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Alianças Matrimoniais e Estratégias de Bem Viver no Espaço Social da Vila de Nossa Senhora da Lux dos Pinhais de Curitiba (1690 – 1790)*
Milton Stanczyk Filho UFPR
Palavras-chave: Relações Matrimoniais, Relações de Parentesco, Elites Locais, Brasil Colônia.
I
Quando do início da bolsa de iniciação científica, a aproximadamente um ano,
iniciei junto ao CEDOPE – Centro de Documentação e Pesquisa da História nos
Domínios Portugueses (XV – XIX) – um estudo que privilegiasse o contexto histórico
da vila de Nossa Senhora da Lux dos Pinhais de Curitiba no transcorrer do século XVII
ao XVIII.
Para tanto, buscou-se pesquisar como se organizou o espaço social nesta vila,
verificando qual o papel desempenhado pelas alianças matrimoniais dos primeiros
habitantes na construção e hierarquização daquela sociedade. Vale dizer que este artigo
é parte integrante de uma pesquisa maior que buscar-se-á desenvolver na pós-
graduação, com vistas a avaliar a vida material dos habitantes da Vila de Nossa Senhora
da Lux dos Pinhais de Curitiba no século XVIII, utilizando-se para tal feito os
testamentos e inventários. Embora essa documentação não permita um estudo de
natureza serial, deixam revelar, além dos bens que significam rendimentos, as questões
da vida em família, as divergências, as disputas, os contornos afetivos das ligações
dentro do lar, e as amizades, que além das determinantes econômicas e sociais,
influenciaram as estratégias familiares. Como evidencia Michael Anderson,
* Trabalho apresentado no XIII Encontro da Associação Brasileira de Estudos Populacionais, realizado em Ouro Preto, Minas Gerais, Brasil de 4 a 8 de novembro de 2002.
2
a sucessão nos bens não tem apenas o significado de que alguns indivíduos terão acesso aos
recursos disponíveis, mas influi decisivamente na demografia, na organização e na “qualidade
das relações familiares”, principalmente, devido ao mundo como são transmitidos e ao momento
do ciclo de vida em que se realiza.1
Entendendo que os planos da existência coletiva são organizados e
hierarquizados de formas diferentes, tendo suas características específicas nas diversas
camadas sociais, o presente artigo traz alguns indicadores dessa organização, sobretudo
da elite local, pois privilegiou-se reconhecer uma família que estava radicada na
localidade desde a eleição da câmara e instalação da vila em 29 de março de 1693.
II
Começamos então, a esboçar o pano de fundo para este estudo: a vila de Nossa
Senhora da Lux dos Pinhais de Curitiba. A ocupação e o povoamento da região sul
pelos colonizadores inicia-se no século XVII, ocorrendo efetivamente a partir de
meados do século XVIII. No planalto paranaense, a vinda de uma população luso-
paulista oriundos de São Vicente, São Paulo de Piratininga, Santos e Cananéia,
constituída originariamente por faiscadores e mineradores de ouro, configurou-se como
um contingente populacional diminuto e disperso2. A população curitibana tem,
portanto, seu início marcado pela lógica aventureira da colonização3. Com a
preocupação de um avanço espanhol em território português, a partir do século XVIII, a
Coroa começa a intensificar seu poderio e fazer valer suas leis através de seus “juízes”,
aumentando suas fronteiras e resguardando seu território além-mar. São esses agentes
que direcionam as fronteiras, a expansão, e o próprio povoamento.
Ao implementar câmaras municipais e freguesias, a Coroa portuguesa
estabeleceu mecanismos que permitiam às leis de Portugal e ao catolicismo controlar o
ordenamento social. Neste sentido vale observar que a criação de determinada vila 1 Apud : LEWCOWICZ,Ida. Herança e relações familiares: os pretos forros nas Minas Gerais do século XVIII. Família e grupos de convívio, São Paulo, n. 17, p.101-114, set. 1988/ fev. 1989. p. 103. 2 Note-se que o capitão-povoador Mateus Martins Leme afirmava em 1693, que havia crescido o número de habitantes, passando de três povos e de 90 homens e, portanto, requeriam a instalação da Câmara. 3 Aventura, apreendida aqui na acepção de Sérgio Buarque de Holanda, em Raízes do Brasil. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo : Companhia das Letrtas, 1995. p.44-45.
3
compreende uma complexidade própria, pois “... criar/fundar um município era muito
mais que um mero arranjo de uma pequena povoação. Como ato capital de
colonização, ele se revestia de uma complexa fundamentação jurídica, e mesmo
teológica, estando acompanhado de diversos procedimentos simbólicos”4. Assim, ao
mesmo tempo em que uma população livre e pobre sobrevive às margens da sociedade
colonial, a ação oficial ocupava-se em reproduzir o modelo português de sociedade.
A vila de Curitiba adentra, então, ao século XVIII com o modelo português de
administração instituído. Entretanto, do ponto de vista institucional, toda a América
portuguesa na primeira metade do século XVIII foi marcada por tensões decorrentes da
relativa perda de autonomia do poder local, representado pelas câmaras, em relação ao
poder régio. Como apresenta Maria Fernanda Bicalho,
As diferentes câmaras espalhadas pelo Império português tinham muitos pontos em
comum com as suas congêneres metropolitanas. No entanto, a diversidade sociocultural
que os portugueses encontraram em sua faina colonizadora criou matizes e adaptações
no aparato institucional e legal trasladado do reino, colorindo de tons específicos as
mesmas instituições quando adaptadas à realidade das diferentes colônias, quer a
ocidente, quer a oriente.5
Com o intuito de organizar as vilas do sul e conter as tensões acima citadas, vem
a Curitiba o Ouvidor Raphael Pires Pardinho em meados de 1720. Por ordem do
Conselho Ultramarino, o Ouvidor relatava as condições das vilas ao Rei e instituía os
Provimentos que as ordenariam. Nele continham entre outras determinações, as eleições
para a Câmara Municipal, as concessões de terras, a abertura dos caminhos, e a
organização do rocio. Pardinho, em carta ao Rei D. João V de 30 de agosto de 1721,
estimava a população nas freguesias de São José e do Senhor Bom Jesus do Perdão e a
de Nossa Senhora da Luz de Curitiba em “200 cazaes, e mais de 1400 pessoas de
4 SANTOS, Antonio Cesar de Almeida. Monumenta. MARCONDES, Moyses. Documentos para a História do Paraná. Rio de Janeyro, Typographia do Annuario do Brasil, 1923. Curitiba : Aos Quatrro Ventos, 2000. p.06. 5 BICALHO, Maria Fernanda. As câmaras ultramarinas e o governo do Império. p.189-221. In: FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda; GOUVÊA, Maria de Fátima. (org.). O Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 2001.
4
confissão”6, ou seja, maiores de sete anos e livres, uma vez que não era incluída a
população infantil, os escravos e os índios administrados.
Constatava ainda, o início das exportações de gado para São Paulo. Foi esse
comércio, influenciado pela abertura da estrada do Viamão que fez surgir freguesias e
vilas, principalmente ao longo da estrada, auxiliando na fixação da sociedade que se
constituíra a partir de Paranaguá, dos Campos de Curitiba e Campos Gerais. Porém
jamais poderiam ser considerados núcleos de porte. E a região sul, nesta época menos
importante em decorrência das descobertas de ouro nas Minas Gerais, ficou largada ao
sabor das vontades de seus povoadores7, mesmo com os esforços do Ouvidor Pardinho,
pois as atenções da capitania de São Paulo estavam voltadas para o Norte8.
Durante as décadas de 1760 e 1770 em que houve um gradual declínio do ouro
nas Minas, foi nomeado dom Luiz Antonio de Souza Botelho Mourão, o Morgado de
Mateus, para governador e capitão general da capitania de São Paulo. Com o intuito de
restaurar a economia e o prestígio de São Paulo, este governador preocupou-se com a
expansão territorial, com a urbanização e com a preparação de uma infra-estrutura
política e econômica, que somente fez-se sentir no final do século XVIII9.
Contudo, a população da vila de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais de Curitiba
expandiu-se. Se, para a primeira metade do século XVIII os dados relativos aos
habitantes são esparsos e pontuais, para a segunda metade do setecentos os dados são
mais viáveis por ocasião das medidas tomadas pelo governador Morgado de Mateus.
Quando da sua gestão de cunho militar, ordenou a contabilidade sistemática da
população através das Listas Nominativas que tinham por objetivo conhecer a
composição da população visando uma melhor arrecadação de impostos e um melhor
conhecimento das potencialidades militares da população em função das disputas de
fronteira com a Espanha.
Cada vila foi reorganizada em Companhias de Ordenanças com base na
quantidade das populações. Assim, Curitiba foi dividida em cinco Companhias:
primeira e segunda Companhias da vila de Curitiba, a terceira Companhia (freguesia do 6 MONUMENTA. Provimentos do ouvidor Pardinho para Curitiba e Paranaguá (1721). N.10, vol.3. , 2000. p. 22. 7 SANTOS, Antonio César de Almeida. Op. cit. p. 03. 8 Vale ressaltar que a vila de Nossa Senhora da Lux dos Pinhais de Curitiba pertencia a capitania de São Paulo e esta, entre 1748 e 1765 esteve subordinada ao governo do Rio de Janeiro. 9 DICIONÁRIO DO BRASIL COLONIAL. Op. Cit. p.408.
5
Patrocínio de São José); a quarta Companhia (freguesia de Santo Antonio da Lapa) e a
quinta Companhia (freguesia de Sant’Ana do Yapó). Os primeiros censos consideravam
apenas a população livre. Entretanto, a partir da década de 1770, todos os habitantes
foram incluídos nas listas à exceção dos indígenas, cuja maioria escapava ao controle
das autoridades portuguesas.
Com base nestes censos, Maria Ignes Mancini De Boni, apresenta que entre
1776 e 1785 houve um crescimento de 91,0 % da população. Se em 1776 haviam 2.098
livres e 407 escravos num total de 2.505 moradores na Vila, em 1785 esse número passa
para 4.566, sendo 3.517 livres e 1.049 escravos. Esse crescimento de 91,0 % da
população deve-se ao fato de que, como vimos, o número de escravos quase triplica
nesse período e que foi verificado um acréscimo de território, com o surgimento de
novos bairros.10 Fixados a terra, essas pessoas viviam, formavam suas famílias,
organizavam sua vida e sua economia em número relativamente significativo, sob “a
estrutura domiciliar onde predominavam as famílias simples, compostas apenas do
núcleo familiar, ou família biológica, com um pequeno número de filhos, e onde as
famílias extensas e domicílios múltiplos atingem baixas proporções”11, diferentemente
do modelo proposto por Gilberto Freyre em “Casa Grande & Senzala”12. Sua proposta
parece-nos caber mais às regiões de “grande lavoura” do Nordeste da Colônia do que
para a região de Curitiba. Entretanto, “é efetivamente no domicílio que encontramos os
colonos interagindo com o meio natural, inovando nas formas de subsistência e
vivenciando seus laços afetivos.”13
Mesmo assim, mantinham-se na vila os valores arraigados do Antigo Regime. A
sociedade era hierarquizada, marcando-se os contrastes e os privilégios; a economia,
grosso modo, era assentada basicamente na agricultura; e as distâncias entre metrópole e
colônia eram vistas nas tensões entre os poderes locais e o poder da Coroa, ordenado
posteriormente com as Correições do Ouvidor. Neste espaço, conforme demonstra
Marina Lourdes Ritter, conviviam comerciantes, proprietários de fazendas e criadores,
10 DE BONI, Maria Ignez Mancini. A população da Vila de Curitiba segundo as listas nominativas de habitantes, 1765-1785. Dissertação de mestrado. Curitiba, 1974. p. 50. 11 Ibid., p.136. 12 FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala. Formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. Rio de Janeiro : José Olympio, 1985. 13 ALGRANTI, Leila Mezan. Famílias e vida doméstica, p.88. In: História da vida privada no Brasil: cotidiano e vida privada na América portuguesa. São Paulo : Companhia das Letras, 1997. p.83-154.
6
pequenos agricultores, uma população móvel dedicada ao tropeirismo, comerciantes
qualificados como alfaiates, ferreiros, carpinteiros, e por fim agregados e escravos.14
De posse desse referencial, podemos começar a pensar nas estruturas
hierarquizadas dos habitantes dessa Vila. Como estariam organizadas as famílias e qual
seria, então, o papel do casamento para a conservação dos poderes e costumes
estabelecidos?
III
Para desnudar estas questões, iniciou-se por observar as assinaturas que
encerravam as atas de elevação de Curitiba à vila. De imediato, aparentava tratar-se de
pessoas pertencentes a um grupo diferenciado, denominado de “homens bons”.
“Homem Bom” foi uma expressão utilizada na América Portuguesa, que refletia uma
atitude mental típica do Antigo Regime, incapaz de considerar os indivíduos nascidos
iguais e portadores dos mesmos direitos. Assim era aquele que reunia condições para
pertencer a um estrato social, distinto bastante para manifestar a sua opinião e exercer
determinados cargos. Em nosso caso, no Brasil Colônia, associava-se em particular
àqueles que podiam participar da “governança” municipal, elegendo e sendo eleitos para
os cargos públicos que, então, estavam reunidas nas câmaras, principais instâncias da
representação locais da monarquia.15
Como seria por demais pretensioso reconstituir as genealogias dos 64 homens
que assinaram a ata de criação da justiça, arbitrou-se a escolha de um homem e sua
família no decorrer do século XVII ao XVIII buscando-se suas “estratégias de bem
viver”. Sob a proposta de análise microscópica, ou seja, de discutir com a historiografia
e perceber os comportamentos ou conjuntos de normas que regiam a sociedade e que
pressionavam as decisões de suas escolhas individuais, foi prestigiada a família
RODRIGUES SEIXAS.
14 RITTER, Marina Lourdes. A sociedade nos Campos de Curitiba na Época da Independência. Rio Grande do Sul : Editora Pallotti , 1982. p.30. 15 DICIONÁRIO DO BRASIL COLONIAL (1500-1808). VAINFAS, Ronaldo. (org.) Rio de Janeiro : Editora Objetiva, 2000. p. 284.
7
Entretanto, julga-se necessário discorrer sobre essa “estratégia de bem viver”
baseada nas alianças matrimoniais. Entende-se que estas alianças são o princípio da
organização e das relações externas entre diferentes grupos para estabelecer relações
necessárias de troca matrimonial para não praticar exogamia. Contudo, a prática do
casamento traduz-se no plano econômico, geralmente por uma troca de bens e/ou de
serviço entre duas famílias. Ora, então para se criar laços entre grupos de parentesco,
implica-se em restrições na escolha do cônjuge, pois
Quando se considera o casamento não apenas como uma instituição que define uma relação entre dois
indivíduos, atribuindo um estatuto aos seus descendentes, mas, numa perspectiva mais estrutural – e mais
global –, como um processo que envolve (no mínimo) dois ou mais grupos exogâmicos numa rede de
relações de trocas matrimoniais que engendram e tecem a trama das relações sociais (as relações de troca,
strticto sensu, e as relações de parentesco por alianças matrimoniais) que constituem os alicerces da
sociedade global 16
IV
O primeiro Rodrigues Seixas na vila de Curitiba foi, possivelmente, João
Rodrigues Seixas. Era reinol da vila de Vianna assim como seus pais, Antonio
Rodrigues Seixas e Catharina Martins, e embora não seja conhecida a linhagem pela
qual João Rodrigues Seixas aliou-se pela via matrimonial, sabe-se que sua esposa Maria
Maciel Barbosa era natural de Cananéa, na capitania de São Paulo, local onde viviam
juntos antes da vinda à Curitiba.
Vale notar que a presença constante de lusos, não somente na região sul, mais
em toda a América portuguesa traz consigo uma gama de valores do Antigo Regime
pois, como apresenta João Fragoso,
Os indivíduos que foram para o ultramar levaram consigo uma cultura e uma experiência de vida
baseadas na percepção de que o mundo, a “ordem natural das coisas” era hierarquizado; de que as
pessoas, por suas “qualidades” naturais e sociais, ocupavam posições distintas e desiguais na sociedade.
16 Os domínios do parentesco. p.38.
8
Na América, assim com em outras partes do Império, esta visão seria reforçada pela idéia de conquista,
pelas lutas contra o gentio e pela escravidão. Conquistas e lutas que, feitas em nome del Rey, deveriam ser
recompensadas com mercês – títulos, ofícios e terras.
Nada mais sonhado pelos “conquistadores” – em sua maioria homens provenientes de uma pequena
fidalguia ou mesmo da “ralé” – do que a possibilidade de um alargamento de seu cabedal material, social,
político e simbólico. Mais uma vez o Novo Mundo – assim como vários outros territórios e domínios
ultramarinos de Portugal – representava apara aqueles homens a possibilidade de mudar de “qualidade”,
de ingressar na nobreza da terra e, por conseguinte, de “mandar” em outros homens – e mulheres. Neste
quadro herdado do Velho Mundo, a escravidão africana só iria reforçar uma hierarquia social
transplantada para o ultramar; multiplicando-a, dando-lhe novas cores e novos matizes.17
João aparece na documentação como o primeiro escrivão da câmara, cargo que
exerceu até seu falecimento em 13 abril de 170018. Como escrivão da câmara,
acumulava as funções de tabelião de notas e escrivão de órfãos, recebendo por tais
feitos o ordenado anual de 6$000 réis19. Ora, João Rodrigues Seixas possuía um bem
intelectual, ou seja, dominava as letras. Seu filho, Antonio Rodrigues Seixas também,
pois aparece como escritor da ata de elevação da vila de Curitiba, em 29 de março de
1693, antes da eleição dos membros da câmara.
Talvez aqui se mostre a possibilidade de enriquecimento que trazia a ocupação
de escrivão, bem como a posição de ascendência social que trazia o exercício deste
cargo, já que em sua maioria, os homens bons da vila eram iletrados. Note-se o fato de
que mesmo sem instrutores de primeiras letras na região naquele período, João
Rodrigues Seixas transmitiu seus conhecimentos ao seu filho, Antonio Rodrigues
Seixas, o qual pode desfrutar da mesma ocupação posteriormente. Antonio Manuel
Hespanha atenta ao fato da importância dos ofícios de justiça (notários e escrivães) que
estavam à disposição das elites, não somente pelos rendimentos que eram recebidos,
17 FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda; GOUVÊA, Maria de Fátima. Introdução. Ibid., p.24. 18 Boa parte das datas aqui apresentadas foram retiradas da “Relação de homens livres, Paraná século XVIII”, organizado por Maria Helena Cordeiro Inssa. Esse exemplar encontrtado no CEDOPE, foi feito tomando-se por base o Dicionário histórico e geográfico do Paraná, de Ermelino de Leão e do Genealogia paranaense de Francisco Negrão. Vale-se dizer que as datas também foram consultadas, quando possível, referente ao período, nas atas de batismo, casamento e nos registro de óbitos constantes do acervo da Paróquia de Nossa Senhora da Lux dos Pinhais de Curitiba. 19 LEÃO, Ermelino de. Dicionário histórico e geográfico do Paraná. 6v. Curitiba : Instituto Histórico, Geográfico e Etnográfico Paranaense, 1994. v.III, p.996.
9
mas pela centralidade dos ofícios num ambiente político-cultural onde Império centrado
e dirigido unilateralmente pela metrópole parece ser insustentável pois,
Os documentos escritos eram decisivos para certificar matérias decisivas, desde o estatuto pessoal aos
direitos e deveres patrimoniais. As cartas régias de doação (v.g., de capitanias) ou de foral, as concessões
de sesmaria, a constituição e tombo dos morgados, as vendas e partilhas de propriedades, os
requerimentos de graças régias, a concessão de mercês, autorizações diversas (desde a de desmembrar
morgados até à de exercer ofícios civis), processos e decisões judiciais, tudo isto devia constar de
documento escrito, arquivado em cartórios que se tornavam os repositórios da memória jurídica, social e
política. Tudo aquilo que importava nesta sociedade tinha de deixar traços aí. Em contrapartida, a
preservação, extravio, manipulação ou falsificação de documentos tinha um enorme significado político.
Nesse contexto, pode-se imaginar a amplitude das lutas para o controle dos arquivos e dos cargos da
justiça, bem como os investimentos que os poderosos estariam interessados em fazer em sua compra ou
arrendamento, quer para desempenho próprio, quer para beneficiar apaniguados. De fato, parece que
muitas compras se destinavam justamente à remuneração de favores ou a atos de proteção; com que, além
do mais, se recebia em troca a garantia de que os papéis, cômodos ou incômodos, estavam em boas
mãos.20
Do casamento de João Rodrigues Seixas com Maria Maciel Barbosa vieram dois
filhos: como já vimos, Antonio Rodrigues Seixas (capitão) casado com Maria Soares
Paes; e Isabel Soares casada com Lourenço de Andrade. Começamos a observar as
estratégias matrimoniais. Num período em que eram escassos os recursos e a população
possuía somente bens e produtos de consumo básicos para a sobrevivência, era
fundamental instituir relações de afinidade para melhor se estabelecer. Segundo
Elizabeth Kuznesof, nos séculos XVI e XVII
O que era importante para os paulistas era a proximidade do grupo social no qual eles se baseavam para
obter ajuda e realizar a troca – o clã familiar. A precária economia de subsistência, a agricultura, apoiava-
se e protegia-se através de um sistema de troca de grupo e ajuda mútua. Essas não eram relações de
20 HESPANHA, António Manuel. A constituição do Império português. Revisão de alguns enviesamentos correntes. In: FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda; GOUVÊA, Maria de Fátima. Op. cit. p.186.
10
mercado, nem relações baseadas em um sistema de reciprocidade específico, mas sim, um sistema de
apoio generalizado para todos os membros do grupo21
O caminho mais eficaz para suprir esta carência e solidariedade seria,
justamente, a instituição do casamento, que pela união de duas famílias permitia a
configuração de um relacionamento de assistência mútua. Além disso, criava, num certo
sentido, uma relação de dependência entre os cônjuges e os membros das duas
linhagens, visto que o desejo era que esta aliança não somente garantisse a subsistência
das famílias, mas que também ampliasse os domínios territoriais. Tais interesses eram
acompanhados ainda o de adquirir, com o tempo, maior representação social e política
na sua localidade. Desse modo, era importante escolher os cônjuges que favoreciam os
interesses pessoais de ambos os noivos e suas respectivas famílias. O casamento legal
era a condição fundamental para a estabilidade econômica, busca de status, ascensão
social e obtenção, em muitos casos, de posições administrativas. “O casamento é
considerado primeiro, como um negócio, no sentido lato do termo, e muito
secundariamente como um assunto sentimental (...) [e] deve ser também uma união
conveniente. A ordem social é percebida como sendo quase imutável.”22
Seguindo a genealogia dos Rodrigues Seixas, priorizou-se em cada geração um
dos filhos masculinos para analisar suas relações maritais. Como fator de análise, foco o
estudo aos membros que dão prosseguimento ao sobrenome (e prenome) herdado do pai
e desdobrando-os em sua filiação. A homenagem feita aos antepassados através da
nominação remete a idéia de que o nome pessoal era indicador da linhagem a qual se
pertencia, visto que era passado de geração em geração, ainda que admitisse mudanças
ao longo dos anos. Dessa forma, a aplicação de um certo sobrenome parecia implicar no
reconhecimento social da participação do indivíduo na família a que pertencia, já que
trazia consigo a lembrança dos feito e da origem de seus predecessores. Ainda que
muitas vezes as linhagens transitassem por várias nominações diferentes, sobretudo no
do estabelecimento de alianças de interesse, a hereditariedade não passava despercebida.
21 KUZNESOF, Elizabeth Anne. A família na sociedade brasileira: parentesco, clientelismo e estrutura social (São Paulo, 1700-1980). Família e grupos de convívio, São Paulo, n. 17, p.37-63, set. 1988/ fev. 1989. p. 40. 22 LEBRUN, François. A vida conjugal no Antigo Regime. Lisboa : Edições Rolim, s.d., p. 29-30.
11
Assim, estes indivíduos, se preocupados em manter a honra, boa fama, e uma
certa estabilidade econômica e política da família, articulavam-se para melhor preservar
e expandir seu poderio. Aliado a esse desejo de prestígio e fortuna que, por sua vez
estava muito relacionado às aspirações dos portugueses ou de outros emigrantes em
encontrar, no Brasil colônia, uma possibilidade de adquirir títulos nobiliárquicos,
riquezas e de constituir família23, constava-se, também, de um sentimento que lhes era
natural, qual seja, o desejo de perpetuar-se através de seus filhos.
Nos tópicos abaixo, será apresentado um pouco das vivências dos descendentes
dos Rodrigues Seixas, explicitando que esse ainda é um levantamento inicial. Somente
com o cruzamento de fontes é que será possível desvendar as estratégias de
sobrevivência – ou manutenção da ordem vigente – através das alianças matrimoniais.
*
O Capitão Antonio Rodrigues Seixas (nasceu por volta de 1670 e faleceu em 20
de Janeiro de 1735), natural de Cananéa, casou-se com Maria Soares Paes (nasceu por
volta de 1676 e faleceu em 10 de maio de 1744). Esta era filha de Manoel Soares e
Maria Paes, neta do Capitão Baltazar Carrasco dos Reis e Isabel Antunes da Silva.
Baltazar Carrasco dos reis foi um dos povoadores dos campos de Curitiba, instalando-se
aqui pouco antes de 1661, ano em que pede ao Capitão-mor governador do Rio de
Janeiro Salvador Correa de Sá e Benevides uma sesmaria pois “...nam tem therras para
laurar e agasalhar seu gado tanto vacum como cavalar nem choins para edificar sua morada de casa...”24.
Bandeirante, em 1645 já havia feito entradas no sertão à busca de índios. Antes
de vir para Curitiba, morou na vila de S. Anna de Parnahyba, onde exerceu o cargo de
juiz de órfãos. Foi um dos vultos da nova vila de Curitiba, tendo seus descendentes,
como buscamos analisar, acupado posições salientes na sociedade. Teve três filhos
homens e cinco mulheres. Faleceu entre março e abril de 1697 sendo seu inventário um
dos mais antigos documentos existentes no cartório de órfãos de Curitiba.
Manoel Soares nasceu em Lisboa e emigrou ao Brasil vindo estabelecer-se em
Curitiba no último quartel do século XVII. Obteve, em 1686 do Capitão-mor
23 BOXER, Charles. A idade de ouro no Brasil: dores de crescimento de uma sociedade colonial. Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 2000. p.34-38. 24 Apud. LEÃO, Ermelino de. Op.cit. v. I, p.159.
12
governador Thomaz Fernandes de Oliveira, a sesmaria de Butiatuba, sendo vizinha a de
seu sogro na Campina D. Rodrigo e o rio Passaúna. Exerceu vários cargos públicos,
sendo um dos primeiros juízes escolhidos para a eleição da câmara em 1694, vereador
em 1696, 1697, 1700, 1703 e procurador em 170425. Teve com Maria Paes dez filhos,
sendo três homens e sete mulheres.
*
O tenente Manoel Rodrigues Seixas (nasceu em 04 de dezembro de 1704 e
faleceu em 20 de junho de 1785) casou-se com Izabel Martins Valença (faleceu em 08
de fevereiro de 1808) no dia 02 de julho de 1738. Izabel era filha de Manoel Martins
Valença e Joana Maciel Sampaio. Valença foi mercador em Curitiba e procurador da
câmara. Fugiu para Goiás abandonando sua mulher e cinco filhos, para tentar fazer
fortuna pois o negócio ia cada vez mais ruinoso. Entretanto, ao que indica LEÃO, viveu
penosamente em Goiás por mais de vinte anos, mas a sorte não lhe sorriu. Condoída
com a sorte do marido, Joana requer em 1752, uma procuração para chamá-lo de volta
ou arrecadar seus bens caso tivesse morrido. Dizia que o marido estava carregado de
anos e de moléstias e desejava que Deus dispusesse da sua vida na sua presença e por
isso solicitava licença para continuar ausente do lar.
Entretanto, Izabel Martins Valença aparece na lista nominativa de habitantes de
1795, morando na segunda companhia de Curitiba, já viúva, possuindo 26 escravos.
*
Antonio Rodrigues Seixas (faleceu em 14 de janeiro de 1795) casou-se com
Genoveva Soares (nasceu em 1769 e faleceu em 1793) no dia 11 de junho de 1785 na
Capela do Tamanduá. Genoveva era filha de Manoel Manso de Avellar e Anna Barbosa.
Sobre esta família têm-se poucas informações, pois Manoel aparece na lista
nominativa de 1795 estando morando viúvo em Papagaios, bairro da segunda
companhia de Curitiba. Sua filha, Genoveva Soares, viúva, também mora em Papagaios
com seus dois filhos, João e Ricardo e mais dois escravos.
25 Ibid. v. III, p. 122 ; NEGRÃO, Francisco. Op. cit., v.I p. 308-309.
13
V
A família recebeu da historiografia brasileira o status de principal célula
formadora do Brasil Colônia. Para Sheila de Castro Faria, o termo família não pode ser
restringido apenas às relações consangüíneas, mas também
À coabitação e às relações rituais, podendo ser tudo ao memo tempo (...). Ao invés de
demarcar a família como um objeto em si mesmo, deve-se levar em conta a sociedade a sua
volta, incorporando estudos que incluam: rede social; as relações de parentesco; residência e
vizinhança; estratégias matrimoniais e sistemas de herança; o papel dos vínculos de amizade e
solidariedade; e em definitivo, todo o universo de sociabilidade em que se insere o indivíduo.26
Neste sentido, opto pela advertência de Ida Lewkowicz “para a necessidade de
se ampliar a noção de família de acordo com os grupos sociais e as peculiaridades regionais da formação social brasileira. ”27 Buscou-se então neste artigo, ainda que de
forma sintética e preliminar, apresentar as relações de parentesco via relações
matrimoniais de alguns membros da elite local da vila de Curitiba, mostrando suas
peculiaridades, estando eles inseridos em um contexto similar a de muitas outras vilas
espalhadas pelo Brasil Colonial que estavam a margem dos grandes centros
exportadores.
26 FARIA, Sheila de Castro. A Colônia em movimento: fortuna e família no cotidiano colonial. Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 1998. p. 43. 27 LEWKOWICZ, Ida. Op. cit. p.101.
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