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Recife 2013 ALEXANDRE HENRIQUE SALEMA FERREIRA TRIBUTAÇÃO E REALIDADE SOCIOECONÔMICA: UMA PERSPECTIVA SISTÊMICA ACERCA DA QUESTÃO DOS CONTEÚDOS CONSTITUCIONAIS ANTAGÔNICOS Tese de doutorado

ALEXANDRE HENRIQUE SALEMA FERREIRA TRIBUTAÇÃO E … · Direitos Humanos Orientador: Prof. Dr ... (1 988)]. 5. Luhmann, Niklas, 1927 -1998. ... O processo de constitucionalização

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Recife

2013

ALEXANDRE HENRIQUE SALEMA FERREIRA

TRIBUTAO E REALIDADE SOCIOECONMICA: UMA PERSPECTIVA

SISTMICA ACERCA DA QUESTO DOS CONTEDOS

CONSTITUCIONAIS ANTAGNICOS

Tese de doutorado

Recife

2013

ALEXANDRE HENRIQUE SALEMA FERREIRA

TRIBUTAO E REALIDADE SOCIOECONMICA: UMA PERSPECTIVA

SISTMICA ACERCA DA QUESTO DOS CONTEDOS

CONSTITUCIONAIS ANTAGNICOS

Tese apresentada ao Programa de Ps-graduao em

Direito do Centro de Cincias Jurdicas/Faculdade de

Direito do Recife da Universidade Federal de

Pernambuco como requisito para obteno do ttulo

de doutor em Direito.

rea de concentrao: Teoria e Dogmtica do Direito

Linha de Pesquisa: Estado, Constitucionalizao e

Direitos Humanos

Orientador: Prof. Dr Gustavo Ferreira Santos

Catalogao na fonte Bibliotecria Eliane Ferreira Ribas CRB/4-832

F383t Ferreira, Alexandre Henrique Salema Tributao e realidade socioeconmica: uma perspectiva sistmica acerca da

questo dos contedos constitucionais antagnicos / Alexandre Henrique Salema Ferreira. Recife: O Autor, 2013.

253 f. Orientador: Gustavo Ferreira Santos. Tese (Doutorado) Universidade Federal de Pernambuco. CCJ. Programa de

Ps-Graduao em Direito, 2013. Inclui bibliografia. 1. Direitos humanos. 2. Direito constitucional. 3. Direito social - Brasil. 4. Brasil.

[Constituio (1988)]. 5. Luhmann, Niklas, 1927-1998. 6. Sociologia jurdica. 7. Processo tributrio - Brasil. 8. Pobres - Brasil. 9. Renda - Brasil. 10. Imposto - Brasil. I. Santos, Gustavo Ferreira (Orientador). II. Ttulo.

344.03CDD (22. ed.) UFPE (BSCCJ2013-029)

http://catalogos.bn.br/scripts/odwp032k3.dll?t=bs&pr=catalogo_digitalizado_pr&db=catalogo_digitalizado&use=sh&disp=list&sort=off&ss=NEW&arg=direito|constitucionalhttp://catalogos.bn.br/scripts/odwp032k3.dll?t=bs&pr=catalogo_digitalizado_pr&db=catalogo_digitalizado&use=sh&disp=list&sort=off&ss=NEW&arg=pobres|-|brasil

Dedico a EDUARDO, meu neto.

AGRADECIMENTOS

A ANA MARIA DA PAIXO DUARTE, pelo incentivo e pacincia;

Ao corpo docente do Programa de Ps-graduao em Direito da Universidade Federal

de Pernambuco, pelos ensinamentos atualizados e abnegados que nos foram ministrados;

s amigas CARMINHA E GILKA, pela pacincia no trato comigo e incentivo na

concluso do curso;

Universidade Estadual da Paraba e Secretaria de Receita do Estado da Paraba,

por possibilitarem minha qualificao acadmica.

FERREIRA, Alexandre Henrique Salema. Tributao e realidade socioeconmica: uma

perspectiva sistmica acerca da questo dos contedos constitucionais antagnicos. 2013.

254f. Tese (Doutorado em Direito) Programa de Ps-Graduao em Direito, Centro de

Cincias Jurdicas / FDR, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2013.

Palavras-chave: constitucionalismo, tributao, realidade socioeconmica.

RESUMO

O processo de constitucionalizao dos direitos fundamentais apresenta-se, a partir da

modernidade, como uma importante resposta elevao da complexidade social. Esse

processo, contudo, no se obrigou a produzir um resultado socioeconmico especfico. As

constituies dos Estados social e de bem-estar portam contedos antagnicos, que resultam

em um descompasso entre as projees constitucionais dos direitos fundamentais e a realidade

socioeconmica dos indivduos. Esse descompasso potencialmente ampliado quando a

sociedade se defronta com os encargos financeiros decorrentes da efetivao dos direitos

fundamentais. A presente tese tem o objetivo geral de descrever as relaes que o modelo de

financiamento estatal albergado na Constituio Federal de 1988 mantm com o

desenvolvimento socioeconmico. A fim de descrever essa relao propomos um modelo

emprico de investigao qualitativa com base no mtodo descritivo-funcionalista de

Luhmann. As constituies so descritas como um acoplamento estrutural entre os

subsistemas da poltica e do direito, sugerindo que a constitucionalizao dos direitos

fundamentais simplesmente representa operaes controladas por esses subsistemas. No

perodo de 1990 a 2009, a carga tributria teve um incremento real acumulado acima do PIB.

Os indicadores sociais relacionados rea temtica renda demonstram que ainda persiste o

problema da concentrao de renda e da pobreza. A estrutura de apropriao da renda no pas

manteve-se praticamente inalterada. No existe qualquer evidncia de que a elevao da carga

tributria tenha sido destinada a socorrer o passivo social brasileiro.

FERREIRA, Alexandre Henrique Salema. Taxation and economic reality: a systemic

perspective on the issue of constitutional antagonistic content. 2013. 254f. Thesis (Doctor of

Law) - Postgraduate Program in Law, Center for Legal Sciences / FDR, Federal University of

Pernambuco, Recife, 2013.

Keywords: constitutionalization, taxation, socioeconomic reality.

ABSTRACT

The process of constitutionalization of fundamental rights emerges in modernity as an

important response to the increasing of social complexity. However, this process is not

obligated to produce a specific socioeconomic result. The constitutions of social and welfare

States may hold antagonic contents that result in a mismatch between constitutional

projections of fundamental rights and individuals socioeconomic reality. This mismatch

potentially increases when society faces financial charges from the enforcement of

fundamental rights. The main objective of the present thesis is to describe the relationship

between the financing model contained in the Constitution and the socioeconomic

development. Aiming to describe this relationship we propose an empiric model of qualitative

investigation based on Luhmanns functionalist-descriptive method. The theoretical-

systematic research enabled to describe the constitutions as a structural coupling between

political and legal subsystems, suggesting that the constitutionalization of fundamental rights

just represents the operations controlled by these subsystems. The tax burden cumulatively

rose over GDP from 1990 to 2009. Social indicators related to the income thematic area have

demonstrated that problems of income concentration and poverty prevail. The structure of

revenue appropriation has been almost the same in the country. There has been no evidence

that the increase in tax burden has been designed to aid Brazilian social liability.

FERREIRA, Alexandre Henrique Salema. Tassazione e realt socioeconomica: una

prospettiva sistemica sulla questione dei contenuti costituzionali antagoniste. 2013. 254F. Tesi

(Dottore in Legge) - Programma di laurea in Giurisprudenza, Centro per le Scienze giuridiche

/ FDR, Universit Federale di Pernambuco, Recife, 2013.

Parole-chiave: costituzionalismo, tassazione, realt socioeconomica.

RIASSUNTO

Il processo di costituzionalizzazione dei diritti fondamentali viene presentato, a partire dalla

modernit, come una risposta importante alla crescita della complessit sociale. Questo

processo, tuttavia, non destinato a produrre un determinato esito socioeconomico. Le

costituzioni degli stati sociali e del benessere possiedono contenuti antagonista, causando una

mancata corrispondenza tra le proiezioni costituzionali dei diritti fondamentali della persona e

la realt economica. Questa discrepanza potenzialmente amplificata quando la societ si

trova ad affrontare l'onere finanziario derivante dall'effettivazione dei diritti fondamentali.

Questa tesi ha come obiettivo generale quello di descrivere le relazioni che il modello di

finanziamento alloggiata nella Costituzione federale del 1988 mantengono con lo sviluppo

socio-economico. Per descrivere questo rapporto, proponiamo una ricerca empirica di base

qualitativa con metodo descrittivo - funzionalista di Luhmann. Le costituzioni sono descritte

come un accoppiamento strutturale tra i sottosistemi di politica e diritto, il che suggerisce che

la costituzionalizzazione dei diritti fondamentali rappresenta operazioni controllate da questi

sottosistemi. Nel periodo dal 1990 al 2009, la pressione fiscale ha avuto un incremento reale

cumulativo al di sopra del PIB. Gli indicatori sociali legati all'area tematica reddito

dimostrano che c' ancora il problema della concentrazione del reddito e della povert. La

struttura di propriet del reddito nazionale rimasto pressoch invariato. Non ci sono prove

che l'aumento delle tasse abbia contribuito al passivo sociale brasiliano.

LISTA DE GRFICOS

Grfico 1 Variao real acumulada da carga tributria, do PIB e dos Salrios e

Remuneraes ......................................................................................................................... 188

Grfico 2 Variao real acumulada dos tributos diretos, incidentes sobre as pessoas fsica e

jurdica, e dos tributos indiretos ............................................................................................. 190

Grfico 3 Composio da carga tributria brasileira ........................................................... 190

Grfico 4 ndices relacionais da carga tributria ................................................................. 191

Grfico 5 Renda mdia ........................................................................................................ 204

Grfico 6 Apropriao da renda .......................................................................................... 205

Grfico 7 Coeficiente de Gini .............................................................................................. 207

Grfico 8 Linhas de pobreza e de extrema pobreza............................................................. 208

LISTA DE QUADROS

Quadro 1 Incidncia jurdica e econmica dos tributos ...................................................... 194

Quadro 2 ndices da carga tributria.................................................................................... 247

LISTA DE TABELAS

Tabela 1 Valores nominais da CTB, do PIB e dos Salrios e Rendimentos ....................... 245

Tabela 2 Classificao econmica dos tributos ................................................................... 246

Tabela 3 Valores nominais da carga tributria brasileira .................................................... 246

Tabela 4 Valores dos ndices da carga tributria ................................................................. 248

SUMRIO

1 INTRODUO .................................................................................................................. 14

2 A TEORIA DOS SISTEMAS E O ESFORO TERICO DESCRITIVO DA SOCIEDADE CONTEMPORNEA .................................................................................... 29

2.1 O RECONHECIMENTO DA ORDEM SOCIAL COMO UM DADO REAL E A

QUESTO DE SUA EXISTNCIA AUTNOMA ............................................................... 30

2.1.1 Elemento constitutivo e identidade da ordem social ............................................... 31

2.1.1.1 As relaes de continncia e pertencimento entre ordem social e indivduo ............. 32

2.1.1.2 As relaes que ressaltam a diferenciao entre ordem social e indivduo................ 33

2.1.1.2.1 O problema da ausncia de critrios de delimitao da identidade da ordem

social......................... ................................................................................................................ 33

2.1.1.2.2 A questo da preservao da identidade da ordem social ...................................... 34

2.1.2 A inevitvel (mas, pertinente) questo das estruturas sistmicas .......................... 35

2.1.2.1 O estruturalismo e a questo da subjetividade individual .......................................... 36

2.2 A SUPERAO DO ORGANICISMO E DO ESTRUTURALISMO CLSSICO ..... 37

2.2.1 A teoria dos sistemas abertos ..................................................................................... 38

2.2.1.1 Operao que d identidade ao sistema social (a ao individual) ............................ 39

2.2.1.1.1 O significado social da ao individual e as estruturas sociais .............................. 40

2.2.1.2 As dificuldades enfrentadas pela teoria dos sistemas abertos .................................... 41

2.2.2 A teoria dos sistemas fechados ................................................................................... 43

2.2.2.1 A identidade sistmica a partir do encerramento operativo ....................................... 43

2.2.2.1.1 A capacidade de o sistema auto-observar-se ........................................................... 45

2.2.2.2 Os conceitos tericos da autorreferncia e da autopoiesis ......................................... 45

2.2.2.3 O paradoxo da unidade sistmica ............................................................................... 47

2.2.2.3.1 O acoplamento estrutural ........................................................................................ 48

2.2.2.3.2 A ressonncia no sistema das perturbaes do meio .............................................. 50

3 A TEORIA GERAL DA SOCIEDADE DE LUHMANN .............................................. 52

3.1 A OPERAO QUE D IDENTIDADE AO SISTEMA SOCIAL (A

COMUNICAO) ................................................................................................................... 52

3.1.1 A diferenciao operativa entre sociedade e indivduo ........................................... 54

3.1.2 O indivduo como fonte de instabilidade do sistema social ..................................... 55

3.1.2.1 A questo da insensibilidade sistmica ...................................................................... 56

3.1.2.2 A possibilidade de reduo da complexidade pelo prprio meio ............................... 58

3.1.3 Os elementos da comunicao ................................................................................... 59

3.2 AS REFERNCIAS DA LINGUAGEM ........................................................................ 62

3.2.1 Os signos da linguagem e os mecanismos adicionais linguagem ......................... 63

3.2.1.1 O problema da improbabilidade da comunicao ...................................................... 65

3.2.1.2 A resposta da linguagem destinada a elevar o xito da comunicao ........................ 67

3.2.2 Os cdigos simbolicamente generalizados dos meios de comunicao .................. 68

3.2.2.1 As bases restritas de aceitao da comunicao ......................................................... 71

3.2.2.2 O efeito catalisador e a funo de incentivo dos meios de comunicao ................... 71

3.2.3 Os cdigos binrios e a questo da objetivao da vida .......................................... 74

3.3 A MEDIAO TEMPORAL DA COMUNICAO E A ESTABILIZAO

SOCIAL... ................................................................................................................................. 77

3.3.1 Complexidade social e resoluo no-violenta de conflitos ..................................... 79

3.3.1.1 A formao dos subsistemas sociais .......................................................................... 80

3.3.1.2 A diferenciao sistmica e a resoluo no-violenta de conflitos ............................ 84

3.3.2 O subsistema da poltica e as decises coletivas vinculantes ................................... 85

3.3.2.1 O poder como processo comunicacional .................................................................... 86

3.3.2.2 A regulao poltica como decises que os indivduos desejam evitar ...................... 88

3.3.2.2.1 A diferenciao entre poder e coero .................................................................... 90

3.3.2.3 A efetivao do poder e a preservao da seletividade individual ............................. 91

3.3.2.4 A questo da transmisso da ao atravs da comunicao ....................................... 93

3.3.3 O subsistema do direito e a estabilizao das relaes sociais ................................ 95

3.3.3.1 O direito como processo comunicacional .................................................................. 96

3.3.3.2 A regulao jurdica dos conflitos entre expectativas normativas ............................. 98

3.3.3.3 A diferenciao entre normalidade e normatividade ................................................ 100

3.3.3.3.1 A norma com qualidade jurdica ........................................................................... 101

3.3.4 O subsistema da economia e a alocao de recursos escassos .............................. 103

3.3.4.1 A tentativa de disciplinamento jurdico da escassez ................................................ 104

3.3.4.1.1 A diferenciao operativa do subsistema da economia em relao ao subsistema do

direito...................................................................................................................................... 106

3.3.4.2 A economia como processo comunicacional ........................................................... 107

3.3.4.3 A regulao econmica da escassez ......................................................................... 110

3.3.4.3.1 A perspectiva sistmica da racionalidade econmica ........................................... 111

4 O CONSTITUCIONALISMO COMO RESPOSTA SISTMICA NO ENFRENTAMENTO DA COMPLEXIDADE SOCIAL .................................................. 114

4.1 DO ESTADO LIBERAL AO ESTADO DE BEM-ESTAR ......................................... 114

4.1.1 A questo da sustentabilidade fiscal ....................................................................... 120

4.2 A RESPOSTA SISTMICA DO CONSTITUCIONALISMO .................................... 126

4.2.1 A constituio como processo comunicacional ....................................................... 129

4.2.1.1 A questo da concretizao normativa constitucional ............................................. 131

4.2.1.2 A institucionalizao concorrente dos direitos ......................................................... 133

4.2.2 A questo da efetivao material dos direitos fundamentais ................................ 139

4.2.2.1 A concorrncia dos direitos clssicos com os direitos sociais ................................. 142

4.2.2.2 A associao poltica nos Estados social e de bem-estar: o novo-velho projeto de

associao poltica entre indivduos atomizados .................................................................... 143

4.3 A MEDIAO PRISMTICA .................................................................................... 145

4.3.1 As estratgias sistmicas ........................................................................................... 149

4.3.1.1 A procedimentalizao da democracia ..................................................................... 150

4.3.1.1.1 O desapego s questes materiais ......................................................................... 151

4.3.1.1.2 O procedimento democrtico e o problema da vinculao formal e

material................................................................................................................... ................ 152

4.3.1.2 A tecnizao do direito ............................................................................................. 155

4.3.1.2.1 O universalismo jurdico da isonomia ................................................................... 156

4.3.1.3 A tutela funcional do mercado ................................................................................. 161

4.3.1.3.1 Os mercados imperfeitos e a interveno estatal .................................................. 164

4.3.1.3.2 A interveno estatal e o paradoxo da unidade pblico-privada .......................... 165

4.3.1.3.3 A interveno estatal e questo da fluncia de mercado ....................................... 167

4.4 A QUESTO DA EXPANSO DO CDIGO DO SUBSISTEMA DA

ECONOMIA..... ...................................................................................................................... 169

4.4.1 O projeto poltico-econmico totalizante do neoliberalismo ................................ 171

4.4.1.1 O constitucionalismo e o enfrentamento da complexidade social decorrente da

prevalncia do cdigo do subsistema da economia ................................................................ 173

4.4.1.2 O papel do Estado social .......................................................................................... 175

5 A EMERGNCIA DA CONSTITUIO FEDERAL DE 1988 EM UM CONTEXTO DE FORTE RESSURGIMENTO DO LIBERALISMO ECONMICO ........................ 179

5.1 O MODELO TRIBUTRIO ALBERGADO NA CONSTITUIO FEDERAL DE

1988 E OS RESULTADOS MATERIAIS DAS DCADAS SUBSEQUENTES ................ 184

5.2 OS RESULTADOS MATERIAIS NAS DCADAS SUBSEQUENTES

PROMULGAO DA CONSTITUIO FEDERAL DE 1988 .......................................... 187

5.2.1 A realidade material-tributria ............................................................................... 188

5.2.1.1 As decises polticas e seus desdobramentos socioeconmicos .............................. 192

5.2.1.1.1 O desapego repercusso econmica dos tributos ............................................... 193

5.2.1.1.2 O desrespeito ao princpio da capacidade econmica .......................................... 196

5.2.1.2 Os discursos da troca compensatria........................................................................ 198

5.2.2 A realidade socioeconmica ..................................................................................... 202

5.2.2.1 Trs tentativas de elucidao da realidade socioeconmica subsequente

promulgao da Constituio Federal de 1988....................................................................... 210

5.2.2.1.1 A finitude das receitas pblicas e a questo da apropriao dos recursos

pblicos................................................................................................................... ................ 211

5.2.2.1.2 O risco de vulnerabilidade social na contemporaneidade .................................... 216

5.2.2.1.3 A imposio fiscal e a questo do "socialism within one class" ............................ 220

6 CONSIDERAES FINAIS .......................................................................................... 224

REFERNCIAS ................................................................................................................... 235

APNDICE ........................................................................................................................... 241

1 INTRODUO

A multiplicidade de indivduos e de relaes entre ausentes impe s teorias sociais o

desafio de enfrentar a questo da complexidade social1 e da escassa possibilidade de relaes

diretas e imediatas entre esses indivduos. E exatamente sobre a questo do excesso de

possibilidades nas sociedades contemporneas2 de relaes indiretas e mediatas entre

indivduos que emerge o impulso terico destinado a ultrapassar os conceitos iluministas, tais

como o culto razo, ao humanismo, ao indivduo etc., que j no oferecem as condies

descritivas da realidade social atual (LUHMANN, 2009a).

No mbito do direito, uma importante resposta complexidade social pode ser

evidenciada atravs do fenmeno da constitucionalizao de temas juridicamente relevantes.

A partir das revolues liberais do sculo XVIII, a gradual e progressiva ampliao da

participao poltica (universalizao do sufrgio) e a consequente emergncia das novas

demandas coletivas determinaram a crescente constitucionalizao3 dos direitos

fundamentais: primeiro, os civis; em seguida, os polticos e, por fim, os sociais4 (BOBBIO,

2005; DAHL, 2009; MACPHERSON, 2009; SARTORI, 2008). O processo de

constitucionalizao dos direitos fundamentais encontra correspondncia em trs distintos

tipos-ideais de Estados que emergiram a partir da modernidade: o Estado liberal, o Estado

social e, enquanto derivao desse ltimo, o Estado de bem-estar.

Como tipos-ideais, os Estados liberal, social e de bem-estar devem se diferenciar.

Como em toda tipificao, as caractersticas que do identidade aos trs modelos de Estado

devem ser entendidos como meras referncias demarcatrias que impem limites (tericos,

polticos, jurdicos e econmicos, dentre outros) entre um tipo e outro. Por isso, muitas vezes

surge dificuldade de relacionar precisamente um determinado Estado com os tipos-ideais, em

especial porque as caractersticas especficas dos tipos-ideais terminam realisticamente

convivendo. Apesar disso, possvel indicar que o Estado liberal se prende ideia da garantia

formal da "igualdade na liberdade", traduzida atravs dos princpios da "igualdade perante a

lei" e da "igualdade de direitos" (BOBBIO, 2005, p. 39). Para isso, so impostas restries

1 Luhmann (1990, p. 69) define a complexidade como "[] un conjunto interrelacionado de elementos cuando ya no es posible que cada

elemento se relacione en cualquier momento con todos los dems, debido a limitaciones inmanentes a la capacidad de interconectarlos". 2 Essas sociedades so incompatveis com os modelos de associao humana fundamentados na diferenciao segmentria (hierarquizada) das sociedades tradicionais ou na diferenciao estratificada (dos estratos e classes sociais) das sociedades modernas. Claro que as

sociedades estratificadas tambm se caracterizam pela associao poltica de indivduos atomizados, mas o fato de os indivduos estarem

desprovidos da condio de livres e iguais faz com que este modelo seja inapropriado para caracterizar as sociedades contemporneas. 3 Segundo Santori (2008) a histria do constitucionalismo encontra uma primeira referncia na Magna Charta, de 1215. Contudo, em seu

sentido moderno, ou seja, do governo das leis, a constituio tem uma primeira referncia na Revoluo Americana de 1776 e, em

contiguidade, na Revoluo Francesa (Declarao Francesa de 1789). 4 Segundo Macpherson (1991, p. 40) os direitos civis e polticos "[...] remontam aos sculos XVII e XVIII: foram os principais objetivos das

revolues inglesa, francesa e americana daqueles sculos", enquanto os direitos sociais e proteo socioeconmica do indivduo emergiram

durante e principalmente aps a segunda grande guerra.

15

constitucionais ao poder estatal, a fim de garantir a liberdade da atuao individual. Por sua

vez, o Estado social, inaugurado pela Constituio de Weimar de 1917, evidencia a

constitucionalizao de limites aos poderes econmico e social em outras palavras, limites

atuao privada individual , anteriormente desprezados pelo liberalismo poltico-econmico

clssico, enquanto o Estado de bem-estar5 se destina a "limitar o alcance das foras de

mercado" (SCHARPF, 2002), na tentativa de proporcionar ampla proteo socioeconmica ao

indivduo. Contudo, no propriamente a essa diferenciao que desejamos nos prender. Por

isso, a discusso acima devemos reconhecer, passageira e imprudente porque merecedora de

mais ateno apenas serve de subsdio para acentuar a caracterstica que d unicidade aos

Estados liberal, social e de bem-estar.

Apesar da diferenciao entre os tipos-ideais, a ideia moderna do Estado

constitucional, em qualquer caso, porta aquilo que Nabais (2007) denominou de "estatuto

constitucional do indivduo", ou seja, na insero em sede constitucional de dispositivos que

tratam da "liberdade e dos direitos que a concretizam" (NABAIS, 2007, p. 163). Assim,

enquanto no plano retrico podem ser ressaltadas as diferenciaes, no plano formal os trs

tipos-ideais de Estados modernos esto assentados no estatuto constitucional que d

centralidade ao indivduo. Para Nabais (2007) todas as constituies modernas, a partir do fim

do sculo XVIII, tiveram por fundamento a Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado,

de 1789. Por isso, todos os textos constitucionais "[...] no deixam de ser expresso duma

evoluo que comeou justamente nessas declaraes de direitos" (NABAIS, 2007, p. 166).

Assim, apesar de os Estados social e de bem-estar representarem relevantes etapas evolutivas

da associao poltica entre indivduos livres e iguais, necessrio reconhecer que ambos, tal

qual o Estado liberal6, no deixam de ser o reflexo das sociedades compostas por indivduos

atomizados, maximizadores, portanto, de seus interesses individuais, conforme preconizado

por Macpherson (2005) em sua teoria do individualismo possessivo. A diferena entre um e

outro reside, em essncia, no fato de, no Estado social, a prevalncia do indivduo atomizado

ser mitigada pela constitucionalizao de limites atuao individual e, no Estado de bem-

estar, a prevalncia das regras de mercado ser mitigada pela constitucionalizao de ampla

proteo socioeconmica do indivduo.

De qualquer forma, os princpios inauguradores tanto do Estado social como do

Estado de bem-estar sempre conviveram no plano constitucional com os fundamentos do

liberalismo econmico clssico. Parece natural, ento, que o fenmeno de insero em sede

5 Scharpf (2000a) tipifica trs modelos distintos de Estados de Bem-estar: o escandinavo, o continental e o anglo-saxo, conforme ser

tratado no item 4.1. 6 Para Bobbio (2005), a diferena entre um e outro no se encontra no liberalismo poltico, mas, sim, no liberalismo econmico.

16

constitucional de dispositivos (em seus diversos contedos civis, polticos e sociais) que

tratam da liberdade do indivduo e dos direitos que os garantem estivesse sujeito aos mais

diversos influxos e que, por isso, terminasse refletindo, no plano formal-constitucional, os

mesmos antagonismos presentes na sociedade, ou seja, terminasse reproduzindo as mesmas

diferenas polticas, econmicas e sociais.

A questo da capacidade de as constituies portarem contedos antagnicos ainda

mais ampliada com a emergncia do Estado social e, principalmente, com a emergncia do

Estado de bem-estar, no final do sculo XIX e incio do sculo XX, o qual atingiu seu apogeu

no ps-segunda guerra sob condies de forte protecionismo e restries aos mercados

internacionais de capital e de produtos (SCHARPF, 1999). As constituies dos Estados

social e de bem-estar explicitam extenso rol de liberdade ao indivduo e amplas garantidas

individuais inclusive enumerando os instrumentos e os aparatos estatais necessrios ao

exerccio dessa liberdade e dessas garantias , enquanto deixam de traar tipos mnimos de

direitos, exigveis concreta e imediatamente7, necessrios existncia humana digna. Isso no

que dizer que deva ser atribudo um menor protagonismo ao estatuto constitucional do

indivduo, mas apenas reconhecer que suas projees possuem alcance limitado, e que,

mesmo nos Estados social e de bem-estar, torna-se previsvel o descompasso entre projees

constitucionais dos direitos fundamentais e realidade material8. Por exemplo, em relao

socialdemocracia europeia, Scharpf (2002) descreve a concorrncia entre contedos que

adquirem o mesmo nvel constitucional, mas que se diferenciam quanto efetivao, tal como

possvel inferir a partir da assimetria entre polticas de promoo da eficincia de mercado e

polticas de promoo da proteo e da igualdade social. Compreender esse descompasso se

torna, ento, um grande desafio (BARCELLONA; NABAIS; NEVES), em especial porque a

mera previso no plano constitucional de inmeros direitos (tais como, por exemplo, direito

sade, educao, ao desenvolvimento, ou a um meio ambiente equilibrado, dentre outros)

pode se tornar um acinte quando sequer se garante, no plano material, o direito (concreta e

imediatamente exigvel) a uma existncia humana digna maioria dos indivduos. Esse

problema potencialmente ampliado quando o direito se prende, quase que de forma

exclusiva, s comemoraes relativas emergncia de novos direitos que jamais sero

7 De alguma forma o constitucionalismo equiparou os direitos sociais aos direitos clssicos e, com isso, produziu diferenciaes importantes.

Por exemplo, os instrumentos processuais disponveis so incuos ao exerccio dos direitos sociais. Concretamente, apesar da ampla previso constitucional de direitos sociais, na atualidade ainda convivemos com a precariedade do emprego e da renda, da sade, da educao, da

segurana, do transporte coletivo, dentre outros. Por outro lado, as recentes crises financeiras de 2008 e 2011, que assolaram a Amrica do

Norte e a Europa, respectivamente, trouxeram tona discusses acerca da necessidade de "flexibilizar" alguns direitos sociais previstos em sede constitucional. A justificativa para isso que diante da eminncia de uma catstrofe a dimenso econmica, concretamente, tem

prevalncia em relao dimenso poltico-jurdica. 8 De forma especfica, Neves (2007) coloca essa questo em termos da constitucionalizao simblica.

17

efetivados concretamente, dando ocasio quilo que Nabais (2007, p. 168) chamou de mero

"[...] discurso quantitativo dos direitos fundamentais [...]".

A discusso acerca do descompasso entre projees constitucionais dos direitos

fundamentais e realidade material, da forma como foi acima colocada, deixa de ressaltar a

diferenciao que Nabais (2007, p. 164-165) afirma existir entre "[...] a constituio do

indivduo ou dos direitos fundamentais, a constituio poltica ou da organizao poltica e a

constituio econmica ou da organizao econmica". Essa diferenciao adquire relevncia

porque a ideia da centralidade do indivduo nos Estados social e de bem-estar termina por

sobrecarregar os estatutos constitucionais da poltica e da economia. De fato, o estatuto

constitucional do indivduo ocupa-se em projetar as mais diversas expectativas de direitos

fundamentais que, para se efetivarem, demandariam decises polticas e econmicas

decises externas, que no so prprias, portanto, do estatuto constitucional do indivduo. Isso

corresponde a dizer que o estatuto constitucional do indivduo no tem o condo de produzir,

por si s, um determinado resultado material. Pelo contrrio, sempre estar na dependncia de

os estatutos constitucionais da poltica e da economia proporcionarem as condies sob as

quais os direitos fundamentais podero se efetivar. E aqui vem tona o problema de o estatuto

constitucional do indivduo no encontrar correspondncia nos estatutos constitucionais da

poltica e da economia. Por exemplo, enquanto o estatuto constitucional do indivduo atribui

direitos fundamentais, o estatuto constitucional da poltica colocado sob presso9 por no

conseguir atender concretamente a todas as demandas por efetivao dos direitos (devemos

lembrar que as receitas pblicas so sempre finitas).

Por sua vez, o estatuto constitucional da economia, em uma economia de mercado, no

pode, claro, obrigar-se a afetar a organizao econmica a fim de produzir uma melhor

distribuio da riqueza entre os indivduos livres e iguais de uma determinada associao

poltica. Os direitos fundamentais, portanto, encontram realisticamente seus limites nas

condies polticas e econmicas sob as quais podero se efetivar10

. E uma dessas condies

diz respeito ao financiamento desses direitos. Neste ponto, o estatuto constitucional do

indivduo coloca para os estatutos da poltica e da economia a complexa tarefa de determinar

quais agentes econmicos (consumidores, assalariados, empresas etc.) devero assumir os

encargos financeiros do Estado destinados efetivao dos direitos fundamentais. Em outras

palavras, quais agentes econmicos devero ter suas riquezas individuais afetadas pela

9 Bobbio (2005, p. 93) aponta que "[...] os regimes democrticos so caracterizados por uma desproporo crescente entre o nmero de

demandas provenientes da sociedade civil e a capacidade de resposta do sistema poltico [...]" 10 Acreditamos que a superdimensionamento valorativo da poltica e do direito em relao aos contedos socioeconmicos protetivos

previstos no estatuto constitucional do indivduo tem o condo de desprezar a relevncia que possui a economia na efetivao dos direitos

fundamentais sociais.

18

tributao, a fim de proporcionar receitas pblicas destinadas a custear os direitos

fundamentais. E, claro, os desdobramentos concretos terminam por revelar que a efetivao

dos direitos fundamentais (qualquer um deles, sejam os civis, os polticos ou os sociais) se d

custa do sacrifcio financeiro dos indivduos (SCHARPF, 1991), eles prprios objeto do

estatuto constitucional protetivo.

Por tudo isso, a evoluo do Estado liberal na direo do Estado social, e, em especial,

a derivao desse ltimo para o Estado de bem-estar, termina por revelar que a expanso dos

direitos fundamentais sempre se apresenta concorrente porquanto direitos, qualquer um deles,

nunca so gratuitos (NABAIS, 2007). E aqui o caso at mesmo de ressaltar que o estatuto

constitucional do indivduo se ocupa de distribuir direitos fundamentais, sem revelar, contudo,

os correspondentes encargos financeiros decorrentes desses direitos. Como bem diz Nabais

(2007, p. 163), essa "[...] a face oculta do estatuto constitucional do indivduo"11

. Por isso,

os modelos de financiamento dos Estados social e de bem-estar fornecem uma boa sntese do

descompasso entre projees constitucionais dos direitos fundamentais e realidade material,

em especial quanto questo da equalizao entre sacrifcio individual na manuteno

financeira do Estado e contraprestaes sociais (presena social) do Estado, em outros termos,

a relao entre aquilo que o Estado retira da riqueza individual e aquilo que, como Estados

social e/ou de bem-estar, obrigam-se a proporcionar (proteo socioeconmica do indivduo).

A relao entre a distribuio dos encargos da manuteno financeira do Estado (quem

suporta o nus tributrio) e destinao dos recursos pblicos (quem se apropria dos recursos

pblicos) ganha um protagonismo tal que a partir dela possvel, inclusive, revelar o modelo

de associao poltica entronizado em sede constitucional.

De qualquer forma, a discusso ainda atual acerca do Estado de bem-estar, tal como o

conhecemos no ps-segunda guerra, deixa de revelar que, a partir da dcada de 1970, os

Estados de bem-estar das democracias avanadas se deparam com a impossibilidade ftica de

financiar a proteo socioeconmica do indivduo (SCHARPF, 1991), apesar da

institucionalizao, no plano constitucional, de amplos direitos fundamentais sociais. A

questo do financiamento dos direitos fundamentais se agudiza com o fenmeno da

internacionalizao dos mercados de capital e de produtos, a partir dos anos 1980

(SCHARPF, 1999), uma vez que a mobilidade dos agentes econmicos (liberalizao da

economia) causa a interdependncia das escolhas polticas nacionais:

11 Ou seja, "[...] a face oculta da liberdade e dos direitos, que o mesmo dizer da responsabilidade e dos deveres e custos que a materializam

[...]" (NABAIS, 2007, p. 163).

19

Como consequncia da mobilidade em potencial dos atores e fatores econmicos h

agora um grau muito elevado de interdependncia no apenas entre as economias

nacionais anteriormente setorizadas, mas tambm entre escolhas de poltica nacional

que afetam a economia. Se um governo corta as contribuies da seguridade social,

isso reduz a competitividade internacional dos produtos provenientes de outros

pases que no agiram da mesma forma; e se um pas reduz seu ndice de tributao

sobre a empresa, isso criar incentivos para que as empresas reloquem suas sedes.

Por isso, , de fato, errado pensar que somente as empresas esto em competio

umas com as outras. A interdependncia econmica cria uma constelao em que os

Estados-nao se encontram competindo uns com os outros por parcelas nos

mercados de produtos, por capital de investimento e por fontes de rendimentos

tributveis, e em que essa competio restringe as suas escolhas entre opes de

polticas macroeconmicas, regulatrias e fiscais.12

(SCHARPF, 1998).

A partir das discusses acima se insere a presente investigao de tese a fim de

compreender se os amplos direitos fundamentais, em especial os socioeconmicos, projetados

a partir da Constituio Federal de 1988 encontram correspondncia na realidade material

brasileira no perodo subsequente a sua promulgao. E aqui, claro, necessrio ressaltar que,

em relao ao estatuto constitucional do indivduo, a referida Constituio no deixa de

espelhar "[...] a conjuntura poltica, social e cultural do segundo ps-guerra [...]" (NABAIS,

2007, p. 166), conjuntura esta, claro, que norteou a elaborao das mais diversas constituies

a partir do final do segundo quartil do sculo XX:

[...] basta-nos recordar a preocupao dominante nessa poca, visando a instituio

ou fundao de regimes constitucionais fortes no respeitante proteco dos direitos

e liberdades fundamentais. Isto , de regimes que se opusessem duma maneira

plenamente eficaz a todas e quaisquer tentativa de regresso ao passado totalitrio ou

autoritrio. Era, pois, necessrio exorcizar um passado dominado por deveres, ou

melhor, por deveres sem direitos.

Foi isto o que aconteceu no sculo vinte. Mais precisamente nos finais dos anos

quarenta em Itlia e na ento Repblica Federal da Alemanha, depois nos anos

setenta na Grcia, Portugal e Espanha, e j nos anos oitenta no Brasil. (NABAIS,

2007, p. 166).

Apesar de o estatuto constitucional do indivduo albergado na Constituio Federal de

1988 ressaltar de forma muito ntida o vis protetivo das liberdades individuais e dos direitos

(fundamentais) que as garantem, no plano econmico, evidentemente, a conjuntura brasileira

emblemtica e tem muito a revelar. Nao ainda com severo grau de subdesenvolvimento

regional; setor produtivo com extrema dependncia de estmulos estatais (incentivos fiscais,

subsdios, proteo do mercado interno etc.); mercado de trabalho com evidentes limitaes e

12 Traduo livre do texto original: "As a consequence of the potential mobility of economic actors and factors there is now a much greater

degree of interdependence not only between the formerly compartmentalized national economies, but also between national policy choices that have an effect on the economy. If one government cuts its social security contributions, that reduces the international competitiveness of

products from other countries that have not done so; and if one country cuts its rate of corporate taxation, that will create incentives for firms

to relocate their company headquarters. Hence it is indeed wrong to think that only firms are in competition with each other. Economic interdependence creates a constellation in which nation states find themselves competing with each other for market shares in product

markets, for investment capital, and for taxable revenues, and in which that competition constrains their choices among macroeconomic,

regulatory and tax policy options." (SCHARPF, 1998).

20

com elevada dependncia do consumo externo; incipiente aumento do consumo interno e

notveis restries oramentrias (SANTOS, 2004). De fato, a conjuntura econmica nacional

e internacional na qual a Constituio Federal de 1988 foi elaborada era muito distinta

daquela em que os Estados de bem-estar das democracias avanadas conseguiram distribuir

ampla proteo socioeconmica aos indivduos. O Brasil, por exemplo, no dispunha nem de

capacidade econmica nem das condies inflacionrias necessrias13

para implementar

polticas de estmulo ao crescimento econmico associado ao pleno emprego (nos moldes

keynesianos); no dispunha de mecanismos restritivos internacionalizao dos mercados de

capital e de produtos, nem da possibilidade de exercer forte protecionismo tendo em vista seu

isolamento econmico e tecnolgico nas dcadas anteriores.

Diferentemente dos Estados de bem-estar do ps-segunda guerra, o Brasil no

dispunha de liberdade poltica para correo de mercado e de mecanismos protetivos

(polticas monetria, cambial e fiscal) que possibilitassem economia nacional conviver com

as crises econmicas recorrentes. Apesar de tudo isso, a Constituio Federal de 1988 no se

intimidou e projetou amplos direitos sociais. Mas, afinal de contas, o que isso tudo tem a ver

com a questo do financiamento dos direitos fundamentais? Embora o Brasil ainda hoje se

encontre distante de ser reconhecido como um Estado que proporcione uma ampla rede de

segurana social, a partir do incio dos anos 1990 assiste-se forte elevao da carga

tributria. E exatamente aqui relevante contextualizar a ordem poltico-jurdico-econmico-

social inaugurada pela Constituio Federal de 1988 com o forte fenmeno do ressurgimento

do liberalismo econmico. Se, por um lado, os discursos polticos e jurdicos festejavam a

emergncia de uma nova carta poltica que restabeleceu as liberdades individuais, os direitos

polticos e garantiu, pelo menos no plano formal, amplos direitos sociais populao

brasileira, por outro, os discursos econmicos exigiam ampla tutela da economia, com forte

estmulo estatal ao crescimento econmico (poltica econmica conservadora dos anos 1980).

Evidentemente os contextos em que se procedeu elaborao e promulgao da

Constituio Federal de 1988 e os que dela derivaram no podem estar, de toda forma,

desassociados. Como pice poltico-jurdico-econmico-social conformador da ordem

social14

, a Constituio deve portar, obviamente, a propriedade da contiguidade, no sentido de

que o contexto contemporneo sua elaborao vincula-se ao contexto antecedente e ao

futuro. Por isso, compreender a Constituio Federal de 1988 requer investig-la no como

13 A inflao em fins do regime militar j era demasiadamente elevada. 14 A inclusos os estatutos constitucionais do indivduo, da organizao poltica entre indivduos livre e iguais e, ainda, da organizao

econmica nacional.

21

um fato isolado, mas inserida nos contextos em que ela foi produzida e nos que dela

derivaram (subsequente sua promulgao).

Em relao aos contextos antecedentes e contemporneos elaborao da Constituio

Federal de 1988, j se percebiam, a partir da dcada de 1970, determinadas regularidades

poltico-econmicas mundiais (a internacionalizao dos mercados de capital e de produtos,

seguida a poltica econmica conservadora do anos 1980, cominando com o neoliberalismo na

dcada de 1990) capazes de afetar o modelo de financiamento estatal (por exemplo, a fuga de

relevantes bases econmicas de incidncia tributria e a consequente translao dos encargos

pblicos para os trabalhadores), bem como a efetivao material da proteo socioeconmica

do indivduo nos Estados de bem-estar das democracias avanadas (SCHARPF, 1991; 1999).

dentro desse quadro que se coloca a seguinte questo-problema: que relaes o modelo de

financiamento dos direitos fundamentais albergado na Constituio Federal de 1988 mantm

com o desenvolvimento socioeconmico nas duas dcadas subsequentes?

A questo-problema da presente investigao de tese surge da sensao comum acerca

da desproporcionalidade entre elevao da carga tributria e mitigao do passivo social

brasileiro no perodo posterior promulgao da Constituio Federal de 1988. Voltamos

aqui, ento, quela discusso anterior acerca do descompasso entre projees constitucionais

dos direitos fundamentais e realidade material. A fim de responder questo-problema,

partimos do pressuposto de que as constituies se encontram abertas a todos os contedos,

inclusive aos antagnicos, sem, contudo, obrigar-se a produzir um resultado socioeconmico

concreto.

A presente investigao de tese tem o objetivo geral de descrever as relaes que o

modelo de financiamento dos direitos fundamentais albergado na Constituio Federal de

1988 mantm com o desenvolvimento socioeconmico nas duas dcadas subsequentes. A fim

de alcanar esse objetivo, foi necessrio cumprir os seguintes objetivos especficos: i)

descrever as sociedades contemporneas a partir da perspectiva emprica da sociedade, em

especial a sistmica de Luhmann; ii) explicar por que as constituies, mesmo as

(auto)proclamadas sociais e de bem-estar, no se obrigam a um resultado socioeconmico

especfico; iii) discorrer sobre as constituies como mero processo comunicacional; iv)

descrever a emergncia da Constituio Federal de 1988 em um contexto de sobreposio do

cdigo do subsistema da economia, correspondente ao forte fenmeno do ressurgimento do

liberalismo econmico; v) descrever os desdobramentos materiais posteriores promulgao

da Constituio Federal de 1988, correspondentes ao confronto da evoluo da carga

tributria com indicadores socioeconmicos.

22

A presente investigao de tese encontra justificativa na imperiosa necessidade de

compreender o direito no como foi idealizado, mas como, de fato, ele se concretiza. Sua

relevncia cientfica advm, ento, da juno de um referencial terico-emprico da sociedade

possibilidade de mensurao da realidade socioeconmica, capaz de apreender o contexto

poltico-econmico dos anos 1980 em que se deu o processo de elaborao da Constituio

Federal de 1988, assim como o contexto socioeconmico brasileiro posterior sua

promulgao. Certamente, isso exige o afastamento das anlises meramente retricas do

direito, as quais, no plano dos direitos fundamentais, em especial os sociais, prendem-se ao

discurso jurdico que d privilgio mera enumerao quantitativa desses direitos. Em sentido

oposto, em uma perspectiva empirista, compreender o direito significa compreender os

resultados socioeconmicos (re)produzidos a partir dele. Essa mudana de perspectiva, com

certeza em nada altera o objeto a ser investigado: o direito. Apesar de desnecessrio,

desejamos ressaltar que o objeto da presente investigao de tese (qual seja, o modelo de

financiamento dos direitos fundamentais albergados na Constituio Federal de 1988 e os

desdobramentos socioeconmicos nas dcadas subsequentes) no poderia ser outro que no o

direito, associado, claro, ao contexto em que ele foi produzido e ao contexto que dele derivou.

Mas, isso no significa um grande passo, porque sobre um mesmo objeto podem incidir

diversas perspectivas tericas, muitas vezes, incomunicveis. Luhmann (2005a), por exemplo,

descreve duas perspectivas distintas para abordar os limites do direito, conforme sejam postos

pelo observador (perspectiva analtica) ou pelo prprio objeto (perspectiva concreta). Na

perspectiva analtica, os limites so delimitados pelo observador, que carrega, claro, sua

prpria objetividade15

e, com isso, possibilita traar tantas perspectivas tericas quanto so os

observadores. Por sua vez, na perspectiva concreta o "[...] prprio direito determina quais so

os limites do direito. O prprio direito determina, portanto, o que que pertence ao direito e o

que que no."16

(LUHMANN, 2005a, p. 68). Evidentemente que essa perspectiva tambm

tem de enfrentar a figura do observador, mais especificamente daquele indivduo que observa

o objeto separado de si, em outras palavras, que observa o objeto a partir dos limites impostos

pelo prprio objeto. Nessa perspectiva, o observador apenas pode enxergar o direito a partir

dos limites fixados pelo prprio direito, ou seja, a partir de uma observao externa. Antes

que a discusso se alongue, faz-se necessrio reconhecer que apenas nessa ltima perspectiva

15 Se no fossemos cair em uma redundncia, talvez fosse melhor dizer nesse caso que o observador carrega sua prpria subjetividade. Talvez por isso as cincias sociais se deparem com a inata dificuldade acerca da fixao de uma pretensa objetividade universal. 16 Traduo livre do texto original: "[...] derecho mismo determina cules son los lmites del derecho. El derecho mismo determina, por lo

tanto, qu es l que pertenece al derecho y qu es lo que no. (LUHMANN, 2005a, p. 68).

23

possvel descrever o direito como sistema social, integrado a outros sistemas operativos da

sociedade.

A questo dos limites do direito torna-se relevante porque permite identificar como se

processam as relaes entre observador/objeto. Por exemplo, quando os limites so colocados

pelo observador (em outras palavras, quando o observador se situa no interior do objeto), por

um lado, a observao interna impede que os resultados externos ao direito sejam

apreendidos, porque o observador interno apenas dispe de instrumentos de observao

especializados (jurdicos); e, por outro, a observao externa no pode se comunicar com o

direito, porque foi excluda dos seus limites. Em ambas as situaes, o observador no dispe

de recursos hbeis a observar os desdobramentos exteriores ao direito. A prevalncia das

discusses acerca do controle formal do direito, por exemplo, evidencia com muita preciso

essa questo: o controle da constitucionalidade e da legalidade nem sempre apresenta as

melhores respostas s complexas sociedades contemporneas. Com isso, desejamos ressaltar o

afastamento da presente investigao daquelas questes adstritas coerncia interna do

direito, tais como, por exemplo, o controle da constitucionalidade e da legalidade, questes

que, evidentemente, no conseguem na verdade, nunca conseguiram e nunca conseguiro

dar respostas aptas complexa realidade social das sociedades contemporneas. Esse

afastamento, por evidente, traz transtornos irremediveis. Por exemplo, uma observao

interna ao direito possibilita afirmar que os direitos fundamentais foram estendidos a todos os

indivduos. Apesar disso, a observao interna no proporciona ao direito recursos

especializados (no-jurdicos) que possibilitem a um observador interno apreender como esses

direitos se efetivam: se os indivduos se reconhecem como portadores desses direitos; como

eles so exercidos e em que medida; se so suficientes para atender s expectativas humanas

(materiais e simblicas), dentre outros. Assim, quando os limites do direito so postos a partir

do observador (perspectiva analtica) a realidade social (externa ao direito) torna-se

imperceptvel linguagem especializada do direito (linguagem jurdica). Em sentido

contrrio, a perspectiva concreta apenas pode reconhecer os limites do objeto a partir de fora

do objeto, ou seja, apenas possvel reconhecer os limites do direito enxergando-o de fora

(LUHMANN, 2005a). Essa perspectiva permite o dilogo entre as diversas cincias sociais

que se debruam sobre o objeto direito. Com isso, disponibiliza elementos no-jurdicos

(sociolgicos, polticos, econmicos, histricos, estatsticos etc.) aptos a descrever o processo

conformador do direito (em especial, o positivado) a partir de contextos externos ao direito

(polticos, econmicos e culturais, dentre outros). S a partir da observao externa do direito

24

possvel adotar uma abordagem sociolgica e, especialmente, desvencilhar-se da retrica, da

mera autorrepresentao lingustica do direito.

A fim de descrever o modelo tributrio albergado na Constituio Federal de 1988,

no como foi idealizado pelo constituinte (como um fato isolado), mas como ele, de fato, se

concretiza (inserida em contextos), propomos um modelo emprico de investigao qualitativa

com base no mtodo descritivo-funcionalista de Luhmann (1998). Neste particular

necessrio indicar que a proposta metodolgica de Luhmann vai de encontro propalada

lgica objetiva cientfica, porquanto descarta a existncia de pressupostos axiolgicos a partir

dos quais possvel fundamentar uma descrio da realidade social. Nesse sentido, Luhmann

(2007, p. 43) aponta que "[...] o sistema da sociedade transforma profundamente seu prprio

ambiente [meio] e modifica assim os pressupostos sobre os quais se assenta sua prpria

diferenciao"17

. Em sentido contrrio, Luhmann (2007) prope uma teoria social cuja lgica

est fundada em muitos centros (policntrica)18

, assentada, na verdade, em uma lgica cujas

respostas esto fundamentadas em problemas j resolvidos (autorreferncia). Isso corresponde

a dizer que Luhmann assume uma lgica cientfica baseada na circularidade que a prpria

lgica capaz de produzir. Dinamismo e relativismo so, portanto, caractersticas inerentes

teoria social de Luhmann.

Na perspectiva terica de Luhmann (1992), os fenmenos (por exemplo, as

constituies) apenas adquirem significado quando associados realidade social em que

foram produzidos. Em outras palavras, possvel dizer que os fenmenos apenas adquirem

significado quando associados aos contextos em que foram produzidos. Assim, o fenmeno

investigado na presente tese (qual seja, o modelo de financiamento dos direitos fundamentais

albergados na Constituio Federal de 1988 e os desdobramentos socioeconmicos nas

dcadas subsequentes) no pode ser compreendido de forma apartada da realidade social. E

aqui adquire relevncia o fato de a constitucionalizao dos direitos fundamentais sociais ter

evidente analogia com os direitos clssicos civis e polticos. Com isso, o enfrentamento (a

partir da emergncia do Estado social) questo de os poderes social e econmico serem

potencialmente capazes de afetar a liberdade de terceiros encontra fundamento em respostas

j consolidadas nos mbitos civil e poltico (Estado liberal). Este, claro, um processo

nitidamente autorreferente, haja vista que a resoluo dos problemas socioeconmicos

encontra fundamento em problemas j resolvidos (especificamente os civis e polticos).

17 Traduo livre do texto original: "[...] el sistema de la sociedad transforma profundamente su propio ambiente y modifica as los presupuestos sobre los que descansa su propia diferenciacin." (LUHMANN, 2007, p. 43). 18 Para Luhmann (2007, p. 43) "[...] una sociedad organizada en subsistemas no dispone de ningn rgano central. Es una sociedad sin

vrtice ni centro. Na sociedad no se representa a s misma por uno de sus, por as decir, propios subsistemas genuinos".

25

A proposta de investigar a Constituio Federal de 1988 atrelada aos contextos,

contudo, extremamente dilatada, pois inmeras so as suas dimenses: formal, social,

poltica, jurdica, econmica, histrica, desenvolvimentista, dentre outras. Para fugir dessa

indeterminao, um segundo recorte faz-se necessrio, a fim de restringir o objeto da presente

investigao de tese dimenso poltico-econmica (estatutos constitucionais da poltica e da

economia) da Constituio Federal de 1988. A partir dessa delimitao possvel especificar

com nitidez o contexto antecedente sua promulgao: no plano nacional, fortes demandas

por liberdades polticas e individuais e, no plano internacional, a consolidao da poltica

econmica conservadora dos anos 1980. O contexto antecedente, portanto, indica a

confluncia de dois fenmenos distintos: a i) redemocratizao do pas em um ii) ambiente

internacional de forte ressurgimento do liberalismo econmico, denominado mais tarde, na

dcada de 1990, de neoliberalismo.

Evidentemente a dimenso escolhida ainda cobre uma vasta possibilidade de

investigaes. Por exemplo, poderamos investigar como a Constituio Federal de 1988 trata

da relao entre capital/trabalho, direitos clssicos/direitos sociais e crescimento

econmico/desenvolvimento socioeconmico, dentre outras. Por isso, faz-se necessrio

proceder, no interior da dimenso poltico-econmica, a um terceiro recorte, a fim de

delimitar a investigao ao modelo de financiamento dos direitos fundamentais, singularizado

atravs do modelo tributrio albergado na Constituio Federal de 1988. Uma vez delimitada

a investigao dimenso poltico-econmica da Constituio Federal de 1988, torna-se

necessrio apontar as variveis a serem investigadas e suas diversas medidas, tanto

qualitativas como quantitativas.

Apesar de as escolhas da dimenso e das variveis (consequentemente, tambm das

medidas) se encontrarem na esfera de deciso do investigador, elas no so arbitrrias. o

caso, ento, de indicar que na presente investigao foram eleitas duas variveis: a primeira,

na esfera tributria, a incidncia econmica dos tributos, desdobrando-se em fenmenos

(medidas) tais como nus tributrio e capacidade contributiva individual; e, a segunda, na

esfera socioeconmica, est relacionada aos desdobramentos materiais que recaram sobre a

sociedade brasileira, posteriores promulgao da Constituio, particularizada rea

temtica renda, desdobrando-se em fenmenos (medidas) tais como apropriao da renda,

pobreza, extrema pobreza e concentrao de renda. Evidentemente a escolha dos indicadores

sociais demarca a realidade de parcela considervel da sociedade brasileira. Alm disso, essa

escolha levou em considerao a possibilidade de apreender as tendncias relacionais (jamais

26

relao de causa e efeito!) entre carga tributria e realidade material no perodo posterior

promulgao da Constituio Federal de 1988.

Neste ponto, acreditamos ser pertinente apontar que, em uma investigao meramente

descritiva, os dados, sejam eles qualitativos (no-numricos) ou quantitativos (numricos),

no se prestam a indicar relaes de causa e efeito, a descobrir leis sociais ou padres de

resposta que regem os fenmenos sociais. A complexa realidade social, evidentemente, no

passvel de ser revelada de forma objetiva. Pelo contrrio, os dados so achados pelo

investigador para auxili-lo na construo da descrio do fenmeno objeto de sua

investigao. Isso significa dizer que o processo de escolha dos dados, necessariamente,

subjetivo. Por isso, a pertinncia de colocar a questo da impossibilidade da neutralidade na

investigao qualitativa, seja porque o investigador afetado pela prpria realidade social que

investiga, seja porque elege os dados mais adequados ao seu constructo (DEMO, 1995;

MARCONI e LAKATOS, 2005).

Em consonncia com as duas variveis indicadas anteriormente, a coleta de dados

qualitativos (no-numricos) e quantitativos (numricos) da presente investigao foi

realizada por meio de pesquisa bibliogrfica (fontes secundrias) e documental (fontes

primrias). Os dados qualitativos encontravam-se disponveis na extensa bibliografia acerca

do tema, ou seja, em livros e artigos cientficos, enquanto a coleta dos dados quantitativos

prende-se a documentos e fontes estatsticas oficiais. Em relao tributao, a pesquisa

documental teve fundamento em relatrios e levantamentos da Secretria do Tesouro

Nacional, Secretaria da Receita Federal, IBGE e IPEA. Quanto aos indicadores sociais

necessrios s discusses acerca da realidade socioeconmica posterior promulgao da

Constituio Federal de 1988, esses foram levantados pelo IBGE e disponibilizados em sries

histricas pelo IPEA. Esses indicadores so: i) renda mdia; ii) apropriao da renda; iii)

pobreza e extrema pobreza e iv) coeficiente de Gini.

A coleta de dados quantitativos se restringiu ao recorte temporal que abrange o

perodo de 1990 a 2009, de forma a apreender o comportamento tendencial da carga tributria

e dos resultados socioeconmicos posteriores promulgao da Constituio Federal de 1988.

Nesta escolha tambm foi levado em considerao o fato de os dados primrios necessitarem

refletir realidades econmicas, polticas e sociais semelhantes, sem desvirtuar os resultados

obtidos. Nesse sentido, o perodo descrito coincide com o incio de nossa abertura econmica,

no governo de Fernando Collor de Melo, e se estende at meados do segundo mandato do

presidente Lus Incio Lula da Silva. Saliente-se, tambm, que, nesse perodo grandes

esforos foram consagrados ao controle inflacionrio, em especial, ao Plano Real e seus

27

desdobramentos, permitindo o confronto de valores econmicos sem possveis erros de

valorao no perodo de 1994 a 2009 a moeda Real se manteve sob forte controle

inflacionrio.

Em especial pela relevncia que acreditamos ter o captulo 1, faz-se necessrio

aprofundar as discusses em relao pesquisa documental e, consequentemente,

manipulao de dados quantitativos em uma pesquisa meramente descritiva (qualitativa).

Particularmente nas investigaes jurdicas, a utilizao de medidas quantificveis sempre

uma questo delicada. Por isso, desejamos indicar que a pretenso no estabelecer relaes

de causa e efeito ou generalizaes a partir de levantamentos meramente quantitativos. O

dado quantitativo, por si s, no permite a compreenso de fenmenos sociais. H que ter uma

referncia terica que justifique os resultados numricos obtidos. Nesta perspectiva, com

muita propriedade, Demo (1995, p. 141-142) afirma que Toda sensao de evidncia no

provm [...] do dado, mas do quadro terico em que colhido. Para quem estiver mal

aparelhado em termos de referencial tcnico ou deste falto se isto fosse possvel qualquer

dado nada diz. Assim, a proposta da presente investigao de tese descrever o fenmeno19

conjuntamente com os dados quantitativos que o prprio fenmeno deixa evidenciar. Esses

dados, compem o fenmeno, integram-no. So, portanto, parte dele. Fenmeno e dados

integram uma mesma realidade e se entrelaam de maneira indissocivel, de tal forma que o

segundo no pode ser descrito sem o primeiro. Assim, os dados quantitativos nada mais so

do que a exteriorizao (daquela parcela que se pode, de alguma forma, capturar) do

fenmeno. De qualquer forma, eles so secundrios em relao ao fenmeno e em uma

investigao qualitativa tm a mera funo de subsidiar a descrio e a compreenso do

prprio fenmeno. A questo da funo dos dados quantitativos torna-se relevante porque

permite nos distanciarmos do paradigma positivista, mesmo a presente investigao fazendo

uso deles.

Diferentemente do positivismo, na abordagem qualitativa inexistem preocupaes com

a representatividade da amostra investigada e com a questo da generalizao dos resultados.

Na verdade, "A vida cotidiana tem pouco a ver com quantidades determinadas com exatido e

com a forma de as manipular" (LUHMANN, 1992, p. 80). Por isso, na presente investigao

qualitativa, os dados quantitativos no se destinam a produzir medidas quantificveis de uma

amostra estatstica para posteriores generalizaes para toda a populao. Ao contrrio, as

tendncias que esses dados apresentam serviro, apenas, para descrever e compreender o

19 No caso especfico da presente investigao de tese, o fenmeno investigado o modelo de financiamento dos direitos fundamentais

albergados na Constituio Federal de 1988 e os desdobramentos socioeconmicos nas dcadas subsequentes.

28

fenmeno. De qualquer forma, necessrio apontar que a pesquisa documental se depara com

o problema da preocupao ideolgica que os dados oficiais, em si mesmos, carregam. Este

problema capaz, inclusive, de falsear a prpria compreenso da realidade associada ao

fenmeno investigado. A esse respeito, Demo destaca:

[...] o dado muito mais um produto do que um achado. Nos dados do IBGE no

est pura e simplesmente a realidade brasileira, mas uma forma de interpret-la,

certamente mais oficial do que real. Isto explica por que do mesmo dado se pode

fazer interpretaes diferentes e mesmo contraditrias. (DEMO, 1995, p. 141).

Tambm possvel afirmar que dados no-oficiais padecem do mesmo mal: esto

eivados de tendncias ideolgicas. Talvez no seja mesmo possvel fugir dessa armadilha.

Tambm importante salientar que, especificamente em relao tributao, existe o

problema da falta de transparncia da atividade tributria no perodo posterior promulgao

da Constituio Federal de 1988, evidenciado pela falta de critrios oficiais de classificao

econmica dos tributos, pela ausncia de dados consolidados e de sries histricas, e,

principalmente, dos montantes de tributos renunciados pela Unio, Estados-membros, Distrito

Federal e Municpios (poltica de transferncia de riqueza da sociedade para a atividade

econmica privada). Apesar de tudo isso, a partir de dados oficiais, tanto foi possvel

apreender os valores agregados sobre a varivel incidncia econmica dos tributos,

permitindo, assim, a construo de sries histricas da incidncia direta e indireta e sobre o

nus tributrio suportado pela pessoa fsica e pela pessoa jurdica; como mostrar os

indicadores da varivel socioeconmica, que esto classificados na rea temtica renda e

pobreza, disponibilizados em sries histricas pelo IBGE.

2 A TEORIA DOS SISTEMAS E O ESFORO TERICO DESCRITIVO DA

SOCIEDADE CONTEMPORNEA

Compreender as sociedades contemporneas um grande desafio (LUHMANN, 1990;

1998; HABERMAS, 2003a; 2003b). A multiplicidade de indivduos e de relaes entre

ausentes e a consequente escassa possibilidade de relaes diretas e imediatas entre esses

indivduos indicam que as circunstncias (condies de possibilidade) sob as quais a ordem

social emerge e preservada j no encontram respostas hbeis em modelos explicativos

heterorreferentes, baseados em conhecimentos no referidos realidade social20

. Para

Luhmann (2009a), a heterorreferncia expe as teorias sociais a dificuldades muitas vezes

intransponveis. Por exemplo, a epistemologia, enquanto conhecimento produzido de forma

heterorreferente pela cincia21

, no dispe de recursos aptos a fixar as condies de

possibilidade da ordem social. A teoria dos sistemas22

, ento, prope uma alterao radical no

sentido de ressaltar que a ordem social deve incluir suas prprias condies de possibilidade:

A unidade, a universalidade e a delimitao do problema exigem um estilo especial

de reflexo que a remeta a si mesma. Deve incluir as suas prprias condies de

possibilidade, deve problematizar sua prpria possibilidade. [...]. Entre outras coisas,

isso significa que a delimitao de problemas constituintes sempre se refere a

problemas j resolvidos, caso contrrio, eles prprios no seriam possveis.

(LUHMANN, 2009a, p. 18).

A autorreferncia, portanto, se prende a observao da prpria sociedade de forma a

compreend-la tal como, de fato, ela . a partir dessa guinada terica que so habilitados

modelos explicativos da ordem social baseados em conhecimentos referidos realidade

social, gerados no transcorrer dos processos de socializao e de organizao da sociedade23

,

produzidos nos mais distintos mbitos, tais como a poltica, o direito, a economia, a cincia, a

famlia e a religio, dentre outros. Com isso, desponta a concreta possibilidade terico-

descritiva da ordem social contempornea sem fazer remio a 'conceitos' (petitio principii),

tais como a existncia de um grupo e de uma comunidade24

; a 'metforas', tais como a fuso

20 Em outras palavras, em conhecimentos produzidos de forma heterorreferente. 21 Segundo Luhmann (2009a, p. 19), "[...] La ciencia se estableci como un subsistema social que produce teora sobre s mismo, por tanto,

un sistema que contiene la teora del sistema como parte de s mismo; un sistema que reflexiona con la ayuda de una diferenciacin interna, de un subsistema.". Como subsistema da sociedade, a cincia produz conhecimento sobre a sociedade. Contudo, em si mesma, no pode ser

confundida com seu prprio objeto (a sociedade). 22 O termo genrico 'teoria dos sistemas' inclui, na verdade, diversas teorias empricas da sociedade. 23 Processos que so, na verdade, especficos de cada sociedade. 24 Para Luhmann (2009a, p. 35) "Esta tcnica de conceptualizacin presupone que tales conceptos tienen tanta plausabilidad que se puede

prescindir de preguntas ulteriores. Es difcil controlar, en todo caso, que un concepto como ste rena las mismas ideas".

30

de conscincias (conscincia coletiva) e a intersubjetividade25

; ou, ainda, a 'modelos' sociais

previamente conhecidos, tal como o contrato26

(LUHMANN, 2009a).

2.1 O RECONHECIMENTO DA ORDEM SOCIAL COMO UM DADO REAL E A

QUESTO DE SUA EXISTNCIA AUTNOMA

A teoria dos sistemas se prende s condies de possibilidade da ordem social e, com

isso, evade-se de discutir, por exemplo, se a ordem social existe ou no (LUHMANN, 2009a).

Essa simplificao carrega, evidentemente, o pressuposto de que a ordem social existe.

Assim, tal qual a existncia dos seres vivos, a sociedade est posta, um dado cuja

possibilidade de questionamento, quer queiram quer no, mostra-se implausvel27

. Mas,

concomitantemente ao reconhecimento da ordem social como um dado real, surge a pertinente

indagao acerca de sua existncia autnoma em relao ao indivduo. Aqui adquire

relevncia a percepo de que sociedade e indivduo se apresentam como ordens que possuem

naturezas distintas28

. Isso corresponde a dizer que as condies de possibilidade da ordem

social (por exemplo, do seu surgimento, de sua preservao etc.) no podem ser idnticas s

condies de possibilidade do indivduo (do seu surgimento com vida, de sua preservao

biolgica, de sua conscincia individual etc.). Portanto, existem condies de possibilidade

especficas da ordem social que, de maneira alguma, assemelham-se s dos indivduos.

O fato de a ordem social ter condies de possibilidade distintas da vida e/ou da

conscincia no indica, contudo, que a ordem social esteja dissociada do indivduo. Pelo

contrrio, a ordem social carrega de forma imanente a relao que a sociedade mantm com o

indivduo e vice-versa (em termos sistmicos, a relao que o sistema mantm com o meio).

Por isso, as condies de possibilidade sob as quais a ordem social emerge e preservada

terminam por revelar o modo como a sociedade se relaciona com o indivduo. Evidentemente

a ordem social no se restringe relao sociedade/indivduo. A ordem social porta as

interaes sociais que os indivduos mantm entre si. Nesse sentido, Luhmann (2009a, p. 34)

aponta que " As relaes sociais entre as pessoas devem ser diferenciadas analiticamente das

25 Para Luhmann (2009a, p. 35) "[...] en la utilizacin de una metfora que resulte convincente por su plasticidad y haga innecesario el

anlisis posterior al no tener que justificarse como aporte conceptual". 26 Para Luhmann (2009a, p. 36) "[...] porque los contratos vinculan personas segn modelos conocidos. En conexin con ello se puede decir

que la sociedad se constituye mediante un contrato o, inclusive, ella es un contrato. Se piensa as el contrato como una unidad de la diferencia

y el consenso como modo de la unificacin". 27 A probabilidade de desconstruo do que se convencionou denominar 'sociedade' muito escassa. 28 A ordem social no se confunde com o indivduo. Mas esta no uma caracterstica distintiva da teoria dos sistemas, porquanto

'conceitos'28, 'metforas'28 ou 'modelos' sociais previamente conhecidos28 promovem a distino entre coletividade (associao de indivduos) e individualidade e, por isso mesmo, portam, de alguma maneira, a diferenciao entre sociedade e indivduo. Como visto acima, a

caracterstica distintiva da teoria dos sistemas em relao s perspectivas tericas heterorreferentes se prende ao fato de a ordem social ter de

portar suas prprias condies de possibilidade e no mera diferenciao entre sociedade e indivduo.

31

relaes entre o indivduo e a ordem social.29

. Portanto, as relaes entre indivduos no

interior da ordem social no se confundem com as relaes que os indivduos mantm com a

ordem social.

2.1.1 Elemento constitutivo e identidade da ordem social

A partir da discusso sobre a existncia autnoma da ordem social em relao ao

indivduo, a teoria dos sistemas tem de enfrentar questes extremamente polmicas, como,

por exemplo, a do elemento constitutivo e do atributo capaz de caracterizar a ordem social.

Neste sentido, emergem duas indagaes: o que constitui a ordem social e o que lhe d

identidade? Quanto primeira, a natural indicao do indivduo como elemento constitutivo

da ordem social poderia levar as cincias sociais a descrever a sociedade como uma mera

reunio de indivduos, independentemente das interaes (no meio social) entre esses

indivduos; ou, pior ainda, levar a admitir, em casos extremos, a existncia de sociedades

constitudas por apenas um indivduo. Afora isso, ainda impediria de estabelecer critrios de

delimitao da identidade da ordem social que a diferenciasse do indivduo, uma vez que a

primeira seria constituda do segundo. Por sua vez, na questo do atributo que d identidade

ordem social, a teoria dos sistemas se prende possibilidade de designao de um elemento,

operao, ou processo especfico que a caracterize. Evidentemente a designao de um

atributo que d identidade ordem social termina por estabelecer, por si s, a diferenciao

entre sociedade e indivduo. Por isso, deve ser ressaltado que o modo como um elemento,

uma operao ou um processo que d identidade ordem social produzido e reproduzido

no pode estar desatrelado do fato de a relao sociedade/indivduo carregar de forma

imanente diferenciao entre ambos.

As teorias sociais, portanto, no podem se furtar a discutir, por um lado, se a ordem

social constituda ou no de indivduos; e, por outro, qual atributo (por exemplo, um

elemento, uma operao, um processo, dentre outros) produzido e reproduzido no interior da

ordem social sob condies necessariamente controlveis30;31

(propriedade da recursividade),

que, por isso, lhe d identidade. De qualquer forma, at mesmo para amenizar as previsveis

crticas, devemos indicar que esses dois temas no so tratados exclusivamente pela teoria dos

sistemas. As perspectivas tericas heterorreferentes tambm tm de enfrent-los. Por

29 Traduo livre do texto original: "Las relaciones sociales entre las personas deben ser diferenciadas analticamente de las relaciones entre la persona particular y el orden social." (LUHMANN, 2009a, p. 34). 30 Do contrrio, no haveria a possibilidade de reproduo da operao, evento ou circunstncia produzida no interior da ordem social. 31 Sob pena de a ordem social se desdiferenciar, isto , de abrandar sua diferenciao em relao ao indivduo.

32

exemplo, o contrato social, por um lado, revela que a vontade coletiva constituda pela

associao de vontades individuais, indicando, assim, que o elemento constitutivo da vontade

coletiva a vontade individual; por outro, revela que a vontade individual se junge a um

acordo coletivo tcito, indicando que a primeira sofre restries ( controlada) por decorrncia

da vontade coletiva.

No caso especfico da teoria dos sistemas, o enfrentamento s questes do elemento

constitutivo da ordem social e do atributo que lhe d identidade encontram respostas no modo

como a ordem social se relaciona com o indivduo, isto , na relao que a sociedade mantm

com o indivduo (LUHMANN, 2009a). O desenvolvimento terico sistmico direcionado a

ressaltar tanto as identidades entre as distintas ordens (sociedade e indivduo), tal qual na

perspectiva terica do organicismo, como as diferenciaes entre essas ordens, tal qual nas

perspectivas tericas dos sistemas abertos (dualidade operativa sistema/meio) e dos sistemas

fechados (diferenciao operativa sistema/meio).

2.1.1.1 As relaes de continncia e pertencimento entre ordem social e indivduo

Em especial na questo do elemento constitutivo da ordem social, o direcionamento s

relaes de continncia (estar contido) e/ou de pertinncia (pertencimento) entre sociedade e

indivduo parece inevitvel. E, de fato, assim aconteceu com o desenvolvimento inicial da

teoria dos sistemas. Neste contexto, emerge a perspectiva organicista da sociedade em que o

todo autossuficiente composto de partes (LANGE, 1981). A ordem superior (o todo, a

sociedade), ento, exprime a reunio de ordens inferiores (as partes, os indivduos)32

.

Contudo, a transposio do organicismo teoria social no encontra respaldo na realidade

social. Pelo contrrio, a observao dessa realidade tem indicado que a sociedade (o todo ou a

ordem superior) no pode ser considerada apenas a reunio de indivduos (das partes ou das

ordens inferiores). Por isso, o enfoque analtico (ou reducionista) com a segmentao do

todo e a subsequente anlise das partes tem-se mostrado inapropriado a explicar realidades

mais complexas, nas quais os fenmenos no podem ser descritos a partir da mera

segmentao das partes, mas das relaes que se formam entre essas partes e o todo

(LUHMANN, 2009a).

Alm disso, o direcionamento investigativo das relaes de continncia e/ou

pertencimento entre a ordem social e o indivduo coloca a teoria dos sistemas diante da

32 Para Bobbio (2000, p. 147), um corpo orgnico aquele "[...] no qual cada parte est em funo de todas as outras e todas juntas em

funo do todo".

33

impossibilidade de diferenciar a sociedade do indivduo. Nesse caso, a indagao que se faz

se a sociedade contm o indivduo ou se o indivduo pertence a ela, como, ento, descrev-los

como ordens distintas? O fato de a ordem social no se confundir com o indivduo exige,

evidentemente, que a teoria dos sistemas avance no sentido de investigar outras possibilidades

de relacionamento (que no as de continncia e de pertencimento) entre ordens distintas.

Neste ponto, importante ressaltar que o fato de a ordem social e o indivduo se apresentarem

como ordens distintas no implica que sejam mutuamente excludentes. Pelo contrrio, a

ordem social no pode excluir o indivduo e vice-versa33

. Por isso, a relao que a ordem

social mantm com o indivduo (relao sociedade/indivduo) deve, sobretudo, confirmar o

pressuposto de que a sociedade e o indivduo se apresentam como ordens distintas.

2.1.1.2 As relaes que ressaltam a diferenciao entre ordem social e indivduo

A constatao de que o todo no apenas a reunio das partes, conforme propunha o

organicismo (LANGE, 1981), direciona o desenvolvimento posterior da teoria dos sistemas a

ressaltar que a relao sociedade/indivduo exterioriza, na verdade, as caractersticas que

diferenciam ordens distintas (LUHMANN, 2009a). A partir da a teoria dos sistemas tem de

enfrentar duas questes relevantes. A primeira diz respeito possibilidade de a sociedade se

distinguir do indivduo ou, em termos sistmicos, de o sistema se diferenciar do meio

(diferenciao sistema/meio); enquanto a segunda, diz respeito s condies de possibilidade

de preservao dessa diferena (preservao da diferenciao sistema/meio). Nesse contexto,

surge a seguinte indagao: o que, de fato, diferencia o sistema do meio? Ou ainda, que

caracterstica o sistema porta que no pode ser atribuda ao meio? Como visto anteriormente,

a sociedade (o sistema social) no se confunde com o indivduo (o meio). Pelo contrrio, o

sistema possui condies de possibilidades especficas, distintas, portanto, das do meio. A

principal dificuldade se prende eleio de um atributo de uma caracterstica especfica do

sistema que no possa ser atribuda ao meio que permita o sistema distinguir-se do meio.

2.1.1.2.1 O problema da ausncia de critrios de delimitao da identidade da ordem social

Diferentemente de outras cincias, tal como a biologia, que dispe de um evento

especfico que fixa os limites a morte pe termo (delimita) vida , a sociologia no

33 Aqui j se prenuncia o paradoxo da unidade sistmica: o indivduo nem est contido nem pertence ordem social. Em adio, a ordem

social e indivduo no so mutuamente excludentes. Este paradoxo indica que a unidade (sociedade) porta a diferena (sociedade/indivduo).

Essa questo ser tratada no item 12.2.2.3.

34

possui um critrio de delimitao (LUHMANN, 2009b, p. 38) que permita diferenciar o

sistema do meio34

, em outras palavras, que permita diferenciar a sociedade do indivduo. Por

isso, no campo das cincias sociais, a teoria dos sistemas se depara com o problema da

ausncia de critrios de delimitao da identidade sistmica35

. Essa questo remediada

atravs da operao produzida no sistema social, distinta, portanto, daquela que ocorre no

meio, ou seja, no indivduo (sistemas orgnico e psquico).

A operao que d identidade ao sistema certamente no pode ser idntica operao

do meio. Com isso, a questo da delimitao (da fixao dos limites) do sistema direcionada

diferenciao operativa entre sistema e meio. Mas, o que uma operao? No interior da

perspectiva sistmica, a operao entendida como a reproduo do elemento sistmico36

.

Por exemplo, os sistemas orgnicos reproduzem a vida e os sistemas psquicos, o pensamento

(LUHMANN, 1990; 2009b). No caso do sistema social, a operao que lhe d identidade

encontra distintas respostas nas perspectivas da teoria da ao de Parsons e na teoria da

comunicao de Luhmann37

, como se ver no item 2.2. Contudo, antes necessrio enfrentar

a questo da preservao da identidade do sistema social.

2.1.1.2.2 A questo da preservao da identidade da ordem social

Uma vez firmada a possibilidade de o sistema se diferenciar do meio a partir da sua

operao especfica, vem tona a questo da preservao da identidade sistmica. Essa

questo coloca em evidncia