- No preciso, estou convencido.- Senhor, faa-me o favor de se certificar de que no s estas barras

    so de ouro, mas tambm que so de ouro sem liga.Ao cardeal parecia repugnar essa prova de incredulidade e todavia

    conhecia-se visivelmente que no estava convencido.O prprio Blsamo fez a prova das barras e submeteu o resultado ao

    exame do cardeal.- Vinte e oito quilates - disse ele; - agora vou vazar os outros dois

    cadinhos.Dez minutos depois estavam as duzentas libras de ouro divididas em

    quatro barras colocadas sobre a cama de estopa.- Vossa Eminncia veio de carruagem, no verdade? Pelo menos,

    quando o vi caminhar nesta direco, vinha de carruagem.- Sim.- Vossa Eminncia mandar chegar a carruagem porta, e o meu

    lacaio lhe levar as barras de ouro.- Cem mil escudos! - murmurou o cardeal tirando a mscara comopara ver com os seus prprios olhos o ouro que estava