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Algumas contribuições metodológicas sobre a mobilidade em bicicleta
19 May 2012 -
Joanna Helm , Camila Bortoluzzi -
Notícias, Selecionados - análise urbana e territorial,Bicicletas, Cidades, Colectivo Labici, Direito à
Cidade, Martin Tironi, Sustentabilidade, transporte
Algumas contribuições metodológicas sobre a mobilidade em bicicleta
Nos últimos anos o tema mobilidade tem entrado com força no debate intelectual. De maneira
pouco usual, tem sido instalado um consenso sobre a necessidade de exceder os paradigmas
estáticos do estudo do social, impulsionando a produção de um pensamento da mobilidade. A
sociedade não se organiza mais entorno do não móvel e estável, mas sim entorno da
circulação de fluxos de bens, tecnologias, objetos, imagens, textos, saberes, infraestruturas,
etc., cada vez mais globalizados. O sociólogo inglês John Urry é, sem dúvida, o autor que
melhor tem representado esse projeto, chegando a propor a mobilidade como principal objeto
de estudo das ciências sociais contemporâneas. As mobilidades -nos diz Urry – estão na base
de novas formas sócio-espaciais de interação e coordenação, baseadas em movimentos e
conexão múltiplas, em redes e circuitos que se tornam obsoletos (estáticos) como estrutura ou
Nação. A natureza do social reside em seu caráter maleável e mutável e não mais em sua
solidez e permanência. A perspicácia dessa perspectiva tem que correlacionar a aparição de
uma série de conceitos (sociedade em rede, modernidade líquida, ambientes móveis, Homem
móvel, hipermobilidade, nomadismo,entre outros), que buscam dar conta do surgimento de
uma “vida móvel”.
É difícil contestar a situação sobre a qual repousam estes enfoques. É um fato que atualmente
os principais debates políticos-intelectuais têm a mobilidade como um de seus temas
preferidos, onde se incluem problemas ligados aos deslocamentos transnacionais, a imigração,
ao direito à circulação, às infraestruturas de transporte, entre muitos outros. Não é por acaso,
por exemplo, que os grandes industriais da Peugeot–Citroën estão ligados à criação da
plataforma acadêmica internacional, “Instituto para a cidade em movimento”.
Entretanto, o enfoque da mobilidade pode ser algo enganador, se aplicado sem certa atenção
metodológica. É geralmente o problema que se gera quando a chamada mudança de
paradigma vem acompanhada de um efeito de moda e emitida através de grandes conceitos
com fundamentos que buscam, exatamente, resistir aos casos locais para poder estabelecer-se
como gerais. Um dos perigos é transformar-se em advogado de um paradigma sem alcançar e
dar conta do que implica, concretamente, este movimento, nomadismo e circulação de objetos
e pessoas. Se a chamada “sociedade móvel” existe, necessita ser demonstrada
empiricamente, através de métodos de acordo com sua natureza, e examinada através de
ferramentas que permitam fazer seus efeitos mais inteligíveis.
O estudo do uso da bicicleta urbana
Se há um campo que precisa ampliar seus instrumentos de investigação, é o do uso da
bicicleta urbana. Com a referência de cidades como Amsterdã e Copenhague, a promoção
desse meio de transporte se transformou em um dos temas fetiches dos policy-making de todo
o mundo, um verdadeiro sonho para as metrópoles que desejam inscrever-se na chamada
cultura da ‘mobilidade sustentável’. O projeto de ‘cidades inteligentes’ e interconectadas,
eficientes em termos de energia e com cidadãos sensíveis em relação ao meio ambiente, tem a
bicicleta como filho privilegiado. Uma ilustração clara, que evidencia essa ideia é a rápida
mundialização dos sistemas de bicicletas de uso livre, hoje presentes em mais de 120 cidades
de todo o planeta. Como mostra Dennis e Urry, um mundo pós-automobilista construído em
torno de uma ecologia política impulsionada pela presença cada vez mais importante da
bicicleta e outros meios de transporte.
Ao mesmo tempo, mais e mais cidades se dizem sensíveis ao desenvolvimento do uso da
bicicleta como meio de transporte. Estudos acadêmicos sobre a matéria parecem, no entanto,
receosos em reconhecer a bicicleta como objeto de estudo em si. Hoje as investigações
predominantes sobre o uso da bicicleta tendem a enfatizar a identificação de macro-variáveis
que expliquem fatores incidentes na massificação de seu uso. No geral trata-se de perspectivas
em engenharia, economia e sociologia em transporte, onde o interesse é compreender as
causas institucionais, comportamentais e infraestruturais viáveis que causam impacto na
circulação da bicicleta, colocando ênfase especial na dimensão funcional e utilitária. Assim,
níveis baixos de uso da bicicleta podem ser explicados por uma escassa ou inadequada
infraestrutura para sua prática na cidade, por ausência de informação sobre seus benefícios,
por estigmatizações ou hábitos culturais que ridicularizam seu uso frente ao ideário dominante
do automóvel. Em outras palavras, em matéria de investigações sobre a bicicleta, existe um
privilégio claro de perspectivas funcionalistas, orientadas pela quantificação e caracterização
de sua prática.
Rumo a metodologias sensíveis do andar na bicicleta
Com a força que está tomando a bicicleta na paisagem urbana, tudo indica que seria saudável
complementar essas perspectivas predominantes sobre o uso da bicicleta com outros
enforques que permitam aprofundar a compreensão desse fenômeno. Pesquisas do tipo
“Origem e Destino” (amplamente predominantes nesse assunto) são, sem dúvida, necessárias
para conhecer e caracterizar os deslocamentos, e seus resultados são fundamentais na hora
de se executar políticas adequadas a respeito de transporte e planificação urbana. Contudo,
esses tipos de pesquisas oferecem somente um panorama geral dessa realidade, tornando
invisível outros aspectos da ação de andar de bicicleta, que se tornam igualmente importantes,
considerando o trabalho político de instaurar uma cultura da bicicleta em nossas cidades.
Em seguida, gostaria de desenvolver certos elementos consideráveis no estudo da prática
urbana da bicicleta. Essas observações não são, em nenhum caso, excludentes em relação
aos estudos quantitativos tradicionais na área. Pelo contrário, são complementares, ainda mais
quando a evidência continua nos mostrando – e não somente no campo da bicicleta, mas
também na educação, saúde, etc. – que a única maneira de incidir na “agenda” pública é
dispondo de códigos e gráficos contundentes sobre a mesa. É o monopólio dos códigos no
mundo político. Todavia, abordarei aqui outra dimensões menos evidentes e espetaculares,
não por isso menos importantes na hora de interrogarmos sobre o que significa concretamente
andar de bicicleta na cidade.
Estudar o andar de bicicleta num situação
Andar de bicicleta não se reduz à execução de um plano preestabelecido que consistirá em se
deslocar de um ponto A para um ponto B. É também uma experiência que acontece no tempo e
no espaço, onde de desdobram acontecimentos antes, durante e depois de sua prática. O
desafio metodológico é não se limitar a identificar a lista de razões pelas quais as pessoas
sobem em uma bicicleta, mas também compreender o que se sucede durante esse
deslocamento.
Nesse sentido, é uma prática que não pode ser estudada independentemente do lugar da onde
se realiza, das emoções que vão se desencadeando, dos automóveis, pedestres, caminhos, do
calor e da chuva, entre outros fatores que podem acompanhar ou criar obstáculos em sua
execução. O uso da bicicleta é uma ação ativa e é, sobretudo, imerso em uma ecologia, em
emoções e materialidades, rodeada de ruídos e outras entidades que habitam o território
urbano.
Se assumirmos que se trata de uma atividade essencialmente ativa e situada, concluímos
evidentemente que se requerem instrumentos de registro in situ, que acompanhem seu
desenvolvimento em vez de objetivá-lo. Requerem-se metodologias móveis – como são
chamadas por Watts e Urry (2008) -, técnicas de investigação que permitam o “andar com”,
observar o movimento desde seu âmago, em seu processo de provocação e realização.
Essas técnicas têm tido um desenvolvimento original no campo de estudo do caminhar,
(veraqui), encontrando, entre suas linhas mais radicais, os passeios comentados. Esta técnica
consiste em acompanhar a experiência e o corpo do passante (ser a sombra de seu caminhar)
de onde o investigador interrompe tudo para deixar-se levar pelas aplicações, descrições e
emoções das pessoas que acompanha. Busca-se se manter aberto ao desdobramento do
acontecimento em processo de atuação, incluindo, por consequência, a dimensão móvel e
corporalizada da ação. Essa metodologia permite não somente acompanhar o trajeto, mas
também participar do mesmo, através de perguntas, apreensões, reflexões e digressões. O
pressuposto dessa metodologia é que as pessoas que se acompanham em seu itinerário
dispõem de competências urbanas, e sejam capazes de perceber as ações, emoções e
situações que vão vivendo no ato de caminhar. Em outras palavras, é um método que se apoia
na capacidade reflexiva das pessoas que estuda. Dessa forma, o futuro urbano se escreve ao
mesmo tempo que se experimenta. Um interessante trabalho nessa perspectiva é o que
realizou a arquiteta chilena Karen Andersen (2009), que realizou um estudo sobre transeuntes
cotidianos de uma praça pública com o fim de traçar os contornos sensíveis e expressivos
desse lugar antes de sua renovação urbana.
Atualmente diferentes autores estão desenvolvendo estudos sobre a bicicleta através de
perspectivas similares as utilizadas já há anos para o estudo do caminhar. Talvez a referência
mais importante no assunto é o livro Cycling and Society (2009) editado por Rosen, Cox e
Horton, no qual é possível encontrar alguns artigos que indagam – através de diferentes
técnicas ( diário de tempo e espaço, observação participante, rastreamento de pessoas..) o uso
da bicicleta dentro da dimensão experimental e pragmática. Na mesma linha, pode-se
mencionar o trabalho de Phil Jones, que mostra – inspirado em perspectivas performativas de
espaço – como o ciclista, ao mesmo tempo em que se desloca, vai explorando seu próprio
corpo e como que o espaço-do-ciclista vai se emergindo a medida que se desloca.
A bicicleta como tecnologia do corpo
Isso nos leva ao segundo aspecto a ser desenvolvido. Assim como caminhar, a atividade de
andar de bicicleta pela cidade é uma prática essencialmente corporal e consequentemente
política. O antropólogo francês Marcel Mauss descreveu o caminhar como uma técnica do
corpo que se aprende, desenvolve, gesticula, encena e modula segundo as possibilidades e as
circunstancias que o entorno providencia. A história da humanidade começa nesses primeiros
passos. Em seu livro Sociologia e Antropologia (1955), Mauss grifa que o caminhar é uma
atividade específica de cada cultura, uma atividade que se aprende e não pode tomar-se como
natural e idêntica a si mesma em todas as partes. As pessoas não só são reconhecidas por
aquilo que dizem ou como se comportam, mas também pelo modo que caminham. É por isso
que Mauss propõe uma verdadeira topologia antropológica das motricidades do pedestre.
Se isso é verdade para o caminhar, no ato de andar de bicicleta isso se radicaliza, posto que o
compromisso do corpo é muito maior e está mais intimamente ligado a outro artefato: a
bicicleta. O corpo da bicicleta se faz único com o corpo de seu condutor, permutando suas
propriedades e compondo uma verdadeira dança estrutural. O ciclista deve por a prova uma
série de competências práticas e perceptivas (olfato, ruídos, reflexos, ritmo, etc.) que são as
que o permitem circular com segurança. Normalmente o bom ciclista dispõe de formas de
comportamento e astúcias necessárias para adequar-se a cada situação – como a imprudência
de um motorista, a travessia de uma ciclovia ou uma chuva surpresa.
Um exemplo claro disso é o papel que o som ambiente pode exercer. Ele pode se tornar um
recurso segundo a maneira individual de conduzir a bicicleta: alguns podem fazê-lo escutando
música (abre suas vistas e a música os transporta) enquanto outros, o som ambiente é o
equivalente ao espelho retrovisor de um automóvel.
Didier Tronchet mostra que “o sentimento de fragilidade que habita cada ciclista aguça sua
atenção ao mundo”. É exatamente esse sentimento que obriga o ciclista a preparar seu corpo
ao inesperado e desenvolver competências situadas. Como mostra Michel De Certeau em suas
belas reflexões sobre a caminhada, o ato de andar de bicicletas é também político: o ciclista vai
desenhando sua própria forma de circular e escrever a cidade, sua própria maneira de
transgredir e de se apropriar dos lugares que atravessa.
Em uma metáfora inspiradora, Walter Benjamin diz que deveria “vencer o capitalismo
caminhando”. A bicicleta permite ampliar essa metáfora, já que se trata de uma tecnologia
equipada do corpo.
Uma forma de promover o uso da bicicleta é multiplicando suas formas de estudo
Os aspectos que acabamos de desenvolver seguem como a “caixa negra” dentro do estudos
sobre a bicicleta, acima de tudo comparado à diversidade de investigações que existem no
campo de mobilidade automobilizada. A razão é bem simples: a bicicleta é ainda uma prática
demasiada isolada para garantir tempo e dinheiro a seu estudo…
Boas políticas sobre o assunto não só necessitam de insumos sobre o número de bicicletas
circulando, mas também insumos sobre o que acontece quando estas circulam, como se pode
recompor os ambientes e ecologias urbanas. A discussão sobre a mobilidade vai além de
gráficos e códigos – senão pode reduzir-se a uma questão de custo-benefício. Deve ser
pensada também em termos de acessibilidade, segurança, ambiente, familiaridade, medo,
prazer, história, etc. A bicicleta não pode ser considerada uma simples moda que vai se instalar
naturalmente: é o resultado de um processo muito mais complexo, que envolvem instituições e
infraestruturas, aprendizagens coletivas e individuais, práticas e competências urbanas.
Quando se esquece dessas dimensões, corre-se o risco de aplicar políticas e infraestruturas
desconectadas do viver ordinário das pessoas. Trata-se de um campo muito importante para
deixa-lo ao arbítrio único de formalizações estadísticas. Uma cultura da bicicleta em nossas
cidades requere saberes interdisciplinários; não como elementos acessórios, mas como
aspectos construtivos de espaços estéticos, sociais e ambientalmente mais justos. Em outras
palavras é crucial se aproximar desse saber encarnado que vão desenvolver os ciclistas e
complementa-lo com o saber teórico.
A bicicleta, como meio de transporte, passa principalmente por um compromisso político das
autoridades por gerar as condições para sua prática. A tarefa também passa pela ousadia de
diferentes disciplinas – como a geografia, antropologia, arte, paisagismo, história, arquitetura,
sociologia, psicologia, engenharia, entre muitas outras – de atrever-se a levar a sério a bicicleta
como objeto de estudo e exploração. Nesse campo, estão muito mais avançados os diferentes
grupos de ciclistas, que se organizam em diferentes partes do mundo.
Se a capital dinamarquesa fez com que mais de 50% dos seus habitantes se deslocassem de
bicicleta para o trabalho – transformando-se na “Bike City” por excelência -, é graças às
múltiplas ‘agendas’ (políticas, acadêmicas, artísticas, arquitetônicas, econômicas, etc.) que
aplicaram em torno desse meio de transporte. A bicicleta é uma responsabilidade política que
não somente solicita a atenção de coletivos militantes ou ecologistas, mas também de cidadãos
e disciplinas comprometidas com espaços mais limpos e democráticos.