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Alfred Hitchcock, ou, A Forma e sua Mediação Histórica
Slavoj Žižek
Tradução: Rodrigo Nunes Lopes Pereira
[Este texto constitui a tradução da introdução da obra Everything you always wanted to know about Lacan
(But were afraid to ask Hitchcock). ŽIŽEK, Slavoj (Org.) Verso, London & New York, 1992.]
O que normalmente é deixado despercebido na multidão de tentativas de se interpretar a ruptura entre
modernismo e pós-modernismo é a maneira como essa mesma ruptura afeta o próprio status da
interpretação. Tanto o modernismo quanto o pós-modernismo concebem a interpretação como inerente a
seu objeto: sem isso nós não teríamos acesso à obra de arte – o tradicional paraíso onde, independente de
sua versatilidade no artifício da interpretação, todos podem apreciar a obra de arte, está irrecuperavelmente
perdido. A ruptura entre modernismo e pós-modernismo está assim situada dentro desta relação inerente
entre o texto e seu comentário. Uma obra de arte modernista é, por definição, ‘incompreensível’; ela
funciona como um choque, como a irrupção de um trauma que mina a complacência de nosso cotidiano e
resiste em ser integrada no universo simbólico da ideologia dominante; em decorrência disso, depois desse
primeiro encontro, a interpretação entra em cena e nos permite integrar esse choque – ela nos informa, por
exemplo, que este trauma registra e aponta para a chocante depravação de nossas próprias vidas cotidianas
‘normais’... Neste sentido, a interpretação é o momento conclusivo de cada ato de recepção: T.S. Eliot foi
bastante astuto quando complementou seu Waste Land com notas de referências literárias tal como se
poderia esperar de um comentário acadêmico.
O que o pós-modernismo faz, contudo, é o exato oposto: seus objetos par excellence são produtos com um
singular apelo de massa (filmes como Blade Runner, O Exterminador do Futuro ou Veludo Azul) – cabe ao
intérprete detectar nessas obras as mais esotéricas sutilezas teóricas de Lacan, Derrida ou Foucault. Então, se
o prazer da interpretação modernista consiste no efeito de recognição que ‘gentrifica’ a inquietante
estranheza de seu objeto (‘Ah, agora eu percebo o sentido dessa aparente confusão!’), o objetivo do
tratamento pós-modernista é estranhar essa mesma familiaridade inicial: ‘Você pensa que o que você vê é
um simples melodrama que até o seu avô senil não teria dificuldades em acompanhar? Contudo, sem
considerar.../a diferença entre sintoma e sinthomem; a estrutura do nó borromeano; o fato de que a mulher
é um dos Nomes-do-Pai; etc; etc./ você perde totalmente o sentido de que se trata!’
Se há um autor cujo nome resume esse prazer interpretativo de ‘afastar’ o conteúdo mais banal, é Alfred
Hitchcock. Hitchcock, como o fenômeno teórico que nós temos testemunhado nas últimas décadas – o
fluxo interminável de livros, artigos, cursos universitários, temas de conferências – é um fenômeno ‘pós-
moderno’ par excellence. Isso se apoia na extraordinária transferência que sua obra põe em movimento:
para verdadeiros aficionados em Hitchcock, em seus filmes tudo faz sentido, o aparentemente mais simples
complô esconde as mais inesperadas iguarias filosóficas (e – é inútil negá-lo – este livro compartilha
irrestritamente desta loucura). No entanto, considerando tudo, Hitchcock é um ‘pós-modernista’ avant la
lettre? Como se deve situá-lo em relação à tríade realismo-modernismo-pós-modernismo elaborada por
Fredric Jameson, com um olhar especial na história do cinema, onde ‘realismo’ representa a Hollywood
clássica – isto é, o código narrativo estabelecido nos anos 1930 e 1940, o ‘modernismo’ referindo-se aos
grandes auteurs dos anos 1950 e 1960, e ‘pós-modernismo’ referindo-se à confusão em que estamos hoje –
ou seja, a obsessão com a Coisa traumática que reduz toda grade narrativa a uma tentativa fracassada
particular em ‘gentrificar’ a Coisa?1
Para uma abordagem dialética, Hitchcock é de especial interesse precisamente na medida em que ele se
situa nas fronteiras dessa tríade classificatória2
- qualquer tentativa de classificação nos leva, mais cedo ou
mais tarde, a um resultado paradoxal no qual Hitchcock é, de certa forma, os três ao mesmo tempo: ‘realista’
(dos velhos críticos e historiadores esquerdistas sob cujo olhar seu nome resume o fechamento narrativo
ideológico de Hollywood, até Raymond Bellour, para quem seus filmes são variações da trajetória edipiana
e, como tais, ‘são tanto versões excêntricas quanto exemplares’ da narrativa clássica hollywoodiana3
),
‘modernista’ (i.e., um precursor e ao mesmo tempo na linha de grandes auteurs que, às margens ou fora de
Hollywood, subverteram seus códigos narrativos – Wells, Renoir, Bergman...), ‘pós-modernista’ (ainda que
não houvesse outro motivo, então pela transferência acima mencionada que seus filmes engendram entre os
intérpretes).
Então, o que é Hitchcock ‘na verdade’? Ou seja, fica-se tentado a tomar a saída fácil, afirmando que ele é
‘verdadeiramente um realista’, firmemente incorporado à maquinaria de Hollywood, e apenas mais tarde
apropriado pelos modernistas em torno do Cahiers du cinema, e depois pelos pós-modernistas – mesmo
essa solução conta com a diferença entre a ‘Coisa-em-si’ e suas interpretações secundárias, uma diferença
que é epistemologicamente profundamente suspeita na medida em que uma interpretação nunca é
simplesmente ‘externa’ a seu objeto. É, portanto, muito mais produtivo transpor este dilema para a própria
obra de Hitchcock e conceber a tríade realismo-modernismo-pós-modernismo como um princípio
classificatório que nos permite introduzir ordem aí por meio da diferenciação de seus cinco períodos:
Os filmes anteriores a Os 39 degraus: Hitchcock antes de sua ‘ruptura epistemológica’, antes do que
Elizabeth Weis chamou apropriadamente de ‘consolidação do estilo clássico [de Hitchcock]’4
, ou – para
colocar em termos hegelianos – antes que ele se tornasse seu próprio conceito. É claro, pode-se aqui jogar o
jogo do ‘Todo o Hitchcock já está aí’, em filmes antes da ruptura (Rothman, por exemplo, discerniu em O
Pensionista [The Lodger, 1927] os ingredientes de todo Hitchcock até Psicose5) – com a condição de que
não se negligencie a natureza retroativa de tal procedimento: o lugar de onde se fala é a noção já-atualizada
do ‘universo de Hitchcock’.
Os filmes ingleses da segunda metade dos anos 1930 – de Os 39 degraus até A Dama Oculta: ‘realismo’
(claramente a razão pela qual mesmo um marxista linha-dura como Georges Sadoul, geralmente muito crítico
em relação a Hitchcock, é simpático a estes filmes), formalmente dentro dos limites da narrativa clássica,
tematicamente centrada na história edípica da jornada iniciática do casal. Quer dizer, a ação movimentada
nestes filmes não deve nos enganar nem por um minuto – sua função, em última instância é tão somente por
à prova o amor do casal e então tornar possível sua reunião final. Todas são histórias de um casal atado (às
vezes literalmente: note o papel das algemas em Os 39 degraus) acidentalmente que então tem de
amadurecer através de uma série de provações – isto é, variações sobre o tema fundamental da ideologia do
casamento burguesa, que teve a sua primeira e talvez mais nobre expressão na Flauta Mágica de Mozart.6
Os
casais atados por acaso e unidos pela provação são Hannay e Pamela em Os 39 degraus, Ashenden e Elsa em
O Agente Secreto, Robert e Erica em Jovem e Inocente, Gilbert e Iris em A Dama Oculta – com a notável
exceção de O Marido Era o Culpado, onde o triângulo formado por Sylvia, seu marido criminoso Verloc e o
detetive Ted prenuncia a conjuntura característica da fase seguinte de Hitchcock.
O ‘período Selznick’ – filmes que vão de Rebecca – A Mulher Inesquecível até Sob o Signo de Capricórnio:
‘modernismo’, formalmente simbolizado pela prevalência de longos planos-sequência anamorficamente
distorcidos, centrados tematicamente na perspectiva da protagonista feminina, traumatizada por uma ambígua
(má, impotente, obscena, fragmentada) figura paterna. Isto quer dizer, a história é, em geral, narrada do
ponto de vista de uma mulher dividida entre dois homens: a figura mais velha de um vilão (seu pai ou seu
marido mais velho, incorporando uma das típicas figuras hitchcockianas, o qual é consciente do mal em si
mesmo e se esforça depois de sua destruição) e o mais jovem e um tanto insípido ‘bom moço’, a quem ela
escolhe no final. Além de Sylvia, Verloc e Ted em O Marido era o Culpado, os principais exemplos de tais
triângulos são Carol Fisher, dividida entre a lealdade ao pai pró-nazista e o amor pelo jovem jornalista
americano em Correspondente Estrangeiro; Charlie, dividida entre seu tio assassino de mesmo nome e o
detetive Jack em A sombra de uma Dúvida; e, claro, Alicia, dividida entre seu marido mais velho Sebastian e
Devlin, em Interlúdio.7
O ambíguo apogeu deste período é, claro, Festim Diabólico: no lugar da heroína
feminina, temos aqui o membro ‘passivo’ de um casal homossexual (Farley Granger), dividido entre seu
companheiro sedutoramente mau e seu professor, o Catedrático (James Stwart), que não está preparado para
reconhecer no crime cometido por seu alunos a realização de seu próprio ensino.
Os grandes filmes dos anos 1950 e início dos anos 1960 – de Pacto Sinistro até Os Pássaros: ‘pós-
modernismo’, formalmente simbolizado pela acentuada dimensão alegórica (a indexação, dentro do
conteúdo diegético do filme, de seu próprio processo de enunciação e consumação: referências a
‘voyeurismo’ de Janela Indiscreta a Psicose, etc.), tematicamente centrada na perspectiva do herói masculino
para quem o superego materno bloqueia o acesso à relação sexual ‘normal’ (Bruno em Pacto Sinistro, Jeff
em Janel Indiscreta, Roger Thornhill em Intriga Internacional, Norman em Psicose, Mitch em Os Pássaros,
até o ‘assassino da gravata’ em Frenesi).
Filmes que vão de Marnie – Confissões de uma Ladra em diante: apesar de momentos brilhantes (a carcaça
de barco em Marnie, o assassinato de Gromek em Cortina Rasgada, o plano-sequência em recuo em Frenesi,
o uso de narração paralela em Trama Macabra, etc.) estes são ‘pós’-filmes, filmes de desintegração; seu
principal interesse teórico reside no fato de que – precisamente por causa de sua desintegração; por causa do
rompimento do universo de Hitchcock em seus ingredientes particulares – eles nos permitem isolar estes
ingredientes e apreendê-los claramente.
A característica fundamental que é crucial para uma análise da ‘mediação social’ nos filmes de Hitchcock
aqui é a coincidência de um tipo dominante de subjetividade em cada um dos três períodos centrais com a
forma de subjetividade que pertence aos três estágios do capitalismo (capitalismo liberal; estado-capitalista
imperialista; capitalismo tardio ‘pós-industrial’): a viagem iniciática do casal, com seus obstáculos estimulando
o desejo de união, é firmemente baseada na ideologia clássica do sujeito ‘autônomo’, reforçada através da
provação; a figura paterna resignada do segundo estágio evoca o declínio desse sujeito ‘autônomo’, a quem se
opõe o insípido herói ‘heterônimo’ vitorioso; finalmente, não é difícil reconhecer no herói hitchcockiano
típico dos anos 1950 e início dos anos 1960, as características do ‘narcisista patológico’, a forma de
subjetividade que caracteriza a chamada ‘sociedade de consumo’.8
Isto por si só é uma resposta suficiente à
questão da ‘mediação social’ do universo de Hitchcock: a lógica inerente de seu desenvolvimento é
imediatamente social. Os filmes de Hitchcock articulam esses três tipos de subjetividade de forma clara – ou,
pode-se dizer, destilada: como as três distintas modalidades do desejo. Pode-se delinear essas modalidades
com referência à forma predominante com o pólo oposto do sujeito, o objeto, em cada um dos três
períodos. Quando nós dizemos ‘objeto hitchcockiano’, a primeira associação – pode-se dizer automática – é,
claro, o McGuffin – ainda que o McGuffin seja apenas um dos três tipos de objeto nos filmes de Hitchcock:
Primeiro, então, o próprio McGuffin, ‘nada’, um lugar vazio, um puro pretexto cujo único papel é por a
história em movimento: a fórmula dos motores de aviões de guerra em Os 39 Degraus, a cláusula secreta do
tratado naval em Correspondente Estrangeiro, a melodia codificada em A Dama Oculta, as garrafas de
urânio em Interlúdio, e assim por diante. Ele é uma pura aparência: em si ele é totalmente indiferente e, por
necessidade estrutural, ausente; sua significação é puramente auto-reflexiva, ela consiste no fato de que tem
alguma significação para os outros, para os principais personagens da história, que é de vital importância para
eles.
Mas em uma série de filmes de Hitchcock, encontramos outro tipo de objeto que decididamente não é
indiferente, não é uma pura aparência: o que importa aqui é precisamente sua presença, a presença real de
um fragmento de realidade – ele é uma sobra, restos que não podem ser reduzidos a uma rede de relações
formais própria à estrutura simbólica. Podemos definir esse objeto como um objeto de troca circulando
entre sujeitos, servindo como um tipo de garantia, penhor, na relação simbólica. É o papel da chave em
Interlúdio e em Disque M para Matar, o papel do anel de casamento em A Sombra de uma Dúvida e Janela
Indiscreta, o papel do isqueiro em Pacto Sinistro, e mesmo o papel da criança circulando entre os dois casais
em O Homem que Sabia Demais. Ele é único, não-especular – isto é, ele não tem duplo, ele escapa à
relação especular dual, motivo pelo qual ele desempenha um papel crucial nesses mesmos filmes que são
construídos sobre toda uma série de relações duais, onde cada elemento tem sua contraparte espelhada
(Pacto Sinistro ; A Sombra de uma Dúvida, onde o nome do personagem central já é redobrado – tio
Charlie, sobrinha Charlie): ele é o único que não tem equivalente, e este é o motivo de que ele deve circular
entre os elementos opostos, como se em busca de seu próprio lugar, perdido desde o princípio.
O paradoxo de seu papel é que embora ele seja um resto do Real, um ‘excremento’ (o que a psicanálise
chamaria de ‘objeto anal’), ele funciona como uma condição positiva da restauração de uma estrutura
simbólica: a estrutura de trocas simbólicas entre os sujeitos pode ter lugar apenas na medida em que ele é
incorporado neste puro elemento material que atua como sua garantia – por exemplo, em Pacto Sinistro, o
pacto assassino entre Bruno e Guy se mantém apenas na medida em que o objeto (o isqueiro) está
circulando entre eles.
Esta é a situação básica em toda uma série de filmes de Hitchcock: no início nós temos um estado de coisas
não estruturado, pré-simbólico, imaginário, homeostático, um equilíbrio indiferente no qual as relações entre
os sujeitos são ainda estruturadas em sentido estrito – isto é, através da falta circulando entre eles. E o
paradoxo é que este pacto simbólico, este rede de relações estruturais, pode se estabelecer apenas na medida
em que se incorpora em um elemento material totalmente contingente, um-pouco-de-Real que, por sua
súbita irrupção interrompe a indiferença homeostática das relações entre os sujeitos. Em outras palavras, o
equilíbrio imaginário transforma-se em uma rede simbolicamente estruturada através de um choque do
Real.9
Finalmente, temos um terceiro tipo de objeto: os pássaros em Os Pássaros, por exemplo (poderíamos
também acrescentar, em Marnie – Confissões de uma Ladra, o casco de um navio gigante no fim da rua
onde vive a mãe de Marnie, sem mencionar as estátuas gigantes em vários de seus filmes, da estátua egípcia
em Chantagem e Confissão, passando pela Estátua da Liberdade em O Marido era o Culpado, até o Monte
Rushmore em Intriga Internacional). Esse objeto tem uma presença material maciça, opressora; não é um
vazio indiferente com o McGuffin, mas ao mesmo tempo ele não circula entre os sujeitos, não é um objeto
de troca, é apenas uma incorporação muda de um gozo impossível.
Como podemos explicar a lógica, a consistência – isto é, a interdependência estrutural – desses três objetos?
Em seu Seminário Mais, ainda Lacan propõe um esquema disso:10
Aqui, devemos interpretar o vetor não como indicando uma relação de determinação (‘o Imaginário
determina o Simbólico’, e assim por diante), mas no sentido da ‘simbolização do Imaginário’. Assim:
O McGuffin é claramente o objet petit a, uma lacuna no centro da ordem simbólica – a falta, o vazio do Real
engendrando o movimento simbólico de interpretação, uma pura aparência de Mistério a ser explicada,
interpretada;
O objeto de troca em circulação é S(A), o objeto simbólico que, na medida em que não pode ser reduzido
ao imaginário jogo de espelhos, registra a impossibilidade em torno da qual a ordem simbólica é estruturada
– o ínfimo elemento que põe em movimento a cristalização da ordem simbólica;
Finalmente, os pássaros são Phi, a objetificação do Real impassível, imaginária – uma imagem que dá corpo à
jouissance impossível.11
Não é difícil ver como esses três tipos de objeto estão dispostos de acordo com os três períodos centrais do
trabalho de Hitchcock:
O primeiro período situa-se claramente sob o signo de a, i.e., McGuffin: uma pura aparência que atrai o
herói para uma jornada edípica (não é acidental que, neste período, o papel do McGuffin é mais exposto:
dos projetos dos motores de aviões de guerra em Os 39 Degraus até a melodia codificada em A Dama
Oculta);
O segundo período é marcado pela presença de S(A) – a insígnia, o índice da impotência do pai: um
fragmento de realidade que funciona como o significante do fato de que o ‘Grande Outro’ é barrado, que o
pai não está à altura de seu Nome, de seu Mandato simbólico, na medida em que ele é capturado em um
gozo obsceno (o anel em A Sombra de uma Dúvida, a chave em Interlúdio, etc.);
No terceiro período, as diferentes formas do grande Phi tornam-se predominantes: as estátuas gigantes, os
pássaros e outras ‘manchas’ que materializam o gozo do superego materno e desta forma turvam a imagem,
tornando-as não transparentes.
As páginas que seguem podem às vezes parecer uma versão hitchcockiana do que, em termos holmesianos,
é chamado de ‘Alta Crítica’: joga-se seriamente o jogo cuja regra básica é a aceitação de que Hitchcock é um
‘artista sério’ (uma regra que não é menos incrível para muitos quanto a afirmação de que Sherlock Holmes
realmente existiu). Contudo a partir do que nós já dissemos, deveria estar claro como se deve responder
àqueles que reprovam os aficionados em Hitchcock com a ‘divinização’ de seu objeto de interpretação –
com a elevação de Hitchcock a algo semelhante a um Deus demiurgo que domina até mesmo os menores
detalhes de seu trabalho: tal atitude é simplesmente um sinal de relação transferencial onde Hitchcock
funciona como o ‘sujeito suposto saber [sujet supposé savoir]’ – e é necessário acrescentar que há mais
verdade nisso, que isso é teoricamente muito mais produtivo do que a atitude dos que insistem na
falibilidade, inconsistências, etc., de Hitchcock? Em suma, aqui, mais do que nunca, o lema lacaniano les
non-dupes errent está em vigor: a única maneira de produzir algo real em teoria é perseguir a ficção
transferencial até o fim.
1 Ver Fredric Jameson, “The Existence of Italy”, IN Signatures of Visible, New York, Routledge, 1990. A aplicabilidade da tríade jamesoniana realismo-modernismo-pós-modernismo é antes confirmada pela maneira como ela nos permite introduzir ordre raisonné em uma série de filmes contemporâneos. Assim, não é difícil perceber como, na série dos três filmes The Godfather [O Poderoso Chefão+, o primeiro é ‘realista’ (no sentido do realismo hollywoodiano: o fechamento narrativo, etc.), o segundo, ‘modernista’ ( o redobramento de uma única linha narrativa: todo o filme é uma espécie de apêndice duplo do primeiro, uma prequela e sequência da já contada história principal), e o terceiro, ‘pós-modernista’ (uma bricolage de fragmentos narrativos que não formam um conjunto através de uma ligação orgânica ou de um quadro mítico formal). A qualidade decrescente de cada filme da sequência atesta que o dominante da trilogia é o ‘realista’, o que não pode ser dito de três outros filmes de meados dos anos 1980 que formam também uma espécie de trilogia: Fatal Attraction (Atração Fatal), Something Wild (Totalmente Selvagem), Blue Velvet (Veludo Azul). A tríade realismo-modernismo-pós-modernismo é aqui ilustrada pelas três diferentes atitudes em relação à Outra Mulher como o ponto de ‘atração fatal’ através do qual o Real invade a realidade cotidiana e perturba seu circuito: Atração Fatal permanece dentro dos limites da ideologia estabelecida da família, onde a Outra Mulher (Glenn Close) personifica o mal a ser rejeitado ou morto; em Totalmente Selvagem, ao contrário, Melaine Griffith representa aquela que livra Jeff Daniels do falso mundo yuppie e o força a enfrentar a vida real; em Veludo Azul, Isabella Rosselini escapa dessa simples oposição e aparece como a Coisa em toda a sua ambiguidade, simultaneamente atraindo e repelindo o herói... A qualidade ascendente prova como o dominante aqui é ‘pós-modernista’.
2 Foi Deleuze quem situou Hitchcock na própria fronteira da ‘image-mouvement’, no ponto no qual ‘image-mouvement’ passa para a ‘image-temps’: ‘le dernier des classiques, ou le premier des modernes’ (Gilles Deleuze, Pourparlers, Paris, Editions de Minuit, 1990, p.79).
3 Raymond Bellour, “Psychosis, Neurosis, Perversion”, in Marshall Deutelbaum e Leland Poague (orgs.) A Hitchcock
Reader, Ames, Iowa State University Press, 1986, p.312. Se, além disso, se aceita a definição de Bellour da matriz fundamental hollywoodiana como uma ‘máquina para a produção do casal’, tem que se procurar o funcionamento contínuo dessa máquina não em Hitchcock, mas em um grande número de filmes recentes que, ostensivamente, não tem nada em comum com a Hollywood clássica. Vamos apenas mencionar dois filmes de 1990 que parecem não ter absolutamente nada em comum: Tempo de Despertar e Dança com Lobos – há, no entanto, uma característica crucial que os une. Em termos de seu conteúdo ‘oficial’, Tempo de Despertar é a história de um médico (Robin Williams) que, através do uso de novos remédios químicos desperta pacientes de períodos de coma de décadas e lhes permite retornar brevemente à vida normal; ainda que a chave do filme resida no fato de que o médico é tímido, reservado, sexualmente ‘não-desperto’ – o filme termina com seu despertar: i.e., quando ele convida para um encontro sua prestativa enfermeira. Em última instância, os pacientes despertam apenas para entregar ao médico a mensagem que lhe concerne: a virada no filme ocorre quando Robert de Niro, um dos pacientes despertados, pouco antes de sua recaída, diz-lhe na cara que o único verdadeiramente ‘não despertado’ é ele (o médico), incapaz de apreciar as pequenas coisas que dão sentido a nossas vidas... O desfecho do filme então se apoia numa espécie de troca simbólica não falada: como se os pacientes fossem sacrificados (permitindo a recaída no coma, i.e., ‘adormecer’ de novo) para que o médico possa despertar e ter um parceiro sexual – em suma, para que um casal seja produzido. Em Dança com Lobos, o papel do grupo de pacientes é assumido pela tribo Sioux, a qual se permite que desapareça, em uma troca simbólica implícita, de maneira que o casal, formado por Kevin Costner e a mulher branca que viveu entre os índios desde criança, possa ser produzido. 4 Elizabeth Weis, The Silent Scream, Londres, Associated University Presses, 1982, p.77.
5 Ver o capítulo 1 de William Rothman, The Murderous Gaze, Cambridge, MA, Harvard University Press, 1982.
6 O paralelo poderia ser expandido até os detalhes: a mulher misteriosa que encarrega o herói desta missão (o estranho assassinado no apartamento de Hannay em Os 39 degraus; a simpática idosa senhora que desaparece no mesmo filme) – não é ela uma espécie de reencarnação da ‘Rainha da Noite’? E o negro Monostatos não está reencarnado no baterista assassino com o rosto escurecido em Jovem e Inocente? Em A Dama Oculta o herói atrai a atenção de seu futuro amor tocando o quê? – uma flauta, claro! 7 A notável exceção aqui é Sob o Signo de Capricórnio, onde a heroína resiste ao charme superficial de um jovem sedutor e retorna ao seu marido mais velho e criminoso, depois de confessar que o crime pelo qual seu marido havia sido condenado tinha sido cometido por ela – em suma, a condição da possibilidade para esta exceção é a transferência da culpa, que anuncia o próximo período. 8 Para um relato mais detalhado deste período do trabalho de Hitchcock, ver o capítulo 5 de Looking Awry: An Introduction to Jacques Lacan Through Popular Culture, Cambridge, MIT Press, 1991, de Slavoj Žižek. 9 Quanto a este segundo tipo de objeto, ver o capítulo de Mladen Dolar ‘Objetos de Hitchcock’ *Hitchcock’s Objects+ neste livro, PP. 31-46. Outro aspecto deste objeto é que ele permanece o mesmo na mudança de um espaço narrativo para outro, como o colar em Um Corpo que Cai, o primeiro e único que liga a comum e ruiva Judy à sublime Madeleine (permitindo assim a Scottie reconhecer sua identidade). Fica-se tentado a dizer que S(/A) figura aqui como um tipo de ‘designador rígido’ (tomando o termo emprestado de Naming and Necessity, Saul Kripke, Oxford, Blackwell, 1980): o núcleo que permanece o mesmo em todos os universos (narrativos) possíveis. 10 Ver Jacques Lacan, Le Séminaire, Livre XX: Encore, Paris, Edition du Seuil, 1975, p.83. 11 Para uma elaboração do contexto teórico e das conseqüências ulteriores desse esquema lacaniano, ver o capítulo 5 de Slavoj Žižek, The Sublime Object of Idelogy, Londres, Verso, 1989; para outra leitura a respeito das histórias de Patricia Highsmith, ver o capítulo 7 de Slavoj Žižek, Looking Awry.