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O Visconde de Bragelonne Alexandre Dumas

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  • Alexandre DumasO Visconde de Bragelonne

    PUBLICADO EM 6 VOLUMES

    Ttulo do original francs: LE VICOMTE DE BRAGELONNEPrimeira publicao: 1847

    Ilustraes - NICO ROSSO e J.A. BEAUC

    Traduo e notas de OCTAVIO MENDES CAJADO

    1963A propriedade literria desta traduo, realizada na ntegra do texto original francs, foi adquirida por

    SARAIVA S. A. LIVREIROS EDITORES SO PAULO

  • Parte I - O Visconde de Bragelonne

    Parte II - Dez Anos DepoisParte III - Lusa de La Vallire

    Parte IV - O Homem da Mscara de Ferro

  • Parte I - O Visconde de Bragelonne

  • Captulo I - A carta

    M meados do ms de maio do ano de 1660, s nove horas da manh, quando o sol, jquente, secava os goiveiros do castelo de Blois, pequena cavalgata, composta de trshomens e dois pajens, tornava a entrar pela ponte da cidade sem produzir outro efeitosobre os que passeavam ao longo do cais que um primeiro movimento da mo cabea

    para saudar, e um segundo movimento da lngua para exprimir esta idia no mais puro francs que sefala em Frana:

    Eis Monsieur que volta da caa. E mais nada.Entretanto, ao passo que os cavalos subiam o aclive que do rio conduz ao castelo, vrios caixeiros

    de lojas se avizinharam do ltimo cavalo, que trazia, pendurados no aro da sela, diversos pssarospresos pelo bico.

    A essa vista, manifestaram os curiosos com rstica franqueza o seu desdm de to magra presa, eaps dissertarem sobre as desvantagens da caa ao vo, tornaram s suas ocupaes. S um curioso,um rapaz gorducho, bochechudo e alegre, perguntou por que cargas d'gua Monsieur, que podiadivertir-se tanto, merc de seus pingues rendimentos, se contentava de to chcha distrao.

    Ento, no sabes responderam-lhe que o principal divertimento de Monsieur entediar-se?

    O rapaz deu jovialmente de ombros, como quem diz: Nesse caso, prefiro ser Joo panudo a ser prncipe. Entrementes, Monsieur continuava o seu

    caminho com ar to melanclico e majestoso ao mesmo tempo, que teria por certo provocado aadmirao dos espectadores, se os tivesse; mas os burgueses de Blois no perdoavam a Monsieur oter escolhido a sua alegre cidade para nela aborrecer-se vontade; e toda vez que avistavam oaugusto enfastiado esquivavam-se bocejando ou retiravam a cabea da janela, para fugir soporficainfluncia daquele rosto plido e comprido, daqueles olhos encovados e daquele porte langoroso. Desorte que o digno prncipe tinha a quase certeza de encontrar as ruas desertas sempre que nelas searriscava.

    Ora, isso constitua da parte dos habitantes de Blois criminosa irreverncia, pois Monsieur, depoisdo rei, e talvez at antes do rei, era o fidalgo mais importante do reino. Com efeito, Deus queconcedera a Lus XIV, ento reinante, a aventura de ser filho de Lus XIII, concedera a Monsieur ahonra de ser filho de Henrique IV. Por conseguinte no era, ou pelo menos no devia ser, pequenomotivo de orgulho para a cidade de Blois a preferncia que lhe dera Gasto de Orlans, instalando asua corte no antigo castelo dos Estados.

    Mas era o destino desse grande prncipe despertar mediocremente, onde quer que se encontrasse, aateno do pblico e a sua admirao. E, com o hbito, acabara Monsieur acostumando-se a issoTalvez fosse essa a razo de seu ar de tranqilo fastio. Andara ocupadssimo a vida inteira. Nopodemos deixar que cortem a cabea de uma dzia de nossos melhores amigos sem que isso noscause algum aborrecimento. Ora, como aps o advento do Sr. Mazarino no se cortara a cabea deningum, Monsieur j no tinha o que fazer e disto se lhe ressentia o moral.

    A existncia do pobre prncipe era, portanto, muito triste. Aps a breve caada matutina smargens do Beuvron ou nos bosques de Chiverny, Monsieur atravessava o Rio Loire, ia almoar emChambord com ou sem apetite, e a cidade de Blois no ouvia mais falar, at caada seguinte, de seusoberano e senhor.

  • Isso no tocante ao tdio extramuros; quanto ao tdio dentro de casa, daremos dele uma idia aoleitor que acompanhar conosco a cavalgata e subir ao prtico majestoso do castelo dos Estados.

    Monsieur montava um cavalinho passeiro, arreado com sela grande de veludo vermelho deFlandres, e estribos em forma de borzeguins; o cavalo era arruivasiado; o gibo de Monsieur, feitode veludo carmesim, confundia-se com a capa do mesmo tom, com os arreios do cavalo e somentepor esse conjunto avermelhado se podia reconhecer o prncipe entre os dois companheiros, quevestiam de roxo e de verde, respectivamente. O da esquerda, vestido de roxo, era o escudeiro; o dadireita, vestido de verde, era o monteiro-mor.

    Um dos pajens trazia dois gerifaltes num poleiro, o outro um corno de caa, no qual soprou,indiferente, a vinte passos do castelo. Tudo o que rodeava o prncipe indolente fazia com indolnciao que tinha de fazer.

    A esse sinal, oito guardas, que passeavam ao sol no ptio quadrado, foram buscar correndo asalabardas, e Monsieur fez a sua entrada solene no castelo.

    Quando ele desapareceu sob as profundezas do prtico, trs ou quatro mandries, que tinhamsubido da praa ao castelo atrs da cavalgata, mostrando uns aos outros os pssaros abatidos,dispersaram-se, tecendo tambm os comentrios sobre o que acabavam de ver; depois, quando seforam, a rua, a praa e o ptio ficaram desertos.

    Monsieur apeou sem dizer uma palavra, passou aos seus aposentos, onde um criado grave lhetrocou a roupa, e como Madame ainda no tivesse mandado anunciar o almoo, refestelou-se numcanap e dormiu com to boa vontade como se fossem onze horas da noite.

    Compreendendo que o seu servio daquele dia terminara, os oito guardas se deitaram em bancosde pedra, ao sol; os palafreneiros desapareceram com os cavalos nas cocheiras e afora umasavezinhas que se espantavam umas s outras, com os chilros agudos, nas moitas de goiveiros, dir-se-ia que tudo no castelo estivesse dormindo como monsenhor.

    De repente, no meio do silncio to doce, ouviu-se uma gargalhada nervosa, estridente, que levoualguns alabardeiros mergulhados no sono a abrirem um olho.

    O frouxo de riso partia de uma janela do castelo, visitada naquele instante pelo sol, que a incluanum desses grandes ngulos desenhados antes do meio-dia, nos ptios, pelos perfis das chamins.

    Enfeitavam o balcozinho de ferro cinzelado, contguo janela, um vaso de goivos encarnados,outro de primaveras, e uma roseira tmpora, cuja folhagem, de um verde magnfico, entremostravadiversas palhetas vermelhas, que anunciavam rosas.

    No quarto iluminado pela janela via-se uma mesa quadrada, revestida de um pano antigo, em quese estampavam flores de Harlem; no centro da mesa um jarro de loua, de gargalo comprido, noqual mergulhavam lrios e aucenas; em cada ponta da mesa, uma menina.

    Era singular a atitude das duas crianas: dir-se-iam duas pensionistas fugidas do convento. Uma,com os cotovelos apoiados sobre a mesa, uma pena na mo, estava escrevendo numa folha de papelde Holanda; a outra, de joelhos sobre uma cadeira, o que lhe permitia altear a cabea e o busto porcima do espaltar e at sobre a mesa, via a companheira escrever. Da mil gritinhos, mil gracejos, milcasquinadas, uma das quais, mais estridente do que as outras, espantara os passarinhos dos goiveirose perturbara o sono dos guardas de Monsieur.

    J que estamos nos retratos, esperamos que nos perdoem os dois ltimos deste captulo.A que se apoiara sobre a cadeira, isto , a barulhenta, a folgazona, era uma linda rapariga de seus

    dezenove ou vinte anos, trigueira, de cabelo castanho, deslumbrante, pelos olhos acesos debaixo dassobrancelhas vigorosamente traadas, e sobretudo pelos dentes, que rebrilhavam como prolas sobos lbios de sangrento coral.

  • Cada um de seus movimentos parecia o resultado do jogo de um mimo; ela no vivia, cabriolava.A outra, a que estava escrevendo, considerava a turbulenta companheira com olhos azuis, lmpidos

    e puros como o cu daquele dia. O cabelo, de um loiro acinzentado, anelado com admirvel bomgosto, caa-lhe em cachos sedosos sobre as faces nacaradas; passeava sobre o papel a mo fina, mascuja magreza lhe traa a extrema juventude.

    A cada cascalhada da amiga, erguia, como agastada, os ombros muito alvos, de forma potica esuave, mas a que faltava o luxo de vigor e de contornos que se lhe desejariam ver nos braos e nasmos.

    Montalais! Montalais! disse ela, afinal, com voz doce e cariciosa como um canto rismuito alto, ris como um homem; no s chamars a ateno dos senhores guardas, mas tambm noouvirs o sino de Madame, quando Madame chamar.

    Sem parar de rir e de gesticular, a jovem a que chamavam Montalais respondeu: Lusa, no dizes o que pensas, minha cara; sabes que os senhores guardas, como lhes chamas, j

    comeam a dormir e nem o canho poderia despert-los; sabes que o sino de Madame se ouve desdea ponte de Blois e que, portanto, o ouvirei quando o servio me chamar para junto de Madame. O quete arrelia que rio quando escreves; o que receias que a Sra. de Saint-Remy, tua me, suba ataqui, como acontece s vezes quando rimos demais; no queres que ela nos surpreenda e veja essaenorme folha de papel em que, h mais de um quarto de hora, s escreveste duas palavras: Sr. Raul.Ora, tens razo, minha querida Lusa, porque depois dessas palavras, Sr. Raul, podemos escrevertantas outras, to significativas e to incendirias, que a Sra. de Saint-Remy, tua querida me, teria odireito de expedir fogo e chamas. Hein, no isso mesmo?

    E Montalais redobrava as risadas e provocaes turbulentas.A loira menina agastou-se de uma vez; rasgou o papel em que as palavras Sr. Raul, com efeito,

    tinham sido escritas com bonita letra e, amarrotando os pedaos com os dedos trmulos, atirou-ospela janela.

    Pronto! acudiu a Srta. de Montalais o nosso cordeirinho, o nosso Menino Jesus, a nossapomba se enfadou!... No tenhas medo, Lusa; a Sra. de Saint-Remy no vir, e ainda que viesse,sabes que tenho os ouvidos aguados. Alm disso, nada mais natural do que escrever a um velhoamigo de doze anos, mormente quando se comea a carta por estas palavras: Sr. Raul.

    Est bem, no escreverei disse a menina. Ah! agora sim, Montalais est bem castigada! exclamou, rindo sempre, a morena galhofeira. Vamos, vamos, outra folha de papel e terminemos depressa o nosso correio. Bom! o sino est

    tocando! Pois tanto pior! Madame esperar ou dispensar hoje cedo a sua primeira aia!De fato, um sino tocava, anunciando que Madame acabara de vestir-se e esperava Monsieur, que

    lhe dava a mo para passarem do salo ao refeitrio.Executada com grande cerimnia essa formalidade, os dois esposos almoavam e separavam-se

    at a hora do jantar, invariavelmente marcado para as duas da tarde.O som do sino fez que se abrisse na copa, situada esquerda do ptio, uma porta pela qual

    desfilaram dois mordomos, seguidos de oito moos da cozinha, que carregavam uma padiola cheia deiguarias cobertas de redomas de prata.

    Um dos mordomos, que parecia o mais importante, tocou silenciosamente com a varinha um dosguardas que roncava sobre um banco; levou at a sua bondade a enfiar nas mos desse homem,bbedo de sono, a alabarda encostada no muro, perto dele; depois, sem pedir a menor explicao, osoldado escoltou ao refeitrio a vianda de Monsieur, precedida de um pajem e dos dois mordomos.

    Por onde quer que passasse a vianda, as sentinelas apresentavam armas.

  • A Srta. de Montalais e sua companheira tinham acompanhado da janela todos os pormenores docerimonial, a que entretanto, j deviam estar acostumadas. Mas o caso que olhavam com tantacuriosidade para ter ainda maior certeza de que no seriam incomodadas. E assim que passaram osbichos da cozinha, guardas, pajens e mordomos, voltaram a sentar-se mesa, e o sol, que, no quadroda janela, alumiara por instantes os dois rostos encantadores, tornou a alumiar apenas os goivos, asprimaveras e a roseira.

    No faz mal! disse Montalais, tornando ao seu lugar. Madame almoar sem mim. Oh! Montalais, sers punida acudiu a companheira, sentando-se no seu. Punida? Ah! sim, quer dizer, ficarei sem passeio; pois precisamente o que eu quero! Sair

    naquele coche enorme, empoleirada numa portinhola; virar esquerda, virar direita, por caminhoscheios de carris, em que a gente leva duas horas para andar uma lgua; depois voltar direito para aala do castelo em que est a janela de Maria de Medleis para que Madame possa dizer,invariavelmente: "Ningum seria capaz de imaginar que foi por a que fugiu a Rainha Maria!...

    Quarenta e sete ps de altura!... A me, os dois prncipes e as trs princesas!" Se isso divertido,Lusa, quero ser punida todos os dias, mormente quando a punio consiste em ficar contigo eescrever cartas to interessantes como as que escrevemos.

    Montalais! Montalais! temos obrigaes que cumprir. Falas vontade, meu corao, tu que vives livre no meio desta corte. s a nica que recolhe as

    vantagens sem ter os encargos dela, tu que s mais aia de Madame do que eu mesma, pois recebespor tabela o afeto de Madame a teu padrasto; de sorte que entras nesta triste casa como ospassarinhos nesta torre, respirando o ar, beijando as flores, mordiscando as sementes, sem ter omnimo servio que fazer, sem a menor maada que suportar. Tu me falas em obrigaes!

    Pois sim, minha bela preguiosa, e quais so as tuas, se no escrever ao belo Raul? E assimmesmo, como no lhe escreves, parece-me que tambm te descuidas um pouco das tuas obrigaes.

    Lusa reassumiu o ar srio, apoiou o queixo sobre a mo e, em tom cheio de candura: Censuras o meu bem-estar disse ela. Tens coragem? Tu, que tens um futuro, que pertences

    corte; o rei, se casar, chamar Monsieur para junto de si; vers festas esplndidas, vers o rei, quedizem to belo, to encantador.

    E verei Raul, que est junto do senhor prncipe acrescentou, maliciosa, Montalais. Pobre Raul! suspirou Lusa. Eis o momento de escrever-lhe, minha cara; vamos, recomecemos aquele clebre Sr. Raul, que

    brilhava no alto da pgina rasgada.E, estendendo-lhe a pena, com encantador sorriso, apertou-lhe a mo, que logo traou as palavras

    citadas. E agora? perguntou a mais moa das duas. Agora, escreve o que pensas, Lusa respondeu Montalais. Tens absoluta certeza de que penso alguma coisa? Pensas em algum, o que d no mesmo, ou antes, o que muito pior. Achas, Montalais? Lusa, Lusa, os teus olhos azuis so profundos como o mar que vi em Bolonha no ano passado.No, engano-me, o mar prfido, os teus olhos so profundos como o firmamento que brilha l em

    cima, sobre as nossas cabeas. Vou terminar, Montalais. Pois seja! Visto que ls to bem nos meus olhos, dize-me o que penso, Montalais. Primeiro, no pensas no Sr. Raul; pensas no Meu caro Raul.

  • Oh! No cores por to pouco. Meu caro Raul, dizamos ns, vs me suplicais que vos escreva para

    Paris, onde vos retm o servio do senhor prncipe. preciso que vos enfastieis supinamente a parabuscardes distraes na lembrana de uma provinciana...

    Ergueu-se Lusa de repente. No, Montalais disse ela, a sorrir no, no penso nada disso. Eis o que penso.E tomando, afoita, da pena, escreveu com mo firme as palavras seguintes:

    "Eu me teria sentido extremamente infeliz se as vossas instncias para obter de mim umalembrana tivessem sido menos veementes. Tudo aqui me fala de nossos primeiros anos,que passaram to depressa e to docemente fugiram, que outros jamais conseguirosubstituir-lhes o encanto em meu corao".

  • Montalais, que observava o deslizar da pena, e lia proporo que escrevia a amiga, interrompeu-

    a batendo palmas. Ainda bem! disse ela isso franqueza, isso corao, isso estilo! Mostra a esses

    parisienses, minha cara, que Blois a cidade em que melhor se fala a nossa lngua. Ele sabe que para mim respondeu a menina Blois foi o paraso. Era o que eu queria dizer, e falas como um anjo. Vou terminar, Montalais. E de fato, continuou: "Dizeis que pensais em mim, Sr. Raul; eu

    vos agradeo; mas isso no me pode surpreender, a mim que sei quantas vezes bateram juntos osnossos coraes".

    Oh! oh! sobreveio Montalais toma cuidado, meu cordeiro, espalhas a tua l e h muitolobo por a.

  • Lusa ia responder quando se ouviu o galope de um cavalo sob o prtico do castelo. Que isso? perguntou Montalais acercando-se da janela. Que belo cavaleiro, sim,

    senhor! Oh! Raul! exclamou Lusa, que fizera o mesmo movimento e, empalidecendo muito, foi cair

    palpitante ao p da carta inacabada. Palavra que ainda no vi namorado mais hbil nem mais oportuno! acudiu Montalais. Afasta-te, afasta-te, eu te suplico! murmurou Lusa. Ora! ele no me conhece; deixa-me ver o que vem fazer aqui.

  • Captulo II - O mensageiro

    INHA razo a Srta. de Montalais: o jovem cavaleiro era de encher o olho. Rapaz de vinte equatro a vinte e cinco anos, alto, robusto, levava graciosamente sobre os ombros oencantador uniforme militar do tempo. As grandes botas afuniladas encerravam um p deque no coraria a Srta. de Montalais se se disfarasse de homem.

    Com uma das mos finas e nervosas sofreou o cavalo no meio do ptio e com a outra ergueu ochapu de longas plumas, que lhe sombreava a fisionomia grave e ingnua ao mesmo tempo.

    Ao estrpito do animal, os guardas acordaram e ergueram-se em p.O jovem deixou que um deles se aproximasse e, inclinando-se, com voz clara e precisa

    perfeitamente ouvida da janela em que se escondiam as duas meninas: Um mensageiro para Sua Alteza disse ele. Ah! ah! exclamou o guarda; oficial, um mensageiro! Mas o bravo soldado sabia muito

    bem que no surgia nenhum oficial, visto que o nico que poderia surgir morava nos fundos docastelo, num apartamentozinho que dava para o jardim. Da que se apressasse em ajuntar:

    Meu fidalgo, o oficial est de ronda, mas, em sua ausncia, mandaremos avisar o mordomo, oSr. de Saint-Remy.

    O Sr. de Saint-Remy! repetiu, enrubescendo, o cavaleiro. Vs o conheceis? Sim, sim... Avisai-o, por favor para que a minha visita seja anunciada o quanto antes a Sua

    Alteza. Parece que o negcio urgente atalhou o guarda, como se falasse consigo mesmo, mas na

    esperana de obter uma resposta.O mensageiro fez um sinal afirmativo. Nesse caso voltou o guarda eu mesmo vou procurar o mordomo.Entrementes, o rapaz apeou e ao passo que os outros soldados observavam, curiosos, cada

    movimento do belo cavalo, o soldado regressou dizendo: Perdo, meu fidalgo, mas o vosso nome, por favor? O Visconde de Bragelonne, da parte de Sua Alteza o Sr. Prncipe de Conde.Fez o soldado profunda reverncia, e como se o nome do vencedor de Rocroi e de Lens lhe desse

    asas, subiu rapidamente a escada para chegar s antecmaras.O Sr. de Bragelonne no tivera tempo sequer de amarrar o cavalo s grades de ferro do ptio,

    quando surgiu, sem flego, o Sr. de Saint-Remy, segurando o ventre enorme com uma das mosenquanto fendia o ar com a outra como fende as guas o pescador manejando o remo.

    Ah! senhor visconde, estais em Blois! exclamou. Que maravilha! Bom-dia, Sr. Raul,bom-dia!

    Mil respeitos, Sr. de Saint-Remy. Como a Sra. de La Valli... quero dizer, como a Sra. de Saint-Remy, ficar contente em ver-vos!

    Mas vinde. Sua Alteza Real est almoando; ser preciso interromp-lo? coisa grave? Sim e no, Sr. de Saint-Remy. Contudo, um instante de atraso poderia acarretar alguns

    dissabores a Sua Alteza Real. Se assim , transgridamos a ordem, senhor visconde. Vinde. Alis, Monsieur est hoje de

    excelente humor. E, alm disso, vs nos trazeis notcias, no verdade?

  • Grandes notcias, Sr. de Saint-Remy. Boas? Excelentes. Ento vinde depressa, depressa! exclamou o mordomo, que se compunha enquanto

    caminhava.Raul seguiu-o com o chapu na mo e um pouco assustado com o rudo solene que faziam as suas

    esporas sobre o soalho das salas imensas.Tanto que desapareceu no interior do palcio, repovoou-se a janela do ptio e um cochichar

    animado traiu a comoo das duas meninas; no tardaram em tomar uma resoluo, pois uma dasfiguras sumiu da janela: era a cabea morena; a outra quedou atrs do balco, escondida debaixo dasflores, considerando atentamente, por entre as folhas, a escada pela qual entrara no palcio o Sr. deBragelonne.

    Entretanto, o objeto de tamanha curiosidade continuava seu caminho seguindo as pegadas domordomo. Um rudo de passos apressados, uma fragrncia de vinhos e de carnes, um tinido decristais e de pratos lhe anunciaram o termo do percurso.

    Reunidos na copa que precedia o refeitrio, pajens, lacaios e oficiais acolheram o recm-chegadocom a proverbial polidez da regio; alguns conheciam Raul, quase todos o sabiam vindo de Paris.Poderia dizer-se que a sua chegada suspendeu, por instantes, o servio.

    O fato que um pajem, que enchia o copo de Sua Alteza, ouvindo esporas no aposento vizinho,voltou-se como uma criana, sem perceber que continuava a deitar o lquido, no mais no copo doprncipe, mas na toalha.

    Madame, que no estava to preocupada quanto o seu glorioso esposo, observou a distrao dopajem.

    E ento? disse ela. E ento? repetiu Monsieur que aconteceu?O Sr. de Saint-Remy, que enfiara a cabea pela porta, aproveitou a ocasio. Por que me interrompem? perguntou Gasto, transferindo para o seu prato belssima posta de

    um dos maiores salmes que j subiram o Loire para se deixarem pescar entre Paimboeuf e Saint-Nazaire.

    Chegou um mensageiro de Paris. Oh! mas isso pode ficar para depois do almoo de monsenhor;temos tempo.

    De Paris! exclamou o prncipe, deixando cair o garfo. Dissestes um mensageiro de Paris?Da parte de quem?

    Da parte do senhor prncipe apressou-se em dizer o mordomo.Sabe-se que era assim chamado o Sr. de Conde. Um mensageiro do senhor prncipe? tornou Gasto com um desassossego que no escapou a

    nenhum dos circunstantes e que, portanto, redobrou a curiosidade geral.Monsieur cuidou-se talvez de novo no tempo das bem-aventuradas conspiraes, quando o rudo

    das portas lhe produzia emoes, quando cada carta podia encerrar um segredo de Estado, quandotoda mensagem servia a uma intriga sombria e complicadssima. E o grande nome do senhor prncipequi ressoasse tambm sob as abbadas de Blois com as propores de um abantesma.

    Monsieur empurrou o prato. Fao esperar o enviado? perguntou o Sr. de Saint-Remy. Um olhar de Madame animou

    Gasto, que replicou: No, fazei-o entrar incontinenti; a propsito, quem ?

  • Um fidalgo das redondezas, o Sr. Visconde de Bragelonne. Ah! sim, muito bem!... Trazei-o, Saint-Remy, trazei-o.E depois de haver pronunciado essas palavras com a costumeira gravidade, Monsieur considerou

    de certo modo as pessoas de seu servio, todas as quais, pajens, oficiais e escudeiros, largaram oguardanapo, a faca, o copo, e executaram, na direo do aposento contguo, uma retirada to rpidaquo desordenada.

    O pequeno exrcito separou-se em duas filas quando, precedido do Sr. de Saint-Remy, Raul deBragelonne entrou no refeitrio.

    O breve momento de solido em que o deixara a retirada havia permitido a monsenhor assumiruma atitude diplomtica. No se voltou, e esperou que o mordomo conduzisse sua frente omensageiro.

    Raul estacou altura da extremidade inferior da mesa, de modo que se colocou entre Monsieur eMadame. Da fez a Monsieur rasgada cortesia e outra, humlima, a Madame. Em seguida, endireitou-se e esperou que Monsieur lhe dirigisse a palavra.

    O prncipe, de seu lado, esperava que as portas fossem hermeticamente fechadas; no queriavoltar-se para certificar-se disso, que seria descer da sua dignidade, mas era todo ouvidos ao rudoda fechadura, que lhe prometia, ao menos, uma aparncia de sigilo.

    Fechada a porta, Monsieur ergueu os olhos para o Visconde de Bragelonne e disse-lhe: Parece que chegais de Paris, senhor? Nesse instante, monsenhor. Como est passando o rei? Sua Majestade goza de perfeita sade, monsenhor. E minha cunhada? Sua Majestade, a rainha-me, continua a sofrer do peito. Mas faz um ms que melhorou. Disseram-me que vnheis da parte do senhor prncipe. Foi engano, no foi? No, monsenhor: o senhor prncipe encarregou-me de entregar a Vossa Alteza Real esta carta,

    cuja resposta esperarei.Raul sentira-se um tanto comovido com a fria e meticulosa acolhida e a voz, insensivelmente,

    baixara-lhe de tom.O prncipe esqueceu-se de que era ele a causa do mistrio e voltou a sentir medo.Recebeu com um olhar de espanto a carta do Prncipe de Conde, abriu-a como quem abre um

    embrulho suspeito, e, a fim de l-la sem que ningum pudesse observar o efeito por ela produzido emsua fisionomia, voltou-se.

    Madame seguia com ansiedade quase igual do marido cada uma das suas manobras.Impassvel, e j mais desacanhado pela ateno dos donos da casa, examinava Raul do seu lugar,

    atravs da janela aberta, os jardins e as esttuas que os povoavam. Ah! sim, senhor exclamou de sbito Monsieur com um sorriso radiante eis uma agradvel

    surpresa e uma carta encantadora do senhor prncipe! Vede, senhora.O tamanho da mesa no permitia que o brao do prncipe atingisse a mo da princesa; Raul deu-se

    pressa em servir-lhes de intermedirio; f-lo com uma graa que encantou a princesa e que lhe valeuum lisonjeiro agradecimento.

    Conheceis o contedo desta carta, sem dvida? perguntou Gasto a Raul. Conheo, monsenhor: o senhor prncipe me dera primeiro o recado verbalmente; depois Sua

    Alteza refletiu e tomou da pena. A letra bonita disse Madame mas no posso ler.

  • Fareis o obsquio de ler para Madame, Sr. de Bragelonne? disse o duque. Lede, por favor.Raul encetou a leitura, a que Monsieur tornou a emprestar toda a ateno.A carta dizia deste teor:

    "Monsenhor,"El-rei parte para a fronteira;"Vossa Alteza j ter sabido que vai concluir-se o casamento de Sua Majestade; el-rei fez-me a honra de nomear-me quartel-mestre para a viagem, e como sei da grande satisfaoque teria Sua Majestade em passar um dia em Blois, atrevo-me a pedir a Vossa Alteza Realque me permita designar para tanto o seu castelo."Se, porm, o imprevisto do pedido vier a causar a Vossa Alteza Real algum embarao,suplico-lhe que me mande diz-lo por intermdio do mensageiro que lhe envio, um de meusfidalgos, o Sr. Visconde de Bragelonne."O meu itinerrio depender da resoluo de Vossa Alteza Real e, em vez de passar porBlois, indicarei Vendme ou Romorantin. Ouso esperar que Vossa Alteza Real tome boaparte o meu pedido, expresso do meu devotamento sem limites e do meu desejo de lhe seragradvel".

    No h nada mais lisonjeiro para ns disse Madame, que consultara vrias vezes, durante a

    leitura, os olhos do marido. O rei aqui! exclamou em tom porventura um pouco alto para que osegredo continuasse guardado.

    Senhor disse por sua vez Sua Alteza, tomando a palavra agradecereis ao Sr. Prncipe deConde e lhe expressarei todo o meu reconhecimento pelo prazer que me proporciona.

    Inclinou-se Raul. Em que dia chega Sua Majestade? continuou o prncipe. El-rei, monsenhor, muito provavelmente, chegar esta noite. Mas como, ento, ficariam sabendo da minha resposta se ela fosse negativa? Eu deveria, monsenhor, voltar a toda a pressa a Beaugency para dar contra-ordem ao correio,

    que, por sua vez, voltaria de rota batida para dar contra-ordem ao senhor prncipe. Quer dizer que Sua Majestade est em Orlans? Mais perto, monsenhor: Sua Majestade deve ter chegado a Meung neste momento. Acompanhado pela corte? Sim, monsenhor. A propsito, eu me esquecia de pedir-lhe notcias do senhor cardeal. Sua Eminncia parece gozar de boa sade, monsenhor. As sobrinhas acompanham-no, sem dvida? No, Monsenhor; Sua Eminncia ordenou s Srtas. de Mancini que partissem para Brouage.

    Elas seguem a margem esquerda do Loire enquanto a corte vem pela margem direita. Como! A Srta. Maria de Mancini tambm vai deixar a corte? perguntou Monsieur, cuja

    reserva comeava a entibiar-se. Sobretudo a Srta. Maria de Mancini respondeu discretamente Raul.Fugitivo sorriso, vestgio imperceptvel do velho esprito de intrigas sediciosas, iluminou as faces

    plidas do prncipe. Obrigado, Sr. de Bragelonne disse ento Monsieur; talvez vos recuseis a transmitir ao

  • senhor prncipe o recado que eu quisera confiar-vos, a saber, que o seu mensageiro me foi muitoagradvel; mas eu lho direi pessoalmente.

    Raul inclinou-se para agradecer a Monsieur a honra que lhe fazia.Monsieur fez um sinal a Madame, que premiu uma campainha colocada sua direita.Imediatamente entrou o Sr. de Saint-Remy e a sala se encheu de gente. Senhores anunciou o prncipe Sua Majestade faz-me a honra de vir passar um dia em

    Blois; espero que o rei, meu sobrinho, no tenha motivos para arrepender-se do favor que faz minhacasa.

    Viva o rei! exclamaram com frentico entusiasmo os oficiais de servio, secundados peloSr. de Saint-Remy.

    Gasto abaixou a cabea com sombria tristeza; durante toda a vida tivera de ouvir, ou melhor, desofrer o grito de: Viva o rei! que passava por cima dele. Havia muito tempo que, no o ouvindo mais,os seus ouvidos descansavam; mas eis que uma realeza mais jovem, mais vivaz, mais brilhante,surgia diante dele como nova e mais dolorosa provocao.

    Madame compreendeu os sofrimentos daquele corao tmido e suspeitoso; levantou-se da mesa;Monsieur imitou-a maquinalmente e todos os servidores, com um zunido de colmeia, rodearam Raulpara interrog-lo.

    Madame viu o movimento e chamou o Sr. de Saint-Remy. No hora de papaguear, mas de trabalhar disse ela no tom de uma ama de chaves que se

    agasta.O Sr. de Saint-Remy apressou-se em romper o crculo de oficiais formado em torno de Raul, de

    sorte que este pde chegar antecmara. Espero que o fidalgo seja bem tratado disse Madame dirigindo-se ao Sr. de Saint-Remy.O bom homem disparou no encalo de Raul. Madame encarregou-se de restaurar-vos as foras disse ele; alm disso, h no castelo um

    aposento para vs. Obrigado, Sr. de Saint-Remy respondeu Bragelonne mas sabeis quanto anseio por

    apresentar os meus respeitos ao senhor conde meu pai. verdade, verdade, Sr. Raul, e eu vos suplico que lhe apresenteis os meus cumprimentos

    mais humildes.Livrou-se Raul do velho fidalgo e continuou o seu caminho. Ao passar debaixo do prtico,

    segurando o cavalo pelas rdeas, uma vozinha chamou-o do fundo de escuro corredor. Sr. Raul! disse a voz.Voltou-se o rapaz, surpreso, e viu uma rapariga morena, que apoiava um dedo nos lbios e lhe

    estendia a mo. Essa menina era-lhe inteiramente desconhecida.

  • Captulo III - A entrevista

    AUL deu um passo na direo da jovem que assim o chamava.

    E o meu cavalo, senhora? perguntou. Que grande dificuldade! Sa; h uma cocheira no primeiro ptio; amarrai o cavalo e

    vinde depressa. Obedeo, senhora.Raul no levou quatro minutos para fazer o que lhe tinham recomendado; voltou portazinha, onde,

    no escuro, encontrou a misteriosa condutora que o esperava nos primeiros degraus de uma escada emespiral.

    Tendes coragem para seguir-me, senhor cavaleiro errante? perguntou a menina rindo-se doinstante de hesitao que tivera Raul.

    Este respondeu atirando-se-lhe emps pela escada acima. Subiram assim trs andares, ele atrsdela, roando com as mos, quando procurava a balaustrada, um vestido de seda que roava nas duasparedes da escada. A cada passo em falso de Raul, a condutora lhe gritava um psiu! severo e lheestendia a mo doce e perfumada.

    Eu seria capaz de subir assim at ao torreo do castelo sem me cansar disse Raul. Isso significa, senhor, que estais muito intrigado, muito cansado e muito inquieto; mas

    tranqilizai-vos, que j chegamos.A menina empurrou uma porta que, imediatamente, sem nenhuma transio, inundou de claridade o

    patamar da escada em que surgira Raul segurando o corrimo.A menina continuava a caminhar, ele a seguiu; ela entrou num quarto, ele entrou com ela.Tanto que caiu no lao, ouviu um grito, voltou-se, e viu, a dois passos de si, com as mos juntas e

    os olhos cerrados, a formosa rapariga loira, de olhos azuis e ombros muito brancos, que,reconhecendo-o, lhe chamara Raul.

    Viu e adivinhou tanto amor, tanta felicidade na expresso de seus olhos, que se deixou cair dejoelhos no meio do quarto, murmurando de seu lado o nome de Lusa.

    Ah! Montalais! Montalais! suspirou ela um pecado muito feio enganar os outros assim. Eu! Acaso te enganei? Sim, disseste que ias descer para saber das novidades e fazes subir este senhor. Era preciso. De que outra maneira receberia ele a carta que lhe escrevias?E mostrava com o dedo a carta sobre a mesa.Raul deu um passo a fim de apanh-la; mais rpida, embora se houvesse movido com uma clssica

    hesitao assaz notvel, Lusa estendeu a mo para cont-lo.Raul encontrou, portanto, a mo trmula e quente; tomou-as nas suas, e aproximou-a to

    respeitosamente dos lbios que nela deps antes um sopro que um beijo.Nesse em meio, a Srta. de Montalais pegara na carta, dobrara-a com cuidado, como fazem

    mulheres, trs vezes, e escondera-a no seio. No tenhas medo, Lusa disse ela; este senhor no vir busc-la aqui, da mesma forma

    que o finado Rei Lus XIII no tirava os bilhetes do corpinho da Srta. de Hautefort.Corou Raul vendo o sorriso das duas meninas, e no notou que a mo de Lusa ficara entre as suas. Pronto! disse Montalais tu me perdoaste, Lusa, por haver trazido este senhor; vs,

    senhor, j no me quereis mal por me terdes seguido para ver esta senhorita. Por conseguinte, feitas

  • as pazes, conversemos como velhos amigos. Apresenta-me, Lusa, ao Sr. de Bragelonne. Senhor visconde disse Lusa com graciosa seriedade e cndido sorriso tenho a honra de

    apresentar-vos a Srta. Aura de Montalais, aia de Sua Alteza Madame, e, alm disso, minha amiga,minha excelente amiga.

    Raul cumprimentou cerimoniosamente. E eu, Lusa disse ele no me apresentais tambm senhorita? Oh! ela vos conhecei ela sabe de tudo!A ingenuidade da frase provocou uma risada de Montalais e um suspiro de felicidade de Raul, que

    a interpretara assim: Ela sabe de todo o nosso amor. Cumpriram-se as civilidades, senhor visconde acudiu Montalais; aqui est uma cadeira;

    dizei-me agora, bem depressa, a notcia que nos trouxestes com tanto aodamento. J no-se trata de um segredo, senhorita. A caminho de Poitiers, el-rei pra em Blois a fim de

    visitar Sua Alteza Real. El-rei aqui! bradou Montalais, batendo palmas; vamos ver a corte! J pensaste nisso,

    Lusa? A verdadeira corte de Paris? Oh! meu Deus! E quando, senhor? Talvez esta noite, senhorita; o mais tardar amanh. Motalais esboou um gesto de

    contrariedade. No temos tempo de arrumar-nos! No temos tempo de preparar um vestido! Estamos aqui

    atrasadas como polacas! Pareceremos retratos do tempo de Henrique IV... Ah! senhor, que m notcianos trazeis!

    Sereis sempre belas, senhoritas. Isso no tem graa!... seremos sempre belas, sim, porque a natureza nos fez passveis; mas

    seremos ridculas, porque a moda nos ter esquecido... Ai! ridcula! ver-me-o ridcula, a mim? Quem? perguntou ingenuamente Lusa. Quem? s esquisita, minha cara!... Isso pergunta que se faa? Refiro-me a toda a gente, aos

    cortesos, aos senhores, ao rei. Perdo, minha boa amiga, mas como aqui toda a gente se habituou a ver-nos como somos... De acordo; mas isso vai mudar, e pareceremos ridculas at para os de Blois; pois ao nosso

    lado vero as modas de Paris e compreendero que ainda seguimos a moda de Blois! dedesesperar!

    Consolai-vos, senhorita. isso mesmo! e os que no me acharem a seu gosto, que se danem! retrucou filosoficamente

    Montalais. Tero de ser muito exigentes tornou Raul, fiel ao seu mtodo de galanteria sistemtica. Obrigada, senhor visconde. Dizamos, portanto, que o rei vem a Blois? Com toda a corte. E as Srtas. de Mancini tambm? Elas, precisamente, no. Como, se dizem que o rei no pode passar sem a Srta. Maria? Pois ter de passar, senhorita. Assim o quer o senhor cardeal. Mandou as sobrinhas para

    Brouage. Ele? Que hipcrita! Psiu! interveio Lusa, colocando o dedo sobre os lbios vermelhos. Ora! ningum pode ouvir-me. Digo que o velho Mazarino Mazarini um hipcrita que morre

    por fazer da sobrinha rainha de Frana.

  • No, no, senhorita, visto que o senhor cardeal, pelo contrrio, faz casar Sua Majestade com aInfanta Maria Teresa.

    Montalais fitou os olhos em Raul e disse-lhe: Acreditais nessas histrias, vs, os parisienses? Pois ns, em Blois, j somos mais espertos. Senhorita, se o rei ultrapassa Poitiers e parte para a Espanha, se os artigos do contrato de

    casamento j foram concertados entre D. Lus de Haro e Sua Eminncia, haveis de compreender queno se trata mais de brincadeira de crianas.

    Homessa! Mas o rei o rei, imagino eu? Sem dvida, senhorita, mas o cardeal o cardeal. E o rei, ento, no homem? J deixou de amar Maria de Mancini? Ele a adora. Pois ento casar com ela; teremos guerra com a Espanha; o Sr. Mazarino gastar alguns dos

    milhes que ps de lado; os nossos fidalgos faro proezas contra os valentes castelhanos, e muitosno voltaro coroados de louros, para que os coroemos de mirta. Eis como entendo a poltica.

    Montalais, tu s uma louquinha disse Lusa e toda exagerao te atrai, como o fogo atraias borboletas.

    Lusa, s to sensata que nunca sers capaz de amar. Oh! exclamou Lusa com terno reproche. Procura compreender, Montalais! A rainha-me

    deseja casar o filho com a infanta; queres que o rei desobedea me? Ser de um corao realcomo o dele dar mau exemplo? Quando os pais probem o amor, expulsemos o amor!

    E Lusa suspirou; Raul, contrafeito, abaixou os olhos. Montalais ps-se a rir. Pois eu no tenho pais disse ela. Tendes, sem dvida, notcias da sade do Sr. Conde de La Fre disse Lusa depois desse

    suspiro, que revelara tantos sofrimentos em sua eloqente expanso. No, senhorita redarguiu Raul ainda no fui visitar meu pai; mas eu ia casa dele,

    quando a Srta. de Montalais teve a bondade de interromper-me; espero que o senhor conde estejapassando bem. No ouvistes nada de desagradvel, no verdade?

    Nada, Sr. Raul, nada, graas a Deus!Seguiu-se um silncio, durante o qual duas almas que seguiam a mesma idia se entenderam

    perfeitamente, mesmo sem a assistncia de um nico olhar. Ah! meu Deus! exclamou de repente Montalais vem vindo gente!... Quem ser? perguntou Lusa erguendo-se, inquieta. Senhoritas, eu vos constranjo; fui, sem dvida, muito indiscreto balbuciou Raul, inteiramente

    sem jeito. um passo pesado disse Lusa. Ah! Se for apenas o Sr. Malicorne retorquiu Montalais no nos incomodemos.Entreolharam-se Lusa e Raul como a perguntarem quem' diabo seria o Sr. Malicorne. No vos inquieteis prosseguiu Montalais ele no ciumento. Mas, senhorita... acudiu Raul. Compreendo... Pois bem! Ele to discreto quanto eu. Meu Deus! exclamou Lusa, que encostara o ouvido porta semicerrada reconheo o

    passo de minha me! A Sra. de Saint-Remy! Onde me esconderei? perguntou Raul, puxando o vestido de

    Montalais, que parecia ter perdido momentaneamente a cabea. Sim disse ela reconheo tambm os patins que estalam. a nossa excelente me!...

  • Senhor visconde, pena que a janela d para uma calada a cinqenta ps de altura.Raul considerou o balco com o semblante transtornado. Lusa segurou-lhe o brao e o reteve. Ora essa! Estarei ficando louca? disse Montalais. Tenho o meu armrio de vestidos de

    cerimnia, que parece feito especialmente para isso.J no era sem tempo, visto que a Sra. de Saint-Remy subia mais depressa que de costume; chegou

    ao patamar no momento em que Montalais, como nas cenas de surpresa, fechava o armrio apoiandoo corpo na porta.

    Ah! exclamou a Sra. de Saint-Remy ests aqui, Lusa? Estou, sim, senhora respondeu a interpelada, mais plida do que estivesse convicta de um

    grande crime. Bom, bom! Sentai-vos, senhora disse Montalais, oferecendo uma poltrona Sra. de Saint-Remy, e

    colocando-a de modo que ela ficasse de costas para o armrio. Obrigada, Srta. Aura, obrigada; vem depressa, minha filha, vamos. Aonde quereis que eu v, senhora? Para casa, homessa! Precisamos arrumar o teu vestido. Como? atalhou Montalais, preparando-se para simular surpresa, tanto receava que Lusa

    cometesse alguma tolice. No sabeis a notcia? perguntou a Sra. de Saint-Remy. Que notcia, senhora, quereis que saibam duas raparigas neste pombal? Como!... No vistes ningum? Senhora, falais por enigmas e nos fazeis morrer a fogo lento! bradou Montalais, que,

    assustando-se ao ver Lusa cada vez mais plida, no sabia de que santo socorrer-se.Afinal, surpreendeu um olhar da companheira, um desses olhares que dariam inteligncia a um

    muro. Lusa indicava amiga o chapu, o malfadado chapu de Raul, que se pavoneava sobre a mesa.Montalais atirou-se a ele e, postando-se na frente, apanhou-o com a mo direita, passou por trs

    para a esquerda e assim o escondeu, sem parar de falar. Pois bem! disse a Sra. de Saint-Remy chegou-nos um correio para anunciar a prxima

    vinda do rei. Portanto, senhoritas, a enfeitar-vos! Depressa! depressa! exclamou Montalais segue tua me, Luisa, e deixa-me ajustar o meu

    vestido de cerimnia.Levantou-se Lusa, a me segurou-a pela mo e a conduziu ao patamar. Vem disse ela. E em voz baixa: J te proibi de frequentares Montalais; por que vens aqui? minha amiga, senhora. De mais a mais eu estava chegando. Ela no escondeu ningum em tua presena? Senhora! Pois eu te digo que vi um chapu de homem: o daquele patife, daquele vadio! Senhora! exclamou Lusa. Daquele vagabundo de Malicorne! Uma aia freqentar assim... que horror!E as vozes se perderam nas profundezas da escadazinha.Montalais no perdera uma palavra do dilogo, que o eco lhe retransmitira como por um funil.Deu de ombros, e, vendo Raul que deixara o esconderijo e tambm ouvira: Pobre Montalais! disse ela vtima da amizade! Pobre Malicorne!... vtima do amor!Deteve-se ao ver a expresso tragicmica de Raul, que se maldizia por haver surpreendido tantos

  • segredos num dia s. Oh! senhorita disse ele como poderei agradecer-vos tanta bondade? Um dia acertaremos nossas contas ripostou ela; por enquanto, sebo nas canelas, Sr. de

    Bragelonne, pois a Sra. de Saint-Remy no indulgente e qualquer indiscrio de sua parte poderiatrazer aqui uma visita domiciliria desagradvel para todos ns. Adeus!

    Mas Lusa... como saber?... Ide! Ide! O Rei Lus XI sabia muito bem o que fazia quando inventou o correio. Ai de mim! suspirou Raul. E acaso no estou aqui, em que valho por todos os correios do reino? A cavalo, depressa! e se

    a Sra. de Saint-Remy tornar a subir para me pregar moral, no vos encontre mais aqui. Ela contaria a meu pai, no verdade? murmurou Raul. E levareis um pito! Ah! visconde, bem se v que vindes da corte: sois medroso como o rei.

    Peste! em Blois no fazemos tanto caso do consentimento do papai! Perguntai a Malicorne.E, dizendo essas palavras, a estouvada rapariga fez sair Raul empurrando-o pelos ombros; este se

    esgueirou ao longo do prtico, encontrou o cavalo, montou-o e partiu como se lhe fossem na alheta osoito guardas de Monsieur.

  • Captulo IV - Pai e filho

    AUL seguiu a estrada to conhecida, to grata sua memria, que ia de Blois casa doConde de La Fre.

    O leitor nos dispensar nova descrio da residncia. J penetrou conosco em outrotempo; conhece-a. S que depois da ltima viagem que ali fizemos, os muros haviam assumidocolorao mais cinzenta e os tijolos tons de cobre mais harmoniosos; as rvores tinham crescido, eaquelas que antanho estendiam os ramos enfezados por cima das sebes, agora, arredondadas,ramalhudas, luxuriantes, atiravam ao longe, com os galhos intumescidos de seiva, a sombra espessadas flores e dos frutos para o passante.

    Raul avistou de longe o teto pontudo, as duas torrinhas, o pombal entre os olmeiros e os bandos depombos que volteavam sem cessar, sem poder deix-lo jamais, em torno do cone de tijolos, como assuaves lembranas volteiam roda de uma alma serena.

    Quando se aproximou, ouviu o rudo das polias que rangiam sob o peso dos slidos baldes;figurou-se-lhe ouvir tambm o melanclico gemido da gua que recai no poo, rudo triste, fnebre,solene, que impressiona o ouvido da criana e do poeta, a que os ingleses chamam splass, os poetasrabes gasgachau, e que ns, que bem gostaramos de ser poetas, s podemos traduzir por umaperfrase: O barulho da gua que cai na gua.

    Fazia mais de um ano que Raul no visitava o pai.Passara todo esse tempo junto do senhor prncipe.Com efeito, depois das, comoes da Fronda, cujo primeiro perodo tentamos reproduzir outrora,

    Lus de Conde reconciliara-se com a corte, pblica, solene e francamente. Durante o tempo daruptura entre o senhor prncipe e o rei, o primeiro, que se afeioara havia muito a Bragelonne,debalde lhe oferecera todas as vantagens capazes de deslumbrar um rapaz. Mas, sempre fiel aos seusprincpios de lealdade e realeza, expostos um dia diante do filho entre os tmulos de Saint-Denis, oConde de La Fre, em nome do filho, recusara sempre. Mas, em lugar de seguir o Sr. de Conde emsua rebelio, seguira o visconde o Sr. de Turenne, que combatia pelo rei. Depois, quando o Sr. deTurenne, por sua vez, parecera desamparar a causa real, deixara o Sr. de Turenne como haviadeixado o Sr. de Conde. E como nem Turenne nem Conde conseguiram vencer um ao outro senoquando pelejavam sob as bandeiras de Frana, resultara dessa norma invarivel de proceder queRaul, embora ainda muito jovem, j tivesse dez vitrias inscritas em sua folha de servios e nenhumaderrota que a bravura ou a conscincia lhe pudessem reprochar.

    Portanto, consoante os desejos do pai, servira Raul teimosa e passivamente a fortuna do Rei LusXIV, a despeito de todas as tergiversaes endmicas e, pode dizer-se, inevitveis na poca.

    Voltando s boas graas do rei, o Sr. de Conde tudo empregara, e primeiro que tudo o seuprivilgio de anistia, para pedir de novo muitas coisas que lhe tinham sido concedidas, e, entre elas,Raul. Incontinenti o Sr. de La Fre, com o seu invarivel bom senso, tornara a mandar Raul aoPrncipe de Conde.

    Um ano, pois, decorrera desde a ltima separao entre pai e filho; algumas cartas haviamsuavizado, mas no curado, as agruras da ausncia. Vimos que Raul deixara em Blois outro amoralm do amor filial.

    Mas cumpre que lhe faamos justia: no fossem o acaso e a Srta. de Montalais, dois demniostentadores, transmitida a mensagem, teria Raul demandado a galope casa paterna, virando a cabea

  • sem dvida, mas sem parar um instante, ainda que visse Lusa a estender-lhe os braos.Da que a primeira parte do trajeto consagrasse Raul s saudades do passado que acabava de

    deixar to depressa, isto , namorada e a outra metade, ao amigo que ia encontrar, porm muitovagarosamente para o seu gosto.

    Achando aberta a porta do jardim, atirou o cavalo pela alameda, sem atentar para a furiosagesticulao de um velho colrico, que vestia roupa de ponto de meia, cor de violeta, e trazia nacabea enorme e surrado gorro de veludo.

    O velho, que mondava com os dedos um canteiro de roseiras ans e margaridas, indignava-se dever um cavalo correr assim pelas alamedas saibradas e limpas.

    Chegou a arriscar um vigoroso hum! que fez voltar-se o cavaleiro. Verificou-se ento umamudana de cena; pois assim que viu o rosto de Raul, ergueu-se o velho e abriu a correr na direoda casa com grunhidos interrompidos que pareciam ser nele o paroxismo de louca alegria.

    Raul chegou s cocheiras, entregou o cavalo a um lacaiozinho e galgou os degraus da escada comum ardor que teria deleitado profundamente o corao do pai.

    Atravessou a antecmara, a sala de jantar e o salo sem encontrar ningum; por fim, chegando porta do Sr. Conde de La Fre, bateu com impacincia e entrou quase sem esperar a ordem:

    Entrai! que lhe deu uma voz grave e doce ao mesmo tempo.Estava o conde sentado diante de uma mesa coberta de papis e de livros: era ainda o mesmo

    nobre e belo fidalgo de outrora, embora o tempo lhe houvesse emprestado nobreza e beleza umcarter mais solene e mais distinto. Testa branca e lisa sob os longos cabelos mais brancos do quenegros, olhar penetrante e suave sombreado por clios de rapaz, bigode fino e apenas grisalho,emoldurando os lbios de traado puro e delicado, como se nunca os tivesse crispado paixesmortais; corpo direito e flexvel, mo irreprochvel, mas emaciada, tal era ainda o preclaro fidalgo,que, sob o nome de Athos, fora elogiado por tantas bocas ilustres.

    Entretinha-se, naquele momento, em corrigir as pginas de um caderno manuscrito, inteiramenteredigido com a sua letra.

    Raul agarrou o pai pelos ombros, pelo pescoo, como pde, e beijou-o to terna e to rapidamenteque o conde no teve foras nem tempo para livrar-se nem para disfarar a comoo paterna.

    Tu aqui, tu aqui, Raul! disse ele. Ser possvel? Oh, senhor, senhor, que alegria em rever-vos! No me respondeste, visconde. Obtiveste uma licena para estar em Blois, ou sucedeu alguma

    desgraa em Paris? Graas a Deus, senhor replicou Raul, acalmando-se a pouco e pouco s sucederam

    coisas boas; casa-se el-rei, como tive a honra de comunicar-vos na minha ltima carta, e parte para aEspanha. Sua Majestade passar por Blois.

    Para visitar Monsieur? Sim, senhor conde. Por isso mesmo, receando apanh-lo de surpresa, ou desejando ser-lhe

    particularmente agradvel, o senhor prncipe mandou-me na frente para preparar os alojamentos. Viste Monsieur? perguntou vivamente o conde. Tive essa honra. No castelo? Sim, senhor respondeu Raul abaixando os olhos, porque, sem dvida, percebera na pergunta

    do conde algo mais que simples curiosidade. Ah! sim, visconde?... Pois eu te cumprimento.Raul inclinou-se.

  • Mas viste mais algum em Blois. Senhor, vi Sua Alteza Real Madame. Muito bem. No de Madame que falo. Raul corou extremamente e no respondeu. Parece que no me entendeis, senhor visconde? insistiu o Sr. de La Fre sem acentuar a

    pergunta, mas acentuando a expresso um pouco mais severa do olhar. Compreendo-vos perfeitamente, senhor replicou Raul e se preparo a resposta, no o fao

    para procurar uma mentira, bem o sabeis. Sei que no mentes nunca. Por isso mesmo espanta-me que leves tanto tempo para dizer: sim ou

    no. S posso responder depois de haver-vos compreendido bem, e se bem vos compreendi,

    tomareis m parte as minhas primeiras palavras. Desagrada-vos, sem dvida, senhor conde, que eutenha visto...

    A Srta. de La Vallire, no ? dela que quereis falar, eu sei, senhor conde tornou Raul com inexprimvel doura. E eu pergunto se a viste. Senhor, eu ignorava completamente, ao entrar no castelo, que l estivesse a Srta. de La

    Vallire; foi somente ao voltar-me, concluda a minha misso, que o acaso nos ps em presena umdo outro. Tive a honra de apresentar-lhe os meus respeitos.

    E como se chama o acaso que te reuniu Srta. de La Vallire? A Srta. de Montalais, senhor. Quem a Srta. de Montalais? Uma senhorita que eu no conhecia, que nunca vi. Aia de Madame. Visconde, no levarei mais longe o interrogatrio, que j lamento haver prolongado. Eu te havia

    recomendado que evitasses a Srta. de La Vallire e s a visses com minha autorizao. Sei que mefalaste a verdade e que no deste um passo para te aproximares dela. O acaso atrapalhou-me; no teacuso. Limitar-me-ei, portanto, a repetir o que j te disse a respeito dessa senhorita. No lhe censuronada, e Deus testemunha disso; mas no est nos meus planos que lhe freqentes a casa. Peo-teainda uma vez, meu caro Raul, que o tenhas por entendido.

    Dir-se-ia que o olhar to lmpido e puro de Raul se turvasse a essas palavras. Agora, meu amigo continuou o conde com o sorriso doce e a voz costumeira falemos de

    outra coisa. Voltars, talvez, ao teu servio? No, senhor, posso ficar hoje o dia todo ao p de vs. O senhor prncipe, felizmente, s me deu

    essa incumbncia, to de acordo, alis, com os meus desejos. El-rei est passando bem? s mil maravilhas. E o senhor prncipe tambm? Como sempre, senhor.O conde esquecia Mazarino: era um velho hbito. Pois bem, Raul, j que s todo meu, dar-te-ei tambm o meu dia. Abraa-me... outra vez... outra

    vez... Ests em casa, visconde... Ah! eis o nosso velho Grimaud!... Vem, Grimaud, o senhor viscondequer abraar-te tambm.

  • O velho alto no se fez de rogado; correu para o rapaz com os braos abertos. Raul poupou-lhe

    metade do caminho. Agora, queres passar ao jardim, Raul? Mostrar-te-ei o novo alojamento que mandei preparar

    para habitares durante as tuas licenas e, enquanto examinas as plantaes deste inverno e os doiscavalos que troquei, dar-me-s notcias dos amigos de Paris.

    Fechou o conde o manuscrito, pegou no brao do rapaz e passou com ele ao jardim.Melanclico, viu Grimaud afastar-se Raul, cuja cabea roava quase a padieira da porta, e,

    enquanto alisava a pra branca, deixou escapar esta palavra profunda; Crescido!

  • Captulo V - Em que se falar de Cropoli, de Cropole e de um grande pintor desconhecido

    NQUANTO o Conde de La Fre visita com Raul as novas construes que mandara erguere os cavalos novos que mandara comprar, os leitores nos permitiro que os levemos devolta cidade de Blois e os faamos assistir ao desusado movimento que agitava a cidade.

    Era sobretudo nas hospedarias que mais se sentia a repercusso da notcia que trouxera Raul.Com efeito, o rei e a corte em Blois, isto , cem cavaleiros, dez carruagens, duzentos cavalos, um

    nmero de lacaios igual ao dos amos, onde se albergaria toda aquela gente, onde se alojariam todosos fidalgos das redondezas, que chegariam talvez dentro de duas ou trs horas, assim que sepropalasse a notcia, maneira das circunferncias crescentes que produz a queda de uma pedra nagua de um lago tranqilo?

    To sossegada de manh, como vimos, quanto o lago mais calmo do mundo, convertera-se Bloisnum centro de tumultos e agitaes ao anncio da visita real.

    Todos os lacaios do castelo, sob a inspeo dos oficiais, iam cidade buscar provises, e dezcorreios a cavalo galopavam na direo das reservas de Chambord em busca de caa, dos pesqueirosdo Beuvron procura de peixe e das serras de Chaverny cata de flores e de frutas.

    Tiravam-se dos armrios preciosas tapearias, lustres de correntes douradas; um exrcito depobres varria os ptios e lavava as caladas de pedra, ao passo que as mulheres vasculhavam osprados do outro lado do Loire para colher juncadas de verdura e flores silvestres. Toda a cidade,para no ficar atrs desse luxo de asseio, empavesava-se tambm com grandes reforos de escovas,vassouras e gua.

    Engrossados por essas lavagens contnuas, os riachos da cidade alta se mudavam em rios nacidade baixa, e as ruas, por vezes muito sujas, limpavam-se, cumpre diz-lo, abrilhantando-se aosraios amigos do sol.

    Em suma, preparavam-se msicas, esvaziavam-se gavetas; compravam-se nas lojas velas, fitas elaos para espadas; as donas de casa faziam provises de po, carnes e especiarias. Grande nmerode burgueses, que haviam abastecido as suas casas como se devessem sustentar um assdio, notendo mais que fazer, j se adomingavam e dirigiam para a porta da cidade a fim de serem osprimeiros a avistar ou a ver o cortejo. Sabiam muito bem que el-rei s chegaria noite, talvez at namanh seguinte. Mas que a espera seno uma espcie de loucura, e que a loucura seno umexcesso de esperana?

    Na cidade baixa, a uns cem passos, quando muito, do castelo dos Estados, entre a praa e ocastelo, numa rua muito bonita que ento se chamava Rua Velha, erguia-se venervel edifcio, deempena esguia, formato slido e largo, ornado de trs janelas que davam para a rua no primeiropavimento, duas no segundo e uma vigiazinha no terceiro.

    Dos lados desse tringulo construra-se recentemente um paralelogramo vastssimo, que, semnenhuma cerimnia, se projetava sobre a rua, consoante os usos familiares da edilidade do tempo.Com isso perdia a rua um quarto de largura, mas alargava-se a casa quase o dobro; no ser, acaso,compensao suficiente?

    Queria a tradio que essa casa tivesse sido habitada, no tempo de Henrique III, por umconselheiro de Estado que a Rainha Catarina fora, segundo uns, visitar e, segundo outros, esganar.

    Fosse como fosse, a boa senhora deve ter posto um p circunspecto no limiar do edifcio.Depois do conselheiro, morto por estrangulamento ou naturalmente, tanto faz, a casa fora vendida,

  • logo abandonada, por fim insulada das outras casas da rua. S em meados do reinado de Lus XIII,um italiano chamado Cropoli, escapo das cozinhas do Marechal d'Ancre, fora estabelecer-se na casa,onde instalara um alberguezinho em que se fabricava um macarro to requintado que de muitaslguas em redor vinha gente compr-lo ou com-lo.

    Ilustrara a casa o fato de ter a Rainha Maria de Mdicis, prisioneira, como se sabe, no castelo dosEstados; mandado buscar um dia o clebre macarro.

    Fora precisamente na ocasio em que fugira pela tal janela. O prato de macarro continuara sobrea mesa, apenas tocado pela boca real.

    Desse duplo favor feito casa triangular, de um estrangulamento e de um prato de macarro,acudira ao pobre Cropoli a idia de dar hospedaria um ttulo pomposo. Mas o fato de ser italianono era boa recomendao naquele tempo, e os seus parcos cabedais, cuidadosamente guardados, nolhe permitiam exibir-se muito.

    Quando se viu na iminncia de morrer, o que lhe sucedeu em 1643, aps a morte do Rei Lus XIII,mandou chamar o filho, jovem bicho da cozinha de belssimas esperanas, e, com lgrimas nos olhos,recomendou-lhe que guardasse muito bem o segredo do macarro, afrancesasse o nome, casasse comuma francesa, e, afinal, quando se houvessem dissipado no horizonte politico as nuvens que otoldavam j se usava naquela poca essa figura de retrica empregadssima hoje em dia naCmara dos Deputados mandasse construir pelo ferreiro vizinho uma bela tabuleta, na qualfamoso pintor que ele indicou traaria dos retratos da rainha com a seguinte legenda: "AOSMDICIS".

    Feitas as recomendaes, o bom Cropoli mal teve foras para indicar ao jovem sucessor umalareira debaixo de cuja laje escondera mil luses de dez francos, e expirou.

    Homem de rija tmpera, Cropoli jnior suportou a perda com resignao e o ganho sem insolncia.Comeou por acostumar o pblico a fazer soar to pouco o final do seu nome que, ajudado pela

    condescendncia geral, passou a chamar-se Sr. Cropole, nome absolutamente francs.Depois casou, pois tinha em mos uma francesinha pela qual se enrabichara e de cujos pais

    arrancou um dote razovel, mostrando-lhes o que havia debaixo da laje da chamin.Feito isso, ps-se procura do pintor que devia pintar-lhe a tabuleta.No demorou em ach-lo.Era um velho italiano, emulo de Rafael e de Carrache, mas emulo infeliz. Dizia pertencer escola

    veneziana, sem dvida por gostar muitssimo da cor. Suas obras, que nunca vendera, chamavam aateno a cem passos de distncia e desagradavam to formidavelmente aos burgueses que eleacabou no fazendo mais nada.

    Gabava-se de ter pintado uma sala de banhos para a Sra. Marechala d'Ancre e lamentava que asala se houvesse queimado quando fora o desastre do Marechal.

    Como compatriota, Cropoli era indulgente com Pittrino. Tal era o nome do artista. Talvez tivessevisto as clebres pinturas da sala de banhos. O fato que lhe consagrava tamanha estima, tamanhaamizade, at, que o recolheu em casa.

    Cheio de reconhecimento e de macarro, aprendeu Pittrino a propagar a reputao do pratonacional e, ao tempo do seu fundador, j prestara com a lngua incansvel relevantes servios aoestabelecimento Cropoli.

    Envelhecendo, afeioou-se ao filho como ao pai, e, a pouco e pouco, se converteu numa espcie deguardio da casa em que a sua integra probidade, reconhecida sobriedade, proverbial castidade e miloutras virtudes que fora ocioso enumerar, lhe deram lugar permanente ao p do lar, com direito deinspeo sobre os criados. De mais a mais, era ele quem provava o macarro, para manter o gosto

  • puro da tradio antiga; releva dizer que no perdoava nem um grozinho de pimenta a mais, nem umtomo de parmeso a menos.

    Enorme foi a sua alegria no dia em que, chamado a compartir do segredo de Cropole jnior, lheconfiaram a pintura da clebre tabuleta.

    Viram-no revolver com ardor uma caixa velha, onde tornou a encontrar uns pincis meio comidosde ratos, mas ainda passveis, umas tintas em bexigas mais ou menos ressecadas, leo de linhaanuma garrafa e uma paleta que pertencera, em outro tempo, ao Bronzinho, esse diou de la pittoure,como dizia, no seu entusiasmo sempre juvenil, o artista ultramontano.

    Sentiu-se engrandecido pela alegria de uma reabilitao.Fez como fizera Rafael, trocou de estilo e pintou maneira de Albano duas deusas em lugar de

    duas rainhas. Essas damas ilustres se mostravam to graciosas na tabuleta, ofereciam aos olharesespantados to extraordinria mistura de lrios e de rosas, resultado encantador da mudana de estilode Pittrino; assumiam posturas de sereias to anacrenticas, que o primeiro vereador, quando pdever a obra-prima na sala de Cropole, declarou incontinente que as damas eram formosas demais e deum encanto exageradamente animado para figurarem numa tabuleta vista dos transeuntes.

    Sua Alteza Real Monsieur, explicou ele a Pittrino, que vem a mido nossa cidade, no gostariamuito de ver a senhora sua me to escassamente vestida, e mandaria ferrolhar-vos num calabouo docastelo, pois nem sempre tinha o corao mole o glorioso prncipe. Apagai portanto as duas sereiasou a legenda. Isso no vosso interesse, Mestre Cropole, e no vosso tambm, Sr. Pittrino.

    Que responder a esses argumentos? Era preciso agradecer ao vereador a fineza e foi o que fezCropole.

    Pittrino, porm, mostrou-se taciturno e desiludido.Sabia o que ia acontecer.To depressa saiu o vereador, Cropole, cruzando os braos: Ento, mestre perguntou que faremos? Tiraremos a legenda redarguiu tristemente Pittrino. Tenho aqui excelentes ps de marfim;

    coisa de pouco, e substituiremos os Mdicis por Ninfas ou Sereias, como quiserdes. No voltou Cropole assim no ficaria satisfeita a vontade de meu pai. Meu pai fazia

    questo... Vosso pai fazia questo das figuras atalhou Pittrino. Das legendas emendou Cropole. A prova de que fazia questo das figuras que as encomendou parecidas, e elas o so tornou

    Pittrino, Sim, mas se no fossem, quem as teria reconhecido sem a legenda? Hoje mesmo, que amemria dos habitantes de Blois se oblitera um pouco em relao a essas pessoas clebres, quemreconheceria Catarina e Maria sem as palavras: Aos Mdicis?

    E que ser das minhas figuras? perguntou Pittrino, desesperado, pois compreendia queCropole jnior tinha razo. No quero perder o fruto de meu trabalho.

    E eu no quero que vos metam na cadeia e a mim num calabouo. Apaguemos a palavra Mdicis suplicou Pittrino. No retrucou, firme, Cropole. Tenho uma idia, uma idia sublime... a vossa pintura

    aparecer, e a minha legenda tambm... Mdici no quer dizer mdico em italiano? Quer, no plural. Encomendareis, portanto, nova tabuleta no ferreiro; nela pintareis seis mdicos e escrevereis

    por baixo: Aos Mdicis... Faremos, ainda por cima, um bom trocadilho. Seis mdicos! Impossvel! e a composio? bradou Pittrino.

  • Isso convosco; mas h de ser assim porque eu quero e preciso. O meu macarro estqueimando.

    Ante o argumento peremptrio, Pittrino obedeceu.Comps a tabuleta dos seis mdicos com a legenda; o vereador a aplaudiu e autorizou.A tabuleta fez tremendo sucesso na cidade. O que prova que a poesia nunca se deu bem com os

    burgueses, como disse Pittrino.Para compensar o pintor, Cropole pendurou no quarto de dormir as ninfas da tabuleta anterior, que

    faziam corar a Sra. Cropole toda vez que esta as olhava ao despir-se.A est como ganhou uma tabuleta a casa da empena esguia e a est como, prosperando, a

    hospedaria dos Mdicis foi obrigada a dilatar-se com o quadriltero que j pintamos. Eis como haviaem Blois uma estalagem com esse nome, que tinha por proprietrio mestre Cropole e por pintoroficial mestre Pittrino.

  • Captulo VI - O desconhecido

    SSIM fundada e recomendada pela tabuleta, a hospedaria de mestre Cropole caminhavapara uma slida prosperidade.

    Cropole no tinha em mente amealhar vultosos cabedais, mas esperava duplicar os milluses de ouro legados pelo pai, obter outros mil com a venda da casa e do fundo de comrcio e, livreafinal, viver feliz como um burgus da cidade.

    Cropole gostava de dinheiro e por isso acolheu com delirante alegria a notcia da chegada do ReiLus XIV.

    Ele, a mulher, Pittrino e dois bichos da cozinha atiraram-se imediatamente a todos os habitantes dopombal, do galinheiro, das coelheiras, de modo que se ouviram nos ptios da hospedaria tantaslamentaes e tantos gritos quantos em Rama se ouviram outrora.

    Cropole, naquele momento, tinha um viajante apenas.Era um homem de trinta anos, belo, alto, austero, ou melhor, melanclico em todos os gestos e

    olhares.Vestia um fato de veludo preto com enfeites de azeviche; a gola branca, simples como a dos mais

    severos puritanos, ressaltava-lhe o tom mate e fino do pescoo jovem; um pequeno bigode loiro mallhe sombreava os lbios frementes e desdenhosos.

    Dirigia-se s pessoas olhando-as de frente, sem afetao, verdade, mas sem escrpulos; de formaque o brilho de seus olhos azuis se tornava to insuportvel que mais de um olhar se abaixava diantedo seu, como sucede espada mais fraca num combate singular.

    Nesse tempo em que os homens, criados iguais por Deus, se dividiam, merc dos preconceitos, emduas castas distintas, o fidalgo e o plebeu, como efetivamente se dividem em duas raas, a negra e abranca, nesse tempo, dizamos, a pessoa cujo retrato acabamos de bosquejar no podia deixar de sertomada por fidalgo, e da melhor raa. Bastava, para tanto, consultar-lhe as mos, longas, afiladas ebrancas, cujos msculos e veias lhe transpareciam debaixo da pele ao menor movimento, e cujasfalanges ruborejavam menor crispao.

    O fidalgo chegara s estalagem de Cropole.Tomara sem hesitar, e at sem refletir, o apartamento mais importante, que o estalajadeiro lhe

    indicara com um propsito de cobia muito condenvel, diro alguns, muito louvvel, diro outros,admitindo que Cropole, fisionomista, julgasse os outros primeira vista.

    O apartamento ocupava toda a parte da frente da velha casa triangular: um grande salo alumbradopor duas janelas no primeiro andar, um quartinho ao lado e outro em cima.

    Ora, desde que chegara, mal tocara o fidalgo na refeio que lhe tinham servido no quarto. Disseraapenas duas palavras ao hospedeiro a fim de preveni-lo de que deveria chegar um viajante chamadoParry e recomendar-lhe que o deixasse subir.

    Em seguida, mergulhara em to profundo silncio que Cropole se sentira quase ofendido, ele quegostava das pessoas dadas.

    Finalmente, levantara-se bem cedo na manh do dia em que comea esta histria e pusera-se janela da sala, sentado sobre a borda e encostado na balaustrada do balco, examinando, teimosa etristemente, os dois lados da rua, espera, com certeza, da chegada do viajante que mencionara aoalbergueiro.

    Vira, desse modo, passar o cortejozinho de Monsieur que voltava da caa e voltara a saborear o

  • profundo sossego da cidade, absorto na sua espera.A sbitas, o rebolio dos pobres a caminho dos campos, dos correios que partiam, dos lavadores

    de caladas, dos fornecedores da casa real, dos caixeiros alvorotados e tagarelas, das carroas emmovimento, dos cabeleireiros atarefados e dos pajens em atividade; o tumulto e o alarido o haviamsurpreendido, mas sem lhe afetar a suprema e impassvel majestade que empresta guia e ao leo oolhar sereno e desdenhoso no meio dos berros e sapateados dos caadores e curiosos.

    Logo, os gritos das vtimas esganadas no galinheiro, os passos apressadssimos da Sra. Cropole naescadazinha de madeira to estreita e to sonora, os gestos frenticos de Pittrino, que, naquela manh,estivera fumando porta com a fleuma de um holands, tudo isso deu ao viajante um princpio desurpresa e de alvoroo.

    E j se erguia para informar-se quando se abriu a porta do quarto. Cuidou o desconhecido que lhetraziam, sem dvida, o viajante to impacientemente esperado.

    Deu, portanto, com certa precipitao, trs passos na direo da porta.Mas em vez da figura que esperava, surgia-lhe pela frente mestre Cropole e, pouco depois, na

    penumbra da escada, o rosto assaz gracioso, mas trivializado pela curiosidade, da Sra. Cropole, quedirigiu uma olhadela furtiva ao belo fidalgo e desapareceu.

    Adiantou-se Cropole com ar sorridente, gorro na mo, mais curvado que inclinado. Senhor disse Cropole eu vinha perguntar-vos como... devo dizer: Vossa Senhoria, ou

    senhor visconde, ou senhor marqus?... Dizei senhor, e dizei-o depressa retrucou o desconhecido com o tom sobranceiro que no

    admite rplica nem discusso. Eu vinha, portanto, saber como passou a noite e se Vossa Senhoria tencionava ficar com este

    apartamento. Tenciono. Mas que surgiu um incidente, senhor, com o qual no contvamos. Qual? Sua Majestade Lus XIV chega hoje nossa cidade e aqui ficar um ou dois dias talvez.Uma expresso de espanto profundo contraiu o rosto do desconhecido. O rei de Frana vem a Blois? Est a caminho, senhor. Nesse caso, mais uma razo para que eu fique tornou o desconhecido. Muito bem; mas ficar com todo o apartamento? No vos compreendo. Por que teria eu hoje menos do que tive ontem? Porque, ontem, permita-me diz-lo, quando Vossa Senhoria escolheu os seus aposentos, eu no

    quis fixar um preo que o levasse a crer-me capaz, de prejulgar os seus recursos... ao passo quehoje...

    O desconhecido ruborizou-se. Acudiu-lhe imediatamente a idia de que o supunham pobre e de queo insultavam.

    Ao passo que hoje volveu ele, friamente prejulgais? Senhor, sou homem de bem, graas a Deus! e por mais hoteleiro que possa parecer, corre-me

    nas veias sangue fidalgo; meu pai era servidor e oficial do finado Sr. Marechal d'Ancre. Deus o tenhaconsigo!...

    No vos contesto esse ponto; mas desejo saber, e saber depressa, qual o propsito de vossasperguntas.

    Vossa Senhoria, to razovel, saber compreender que a nossa cidade pequena, que ser

  • invadida pela Corte, que as casas regurgitaro de habitantes, e os aluguis, por conseguinte, tero umvalor considervel.

    Tornou a corar o desconhecido. Proponde as vossas condies disse ele. Fao-o com escrpulo, senhor, porque tenho to-somente em mira um lucro honesto e quero

    fazer negcio sem ser incivil ou grosseiro em meus desejos... Ora, o apartamento que Vossa Senhoriaocupa considervel, e Vossa Senhoria est s...

    Isso comigo. Sem dvida alguma; nem o estou despejando.O sangue acudiu s tmporas do desconhecido; atirou ao pobre Cropole, descendente de um oficial

    do Sr. Marechal d'Ancre, um olhar que o teria feito entrar debaixo da famosa laje da chamin, seCropole no estivesse parafusado no lugar pelos seus interesses.

    Quereis que eu parta? disse ele; explicai-vos, mas sede breve. Vossa Senhoria no me compreendeu. muito delicada a minha posio; mas no me expresso

    bem, ou talvez, como Vossa Senhoria estrangeiro, pois reconheo pelo sotaque...Falava, de feito, o desconhecido com o leve rotacismo que o principal caracterstico da

    pronncia inglesa, mesmo entre os homens dessa nao que falam melhor o francs. Como Vossa Senhoria estrangeiro continuou ele talvez no tenha apanhado as

    gradaes das minhas palavras. Quero dizer que Vossa Senhoria poderia deixar uma ou duas das trspeas que ocupa, o que diminuiria sensivelmente o aluguel e me aliviaria a conscincia; com efeito, duro aumentar desarrazoadamente o preo dos quartos, quando temos a honra de fixar-lhes um preorazovel.

    Quanto o aluguel desde ontem? Um lus, senhor, com a comida e o trato do cavalo. Bem. E o de hoje? A que est a dificuldade. Hoje o dia da chegada do rei; se a Corte vier dormir aqui, conta-

    se o dia todo. Disso resulta que trs quartos de dois luses cada um so seis luses. Dois luses,senhor, no nada, mas seis luses muita coisa.

    De rubro, o desconhecido se tornara lvido.Tirou da algibeira, com herica bravura, uma bolsa com armas bordadas, que escondeu,

    cuidadoso, na palma da mo. A bolsa era de uma magreza, de uma flacidez, de uma leveza que noescaparam aos olhos de Cropole.

    O desconhecido esgotou-a. Continha trs luses duplos, no valor de seis luses, como pedira oestalajadeiro.

    Cropole, porm, exigira sete.Olhou para o desconhecido como se dissesse: E depois? Falta um lus, no verdade, mestre albergueiro? Sim, senhor, mas...O estrangeiro vasculhou o bolso dos cales e esvaziou-o; continha uma carteirinha, uma chave de

    ouro e algumas moedas de prata.Com as moedas somou um lus. Obrigado, senhor disse Cropole. Agora, resta-me saber se Vossa Senhoria pretende ficar

    amanh tambm no apartamento, pois, nesse caso, eu lho reservarei; ao passo que se Vossa Senhoriapretende deix-lo, poderei promet-lo aos membros da comitiva de Sua Majestade que vo chegar.

    justo concordou o desconhecido depois de longo silncio mas como j no tenho

  • dinheiro, como pudeste ver, e, apesar disso, quero ficar com o apartamento, tereis de vender estebrilhante na cidade ou guard-lo como penhor.

    Cropole examinou durante tanto tempo o brilhante, que o outro se deu pressa em dizer: Prefiro que o vendais, senhor, pois vale trezentas pistolas. Um judeu, no h um judeu em

    Blois? vos dar duzentas por ele, ou at cento e cinqenta; aceitai o que ele der, nem que seja apenaso valor do aluguel. Ide!

    Oh! senhor exclamou Cropole, vexado da inferioridade em que o deixavam aquela entregato nobre e desinteressada e a inaltervel pacincia com que o hspede suportara tanta chicana etanta suspeita; oh! senhor, espero que no o furtem em Blois como Vossa Senhoria parece crer, evalendo o brilhante o que diz Vossa Senhoria...

    O estrangeiro fulminou Cropole com o olhar cerleo. No entendo disso, senhor, acredite exclamou o estalajadeiro. Mas os joalheiros entendem, interrogai-os. Agora, creio que as nossas contas esto acertadas,

    no verdade, senhor albergueiro? Sim, senhor, e com extremo pesar meu, pois receio ter ofendido Vossa Senhoria. De maneira nenhuma replicou o desconhecido com a majestade da onipotncia. Ou ter parecido esfolar um nobre viajante...Mas atribua Vossa Senhoria tudo isso necessidade. O assunto est encerrado, eu j disse, e fazei-me o favor de deixar-me a ss.Cropole inclinou-se profundamente e saiu desnorteado, o que indicava nele excelente corao e

    remorso verdadeiro.O desconhecido fechou a porta, examinou, quando ficou s, o fundo da bolsa, de onde tirara um

    saquinho de seda que encerrava o brilhante, seu nico recurso.Interrogou tambm o vazio das algibeiras, passou revista aos papis da carteirinha e convenceu-se

    da absoluta penria em que se encontrava.Ergueu os olhos para o cu num sublime movimento de calma e desespero, enxugou com a mo

    trmula algumas gotas de suor que lhe marejavam na testa nobre e devolveu terra um olhar cheio,havia pouco, de divina majestade.

    A tempestade passara longe dele; talvez tivesse orado com todas as veras de sua alma.Tornou a abeirar-se da janela, voltou ao seu lugar no balco, e l permaneceu imvel, sem

    expresso, morto, at o momento em que o cu principiou a escurecer, os primeiros archotescruzaram a rua flagrante e deram o sinal da iluminao a todas as janelas da cidade.

  • Captulo VII - Parry

    NQUANTO o desconhecido considerava com interesse as luzes e prestava ateno a todosos rudos, entrou-lhe no quarto Mestre Cropole com dois criados, que puseram a mesa.

    O estrangeiro nem deu pela presena deles. Mas, aproximando-se do hspede, Cropolesussurrou-lhe ao ouvido com profundo respeito:

    Senhor, o brilhante foi avaliado. Ah! disse o viajante. E ento? Ento, o joalheiro de Sua Alteza Real d por ele duzentas e oitenta pistolas. Tende-as conosco? Julguei dever receb-las, senhor; todavia, impus como condio do negcio que, se Vossa

    Senhoria quisesse guardar o brilhante at prover-se de fundos... o brilhante lhe seria devolvido. De modo nenhum; eu vos disse que o vendsseis. E eu obedeci, ou quase, visto que, sem o ter vendido definitivamente, recebi o dinheiro. Pagai-vos ajuntou o desconhecido. F-lo-ei, senhor, porque Vossa Senhoria o exige. Triste sorriso aflorou aos lbios do gentil-

    homem. Colocai o dinheiro sobre esse ba disse ele voltando-se e indicando o mvel com um gesto.Cropole deps no stio ordenado um saco bem gordo, de cujo contedo retirou o preo do aluguel. Agora disse ele Vossa Senhoria no me dar o desgosto de no cear... O jantar j foi

    recusado; isso ultrajante para o estabelecimento dos Mdicis. Veja, senhor, a ceia est servida eousarei acrescentar que tem bom aspecto.

    O desconhecido pediu um copo de vinho, partiu um pedao de po e nem sequer se afastou dajanela para comer e beber.

    Logo se ouviu grande arrudo de fanfarras e trombetas; gritos se ergueram ao longe, confusoclamor invadiu a parte baixa da cidade, e o primeiro som distinto que chegou aos ouvidos doestrangeiro foi o de patas de cavalos que se aproximavam.

    O rei! o rei! repetia a multido barulhenta e apressada. O rei! repetiu Cropole, que deixou o hspede e as suas idias de delicadeza para satisfazer a

    curiosidade.Com Cropole se chocaram e confundiram na escada a Sra. Cropole, Pittrino, os criados e os moos

    de cozinha.Adiantava-se lentamente o cortejo, aclarado por milhares de archotes, quer da rua, quer das

    janelas.Aps uma companhia de mosqueteiros e um corpo cerrado de fidalgos, vinha a liteira do Sr.

    Cardeal Mazarino, tirada como um carro por quatro cavalos pretos.Os pajens e criados do cardeal caminhavam atrs.Em seguida vinha a carruagem da rainha-me, cujas aias se comprimiam nas portinholas e cujos

    fidalgos cavalgavam dos dois Lados.Surgia depois el-rei, montado em belo cavalo de raa sax, de abundante crina. O jovem prncipe

    mostrava, cumprimentando algumas janelas de onde partiam as aclamaes mais entusisticas, orosto nobre e gracioso, alumiado pelos archotes dos pajens.

    Ao lado do rei, mais dois passos atrs, o Prncipe de Conde, o Sr. Dangeau e vinte cortesos,

  • seguidos de criados e bagagens, fechavam a marcha realmente triunfal.Toda essa pompa tinha uma disposio militar.Somente alguns ulicos, os mais velhos, vestiam trajos de viagem; quase todos envergavam o

    uniforme de guerra. Viam-se muitos com a gola e o gibo como no tempo de Henrique IV e de LusXIII.

    Quando el-rei passou diante dele, o desconhecido, que se inclinara sobre o balco para enxergarmelhor, e escondera o rosto no brao, sentiu o corao intumescer-se e transbordar de amarga inveja.

    O clangorar das trombetas o inebriava, as aclamaes populares ensurdeciam-no; por momentosperdeu a razo no meio do turbilho de luzes, tumultos e imagens brilhantes.

    Ele rei murmurou, com um acento de desespero e de angstia que deve ter subido ao tronode Deus.

    Depois, antes que tornasse em si dos seus sombrios devaneios, todo o rudo, todo o esplendor sedissiparam. Na esquina da rua, debaixo do estrangeiro, j no se ouviam seno algumas vozesdiscordantes, que esganiavam, a trechos: Viva o rei!

    Restavam tambm as seis velas seguras pelos habitantes da estalagem dos Mdicis, a saber: duascom Cropole, uma com Pittrino e uma com cada bicho de cozinha.

    O estalajadeiro no cessava de repetir: Como bonito o rei e como se parece com o seu finado e ilustre pai! Mas mais bonito. E que altivo semblante! acrescentava a Sra. Cropole, que j se metera em promiscuidade de

    comentrios com vizinhos e vizinhas.Cropole repetia as suas observaes pessoais, sem notar que um velho, a p, mas puxando um

    cavalinho irlands pela rdea, tentava romper o grupo de homens e mulheres diante dos Mdicis.Nesse momento se ouviu, janela, a voz do estrangeiro. Fazei, senhor hoteleiro, de jeito que possam entrar em vossa casa.Cropole voltou-se, deu com o velho e fez que lhe dessem passagem.Fechou-se a janela.Pittrino indicou o caminho ao recm-chegado, que entrou sem pronunciar uma palavra.O desconhecido esperava-o no patamar; abriu os braos para o velho e conduziu-o a uma cadeira,

    mas este resistiu. Oh! no, no, milorde disse ele. Sentar-me diante de vs! nunca! Parry bradou o fidalgo eu te suplico... tu que vens da Inglaterra... de to longe! Ah! no

    na tua idade que uma pessoa deveria suportar fadigas como as que impe o meu servio. Descansa... Primeiro que tudo, milorde, preciso dar-vos a minha resposta. Parry... eu te conjuro, no me digas nada... pois se a notcia fosse boa, no comearias assim.

    Fazes um rodeio, a notcia m. Milorde disse o velho no tenhais pressa em alarmarmos. Nem tudo est perdido, espero-

    o. preciso vontade, perseverana, e, sobretudo, resignao. Parry tornou o jovem vim para c sozinho, atravs de mil ciladas e mil perigos: acreditas

    na minha vontade? Meditei esta viagem dez anos, a despeito de todos os conselhos e de todos osobstculos: acreditas na minha perseverana? Vendi hoje noite o ltimo brilhante de meu pai,porque j no tinha com que pagar o meu teto, e o estalajadeiro ia despejar-me.

    Parry fez um gesto de indignao, a que o jovem respondeu por um aperto de mo e um sorriso. Ainda possuo duzentas e setenta e quatro pistolas, e considero-me rico; no desespero, Parry:

    crs na minha resignao?

  • O velho ergueu para o cu duas mos trmulas. Vejamos disse o estrangeiro no me ocultes nada: que aconteceu? A minha narrativa ser curta, milorde; mas, pelo amor de Deus, no tremais assim! de impacincia, Parry. Vejamos, que te disse o general? Em primeiro lugar, o general no quis receber-me. Tomou-te por algum espio. Sim, milorde, mas eu lhe escrevi uma carta. E ento? Ele recebeu-a e leu-a, milorde. A carta explicava bem a minha posio, os meus desejos? Oh! sim conveio Parry com triste sorriso... pintava fielmente o vosso pensamento. E ento, Parry? O general devolveu-me a carta por um ajudante de campo, mandando-me dizer que, no dia

    seguinte, se eu ainda me encontrasse na circunscrio do seu comando, mandar-me-ia prender. Prender! murmurou o rapaz; prender! a ti, ao meu servidor mais fiel! Sim, milorde. E, no entanto, assinaste Parry! Em todas as cartas, milorde; e o ajudante de campo me conheceu em Saint-James e ajuntou

    com um suspiro em White Hall!Inclinou-se o rapaz, cismador e sombrio. Isso foi o que ele fez sentir diante da sua gente murmurou, tentando iludir-se... mas em

    secreto... entre ele e ti... que fez? Responde. Ai de mim! Milorde, mandou-me quatro cavaleiros que me deram o cavalo em que me vistes

    voltar. Esses cavaleiros conduziram-me sempre correndo ao prtozinho de Tenby, atiraram-me abordo de um navio de pesca que se destinava Bretanha, e eis-me aqui.

    Oh! suspirou o rapaz apertando, com a mo nervosa, convulsivamente, a garganta a quesubia um soluo... s, Parry-, s isso?

    Sim, milorde, s.Seguiu-se breve resposta de Parry longo intervalo de silncio; ouvia-se apenas o rudo dos saltos

    do rapaz, que atormentavam com fria o piso da sala.O velho procurou mudar de assunto, que levava a pensamentos sinistros demais. Milorde perguntou que barulho foi esse que me precedeu? Quem era a gente que gritava:

    Viva o rei!... De que rei se trata e por que tantas luzes? Ah! Parry, tu no sabes retrucou, irnico, o jovem o rei da Frana que visita a sua boa

    cidade de Blois; todas essas trombetas so dele, todas essas gualdrapas douradas so dele, so deletodos esses fidalgos armados. Sua me o precede numa carruagem magnificamente incrustada deprata e de ouro! Me feliz! Seu ministro lhe amontoa milhes e condu-lo a uma noiva rica. Por isso opovo est alegre, ama o seu rei, aclama-o e grita: Viva o rei! Viva o rei!

    Bem! bem! milorde! disse Parry, mais inquieto com o tom da nova conversao que com oda outra.

    Sabes tornou o desconhecido que minha me, minha irm, enquanto tudo isso se passa emhonra do Rei Lus XIV, j no tm dinheiro, j no tm po; sabes que serei miservel e vilipendiadodentro em quinze dias, quando toda a Europa souber o que me acabas de contar!... Parry... haverexemplos de homens na minha condio que se tenham...

    Milorde, em nome do cu!

  • Tens razo, Parry, sou um covarde, e se no fao nada por mim, que far Deus? No, no, tenhodois braos, Parry, tenho uma espada...

    E bateu violentamente no brao com a mo e pegou na espada pendurada na parede. Que ides fazer, milorde? O que vou fazer, Parry? O que fazem todos na minha famlia: minha me vive da caridade

    pblica, minha irm mendiga para minha me, tenho por a irmos que mendigam tambm para si; eu,o mais velho, farei como todos eles, vou pedir esmola!

    E, ditas essas palavras, que atalhou inesperadamente com um frouxo nervoso e terrvel de riso,cingiu a espada, pegou no chapu sobre o ba, embrulhou-se na capa preta que usara durante aviagem e, apertando as mos do velho que o contemplava ansioso:

    Meu bom Parry disse ele manda que te faam fogo, come, bebe, dorme, s feliz: sejamosbem felizes, meu fiel amigo, meu nico amigo: somos ricos como reis!

    Deu um murro no saco de pistolas, que caiu pesadamente ao cho, tornou a desferir a lgubrecasquinada que tanto assustara Parry e, ao passo que toda a casa gritava, cantava e preparava-se parareceber e instalar os viajantes que tinham sido precedidos pelos respectivos lacaios, esgueirou-sepelo salo e dali saiu rua, onde o velho, que assomara janela, o perdeu de vista um minuto depois.

  • Captulo VIII - O que era sua majestade Lus XIV aos vinte e dois anos

    IMOS pela narrativa que tentamos fazer, que a entrada do Rei Lus XIV na cidade deBlois fora ruidosa e brilhante, de sorte que o jovem monarca parecera satisfeito.

    Chegando ao prtico do castelo dos Estados, l encontrou Sua Majestade, cercado deseus guardas e fidalgos, Sua Alteza Real o Duque Gasto de Orlans, cuja fisionomia, assazmajestosa de seu natural, se vira acrescentada, pela circunstncia solene em que se encontrava, denovo lustre e nova dignidade.

    De seu lado, ostentando grandes vestidos de cerimnia, esperava Madame num balco interior aentrada do sobrinho. Todas as janelas do velho castelo, to ermo e to triste nos dias comuns,regurgitavam de damas e de archotes.

    Foi, portanto, ao estardalhao dos tambores, das trombetas e dos vivas que o jovem rei transps olimiar do castelo, em que Henrique III, setenta e dois anos antes, invocara o auxlio do assassnio eda traio com o fito de manter sobre a cabea e em sua casa uma coroa que j lhe escorregava datesta para cair em outra famlia.

    Depois de haverem admirado o jovem rei, to belo, to encantador, to nobre, todos os olhoscomearam a procurar o outro rei de Frana, muito mais rei que o primeiro, e to velho, to plido,to curvado, a quem chamavam o Cardeal de Mazarino.

    Lus j reunia em si, naquela poca, todos os dotes naturais que possui o perfeito gentil-homem:tinha o olhar brilhante e suave, de um azul puro e crulo; mas os fisionomistas mais hbeis, essesescafandros da alma, fixando nele a vista, se a um vassalo fosse dado sustentar o olhar do rei, osmais hbeis fisionomistas, dizamos ns, no teriam podido encontrar jamais o fundo desse abismode suavidade.

    Porque os olhos do rei possuam a imensa profundeza dos azuis celestes, ou daqueles, ainda maisaterradores e quase to sublimes, que o Mediterrneo abre sob a quilha de seus navios num formosodia de vero, gigantesco espelho em que o cu se compraz em refletir ora as suas estrias ora as suastormentas.

    Era o rei de pequena estatura, pois media apenas cinco ps e duas polegadas; a juventude, porm,desculpava-lhe ainda esse defeito, compensado, alis, pela grande nobreza dos movimentos e porcerta habilidade em todos os exerccios corporais.

    J era, de fato, o rei, e era muito ser o rei nesse tempo de respeito e dedicao tradicionais; mascomo, at ento, o tivessem muito pouco e muito parcamente exibido ao povo, e como aqueles a quemera exibido o vissem invariavelmente ao lado da me, mulher de elevada estatura, e do senhorcardeal, homem de bela presena, muitos o achavam to pouco rei que diziam: O rei menor que osenhor cardeal.

    Sem embargo, todavia, dessas observaes fsicas que se faziam, sobretudo na capital, o jovemprncipe foi acolhido como um deus pelos habitantes de Blois, e quase como um rei pelo tio e pelatia, Monsieur e Madame, habitantes do castelo.

    Cumpre dizer, entretanto, que, ao ver na sala de recepo cadeiras de tamanho igual para si, parasua me, para o senhor cardeal, para a tia e para o tio, disposio habilmente disfarada pela formasemicircular da assemblia, Lus XIV rubejou de clera e relanceou os olhos em torno para verificar,pela fisionomia dos assistentes, se aquela humilhao lhe fora adrede preparada; mas como no vissenada no rosto impassvel do cardeal, nem no de sua me, nem no dos circunstantes, resignou-se e

  • sentou-se tendo o cuidado de sentar-se antes dos outros.

    Os fidalgos e as damas foram apresentados as Suas Majestades e ao senhor cardeal.Observou o rei que sua me e ele raro conheciam o nome das pessoas que lhes eram apresentadas,

    ao passo que o cardeal, pelo contrrio, com m