21
Elementos para uma crítica da mediação moderna João Carlos Correia Universidade da Beira Interior Índice 1 A emergência das “políticas da vida” 4 2 O poder dos media ........ 7 3 Uma nova perspectiva crítica ... 11 4 Linguagem e teoria crítica .... 18 As relações entre o indivíduo e a socie- dade foram alvo de uma mediatização ge- neralizada no decurso da qual a construção de imaginários, a formulação de normas e a consolidação de visões do mundo depen- dem cada vez mais da presença de órgãos de comunicação social. O aceleramento desta mediatização tem vindo a comportar con- sequências que se fazem sentir, nomeada- mente, ao nível das relações entre público e privado. A principal preocupação desta tese é debruçar-se sobre a enfatização da indivi- dualidade como fenómeno indutor do plura- lismo normativo e da fragmentação cultural, analisando a sua relação com a vivência dos destinos colectivos no plano da esfera pú- blica. Os seres humanos agem em relação à rea- lidade com base no significado que lhe atri- buem e esse significado provém em primeira instância dos processos de interacção social e de mediação simbólica. Tais processos comportam uma dimensão cognitiva – sus- tentam as representações sociais da realidade social e natural - e uma dimensão prescri- tiva - indicam os objectivos e as normas de acordo com as quais os indivíduos e as co- lectividades devem comportar-se. Este ponto de vista significa a adesão a uma perspectiva que realça o papel da linguagem, a qual deixa de ser considerada como instrumento para se constituir em elemento estruturante das rela- ções sociais. De acordo com esta visão, de certa forma, a mediação linguística desem- penha um papel fundamental na constituição da experiência que temos do mundo. A linguagem aparece, assim, associada ao viver em comum. É através da mediação, designadamente a mediação linguística, que se manifestam as expectativas recíprocas em que assentam as diversas interacções prati- cadas no mundo da vida. A consciência da importância crescente das mediações simbó- licas significa a abertura de um campo de tensão no qual se não aceita a absoluta con- formação do mundo num sentido unilateral mas, antes, se reconhece a teia de relações complexas entre a linguagem e o mundo da vida. 1 A linguagem é, no seio da cultura, um 1 O conceito de mundo da vida surge primeiro na obra de Husserl como o mundo da evidência e da experiência quotidianas, por oposição ao mundo quantificado da ciência moderna. Cfr. v. “World” in Encyclopedia of Phenomenology, Dordrecht, Bos-

Elementos para uma crítica da mediação moderna · ner, org., Fenomenologia e relações sociais - textos escolhidos de Alfred Schutz, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1979,p. 54

  • Upload
    voduong

  • View
    215

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Elementos para uma crítica da mediação moderna · ner, org., Fenomenologia e relações sociais - textos escolhidos de Alfred Schutz, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1979,p. 54

Elementos para uma crítica da mediação moderna

João Carlos CorreiaUniversidade da Beira Interior

Índice

1 A emergência das “políticas da vida”42 O poder dos media. . . . . . . . 73 Uma nova perspectiva crítica. . . 114 Linguagem e teoria crítica. . . . 18

As relações entre o indivíduo e a socie-dade foram alvo de uma mediatização ge-neralizada no decurso da qual a construçãode imaginários, a formulação de normas ea consolidação de visões do mundo depen-dem cada vez mais da presença de órgãos decomunicação social. O aceleramento destamediatização tem vindo a comportar con-sequências que se fazem sentir, nomeada-mente, ao nível das relações entre público eprivado. A principal preocupação desta teseé debruçar-se sobre a enfatização da indivi-dualidade como fenómeno indutor do plura-lismo normativo e da fragmentação cultural,analisando a sua relação com a vivência dosdestinos colectivos no plano da esfera pú-blica.

Os seres humanos agem em relação à rea-lidade com base no significado que lhe atri-buem e esse significado provém em primeirainstância dos processos de interacção sociale de mediação simbólica. Tais processoscomportam uma dimensão cognitiva – sus-

tentam as representações sociais da realidadesocial e natural - e uma dimensão prescri-tiva - indicam os objectivos e as normas deacordo com as quais os indivíduos e as co-lectividades devem comportar-se. Este pontode vista significa a adesão a uma perspectivaque realça o papel da linguagem, a qual deixade ser considerada como instrumento para seconstituir em elemento estruturante das rela-ções sociais. De acordo com esta visão, decerta forma, a mediação linguística desem-penha um papel fundamental na constituiçãoda experiência que temos do mundo.

A linguagem aparece, assim, associada aoviver em comum. É através da mediação,designadamente a mediação linguística, quese manifestam as expectativas recíprocas emque assentam as diversas interacções prati-cadas no mundo da vida. A consciência daimportância crescente das mediações simbó-licas significa a abertura de um campo detensão no qual se não aceita a absoluta con-formação do mundo num sentido unilateralmas, antes, se reconhece a teia de relaçõescomplexas entre a linguagem e o mundo davida.1 A linguagem é, no seio da cultura, um

1 O conceito de mundo da vida surge primeirona obra de Husserl como o mundo da evidência eda experiência quotidianas, por oposição ao mundoquantificado da ciência moderna. Cfr. v. “World”in Encyclopedia of Phenomenology, Dordrecht, Bos-

Page 2: Elementos para uma crítica da mediação moderna · ner, org., Fenomenologia e relações sociais - textos escolhidos de Alfred Schutz, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1979,p. 54

2 João Carlos Correia

ton, London, Kluwer Academic Publishers, 1997, pp.736-737. Husserl refere-se ao mundo da vida como“aquele que nos é verdadeiramente dado como per-ceptível, o mundo da experiência real ou possível”.Edmund Husserl, La crise des sciences européenneset la phénoménologie transcendental, Paris, Galli-mard, 1967,p. 57. Este mundo constitui-se comointegrando um tipo de verdades situadas, “prático-quotidianas.” Ibid., p. 150. Nós, nesse mundo, es-tamos “considerados na certeza da experiência, ante-riormente a qualquer constatação científica, seja elapsicológica, sociológica ou outra”Ibid.,p. 119. Nessesentido, o mundo da vida é-nos apresentado comoo “mundo das evidências originais”, entendidas en-quanto diversas da evidência objectiva lógica, relaci-onada ao ponto de vista teórico da ciência da natu-reza científico-positiva Cfr.Ibid., pp. 145-146. Al-fred Schutz compreendeu bem o alcance do problemahusserliano: “Todas as ciências empíricas se referemao mundo como dado; mas, elas próprias e os seusinstrumentos, são elementos desse mundo.” AlfredSchutz, “Bases da fenomenologia” in Helmut Wag-ner, org.,Fenomenologia e relações sociais - textosescolhidos de Alfred Schutz, Rio de Janeiro, ZaharEditores, 1979,p. 54. Numa deriva que nos interessaparticularmente nesta tese, a Fenomenologia Socialapropria de Husserl este conceito. “O mundo da vidaé simplesmente toda a esfera das experiências quoti-dianas, direcções e acções através das quais os indi-víduos lidam com seus interesses e negócios, mani-pulando objectos, tratando com pessoas, concebendoe realizando planos.” H. Wagner, “Introdução” inFe-nomenologia e relações sociais, op. cit.p. 16. Assim,trata-se de “um mundo intersubjectivo comum a to-dos nós, no qual não temos um interesse teórico masum interesse eminentemente prático.” A. Schutz, “Omundo da atitude natural” inFenomenologia e rela-ções sociais, op. cit.,p. 73. Este é o mundo “em quenos encontramos em cada momento da nossa vida, to-mado exactamente como se apresenta a nós na nossaexperiência quotidiana.” Aron Gurwitsch, “Introduc-tion” in A. Schutz,Collected papers, Vol. III, Haya,Martinus Nijhoff, 1975,p. xi. Jürgen Habermas tam-bém irá transpor para a Teoria do Agir Comunicacio-nal o conceito central de mundo da vida Cfr. JürgenHabermas, “Explicitations du concept d’activité com-municationnel”, inLa logique des sciences socialeset autres essais, Paris, PUF, 1987,p. 425. Habermas

lugar de tensão entre a unidade e a plurali-dade, entre o uno e o diverso, entre a reifica-ção e a busca intercompreensiva de contex-tos comunicacionais marcados pelo interesseemancipatório. Lugar de resistência ou defechamento, ou espaço onde ambas as pos-sibilidades se cruzam dialecticamente, a lin-guagem, em geral, pode cristalizar-se numuniverso de sobreditos que interditam dize-res novos. No mundo da vida, a linguagemtem em si mesma a possibilidade de assumira reflexividade actualizando a potência queem si contém de nomear o Outro como “se-gunda pessoa”, apelando ao exercício críticoda racionalidade e superando a dinâmica ho-lística e anterior ao indivíduo, que tambémé constitutiva do mundo da vida. Como seexistisse em si uma impossibilidade de totalfechamento - que se confundiria afinal comum silêncio - a linguagem, apesar de tudo,interpela e interpela-se, mesmo quando, atra-vés de numerosos mecanismos, a pretendemsilenciar quanto ao dizer de outro modo. Aocontrário de alguns para quem “a linguagem

entende que o mundo vivido desempenha a função daconstituição de um contexto, concepção esta que im-plica que ele se apresente como um saber implícito,dotado de uma estrutura holística e indisponível à re-flexão dos actores sociais, mas também como um re-servatório de convicções, ou seja, enquanto recursoque exerce uma função constituinte para cada situa-ção em que se realiza o processo de intercompreen-são: “Graças ao mundo da vida os participantes da co-municação encontram uma interpretação concreta darelação entre os mundos objectivo, subjectivo e social.Logo que eles transpõem o horizonte de uma situaçãodada, não arriscam a por o pé no vazio; descobrem-senovamente num outro domínio de evidências cultu-rais, actualizado no presente e previamente interpre-tado.” Ibid.,p. 433. Assim, o mundo da vida é umaespécie de “totalidade porosa”, que apenas em partese subtrai à reflexão. Cfr. J. Habermas,La penséepost-metaphysique, Paris, Armand Colin, 1996,p. 24.

www.bocc.ubi.pt

Page 3: Elementos para uma crítica da mediação moderna · ner, org., Fenomenologia e relações sociais - textos escolhidos de Alfred Schutz, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1979,p. 54

Elementos para uma crítica da mediação moderna 3

não está concebida para nela se acreditar,mas para obedecer e fazer obedecer”2, a ver-dade é que os modos de exercício do poderque se configuram também no interior da lin-guagem não são todos idênticos sendo, porvezes, a potencialidade reflexiva da palavraque conduz de forma permanente à questi-onação do que se tinha por adquirido, dei-xando sempre em aberto o problema da legi-timidade.3

Enquanto caso particular da mediação lin-guística, a linguagem dosmediasuscita per-plexidades visíveis que se fazem sentir nascontradições que estalam entre o desejo desintonia dosmediade massa com as normasconsensualmente aceites e a influência dosmesmosmedia na segmentação e na frag-mentação cultural, designadamente as resul-tantes da composição, recomposição e for-mação de identidades sociais.

Em face dos processos de diferenciação efragmentação cultural, no decorrer dos quaisos media contribuíram, de modo decisivo,para a emergência e redescoberta das iden-tidades, urge debater, ao longo deste traba-lho, se nos encontramos perante potenciali-dades emancipatórias novas e decisivas ou,pelo contrário, perante esferículas que ape-nas pretendem desenvolver ao nível capilara força dominadora de um mercado que ex-plode em miríades de segmentos.4 Para res-ponder a esta dúvida, este trabalho deter-se-ásobre os seguintes pontos:

-um esforço crítico de compreensão da

2 Gilles Deleuze e Félix Guattari,Mille plateaux,Paris, Minuit, 1980,p. 125.

3 Cfr. J. Habermas,Ciência e técnica como “ide-ologia” , Lisboa, Edições 70, 1987, pp. 69-70.

4 Todd Gitlin, Twilight of common dreams: whyAmerica is wraked by culture wars, New York, Me-tropolitan, 1995.

centralidade da mediação na própria forma-ção das identidades;

-uma insistência particular naquelas pers-pectivas teóricas que defendem formas demediação que não se traduzam no esqueci-mento do papel do sujeito, ou seja, na reifica-ção5, expressando a defesa de espaços públi-cos que garantam o funcionamento de umasociedade civil democrática;

-a insistência, mais uma vez, na compre-ensão dinâmica da ordem social com vistaà defesa da multiplicação de espaços públi-cos que impeçam a petrificação rígida de ele-mentos democráticos demasiado formais;

-a análise de alguns aspectos mais visí-veis da forma como as identidades emer-gem na sociedade portuguesa, afirmando-secomo um desafio que um pensamento que sereclama das Ciências da Comunicação nãopode ignorar;

-a tentativa de compreensão do papel dosmediana fragmentação cultural, tal como eleé hoje desempenhado, tentando, simultane-amente, desvendar alguns traços relativos àforma como será desempenhado no futuro.

Para responder a estes objectivos,prosseguir-se-á um percurso em que seprocurará, em primeiro lugar, explicara forma como a mediação se torna umelemento incontornável na formação dasculturas, na socialização e na constituiçãodas personalidades, no interior da quala produção simbólica, nomeadamente aempreendida pela indústria cultural e mediá-tica, tem um papel de importância crescente.

5 Sobre o conceito de reificação ver Joachim Is-rael,L’Aliénation - de Marx à la sociologie contem-poraine, Paris, Antrophos, 1972, p. 37 e seguintes e,ainda, Frédéric Vandenberghe,Une histoire critiquede la sociologie allemande:: aliénation et réification,vol. I, Paris, La Découverte, 1997, p. 14 e pp. 29-40.

www.bocc.ubi.pt

Page 4: Elementos para uma crítica da mediação moderna · ner, org., Fenomenologia e relações sociais - textos escolhidos de Alfred Schutz, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1979,p. 54

4 João Carlos Correia

Seguidamente, explanam-se formas depensamento que analisam a mediação emgeral, designadamente a mediação cultural,mostrando, por um lado, aquelas abordagensteóricas (Adorno e Foucault) que concluempela inevitabilidade de um devir reificantedas relações sociais e, em alternativa,as abordagens teóricas que aprofundampossibilidades de democratização da vidasocial (Habermas, Honneth e Taylor entreoutros), designadamente através do reavivardo conceito de sociedade civil. Analisa-se,posteriormente, o conceito de consenso,tentando precisar as exigências que devemser colocadas à proposta formulada porHabermas no sentido de um consensoracional e argumentativo que procure fundara vontade colectiva na participação de todos,em condições de igualdade. Procuram-se,deste modo, abordar as dificuldades que umateoria democrática do consenso conhece,nomeadamente em sociedades cada vezmais fragmentadas onde as pretensões devalidade emanam dos diversos particularis-mos emergentes. Procede-se, desta forma,à demonstração do aumento da diversidadecomo traço cada vez mais marcante dassociedades modernas, que se oferece comoum desafio crescente para a igualdade eequidade de tratamento dos agentes sociais.Demonstrar-se-á, de seguida, que as análisesque tendem a considerar a reificação comoum devir inevitável das relações sociais sãoas mesmas que partilham de uma concepçãoapocalíptica da cultura, prognosticando aosmedia uma responsabilidade importanteno estabelecimento da força coesiva quegarante a integração social, independente-mente da participação dos agentes sociais. Atese aqui desenvolvida tenta, pelo contrário,demonstrar que osmediadispõem de uma

capacidade que pode despoletar dinâmicassociais alternativas, as quais se podemconstituir como susceptíveis de induzirem oaparecimento de novos movimentos sociaisque configurem novos desenvolvimentosdemocráticos, tendentes a aprofundar oexercício da cidadania.

1 A emergência das “políticas davida”

De acordo com a perspectiva que in-forma a investigação desenvolvida nestatese, entende-se, de forma categórica, quea modulação das consciências individuais ecolectivas é, cada vez mais, resultado de umaactividade que implica, decisivamente, a me-diação simbólica exercida, de modo institu-cional e profissional, pelos meios de comu-nicação social

Diminuído o poder da Religião, da Famí-lia e da Escola e das formas de mediaçãoque as acompanhavam, enquanto mecanis-mos que asseguravam a regularidade nas di-nâmicas sociais, osmedia– incluindo nes-tes os meios de comunicação de massa e osnovosmedia- exercem uma capacidade decontrolo que não pode ser considerada ape-nas sob o ponto de vista da sua presumívelinfluência numa campanha eleitoral ou na vi-gilância democrática do poder político.

Os sistemas de relação social tornaram-seinseparáveis da formulação de um imaginá-rio, pelo que a actividade dosmediafaz partedo cerne do seu funcionamento. A acção po-lítica, como toda a actividade social, é, demodo crescente, povoada de crenças, de con-venções e símbolos.

De entre a actividade mediática em geral,o jornalismo escrito desempenhou um pa-

www.bocc.ubi.pt

Page 5: Elementos para uma crítica da mediação moderna · ner, org., Fenomenologia e relações sociais - textos escolhidos de Alfred Schutz, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1979,p. 54

Elementos para uma crítica da mediação moderna 5

pel decisivo de estruturação do próprio es-paço público e do consenso social: ora cons-tituindo um dos suportes essenciais de dina-mização da cidadania, ora contribuindo paraa introdução de algumas das patologias quecontribuíram para a racionalização da vidasocial no seu sentido mais reificador, ou seja,no sentido de uma deformação das estruturascomunicacionais da vida social com vista àsua pura subjugação às exigências funcionaisdo sistema.6

Sem o jornalismo, não se formaria opiniãopública ou pelo menos esta teria uma confi-guração decerto diversa daquela que conhe-cemos. Porém, muitas das vezes graças a ele,e a dinâmicas que se geraram em seu redor,o mero consumismo de informação substi-tuiu os mecanismos verdadeiramente públi-cos de formação da opinião. O jornalismo,como uma das formas mais antigas de in-dústria cultural – uma das primeiras onde,efectivamente, a administração submeteu, deforma planeada e sistemática, a cultura a pa-drões que lhe eram exteriores - surge, assim,como merecedor de uma forte interpelaçãocrítica.

Neste trabalho, grande parte da resposta

6 Trata-se de um processo que não conhece um de-senvolvimento linear: “Por maiores que possam ser asafinidades entre osmass mediae osmediafuncionaisde regulação (essencialmente, o dinheiro e o poder),os primeiros guardam uma especificidade própria, re-sultado do seu irredutível carácter simbólico e linguís-tico. Eles inscrevem-se em última instância, no uni-verso sócio-cultural, obedecem às exigências da in-tercompreensão e, nesta medida, a sua lógica de fun-cionamento nunca pode ser estritamente (nem predo-minantemente) sistémica e funcional.” João PissarraEsteves, “Novos desafios para uma teoria crítica dasociedade” inRevista de Comunicação e Linguagens,nos 21-22, Comunicação e política, Lisboa, Cosmos,Dezembro de 1995, p. 90.

às perplexidades que semelhante interpela-ção crítica suscita passam pela compreensãodo discurso mediático, no plano informativo.Esta tese interpela o jornalismo enquantoagente de controlo social, desafiado por umadinâmica de fragmentação crescente, própriadas actuais sociedades pluralistas.

Ao longo deste texto, tem-se presente aideia segundo a qual a cultura é simultane-amente veículo de valores estruturados emtorno de uma visão dominante e consensu-almente aceite, e um espaço de tensões efragmentação onde se luta pelas transforma-ções de sentidos. São essas tensões de sen-tido contraditório que se julgam discernir, deforma similar, nosmedia. Procura-se, as-sim, saber qual o papel que lhes é imputá-vel na construção e representação das regu-laridades sociais tendo-se em conta, simul-taneamente, a sua dificuldade estrutural emmanterem-se dentro dos caminhos estreitosde uma representação mais ou menos mo-nolítica do mundo social, num momento ca-racterizado por um pluralismo social intenso,resultante da recente revalorização atribuídaà emergência das identidades minoritárias.

Dentro deste contexto, toma-se como umelemento fundamental a emergência de rei-vindicações e de movimentos relacionadoscom as “políticas da vida”, sendo estas en-tendidas como um conjunto de preocupaçõesemergentes napolis, que já não se debruçamapenas sobre o devir do espaço público co-lectivo mas que têm em conta a definiçãodo lugar que cabe aos direitos respeitantes àrealização individual e à escolha dos estilosde vida. Vistas desta forma, estas preocu-pações podem implicar uma nova concepçãode “mundo da vida”, atenta aos fenómenosde dominação, de poder e de conflitualidadeexistentes em territórios diversos daqueles

www.bocc.ubi.pt

Page 6: Elementos para uma crítica da mediação moderna · ner, org., Fenomenologia e relações sociais - textos escolhidos de Alfred Schutz, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1979,p. 54

6 João Carlos Correia

que normalmente são confinados à chamadapolítica tradicional. Mais ainda, concebe-sea possibilidade de se estar face a uma pro-liferação de mundos da vida, que implica oreconhecimento da diversidade de mecanis-mos de poder e regulação social - mas tam-bém de resistência - que se afirmam em cadaum deles. Deste modo, é admissível aceitara possibilidade de que esta proliferação demundos da vida corresponda à erupção de ni-chos de cidadania, onde se oculta um poten-cial conflitual e normativo importante. Toda-via, pode-se, ao invés, estar apenas perantea erupção de fenómenos hedonistas própriosde uma época dominada pela mercantiliza-ção doself, em que a acentuação da fruiçãoe do prazer individual apenas diz respeito àdescoberta de novos segmentos de mercado eem que a substituição da cultura puritana tra-dicional dá lugar a formas de imperativo nar-císico, que, no limite, podem originar par-ticularismos destrutivos, despertando formasde agressividade marcadas pela exclusão doOutro. A questão está pois em tentar desco-brir até que ponto a emergência doself e daspolíticas que lhe estão associadas represen-tam uma forma hábil de dominação assentena dessublimação repressiva e na gestão dosdesejos individuais (Marcuse), na celebra-ção do mesmo sobre o signo de uma dife-rença aparente (Adorno), na desresponsabi-lização da participação colectiva com o con-sequente declínio do espaço público (Sennet)ou, pelo contrário, se trata da emergência depolíticas da vida susceptíveis de serem ar-ticuladas com preocupações emancipatórias,como suspeitam, de modos muito diversos,Habermas, Apel ou Ferry, e, em especial,Seyla Benhabib, Albrecht Wellmer, MichaelWalzer, Honneth, Touraine e Giddens.

De acordo com este corpo de preocupa-

ções, que constitui o fundamento teóricodeste debate, é lançada uma interpelação àsdinâmicas sociais emergentes, reflectindo-sesobre as dificuldades sentidas em face depretensões cada vez mais diversificadas eplurais, onde se incluem, entre outros, os de-safios colocados pelas problemáticas étnica,feminina e, de um modo geral, a salvaguardade novos direitos relacionados com a quali-dade de vida, como sejam os de consumo eos direitos de ambiente. Procura-se, destemodo, demonstrar como essas pretensões,relacionadas com a emergência das políticasda vida, se afirmaram enquanto dificuldadesadicionais para uma visão totalizante da so-ciedade, que se entendia, pelo menos nas for-mulações clássicas da teoria crítica, ser a vi-são típica veiculada pelosmedia. Poder-se-á, pois, constatar a presença de pretensõeslevantadas pela emergência de identidades,designadamente étnicas e sexuais, às quaisse acrescentam reivindicações colocadas pornovos movimentos sociais que reclamam pordireitos que dizem mais respeito à qualidadede vida do que à agenda política tradicional.7

Nessa medida, parece frutuoso tomar comoponto de partida um olhar crítico sobre a hi-postasiação do mercado, relacionada com aexploração de novos nichos, e a fragmenta-ção cultural, resultante do exacerbamento deculturas particulares.

Procura-se, pois, discernir, na linguagemjornalística, de acordo com a importânciaatribuída aosmedia, a conformidade com osenso comum, com o saber partilhado por to-dos, tido por adquirido e socialmente aceite,fazendo-se um paralelo entre as atitudes ima-nentes à discursividade praticada pela profis-

7 Cfr. Anthony Giddens,Modernidade e identi-dade pessoal, Oeiras, Celta, 1997,p. 8; pp. 208-209.

www.bocc.ubi.pt

Page 7: Elementos para uma crítica da mediação moderna · ner, org., Fenomenologia e relações sociais - textos escolhidos de Alfred Schutz, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1979,p. 54

Elementos para uma crítica da mediação moderna 7

são jornalística e a “atitude natural”, prag-mática e realista, descrita por autores comoSchutz ou Gurwitsch.8 É neste plano quenos parece mais evidente como o mundo davida é, também, um lugar onde se multi-plicam as formas de dominação adivinha-das por Schutz9, expostas por Foucault10 ouBourdieu11, pelo que o senso comum, doqual a linguagem jornalística, como vere-mos, ambiciona aproximar-se, toma a formade conhecimento própria da transmissão das

8 Ver entre outros textos, A. Gurwitsch, “Introduc-tion”, op. cit.,p.xi e xii; e A. Schutz, “Some structu-res of the life-world”,inCollected papers,vol. III, op.cit., pp. 116-132.

9 Cfr. Ibid.10 Ver nomeadamente Michel Foucault,L’ordre du

discours, Paris, Gallimard, 1971, pp. 11-21; M. Fou-cault, Vigiar e punir – história da violência nas pri-sões, Petrópolis, Rio de Janeiro, Vozes, 1977,p. 21 eseguintes. Ao longo dessas páginas procede-se à aná-lise do modo como um saber e determinados discur-sos científicos “se formam e entrelaçam com a práticado poder de punir”, propondo-se efectuar “a históriada alma moderna em julgamento”, demonstrando, no-meadamente, como a inserção na prática judiciária detodo um saber científico resulta de uma transforma-ção da “maneira como o próprio corpo é investido pe-las relações de poder”,Ibid.,p. 25, maneira esta queimplica a emergência de “uma tecnologia política docorpo.” Ibid.,p. 28. Ver ainda, M. Foucault,Históriada sexualidade, a vontade de saber, Vol. I, Lisboa,Relógio d’Água, 1994, pp. 14-15 e pp. 21-53.

11 Ver, nomeadamente, Pierre Bourdieu, Ce queparler veut dire,Paris, Minuit, 1982,p. 14 e, ainda,P.Bourdieu,O poder simbólico, Lisboa, Difel, 1989.Nesta obra parecem particularmente interessantes asreferências ao poder simbólico enquanto poder invisí-vel “que só pode ser exercido com a cumplicidade da-queles que não querem saber que lhe estão sujeitos oumesmo que o exercem.”Ibid.,p. 8. Multiplicam-se,pois, as referências aos símbolos como “instrumentospor excelência de integração social”Ibid.,p. 10 e aodesempenho, por estes, de uma função política queconsiste em “assegurar a integração fictícia da socie-dade no seu conjunto.”Ibid. pp. 10-11.

normas e dos estereótipos socialmente acei-tes.

Tenta-se, assim, fazer a relação entre o es-tabelecimento de regularidades e o confor-mismo, procurando demonstrar como a lin-guagem jornalística, devido ao seu constanterecurso à tipificação, aos estereótipos e aosenquadramentos pode comportar processosde reificação, pervertendo a representaçãodas identidades sociais.

Investiga-se a relação dosmedia com otratamento da diferença identitária, tal comose manifesta, contemporaneamente, no es-paço público, tentando-se descortinar umaambiguidade que resulta de dois planos deactuação contraditórios entre si: por umlado, osmediatornariam possível a afirma-ção da diferença como uma possibilidadede diversidade que constitua um aprofunda-mento democrático das sociedades; por ou-tro lado, seriam, frequentemente, eles quereduziriam a luta pelo reconhecimento des-sas identidades a uma mera exploração desegmentos de mercado, multiplicados até aoinfinito, através da intensificação consumistados desejos individuais.

2 O poder dos media

Em face destas ambiguidades reconhece-seestar perante duas vias aparentemente con-traditórias mas complementares. Por umlado, enfatiza-se o ressurgimento do po-der do jornalismo12 aceitando-se as contri-buições teóricas mais recentes que apon-tam neste sentido - como sejam as hipóte-ses sobre a construção social da realidade

12 Cfr. Nelson Traquina, “O paradigma do “agenda– setting”. Redescoberta do poder do jornalismo” inRevista de Comunicação e Linguagens, nos 21-22,Comunicação e política,op. cit., pp. 189-221.

www.bocc.ubi.pt

Page 8: Elementos para uma crítica da mediação moderna · ner, org., Fenomenologia e relações sociais - textos escolhidos de Alfred Schutz, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1979,p. 54

8 João Carlos Correia

baseadas na Fenomenologia Social de Al-fred Schutz13 e dos seus continuadores, Ber-ger e Luckmann[?] aplicadas aosmediaporGay Tuchman14 e por Adoni e Mane15, alémdas reflexões sobre tematização pensadas noâmbito do funcionalismo sistémico por Ni-klas Luhmann16 e aplicadas por Noel - Neu-mann17 - as quais claramente retomam, no

13 Ver a propósito de A. Schutz, os seus ensaios,reunidos em três volumes:Collected papers,The pro-blem of social reality.Volume I, The Hague, MartinusNijoff, 1975; Collected papers, Studies in social the-ory, Volume II, The Hague, Martinus Nijoff, 1976;Collected papers, Studies in phenomenological phi-losophie., Volume III, The Hague, Martinus Nijoff,1975.

14 Cfr. Gaye Tuchman,Making news - a studyin the construction of reality, New York, Free Press,1978, p. 14; p. 182; pp. 185-188.

15 Cfr. Hannah Adoni e Sherryl Mane, “Media andthe social construction of reality - toward an integra-tion of theory and research”, inCommunication Re-search, Vol. 11, no 3, Beverly Hills, Sage, 1984, pp.323-338.

16 Sobre o tratamento que Luhmman dá à questãoda comunicação, ver Niklas Luhmann,A improbabi-lidade da comunicação, Lisboa, Vega, 1992, em es-pecial o texto “Complexidade societal e opinião pú-blica”. Neste texto, Luhmann propõe-se à reconstru-ção da opinião pública a partir de um princípio radi-cal. Cfr. Ibid.,p. 67. Esta reconstrução passa pelareferência do conceito ao sistema social da sociedade,não remetendo para o que as pessoas opinam, pen-sam, dirigem a sua atenção ou lembram Cfr.Ibid.,p.69; implica que a sociedade seja vista como um sis-tema de comunicação autorreferencial independentedo que ocorre nas mentes individuais Cfr.Ibid., pp.70-71. A noção de construção social da realidade vêdeste modo reafirmada a sua independência, à partede qualquer referência empírica concreta Cfr.Ibid.,p. 72.Ver também, N. Luhmann,Stato di diritto e sis-tema sociale, Napoli, Guida Editore, 1978, pp. 85 eseguintes.

17 Cfr. Elizabeth Noel-Neumann,La espiral delsilencio - opinión pública: nuestra piel social, Barce-lona, Paidós, 1995, pp. 199 e seguintes.

plano da investigação sobre os efeitos dosmedia, uma posição que supera a teoria dosefeitos limitados.18

Por outro lado, procede-se com Ferry19,Kellner20 e Strydom21, entre outros, a umarecepção das diversas tentativas de elabora-ção de uma teoria crítica dosmedia- nome-adamente na sua componente informativa ejornalística - que redescubra a necessidadede uma ideia de público22 atenta às tensõesplurais que emergem no seio da vida social eque implicam um novo entendimento, maisdinâmico, da ideia de recepção.

Neste sentido, tentar-se-á demonstrar queo reconhecimento do poder do jornalismonão implica o entendimento da audiênciacomo se fosse composta por “figuras de plas-ticina”. Com efeito, defende-se que as possi-bilidades reificadoras de uma linguagem ten-dencialmente niveladora e homogeneizantepodem ser desafiadas com o recurso a polí-ticas que impeçam a redução da luta simbó-lica à transmissão de informação e que im-pliquem, por isso, um acréscimo de partici-pação por parte de públicos de cidadãos.

18 Cfr. Enric Saperas,Efeitos cognitivos da comu-nicação de massa, Lisboa, ASA,1993, p. 20.

19 Cfr. Jean-Marc Férry, “Quelle théorie critiquedes média aujourd’hui” in Guy Harscher e Boris Li-bois (Eds.),Les media entre Droit et pouvoir - rede-finir la liberté de la presse, Bruxelles, Ed. Univ, deBruxelles, 1995, pp. 56-57.

20 Ver por exemplo, Steven Best e Douglas Kellner,“Watching television: limitations of post-modernism”in Science as Culture, no4, London, 1988,p. 48, pp.67 e seguintes.

21 Cfr. Piet Strydom, “Triple contingence, the the-oretical problem of the public in communication so-cieties”, inPhilosophy and Social Criticism, Vol. 25,no 2, London, Thousand Oaks and New Delhy, Sage,1999, p. 17.

22 Cfr. J.-M. Férry, “Quelle théorie critique des mé-dia aujourd’hui”, op. cit., pp. 54-58.

www.bocc.ubi.pt

Page 9: Elementos para uma crítica da mediação moderna · ner, org., Fenomenologia e relações sociais - textos escolhidos de Alfred Schutz, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1979,p. 54

Elementos para uma crítica da mediação moderna 9

Este trabalho pretende interpelar a formacomo a narrativa jornalística, através de umalinguagem dotada de características próprias,intervém na conformação das dinâmicas so-ciais, desencadeando mecanismos que afec-tam toda a actividade dos agentes na aqui-sição e reforço dos conhecimentos e nor-mas pelas quais se pauta a compreensãodo mundo, nomeadamente acompanhandoo processo de reformulação das identidadessociais e colectivas.

A análise da erupção de identidades plu-rais - um movimento lento que, desde o 25de Abril se consolidou em Portugal - seráparticularmente significativa da forma comoo jornalismo se confronta com as suas vá-rias possibilidades de representação do uni-verso político. Assim, a título de exemplo,investigar-se-á a maneira como se articula-ram nesse espaço social simbólico os diver-sos discursos conflituais. Aí, verificar-se-áque as mais diversas orientações sociais queemergem à margem do que é socialmenteconsensual são muitas vezes objecto de umtratamento que oscila entre o irónico e o fas-cínio pelo bizarro, sendo por isso, remetidospelosmedia para o domínio vasto do “faitdivers” ou das histórias de interesse humano,as quais, quando tocadas pelo excesso, des-caem facilmente no sensacionalismo. Ora,o sensacionalismo, apesar do seu ar aparen-temente transgressor, é, apesar de tudo, umaforma de denunciar a transgressão, desempe-nhando, por isso, um papel socialmente con-servador. Nesse sentido, até alguns dos me-lhores jornais portugueses continuam a inse-rir reportagens que dizem respeito à identi-dade sexual no mesmo caderno onde se re-ferem assuntos tão diversos como as tendên-cias da moda, as pequenas maledicências en-

tre políticos ou as desventuras da família realbritânica.23

Veremos, assim, como a linguagem jor-nalística comporta contradições que se cru-zam com a própria noção de objectividade.Tentando, por um lado proceder a um dis-curso factual e adoptando, por outro, o pen-samento, a linguagem e o conhecimento do“homem comum”, o estilo jornalístico estru-tura a realidade utilizando enunciados, qua-lificações e silêncios que procuram tipificara realidade, escondendo o facto de que essesenunciados e qualificações não são neutrosmas traduzem lutas simbólicas que têm lugarnos domínios político e social.

Sob o ponto de vista metodológico,afirma-se, desde já, que este trabalho seinclui numa certa visão das ciências soci-ais que repudia uma concepção cientificistamarcada pelo objectivismo estreito e pelo de-sejo de aplicar os métodos das ciências natu-rais à vida social.24 O processo de supera-ção do sujeito solitário, verdadeiro nó gor-

23 Verifica-se deste modo um fenómeno seme-lhante ao que ocorreu nos grandes jornais americanosquando o movimento feminista apareceu: as notíciasque lhe diziam respeito eram sistematicamente publi-cadas nas secções femininas. Cfr. G. Tuchman,Ma-king news, op. cit., pp. 145-146.

24 Cfr. F. Vandenberghe,Une histoire critique dela sociologie allemand, op. cit.,Vol. I,p. 46. A crí-tica metodológica do naturalismo está ligada à que-rela que opôs no século XIX os partidários do mé-todo explicativo das ciências naturais (Ecklaren) aosdo método interpretativo das ciências humanas (Vers-tehen). Na sua origem, as Ciências Sociais foramconstruídas tendo por referência o modelo das Ciên-cias Naturais. Contra esta posição, Dilthey defendeua ideia segundo a qual a fundação das Ciências do Es-pírito (Geisteswissenchaften) implicava a utilizaçãodo método compreensivo, ou seja, a reactivação daactividade subjectiva objectivada na realidade socio-histórica.

www.bocc.ubi.pt

Page 10: Elementos para uma crítica da mediação moderna · ner, org., Fenomenologia e relações sociais - textos escolhidos de Alfred Schutz, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1979,p. 54

10 João Carlos Correia

dio de toda a epistemologia tradicional, nãotem sido simples. O cientista social olhoudurante muito tempo para o universo dos pa-drões culturais, sob o ponto de vista do in-vestigador solitário, que contempla com ob-jectividade ideal a comunidade que constituio seu campo de estudo, e rejeita os desvioscomo se fossem aberrações impossíveis deserem objecto de um tratamento científico.

Nesse sentido, o ponto de vista assumidopor esta tese torna-se claro quando nos con-frontamos com os grandes dilemas fundado-res da sociologia. De um lado tem-se umaposição subscrita por Durkheim, numa linhaque remonta a Comte, a qual pretende expli-car e descrever como é que os indivíduos es-tão associados independentemente das suasconcepções e necessidades e, do outro, en-contramos uma outra posição assumida porWeber, Simmel e mais tarde, aprofundada,no plano das Ciências Sociais, pela Herme-nêutica, Interaccionismo Simbólico e Feno-menologia Social, segundo a qual é precisoperceber a intersubjectividade, os significa-dos mutuamente atribuídos às diferentes ac-ções dos indivíduos para que possamos com-preender as dinâmicas sociais e políticas dascomunidades. Este último caminho enfatizaa noção deverstehen, graças à qual procu-ramos compreender o significado atribuídopelo outro às suas acções, em detrimento doecklarenque procura estabelecer leis regula-res que, à semelhança das ciências exactas,expliquem os fenómenos humanos.

A linguagem utilizada nas Ciências Soci-ais está longe de poder ser pensada comoinocente, embora esta expressão não deva serentendida como uma espécie de condenaçãode algo que devia ser de outro modo. A lin-guagem utilizada nos processos científicossó se torna ideologia quando se recusa a ser

reflexiva. Dito de outro modo, quando se re-cusa a ver-se a si própria como resultante deuma relação que se não pode considerar de-senraizada do próprio mundo da vida. Nessesentido, recusa-se neste trabalho uma espé-cie de endeusamento da objectividade, masque não implica a demissão do rigor cientí-fico. Ao debruçarmo-nos sobre enunciadospara buscar a sua intencionalidade e sobrecampos semânticos que remetem para valo-res ideológicos sabe-se que se fala do interiorde uma determinada cultura e de um con-junto de referências políticas e sociais pró-prias da tradição cultural em que nos inseri-mos. Porém, sabe-se que, apesar de o pro-cesso de atribuição de sentido implicar umacomunhão de saberes, isso não implica quenão seja possível o estudo desses enunciadoscomo fenómenos científicos.

Tentar-se-á, através de alguns exemplosconcretos retirados da revista “Pública”, per-ceber como as questões relacionadas como poder, a identidade e a estrutura socialse deixam transparecer nas mensagens jor-nalísticas estudadas. Procurar-se-á identi-ficar as convenções narrativas que confe-rem aos enunciados jornalísticos o seu papelna organização do conhecimento, tentandodemonstrar que há, no interior dosmedia,uma ordem que institucionaliza a linguagem,conferindo-lhe um certo espaço, uma certaforma, uma determinada configuração que éa ordem pela qual se atribui um significado euma ordenação ao universo caótico da expe-riência. A linguagem dosmedia, em muitoscasos, tem o seu ponto de partida no sensocomum, conformada pela medida padrão daestabilidade social, consagrada nos livros deestilo que recomendam, muitas vezes, a sin-tonia com a atitude natural, comum aos cida-dãos médios Esta ordem, porém, não é cons-

www.bocc.ubi.pt

Page 11: Elementos para uma crítica da mediação moderna · ner, org., Fenomenologia e relações sociais - textos escolhidos de Alfred Schutz, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1979,p. 54

Elementos para uma crítica da mediação moderna 11

truída de fora das pessoas, numa estruturadominadora que desconhece o papel das in-teracções sociais. A linguagem dosmedia,nomeadamente a linguagem praticada pelosgéneros jornalísticos, só pode ser compreen-dido se estivermos, também, atentos à rela-ção íntima que ele desenvolve com as inte-racções sociais aonde se reproduzem os me-canismos de poder e de dominação, as regrasque pautam a ordem e o conflito.

3 Uma nova perspectiva crítica

Sob o ponto de vista da formulação teórica,a abordagem que aqui se propõe não se re-duz a mais uma variação sobre a teoria dosefeitos, de que os paradigmas da agulha hi-podérmica, dogatekeeper, do news makingou do agenda settingconstituem exemplosconhecidos. A análise que se efectuará aolongo desta tese deve surgir integrada nummodelo teórico mais vasto. Procurou-se, as-sim, ir mais longe e explicitar os fundamen-tos sociológicos e filosóficos de uma análisedeste teor. É nossa intenção efectuar os se-guintes percursos:i) recorre-se à Teoria Crítica, à Fenomenolo-gia Social, ao Interaccionismo Simbólico eà Hermenêutica no que respeita ao traveja-mento teórico que permita sustentar a refle-xão a propósito das relações entre a lingua-gem dosmediae a compreensão intersubjec-tiva das realidades social e política.

A Teoria Crítica, em especial, na primeirafase identificada com a Escola de Frankfurt,instaura uma pesquisa inovadora sobre a re-lação entre cultura, comunicação e o desen-volvimento concreto da modernidade, tendo-se mesmo esboçado, em Adorno e Horkhei-mer, Marcuse e Benjamin, uma teoria da lin-guagem, especialmente da que é praticada

na indústria cultural, que a relaciona direc-tamente com a questão da racionalidade.

Todavia, as aporias desta escola, enraiza-das numa filosofia da história que, nalgumasdas suas formulações, implicou um impassepessimista centrado numa concepção unila-teral do devir da Razão, deram origem a su-cessivas reflexões teóricas no sentido de seconseguir a superação dos seus contornos de-masiado rígidos e totalizantes. Um destespercursos passa pela tentativa da ultrapas-sagem da visão unilateral da racionalidade,através do diálogo com a hermenêutica, esupõe a consideração das interacções soci-ais que se desenvolvem no mundo da vida,apelando a uma atenção muito especial à Fe-nomenologia Social, à tradição pragmatistae ao Interaccionismo Simbólico. O que sepretende é uma análise que tenha em contaas interacções sociais, os processos de so-cialização e os mecanismos de coordenaçãodas interacções bem como o papel específicoda linguagem, nomeadamente da linguagemdosmedia, na constituição da sociabilidade,na perspectiva normativa de defesa de umasociedade civil aonde o sujeito não seja re-duzido a um mero efeito de poder. Assim,interpela-se o próprio sentido das interacçõessociais, e das formas de mediação que seexercem a fim de manter a regularidade e aestabilidade sociais, em face dos processosde diferenciação e fragmentação. Tenta-secompreender como essas formas de media-ção se repercutem na emergência de espaçospúblicos que se não reduzam à mera agrega-ção das preferências dadas, originando, pelocontrário, um processo racional de formaçãode opinião no qual os cidadãos participemactivamente na definição de interesses ge-rais. Recorreu-se ao pensamento que, hoje,tenta estabelecer uma conceptualização teó-

www.bocc.ubi.pt

Page 12: Elementos para uma crítica da mediação moderna · ner, org., Fenomenologia e relações sociais - textos escolhidos de Alfred Schutz, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1979,p. 54

12 João Carlos Correia

rica no plano da Política que corresponda aosnovos desafios que se colocam às sociedadesdemocráticas (Wellmer, Honneth, Benhabib,Walzer, Habermas) designadamente no pa-pel da luta pelo reconhecimento. Por outrolado, procurou-se analisar qual o papel de-sempenhado pela linguagem na constituiçãoda intersubjectividade, recorrendo-se à Her-menêutica, e mais uma vez, a Mead, Schutze Habermas, na perspectiva de identificaçãodas suas próprias potencialidades críticas ereflexivas. Finalmente, procurou-se estudaro papel da comunicação e da linguagem pra-ticada pelosmedia no estabelecimento deconsensos sociais, no desenvolvimento dosprocessos de interacção e no próprio devirdo agir político. Neste caso, tornou-se es-sencial recorrer aos contributos de Adorno,Horkheimer, Marcuse e Benjamin, nos quaisse vislumbram, apesar das suas caracteriza-ções negativistas, poderosas intuições teóri-cas relacionadas com o devir concreto dosmedia. Simultaneamente, observou-se a im-portância dada aosmediana constituição doagir democrático por uma tradição que in-cluiu autores como Tocqueville, Dewey, Ha-bermas, Stuart Hall, Ferry e Thompson. Otema da identidade e da fragmentação do es-paço público surge como nó orientador fun-damental, justamente pelas interpelações equestões que coloca ao próprio devir do es-paço público.

Do contributo da Escola de Frankfurtrecolheu-se a afirmação de necessidade deum olhar crítico sobre um mundo crescente-mente alienado. A Teoria Crítica, de Adornoe Horkheimer, surge como defesa da refle-xividade no pensamento, contra a exalta-ção positivista do facto, juntando o conheci-mento científico dos factos sociais à reflexão

filosófica. 25 Assim, tem por ponto de par-tida não apenas a oposição às patologias so-ciais mas às formas de pensamento que legi-timam as sociedades que ostentam essas pa-tologias.26

A Escola de Frankfurt desenvolveu umpensamento crítico da razão, ela própriaolhada, já não como um factor de eman-

25 Cfr. Jay Bernstein, “Critical theory - the veryidea” in J. Bernstein (Ed.),The Frankfurt School, vol.I, London, Routledge, 1994, p. 18. No mesmosentido, G. Therborn destaca do texto fundador deHorkheimer sobre a Teoria Crítica a sua insistênciana crítica à ciência dominante, um libelo fundamen-tal contra o capitalismo e um compromisso com a lutapor uma sociedade livre, que todavia se excusa a iden-tificar com qualquer modelo específico. Em qualquerdos casos, o que ressalta é uma defesa da tradição fi-losófica que se traduz no que considera ser a “duplaredução da ciência e da política à filosofia.” Cfr. Gö-ran Therborn, “The Frankfurt School” in J. Bernstein(Ed.),The Frankfurt School, vol. I, op. cit., p. 68.

26 O que preocupa Horkheimer é a identificação le-vada a efeito entre um certo entendimento da ciênciae o desprezo a que, na sua perspectiva, é votada a fi-losofia e toda a atitude crítica Cfr. Max Horkheimer,Théorie traditionelle et théorie critique, Paris, Galli-mard, 1974, pp. 26-28;p. 81. Por oposição ao po-sitivismo, defende-se uma teoria dialéctica, na qualos factos individuais sempre apareçam em conexão eque procure definir a realidade na sua totalidade. Arejeição do empirismo e do positivismo ocupa um lu-gar proeminente, sendo de destacar o papel desempe-nhado pela denúncia crescente da racionalidade ins-trumental e tecnológica, enquanto nova forma de do-minação. A redução do mundo a um simples objectode exploração técnica pode ser relacionada com umaevolução no método das Ciências Sociais que se tra-duz no empirismo total no tratamento dos conceitosCfr. Herbert Marcuse,A ideologia da sociedade in-dustrial: o homem unidimensional,Rio de Janeiro,Zahar Editores, 1982, p. 33. Considera-se, no mesmosentido, que a moderna consciência científica é a prin-cipal fonte de declínio cultural através do qual a hu-manidade entrou numa nova era de barbárie. Cfr.Theodor Adorno e M. Horkheimer,Dialectic of en-lightment, London, Verso, 1995, p. 4.

www.bocc.ubi.pt

Page 13: Elementos para uma crítica da mediação moderna · ner, org., Fenomenologia e relações sociais - textos escolhidos de Alfred Schutz, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1979,p. 54

Elementos para uma crítica da mediação moderna 13

cipação do homem, mas como uma com-ponente da sua dominação, enquanto inte-gralmente identificada com a racionalidademeios-fins.27 A relação entre administraçãoe cultura é um tema recorrente, típico docriticismo cultural desta posição teórica queviu, com excepção de Benjamin, na capaci-dade de conformação da indústria cultural -designadamente no seu populismo intrínseco- uma força ao serviço do triunfo da uni-dimensionalidade. A diversidade de produ-tos culturais é apenas aparente e não põe emcausa a uniformização da existência indivi-dual. “A indústria cultural a tudo imprime oselo da identidade.”28

A reflexão sobre a linguagem e, em espe-cial, sobre a linguagem praticada na indús-tria cultural, inscreve-se no modelo de aná-lise social que enfatiza a anulação de todasas contradições, em resultado da reificaçãodas estruturas sociais. Desde o pós-guerra,adensa-se em torno da Escola de Frankfurtum pessimismo descrente das possibilidadesemancipatórias, o qual se traduz na insis-tência no universo individual como sendo aúnica instância possível de exercício da ne-gatividade e de resistência ao universo admi-nistrado. Torna-se visível, pese embora a lu-cidez dos diagnósticos acerca da relação en-tre totalitarismo e racionalidade, o avolumarde aporias e de impasses que conduzem a Te-

27 Neste sentido, descobre-se na filiação da Escolade Frankfurt, em especial em Adorno e Horkheimer,a recorrência do tema weberiano do desencantamentodo mundo, traduzido na observação de um universosocial onde predomina a acção centrada na escolhados meios mais adequados à obtenção de fins, inde-pendentemente da sua avaliação. Sobre esta tradi-ção do pensamento alemão ver também G. Therborn,“The Frankfurt School”, Vol. I,op. cit., pp. 68-70.

28 T.W. Adorno e M. Horkheimer,Dialectic of en-lightment, op. cit.,p. 121.

oria Crítica à incapacidade de compreenderas possibilidades normativas do Estado deDireito e de identificar os eventuais protago-nistas do exercício de uma prática de cidada-nia. Esta evolução é a consequência de umacrença inabalável no devir fatalmente instru-mental (e consequentemente totalitário) daracionalidade finalista enquanto desenvolvi-mento extremado da análise weberiana.29

À crítica impressionista feita a partir decritérios elitistas consolidados em volta deuma idealização da “kultur”, os autores daTeoria Crítica acrescentaram um diagnósticovivo sobre as relações entre uma certa lei-tura instrumental da racionalidade, a indús-tria cultural e a linguagem que lhe está as-sociada. O seu principal equívoco foi o deterem identificado essa leitura da razão coma razão no seu todo30, deduzindo de uma po-

29 Um dos textos mais precisos que cotejamos so-bre a influência de Max Weber na Escola de Frankfurté o de Seyla Benhabib, “Modernity and the aporiasof critical theory”, in J. Bernstein, (Ed.),The Frank-furt School,vol. I, op. cit.,pp. 115-131. Segundo aautora, Horkheimer, Adorno e Marcuse, rejeitando aambivalência de Max Weber, tomaram a perda de sen-tido e de liberdade resultante da racionalização comouma realidade sócio-histórica, e apropriaram-se doconceito de racionalidade meio-fins e da emergênciadas burocracias para concluirem que o racionalismoconduziu à reificação generalizada das estruturas so-ciais.

30 A partir de um dado momento, assistimos à con-denação generalizada do Iluminismo. “Apesar dassuas pretensões diametralmente opostas, o NacionalSocialismo tem mais em comum com a RevoluçãoFrancesa do que é geralmente assumido.” T. Adorno,The stars down to the earth an other essays on the ir-rational in culture, London, Routledge, 1994,p. 142.Para Adorno, o interesse do século XVIII pela liber-dade é contraditório: “opõe-se à antiga opressão e fa-vorece a nova que está escondida no coração do pró-prio princípio racional.” T. Adorno,Dialéctique né-gative, Paris, Payot, 1992, p. 169.

www.bocc.ubi.pt

Page 14: Elementos para uma crítica da mediação moderna · ner, org., Fenomenologia e relações sociais - textos escolhidos de Alfred Schutz, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1979,p. 54

14 João Carlos Correia

sição filosófica uma teoria social e da culturaque se afigura como totalizante, pouco atentaàs contradições e às possibilidades de trans-gressão que as sociedades complexas, obvia-mente, possuem.

“O modo de pensar administrativo”, dizAdorno, “tornou-se o modelo de toda umaforma de pensar que ainda se acredita li-vre.”31 No limite, este pensamento redundounuma melancolia expressa em derivas esté-ticas e religiosas.32 O que subsiste são al-gumas intuições de grande fôlego teórico noque respeita à fundamentação filosófica doprocesso de racionalização e às relações queeste estabelece com os diferentes mecanis-mos de socialização, designadamente a in-dústria cultural.

Outra tradição teórica, de natureza crítica,mas de especificidades bem definidas, é ade Foucault, especialmente importante pelaanálise das relações que, minuciosamente,estabelece entre linguagem, poder e domina-ção. Existe de comum à Escola de Frankfurte a Foucault uma insistência no caminho dacrítica à racionalidade emergente com o Ilu-minismo que sugere uma certa convergênciade interesses susceptível de ser mobilizadapara o estudo do nosso objecto. Simultane-amente, em ambas encontramos resquíciosde um certo determinismo que se pressentenuma certa inutilidade da recusa e da trans-gressão em face da omnipresença do poder

31 T. Adorno,Dialéctique négative, op. cit., p. 32.32 Rolf Wiggershaus comenta a propósito que as

obras máximas de Adorno significam uma renúnciaa toda a teoria global: “As distorsões da realidade so-cial impõem-se de tal modo à teoria da sociedade comuma força tal que ela não pode mais do que constatara sua existência sem aspirar a constituir-se como umsaber isento dessas distorções.” Ralf Wiggershaus,L’école de Francfort, Paris, PUF, 1993, p. xvii.

e do “sistema”33. É aí que tem sentido fa-lar, a propósito de Foucault, no “balancea-mento entre o positivismo e a crítica”. Dolado do positivismo, entendido como “con-tabilidade exaustiva das técnicas de domina-ção”, encontra-se a rejeição de qualquer pos-sibilidade emancipatória e a desconsideraçãodas potencialidades normativas das preten-

33 M. Foucault fará associações explícitas entre oseu trabalho e o da Escola de Frankfurt. Esta associa-ção manifesta-se emVigiar e punir, através do elogioa Otto Kirchheimer, e tem continuidade em diversostextos. M. Foucault acabaria mesmo por admitir umasemelhança de preocupações com os teóricos da Es-cola de Frankfurt: “ Neste momento, compreendo queos representantes da Escola de Frankfurt esforçaram-se por afirmar, mais cedo que eu, as coisas que eume esforcei por sustentar anos depois (. . . ) Quantoa mim os filósofos dessa Escola puseram problemasque ainda permanecem: especialmente, os efeitos depoder relacionados com uma racionalidade que se de-finiu geograficamente no Ocidente, historicamente apartir do Século XVI”. Daniel Trombadori, “Entre-tien avec M. Foucault” inDits et écrits(1984-1988),vol.4, Paris, Gallimard, 1994, p. 73. Finalmente,A. Honneth é um dos autores que melhor recenseouesta proximidade: “Em Adorno e Horkheimer, comoem Foucault, é arrancado o véu que encobriu o pro-cesso da civilização, com a fé no progresso e no op-timismo racionalista, para mostrar sem ilusão o “des-tino do corpo”: os actos silenciosos que reduzem ocorpo à escravidão, que o mutilam. Actos nos quaisAdorno e Horkheimer reconhecem “a história ocultada Europa”, e que Foucault reconheceu nos constran-gimentos disciplinares que são impostos quotidiana-mente ao corpo, no seu perfeito adestramento.” AxelHonneth, “Foucault e Adorno, duas formas de críticada modernidade”, inRevista de Comunicação e Lin-guagens,no 19, M. Foucault: uma analítica da experi-ência, Lisboa, Edições Cosmos, 1993, p. 171. Nessamedida, quando a teoria do conhecimento dá lugar àteoria do poder, o trabalho de Foucault “move-se noterritório até aí habitado pela Escola de Frankfurt.” A.Honneth,The critique of power - reflexive stages in acritical social theory, Cambridge, MIT Press, 1997,p. 153.

www.bocc.ubi.pt

Page 15: Elementos para uma crítica da mediação moderna · ner, org., Fenomenologia e relações sociais - textos escolhidos de Alfred Schutz, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1979,p. 54

Elementos para uma crítica da mediação moderna 15

sões de validade que integram o jogo do po-der. 34 Do lado dos que identificam em Fou-cault uma relativa continuidade com a crí-tica, haverá a contabilizar a sua filiação ex-plícita nessa tradição, expressa em entrevis-tas e textos35, para além de diversos escritosque evidenciam uma aspiração crítica apenasesboçada, mas firmemente explicitada36.

A compreensão crítica dos mecanismoslinguísticos e da sua importância na socia-lização e na estruturação da experiência irápassar, ainda, por alguns empreendimentosfundamentais, entre os quais merecem espe-cial realce o Interaccionismo Simbólico, aFenomenologia e a Hermenêutica.

No que respeita à Hermenêutica,o quedela merece destaque é a tradição que formu-lou a ideia de “Verstehen” por oposição à de

34 Cfr. João Pissarra Esteves, “Poder e subjectivi-dade” inRevista de Comunicação e Linguagens, no

19,op. cit.,p. 152.35 Cfr. M. Foucault, “What is enlighment?”, in

Paul Rabinow (Ed.),Foucault reader, New York,Pantheon, 1984. Aqui se assume a reflexividade doprojecto kantiano, afirmando que no opúsculo sobreo Iluminismo se traça uma perspectiva que reconhecea “contingência que fez de nós o que somos” (Ibid.p.46) ; ou ainda M. Foucault, “The art of telling thetrue” in Michael Kelly (Ed.),Critique and power - Re-casting the Foucault\Habermas debate, Cambridge,MIT Press, 1998, texto que culmina no reconheci-mento da filiação do autor num pensamento críticoque tomará a forma de “uma ontologia de nós pró-prios, uma ontologia do presente”, que se interrogasobre “o campo presente das nossas experiências pos-síveis”. Para Foucault, em suma “é esta forma de fi-losofia que, desde Hegel, passando por Nietzsche eMax Weber , até à Escola de Frankfurt, fundou umaforma de reflexão no interior da qual tenho tentadotrabalhar.”Ibid.,p. 148.

36 Ver, por exemplo, M. Foucault, “Two lectures”,in M. Kelly,(Ed.),Critique and power - recasting theFoucault\Habermas debate, op. cit.,p. 4,. onde seesboça a possibilidade de uma nova forma de Direito,“libertado do princípio da soberania.”

“Ecklaren”. Com a “compreensão”, Diltheyprocurou no fundo conferir um estatuto epis-temológico próprio às ciências do espíritorespondendo à pergunta acerca da sua pos-sibilidade.37 Os fenómenos originados pelamente pressupõem um processo de reciproci-dade em que cada um compreende a acção deoutro porque se entende a si próprio e à ex-periência vivida de si. Com o método que seprocura fundar para as Ciências do Espírito,Geistewisenchaften, pretende-se “dar relevoao conhecimento que os homens tem de si eda história.”38

Este tipo de análise não é necessariamenteincompatível com uma teoria crítica na me-dida em que se entenda que a inovação e oquestionar das alternativas possíveis para odestino do homem, pressupõem, elas mes-mas, uma consciência do mundo a que sepertence. Ao analisar a intercompreensãoinerente à “actividade comunicacional”, Ha-bermas considera que a hermenêutica contri-buiu para a introdução de um elemento quefaltava à análise da linguagem: a historici-dade39. Todavia, não deixa de alertar para ofacto de que, o que se oferece como preexis-tente e fundado pode tornar-se um contexto

37 “O problema da compreensão do homem erapara Dilthey um problema de recuperação de consci-ência da historicidade da nossa própria experiência”.Richard Palmer,Hermenêutica, Lisboa, Edições 70,p.105.

38 Ibid.,p. 37. Importa aduzir que este será o cami-nho percorrido por Max Weber na fundamentação deuma sociologia compreensiva. A compreensão surgecomo a captação interpretativa do sentido ou conexãode sentido subjacente a uma determinada acção. Cfr.Max Weber,Economia y sociedad, Mexico, Fondo deCultura Economica, 1989, p. 9.

39 Cfr. J. Habermas, “A pretensão de universali-dade da hermenêutica” in J. Habermas, Dialéctica ehermenêutica: para uma crítica da hermenêutica deGadamer,Porto Alegre, L&PM, 1987, p. 35.

www.bocc.ubi.pt

Page 16: Elementos para uma crítica da mediação moderna · ner, org., Fenomenologia e relações sociais - textos escolhidos de Alfred Schutz, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1979,p. 54

16 João Carlos Correia

de dominação assente na pseudo comunica-ção40.

Evitando concepções do mundo que pare-cem sustentar uma hipostasiação da tradição,entendida como lugar de consenso inquestio-nável, Paul Ricoeur tentou uma resolução di-aléctica, sustentando que a hermenêutica e acrítica da ideologia necessitam uma da outra.O projecto de reinterpretação do passado e oprojecto utópico da emancipação, quando ar-tificialmente separados, assumem, cada umna sua perspectiva, um carácter ideológico.Por um lado, ao experimentar as interpreta-ções possíveis que lhe permitem perceber asituação em que se encontra, o actor tem dese manter num estado de distanciamento, oque lhe permite rever as suas ilusões e pre-conceitos. Por outro lado, o interesse pelaemancipação tem que recorrer ao legado cul-tural. 41 O conceito de distanciação surge,

40 Cfr. Ibid, p. 68. É extremamente significa-tivo o modo como Mark Hunyadi, num texto distanteda perspectiva habermasiana, faz a seguinte apreci-ação: “Identifica-se frequentemente o carácter pós-convencional da identidade correspondente ao mo-delo deontológico a uma operação de tábua rasa cultu-ral (. . . ) denunciando a ficção de um sujeito que viriaao mundo, rejeitaria soberanamente tudo o que lhe ha-via sido transmitido pela educação e pela cultura paraconstruir com os seus congéneres normasex nihilo.Não há evidentemente nada disso em Habermas quefaz questão em sublinhar sempre queo actor é aomesmo tempo produto das tradições nas quais ele sesitua, de grupos de solidariedade aos quais pertencee de processos de socialização nos quais crê.” Cfr.Mark Hunyadi, “Entre je et Dieu: nous”, inHermès,no10, Paris, CNRS, 1992, p. 143.

41 Paul Ricoeur apresenta o seu cartão de identi-dade filosófico assinalando três traços fundamentais:a filiação na linha de uma filosofia reflexiva; a perma-nência na área de influência da fenomenologia husser-liana; a identificação com uma variante hermenêuticada fenomenologia husserliana. O primeiro traço dizrespeito ao modo de pensamento proveniente doco-

assim, apresentado como “o correlativo dia-léctico da pertença”42.

Frente a modelos que reivindicam um “es-clarecimento total”, a hermenêutica insurge-se contra a total transparência no uso da ra-zão, defendendo um diálogo do homem nomundo que supõe o exercício de uma racio-nalidade situada. O abstencionismo e o cres-cimento do desinteresse, como efeitos per-versos de um espaço mediatizado que não te-nha em conta a dimensão comunitária da vi-vência dos cidadãos, são os sintomas de umasituação em que os mecanismos de mediaçãonão asseguram mais do que a difusão do si-mulacro de uma verdadeira interacção. A in-sistência numa ideia de comunidade que nãoimplicasse, por seu lado, um certo distancia-mento, tornar-se-ia, nas modernas condiçõesde diferenciação que caracterizam as socie-dades complexas, num insuportável contextode dominação. Baseados no pensamento her-menêutico é possível olhar conceitos como

gito cartesiano e de Kant, e insiste na reflexão comoum acto de retorno a si próprio. Esta forma de refle-xão, reconhece Ricoeur, prende-se com o desejo deuma transparência absoluta e de absoluta coincidên-cia consigo mesmo que a Fenomenologia e a Herme-nêutica - os outros dois traços invocados - transferempara um horizonte mais longínquo. Com efeito, naFenomenologia, aonde vislumbra uma auto-fundaçãoradical na mais completa clareza intelectual, Ricoeurintui que a consciência de alguma coisa - a intencio-nalidade - acaba por primar sobre a consciência de si.Finalmente, na Hermenêutica, o tema doLebensweltacaba por assumir uma importância central, graças àqual a redução fenomenológica se torna um gesto filo-sófico segundo que se traduz no distanciamento e noesquecer do enraizamento primeiro do compreender.Ricoeur concebe deste modo uma abordagem teóricaque assenta na dialéctica entre a distância e a pertença.Cfr. P.Ricoeur,Do Texto à acção, Porto, Rés Editora,s/d pp. 37-40.

42

Ibid., p. 61.

www.bocc.ubi.pt

Page 17: Elementos para uma crítica da mediação moderna · ner, org., Fenomenologia e relações sociais - textos escolhidos de Alfred Schutz, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1979,p. 54

Elementos para uma crítica da mediação moderna 17

os de democracia, espaço público e opiniãopública, articulando-os com os de tradiçãoe comunidade. A noção de cidadão implicaum compromisso com a comunidade, a qualjá não o deixa, de todo, entregue a uma opi-nião pública desencarnada. Há uma espéciede pertença constitutiva que só possibilita aafirmação da diferença no interior de um ho-rizonte de reconhecimento garantido pela co-munidade: dito de outro modo, é impossívelpensar o eu sem uma ideia de nós. A comu-nidade não adquire a sua condição políticaa não ser na condição de uma abertura queinterdita a ela própria a possibilidade de sefechar em si43.

Na Fenomenologia Social, dá-se realce àcrença de que o homem não foge à sociabi-lidade, pois está mergulhado nas regras deconduta que partilha no mundo da interacçãoquotidiana. Numa releitura do pensamentode Husserl, a Fenomenologia Social introdu-ziu o conceito de atitude natural entendidacomo forma pela qual os actantes e agentessociais intervêm no mundo das expectativasquotidianas de uma maneira ingénua e acrí-tica, recorrendo aos conhecimentos adquiri-dos na vida prática.44 Esta atitude implica aexistência de dois modos de idealização: aprimeira, segundo a qual “assim será”, pelaqual aquilo que se revelou válido através daexperiência permanecerá válido no futuro; e,a segunda, “podemos fazê-lo outra vez”, se-gundo a qual o que foi susceptível de serconseguido através de um modo de agir, po-

43 Cfr. Ibid.,p. 256. Nessa medida, a razão práticaé uma tentativa de restaurar uma dialéctica recíprocaentre a liberdade e as instituições.

44 Cfr. Aron Gurwitsch,“Introduction”,op. cit., p.xii.

derá ser conseguido no futuro através de ummodo de agir semelhante45.

Nesta perspectiva, a realidade só se podeentender estabilizada na sua identidade, gra-ças à “reciprocidade de expectativas”, deacordo com a qual os actores chegam a umentendimento intersubjectivo em que colo-cam entre parênteses as suas diferenças deexperiências para as considerar como idênti-cas. Cada uma das pessoas envolvidas lidacom a característica de uma dada situaçãoraciocinando como se ela estivesse no lu-gar da outra pessoa, viveria a situação co-mum da perspectiva de outrem e vice-versa.De modo mais ou menos ingénuo acredita-se que aquilo que faz sentido para cada umde nós faz sentido para todos os outros. Demodo idêntico, parte-se do princípio que osmeus actos dirigidos aos restantes serão en-tendidos do mesmo modo que os actos dosrestantes dirigidos a mim46.

Desta forma, “os fenómenos em si são to-mados como pressupostos. O ser humano,simplesmente, é considerado um ser social,a língua e outros sistemas de comunicaçõesexistem, a vida consciente dos outros é aces-sível a mim – enfim, posso entender o ou-tro e seus actos e ele pode entender-me e aosmeus feitos. E o mesmo é verdade para oschamados objectos sociais e culturais, cri-ados pelo ser humano. São pressupostos etem o seu significado e modos de ser especí-ficos.”47 O trabalho de Schutz deixou abertoo caminho para um conjunto de possibilida-des no seio da análise dos processos de medi-

45 Cfr. A. Schutz, “Some structures of the life-world”, in Collected papers, vol. III, op. cit., p. 116.

46 Cfr. A. Schutz, “Social world and social action”in Collected papers, vol. II, op. cit.,p. 15.

47 A. Schutz, “Bases da fenomenologia”,op. cit.,p. 56.

www.bocc.ubi.pt

Page 18: Elementos para uma crítica da mediação moderna · ner, org., Fenomenologia e relações sociais - textos escolhidos de Alfred Schutz, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1979,p. 54

18 João Carlos Correia

ação. A teoria da comunicação na vida quo-tidiana prolonga-se na análise da importân-cia dosmediana formação da atitude natu-ral e do conhecimento intersubjectivamentepartilhado, levantando questões que são deinteresse central, como sejam a da sintoniadosmediacom as regularidades sociais, queconstitui um elemento característico da suadiscursividade sobre o mundo48.

O Interaccionismo Simbólico insere-senuma tradição que relaciona a comunicaçãocom os processos de sociabilidade49, abrindocaminho a uma teoria sobre as relações en-tre a comunicação e o agir colectivo, desig-nadamente no campo da política. Esta cor-rente tem por principal objecto a interacção,referida como acção social que se caracte-riza por uma orientação imediatamente recí-proca. O desenvolvimento doself é descritocomo resultado das relações que o indivíduodesenvolve com a totalidade dos processossociais e com os outros indivíduos que estãocom ele implicados: “o conteúdo do espíritonão é senão produto de uma interacção so-cial.”50 O indivíduo não se entende a si pró-

48 Veja-se aliás o caminho aflorado por G. Tuch-man nesse sentido emMaking news, pp. 182 e se-guintes. A autora tenta mesmo um esboço de apli-cação que passa pelo papel dosmediana construçãode um conjunto de convicções comuns que integrama atitude natural perante o mundo social. Cfr. G. Tu-chman,Making news, op. cit., pp. 186-187.

49 George Herbert Mead começaMind, self and so-cietycom uma afirmação que não deixa dúvidas: “Aperspectiva que eu pretendo sugerir é a de lidar coma experiência do ponto de vista da sociedade, ou pelomenos do ponto de vista da comunicação como es-sencial para a ordem social.” G.H. Mead,Mind, selfand society,Chicago, The Chicago University Press,1969, p. 1.

50 Nesta perspectiva, “o comportamento do indiví-duo só pode ser entendido em termos do grupo socialde que ele é membro, uma vez que os seus actos in-

prio, a não ser tomando em conta as atitudesdo outro em relação a si no interior de umcontexto social onde eles estão mutuamenteenvolvidos. A constituição doSelf, na po-sição de Mead, pressupõe a consideração deum “outro generalizado”,51 isto é, a percep-ção de si enquanto membro de uma equipaou de uma comunidade52. Aponta-se, assim,para uma relação profunda entre o desenvol-vimento humano e a vivência comunitária,no qual a comunicação desempenha um pa-pel estruturante: “aprender a ser humano édesenvolver, através do dar e receber da co-municação, o sentido de ser um membro in-dividualmente distinto da comunidade.”53

4 Linguagem e teoria crítica

A formulação crítica de Jürgen Habermassurge, finalmente, como referência essencialonde confluem as inquietações e perplexida-des desencadeadas pelas diversas correntesjá nomeadas. O pensamento de Habermasposiciona-se entre a crítica da modernidadee a afirmação dessa modernidade como umprojecto ainda susceptível de ser cumprido.Esta tensão atravessa todo o seu trabalho,desde as primeiras obras sobre a esfera pú-blica e o positivismo até ao recente desen-volvimento de uma teoria do discurso que

dividuais estão envolvidos em actos sociais de maioralcance que vão além dele próprio e que implicam osoutros membros do grupo.”Ibid., pp. 6-7.

51 Ibid., pp. 152-154.52 “O self é qualquer coisa que tem um desenvolvi-

mento; não está inicialmente lá, quando se nasce, mascresce durante o processo de experiência social (. . . )isto é, desenvolve-se como resultado das suas relaçõescom outros indivíduos”Ibid., p. 135.

53 John Dewey, The public and its problems,Hathens, Swallow Press e OhioUniversity Press,1987, p. 154.

www.bocc.ubi.pt

Page 19: Elementos para uma crítica da mediação moderna · ner, org., Fenomenologia e relações sociais - textos escolhidos de Alfred Schutz, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1979,p. 54

Elementos para uma crítica da mediação moderna 19

tem implícita a aceitação do consenso argu-mentativamente fundado. A sua relação coma Teoria Crítica mantém-se no que diz res-peito à defesa do projecto moderno e de umconceito de razão que mantenha incólume ointeresse emancipatório.

A aproximação entre uma teoria da ac-ção (fundada nas sociologias interpretativas)e a filosofia da linguagem parece-nos sero elemento fundamental da obra de Haber-mas, uma vez que abre o caminho da rele-vância política e ética das interacções soci-ais levadas a efeito no mundo da vida quo-tidiana. A insistência na força comunicaci-onal e crítica da linguagem é um elementoprofícuo no que respeita à definição de umponto de fuga à exaltação da ordem que sefaz sentir na racionalidade do tipo sistémico,já que a linguagem dificilmente nega, unila-teralmente, a vocação de reflexividade e dealteridade que persiste, de cada vez, no lu-gar onde ela própria parecia ter instauradoum novo ponto de fechamento. A obra deHabermas insiste, assim, na força crítica dalinguagem em torno da categoria do acordocomo modelo de coordenação das interac-ções sociais, e da racionalidade comunica-cional como modelo alternativo à racionali-dade instrumental54. Parte-se da ideia de queum sujeito solitário concebido na filosofia daconsciência apenas pode conduzir a uma re-lação instrumental com o mundo. Pelo con-trário, a compreensão do papel da linguagemé a trave mestra de uma teoria que visa iden-tificar uma racionalidade que mantenha o in-

54 Para encontrar uma definição clássica dessa al-ternativa ver J. Habermas,Ciência e técnica como“ideologia” , op. cit, pp. 57-58. Podemos aí encontraro momento em que Habermas desenvolve dois con-ceitos diversos de racionalidade relacionados a duasformas de acção: trabalho e interacção.

teresse emancipatório, pois o uso da lingua-gem com vista ao entendimento com outremé, ao contrário do carácter secundário do usoinstrumental, o modo original do seu uso.

Habermas, mais recentemente, transpõe asquestões filosóficas para o plano do funcio-namento do Estado de Direito, procurandoresponder ao problema da legitimidade da leie articulando-a com o modo de deliberaçãodemocrática. Nesse sentido, procura pen-sar as modernas normas legais como tendouma base racional que torna possível às pes-soas aceitá-las como legítimas e merecedo-ras de obediência55. É preciso recorrer auma concepção de Estado de Direito em quese considere que os indivíduos possam ra-cionalmente assentar na existência de cons-trangimentos de natureza legal, desde que aprópria lei assegure a autonomia dos que es-tão a ela sujeitos. Pelo menos uma partedas leis que regulam a actividade instituci-onal do Estado é legitimada pelas práticasdiscursivas racionais dos seus destinatáriose representantes, implicando mecanismos deformação de vontade e da opinião pública,que emergem do espaço público como ins-tância autónoma de dinamização da socie-dade civil. A lei é vista como o mecanismoque autoriza e possibilita a transformação dopoder comunicativo em poder administrativo56, desde que integre o assentimento raci-onal formado pelo debate livre nas instân-cias de formação de opinião. Há assim umatentativa para transferir uma concepção pro-cessualista da ética para a política democrá-tica, reconhecendo que esta se encontra, porum lado, sujeita a mecanismos burocráticos

55 Cfr. J. Habermas,Between facts and norms,Cambridge, MIT Press, 1996, p. xxv.

56 Cfr. Ibid., p. 168.

www.bocc.ubi.pt

Page 20: Elementos para uma crítica da mediação moderna · ner, org., Fenomenologia e relações sociais - textos escolhidos de Alfred Schutz, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1979,p. 54

20 João Carlos Correia

de decisão que escapam ao controlo demo-crático e, por outro, à força dos ideais de-mocráticos de deliberação assumidos pelosdestinatários como participantes comprome-tidos num exercício de cidadania. Habermasmostra-se, desta forma, preocupado em atri-buir uma considerável responsabilidade nor-mativa ao processo democrático que se de-senrola nos fóruns públicos, nas associaçõesinformais e nos movimentos sociais.

A posição de Habermas enfrenta dificul-dades que emergem do papel da linguagem,da relação entre liberdade e racionalidade,das noções de consenso, de agir comunica-cional e do carácter processualista das suasreflexões éticas e políticas. Como será vistono capítulo III, são numerosos os autores quelhe censuram o formalismo e o processua-lismo da ética e filosofia política apresenta-das nos seus últimos trabalhos.

Com efeito, para além da desconfiança ge-neralizada em relação ao papel da lingua-gem e à relação, que lhe é atribuída, como modo de vida emancipado, receia-se queum modelo político meramente processua-lista semelhante ao proposto por Habermaspossa ser acusado de ser incapaz de proce-der a uma mobilização dos indivíduos, nosentido de os fazer superar os modelos ego-cêntricos de vida em que se encontram en-volvidos. A insistência na linguagem, aopossibilitar a construção de uma teoria cen-trada na ideia de um consenso racional fun-dado argumentativamente num debate ondetodos possam participar em condições deigualdade e reciprocidade, gerou a suspeitade uma idealização da política. O corolárioseria uma concepção formalista do EstadoConstitucional onde o simples respeito pelanorma encontrar-se-ia impotente para proce-der à mobilização dos cidadãos e poderia,

quando muito, conduzir a uma relação ins-trumental com o Outro em que os sujeitosse demitem da sua cidadania para recorrera instâncias judiciais a fim de fazerem valeros seus direitos57. A resposta passa, decerto,pela fundação de uma comunidade políticaonde vigore o agir moderno. Porém, a mobi-lização dos cidadãos para esta prática demo-crática tem que se apoiar em algo mais doque em princípios que dizem respeito à raci-onalidade. Assim carece da existência de umobjectivo democrático comum que mobilizea sociedade política58. Todavia, também ca-rece dos princípios que permitem a organi-zação do discurso de uma forma que impeçaa vivência comunitária de escapar à sua pró-pria reflexividade, condição para uma vivên-cia política moderna e um agir livre.

No que respeita, finalmente, ao devir con-creto dosmedia, ter-se-á em especial atençãoum conjunto de estudos feitos na área do jor-nalismo e que têm em conta as noções de ti-pificação e de construção social da realidade,na perspectiva designadamente dos compro-missos sociais e dos consensos. Abordar-se-ão os trabalhos de um conjunto de estu-diosos (Miguel Alsína, Dader Garcia, EnricSaperas, Grossi, Michael Schudson, NelsonTraquina, James Curran, Michael Gurevich,Dennis McQuail, Stuart Hall, Ferry, Styron,Gaye Tuchman) que abordam o tema das re-lações entre o jornalismo e a política, nome-adamente aplicando aosmediaaspectos teó-ricos apenas vislumbrados noutros domíniosdo pensamento. Nesse plano, osmediaemgeral, e o jornalismo informativo em parti-cular, surgem pensados no âmbito mais vasto

57 Ver, nesta linha, Charles Taylor,The ethics ofauthenticity, Cambridge e London, Harvard Univer-sity Press, 1992, pp. 112-113.

58 Cfr. Ibid.,p. 117.

www.bocc.ubi.pt

Page 21: Elementos para uma crítica da mediação moderna · ner, org., Fenomenologia e relações sociais - textos escolhidos de Alfred Schutz, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1979,p. 54

Elementos para uma crítica da mediação moderna 21

de uma reflexão sobre a cultura e as relaçõescom a sociedade: a cultura é claramente pro-duzida com vista ao estabelecimento de umsignificado que imponha a ordem no mundo.Podem-se pensar por exemplo, o trabalho deMiguel Alcína, Ericson, ou Enric Saperasonde se reflecte sobre a construção das notí-cias, segundo um modelo que tem um impor-tante sustentáculo teórico em Alfred Schutz;as reflexões de Gaye Tuchman nas quais serepercute também o pensamento da Fenome-nologia Social; as hipóteses adiantadas entrenós por Nelson Traquina e que incluem umlastro conceptual inspirado em Erving Goff-man, as preocupações que Dader García re-vela influenciadas pela Teoria Crítica e pelaHermenêutica, a atenção de James Curranem relação ao contributo desenvolvido poruma parte da teoria crítica.

Ao tomar-se a comunicação como o nógordio de uma interpelação sobre as ques-tões do controlo social, pretende-se, afinal,descobrir acima de tudo, que tipo de inte-racção existe entre os públicos e osmediae entre os membros do público entre si, de-signadamente no que respeita à articulaçãoentre vivência pessoal e cidadania colectiva.Feito o diagnóstico do percurso empreendidopela imprensa de massa, o caminho passa pordemonstrar a pluralidade de racionalidadesque se cruzam no seio da indústria mediá-tica e que, como tal, não permitem que seconsidere estar diante de um processo defi-nitivo de fechamento, confrontando-nos porisso com opções éticas e políticas que nãopermitem respostas unilaterais. Este cami-nho passa por uma insistência particular nafragmentação cultural recentemente sentidano universo social e político ocidental, re-sultante da emergência das identidades e daforte pressão exercida por um conjunto de

pretensões de validade que ressuscitam osparticularismos e o reconhecimento das di-ferenças específicas.

Este trabalho procurará, assim, reconhecera ambiguidade constitutiva resultante das no-vas modificações estruturais que se verificamno espaço público. De um lado, verifica-sea concentração da propriedade, o aumentoda desigualdade no acesso à informação, ageneralização doinfortainment. Por outrolado, surgem as potencialidades desencade-adas pela generalização do uso de meiosde comunicação personalizados e a conse-quente possibilidade de proliferação de arti-culações complexas de canais horizontais everticais entre grupos, indivíduos e instân-cias de poder.

O que se ambiciona é, no plano da in-dústria mediática, a tentativa de pensar for-mas alternativas de comunicação que privi-legiem uma relação dinâmica com os públi-cos, aberta à crítica e à partilha de saberes,ao confronto de opiniões e de argumentos,à pluralidade de discursos, por oposição aoparadigma constituído pela comunicação demassa. No caso particular da produção deinformação, espera-se perscrutar, nesta aná-lise, traços distintivos das novas formas demediação que passem pela recusa da inér-cia social e da uniformização das atitudes.Estes traços distintivos poderão, eventual-mente, implicar a formação, enfim, de umaopinião pública que tenha em conta as diver-sas instâncias críticas de legitimação das ac-ções e enunciados produzidos pelos diferen-tes poderes, no decurso da intervenção cadavez mais diversificada dos movimentos soci-ais no interior de sociedades que se caracte-rizam pela pluralidade de valores e visões davida.

www.bocc.ubi.pt