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ÁREA TEMÁTICA: Direito, Crime e Dependências ALIQUIDSTAT PRO ALIQUO- O DISCURSO DO “15 DE OUTUBROVELEZ, António Doutorando em Sociologia ISCTE-IUL [email protected]

ALIQUIDSTAT PRO ALIQUO O DISCURSO DO “15 DE OUTUBROhistorico.aps.pt/vii_congresso/papers/finais/PAP1427_ed.pdf · Neste sentido, Meyer (2002, pp. 63-65) defende duas tradições

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ÁREA TEMÁTICA: Direito, Crime e Dependências

ALIQUIDSTAT PRO ALIQUO- O DISCURSO DO “15 DE OUTUBRO”

VELEZ, António

Doutorando em Sociologia

ISCTE-IUL

[email protected]

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Palavras-chave: Movimentos sociais; acção colectiva; semiótica; direito.

Keywords: Social movements; collective action; semiotics; law.

PAP1427

Resumo

A presente comunicação decorre de um estudo apoiado nas discussões teóricas de Luhmann

(1989, 1993 e 1996), Habermas (1981) e Hellmann (1996 e 1998) sobre movimentos de

protesto, assumindo como objecto central o que se reconhece em Portugal como a plataforma

“15 de Outubro”, subscrita por 39 movimentos sociais com diferentes dimensões e formas de

organização. A actualidade do tema funciona simultaneamente como elemento facilitador e

condicionante – justificando a importância de uma observação sociológica, mas exigindo

cuidado na abordagem a dinâmicas muito recentes e imprevisíveis, tanto na sua emergência e

desenvolvimento como na sua volatilidade. Esta condição indica o caminho de uma análise

de natureza mais exploratória, tendo-se privilegiado como foco principal o discurso

apresentado pelo referido grupo. Mobilizando métodos de análise documental, procuram-se

interpretar diferentes categorias de expressão escrita que permitam a sistematização de uma

primeira análise sobre percepções face ao direito.

Abstract

The present Communication follows a research supported by the theoretical discussions of

Luhmann (1989, 1993 and 1996), Habermas (1981) and Hellmann (1996 and 1998) on

protest movements, focusing the Portuguese "October 15" platform – signed by 39 different

social movements. The fact that it is a recent activity facilitate and impose limits to the

analysis - justifying the importance of a sociological observation, but requiring extra care in

approaching very recent and unpredictable dynamics, in its emergence, development and

volatility. This condition suggests a more exploratory work, in this case focusing the

discourse of the group present in a “manifesto”. Mobilizing methods of document analysis,

we seek to interpret different types of writing that allow a first systematic analysis of

perceptions facing the law.

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Aliquidstat pro aliquoi- o discurso do “15 de Outubro”

1. Introdução

A presença e interpretação de signos (ou sinais)ii na vida pessoal é um elemento constante e permanente. De

facto, muitas das acções que conduzimos diariamente – e às quais atribuímos muitas vezes elementos como a

“intuição” ou alguma forma de “automatismo” – encontram-se fortemente dependentes da interpretação de

signos: ver as horas no despertador (e perceber se estamos ou não atrasados); abrir a torneira da água quente

no banho (e não da a água fria); decidir que roupa vestir (quente, fresca, colorida, sóbria, etc.); entrar num

transporte público ou conduzir um veículo até certo local (escolhendo o transporte com o destino certo, ou

lendo o painel de instrumentos de um automóvel e respeitando os sinais de trânsito); etc.

Podemos assim compreender os sinais como algo intrínseco à actividade social, funcionando como um

complexo conjunto de elementos mediadores dessas mesmas actividades; neste sentido, não será estranha à

sociologia (em particular no domínio da comunicação) a abordagem destes sinais enquanto elemento de

análise – procurando compreender o seu processo de semiose: as formas como são construídos, mobilizados

e interpretados. No caso particular do presente exercício, esta relação é talvez ainda mais evidente; ao pensar

na análise de movimentos sociais, facilmente se identifica uma forte presença – mais ou menos explícita – de

signos de natureza escrita, verbal, visual ou outros não-verbais, que traduzem e caracterizam grande parte da

sua actividade.

Neste caso, a análise será resumida a um único texto, em forma de “manifesto” e que se apresenta como

“base” do discurso de um movimento social conhecido por “Plataforma 15 de Outubro”. Este é um elemento

que define a principal limitação desta análise, excluindo pra já a análise de outros documentos escritos, bem

como outros documentos que assumem diferentes formas de expressão.

2. Os sinais da sociedade

Num primeiro momento, será importante enquadrar o próprio conceito de signo. O desenvolvimento deste

conceito na semiótica (ou semiologia) aponta para o reconhecimento de um elemento expresso enquanto

categoria produzida por um sujeito num processo de semiose, procurando representar um significado ausente

– relacionando três entidadesiii: um significante, um significado e um objecto; e adoptando diferentes

formas: sinais, sintomas, ícones, índices, símbolos, ou nomes. Ainda assim, este reconhecimento não se

reduz a uma análise elementar dos signos, mas antes às dinâmicas de criação de sentido inerentes; não será,

portanto, tão relacionada com o objecto em si, mas mais com as dinâmicas que envolvem todo o processo.

A semiótica encontra assim uma relação directa com o estudo dos signos, ou sinais, nomeadamente dos

significados que a eles se associam. No caso particular da Semiótica Social, procuram-se encontrar e

relacionar elementos que permitam conhecer as formas como as pessoas se apropriam do uso dos sinais para

a construção de uma vida em comum. Vannini (2009) indica quatro conceitos fundamentais que orientam a

reflexão:

Transformação – referente à mudança de sistemas de significado ao longo do tempo. Ex. Moda,

tecnologia, palavras;

Regras – construídas socialmente, podem ou não ser escritas. Podem apresentar-se mais ou menos

institucionalizadas, facilitando ou dificultando a mudança;

Multimodalidade – crescente mediação de meios de comunicação que aprofunda a noção de

complexidade;

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Função – num primeiro nível mais evidente (instrumental); num nível menos visível

(estratégica/reguladora); ao nível informativo (recurso); ao nível pessoal (status); e ao nível

heurístico (descoberta).

De forma mais específica, focando o tema do presente texto, apresentam-se no quadro seguinte os elementos

mais relevantes para análise do discurso dos movimentos sociais, partindo da abordagem da semiótica social

(Idem).

Discurso

O “quê” da comunicação.

Conversa falada, expressa por

palavras ou expressão de uma

linguagem corporal socialmente

construída

Os discursos apresentam e avaliam

práticas sociais, regulando

actividades – forma como se

realizam, quem pode participar, ou

os papéis e identidades

apresentados.

Género

O “como” da comunicação.

Actos discursivos que constroem

realidades próprias, como

desculpas, declarações de

intenções, pedidos, ofertas ou

demandas.

Os géneros formatam experiências e

práticas ao apresentar expectativas

partilhadas na forma e potencial de

significado (recursos semióticos).

Estilo

Sistemas de significado

alargados que ligam partes mais

pequenas, tornando-as todos

concretos.

Estilos articulam-se determinando

práticas sociais.

Ex. estilo individual + estilo social

= estilo de vida

Modalidade

Medida de quão verdadeira é

uma representação, em termos

do grau de verdade e de

mecanismos pelos quais uma

impressão da verdade é

alcançada.

Modalidade pode ser linguística e

não-linguística (visual, abstracta,

sensorial e naturalística).

Quadro 1 – Elementos de análise ao discurso dos movimentos sociais (Vannini, 2009)

3. Metodologia

As implicações metodológicas deste enquadramento apontam para diferentes níveis de classificação de

signos, conforme apontam Fidalgo e Gradim (2004, pp. 22-24), em referência a Umberto Eco, Charles S.

Pierce, Morris e Jakobson:

Fonte (naturais/animais/humanos);

Inferências que suscitam (artificiais/naturais);

Grau de especificidade (significa por si/significa cumulativamente);

Intenção e grau de consciência do emissor (propositado/espontâneo);

Canal físico e aparelho receptor humano (diferentes signos consoante sentidos);

Relação com o seu significado (unívocos, equívocos, plurívocos ou vagos);

Replicabilidade do significante (intrínsecos/extrínsecos);

Tipo de relação pressuposta com o referente (índices, ícones e símbolos);

Comportamento que estipulam no destinatário (identificadores, designadores, apreciadores,

prescritores e formadores);

Funções do discurso (referencial, emotiva, fática, imperativa, metalinguística e estética).

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Num sentido mais estrito – relativo ao caso específico de palavras articuladas em texto – apresentam-se

outras considerações, próprias da análise deste tipo de signos. Belo (1982) apresenta uma proposta

metodológica, que apesar de limitada pelo facto de não permitir a construção de uma lógica, oferece material

linguístico susceptível de utilização, entendendo poder ser principalmente adequada a textos relativamente

curtos e de natureza mais subversiva onde se exige maior dispêndio de energia criadora, inovação e ruptura

na linguagem – parecendo assim adequar-se à análise de textos produzidos por movimentos sociais, que

geralmente procuram sugerir alguma forma de mudança. Esta forma de análise textual segue então as

seguintes fases:

1. Detectar tipos

Narrativo – acontecimentos. “Eu”/”nós”/”eles”; “aqui”/”agora”; “hoje”/”ontem”.

Gnoseológico – texto científico ou de ensaio. “é”/”são”.

Discursivo – mais livre gramaticalmente. Articula-se por marcas de enunciação.

2. Corte em sequências

Secções do texto (“em seguida”, “depois”, “noutro local”, “emerge”, etc.).

3. Código sequencial

Série de actores (A) e verbos (V) nucleares na sequência (A1 V1 A2 + A1 V3 A2 ...).

4. Códigos paramétricos

Dicotomias presentes. Ex. juízos de valor: “bem”/”mal”, “sagrado”/”profano”, “verdadeiro”/”falso”,

“sensato”/”insensato”; “é necessário que”, “deve-se”, “penso que”, “creio que”.

5. Primeira e última sequência

Decisivas para estabelecer a problemática do texto.

6. Nível narrador/leitores

Marcas de enunciação. Ex. “eu”, “nós”, “eles”. Podem combinar-se com códigos de valor.

7. Leitura minuciosa das sequências

Procura da lógica manifesta do texto, segundo as articulações do código sequencial com os códigos

paramétricos e nível narrador/leitores.

8. Lógica e contradição

Identificação de lógicas contraditórias à dominante.

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A aplicação desta metodologia implica a posteriori uma análise dos elementos recolhidos, passando de uma

recolha de natureza semiótica a uma reflexão de natureza sociológica. Neste processo reflexivo, enquanto

fase complementar da recolha de dados, importa considerar quatro aspectos fundamentais:

a) Relação do texto com sistema de práticas sociais de que depende, como um dos seus discursos. Circuito

de leitura - de quem, para quem, onde.

b) Núcleos sequenciais e práticas sociais – modos de organização, produção ou reprodução.

c) Código enclausurante e códigos de valor – normalização ou reprodução de práticas de quem lê.

d) Contradição e sintomas enquanto lugares textuais onde se identificam lógicas – que lógica dominante e

eventuais contradições revela o texto.

4. Os movimentos da sociedade

Após a introdução do conceito de signo – e sua análise – será oportuno o enquadramento do tema em estudo;

facilitando, eventualmente, a aplicação metodológica dos pressupostos de um trabalho interdisciplinar que

compreenda o estudo dos signos em relação aquilo que se entende como o discurso dos movimentos sociais,

também estes associados a problemáticas e metodologias peculiares, desenvolvidas por diferentes autores.

Neste sentido, é de imediato possível verificar que ao longo das últimas décadas, correspondentes a mais de

meio século, os movimentos sociais têm assumido um papel de crescente importância na investigação em

ciências sociais, em particular na sociologiaiv:

No final dos anos 40, a crítica lamentava “o nível de compreensão grosseiramente descritivo e a relativa falta

de teoria” (Strauss 1947, p. 352), nos anos 60 queixava-se de que “nos estudos das mudanças sociais, os

movimentos sociais têm recebido relativamente pouca ênfase” (Killian 1964, p. 426), durante os anos 70, a

investigação sobre acção colectiva foi considerada “uma das áreas mais vigorosas da sociologia” (Marx e

Wood 1975); já no final dos anos 80, comentadores falaram sobre “uma explosão, nos últimos 10 anos, de

escritos teóricos e empíricos sobre movimentos sociais e acção colectiva” (Morris e Herring 1987, p. 138;

ver também Rucht 1991).

Actualmente, o estudo dos movimentos sociais encontra-se solidamente estabelecido, com publicações e

associações profissionais especializadas, em particular no continente europeu e americano.

5. Diferentes abordagens teóricas aos movimentos sociais

As abordagens e conceitos mobilizados para a análise dos movimentos sociais foram acompanhando as suas

transformações ao longo do tempo, contribuindo para a delineação de uma área de estudo com diferentes

planos de observação.

Neste sentido, Meyer (2002, pp. 63-65) defende duas tradições sociológicas de observação dos movimentos

sociais: a primeira relacionada com o trabalho de Simmel, procura a comparação dos fenómenos sociais ao

longo do tempo e dos lugares – indicando Tarrow como um autor que trabalha de acordo com esta tradição; a

segunda assume inspiração Weberiana, procurando conexões causais e conjunções acidentais – suportadas

pelos “eventos emergentes” de George H. Mead e os “indivíduos históricos” de Weber.

Della Porta e Diani (1999, pp. 5-8) referem que tradicionalmente, os movimentos sociais eram

principalmente focados em assuntos sobre trabalho ou nações; a partir dos anos 60, emergiram os “novos

movimentos sociais” centrados em preocupações como a igualdade de género, protecção ambiental, entre

outros. Nesta altura, a investigação em ciências sociais europeia tinha uma tendência para a mobilização de

princípios teóricos Marxistas na abordagem ao protesto, encontrando desde logo o obstáculo da centralidade

do conflito trabalho/capital. Estavam então em causa outros conflitos, relacionados com novas questões

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sociais e conduzidos por diferentes actores: jovens, mulheres e novos grupos profissionais – Touraine (1977,

1981), por exemplo, apontou a necessidade de entender esta multiplicidade de preocupações e conflitos. Em

sentido distinto, a investigação norte-americana tendeu para uma abordagem mais comportamental, centrada

no indivíduo. Neste caso, os movimentos sociais eram muitas vezes compreendidos como manifestações de

sentimentos de privação, frustração ou agressão. Até certo ponto, estas ideias encontravam-se com

abordagens estrutural-funcionalistas como a de Neil Smeiser (1962), que viu os movimentos sociais como

efeitos de rápidas transformações sociais num sistema incapaz de absorver as tensões decorrentes a curto

prazo.

As características que permitem a configuração de diferentes formas e níveis de organização dos

movimentos sociais foram igualmente objecto de estudo, inicialmente por via de uma abordagem Weberiana

centrada na burocratização onde a institucionalização era considerada uma evolução natural das organizações

de movimentos sociais. Herbert Blumer (1951, pp. 203), por exemplo, distinguiu quatros estados no ciclo de

vida de um movimento social típico: o “fermento social”, caracterizado pela agitação desorganizada; a

“exaltação popular”, com objectivos mais definidos; a “formalização”, com participação disciplinada e

coordenação estratégica; e a “institucionalização”, quando se torna uma parte orgânica da sociedade e se

cristaliza numa estrutura profissional.

Os movimentos sociais foram assim assumindo uma importância crescente na agenda da investigação em

ciências sociais, e em particular em sociologia – processo cujo resultado pode actualmente ser verificado nas

diversas investigações e publicações existentes sobre o tema, cuja natureza dinâmica pode ter contribuído,

em certa medida, para a derivação de múltiplas abordagens teóricas.

6. Análise documental

O texto em análise apresenta-se como um manifesto, tendo como objectivo a divulgação de uma afirmação

ou opinião de quem o produz; o próprio documento é assim indicado como representativo de um discurso

que se quer apresentar. Neste sentido, o seu conteúdo poder-se-á entender como parte fundamental do

discurso deste grupo (fonte); no entanto, não esgotará certamente esta análise, precisamente pela forma que

apresenta – um manifesto que em determinado contexto avalia condições de governação e de vida das

pessoas, exigindo e procurando provocar alguma mudança; logo, pensado e elaborado para o efeito,

selecionando e relevando alguns aspectos e ignorando outros de forma estratégica e de acordo com aquilo

que se quer transmitir. Será portanto importante – senão fundamental – a procura de outros elementos que

permitam uma análise complementar à do manifesto em si; sejam esses elementos outros textos, imagens ou

outro tipo de media que se relacione com as actividades deste grupo.

Por outro lado, o texto assume um significado particular enquanto documento que regista uma primeira

acção de um grupo de pessoas; significado que assume outra dimensão quando combinado com outros

registos da mesma fonte. Procura ainda despertar sentimentos e comportamentos nos destinatários

(responsáveis políticos e, principalmente, a população em geral – opinião pública), com articulação de

diferentes funções discursivas – referências a procedimentos, emoções e imperativos de mudança.

Uma primeira leitura do texto que constitui este manifesto deixa clara a posição deste grupo, expressa no

título e primeiras linhas – desenvolver uma forma de protesto com três características fundamentais:

“apartidário, laico e pacífico”; procurando exigir: “democracia participativa, transparência nas decisões

políticas e o fim da precariedade de vida”.

O corpo do texto será seguidamente analisado por secções – correspondentes a parágrafos definidos e

separados no próprio documento – procurando elementos interpretativos particularmente relacionados com

percepções face ao direito.

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“Somos “gerações à rasca”, pessoas que trabalham, precárias, desempregadas ou em vias de

despedimento, estudantes, migrantes e reformadas, insatisfeitas com as nossas condições de vida. Hoje

vimos para a rua, na Europa e no Mundo, de forma não violenta, expressar a nossa indignação e protesto

face ao actual modelo de governação política, económica e social. Um modelo que não nos serve, que nos

oprime e não nos representa.”

A primeira secção do corpo do texto funciona como “apresentação” da iniciativa, personalizando o grupo

com exemplos particulares (precários, estudantes, migrantes, reformados, etc.) e resumindo o fundamento da

acção com um resumo narrativo (hoje vimos para a rua [...]protesto face ao actual modelo de

governação[...]que não nos serve nem nos representa). É apresentado um juízo de valor, considerando “um

modelo que oprime”; ao mesmo tempo que se legitima a acção pela identificação de grandes grupos sociais

que pretendem exercer um direito de expressão e protesto.

“A actual governação assenta numa falsa democracia em que as decisões estão restritas às salas fechadas

dos parlamentos, gabinetes ministeriais e instâncias internacionais. Um sistema sem qualquer tipo de

controlo cidadão, refém de um modelo económico-financeiro, sem preocupações sociais ou ambientais e que

fomenta as desigualdades, a pobreza e a perda de direitos à escala global. Democracia não é isto!”

Na segunda secção é dada continuidade à narrativa introduzida na secção anterior, especificando uma forma

de forma de governação política (democracia) que é marcada por um certo secretismo, afastando a

participação e “controlo do cidadão” nas instâncias de decisão. No mesmo sentido é ainda indicada

incapacidade (“refém”) e influência de “instâncias internacionais”. Com esta narrativa pretende-se justificar

a acção resumida anteriormente, face a uma situação que revela contraditória: “a democracia não é isto!”.

Nesta secção é ainda introduzida a primeira referência directa ao direito, neste caso como uma das principais

consequências da narrativa descrita: “a perda de direitos à escala global”.

“Queremos uma Democracia participativa, onde as pessoas possam intervir activa e efectivamente nas

decisões. Uma Democracia em que o exercício dos cargos públicos seja baseado na integridade e defesa do

interesse e bem-estar comuns.”

“Queremos uma Democracia onde os mais ricos não sejam protegidos por regimes de excepção. Queremos

um sistema fiscal progressivo e transparente, onde a riqueza seja justamente distribuída e a segurança

social não seja descapitalizada; onde todas as pessoas contribuam de forma justa e imparcial e os direitos e

deveres dos cidadãos estejam assegurados.”

“Queremos uma Democracia onde quem comete abuso de poder e crimes económicos e financeiros seja

efectivamente responsabilizado por um sistema judicial independente, menos burocrático e sem dualidade de

critérios. Uma Democracia onde políticas estruturantes não sejam adoptadas sem esclarecimento e

participação activa das pessoas. Não tomamos a crise como inevitável. Exigimos saber de que forma

chegámos a esta recessão, a quem devemos o quê e sob que condições.”

A terceira secção mobiliza novamente a questão política e é apresentado o cenário alternativo, representando

a vontade deste protesto em particular. As ideias são apresentadas em três parágrafos, representando uma

enumeração de pontos que se pretendem revistos: todos os parágrafos começam com a palavra

“queremos...”. Assim, é apresentada uma definição de propostas de forma mais concreta, sempre apoiada no

elemento legitimador: o uso da primeira pessoa do plural.

Num primeiro momento a presentação de propostas é feita de forma mais abrangente: “queremos uma

democracia representativa”; sendo ainda especificados pontos fundamentais que se encontram com a ideia de

justiça: “integridade e defesa do interesse e bem estar comuns”. Com esta argumentação – agora de natureza

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mais discursiva que argumentativa – procura-se ainda reforçar a legitimação de terceiros (comunidade) pela

referência a um bem-comum.

Num segundo momento a argumentação é mais específica, encontrando-se com referências do domínio

económico: “os mais ricos não sejam protegidos”; “sistema fiscal progressivo”; “descapitalização”.

Novamente, são paralelamente introduzidos elementos relacionados com o direito e a justiça: “regimes de

excepção”; “transparente”; “riqueza justamente distribuída”; “onde todas as pessoas contribuam de forma

justa e imparcial e os direitos e deveres dos cidadãos estejam assegurados”.

O terceiro momento conclui a proposta, reforçando a força que se quer apresentar: para além do “queremos”

no início da frase, encontra-se também um “exigimos” no início da última frase do parágrafo – neste caso,

fazendo referência a uma condição de “recessão”, verificando-se ainda uma insistência na “participação

activa das pessoas”. Este ponto, apresenta relação particular com o direito e as propostas que se apresentam:

“quem comete[...]seja efectivamente responsabilizado”; “sistema judicial independente, menos burocrático e

sem dualidade de critérios”.

“As pessoas não são descartáveis, nem podem estar dependentes da especulação de mercados bolsistas e de

interesses financeiros que as reduzem à condição de mercadorias. O princípio constitucional conquistado a

25 de Abril de 1974 e consagrado em todo o mundo democrático de que a economia se deve subordinar aos

interesses gerais da sociedade é totalmente pervertido pela imposição de medidas, como as do programa da

troika, que conduzem à perda de direitos laborais, ao desmantelamento da saúde, do ensino público e da

cultura com argumentos economicistas.”

“Os recursos naturais como a água, bem como os sectores estratégicos, são bens públicos não privatizáveis.

Uma Democracia abandona o seu futuro quando o trabalho, educação, saúde, habitação, cultura e bem-

estar são tidos apenas como regalias de alguns ou privatizados sem que daí advenha qualquer benefício

para as pessoas.”

A quarta secção revela uma estrutura articulada entre um discurso e um sentido narrativo, recuperando as

referências políticas de base e socioeconómicas – em particular os recursos humanos e naturais: “as pessoas

não são descartáveis”; “os recursos naturais[...]são bens não privatizáveis”; “interesses financeiros”;

“programa da troika”; “regalias de alguns”; “benefícios para as pessoas”. A questão política é resumida na

ideia de um “futuro abandonado” em relação a: “trabalho, educação, saúde, habitação, cultura e bem-estar”

Articulada com a questão socioeconómica, novamente o direito se apresenta de forma transversal, seja em

forma de proposta ou consequência: “princípio constitucional[...]totalmente pervertido”; “imposição de

medidas”; “perda de direitos laborais”

“A qualidade de uma Democracia mede-se pela forma como trata as pessoas que a integram.

Isto não tem que ser assim! Em Portugal e no Mundo, dia 15 de Outubro dizemos basta!

A Democracia sai à rua. E nós saímos com ela.”

A última secção do texto regista as conclusões em frases curtas, indicando como ponto principal a falta de

“qualidade da democracia”. Apresenta também a maior carga de intenção mobilizadora, marcada pelo

discurso exclamativo: “Isto não tem que ser assim!”; “dia 15 de Outubro dizemos basta!”; “A democracia sai

à rua. E nós saímos com ela.”

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7. Conclusão

O texto analisado permitiu cumprir – na medida possível – a proposta inicialmente apresentada: proceder a

uma análise exploratória do discurso de um grupo (movimento social) específico, apresentando as principais

características presentes num documento produzido em forma de manifesto e procurando, em particular,

reconhecer uma relação com conceitos que se inscrevem e interessam ao domínio da sociologia do direito.

A análise realizada revelou que as principais referências são elaboradas em torno das noções de “direitos” e

“justiça”, normalmente num sentido negativo, de perda – em relação directa com o contexto de crise e

recessão económica vividos na altura da produção do documento. Para além das referências explícitas a

direitos que se pretendem garantir – e ao bom funcionamento do sistema jurídico em geral – relevam-se

ainda alguns elementos de interesse: por um lado, a insistência na proposta de um diferente modelo político,

ainda que reforçando a palavra Democracia com o uso de maiúsculas; por outro lado, insistindo na

“participação” e dando maior utilização à palavra “pessoas” do que à palavra “cidadãos”.

Estes elementos poderão servir de base a uma exploração mais alargada de dados, principalmente por via de

abordagens complementares que permitam atenuar a principal limitação do presente exercício: a análise de

outras fontes de informação (principalmente visuais) que possibilitem uma melhor e mais completa

compreensão das dinâmicas deste grupo em particular.

8. Bibliografia

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i Definição clássica de signo (ou sinal): algo que está por algo.

iiOpta-se aqui pelo uso da expressão “signo”, respeitando a sua importância na semiótica. (Fidalgo e Gradim, 2004, p.

15) iii

Idem ivDella Porta e Diani (1999, pp.5-8)